histórias mal-assombradas de portugal e espanha série contos para não dormir 5
adriano messias
ilustrações: alexandre teles
Copyright © Adriano Messias Capa e Projeto Gráfico Casa Rex Ilustração Alexandre Teles Coordenação Editorial Elisa Zanetti – Editora Biruta 1º edição – 2010
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Messias, Adriano Histórias mal-assombradas de Portugal e Espanha/ Adriano Messias ; ilustrações Alexandre Teles. - São Paulo : Biruta, 2010. - - (Série contos para não dormir ; v. 5) ISBN 978-85-7848-053-0 1. Contos - Literatura infantojuvenil I. Teles, Alexandre. II. Título. III. Série. 10-05897
CDD-028.5
Índices para catálogo sistemático: 1. Contos : Literatura infantojuvenil 028.5 2. Contos : Literatura juvenil 028.5 Edição em conformidade com o acordo ortográfico da língua portuguesa. Todos os direitos desta edição reservados à Editora Biruta Ltda. Rua Coronel José Euzébio, 95 – Vila Casa 100-5 Higienópolis – Cep 01239-030 São Paulo – SP – Brasil Tel: (011) 3081-5739 fax (011) 3081-5741 E-mail: biruta@editorabiruta.com.br Site: www.editorabiruta.com.br A reprodução de qualquer parte desta obra é ilegal e configura uma apropriação indevida dos direitos intelectuais e patrimoniais do autor.
“Donde está el niño que yo fui, sigue adentro de mí o se fue? Sabe que no lo quise nunca y que tampoco me quería? Por qué anduvimos tanto tiempo creciendo para separarnos?” Pablo Neruda, poeta chileno
Portugal e Espanha: nossos antigos pais. Nas caravelas e naus, as grandes histórias. Na memória, os velhos medos e mitos.
sumรกrio
Prólogo 9 A Moura Torta 19 Clara, Alva e Branca 37 Entrando no quarto misterioso 55 A Velha de Um Olho Só 65 A Dama do Pé de Cabra 75 Histórias em Dia de Finados 99 O homem que enganou a Morte 111 Mulheres que viraram fantasmas 123 A Padeira, a Loba e a Chorona 139 De volta ao quarto misterioso 155 O fim que levou a velha ciclope 167 Epílogo 177 Mar Tenebroso 185 Para o leitor estudante ou professor 192
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Prólogo
Meu nome é André Villas Boas. Morava em Belo Horizonte até algum tempo atrás, mas me mudei para São Paulo, e hoje estou em uma escola nova. Mas meus gostos continuam os mesmos de antes: cinema, shopping, colecionar
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selos, criar páginas na internet, desmontar coisas (confesso que às vezes me esqueço de como montar de novo) e colecionar gibis. Estou tentando também fazer novos amigos, mas a vida corrida da cidade nem sempre facilita as coisas. Ah... mas essa apresentação tá meio chata. Não pense que sou careta. Vamos lá ao que interessa: quero que seja meu parceiro nesse livro e nos outros da série. Aliás, eu pre-ci-so de você, meu leitor amigo, para me acompanhar em algumas aventuras e experiências que são no mínimo... digamos... sobrenaturais! Mas não tenha medo. Aliás, TENHA MEDO! Ao menos um pouco, ou não justificará ser este um livro sobre assombrações. Está confuso? Não se preocupe, eu também costumo ficar assim. Na escola, desde pequeno sempre fui um menino diferente porque queria ser um vampiro. Não apenas para morder o pescoço das meninas ou assustá-las pelos corredores nos dias de tempestade... É que gosto mesmo do personagem vampiresco, com aquela capa preta que ele costuma jogar sobre os ombros, caminhando solenemente em seu enorme castelo. É... Sempre achei vampiro o máximo, porque sou mais da noite do que
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do dia. Gosto mesmo é dos espaços escuros em que nossa imaginação pode voar de um castelo a uma vilazinha. E como um vampiro, não sei ao certo que idade tenho. Dizem que estou “virando homem” (e detesto essa expressão, porque homem já sou desde que nasci; se você for homem, vai entender minha raiva). Bom, deixa pra lá... Tenho um mundo interno muito fértil, penso eu, porque eu realmente curto essa coisa de ficar imaginando histórias e fantasiando. Meus pais dizem que tem hora em que ajo como se tivesse oito anos, outras vezes, que pareço ter uns vinte. Peço que eles decidam e entrem em um acordo, porque isso me funde a cuca um pouco. Como não poderia deixar de ser, gosto de filmes, dos de terror e de outros, desde que tenham uma boa história para contar. Também leio de tudo: livros de aventura, revistas de viagens, blogs, sites. Tento arrumar meu quarto dia sim, dia não, e, sendo adolescente, não me identifico com a palavra “organizado” (também não acho que todo adolescente tenha de ser bagunceiro). Eu encontro muito tempo livre para ler (e gosto de ler, ninguém me obriga a fazer isso). Não que o fato de ter irmãos justifique alguém não
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A Moura Torta2 “Se acreditas ou não, importa-me muito pouco. Meu avô narrou ao meu pai, meu pai a narrou a mim, e eu te conto agora, que não é mais do que para passar o tempo” Gustavo Adolfo Béquer, escritor espanhol do séc. XIX
Tenho três tias tricotadeiras que nunca sabem o que tricotam. Ficam espalhadas entre os trapos de linha lá no casarão da roça em que moram, entre os retalhos e os gigantescos novelos de cores 2. Por puro preconceito: Esta história é muito antiga - data de quando os mouros, que tinham invadido as terras do que é hoje Portugal, se tornaram serviçais e subjugados dos portugueses. Havia muito preconceito em torno de quem fosse mouro. Quase sempre, as mouras idosas eram consideradas bruxas malvadas e gente mesquinha.
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Ao se debruçar sobre o espelho das águas, a horrenda velhota se admirou ao ver uma moça tão bonita refletida. Pensando ser ela mesma, disse consigo: É um desaforo que eu, uma mulher tão bela, esteja carregando água nas costas feito uma mula! O povo fala que sou horrorosa, mas vejam que cabelos sedosos e que pele de neve eu tenho! Pegou seu pote de barro e jogou-o contra o chão com tanta indignação que ele se partiu em cacos. Quando a tortíssima serviçal voltou para a casa de sua ama, foi repreendida por não ter retornado com o pote e foi obrigada a ir outra vez à bica, correndo perigo de ser chicoteada. Munida de novo pote, lá se foi a tortérrima velhusca. Na fonte, viu a mesma maravilhosa figura refletida nas águas. E novamente se indignou: Não é possível! Todos me julgam horrenda e aleijada, mas como sou delicada e jovial! Minha ama há de reconhecer isso! E novamente quebrou o vasilhame. A linda moça nua apenas observava toda aquela cena, se divertindo.
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Uma terceira vez voltou a moura torta até a pequena fonte, carregando um outro pote de barro, já com o lombo marcado pelos safanões que sua austera senhora lhe dera naquela segunda vez de malogro. A moça, que percebia todo o mal entendido, não conseguiu controlar uma estrondosa gargalhada, e foi pega em flagrante pela moura: Ah, minha florzinha, então é você que está aí em cima enganando a vovó aqui em baixo? – disse a serviçal, fingindo candura. Queridinha, deixe a vovó catar um piolho que está preso aos seus cabelos tão bonitos. A velha começou a subir na árvore e foi até a moça, fazendo de conta que procurava um piolho naqueles delicados cabelos louros. Logo ficou sabendo de toda a história da melancia e, ainda fingindo catar o tal piolho, espetou-lhe um alfinete na cabeça. Imediatamente, a donzela virou uma pombinha branca e voou para longe. A moura torta, feliz da vida com a desforra, ficou no lugar da encantada, aguardando o rapagão retornar com a troca de roupas que fora procurar para a pelada donzela. Quando o irmão caçula regressou com um
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belo vestido dependurado no braço esquerdo, foi de cara se espantando com a feiura daquela mulher trepada na árvore. E soltou interjeições deselegantes, de modo que a velhota se sentiu ofendida e até retrucou: O que você queria, afinal de contas? Foi esse sol infernal que me queimou. Você demorou tanto para me buscar, meu amado. Mas... e aqueles seus longos cabelos da cor do trigo maduro? – lamentou o moço, olhando com tristeza para aquela estranha figura mal ajambrada. Meu bem, a poeira dessas terras é o que há de pior para a hidratação dos cabelos. Mas... e aquela pele de rosa branca silvestre, perfumada e lisa? – insistiu, desconsolado e atônito. Meu amor, não acabei de falar que esse sol é uma m... para a cútis feminina? Mas... e aquela voz suave, incapaz de pronunciar palavrões, que você tinha? – alegou o desiludido rapaz de nobre estirpe. Seu calhorda, larga mão de ser perguntador e veja se casa logo comigo!!! – vociferou a terrível moura torta, já totalmente impaciente com o interrogatório. Mantendo sua honradez – pois, naquela época,
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a palavra de um homem valia por um baú de ouro –, o rapaz lhe entregou a peça de roupa que conseguira com uma costureira do vilarejo próximo e seguiu com a moura torta para o bonito palácio de seu pai, onde com ela se casou contrariado, tornando-se, assim, o novo rei daquele domínio. A pombinha encantada, porém, não sumiu da história. Todos os dias ela se punha sobre os arvoredos do amplo jardim do palácio, dizendo: Jardineiro, ó, jardineiro. Diga-me como passa El-Rey, meu senhor, com sua esposa, a moura torta. E, em seguida fugia, sem deixar vestígios. Isso se repetiu por vários dias. A pombinha voava até um galho de romãzeira ou pessegueiro, e indagava ao fiel jardineiro com uma voz macia que mais parecia um arrulhar: Jardineiro, ó, jardineiro. Diga-me como passa El-Rey, meu senhor, com sua esposa, a moura torta. Cansado de tanto mistério, o jardineiro tomou coragem e foi até El-Rey contar tudo. Sua Realeza, desconfiadíssimo daquela história, mandou que se armasse um laço com um diamante atado e fosse deixado sobre a grama do jardim para que o serviçal capturasse a ave falante-arrulhante. Mas a pombinha esperta não caiu na armadilha.
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Encucado, El-Rey mandou que o jardineiro armasse então um laço de ouro, mas novamente nada aconteceu. E a estratégia seguiu com um laço de prata, que também não a conseguiu capturar. No final das contas, mandou armar um laço de visgo6, e foi neste que a ave ficou presa. O jardineiro levou a pombinha até El-Rey, que gostou muito do presente. Então, é esta a misteriosa pombinha falante... Vamos ver se é encantada mesmo. – falou Sua Realeza, admirando a alvura daquelas penas. Quero deixá-la em meu quarto, em uma linda gaiola, com tudo o que ela precisar para ser feliz... Só a moura torta não gostou nada, nada daquele novo animal de estimação e, fingindo estar com desejos de mulher grávida, expressou intenção de comer a coitada da ave. El-Rey, meu marido, não me deixe na vontade de comer carne de pombo, ou nosso filho poderá nascer com bico e penas na cabeça. No dia em que iriam botar a pombinha encantada na panela, El-Rei apanhou a ave nas mãos para acariciá-la uma vez mais, e encontrou um 6. Visgo é uma resina retirada de determinadas árvores. Antigamente, era usada para pegar pássaros.
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carocinho em sua cabeça. Pensou ser uma pulga e foi puxando um pontinho preto, que logo revelou ser a cabeça de um alfinete. Ao retirá-lo completamente, apareceu aquela moça linda (novamente nua! – feche os olhos!), a mesma que tinha saltado de dentro da melancia naquele dia, ao lado da fonte. Nem precisava dizer que El-Rey se casou com ela. E quanto à moura torta? Ela foi amarrada nos rabos de dois burros bravos e mandaram que cada um a puxasse para um lado, matando-a. Maldade com a velhinha, né? ... Bom, em meu “Caderno de Segredos Misteriosos”, onde anoto tudo o que acho interessante, deixei escrita esta explicação: A história da moura torta é muito antiga e vem da Península Ibérica, de uma época em que os mouros – os árabes invasores que permaneceram em terras espanholas e portuguesas por séculos – já não passavam de empregados, serviçais ou pessoas inteligentes e bem sucedidas, mas que despertavam intrigas e suspeitas de
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Além de tricotar conversando, ou conversar tricotando – ninguém nunca sabe – minhas três tias tricotadeiras despertam em nós o gosto pelos dígrafos, sobretudo “tr”, “dr”, “vr”. Ao tricotar, são como os carpinteiros que lavram a madeira.
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“Eu lavro, tu lavras, ele lavra”, brinco com meus dragões de estimação em meu quarto desarrumado, cheio de travesseiros. Peraí: “tu lavras”? Lavras? Vem aí o feriado de Dia de Finados, não posso perder a oportunidade de encontrar minhas três tias tricotadeiras que estarão no Sítio Veredas, em Lavras, no Sul de Minas, fazendo suas peças de roupas malucas. Geralmente, elas se ajuntam na salona da grande casa do sítio, cada uma em uma poltrona, e as organizam em forma de triângulo para tecerem a prosa apressada: Pois é, menina, você sabia que o Tião Tropeço vai se casar com Maria Trequenina?– diz a primeira. Não brinca... Tão cheio de bravatas e agora vai engolir uma sapa daquela... – admira-se a segunda. Pobre Tião Tropeço!.. Tão trapaceiro e agora trapaceado – arremata a terceira. É sempre assim que elas conversam. ... Vou correndo para a cozinha. O apartamento estava silencioso demais. Grito: Mãe! Minha mãe aparece com sua candura. Tão linda ela é! Só que com as mãos cheias de massa
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de almôndega de soja. Que é, filho? Já terminou de estudar? Mãe, sabe o que é? Vai estar muito quente aqui em São Paulo no Dia de Finados. A senhora sabe que adoro ir aos cemitérios ver tantos arranjos diferentes sobre os túmulos... Tenho certeza de que as três tias tricotadeiras estarão no Sítio Veredas nesse feriado. Ah, André. Não sei... Pergunte ao sei pai... E depois, você sabe que toda vez que você volta do Sítio Veredas fica cheio de medos, dorme com a luz acesa, segurando crucifixo, e é aquele prejuízo na conta de luz no fim do mês. Seu pai é quem resolve se deixa você ir ou não... Essa fala é praticamente um “sim”. Quando meu pai chega, o abraço e o beijo. Não porque eu queira algo em troca, imagina! No jantar é que falo da viagem de maneira muito... delicada: Pai, eu vou no Dia de Finados para Lavras, tá? A mãe já deixou... Se sua mãe deixou, tudo bem. Ela é quem decide. Me passe o molho? ... Dias depois, parto para Lavras. No percurso da viagem, penso no caminho feito pelos portugueses até o Brasil. Meu avô me disse que a Península
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Ibérica foi invadida pelos árabes bem antes de Portugal ser Portugal e Espanha ser Espanha. Contou-me também sobre a origem do nosso sobrenome: foi o rei Afonso III quem consagrou o primeiro conde Villas Boas, que levaria o sobrenome da família por séculos adiante. Toda família tem uma árvore, nem todas com galhos visíveis. Quando se descobre a origem de um ramo familiar, sempre há coisas engraçadas e curiosas. Muitas famílias que hoje têm nomes de árvores são provenientes de judeus que se “cristianizavam” e adotavam sobrenomes vegetais. Junto aos sobrenomes, levavam adiante crenças e conhecimentos. Em terras novas, esses conhecimentos se adaptavam, mudavam, somavam a novos saberes. Assim surgiram, penso eu, diversas lendas e seres mitológicos do Brasil cuja origem não sabemos ao certo. Atravessando o oceano Atlântico nas naus, caravelas, galeões, ou até mesmo nos navios mais modernos, os portugueses e espanhóis – sempre tementes do mar e de seus perigos – foram conhecer outros desafios na América: novas sociedades, hábitos diferentes de viver, e seu idioma
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materno foi se modificando de tal forma que muitas vezes parecia outra língua. Posso dizer que minhas três tias também compõem parte dessas gerações que há séculos vêm dando sentido ao Brasil... Elas sabem contar histórias que vieram de além-mar. Quando falo delas, até parece aquele trava-línguas dos tigres: “Tricotam as três tias nos trigais. Nos trigais, três tias tricotam. Tricotam e triscam, trotam no trabalho Tramam trolhas e, traquinas, trabalham...” Como falo em voz alta sem perceber, umas garotas metidas a besta que fazem cursinho prévestibular em São Paulo e voltavam para casa no mesmo ônibus que eu me olharam com um jeito pedante, como se eu fosse um maluco. Coitadas! E vou brincando com o “tr” até chegar em Lavras... ... Já na cidade, peguei uma jardineira antiga, que faz o percurso Lavras – Ijaci em pouco mais de meia hora. No meio do caminho, puxo a cordinha para avisar que quero descer: