A infinitude de Deus
Duns Scot
A infinitude de Deus Edição bilíngüe
Tradução:
Carlos Nougué
A infinitude de Deus, Duns Scot © Editora Concreta, 2017 Título original: Lectura, I, Distinctio 2, Pars 1 Quaestio 1 - utrum in entibus sit aliquod ens actu infinitum Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Sidney Silveira Tradução: Carlos Nougué Revisão: Emílio Costaguá Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz
Ficha Catalográfica Scot, Duns, 1266-1308 D926a A infinitude de Deus [ed. eletrônica] / tradução de Carlos Nougué, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017. 80p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-26-8 1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catolicismo. 7. Espiritualidade. I. Título. CDD-230.2
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
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C ol eç ão Esc ol á s t ic a
F
oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus. O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes. Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto. Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados. No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos. Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica. Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento. Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro. Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica
Sumário
Apresentação 1. Duns Scot e a condenação de Paris em 1277 2. A infinitude divina como ápice da metafísica
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A INFINITUDE DE DEUS Questão 1 21 Bibliografia citada 75 Joannis Duns Scoti Opera omnia 77
Apresentação
Infinitude, espelho da simplicidade divina SIDNEY SILVEIRA
1. Duns Scot e a condenação de Paris em 1277
A
metafísica dá uma guinada histórica a partir dos problemas terminológicos e conceptuais suscitados por Duns Scot. Estamos, pois, diante do autor que assimila a tradição filosófica precedente para reorientá-la em suas linhas gerais, sem nunca perder de vista as condenações ao averroísmo latino – e também ao tomismo i – levadas a cabo em 1277 por autoridades da Igreja Católica. ii Nas palavras de Éttienne Gilson, neste fatídico ano muda por i
Que, em seu nascedouro, lutava contra adversários renhidos para afirmar-se. Cf. Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, Tomo II, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1960, p. 1081. Hoje se sabe que o Papa João XXI (1215-1277) – o filósofo e médico português Pedro Hispano – mandou o bispo de Paris, Éttienne Tempier, levar adiante uma investigação acerca dos erros doutrinais que, segundo os rumores da época, estavam sendo propagados na Universidade de Paris. Tempier reuniu uma comissão de dezesseis teólogos, entre os quais estava o afamado Henrique de Gand, e estes produziram a base do texto que, em março de 1277, condenou 219 teses defendidas pelos mestres da Faculdade de Artes de Paris. Ocorre que algumas das formulações censuradas atingiam, de maneira direta ou indireta, o pensamento de Santo Tomás, e não apenas as teses destes professores de Artes (trivium e quadrivium) ainda sem qualificação em Teologia Sagrada, na sua maioria. ii
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completo o caráter do pensamento medieval, no seguinte sentido: após curta lua-de-mel, teologia e filosofia constatam que o seu casamento fora um erro, e, ao fazerem a separação de corpos, sem tardar procedem à separação de bens. iii Em suma, a obra do Doutor Sutil lança por terra o conceito de philosophia ancilla theologiae, iv o qual passa a sobreviver, historicamente, nos perímetros da escola tomista. Os ziguezagueantes caminhos do pensamento moderno abrem-se com este divórcio entre filosofia e teologia, razão pela qual não erra quem vê em Duns Scot o seu genuíno precursor. A nova era erige-se a partir da idéia de incomunicabilidade entre ciência e fé, como se entre estas duas realidades houvesse um perímetro formalmente intransponível. No caso de Scot, convém lembrar que a fonte próxima da qual se vale para levar adiante a separação entre metafísica e teologia é São Boaventura. Em breves palavras, ele aprofunda a distinção estabelecida por seu precursor franciscano entre filosofia, conhecimento certo do investigável, e teologia, conhecimento piedoso do crível. v Neste ponto, não obstante Scot procure salvar o estatuto epistemológico da teologia, afirmando dela que é ciência, circunscreve-a como saber puramente prático e refuta por completo a idéia de que possa tratar-se de saber especulativo. vi Embora contemporaneamente alguns estudiosos da escola scotista defendam que o autor medieval assinalara o caráter prático da teologia para salvaguardar as suas virtualidades iii
Éttienne Gilson, La Philosophie au Moyen Age. Des origines patristiques à la fin du XIVème siècle, Paris, Payot, 1944, p. 605. iv “A filosofia é serva da teologia”. v São Boaventura estabeleceu uma dicotomia entre a falibilidade da razão e a infalibilidade da fé, com o bem-intencionado propósito de enfatizar a superioridade da teologia sobre a filosofia. Em síntese, o Doctor Seraphicus acreditava que a filosofia separada da teologia destruía a si mesma numa tríplice ordem: natural, intelectual e moral. Cf. Battista Mondin, Storia della Metafisica, Volume 2, Edizioni Studio Domenicano, Bologna, Itália, 1998, p. 638. O intuito de Boaventura era reprovar qualquer saber humano que aspirasse a conhecer a verdade de maneira autônoma com relação à fé, porém ele o levou adiante de tal modo que acabou por abrir um hiato decisivo entre os saberes filosófico e teológico. O grande Doutor franciscano não pretendia condenar a filosofia em si mesma, diga-se, mas sim as impropriedades e os abusos nos quais pudesse incorrer. Em suas próprias palavras, "não convém mesclar a água da filosofia com o vinho da Sagrada Escritura de modo que este último se transforme em água; isto seria um péssimo milagre" (non igitur tantum miscendum est de acqua philosophiae in vinum sacrae Scripturae, quod de vino fiat acqua; hoc pessimum miraculum esset). São Boaventura, Collationes in Hexamerum, XIX, n. 14. Este declarado temor de Boaventura de misturar espuriamente filosofia e teologia deixará profundas marcas na alma de Duns Scot. Daí para este último estabelecer uma separação rígida entre ambas não custará muito. A respeito deste complexo tema, ver Gérard Sondag, Duns Scot: La théologie comme science pratique – Prologue de la “Lectura”, Vrin, Paris, 1996, pp. 75-90. vi Duns Scot trata da teologia como ciência prática na quarta parte do “Prólogo” da Lectura e na quinta parte do “Prólogo” da Ordinatio.
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teoréticas, vii o fato é que o hiato estabelecido por esta concepção teve como conseqüência imediata a separação entre os objetos da filosofia, saber especulativo acessível à razão, e da teologia, a qual passa então a ser concebida como saber prático acessível pela fé. viii Sem dúvida, Scot teve a coragem de desbravar novos horizontes para a ciência metafísica, malgrado as aporias que o seu sistema implica, como por exemplo o univocismo, baseado numa noção puramente negativa por meio da qual ele acabou por chegar à problemática conclusão de que entre Deus e as criaturas existe equivocidade de realidade e univocidade de conceito. ix Seja como for, para o tópico que a seguir destacaremos – a saber, o caráter da infinitude e a identificação desta com aquele a quem chamamos Deus –, vale frisar que Duns Scot tem diante dos seus olhos 11 das 219 teses condenadas em 1277 relativas, especificamente, ao necessitarismo x propugnado por averroístas latinos. Esquadrinhemos a questão a partir do que diz a tese 58 do texto condenatório: vii Cf. José Luis Llanes, Estructura y función de la teología en Juan Duns Escoto, Pamplona, Universidad de Navarra, 2001, p. 73. viii Neste ponto reside uma das incontáveis teses de Duns Scot escritas em contraposição direta a Santo Tomás. Este último demonstrara que a teologia é saber prático e também especulativo; o frade inglês reduziu-a a mero saber prático sem perceber o quanto este erro, levado às últimas consequências, trazia em seu bojo a possibilidade de confundirem-se moral e religião, como sucedeu a Immanuel Kant quatro séculos depois de Scot. Com relação ao parentesco filosófico entre Kant e Duns Scot, veja-se Valentín Fernández Polanco, “Los precedentes medievales del criticismo kantiano”, Revista de Filosofía, Madri, Universidad Complutense, 28 (2003), 305-323. ix A univocidade em Scot leva-o a concluir que Deus e as criaturas se assemelham não com relação ao ser, mas porque são não-nada. Para maiores detalhes sobre o método por cujo intermédio o Doutor Sutil chega à ratio entis quidditativa, veja-se Sidney Silveira, Duns Scot, filósofo da ruptura, em Tratado do Primeiro Princípio, São Paulo, É Realizações Editora, 2015, p. 10. x O necessitarismo dos averroístas do século XIII reduzira o escopo da liberdade divina no ato criador, o que foi combatido com veemência por Duns Scot com o propósito de salvaguardar o caráter libérrimo da vontade divina, assim como a sua onipotência. Em resumo, os entes não procedem de Deus por nenhuma necessidade metafísica, assim como Deus também não pode depender de nada extrínseco a Ele ao criar. Diz a propósito Roberto de Sousa Silva: “O Doutor Sutil condena veemente as teses averroístas na medida em que essas ferem os conceitos de liberdade e vontade. Ao refutar as teses de Averróis, Scotus procura defender a existência do intelecto pessoal contra o monopsiquismo, mais ainda, coloca em evidência a vontade livre e individual, principalmente quando nega o agir necessário e mecânico da ação divina. A tese do monopsiquismo, para Scotus, nega até mesmo a fé na imortalidade da alma. Nessa medida ele concorda com as condenações de 1277. Quando Scotus nega qualquer tese necessitarista, ele está defendendo os conceitos de liberdade e vontade”. Roberto de Sousa Silva, A existência de Deus em Duns Scotus, Dissertação de Mestrado, Universidade Federal de São Paulo, 2014, p. 19, em: <http://ppg.unifesp.br/filosofia/dissertacoes-defendidas-versao-final/ dissertacao-roberto-de-sousa-silva>.
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Duns Scot “Deus é a causa necessária da primeira inteligência celeste; porque, posta a causa, o efeito é igualmente posto, e ambos são simultâneos quanto à duração”. xi
O motivo maior pelo qual a proposição acima foi censurada é o seguinte: ela implica algum tipo de coeternidade entre Deus e as criaturas. Lembremos, neste ponto, que o pensador franciscano concebera a infinitude como o primeiro fundamento da liberdade divina, razão pela qual nada pode ser propriamente coeterno ao Primeiro Princípio, a menos que, por absurdo, se concebam duas liberdades absolutas e, portanto, dois seres onipotentes, ou seja, dois cuja potência ativa não conheça limites. xii Em síntese, somente Deus é dotado de simplicidade absoluta quanto ao ser, e, portanto, infinito. xiii Se a primeira inteligência celeste fosse simultânea a Deus em duração, teria de ser absolutamente simples como Ele, mesmo sendo criada – o que repugna à razão. A tese 63 condenada em 1277, por sua vez, diz o seguinte: “Deus não pode produzir o efeito de uma causa segunda sem a própria causa segunda”. xiv
Esta outra proposição também limita a onipotência e a liberdade divinas, o que decerto para o Doutor Sutil era um manifesto absurdo metafísico e teológico. A propósito, são evidentes os desacertos implicados nesta 63ª. tese condenada em 1277. Vejamos dois deles: a) se a primeira causa não pode produzir nada sem a concomitância operativa da causa segunda, cai por terra o princípio creatio ex nihilo, porque toda a obra da criação passa a ser derivada da potência operativa de duas concausas, e não apenas da causa prima; b) a xi “Quod Deus est causa necessaria prime intelligentie: quia posita ponit ut effectus, et sunt simul duratione”. Chartularium Universitatis Parisiensis, Ed. Henricus Denifle et Aemilio Chatelain, vol. 1, Paris, 1889, p. 547. Esta edição do “Chartularium Universitatis Parisiensis” pode ser consultada no seguinte link: <https://archive.org/details/bub_gb_VmrMTNvijekC>. Ver também Roland Hissette, Enquête sur les 219 articles condamnés à Paris le 7 mars 1277. Paris/Louvain, Vrin, 1977, p. 72. xii A onipotência implica, simultaneamente, absoluta potência ativa e absoluta ausência de potência passiva. Ora, a existência de dois seres onipotentes é contraditória, porque neste caso seria preciso conceder que: a) ou a potência ativa deles é limitada (pois, sendo ambos onipotentes, um não poderia mover o outro da potência ao ato); b) ou existe potência passiva em ambos (alcançável pela onipotência de um e de outro). Nestes dois casos, cai por terra o conceito de onipotência. Pois muito bem: em decorrência de sua absoluta simplicidade quanto ao ser, a infinitude e a onipotência só podem atribuir-se a um ser; nunca a dois ou mais. A este ser eminentíssimo Duns Scot chama Primo Principio. xiii “(...) se um ser é completamente simples, segue-se daí que será também infinito”. (quare si est in se omnino simplex, sequitur quod erit etiam infinitum). Cf. Duns Scot, Tractatus de Primo Principio, IV, n. 77. xiv “Quod Deus non potest in effectum cause secundarie sine ipsa causa secundaria”. Cf. Chartularium Universitatis Parisiensis, Op. cit., p. 547.
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ser verdadeira a tese, derroga-se a omnipotentia de Deus, o Primeiro Princípio (como o chama Scot). Pois bem, antes de adentrarmos propriamente o tema da infinitude divina, fique consignado que a obra de Duns Scot está inextricavelmente inserida no contexto do confronto entre a defesa da tradição agostiniana, por parte dos franciscanos, e a tentativa de integrar Aristóteles ao pensamento cristão, por parte dos dominicanos. xv Neste embate sem tréguas, não obstante olhasse com ressaibo o aristotelismo de Santo Tomás, xvi pois este, na prática, tornara-se um proscrito, xvii o autor inglês rechaçou a idéia de contrapor em toda a linha Aristóteles a Santo Agostinho no plano filosófico, xviii o que não deixa de ser um mérito. Seja como for, a sua síntese de elementos heterogêneos é o grande sinal da crise que, nos séculos seguintes, acabou por ocasionar a dissolução do pensamento medieval. xix
xv Cf. Rafael Ramón Guerrero, Historia de la Filosofía Medieval, Madrid, Ediciones Akal, 2002, p. 218. xvi No tempo em que o Doutor Sutil escreveu as suas obras, já se havia cristalizado a censura eclesiástica aos escritos de Santo Tomás, sobretudo no tocante à tentativa deste em assimilar Aristóteles integrando-o – em várias teses de capital importância – ao corpo doutrinal da Igreja. Isto instaurou um clima de desconfiança em relação a todo o conjunto dos escritos do Aquinate. Neste contexto, pode-se dizer com segurança que, de alguma maneira, Duns Scot sempre esteve preso ao espírito das condenações de 1277. Tenhamos idéia disto na simétrica oposição que Scot faz a incontáveis teses de Santo Tomás: 1Tomás: o ser é análogo; Scot: o ser é unívoco; 2- Tomás: só pode haver uma forma substancial no ente individual; Scot: pode haver uma pluralidade de formas substanciais no ente individual; 3- Tomás: a forma substancial estabelece a corporeidade; Scot: a corporeidade é anterior à forma substancial; 4- Tomás: a materia prima é pura potência; Scot: a materia prima tem um ato próprio; 5- Tomás: o princípio de individuação é a matéria assinalada pela quantidade (materia signata quantitate); Scot: o princípio de individuação é a haecceitas; 6- Tomás: a vontade em seu ato primeiro, o querer (velle), atua sob a razão de bem (ratio boni) subministrada pela inteligência; Scot: a vontade autodetermina-se; 7- Tomás: só existe um anjo em cada espécie; Scot: há diversos indivíduos angélicos em cada espécie; etc. Em Scot, as alusões ao Aquinate são em geral indiretas, porém constantes. Eis, aqui, um módico exemplo: ao criticar Santo Alberto Magno por defender teses aristotélicas contrárias ao univocismo, o Doutor Sutil acrescenta ironicamente a expressão “e os seus sequazes” (et sequacium eius). Cf. Duns Scot, Quaestiones in Librum Porphyrii Isagoge, q. 14. xvii “Después de la condena del 7 de marzo de 1277, el ambiente cambió. Hubo maestros, principalmente franciscanos, que arremetieron no ya contra el averroísmo, sino contra Santo Tomás (grifo nosso), que se transformó a partir de esa fecha en una especie de encarnación de los peores errores”. Juan Antonio Widow, La libertad y sus servidumbres, Coleción Centro de Estudios Tomistas (CET), Santiago de Chile, Ril Editores, 2014, p. 130. xviii Cf. Rafael Ramón Guerrero, Op. cit., Madrid, Ediciones Akal, 2002, p. 218. xix Idem ibid.
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2. A infinitude divina como ápice da metafísica Neste volume, trazemos ao público brasileiro a questão da Lectura na qual Scot trata da infinitude do primeiro ser e de sua tríplice primazia: de causalidade eficiente, de causalidade final e de eminência. O texto compõe um paralelo com os capítulos IV e V do Tractatus de Primo Principio, cujo tema é o mesmo; porém o presente trecho da Lectura, escrito na juventude de Scot, é mais breve que o De Primo Principio, redigido na maturidade filosófica do Doutor Sutil. Disto decorre a circunstância de ser menos exaustivo – ou, noutras palavras, de tratar esta importante questão metafísica mais resumidamente. xx Em diferentes obras, o notável filósofo medieval parte do pressuposto de que é impossível o homem formar conceitos perfeitos do que seja Deus, xxi pois o conhecimento humano não possui a intuição direta da essência divina nem pode ter idéias abstratas acerca dela, dada a absoluta imaterialidade do ser de Deus. xxii Não há, pois, comensurabilidade entre os conceitos acessíveis à inteligência humana e o ser do Primeiro Princípio. Sendo assim, qualquer conhecimento a respeito de Deus será, a um só tempo, imperfeito e infinitamente perfectível. Imperfeito por conta da finitude do nosso intelecto; e infinitamente perfectível porque, por mais que conheçamos algo de Deus, sempre haverá infinitos aspectos d’Ele por conhecer. Sob este prisma, o conhecimento menos imperfeito acerca do Primeiro Princípio obter-se-á a partir da concepção mais simples possível, a qual contenha, virtualmente, todos os outros conceitos. xxiii De acordo com Rodrigo Guerizoli, com a demonstração da infinitude do Primeiro Princípio, a metafísica scotista alcança o seu maior cume, mas também o limite inultrapassável. xxiv Em resumidas contas, a infinitude – identificada com o grau máximo de simplicidade entitativa – necessita ser mais do
xx Cf. Felix Alluntis, Duns Escoto, Tratado acerca del Primer Principio (Apéndice), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1989, p. 181. xxi “Patet ergo quomodo conceptus entis nullo modo ponitur de quididate Dei (...)”. Cf. Duns Scot, Quodlib. XIV, n. 21. xxii A gnosiologia medieval – em suas mais variadas vertentes, com divergências marcantes que houvesse entre as correntes filosóficas – tinha a clara noção de que um conceito é abstrato quando assimila imaterialmente algo tangível a partir dos sentidos, ou seja, a matéria. Ora, não havendo em Deus composição de matéria, é impossível chegarmos a um conceito abstrato perfeito acerca de Sua natureza. xxiii Cf. Felix Alluntis, Op. cit., p. 16. xxiv Cf. Rodrigo Guerizoli, A Metafísica no Tractatus de Primo Principio de Duns Escoto, Porto Alegre, edipucrs, 1999, p. 105.
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que meramente potencial; precisa ser infinitude em ato. xxv O limite gnosiológico ao qual se refere Guerizoli radica, pois, na circunstância de que, com a demonstração de que o Primeiro Princípio é infinito, a metafísica alcança uma espécie de “resultado final”, porque neste ponto vislumbra a omnímoda simplicidade da ordem do ser. Trata-se do máximo conhecimento possível ao intelecto humano acerca da realidade simplíssima. xxvi De acordo com o Doutor Sutil, chega-se à consideração de Deus como ens infinitum por dez diferentes vias, subdivididas em três grupos: vias intelectuais; vias de ordenação essencial e via da simplicidade. xxvii A este respeito diz Guerizoli, referindo-se às vias intelectuais: “Partindo da evidência de que há, mesmo em relação a inteligências que não apreendem todos os seus inteligíveis em ato, uma infinidade de inteligíveis potencialmente conhecidos (...), em havendo uma infinidade de objetos potencialmente conhecidos deverá haver uma infinidade de objetos atualmente conhecidos, conquanto que se tomem todos os membros desta infinidade simultaneamente em ato. Assim, o primeiro princípio, que tudo compreende de modo atual (...), conhece um infinidade de inteligíveis”. xxviii Em síntese, nenhum conhecimento da substância primeira pode ser acidental, xxix pois a infinitude que a distingue é signo de um conhecimento ilimitado, abarcante de todos os inteligíveis da ordem do ser. Melhor dizendo: a propriedade da substância primeira é conhecer perfeitissimamente; para as inteligências que, por sua vez, não são infinitas em ato – como a do homem e a do anjo –, o conhecer será sempre, de modos distintos, um acidente imaterial de uma potência intelectiva. xxx Isto porque as inteligências finitas, por não xxv
É o caso de Deus. “O resultado final da metafísica escotista é o conceito de ens infinitum. De fato, a realidade de Deus como verum esse, ou seja, positivo ens inquantum ens, se revela à investigação transcendental sob a forma de modalização específica do transcendens abstrativo inicial. Essa modalização, denominada ‘infinitude’, significa, por sua vez, a radicalização intensiva e incomensurável de qualquer perfeição finita. Neste sentido, o conceito de ens infinitum é, ao mesmo tempo, o mais simples e perfeito conhecimento que o intelecto pode conceber”. Cf. Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 126. xxvii Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 107-125. xxviii Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 106. xxix “Nullum intelligire potest esse accidens primae naturae”. Duns Scot, Tractatus de Primo Principio, Q. 4, Septima Conclusio. xxx Os intelectos humano e angélico distinguem-se não apenas pelo fato de o primeiro ser abstrativo e o segundo, intuitivo. Há inúmeras outras diferenças a considerar, por exemplo, quanto ao modo de inteligir e ao grau intensivo da intelecção de anjos e de homens. Para o que nos interessa salientar, fiquemos neste ponto com o que diz o filósofo brasileiro Luiz Astorga: o inteligir do homem e o do anjo não são da mesma espécie. Cf. Luiz Augusto de Oliveira Astorga, El intelecto de la sustância xxvi
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esgotarem a inteligibilidade do real, não se identificam com o ser das coisas de modo perfeitíssimo; sempre haverá, para elas, uma zona de ininteligibilidade. Reiteremos: o intelecto de Deus conhece em ato infinitos inteligíveis, e esta é a nota distintiva de Sua perfeição. Para chegar dialeticamente a este ponto, o Doutor Sutil observa que, de todas as determinações do ente, a primeira divisão (prima divisio) que se deve fazer é entre ente finito e ente infinito, xxxi antes mesmo das definições categoriais. xxxii Portanto, haja o que houver de comum entre Deus e as criaturas, há de ser de maneira que se atribua ao ente enquanto ente um caráter de indiferente com relação ao finito e ao infinito. xxxiii À primeira vista pode parecer estranha a conclusão última de Scot neste tópico: o ente, enquanto tal, não é finito nem infinito; é metafisicamente indiferente a um e a outro. Esta indeterminação radical é-lhe atribuível antes que ele seja classificado nos dez gêneros supremos. Escreve Honnefelder: “Não é a predicabilidade comum do ente determinado categorialmente (...) o característico formal primário do ente”. xxxiv Infinito e finito correspondem a Deus e às criaturas, respectivamente. Com esta simples noção Duns Scot transcende a quaisquer modalizações e abarca todos os entes, sem nenhuma exceção. Daí para provar a existência do Primeiro Princípio, levando as premissas às últimas conseqüências, bastará demons-
separada: su perfección y unidad según Tomás de Aquino, Pamplona, Ediciones Universidad de Navarra, 2016, pp. 108-109. No caso da tese de Duns Scot segundo a qual não existe acidente no intelecto da substância primeira, nosso intuito no corpo do texto foi sublinhar que nas demais inteligências há sempre alguma espécie de conhecimento acidental, porque se trata de intelectos com potência para o conhecimento – diferentemente do intelecto divino, o qual conhece tudo em ato. Neste ponto, porém, é preciso dizer que se trata de potências para o universo do inteligível radicalmente distintas, pois os anjos, por não terem composição de matéria em sua forma entitativa, não possuem o que na terminologia aristotélica se chama intelecto possível, instância de inteligibilidade virtual identificável no homem. Reitere-se que estas considerações são a propósito de haver acidentes em todos os intelectos que não sejam o do Primeiro Princípio, e não à angelologia de Scot, a qual considera a existência de intelecto agente nos anjos e, com isto, traz novos horizontes ao problema da intelecção angélica. xxxi Cf. Duns Scot, Ordinatio, I; e Lectura, I. xxxii “O ente é dividido em infinito e finito antes que nas dez categorias, porque (só) um, a saber, o ‘finito’, é comum com respeito às dez categorias (supremas). O que sempre a partir disso se atribui ao ente (...), atribui-se-lhe não como algo que se determina a um gênero, mas como um anterior e, consequentemente, como um transcendente (transcendens), e como algo que está fora de todo gênero (extra omne genus)”. Cf. Ludger Honnefelder, João Duns Scotus, São Paulo, Edições Loyola, 2010, p. 128. xxxiii Cf. Ludger Honnefelder, Op. cit, p. 128. xxxiv Cf. Ludger Honnefelder, Op. cit, p. 129.
A infinitude de Deus · Apresentação
trar a Sua infinitude. xxxv Esta é a tese defendida com argumentos diversos, tanto na Ordinatio quanto na Lectura, xxxvi textos nos quais Scot não perde de vista a identificação da infinitude com a absoluta atualidade cognoscitiva, na medida em que a inteligência divina, conforme foi assinalado anteriormente, não possui, nem pode possuir, nenhum tipo de acidente. A intelecção de Deus é ato puro sem mescla de potência passiva e, portanto, abarca objetos infinitos em ato. xxxvii Scot não demonstra a infinitude do Primeiro Princípio apenas pela capacidade que Lhe é inerente de conhecer infinitos inteligíveis em ato. Refaçamos parte do itinerário do autor medieval valendo-nos da clara exposição sinóptica de Guerizoli, que entre outros aspectos também destaca, nas aludidas “vias intelectuais”: a) as demonstrações de Scot quanto ao modo de causação, considerando-se a perfeição absoluta da causa primeira; xxxviii e b) a suficiência inteligente do Primeiro Princípio, que não pode ser aperfeiçoado por nada exterior a Ele. xxxix No tocante ao primeiro tópico, diz o frade franciscano: “(...) é manifesto que a causa primeira tem a causalidade da causa próxima mais perfeitamente do que a tem a causa próxima, porque [esta] não a tem senão da primeira, e similarmente a causa segunda tem mais perfeitamente a causalidade da causa terceira do que esta mesma a tem, porque não a tem senão da segunda, e assim até à última; portanto, da primeira à última, a causa primeira tem mais perfeitamente as causalidades das causas médias do que as causas médias as têm em si”. xl
Com relação ao segundo dos tópicos mencionados, o Doutor Sutil ressalta a cabal suficiência da intelecção divina pela virtude infinita, por cujo intermédio ela esgota a inteligibilidade de toda a ordem do ser, xli diferentemente das demais inteligências – classificáveis por graus de precariedade gnosiológica. Aqui o pressuposto é de que o “primeiro ente, sendo a causa xxxv
Cf. Guillermo Fraile, Op. cit., p. 1085. “Disso desço [ou volto] ao propósito e digo que aquele primeiro eficiente e primeiro fim e primeiro eminente é infinito” (Ex his descendo ad propositum et dico quod illud primum efficiens et finis et eminens est infinitum). Cf. Duns Scot, Lectura, I, n. 64. xxxvii “Intelectio Dei est infinitorum in actu”. Duns Scot, Lectura, I, n. 79. xxxviii Neste ponto, frise-se que nem a causa segunda nem qualquer outra causa posterior é capaz de adicionar perfectibilidade ao modo de causação da causa primeira. xxxix Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 108. xl Duns Scot, Lectura, I, n. 73. xli Duns Scot, Lectura, I, n. 80. xxxvi
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eficiente de todas as coisas, será também causa da intelecção delas”. xlii Disto se deduz a insuficiência das inteligências que não são a de Deus. xliii Vários são os percursos dialéticos de Duns Scot nesta obra que o leitor tem em mãos. Leitura árdua, sim, dadas as sutilezas terminológicas e os caminhos por vezes ínvios de que o notável metafísico não abre mão. Seja como for, optamos pelo prefácio breve porque nada substitui o confronto direto com os questionamentos suscitados não apenas neste, mas em todos os escritos do autor que – inaugurando filosoficamente o século XIV – abriu as portas para a modernidade, para o bem e para o mal. Com a publicação deste importante trecho da Lectura, a Coleção Escolástica cumpre mais uma etapa do caminho (re)civilizatório do Brasil, o qual passa pela disponibilização de clássicos da história da filosofia, alguns dos quais, infelizmente, desconhecidos quase por completo entre nós.
xlii
Cf. Duns Scot, Lectura, I, n. 63. “Às naturezas causadas (...) nem a inteligência nem nenhuma outra perfeição pode ser predicada senão de modo acidental, e nunca essencialmente”. Cf. Rodrigo Guerizoli, Op. cit, pp. 110. xliii
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(Lectura, Livro I, Distinção 2, Parte 1, Questão 1)
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QUAESTIO 1 [1] Circa distinctionem secundam quaeritur primo utrum in entibus sit aliquod ens actu infinitum. Quod non, videtur: Si unum contrariorum sit actu infinitum, non compatitur secum aliud; sed bonum et malum sunt contraria; igitur si sit aliquod bonum actu infinitum, non erit actu aliquod malum, quod est falsum. [2] Dicitur quod malum in universo non contrariatur Deo nec bono infinito, quia nihil est sibi contrarium. Contra: illud non solvit, quia si unum contrariorum sit infinitum virtualiter aut formaliter, non compatitur secum aliud contrariorum, nec quod contrariatur sibi nec effectui, sicut sol si esset virtualiter aut formaliter infiniti caloris, non esset aliquod frigidum; si igitur sit aliquod bonum actu infinitum virtualiter aut formaliter, sequitur quod nihil erit malum alicui bono contrarium in universo [3] Praeterea, corpus infinitum non compatitur secum aliud corpus; igitur spiritus infinitus non compatietur secum alium spiritum. Antecedens patet ex IV Physicorum. [4] Consequentia ostenditur, quia sicut corpora duo non possunt esse simul propter repugnantiam dimensionum, sic videtur quod nec duo spiritus simul propter actualitates spirituum. Item, eadem consequentia ostenditur aliter sic: si cum corpore infinito esset aliud corpus, tunc esset aliquid maius corpore infinito; igitur sic videtur quod si praeter spiritum infinitum esset alius, esset aliquid maius infinito secundum virtutem.
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QUESTÃO 11 Se entre os entes há algum infinito em ato 1. Acerca da distinção segunda, inquire-se primeiro se entre os entes há algum infinito em ato. Parece que não: 1. Se um dos contrários é infinito em ato, não compadece2 o outro; mas o bem e o mal são contrários; portanto, se há algum bem infinito em ato, não haverá nenhum mal em ato, o que é falso. 2. Diz-se que o mal no universo não é contrário a Deus nem ao bem infinito, porque nada é contrário a Ele. Contra: isso não dissolve [o argumento], porque, se um dos contrários é infinito virtual ou formalmente, não padece com o outro contrário, nem que este seja contrário a ele nem que o seja ao efeito, assim como, se o sol fosse virtual ou formalmente de infinito calor, não haveria nada frio; se portanto há algum bem infinito em ato virtual ou formalmente, segue-se que não haverá no universo nenhum mal contrário a nenhum bem. 3. Ademais, um corpo infinito não compadece outro corpo;3 portanto, um espírito infinito não compadece outro espírito. O antecedente patenteia-se do livro IV da Física.4 4. A conseqüência mostra-se, porque, assim como dois corpos não podem estar [num mesmo lugar] simultaneamente pela repugnância das dimensões, assim parece que tampouco [o podem] dois espíritos simultaneamente pelas atualidades dos espíritos. Além disso, a mesma conseqüência mostra-se de outro modo, assim: se com um corpo infinito [co]existisse outro corpo, então haveria algo maior que o corpo infinito; portanto, parece que, se além do espírito infinito houvesse outro, haveria algo maior que o infinito segundo virtude. 1 Duns Scot, Lectura I, d. 2, p. 1, q. 1: Opera Omnia (ed. Vaticana), vol. XVI (1900), p. 112 ss. 2 Lat. compatior, eris: “sofrer com”. Nesta objeção inicial, Scot usa a expressão “não compadece” (non compatitur) no sentido de indicar que, em havendo um ente infinito, este não pode sofrer a ação de nenhum ente finito, muito menos sofrer com ele moção extrínseca de qualquer outro ente, pois isto repugna à razão de infinito. Noutras palavras, o infinito não padece com o finito; não sofre a sua ação. [Nota do coordenador da Coleção Escolástica; doravante, N. C.] 3 Ver nota 2. 4 Aristóteles, Phys. III, c. 5 (204 b 19-22).
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[5] Praeterea, quod est hic et non alibi, est finitum loco, et quod est nunc quod non tunc, est finitum tempore, et quod agit hac actione quod non alia, est finitum actione, et sic de aliis; sed quidquid est, est ‘hoc’ ita quod non aliud; igitur est finitum, quidquid est. [6] Praeterea, si esset aliqua virtus infinita, illa moveret in instanti, sicut probatur ex VIII Physicorum; igitur motus esset in instanti, quod est impossibile. [7] Contra: VIII Physicorum dicit Philosophus quod primum movens est infinitum, et ideo non est virtus in magnitudine: non infinita, quia nulla talis, - nec in magnitudine finita, quia maior magnitudo habet maiorem virtutem. Sed ista ratio non valeret nisi intelligeret de infinito secundum virtutem, quia corpus, ut sol, esset infinitum duratione.
[8] Iuxta hoc quaeritur utrum aliquod infinitum esse, ut Deum esse, sit per se notum. Quod sic: Damascenus 1 cap.: “Eius, quod est Deum esse, omnibus inserta est notitia”; sed illud est per se notum cuius notitia omnibus inserta est, - sicut patet ex II Metaphysicae, quod prima principia, quae sunt quasi ianua, sunt per se nota.
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5. Ademais, o que está aqui e não ali é finito no lugar, e o que é agora e não é depois é finito no tempo, e o que age esta ação e não outra é finito na ação, e assim com respeito aos outros; mas tudo o que é, é “isto” e não outro; portanto, é finito tudo o que é. 6. Ademais, se houvesse alguma virtude infinita, essa moveria no instante, como se prova do livro VIII da Física;5 portanto, haveria movimento no instante, o que é impossível. 7. Contra: No livro VIII da Física,6 diz o Filósofo que o primeiro movente [ou motor] é infinito, e por isso [sua] virtude não se dá em magnitude: não [em magnitude] infinita, porque não há tal, nem em magnitude finita, porque uma magnitude maior tem maior virtude. Mas esta razão só valeria se se inteligisse de um infinito segundo virtude,7 porque um corpo, como o sol, seria infinito em duração. 8. A par disso, inquire-se se algo, por ser infinito, como Deus o é, é per se notum.8 O que se faz assim: Damasceno 1 cap.: “Este, que é o ser de Deus, é notícia inserta em todas as coisas”; mas é per se notum aquilo cuja notícia está inserta em todas as coisas – assim, patenteia-se do livro II da Metafísica que os primeiros princípios, que são quase uma porta de entrada, são per se nota. 5 Ibid., VIII, c. 10 (266 a 24-266 b6). Nesta passagem da Física, Aristóteles diz que nada finito pode mover algo por tempo infinito, porque no movimento há três fatores a considerar: o movente, o movido e aquilo em que se dá o movimento, ou seja, o tempo. Como não há comensurabilidade entre o infinito e o finito, é impossível ao finito mover algo no infinito, ou seja, numa instância situada para além do tempo, assim como é impossível ao finito mover algo no tempo infinitamente, numa sucessão cronométrica interminável. Quanto a esta última hipótese, ainda no Livro VIII da Física o Estagirita afirma não ser possível que uma magnitude finita tenha potência infinita, nem que uma força finita mova algo, no tempo, da mesma maneira como o faz uma força infinita. Aqui entra o “instante” considerado por Duns Scot, que está para o tempo e para a eternidade numa relação de simultaneidade, pois co-incidem na ordem do ser todos os instantes temporais e o instante eterno, o qual os supõe; todos os agoras do tempo e o agora intemporal, o qual os abarca; todas as potências e o Ato Puro, no qual radicam. Neste trecho da Lectura, a dificuldade de Scot (na dicotomia estabelecida entre “instante” e “movimento”) parece residir na circunstância de ele considerar impossível que todas as coisas temporais sejam simultaneamente contempladas por Deus enquanto transcorrem, pois o Doutor Sutil concebe que só as coisas temporalmente presentes são atuais. Diz a este respeito Hofmeister: “As tese básica é a de que todas as coisas são presentes a Deus [apenas] no “agora” uno da eternidade”. Cf. Roberto Hofmeister, “Tempo e eternidade: um modelo em Duns Scot (1265-1308) e uma nota sobre Francisco de Meyronnes (1280-1327)”, Mirabilia, Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval, 2010, nº. 11, coord. Ricardo da Costa (Universidade Federal do Espírito Santo – UFES). [N. C.] 6 Ibid. (266 a 10-24). 7 Com virtutem está implicado o conceito de potência. [N. C.] 8 Nestas passagens, entenda-se a expressão per se notum – e também as suas congêneres declinadas no texto latino – com o sentido de “evidente”. [N. C.]
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[9] Praeterea, illud esse est per se notum quo maius cogitari non potest, quia detur oppositum praedicati, destruetur subiectum; si enim non sit, igitur aliquid maius cogitari potest, quia esse quod est maius quam non esse. Et haec videtur esse ratio Anselmi Proslogion 2. [10] Praeterea, veritatem esse est per se notum, igitur etc. Probatio antecedentis: illud est per se notum quod sequitur ex suo opposito; sed veritas est huiusmodi, quia si affirmas veritatem esse, tunc verum est te hoc affirmare, et ita veritas est; si neges veritatem esse, tunc verum est veritatem non esse. Et ita aliqua veritas est.
[11] Praeterea, complexiones quae habent necessitatem ex entitate terminorum secundum quid, sunt per se notae; ergo multo plus complexio quae habet necessitatem ex entitate rei simpliciter et ex entitate terminorum simpliciter, cuiusmodi est haec ‘Deus est’. Probatio antecedentis: haec est vera et necessaria ‘omne totum est maius sua parte’ - licet nec totum sit nec pars - ex habitudine terminorum in intellectu; unde solum termini habent tunc esse in intellectu. et ita secundum quid. [12] Contra: Per se notum negari non potest a mente alicuius; sed Deum esse sic potest negari: Dixit insipiens in corde.
[13] Ad istam quaestionem secundam est primo dicendum. Ad cuius solutionem primo videndum est quae est ratio propositionis per se notae; et, secundo, erit manifestum si ista ‘Deus est’ sit per se nota, vel alia in qua enuntiatur ‘esse’ de eo quod convenit Deo, ut ‘ens infinitum est’ [14] Ad intellectum primi est sciendum quod cum dicitur propositio per se nota, per ‘per se’ non excluditur quaecumque causa, quia non notitia terminorum, quia nulla propositio est per se nota nisi habeatur notitia terminorum; sed excluditur quaecumque causa et ratio quae est extra per
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9. Ademais, esse ser per se notum é aquilo que não se pode cogitar nada maior, porque, se se dá o predicado oposto, se destrói o sujeito; se, com efeito, não o é, então pode cogitar-se algo maior, porque o ser é maior que o não ser. E esta parece ser a razão de Anselmo no Proslógio 2. 10. Ademais, a verdade do ser é per se notum, portanto, etc. Prova do antecedente: é per se notum o que se segue de seu oposto; mas a verdade é desse modo, porque, se afirmas que há a verdade, então tens de afirmar que tal é verdadeiro, e assim há a verdade; se negas que há a verdade, então é verdadeira a verdade de que não há. E assim alguma verdade há. 11. Ademais, as complexões que têm sua necessidade da entidade dos termos secundum quid são per se notae; logo, muito mais [o são] a complexão que tem a necessidade da entidade da coisa simpliciter e da entidade dos termos simpliciter, do modo como “Deus é”. Prova do antecedente: é verdadeiro e necessário que “qualquer todo é maior que sua parte” – ainda que não haja todo nem parte – pela habitudo [respeito, relação] dos termos no intelecto; daí que então só os termos tenham ser no intelecto. E assim secundum quid.9 12. Contra: A mente não pode negar algo per se notum;10 mas Deus pode, sim, ser negado: Diz o insipiente no coração. 13. A esta segunda questão deve dizer-se primeiro o seguinte. Para sua solução, deve ver-se em primeiro lugar o que é a razão de uma proposição per se notae; e, em segundo, será manifesto se esse “Deus é” for per se nota,11 ou outros em que se enuncie um “ser” com respeito a qual convenha a Deus, como “um ente é infinito”.12 14. Ao intelecto cumpre saber que, quando se diz proposição per se nota por per se,13 não se exclui toda e qualquer causa por ausência de notícia dos termos, porque nenhuma proposição é per se nota se não se tem notícia dos termos; mas excluiu-se toda e qualquer causa e razão que esteja fora per se do 9 As palavras latinas simpliciter e secundum quid devem ser entendidas, nesta parte da Lectura, exatamente como o são em Santo Tomás: “em sentido absoluto” e “em certo sentido”, respectivamente. [N. C.] 10 Em suma, o intelecto não tem como negar uma evidência tal que seja acessível a todos os homens (quoad nos omnes). [N. C.] 11 Dir-se-ia contemporaneamente: “Será manifesto se a existência de Deus for auto-evidente”. [N. C.] 12 Ao fazer referência à proposição “um ente é infinito”, nesta passagem Duns Scot já dá por pressuposta a idéia de que a infinitude é o proprium metafísico de Deus. [N. C.] 13 Ou seja: quando se considera uma proposição mais evidente como se fosse uma menos evidente.
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se conceptus terminorum propositionis per se notae. Et ideo illa propositio est per se nota quae non habet notitiam aliunde mendicatam, sed illa quae ex terminis cognitis habet veritatem evidentem et quae non habet certitudinem nisi ex aliquo in se. [15] Nunc autem alius terminus est nomen, et conceptus importatus per nomen, ut alius terminus est nomen, et definitio nominis. Probatio: quia definitio alterius extremi est medium in demonstratione, et ideo altera praemissarum est eadem cum conclusione, solum differens sicut definitio et definitum; si igitur idem terminus et idem conceptus esset definitionis et definiti, in demonstratione potissima esset petitio principii; item, tunc essent ibi tantum duo termini. Alius igitur est conceptus definitionis, et definiti ut exprimitur per nomen definitionis. [16] Item, I Physicorum dicitur quod idem sustinent nomina ad definitiones quod totum ad partes: prius enim notum est definitum quam definitio, dividendo in singula. Unde, ut exprimitur conceptus definitionis nomine definiti, sic est confusus et prius cognitus; sed magis distincte exprimitur nomine definitionis, habentis singulas partes definiti distincte; et ideo alius conceptus importatur nomine definiti, et definitionis. [17] Ex istis sequitur quod illa propositio non est per se nota quae tantum nota est ex definitione terminorum: nam cum illa propositio sit tantum per se nota quae habet evidentiam suam ex notitia terminorum, et alii termini sunt definitio et nomen, igitur illa non est per se nota de nominibus quae habet evidentiam ex definitione termini, quae mendicat evidentiam suam aliunde et potest esse conclusio respectu alterius. [18] Item, si illa esset per se nota quae haberet evidentiam suam ex definitionibus terminorum, quaelibet propositio primo modo per se, esset per se nota, ut ‘homo est animal’, et ‘corpus’, et sic usque ad substantiam: non igitur sufficit notitia definitionis ad hoc quod propositio sit per se nota.
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conceito dos termos da proposição per se notae. E por isso é proposição per se nota a que não tem notícia pedida de outro lugar,14 mas sim que pelos termos conhecidos tem verdade evidente e não tem sua certeza senão de algo in se. 15. Agora, porém, outro termo é o nome, e o conceito implicado pelo nome, de modo que um termo é o nome, e outro é a definição do nome. Prova: porque a definição do outro extremo é meio na demonstração, e por isso a outra das premissas é o mesmo com a conclusão, só diferindo como definição e definido; se portanto fossem os mesmos o termo e o conceito da definição e do definido, na demonstração haveria poderosa petição de princípio; além disso, haveria ali só dois termos. Um portanto é o conceito da definição, e outro o do definido como se exprime pelo nome da definição. 16. Além disso, no livro I da Física se diz que igualmente sustêm os nomes às definições como o todo às partes: com efeito, o notum definido é anterior à definição,15 que há de dividir-se em cada um em particular. Daí que, assim como se exprime o conceito da definição pelo nome do definido, assim é confuso e anterior ao conhecido; mas mais distintamente se exprime pelo nome da definição, que tem distintamente cada uma das partes do definido; e por isso um é o conceito do nome do definido que se implica, e outro o da definição. 17. Disto se segue que tal proposição não é per se nota senão pela definição dos termos: pois, como tal proposição só é per se nota porque tem sua evidência da notícia dos termos, e termos distintos são a definição e o nome, então não é per se nota quanto aos nomes a que tem sua evidência da definição dos termos, a qual pede sua evidência de outro lugar e pode ser conclusão com respeito a outra. 18. Além disso, se fosse per se nota a que tivesse sua evidência das definições dos termos, qualquer proposição no primeiro modo per se seria per se nota,16 como “o homem é animal”, e “corpo”, e assim até à substância: não é suficiente, portanto, a notícia da definição para que tal proposição seja per se nota.17 14 A proposição per se nota é, portanto, evidentíssima; é algo a que a mente humana anui porque manifesta uma verdade que não precisa ser sustentada por nada além dela própria. Por sua vez, a proposição per se é evidente em si mesma, mas não o é para todos os homens. [N. C.] 15 “Um nome significa um todo sem distinção de partes, como por exemplo ‘círculo’, enquanto a sua definição é analisada em suas partes constitutivas”. Aristóteles, Ibid., I, 1, 184b. Ao fazer alusão a esta passagem em Aristóteles, Duns Scot está a frisar que o “notum definido” – ou seja, o nome – é anterior à definição nele implicada. [N. C.] 16 Noutros termos: qualquer proposição evidente seria evidentíssima. [N. C.] 17 Em síntese, para uma proposição ser per se nota não basta haver congruência lógica ente os seus termos; é necessário que, além disso, ela não precise de nada além dos próprios termos para eviden-
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[19] Illa igitur propositio est per se nota quae ex sola notitia terminorum habet evidentiam et non mendicatam ex evidentia aliorum conceptuum. [20] Ex hoc patet quod frustra et vanae sunt huiusmodi distinctiones propositionis per se notae, quod quaedam est per se nota nobis, et quaedam per se nota naturae; et eorum quae sunt per se nota nobis, quaedam sunt per se nota sapientibus, et quaedam insipientibus; et similiter quaedam sunt per se nota primi ordinis, et quaedam secundi: quia non dicitur propositio per se nota quia est nota cuicumque intellectui, sed quia termini nati sunt facere per se evidentem notitiam intellectui concipienti terminos per se notos; et ideo nulla est per se nota quae alicui intellectui potest demonstrari. Verumtamen in propositionibus per se notis sunt gradus secundum dignitatem et ignobilitatem. Unde dignior est ista ‘impossibile est idem esse et non esse’ quam ista ‘omne totum est maius sua parte’, etc. [21] Secundo, ad propositum dico quod intelligendo per nomen Dei aliquid quod nos non perfecte concipimus ut ‘hanc essentiam divinam’, sic est haec per se nota, ut si Deus, videns se, imponat hoc nomen ‘Deus’ suae essentiae: tunc est quaerere an haec sit nota per se ‘Deus est’, et haec ‘essentia est’. Et dico quod sic, quia ista extrema nata sunt facere evidentiam de ista complexione cuilibet apprehendenti perfecte extrema istius complexionis, et esse nulli perfectius convenit quam huic essentiae. [22] Sed quaeres an esse insit alicui conceptui quem nos concipimus de Deo et per se, ita quod talis propositio sit per se nota in qua enuntiatur esse de tali conceptu, ut cum dicimus ‘infinitum est’. Et dico quod non, quia illa non est per se nota ex notitia terminorum quae potest esse conclusio demonstrationis; sed omnis propositio enuntians esse de aliquo conceptu quem nos concipimus de Deo est huiusmodi, scilicet conclusio demonstrationis. Probatio. Quod primo et per se convenit inferiori se, natum est ostendi per se de suo superiore, sumpto inferiore pro medio, ut
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19. É per se nota, portanto, a proposição que só tem sua evidência da notícia dos termos e não é solicitada da evidência de outros conceitos. 20. Disto se patenteia que frustradas e vãs são semelhantes distinções das proposições per se notae, a saber, que uma é per se nota para nós, outra per se nota por natureza; e, das que são per se nota para nós, algumas são per se nota para os sapientes, e algumas para os insipientes; e semelhantemente algumas são per se nota da primeira ordem, e algumas da segunda: porque não se diz proposição per se nota porque o seja para qualquer intelecto, mas porque os termos nasceram para fazer per se a evidente notícia do intelecto que concebe os termos per se notos; e por isso não é per se nota nenhuma que algum intelecto possa demonstrar.18 No entanto, nas proposições per se notis há graus segundo dignidade e ignobilidade. Daí que seja mais digna esta: “é impossível que o mesmo seja e não seja”, do que esta: “qualquer todo é maior que sua parte”, etc. 21. Em segundo [lugar], a propósito digo que se há de inteligir pelo nome “Deus” algo que nós não concebemos perfeitamente como “esta essência divina”, e assim esta é per se nota, como se Deus, que se vê a si, impusesse este nome, “Deus”, à sua essência: há que inquirir, então, se é nota per se esta: “Deus é”, e esta: “[sua] essência é”. E digo que sim, porque estes extremos nasceram para fazer a evidência desta complexão para qualquer que apreenda perfeitamente estes extremos da complexão, e o ser a nada convém mais perfeitamente que a esta essência. 22. Mas inquirirás se o ser se dá em algum conceito que concebemos de Deus e per se, assim como é per se nota a proposição em que se enuncia o ser de tal conceito, do modo como dizemos “é infinito”. E digo que não, porque não é per se nota pela notícia dos termos que pode haver conclusão da demonstração; mas toda proposição enunciadora de algum conceito que nós concebemos de Deus é assim, ou seja, conclusão da demonstração.19 Prova. O que primeiro e per se convém ao inferior nasceu per se para mostrar-se [a partir] de ciar-se de maneira plena. Portanto, a evidência evidentíssima basta-se a si mesma. [N. C.] 18 Isto porque uma evidência – mormente se evidentíssima – não se demonstra; mostra-se. [N. C.] 19 Porque os graus de evidência acompanham os graus de ser, Deus – o ser em grau sumo – é evidentíssimo em si mesmo. Resta saber se, sendo evidente em si, Deus o é para nós. Duns Scot admite que a existência de Deus não é, para o homem, uma verdade per se nota, pois precisa ser demonstrada a posteriori pelo conhecimento que temos das criaturas. “De ente infinito sic non potest demonstrari esse demonstratione propter quid quantum ad nos, licet ex natura terminorum propositio est demonstrabili propter quid. Sed quantum ad nos bene propositio est demonstrabilis demonstratione quia ex creaturis”. Duns Scot, Ordinatio, I, 2. Em resumo, a existência de Deus precisa ser demonstrada justamente porque não se mostra, não se apresenta como evidência absoluta ao nosso intelecto. [N. C]
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si aliqua passio ostendatur primo de triangulo, illa potest demonstrari de figura per triangulum; sed omnis conceptus quem nos concipimus de Deo est superior sive posterior quam haec essentia; igitur per hanc essentiam, cui primo convenit esse, potest demonstrari esse de omni conceptu quem nos de Deo concipimus. Nulla igitur talis, ut ‘ens infinitum est’, est per se nota ex notitia terminorum, sed mendicat evidentiam suam aliunde, et per consequens non est per se nota. - Istius autem rationis maior potest universalius sumi sic: quod convenit alicui primo, non convenit alteri nisi per naturam illius cui primo convenit; sed esse primo convenit huic essentiae divinae; igitur nec proprietati alicui, nec alicui alteri conveniet nisi per naturam essentiae. Nulla igitur complexio in qua enuntiatur esse de aliqua proprietate huius essentiae quam nos concipimus, est primo vera, sed per aliud vera, et per consequens non est primo et per se nota. [23] Praeterea, quaelibet propositio per se nota, est nota ex terminis cuilibet intellectui concipienti terminos; sed haec ‘Deus est’ - intelligendo per Deum non hanc essentiam quam nos concipimus, sed intelligendo conceptum aliquem quem nos de hac essentia concipimus - vel etiam ‘Deus est infinitus’, vel ‘ens infinitum est’, non est nota ex terminis cuilibet concipienti terminos; igitur non est per se nota. Maior patet. Minor ostenditur: omnis assentiens per fidem vel credulitatem aut demonstrationem alicui complexioni, habet apprehensionem terminorum; sed nos assentimus huic ‘Deus est’ vel ex fide vel ex demonstratione; igitur prius termini apprehenduntur, ante fidem et demonstrationem; sed ex apprehensione terminorum non assentimus, quia tunc non tantum per fidem aut demonstrationem. [24] Praeterea, tertio arguitur. Ad cuius intellectum primo sciendum est quod est aliquis conceptus simpliciter simplex et aliquis non simpliciter simplex. Ille est conceptus simpliciter simplex qui non reducitur in priorem aut simpliciorem, nec omnino in plures conceptus resolvitur, sicut est conceptus entis et conceptus ultimae differentiae. Conceptus autem non simpliciter simplex est ille qui licet apprehenditur sine affir-
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seu superior, assumido pelo inferior como meio, assim como, se alguma paixão se mostrasse primeiro do triângulo, tal poder-se-ia demonstrar da figura pelo triângulo; mas todo conceito que nós concebemos de Deus é superior ou posterior a esta essência; portanto, por esta essência, à qual primeiro convém ser, pode demonstrar-se que é de todo conceito que nós concebemos de Deus. Nenhuma pois assim, como “o ente é infinito”, é per se nota pela notícia dos termos, senão que pede sua evidência de outro lugar, e por conseguinte não é per se nota. – Esta razão, porém, pode tomar-se mais universalmente como maior assim: o que convém a algo primeiramente não convém a outro senão pela natureza daquele a que primeiramente convém; mas o ser convém primeiramente a esta essência divina; portanto, nem a nenhuma propriedade nem a nenhum outro convirá senão pela natureza da essência. Portanto, nenhuma complexão em que se enuncie de alguma propriedade que é desta essência que nós concebemos é primeiramente verdadeira, senão que é verdadeira por outro, e por conseguinte não é primeiramente e per se nota.20 23. Ademais, toda e qualquer proposição per se nota o é pelos termos, para qualquer intelecto que concebe os termos; mas esta: “Deus é” – inteligindo por Deus não esta essência que nós concebemos, mas inteligindo algum conceito que nós concebemos desta essência –, ou ainda: “Deus é infinito”, ou: “o ente é infinito”, não são [per se] nota pelos termos para qualquer [intelecto] que concebe os termos; portanto, [tais proposições] não são per se nota. A maior patenteia-se. A menor mostra-se: todo aquele que assente por fé ou por credulidade ou por demonstração a alguma complexão tem apreensão dos termos; mas nós assentimos a esta: “Deus é”, ou por fé ou por demonstração; portanto, apreende-se o termo anterior antes da fé e da demonstração; mas pela apreensão dos termos não assentimos, porque então não só por fé ou por demonstração [o fazemos]. 24. Ademais, argui-se ao terceiro. Para inteligi-lo, primeiramente deve saber-se que há algum conceito simpliciter simples e algum não simpliciter simples. É conceito simpliciter simples o que não se reduz a [outro] anterior nem a [outro] mais simples, nem em geral se resolve em muitos conceitos, como é o caso do conceito de ente e do conceito de diferença última. [Por sua vez] o conceito não simpliciter simples é o que, conquanto se apreenda sem afirma20 Podemos dizer, quase ao modo platônico, que toda verdade que o homem é capaz de descobrir acerca da essência divina é verdadeira por participação na Verdade mesma que é Deus. Se o ser ou a existência de Deus fossem uma verdade per se nota para o homem, isto significaria que a inteligência humana, finita, é capaz de esgotar a inteligibilidade do ser de Deus, infinito. [N. C.]
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matione et negatione, tamen resolvitur in plures conceptus quorum unus potest concipi sine alio, ut est conceptus speciei in genus et differentiam resolubilis. Unde licet conceptus sit simplex quia non est ibi affirmatio vel negatio, tamen est aliquis simpliciter simplex et aliquis non simpliciter simplex, sicut dictum est. Ex quo patet quomodo intelligendum sit et exponendum dictum Philosophi IX Metaphysicae, ubi dicitur quod in conceptibus simplicium non cadit deceptio sicut in conceptibus compositorum: hoc enim non potest intelligi affirmando vel negando aliquid de eis, quia sicut vere et false enuntiatur aliquid de composito, ita potest esse error in enuntiando aliquid de conceptu simplici. Sed hoc ideo dicit, quia ‘ratio compositorum est ratio longa’, multos aggregans conceptus, circa quorum coniunctionem potest esse error, et aliquando etiam includunt contradictionem, ut si dicatur ‘homo mortuus’ vel ‘homo irrationalis’; sed non sic in simplicibus, quia vel totum ibi apprehenditur vel nihil. [25] Hoc declarato arguitur sic: nulla propositio est per se nota de conceptu non simpliciter simplici nisi per se notum sit partes illius conceptus non simpliciter simplicis uniri, ut probabitur; sed omnis conceptus proprius, quem nos concipimus de Deo, est non simpliciter simplex; igitur de nullo conceptu, quem nos concipimus de Deo, erit aliquid per se notum nisi per se notum sit partes illius conceptus, quem nos de Deo concipimus, per se uniri. Sed non est per se notum illas partes uniri, ut probabitur; igitur nulla talis erit per se nota ‘Deus est’, nec etiam ‘Deus infinitus est’, in qua enuntiatur aliquid de conceptu quem nos de Deo concipimus. [26] Probatio maioris: nulla ratio est de aliquo vera nisi sit in se vera, quia si in se sit falsa, de nullo erit vera: illud patet ex V Metaphysicae cap. ‘De falso’, ubi vult Philosophus quod falsum in se est quod includit contradictionem; sed falsum de aliquo est quod non respectu cuiuscumque est falsum, licet hoc contingat de falso in se; igitur oportet quod praecognoscatur in se vera antequam cognoscatur de aliquo vera. Sed si non concipiantur partes conceptus non simpliciter simplicis inter se uniri, non concipitur in se vera; igitur non concipitur ut in aliquo vel de aliquo
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ção e negação, se resolve todavia em muitos conceitos dos quais um pode ser concebido sem o outro, assim como o conceito de espécie é resolúvel em gênero e em diferença específica. Daí que, ainda que o conceito seja simples porque ali não há afirmação ou negação, há porém algum simpliciter simples e algum não simpliciter simples, como se disse. Disso se patenteia de que modo se deva inteligir e expor o dito pelo Filósofo no livro IX da Metafísica, onde se diz que nos conceitos simples não se dá decepção como nos conceitos compostos:21 com efeito, não podem inteligir-se afirmando ou negando algo deles, porque assim se enuncia verdadeiramente ou falsamente algo do composto, de modo que pode haver erro no enunciar algo de um conceito simples. Mas por isso diz isto: porque “a razão dos compostos é razão longa”, que agrega muitos conceitos, acerca desta conjunção pode haver erro, e alguma vez também contradição, como se se dissesse “homem morto” ou “homem irracional”; mas não assim nos [conceitos] simples, porque ou tudo ali se apreende ou nada [se aprende]. 25. Declarado isso, argui-se assim: nenhuma proposição é per se nota quanto a conceito não simpliciter simples, a não ser que se unam de modo per se notum as partes deste conceito não simpliciter simples, como se provará; mas todo conceito próprio que nós concebemos de Deus é não simpliciter simples; portanto, de nenhum conceito que nós concebemos de Deus haverá algo per se notum se não se unirem de modo per se notum as partes deste conceito que nós concebemos de Deus. Mas não é per se notum o unir-se destas partes, como se provará; portanto, nenhuma [proposição] tal como “Deus é” será per se nota, nem “Deus é infinito”, na qual se enuncia algo quanto a um conceito que nós concebemos de Deus. 26. Prova da maior: nenhuma razão é com respeito a algo verdadeira se não é em si verdadeira, porque, se em si é falsa, com respeito a nada será verdadeira: o que se patenteia do livro V da Metafísica, cap. “Do falso”, onde quer o Filósofo que o falso em si é o que inclui contradição; mas o falso com respeito a algo é o que não é falso com respeito a tudo, ainda que isto aconteça quanto ao falso em si; portanto, é necessário que se conheça em si a verdadeira antes que à verdadeira com respeito a algo. Mas, se não se concebem as partes do conceito não simpliciter simples como unindo-se entre si, não se concebe a verdadeira em si; portanto, não se concebe como em algo ou com respeito a algo 21 Com a expressão “não se dá decepção” (non cadit deceptio), Scot refere-se à passagem da Metafísica (IX, 1052a, 30-35) em que Aristóteles diz não haver falsidade nem engano quando se considera o ser como verdadeiro e o não-ser como falso. [N. C.]
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vera. Nihil igitur est per se notum de conceptu non simpliciter simplici nisi praecognoscantur partes illius conceptus uniri. [27] Item, alia propositio assumpta est vera, quod ‘omnis conceptus quem nos concipimus de Deo, est non simpliciter simplex’, quia omnis conceptus meus de Deo est communis mihi et sibi, ut patebit infra. [28] Item, alia propositio assumpta est vera, scilicet quod ‘non est per se notum partes illius conceptus uniri quem nos de Deo concipimus’, quia una pars potest demonstrari de alia, ut quod ‘Deus est infinitus’ et quod ‘Deus est’, prout nos Deum concipimus. [29] Ex isto patet quod male dicunt dicentes huiusmodi esse per se; notas ‘Deus est’, et ‘necesse esse est’, et ‘operans actu est, quia, ut dicunt, oppositum praedicati repugnat subiecto, ergo propositio est per se nota. Dico quod non sunt per se notae, quia quando ponitur conceptus non simpliciter simplex in subiecto, oportet quod notum sit per se partes illius conceptus uniri; quod non contingit hic ‘necesse esse est’ et ‘operans actu est’, quia non est per se notum aliquid necessarium esse, sed hoc demonstrari potest. Unde et heraclitici negabant ‘necesse esse’, et omnia esse in continuo motu dicebant. Sic est de ista ‘operans actu est’, quia non est notum per se operans esse in actu. Unde non sequitur ‘oppositum praedicati repugnat subiecto, igitur est necessaria’, immo stat quod sit falsa, ut ista ‘homo irrationalis est animal’: non enim stant simul quod nullum animal sit, et tamen quod homo irrationalis sit. Sic est de ista etiam ‘aliquid maius Deo est’, quod est falsa, et tamen oppositum praedicati repugnat subiecto. [30] Si dicas, in ista ‘necesse esse est’ ponitur praedicatum in subiecto, et similiter hic ‘operans actu est’, igitur est per se nota, dico quod non sequitur, quia non est per se nota habitudo inter ea quae ponuntur in subiecto.
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verdadeira. Nada pois é per se notum com respeito ao conceito não simpliciter simples se não se pré-conhecem que as partes de tal conceito se unem. 27. Além disso, é verdadeira outra proposição assumida, a saber, que “todo conceito que nós concebemos de Deus é não simpliciter simples”, porque todo conceito meu de Deus é comum a mim e a Ele, como se patenteará abaixo. 28. Além disso, é verdadeira outra proposição recebida, a saber, que “não é per se notum que se unem as partes do conceito que nós concebemos de Deus”, porque uma parte pode demonstrar-se da outra, como em “Deus é infinito” e em “Deus é”, segundo o que nós concebemos de Deus. 29. Disto se patenteia que dizem mal os que dizem que são per se nota “Deus é”, “é necessário que seja” e “é ato operante”, porque, como dizem, o oposto do predicado repugna ao sujeito, logo a proposição é per se nota. Digo que não são per se notae, porque, quando se põe um conceito não simpliciter simples no sujeito, é necessário que seja em si evidente que as partes de tal conceito se unem; o que não acontece aqui com “é necessário que seja” e “é operante em ato”, porque não é per se notum que algo seja necessário, senão que isto pode demonstrar-se. Daí que também os heraclitianos negassem o “ser necessário”, e dissessem que tudo está em contínuo movimento. Assim com respeito a esta: “é operante em ato”, porque não é notum per se que está em ato. Daí que não se siga que “o oposto do predicado repugna ao sujeito, portanto é necessária”; muito pelo contrário, dá-se que seja falsa, como esta: “o homem irracional é animal”: não se sustentam simultaneamente, com efeito, que não seja nenhum animal e que, no entanto, o homem seja irracional. Assim também com respeito a esta: “há algo maior que Deus”, que é falsa, e no entanto o oposto do predicado repugna ao sujeito. 30. Se dizes que nesta: “é necessário que seja”, se põe o predicado no sujeito, e similarmente aqui: “é operante em ato”, e que portanto é per se nota, digo que não se segue, porque não é per se nota a habitudo22 entre esses que se põem no sujeito. 22 É impossível escapar ao jargão filosófico em textos escolásticos. No caso da Lectura, optamos por não traduzir literalmente termos que fazem parte do glossário metafísico do Doutor Sutil, daí a manutenção de alguns vocábulos latinos no corpo do texto em português, como habitudo. Nesta passagem, por exemplo, está pressuposto o conceito de habitus em Scot, o qual deve ser entendido, no plano ontológico, como o hábito dos primeiros princípios da razão especulativa por meio do qual esta se torna apta a chegar a conclusões – seja por dedução, seja por indução. O princípio da não-contradição, por exemplo, expressa um hábito entendido como postura fundamental da razão; trata-se, em certa medida, de um hábito natural, ou melhor, é justamente este o hábito próprio da natureza racional. Ocorre que a noção de hábito em Scot é ainda mais delicada. Diz Hofmeister: “(...) os hábitos teóricos obtíveis de forma natural ou que tipificam a realização científica teórica do intelecto humano são aqueles que, em diferença de um hábito prático ou ciência prática, têm como fim pura e simplesmente o conhecimento da verdade, não a ação apropriada”. Roberto Hofmeister, “O anti-averroísmo de
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[31] Sed contra hoc arguitur logice sic. si oppositum praedicati alicuius propositionis repugnet subiecto, igitur ad esse subiecti sequetur esse praedicati, ut in ista ‘homo est animal’ oppositum animalis repugnat homini, igitur sequitur ‘si homo est, animal est’. Si igitur in ista ‘homo irrationalis est animal’ oppositum praedicati repugnet subiecto, igitur sequetur ‘homo irrationalis est, igitur animal est’; igitur medium erit verum, scilicet ‘homo irrationalis est animal’. Igitur si oppositum praedicati repugnet subiecto, propositio erit vera et necessaria. Dico quod non tenet consequentia, quia extrema debent uniri secundum quae tenet consequentia. Nunc ista consequentia ‘homo irrationalis est, igitur animal est’ tenet non ex parte ‘irrationalis’, sed tantum ex parte ‘hominis’; et ideo illud medium est verum, ‘homo est animal’, in cuius virtute tenet. Et ideo haec non est consequentia ‘homo irrationalis est, igitur homo est’, quia irrationale nihil facit ad consequentiam, et ab eodem ad idem non est consequentia; et ideo nec haec ‘necesse esse est, igitur est’. [32] Sic igitur patet primo quae propositio est per se nota, quoniam illa quae ex conceptibus terminorum suorum et non aliorum habet evidentiam suae veritatis in quolibet intellectu concipiente terminos. Hoc enim sequitur ex primo. [33] Patet etiam quomodo haec est per se nota ‘Deus est’, et quomodo non. Nam intelligendo per Deum hanc essentiam divinam quam nos non concipimus, est per se nota; sed intelligendo per Deum hoc quod primum de Deo concipimus in universali, quod sit primum principium et infinitum, et multa talia, sic non est per se nota, ut iam ostensum est.
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31. Mas contra isto se argui logicamente assim: se o oposto do predicado de alguma proposição repugna ao sujeito, portanto a esse sujeito se seguirá ser do predicado, assim como nesta: “o homem é animal”, o oposto de animal repugna a homem, logo se segue: “se é homem, é animal”. Se portanto nesta: “o homem irracional é animal”, o oposto do predicado repugna ao sujeito, portanto se seguirá: “o homem é irracional, logo é animal”; portanto, será verdadeiro o meio, a saber, “o homem irracional é animal”. Portanto, se o oposto do predicado repugna ao sujeito, a proposição será verdadeira e necessária. Digo que não se sustenta a conseqüência, porque os extremos devem unir-se segundo o que a conseqüência sustenta. Agora, esta conseqüência: “o homem é irracional, logo é animal”, se sustenta não da parte de “irracional”, mas só da parte de “homem”; e por isso é verdadeiro este meio: “o homem é animal”, em cuja virtude se sustenta. E por isso não é esta a conseqüência: “o homem é irracional, logo é homem”, porque irracional nada diz respeito à conseqüência, e pelo mesmo quanto ao mesmo não é conseqüência; e por isso tampouco esta: “é necessário que seja, logo é”. 32. Assim, pois, patenteia-se primeiro que a proposição é per se nota se, em qualquer intelecto que concebe os termos, tem a evidência de sua verdade dos conceitos de seus termos, e não de outros. Isto se segue, com efeito, do primeiro. 33. Patenteia-se também de que modo é per se nota esta: “Deus é”, e de que modo não. Pois, se se intelige por Deus a essência divina que nós não concebemos, é per se nota; mas, se se intelige por Deus isto que primeiro de Deus concebemos em universal, ou seja, que seja o primeiro princípio e infinito, e muitos outros que tais, assim não é per se nota, como já se mostrou.23 Duns Scotus no Prólogo da ‘Ordinatio’: o terceiro argumento”, Revista Dissertatio, Porto Alegre, Universidade Federal de Pelotas, 2008, p. 168. No corpo do texto, ao frisar que a habitudo não é evidentíssima (per se nota) nas proposições mencionadas, Scot está a indicar-nos que elas não são suficientes para manifestar as verdades nelas contidas. [N. C.] 23 Ao contrário do que pode parecer ao leitor desafeiçoado ao rigor escolástico, Duns Scot não está aqui a fazer um mero jogo de palavras. Ele tem em vista a sua própria doutrina acerca do modo como se dá o conhecimento científico, à luz do Livro I dos Analíticos Posteriores de Aristóteles. O Doutor Sutil, no rastro do Estagirita, diz que o conhecimento científico precisa obedecer a quatro condições: 1- que seja um conhecimento certo, sem erros formais nem dúvidas; 2- que tenha por objeto algo necessário, e não contingente; 3- que a sua causa seja evidente para o intelecto; e 4- que o modo de proceder do investigador seja silogístico. Cf. Duns Scot, Ordinatio, Prol., qq. 1-2. Nestas passagens da Lectura, o seu cuidado em estabelecer com clareza o caráter da evidência evidentíssima (per se nota), e em que medida este conceito se aplica a proposições cujo objeto seja a existência de Deus, denota um louvável intuito demonstrativo, menos encontrável em textos filosóficos contemporâneos de que gostaríamos de ver. [N. C.]
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[34] Ad primam rationem, quando dicitur per Damascenum quod ‘cognitio Dei omnibus est inserta’, dico quod dicit ibidem quod “nullus novit Deum esse nisi per revelationem”; oportet igitur quod dictum suum glossetur. Ideo potest dici quod eius cognitio omnibus est inserta non in particulari, sed in universali et secundum conceptus communes, qui propriissime Deo conveniunt; et ideo per appropriationem dicitur quod eius cognitio omnibus est inserta, unde ‘ens’ et ‘actus’ etc. propriissime Deo conveniunt. Vel aliter potest dici quod cognitio Dei omnibus est inserta per cognitionem creaturarum, ex qua devenitur in cognitionem Dei, licet eius cognitio secundum se non sit per se nota. [35] Ad aliud, quando arguitur de Anselmo ‘illud quo maius cogitari non potest esse, est per se notum’, dico quod non. Unde intentio Anselmi ibi non est ostendere quod Deum esse sit per se notum, sed quod hoc sit verum. Et facit duos syllogismos, quorum primus est: ‘omni eo quod non est, aliquid est maius; sed summo nihil est maius; igitur summum non est non ens. Est alius syllogismus: ‘quod non est non ens, est; sed summum non est non ens; igitur summum est’. [36] Ad aliud, quando arguitur quod ‘veritatem esse est per se notum’, dico uno modo quod in argumento est fallacia consequentis, arguendo a veritate in communi ad veritatem ‘hanc’, quae Deus est; aliter dico quod non est per se nota ‘veritatem esse’. Et quando arguitur quod ‘si veritas non est, verum est veritatem non esse’, dico quod consequentia non valet,
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34. Quanto à primeira razão, quando diz Damasceno que “a cognição de Deus está inserta em todas as coisas”, digo que diz o mesmo que “ninguém conhece que Deus é senão por revelação”; é necessário, portanto, que seu dito seja glosado. Por isso pode dizer-se que sua cognição [de Deus] está inserta em todas as coisas não em particular, mas em universal e segundo conceitos comuns, que propriissimamente convêm a Deus; e por isso se diz por apropriação que sua cognição está inserta em todas as coisas, razão por que “ente” e “ato”, etc., convêm propriissimamente a Deus. Ou pode dizer-se, de outro modo, que a cognição de Deus está inserta em todas as coisas pela cognição das criaturas, pela qual devém a cognição [acerca] de Deus, ainda que secundum se sua cognição não seja per se nota. 35. Quanto à outra, quando se argui quanto a Anselmo: “aquilo que não se pode cogitar nada maior é per se notum”, digo que não. Daí que a intenção de Anselmo ali não seja mostrar que é per se notum que Deus é, mas que isto é verdadeiro. E faz dois silogismos, o primeiro dos quais é: “que tudo o que não é, algo é maior; mas [com relação ao que é] sumo, nada é maior; portanto, o sumo não é não-ente”. O outro silogismo é: “o que não é não-ente é; mas o sumo não é não-ente; portanto, o sumo é”.24 36. Quanto à outra, quando se argui que “é per se notum que a verdade é”, digo de um modo que no argumento há falácia do conseqüente,25 por arguir da verdade em comum a “esta” verdade, que Deus é; de outro modo digo que não é per se nota que “a verdade é”. E, quanto se argui que, “se a verdade não é, é verdadeiro que a verdade não é”, digo que a conseqüência não vale, porque a 24 É conhecida a boa acolhida que Duns Scot dá ao argumento ontológico de Santo Anselmo. Não que o aceite por completo, mas também não o impugna; dá-lhe um colorido. “Per illud potest colorari illa ratio Anselmi de summo cogitabili. Intelligenda est descriptio eius sic: Deus est quo cogitato sine contradictione maius cogitari non potest. Sine contradiction: nam in cuius cogitation includitur contradictio, illud dicitur non cogitabile, et ita est” (“Por isso pode ser colorida a razão anselmiana do sumo cogitável. Deve entender-se assim sua descrição: ‘Deus é algo tal que, pensado sem contradição, não se pode conceber nada maior, sem contradição”). Duns Scot, De Primo Principio, IV, 134. Também na presente passagem da Lectura, o Doutor Sutil busca justificar o argumento de Santo Anselmo enquadrando-o num plano meramente lógico, não obstante Santo Tomás, antes dele, já tivesse demonstrado que o problema do famoso argumento é justamente dar um salto indevido do plano lógico ao ontológico. Muita tinta já foi lançada sobre o papel neste tema, e não é o nosso intuito esmiuçá-lo nesta breve nota, mas apenas deixar uma indicação. [N. C.] 25 A fallacia consequentis resulta sempre de um raciocínio inválido. Ela consiste na afirmação indevida do conseqüente – e tem a clássica forma “Se A, então B. B, logo A”. Ex.: Se José estudar muito, passará no teste de química; José passou no teste de química; logo José estudou muito. O non sequitur deste tipo de raciocínio deriva do fato de que, mesmo no caso de serem válidas as premissas, a conclusão não se segue necessariamente delas. Mesmo tendo estudado muito, José pode ter passado no teste de química valendo-se de um procedimento escuso, como copiar as respostas de um colega. [N. C.]
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