J.H. Rosny Aîné
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s Oulhamr fugiam dentro da noite tenebrosa. Loucos de desespero e fadiga, tudo lhes parecia inútil diante da suprema calamidade: o Fogo estava morto.
A GUERRA DO
FOGO Heloisa Prieto tradução
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A GUERRA DO
FOGO Heloisa Prieto tradução
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Índice apresentação
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parte 1 capítulo 1 – A morte do Fogo
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capítulo 2 – Mamutes e auroques
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capítulo 3 – Dentro da caverna
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capítulo 4 – O leão-gigante e a tigresa
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capítulo 5 – No esconderijo das rochas
73
capítulo 6 – A fuga na noite
85
parte 2 capítulo 1 – As cinzas
95
capítulo 2 – A emboscada
99
capítulo 3 – Nas margens do Grande-Rio
111
capítulo 4 – A aliança entre o homem e o mamute
120
capítulo 5 – A luta pelo Fogo
127
capítulo 6 – À procura de Gaw
135
capítulo 7 – A vida entre os mamutes
148
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parte 3 capítulo 1 – Os Anões-Vermelhos
169
capítulo 2 – Encurralados na aresta de granito
180
capítulo 3 – A noite no pântano
191
capítulo 4 – O combate entre os salgueiros
199
capítulo 5 – Os homens que morrem
205
capítulo 6 – O país das águas
211
capítulo 7 – Os Homens-de-Pelos-Azuis
215
capítulo 8 – O urso-gigante dentro do desfiladeiro
222
capítulo 9 – A rocha
232
capítulo 10 – Aghoo-o-Peludo
243
capítulo 11 – Na noite dos tempos
255
sobre a obra Sobre os grupos e as hordas
267
Sobre o vocabulário
273
Sobre a Coleção SuperTexto
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Em destaque: Arte e Tecnologia
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“A
ciência é para mim uma paixão poética”, assim afirmava Joseph Henri Honoré Boex (1856 – 1940), escritor de origem belga considerado um dos precursores da ficção científica e fantástica. Autor de extensa obra, J.H. Rosny Aîné usava a imaginação e seu enorme talento para atuar como um verdadeiro viajante no tempo, criador de jornadas para Marte, aventuras pré-históricas e fantásticos vampiros. A Guerra do Fogo, obra clássica, conduz o leitor à aurora do mundo, tempo em que os seres humanos não interagiam com os elementos naturais por meio de suas invenções. O Fogo, capturado e tratado como um animal devorador, criado em gaiolas, é disputa-
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a guerra do fogo do entre grupos diferentes. A aliança com os sábios mamutes auxiliará o herói em sua jornada mítica. Como nasce uma lenda? Essa talvez seja a pergunta norteadora de uma aventura espetacular. Água, ar, fogo, luminosidade... A escrita de Rosny lança o leitor em percepções da beleza vegetal e do comportamento animal, desafiando-o a decifrar pegadas, caminhos de ventos e todo tipo de cheiro. Há outra riqueza nesse modo de ser humano, tão diferente do jeito de ser contemporâneo: uma espécie de nudez esquecida e atualmente abandonada. Como seria viver ao relento? Passar o dia caminhando, colhendo alimentos ou caçando? De onde viria a sobrevivência? A solidariedade das hordas, a capacidade de improvisar e deslocar-se, bem como a rivalidade e a guerra estampadas em cenas de ação radical. Permita que esse narrador excepcional o conduza a uma caverna rupestre. Compartilhe de suas descrições minuciosas, do ritmo cadenciado de sua fala, erga então os olhos da mente e veja as imagens da jornada do herói sendo pintadas em paredes primordiais. Sinta-se acolhido pelos companheiros. Cante a saga do herói para que ela seja narrada infinitamente. Finalmente, lembre-se de que estar no mundo é permitir a passagem dos tempos, as transformações, a vida em meio ao desapego. Talvez este seja o eco dos ensinamentos eternos a ser capturado ao longo da busca pelo Fogo: mantenha sempre acesa a chama dentro de si. Heloisa Prieto 9
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A morte do Fogo
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s Oulhamr fugiam dentro da noite tenebrosa. Loucos de desespero e fadiga, tudo lhes parecia inútil diante da suprema calamidade: o Fogo estava morto. O Fogo era criado dentro de três gaiolas, quatro homens e dois guerreiros o alimentavam noite e dia. Assim era desde as origens da horda. Mesmo nos dias mais negros o Fogo recebia a substância que lhe dava a vida. Havia atravessado rios e pântanos, fora protegido da chuva, das tempestades e inundações, sem nunca cessar de azular-se de manhã e ensanguentar-se à noite. Seu rosto poderoso afastava o leão-preto, o leão-amarelo, o urso-das-cavernas e o urso-cinza, o mamute, o tigre e o leopardo; seus dentes vermelhos 13
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j.h. rosny aîné defendiam o homem da vastidão do mundo. Todas as alegrias viviam ao seu redor: fazia emanar das carnes um saboroso aroma, endurecia as pontas das lanças, rompia as pedras mais duras, banhava os corpos de uma doçura cheia de força; acalmava a horda no interior inquietante das florestas, nas savanas intermináveis, no fundo das cavernas. Era o Pai, o Guardião, o Salvador. Mas quando fugia das gaiolas e devorava as árvores se tornava mais feroz e terrível que o mamute. O Fogo estava morto! O inimigo havia destruído duas gaiolas, restando a terceira, mas durante a fuga o Fogo desmaiou, empalideceu, minguou. Ficou tão fraco que não conseguiu morder as ervas do pântano e se debateu como uma fera. No fim, parecia ser apenas um inseto avermelhado assassinado lentamente pelo vento… Desapareceu… E os Oulhamr fugiram desamparados na noite outonal. Não havia estrelas. Um céu pesado quase tocava as águas escuras, plantas esticavam suas fibras frias, ouviam-se répteis, homens, mulheres, crianças sendo tragados pelas trevas. Orientados pela voz dos guias, os Oulhamr seguiam por uma trilha de terra mais alta e mais firme, andavam pelas águas, pisavam em ilhotas. Três gerações já haviam percorrido essa rota, mas para isso era preciso contar com a ajuda dos astros. Um luar frio infiltrava-se pelas nuvens de cal e rocha. O vento girava sobre águas espessas e viscosas, algas inflavam-se em pústulas, sáurios sonolentos rolavam entre ninfeáceas e sagitárias. Uma garça elevou-se sobre uma árvore cinzenta e a imensidão da 14
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j.h. rosny aîné pelagem densa e seu enorme tamanho, podia romper o ventre de um homem com um só golpe, quebrá-lo ao meio com um abraço, triturá-lo com seus dentes. – Como vieram até aqui? – indagou Naoh. – Pelo meio das árvores… – respondeu Gaw, apontando para alguns pinheiros que cresciam no meio das rochas. – O macho desceu pela direita e a fêmea, pelo outro lado. Por sorte, ou por instinto, haviam conseguido barrar as fendas do desfiladeiro. E o ataque parecia iminente. Anunciava-se através da voz mais rouca do macho e das atitudes sorrateiras da fêmea. Se ainda hesitavam, é porque sua cabeça era lenta e seu instinto desejava ter mais certeza antes de levá-los à ação: farejavam, roncando cavernosamente, para conseguir medir melhor a distância daqueles inimigos escondidos nas rochas. Naoh bruscamente começou a dar ordens. Quando os ursos se lançaram ao ataque, os Oulhamr já haviam fugido para o fundo da caverna. O filho do Leopardo fez-se preceder pelos jovens; corriam o máximo que podiam sobre aquele solo acidentado, fugindo pelos desvios da caverna. Ao encontrarem a caverna vazia, os ursos-gigantes perderam algum tempo tentando descobrir a pista certa entre os rastros deixados pelos Oulhamr. Cheios de desconfiança, paravam a toda hora. Pois, embora não temessem outros seres, eram naturalmente prudentes e sentiam um medo confuso do desconhecido. Conheciam os perigos das rochas, da caverna e dos abismos; suas 226
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a guerra do fogo memórias tenazes guardavam imagens dos blocos que se fendem e escorregam, do solo que se abre ao meio, das trevas dos abismos, das avalanches, das águas que derrubam paredes sólidas. Em suas vidas bastante longas, nunca haviam sido ameaçados pelo mamute, pelo leão ou pelo tigre. Mas energias obscuras muitas vezes se haviam levantado contra eles; traziam no corpo as marcas agudas das pedras, já haviam sido carregados pelas neves que se transformam em rios na primavera e capturados por terras enlameadas. Bom, naquela manhã, seres vivos os atacaram pela primeira vez. O ataque partiu do alto de uma rocha por onde subiam apenas os insetos e répteis. Três seres verticais mantinham-se de pé sobre uma saliência. Ao avistarem os ursos-gigantes, soltaram gritos e atiraram lanças. Uma delas atingiu o macho. Então, tomado pela dor e desorientado pela raiva, perdeu a clareza de seu instinto e tentou alcançar o topo diretamente. Renunciou à tentativa rapidamente e tentou o desvio mais próximo, acompanhado de sua fêmea. Durante a fuga, arrancou a lança e farejou-a: lembranças vieram-lhe à memória. Não havia encontrado muitos homens: seu aspecto não o amedrontava, eram como lobos ou hienas. Vendo que os homens saíam de seu caminho, nunca havia conhecido suas artimanhas ou armadilhas, simplesmente não se preocupava com eles. Portanto, a aventura fora ainda mais imprevista e perturbadora. Desmentia a obscura ordem das coisas, fazendo surgir uma insólita ameaça. E o urso-das-cavernas caminhou pelos cor227
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j.h. rosny aîné redores, tateou as subidas das rochas, farejando cuidadosamente o ar. No final, cansou-se. Se não fosse pelo ferimento, teria guardado apenas uma lembrança vaga que dorme no fundo das carnes e que só desperta quando atiçada por circunstâncias semelhantes. Mas os sobressaltos da dor faziam voltar a imagem de três homens de pé nas rochas e de sua lança aguda. Então rosnava enquanto se lambia… Depois, o próprio ferimento deixou de ser uma lembrança. O urso-gigante pensava apenas na penosa busca de alimento, quando farejou novamente a carne do homem. A raiva encheu-lhe o peito. Avisou sua fêmea, que havia seguido outro caminho, pois durante o frio não conseguiam subsistir juntos caminhando por terras vizinhas. E, depois de terem se certificado da posição dos inimigos e de sua distância, lançaram-se ao ataque. Dentro daquela fissura tenebrosa, Naoh primeiro teve a impressão de não haver nenhuma presença além da de seus companheiros. Depois, começaram a ecoar os passos pesados e respirações roucas: os ursos ganhavam terreno. Eles tinham a vantagem do próprio equilíbrio, dos quatro membros agarrados ao solo escuro, das narinas que farejavam profundamente as pistas… A cada instante, um dos nômades tropeçava em uma pedra, escorregava num buraco, raspava a pele numa saliência das paredes rochosas, pois era preciso transportar as armas, as provisões e as gaiolas de Fogo que Naoh não podia abandonar. Como as chamas arrastavam-se miúdas no fundo das pedras, não clareavam o caminho: suas frágeis luzes azuis perdiam-se, indicando apenas 228
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a guerra do fogo as sombras das pedras. E as pedras assinalavam confusamente as silhuetas fugitivas. – Rápido, rápido – gritava o chefe. Nam e Gaw não podiam tomar um caminho claro. E os animais gigantes aproximavam-se. A cada passo, percebia-se melhor sua respiração. Como sua fúria aumentava à medida que sentiam o inimigo mais perto, rosnavam muito. Suas vozes enormes ecoavam pelas pedras. Naoh percebeu melhor a enormidade de seus corpos, a força de seu abraço, a mordedura fatal de suas mandíbulas. Num minuto, os ursos estavam há apenas alguns passos de distância. O solo vibrava sob os pés de Naoh, um peso imenso cairia sobre suas vértebras… Enfrentou a morte: inclinou bruscamente a gaiola, dirigindo suas pálidas luzes contra aquela massa oscilante. O urso parou imediatamente. A surpresa despertou sua prudência. Olhou para a pequena chama vibrando sob suas patas e fez um apelo surdo a sua fêmea. Depois a fúria o dominou, e atirou-se contra o homem… Naoh havia recuado e lançou-lhe a gaiola com todas as suas forças. O urso foi atingido na narina, uma de suas pálpebras queimou, e ele soltou um rugido de dor; enquanto o animal se debatia, o nômade ganhava terreno. Uma claridade acinzentada infiltrou-se pelas galerias. Os Oulhamr agora conseguiam enxergar o chão e não tropeçavam mais; saíram correndo a grande velocidade… Mas a perseguição continuou, porque os animais também redobraram seus movimentos 229
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j.h. rosny aîné e, à medida que a luz aumentava, e se alcançassem uma área livre, pensava o filho do Leopardo, o perigo seria ainda maior. Novamente o urso-das-cavernas se aproximou. O ferimento na pálpebra aumentava sua raiva, fazendo com que abandonasse a prudência; em sua cabeça o sangue pulsava, nada poderia detê-lo agora. Naoh sentia sua aproximação por causa do ronco cada vez mais cavernoso e de seus grunhidos rápidos e roucos. Quando Naoh estava para começar a combater, Nam soltou um grito de apelo. O chefe viu uma saliência alta, que diminuía o corredor. Nam conseguiu atravessá-la e Gaw a contornou. A boca do urso roncou a três passos quando Naoh também deslizou pela fenda. Levado pelo próprio movimento do seu corpo, o animal bateu contra a pedra, ficando preso: somente seu enorme focinho passava por aquela pequena abertura. Urrou, mostrou a serra de seus dentes, soltando um grande ronco sinistro. Mas Naoh não o temia mais, rapidamente havia se colocado a uma distância que agora o gigante não conseguiria ultrapassar. Uma pedra mais possante que cem mamutes, mais perene que a vida de cem gerações, detinha o urso com a mão certeira da morte. O nômade comentou: – Agora, Naoh é mais forte que o grande urso. Porque ele tem uma maça, um machado e lanças. Pode atingir o urso, e o urso não pode lhe acertar os seus golpes. Havia levantado a maça. O urso já reconhecera essa armadilha de pedra, pois a enfrentava desde a infância. Retirou a cabeça antes 230
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a guerra do fogo que o homem a acertasse e desapareceu atrás da fenda rochosa. Sua cólera persistia, agitava seu corpo, fazia com que batesse as patas na cabeça, levando-o a atos imperiosos. Mas o urso não cedeu à própria cólera, conduzido por um instinto sagaz que não desconhecia as circunstâncias. Duas vezes naquele mesmo dia havia reconhecido que o homem sabe ferir com seus golpes estranhos. Começou a aceitar o destino; algo nascia dentro de seu ser que o levaria a colocar o animal vertical entre as coisas perigosas: ele o odiaria com tenacidade, se dedicaria a destruí-lo, mas não usaria apenas a força e a prudência para vencê-lo: passaria a espreitá-lo, tentaria encurralá-lo e, de agora em diante, atacá-lo de surpresa. A ursa rugiu, aprendera menos com aquele episódio, pois nenhum ferimento lhe havia aumentado a sagacidade. Como o grito do macho lhe inspirava prudência, parou de avançar, imaginando que havia alguma armadilha da terra, pois não concebia que um perigo fosse capaz de nascer daquelas frágeis criaturas escondidas na curva da parede rochosa.
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urante algum tempo, Naoh desejou golpear os animais. O rancor remoía seu coração. Os olhos vasculhavam as trevas, e mantinha a lança afiada. Depois, como o urso permanecia invisível e a fêmea afastada, lembrou-se que o dia estava passando e que era preciso alcançar a planície. Então, aborrecido, caminhou na direção da luz. Ela aumentava a cada um de seus passos. O corredor alargou-se e os nômades soltaram um grito diante das grandes nuvens de outono que rolavam no fundo do firmamento, da colina arrepiada de relva, cheia de obstáculos, e das terras sem fim. Porque conheciam essa paisagem. Haviam percorrido aquela região desde a infância, com seus bosques, savanas, colinas;
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a guerra do fogo haviam atravessado seus pântanos, pousado nas margens daqueles rios ou nos desvios daquelas rochas. Com mais dois dias de caminhada atingiriam o Grande-Pântano, onde os Oulhamr se reúnem após suas viagens de guerra ou caça e onde uma obscura lenda localizava a sua origem. Nam riu como uma criança, Gaw estendeu os braços com um tremor de alegria e Naoh, imóvel, sentiu reviver tantas coisas que era como se fosse muitos homens ao mesmo tempo. – Vamos rever a horda! Os três já sentiam sua presença. Mesclava-se às ramagens de outono, refletia-se nas águas e transformava as nuvens. Cada aspecto daquela paisagem era ligeiramente diferente das terras que ficavam para trás, no imenso oriente meridional. Agora só se lembravam de dias felizes. Nam e Gaw, que por tantas vezes haviam recebido a rudeza dos mais velhos, os punhos e os gestos ferozes de Faouhm, sentiam uma segurança sem limites. Olhavam com orgulho para as pequenas chamas que conquistaram entre tantas lutas, fadigas e sofrimentos, conservando-as ainda vivas. Naoh arrependeu-se de ter sacrificado uma gaiola: uma vaga superstição arrastava-se no fundo de seu cérebro. Mas ele não trazia consigo as pedras que contêm o Fogo e mais o segredo que o faz nascer? Não importa! Como seus companheiros, desejava guardar um pouco dessa vida brilhante que havia conquistado dos Kzamm… A descida foi árdua. O outono havia multiplicado os entulhos e as fendas no solo. Empurravam os obstáculos com a ajuda do 233
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j.h. rosny aîné machado e do arpão. Quando alcançaram a planície, haviam vencido o último obstáculo; agora só restava subir pelos caminhos simples e familiares. Cheios de esperanças, fixavam seus sentidos, agora menos alertas, nos inúmeros acontecimentos que cercam e acompanham os vivos. Caminharam até o crepúsculo: Naoh procurou uma curva do rio onde pudesse passar a noite. O dia morria lentamente no fundo das nuvens. Uma luz avermelhada arrastava-se sinistra e morosa, acompanhada dos uivos dos lobos e do ganido dos cães: passavam em fileiras furtivas, espreitando pelos arbustos e florestas. Seu grande número surpreendeu os nômades. Na certa, algum êxodo de herbívoros os havia tocado das terras vizinhas, reunindo-os sobre esse solo rico em presas. Terminariam devastando suas terras. Seus gritos traduziam a penúria, seus movimentos, uma atividade febril. Naoh sabia que devia temê-los quando andassem em bandos, por isso diminuiu a marcha. Havia dois grupos: à direita eram cães e à esquerda, lobos. Como seguiam pela mesma pista, paravam de vez em quando para trocar ameaças. Os lobos eram maiores, com nucas inchadas e musculosas, mas os cães eram mais numerosos. À medida que as trevas comiam o crepúsculo, seus olhos lançavam mais luzes: Nam, Gaw e Naoh percebiam uma multidão de pequenos olhos verdes que se deslocavam como vagalumes. Muitas vezes os nômades respondiam aos uivos com seus gritos de guerra, e então todas essas fosforescências apareciam no ar. 234
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a guerra do fogo Primeiro os animais ficaram bem longe dos arpões; quando as trevas aumentaram, aproximaram-se dos homens; ouvia-se com mais clareza o ruído leve de suas patas. Os cães pareciam ser mais ferozes. Alguns haviam avançado à frente dos homens. Paravam bruscamente, saltavam com um grito agudo, ou então se arrastavam sorrateiramente. Mas os lobos, inquietos ao perceberem que haviam sido ultrapassados, chegaram todos juntos, com suas vozes dilacerantes. Haveria uma luta. Os cães, unidos uns contra os outros, conscientes do poder de seu grande número, exaltados pelo sentimento de seu avanço, tomaram dianteira. Uma impaciência furiosa revirava as entranhas dos lobos. E, diante da última cinza do crepúsculo, as duas matilhas oscilam, ondas de carnes vibrantes e longos uivos. Alguns indivíduos menos gregários haviam continuado a caça, e seu exemplo prevaleceu. Paralelas, as filas de cães e de lobos se ameaçavam naquela noite de fome. A perseguição tão persistente acabou inquietando os homens. Diante do ocidente quase negro, entre tantos corpos sorrateiros, sentiam a morte. Um grupo de cães colocou-se à frente de Gaw, que marchava em direção à esquerda, e um deles, que tinha o corpo de um lobo, parou, mostrou os dentes brilhantes e saltou. O jovem nervosamente lançou-lhe o arpão. Enfiou-o nos flancos do animal, que começou a girar com um longo uivo; Gaw matou-o com um golpe de maça. Os cães afluíram, latindo: uma solidariedade mais forte que a dos lobos os unia, e, quando um deles estava em perigo, afrontavam 235
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j.h. rosny aîné juntos os grandes carnívoros. Naoh temia o ataque de todo o bando. Chamou Nam e Gaw, para intimidar os animais. Encostados um contra o outro, os nômades transformaram-se num só corpo; os cães, espantados, os rodeavam, tentando atacá-los. Se um deles ousasse se precipitar, todos o seguiriam, e os ossos dos homens embranqueceriam a planície. Bruscamente, Naoh atirou uma lança: um cão abateu-se, o peito rompido. O chefe pegou-o pelas patas traseiras, atirou-o contra um grupo de lobos que os atacava à direita. O animal ferido desapareceu, e, com o odor do sangue e a presa fácil aumentando-lhes a fome, os animais começaram a comer a carne viva. Então os cães esqueceram os homens e atiraram-se sobre os lobos. Enquanto aqueles animais se engalfinhavam, os nômades começaram a correr. Um vapor anunciava as margens do rio, e Naoh, de vez em quando, discernia alguns reflexos. Duas ou três vezes parou para se orientar. No fim, mostrando uma massa acinzentada que dominava as margens do rio, disse: – Naoh, Nam e Gaw riram dos cães e dos lobos. Era uma grande rocha que formava quase um cubo e se elevava a cinco vezes a altura de um homem. Só havia um acesso lateral. Naoh escalou-o rapidamente, pois o conhecia há muitas estações. Depois que Nam e Gaw o escalaram, encontraram-se numa superfície plana, cheia de arbustos, onde havia até um pinheiro; o local abrigaria uns trinta homens. 236
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a guerra do fogo Lá embaixo, perto da planície acinzentada, lobos e cães lutavam ferozmente. Rumores raivosos e longos lamentos rompiam o ar úmido; os nômades saboreavam uma sensação de segurança. O bosque gemeu, o Fogo lançou suas línguas vermelhas e fumaça ruiva, uma grande luz espalhou-se pelas águas. Da grande rocha solitária destacavam-se segmentos da margem nua: vimeiros, salgueiros e álamos só cresciam a certa distância, de maneira que se podia enxergar todas as coisas até vinte côvados de distância. Mas os animais fogem da claridade, e ocultam-se, ou correm em sua direção, fascinados. Duas aves se elevavam sobre uma faia; com um grito fúnebre, uma revoada de estorninhos atravessou até a outra margem; os patos perturbados abandonaram o abrigo e esconderam-se nas sombras; longos peixes surgiram das profundezas, vapores prateados, flechas de nácar, hélices acobreadas. E a luz avermelhada ainda revelava um javali atarracado que parava e roncava, um grande élafo com a crina balançando, a cabeça sorrateira de um lince de orelhas triangulares e olhos ferozes, entre dois galhos de um freixo. Os homens conheciam sua força. Comiam a carne assada em silêncio, felizes por viverem perto do calor do Fogo. A horda estava perto! Antes da segunda noite, reconheceriam as águas do Grande-Pântano. Nam e Gaw seriam acolhidos como guerreiros: os Oulhamr saberiam de sua coragem, sua astúcia, sua enorme paciência, e então Nam, Gaw e Naoh seriam respeitados. Naoh teria 237
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j.h. rosny aîné Gammla em troca do Fogo e comandaria ao lado de Faouhm… Seu sangue bebeu da esperança e embora seus pensamentos fossem breves, o instinto era prodigioso, cheio de imagens profundas e precisas. Tinham a juventude do mundo, uma juventude que jamais voltará a existir. Tudo era vasto, tudo era novo… Não sentiam jamais o fim de seu ser, a morte era apenas uma fábula assustadora e não uma realidade. Eles a temiam, bruscamente, nos momentos mais terríveis; depois ela se afastava, apagando-se, perdendo-se no poço de suas energias. Se por um lado as fatalidades eram terríveis, abatendo-se sem parar sobre os animais, a fome, o frio, os males estranhos, os cataclismos eram esquecidos assim que desapareciam. Contanto que tivessem abrigo e alimento, a vida era fresca como um rio… Um rugido fendeu as trevas. O javali atravessou a planície, o élafo saltou convulsivamente. Primeiro surgiu uma forma nebulosa, depois uma silhueta oscilante, com um poder que se revelava a cada gesto; mais uma vez, Naoh veria um leão-gigante. Tudo fugiu. A solidão foi infinita. A fera colossal avançou com inquietude. Conhecia a rapidez, a vigilância, o faro aguçado, a prudência, os inúmeros recursos daqueles pelos quais esperava. Essa terra, de onde sua raça quase havia desaparecido, era menos quente e mais pobre; era preciso muito esforço para sobreviver ali. A fome sempre habitava seu ventre. Acasalarem-se era difícil: os territórios onde havia presa suficiente para um casal tornavam-se cada vez mais raros, mesmo ali, naquela região ensolarada, ou nos 238
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a guerra do fogo países quentes. E o sobrevivente que rondasse por aquelas terras do Grande-Pântano não deixaria descendentes. Apesar da altura e do escarpamento das rochas onde se encontravam, Naoh sentiu suas entranhas esfriarem. Disse a si mesmo que o Fogo não protegeria um acesso tão estreito, apanhou a maça e o arpão; Nam e Gaw também se prepararam para o combate; os três esconderam-se nas rochas, permanecendo invisíveis. O leão-tigre parou; uniu suas patas musculosas, contemplou essa grande claridade que assusta as trevas como um crepúsculo. Ele não a confundiu com a luz do dia e menos ainda com essa luz fria que o levava a emboscadas. Reviu, confusamente, as chamas devorando a savana, uma árvore queimada pelo raio, ou mesmo o Fogo dos homens que às vezes o havia tocado, há muito tempo, nos territórios onde fora exilado pela fome ou pelo desaparecimento das águas, que torna a existência impossível. Hesitou, rugiu, seu rabo balançou furiosamente, depois avançou e farejou o ar. As emanações eram fracas, pois subiam e se dispersavam antes de voltarem a descer; uma pequena brisa levava-o até o rio. Sentiu vagamente os aromas da fumaça, menos ainda da carne assada e quase não captou o odor dos homens; enxergou apenas aquelas luzes dançantes de raios vermelhos e amarelos que pareciam crescer, abrindo-se em cones, formando tecidos que se mesclavam nas súbitas sombras criadas por suas fumaças. Não associou a essas imagens a lembrança de presas, nem gestos de combate; então a fera foi tomada por um temor raivoso e abriu a boca imensa, 239
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j.h. rosny aîné aquela caverna da morte, de onde saiu um rugido rouco… Naoh viu o leão-gigante afastando-se nas trevas, onde poderia montar sua armadilha… – Nenhum animal pode nos combater! – exclamou o chefe com uma risada desafiadora. Logo depois, Nam estremeceu. Com as costas voltadas contra o Fogo, seguiu com os olhos, até a outra margem do rio, um reflexo que brilhou sobre as águas, infiltrando-se pelos salgueiros e sicômoros. E murmurou com a mão estendida: – Filho do Leopardo, os homens chegaram! Um peso desceu no peito do chefe e os três uniram seus sentidos. Mas as margens permaneceram desertas e ouviram apenas o som das águas; nada percebiam além dos ruídos dos animais, da relva e das árvores. – Será que Nam errou? – indagou Naoh. O jovem respondeu, certo do que havia visto: – Nam não errou… Viu os corpos dos homens no meio dos galhos de salgueiros. Eram dois. O chefe não duvidou mais. Seu coração repartiu-se entre a angústia e a esperança. Disse em voz baixa: – Esta é a terra dos Oulhamr. Aqueles que você viu são caçadores enviados por Faouhm. Levantou-se, mostrando sua grande estatura. Pois nada tinha a ocultar: amigos ou inimigos conheciam muito bem o significado do Fogo. Sua voz clamou: 240
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O Brasil que a gente quer ler.
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O
s Oulhamr fugiam dentro da noite tenebrosa. Loucos de desespero e fadiga, tudo lhes parecia inútil diante da suprema calamidade: o Fogo estava morto.
A GUERRA DO
FOGO Heloisa Prieto tradução
CONHEÇA A TRADUTORA
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