AventurAS de um menino perdido
Havia no mato um menino sem família. Não sabia dizer por que não tinha pai, mãe, avós, irmãos. Mas não tinha mesmo. Estava perdido da sua gent e. Andava de lá para cá, sem casa para onde voltar ao fim do dia.
Comia frutos e pescava. Um dia, na barranca do rio, esperava peixe em um cercado. Aquele lugar era o pesqueiro da feiticeira Ceinci. Ela gostava por igual de carne de caça e de peixe. Pescava pouco porque enxergava mal, porém era muito ciumenta do seu cercado. Viu o menino e pensou ver um macaco. Decidiu:
O que faz um macaco no meu pesqueiro? Se o pesqueiro é meu, o macaco também é. Bem bom, pois já apanhei peixe suficiente na minha rede e agora posso ter também um macaco. Assim, terei boa comida para muitos dias.
Com todo o cuidado de que era capaz, Ceinci tratou de se aproximar do menino. E atirou sobre ele a sua rede.
Mas a velha não tinha boa a vista, e o menino, que
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não era bobo nem nada, tirou o corpo, e a rede caiu no rio.
O menino, depressinha, subiu para o alto da árvore próxima.
A feiticeira notou a rapidez com que ele fizera tudo aquilo e ficou ainda mais convencida de que se tratava de um macaco. E ainda mais decidida a apanhá-lo.
Tentou agradar:
– Desça daí, meu neto. Vamos para casa. Vou preparar uma festa.
O menino riu e por resposta fez uma careta.
A velha, furiosa, ameaçou:
– Ou desce ou mando um enxame de marimbondos derrubar você daí.
Mandou mesmo. Uma nuvem de marimbondos. O menino, porém, sabido em tudo o que é preciso saber para viver bem na floresta, cortou um ramo de árvore folhudo e defendeu-se com ele. Luta brava. Muitos marimbondos morreram. O chefe deles foi dizer à feiticeira:
– Perdão, avó, mas aquilo não é um macaco. De tão teimoso parece ser um homem.
Ceinci espumou de r aiva, despediu os marimbondos e gritou para o menino: – Ô, meu neto! Conhece as formigas tocandiras?
Sabe do que elas são capazes? São formigas de fogo. Por onde passam, queimam. Se não descer já e já
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para ir à minha festa, mando as tocandiras derrubarem você da árvore.
Mandou mesmo. Milhares de formigas de fogo subiram e foram queimando o tronco da árvore, depois o galho em que o menino se refugiara, depois os ramos. Quando não havia mais para onde retirar-se, o menino pulou para o rio.
A f eiticeira esperava mesmo por isso. Atirou a rede e apanhou a caça. Por mais que gritasse e se debatesse, o menino acabou envolvido pela rede. E levado para a casa da velha Ceinci.
Ceinci acomodou a rede e foi ao mato buscar lenha para a fogueira. Projetava assar imediatamente aquela caça tão apetitosa.
Mas, enquanto recolhia os gravetos, chegou ao terreiro a moça que morava com ela para aprender feitiçaria e tecer esteiras e cestos de folhas de palmeira. Chegou, percebeu movimentos violentos na rede e não viu Ceinci. Pensou:
– S empre que essa gulosa volta da caça, exibe com orgulho o que trouxe, seja veado, paca ou caititu. Hoje, não fez assim. Aqui, há mistério. Vamos ver isso de perto.
Abr iu a rede. Viu o menino e gostou dele. Decidiu:
“Não posso permitir que a velha faça um assado de coisinha tão linda!”.
No instante, o menino pediu:
– Não deixe a feiticeira me assar. Preciso fugir.
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Os dois – moça e menino – queriam a mesma coisa: enganar a velha Ceinci. Então a moça tirou o menino da rede e colocou ali um pilão recoberto com cera. Fechou a rede e foi terminar de tecer um cesto. Ceinci voltou do mato carregando lenha. Acendeu fogo debaixo da trempe e assentou a rede por cima. Depois do que, satisfeita, sentou-se no chão, junto das chamas. Gostava de aspirar o aroma da carne de caça assando na sua fogueira.
Mas o cheiro que sentiu foi ruim. Esbravejou:
– Não é c heiro de carne de macaco. Isso é cera queimando.
De fato, o fogo queimou a rede, derreteu a cera e o pilão caiu, rolou até ela. Foi o bastante para a feiticeira entender que haviam tentado enganá-la. Quem? Só havia por ali a moça tecedora de cestos e aprendiz de feitiçaria.
S aiu a correr atrás da moça:
– Ahá! Quis me enganar? Agora, farei um assado de vocês dois.
A moça, que já sabia o suficiente de feitiçaria para se transformar em inseto, virou uma borboleta e, antes de bater asas e sumir, recomendou ao menino:
– Entre para o cesto que acabei de fazer. Dê uma ordem e ele sairá voando.
Já se metendo no cesto, o menino perguntou:
– E se a velha me perseguir?
A moça-borboleta ensinou:
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– As folhas de palmeira que deixei dentro do cesto estão enfeitiçadas. Basta você dizer o nome de um bicho e atirar a palma ao chão que ela se transforma no animal nomeado.
Agitando as palmas para fora do cesto, o menino ainda precisou saber:
– Aí vem ela! Diga depressa quais os bichos que ela gosta mais de comer.
Batendo as asas, pois Ceinci se aproximava, a borboleta-moça revelou:
– Porco-do-mato, paca, veado, capivara. E...
O resto da lição o menino não conseguiu ouvir porque a borboleta ia longe. Mas entendeu.
Era tempo. Deu uma ordem. O cesto levantou-se e quase, quase foi alcançado pelas mãos erguidas da feiticeira. Ela podia transformar-se em gavião, em águia, coisas assim. Se isso acontecesse, pobre do menino.
Então, ele atirou quatro folhas de palmeira para fora do cesto. Assim que tocaram o chão, não eram mais folhas de palmeira e sim porco-do-mato, paca, veado e capivara. Cada bicho correndo para um lado.
A feiticeira, gulosa que era, vendo logo no seu terceiro as caças de que mais gostava, esqueceu o menino e a moça e foi cercar o porco-do-mato, a capivara, o veado, a paca.
Er am bichos ariscos e enfeitiçados. Ela demorou-se nisso. Encantada da vida. Mas deu tempo a que o cesto com o menino chegasse ao rio.
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O menino desceu, aproveitou as palmas, ergueu um cercado dentro da água. Sem demora, muitos peixes, dos maiores, ficaram presos.
Isso foi bom, porque logo Ceinci apareceu. Recomeçava a perseguição.
A borboleta-moça achegou-se ao menino e aconselhou:
– S e ouvir um pássaro cantando assim: can-can-can, fuja, porque Ceinci está a ponto de pegar você.
E o menino ouviu um pássaro fazendo can-can-can.
Disse:
– É a feiticeira. Vou fugir.
Fugiu. Mas antes abriu o cercado, e os grandes peixes rodavam pela areia da praia. A velha, gulosa, distraiu-se no pegar os peixes. Deu tempo para o menino desaparecer no mato.
No mato, andou e andou. Andou um dia todo. Uma noite também ele andou. Ao amanhecer, ia descansar quando ouviu um pássaro: can-can-can. Estava tão cansado que pensou: “Não posso fugir. É agora que ela me pega”.
Entristeceu. Mas surgiu a borboleta-moça, avisando:
– Ali à frente, há um bando de macacos tirando mel. Eles têm muitos potes. Meta-se num dos potes. Ceinci não gosta de mel.
Ele foi. Encontrou os macacos e pediu:
– Meus primos, preciso de ajuda. Contou a perseguição que sofria. Os macacos en-
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tendiam bem o que significa ser perseguido. Abriram um dos potes cheios de mel. Ele mergulhou ali. Bem quietinho, todinho dentro do mel.
Ceinci chegou, cheirou, não provou do mel. Não gostava. Foi embora. Foi para aquele lado. O menino saiu para este lado.
Andou e andou. Andou um dia todo. Uma noite também. Amanhecia, quando tentou descansar. Mas ouviu um pássaro: can-can-can.
– É ela. Preciso de um esconderijo.
Pouco adiante, tomando sol, estava uma cobra surucucu. O menino foi pedir: – Meu primo, me esconda porque a feiticeira Ceinci vem aí para me pegar. Ela quer me comer.
A sur ucucu deixou o menino entrar em sua casa. Ceinci chegou, viu a surucucu na porta da toca. Não gostava de cobra venenosa. Foi embora.
O menino quis sair. A surucucu não deixou:
– A casa é minha. Agora, você é minha comida.
Ao amanhecer, a surucucu foi tomar sol. O menino ouviu cantar o pássaro araracanga. Pensou: “É um comedor de cobra”. Chamou:
– Meu avô araracanga, vamos conversar?
O ar aracanga ouviu, gostou da fala do menino, aceitou conversar. Perguntou:
– Fale, meu neto. O que você quer?
Contou a história da feiticeira e da surucucu. Queriam devorá-lo. O araracanga podia ajudá-lo a fugir?
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O araracanga quis saber:
– Q uantas entradas tem a casa da surucucu?
– Uma só.
– Isso facilita. Vou ficar por aqui.
F icou. Escondido. Quando a cobra surucucu voltou, pronta para devorar o menino, foi devorada pelo araracanga. Que ainda avisou:
– Pode sair, meu neto.
S aiu. Andou e andou. Dias e noites, ele andou pelo mato e pelo campo. Chegou a um rio bem largo. Estava ali um pássaro tuiuiú. Pescando.
O menino, curioso:
– Então, meu primo, está pegando peixe?
– Nenhum. O bico não ajuda. Meus filhos vão ficar sem comida.
– Não vão, não. Deixe que eu faça um cesto para pescar.
Teceu um iaturá, cesto forte de talas de cana. O resultado foi ótimo. O cesto encheu-se de peixes, e o tuiuiú, de alegria. Falou:
– Foi mesmo como você disse. Meus filhos terão muita comida. Agora, peça o que desejar.
O menino queria atravessar o rio, que era largo e correntoso. Do outro lado do rio, ele podia ver um campo. No campo, uma cabana. Na porta da cabana, uma mulher.
O tuiuiú mandou:
– Entre no cesto. Vou levá-lo para a outra margem.
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Tomou o cesto no bico e voou para o outro lado da água. Demorou, pois o rio era largo. Quando o menino desceu na areia da praia, já não era menino, e sim rapaz.
A mulher, na porta da cabana, chamou o rapaz:
– Tenho uma roça de mandioca. Mas uma cutia vem todos os dias comer a mandioca. Acabo ficando sem comida.
O moço estranhou:
– Não há quem tome conta da sua roça?
Ela contou:
– Tinha aqui um filho. Sumiu. Um dia voltei da roça e não achei o meu menino. Estou esperando a sua volta. Aí, sim, nenhum bicho vai arruinar a minha roça.
O rapaz teve pena da mulher. Ofereceu-se:
– Bem, se quiser, vou tomar conta da roça até o seu filho chegar.
Foi. A cutia apareceu. Ele atirou contra a cutia um espeto feito de pau de marajá. Matou a cutia. Levou a caça para a mulher. Ela pediu:
– Tire o couro para moquear bem a carne da cutia.
O r apaz abaixou-se para trabalhar. A mulher viu o calcanhar do rapaz. Havia, ali, um sinal que ela reconheceu:
– Você é o meu filho. Vamos comer juntos a cutia e festejar.
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O rapaz ficou tomando conta da roça e morando com a mãe. Livres da feiticeira Ceinci, a qual não podia atravessar um rio tão largo e fundo.