Tratado da Esfera
João de Sacrobosco
Tratado da Esfera Cosmologia tradicional e mecânica celeste Edição bilíngue · Apresentação e notas de Marcos Monteiro
Tratado da Esfera, João de Sacrobosco © Editora Concreta, 2018 Título original: Tractatus de sphaera Título original dos comentários de D. Pedro Nunes: Tratado da sphera Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta R. Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Apresentação e notas: Marcos Vinícius Monteiro Comentários: D. Pedro Nunes Revisão: Gabriel Ceroni Lied Capa & Editoração: Hugo de Santa Cruz Imagem de capa: “Lição de Astronomia”, de Giuseppe Angeli (1712–1798) Ilustrações e diagramas:
Edições medievais e renascentistas diversas do Tractatus de sphaera Ficha Catalográfica Sacrobosco, João de, 1195–1256 S123t Tratado da Esfera [livro eletrônico] / Comentários de D. Pedro Nunes, edição de Renan Santos. – 1ª edição. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2018. – 152p. ISBN 978-85-68962-34-3 1. Ciência. 2. História da ciência. 3. Cosmologia. 4. Mecânica celeste. 5. Navegação. 6. Ciência medieval. I. Título. CDD-509.4
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
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BIBL IO T EC A DE A R T ES L IBER A IS
P
rocurando a melhor definição de artes liberais para o leitor moderno, deparamo-nos com tantos gigantes do passado versando sobre sua importância, que acabamos preferindo que um desses mestres falasse por si. Eis as palavras de Santo Tomás de Aquino em seus Comentário ao Tratado Sobre a Trindade, de Boécio:
“As sete artes liberais não dividem de maneira suficiente a filosofia teórica, mas, como diz Hugo de São Vitor no livro III do seu Didascalicon, enumeram-se sete (deixando-se de fora certas outras), porque aqueles que desejavam aprender a filosofia eram instruídos primeiramente nestas. E se dividem em Trivium e Quadrivium ‘porque são como caminhos [viae] que introduzem o espírito vigoroso nos segredos da filosofia’. E isto também está de acordo com as palavras do Filósofo [Aristóteles], segundo quem, no livro II da Metafísica, devemos buscar o método da ciência antes do que as ciências mesmas; e o Comentarista [Averróis] diz, no mesmo ponto, que antes das ciências deve se aprender a lógica, a qual pertence ao Trivium e ensina o método para todas elas. “O Filósofo também diz, no livro VI da Ética a Nicômaco, que as matemáticas podem ser conhecidas por meninos, contudo não a física, porque esta exige experiência. E assim compreendemos que, após a lógica, devem-se seguir as matemáticas, as quais pertencem ao Quadrivium, e portanto são como vias
que conduzem o espírito às demais disciplinas filosóficas. E entre as outras ciências, essas são chamadas de artes porque redundam não apenas em conhecimento, mas em alguma obra imediata produzida pela razão; por exemplo, a construção de um silogismo, a formação de uma oração, a contagem, a medição, a composição de melodias e o cálculo do curso dos astros. “Já as outras ciências, como a divina e a natural, ou não produzem obra e sim apenas conhecimento – daí não poderem levar o nome de artes, pois a arte, como se define no livro VI da Metafísica, é uma razão produtiva [ratio factiva] –, ou produzem uma obra somente corporal, como a medicina, a alquimia e outras ciências similares. Por isso não podem ser chamadas de artes liberais, porque tal atividade procede da parte no homem que não é livre – a saber, o seu corpo. E, embora a ciência moral seja dirigida à ação, sua operação não é um ato de ciência, mas de virtude, como fica claro na Ética a Nicômaco. Por isso não pode ser chamada de arte; pelo contrário, nessas operações a virtude toma o lugar da arte. Eis porque, conforme relata S. Agostinho no livro IV da Cidade de Deus, os antigos definiam a virtude como a arte de viver bem e retamente.” Esta é uma das definições mais sumárias e disciplinares das sete artes liberais no decurso da filosofia medieval, período em que exerceram sua maior autoridade. Detalhe importante nesse texto de Santo Tomás (citando o grande filósofo e educador Hugo de São Vítor) é a advertência de que as artes liberais se destinam ao “espírito vigoroso” (vivax animus), para auxiliá-lo a penetrar nos “segredos da filosofia” (“sabedoria” no texto original do pensador vitorino). Ou seja, mais do que o simples estudo e interesse pelas diferentes artes, é preciso uma diligência ardente na busca da verdade, o que hoje poderíamos definir como “coragem intelectual”. Dito isto, desejamos que esta coleção Biblioteca de Artes Liberais sirva não apenas para trazer à luz, em língua portuguesa, os textos esquecidos do Trivium e Quadrivium, mas principalmente para despertar no espírito do leitor essa vivacidade sem a qual, segundo os próprios autores medievais, não há segredo que se revele, nem escuridão que venha a se iluminar. Renan Martins dos Santos Editor-chefe
Sumário
Apresentação João de Sacrobosco e a Esfera do Mundo
9
O autor
9
A obra
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Esquema da obra
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Acréscimos do tradutor
19
O tradutor
19
TRATADO DA ESFERA
25
Ao serenissímo e excelentíssimo Príncipe,o Infante Dom Luís
27
Proêmio do autor
31
Capítulo I
31
De que forma é o mundo
43
Da revolução do Céu
49
Da redondeza do Céu
51
Da redondeza da Terra
53
Da redondeza da Água
55
Que a Terra seja o centro do Mundo
57
Que a Terra seja imóvel
59
Da quantidade [tamanho] da Terra
61
Capítulo II Dos círculos dos quais a esfera material é composta, para que entendamos a celestial
63
Do Zodíaco
67
Dos dois coluros
73
Do Meridiano e Horizonte
77
Dos quatro círculos menores
81
Das cinco zonas
85
Capítulo III De como nascem e se põem os signos. Da diferença dos dias e noites e da diferença dos climas
87
De como nascem e se põem os signos segundo os astrólogos Da diversidade dos dias e noites que têm os que moram em diversas partes da Terra
109
Dos que vivem entre a Equinocial e o Trópico de Câncer
113
Dos que vivem debaixo do Trópico de Câncer
115
Dos que vivem entre o Trópico de Câncer e o Círculo Ártico
115
Dos que vivem debaixo do Círculo Ártico
117
Dos que vivem entre o Círculo Ártico e o pólo do Mundo
117
Dos que vivem debaixo do Pólo Ártico
121
Da repartição dos Climas
121
93
Capítulo IV Dos círculos e movimentos dos planetas e das causas dos Eclipses do Sol e da Lua
129
Estação, direção e retrogradação
135
Do Eclipse da Lua
135
Anotação sobre as derradeiras palavras do capítulo dos climas
141
Apresentação
João de Sacrobosco e a Esfera do Mundo
S
O autor
abemos muito pouco sobre João de Sacrobosco. Seu nome era John – ou o nome correspondente na língua falada no seu local de nascimento. i Nasceu, provavelmente, nas Ilhas Britânicas (se na Inglaterra, na Escócia ou na Irlanda, depende de qual fonte se usa; falaremos sobre isso mais à frente). Ensinou na Universidade de Paris; nesta cidade morreu e foi sepultado. É o autor indiscutível de três obras, uma sobre os algarismos “árabes” (Algorismus, chamada também de Algorismus de integris ou Algorismus vulgaris), uma sobre cosmologia (Tractatus de sphaera, chamada por vezes de Sphaera Mundi, o texto apresentado e discutido nesta edição), e uma sobre o cálculo de datas (Computus, chamada igualmente de Computus ecclesiasticus, Computus i O site da Universidade de Regensburg (http://www-app.uni-regensburg.de/Fakultaeten/PKGG/ Philosophie/Gesch_Phil/alcuin/philosopher.php?id=1311) dá os seguintes sinônimos possíveis para Iohannes de Sacrobosco: “Giovanni Sacrobosco, Iohannes Anglus, Iohannes de Bosco, Jean de Holybusch, Jean de Holywood, Jean de Sacro Bosco, Jean de Sacrobosco, Johan de Sacrobosco, Johannes Anglus, Johannes de Bosco, Johannes de Sacribusto, Johannes de Sacro Bosco, Johannes de Sacrobosco, Johannes de Sacrobusco, Johannes de Sacrobusto, Johannes Sacroboscus, Johannes von Halifax, Johannes von Holywood, Johannes von Sacrobosco, John Holywood, John of Halifax, John of Holybush, John of Holywalde”.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
philosophicus, ou ainda De anni ratione). É, com um pouco menos de segurança, o autor de um Tractatus de quadrante. Isto é tudo. ii Uma coisa que não sabemos é porque ele era chamado de Sacrobosco (ou suas variantes: Sacro Bosco, Sacrobusco, Sacro Busto, Sagero Bosco, etc). A hipótese mais provável é que “Sacro bosco” (ablativo de Sacer Boscus, “bosque sagrado”) signifique a cidade em que nasceu ou em que recebeu sua primeira educação, mas também poderia ser a tradução do sobrenome de sua família, ou ainda uma menção à sua condição de religioso (que, também, não é de forma alguma bem estabelecida). Não há menção a ele em nenhum registro ou documento da época em que viveu, nem mesmo os da universidade em que lecionou. Por outro lado, Robertus Anglicus, iii que pode ter convivido com ele, já o chamava de inglês em 1271, no que foi seguido pela quase totalidade dos comentadores medievais posteriores. “Inglês” quer dizer nascido na Inglaterra; mas em que cidade? De acordo com John Leland, iv em Haligwald (ou Halifex), em North Yorkshire (Halifax); invoca em seu favor a autoridade de Thomas Grynaeus, segundo ele um importante matemático da época. v O problema é que no século XVI se acreditava que Halifax (na época de Sacrobosco chamada Horton) significasse ii De acordo com Élie Vinet (1509–1587, filólogo, tradutor, antiquário, arqueólogo, historiador e humanista francês) na introdução à Sphaera Ioannis de Sacro Bosco Emendata [tradução do comentarista]: “A pátria de João de Sacrobosco foi aquela que agora é Ilha da Inglaterra, chamada outrora de Albion e Bretanha. Ensinou letras e filosofia em Paris, onde foi doutor. Escreveu sobre a Esfera do Mundo, sobre o astrolábio, sobre o algoritmo (como chamam os bárbaros a arte de calcular), e sobre o cômputo eclesiástico até o ano de 1351, como fica aparente do poema que fecha seu livreto sobre o cômputo. Foi sepultado em Paris, no claustro dos membros da [ordem] de S. Maturino [no cemitério da Igreja de S. Maturino, em Paris]; em seu túmulo foi esculpida uma esfera, em volta da qual havia o seguinte epitáfio: “João de Sacrobosco, computista, que descreveu os tempos, jaz aqui, subtraído do tempo […].” iii Roberto, o inglês. Astrônomo do século XIII, foi um dos primeiros comentadores do De Sphaera. Deu aula na Universidade de Montpellier e talvez também na de Paris. É outro autor cuja biografia carece de muitas informações, e confusões entre ele e outras personagens da mesma época são comuns. iv Em De viris illustribus, escrita entre 1535 e 1546, aproximadamente. Obra inacabada, foi publicada em 1709 com o título Commentarii de scriptoribus Britannicis. John Leland foi poeta e antiquário. v “John Sacrobosco, so called from his birthplace which I interpret as the Saxon name of Haligwalde, or Halifex, which is the name of a very famous wool market in Yorkshire. From this conjecture I might easily believe that he came from there. Thomas Grynaeus, the chief among our British mathematicians, is of precisely the same opinion. In so far as I gather he studied in his youth at the academy which is so well known at the ford of the Isis [= a Universidade de Oxford]”. Apud Olaf Pedersen, “In Quest of Sacrobosco”, jha, xvi, 1985, pp. 175–220. Este prefácio deve muito ao artigo de O. Pedersen, cuja leitura recomendamos vivamente.
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação
“cabelo sagrado”, não “bosque sagrado”. vi Esta hipótese só foi aceita porque não existia uma cidade chamada Holywood ou Holybush na Inglaterra. Além disso, não se sabe quem era “Thomas Grynaeus”. Ele poderia ter vindo de qualquer lugar das ilhas britânicas e ser chamado de “inglês” no continente europeu (mas talvez não por Robertus, que chamaria um escocês ou irlandês de “Scotus”, não “Anglicus” como ele mesmo era, até onde se sabe). Por isso, levantou-se a possibilidade de John ser irlandês. Há uma localidade chamada Holywood nas proximidades de Dublin, e na Irlanda do Norte temos Ard Mhic Nasca ou Holywood (“Sanctus Boscus” para os normandos), no Condado de Down. O problema é que não há nada ligando Sacrobosco à Irlanda exceto a existência de locais cujo nome quer dizer “bosque sagrado”. Thomas Dempster, na sua Historia Ecclesiastica Gentis Scotorum (“História Eclesiástica do Povo Escocês”, de 1627), sustentava que ele teria nascido de uma família escocesa bastante conhecida, havendo um documento na igreja de Saint-Côme vii em Paris que dizia ser ele de origem escocesa e ter sido cônego no mosteiro de Holywood (Holywood Abbey or Dercongal Abbey) em Nithsdale (Dumfriesshire, Escócia). Dempster não oferece nenhuma evidência para nenhuma das três afirmações, que, além disso, apresentam alguns problemas cuja discussão foge ao nosso propósito. Embora todas as três hipóteses tenham dificuldades (e embora alguns tenham levantado outras, como a França e a Catalunha), o fato de John nunca ter sido chamado de escocês ou irlandês, associado ao fato de Robert Anglicus ser um comentador, se não contemporâneo, bastante próximo do autor, nos autoriza, com reservas, a chamá-lo de inglês – mas nada mais que isso. Ele talvez tenha estudado na Universidade de Oxford. Ele talvez tenha chegado em Paris já como Mestre em Artes, ou talvez ainda como aluno. John certamente era membro da Nação Inglesa (Natio Anglicana, que depois ficou conhecida como Nação Alemã, a qual reunia alunos e professores das Ilhas Britânicas, Escandinávia e Alemanha), o que não nos esclarece muita coisa. De qualquer vi Hoje se acredita que nenhuma das duas opções seja correta. A hipótese corrente é que Halifax venha de halh-gefeaxe, do inglês antigo, que significa algo como “área de mato num canto da terra”. vii Construída a mando do Abade de Saint-German-des-Près no começo do século XIII, esta antiga dependência da Abadia e paróquia da Universidade de Paris não existe mais. Ela foi primeiro vendida – com seu cemitério – e transformada em oficina de marcenaria durante a Revolução Francesa; por fim, em 1836, foi demolida.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
forma, tendo chegado como aluno ou já como mestre, em algum ponto começa a lecionar o Quadrivium e a escrever, atividades que lhe renderam alguma notoriedade ainda em vida e fama póstuma. Sua morte na França é um pouco menos nebulosa historicamente. Havia, pelo menos até o fim do século XVIII, uma lápide no mosteiro de Saint-Mathurin indicando que João de Sacrobosco, “computista”, jazia ali. A lápide, provavelmente destruída na Revolução Francesa, exibia uma elegia em versos em latim e um instrumento de medição astronômica (provavelmente um astrolábio), ou a representação de uma esfera. Ser enterrado ali significava que ele possuía fama como professor e astrônomo, porque indicava que a Universidade de Paris o havia sepultado no “seu próprio cemitério”, em vez de o enviar de volta à sua paróquia de origem, qualquer que tenha sido. A data da sua morte, porém, é quase tão incerta quanto a data e o local de seu nascimento, ou a data em que chegou a Paris, ou mesmo a data em que começou a lecionar. 1236 e 1256 são algumas das possibilidades levantadas, e há tanta (ou tão pouca) evidência para uma quanto para a outra. Em resumo: João de Sacrobosco era provavelmente inglês, talvez religioso, ensinou (astronomia e matemáticas) em Paris e lá morreu na primeira metade do século XIII. O mais importante, ao menos, sabemos. Era professor de astronomia da Universidade de Paris. Isso nos dá algumas informações importantes sobre o texto, e ajuda-nos a entender como um tratado escrito por um sujeito praticamente desconhecido ficou tão conhecido (e foi tão estudado) ao longo dos séculos.
A obra Uma informação que pode soar estranha, e causar algum desconforto, é que os estudos das artes liberais (o trivium, gramática, retórica e lógica, e o quadrivium, aritmética, geometria, teoria musical e astronomia/astrologia) eram preparatórios para quem resolvesse se aventurar no ensino realmente superior (medicina, direito canônico e teologia). A “Faculdade de Artes” era a porta de entrada do Studium generale, e o aluno só ingressava nas outras faculdades depois de ter obtido ali seu título de mestre. Segundo Juntino, um dos comentadores mais extensos do Tratado, esta era a importância das artes liberais:
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação “São, na verdade, como certos instrumentos excelentes pelos quais a mente prepara o caminho para um entendimento pleno da filosofia.” viii
Ou seja, elas serviam para ensinar os estudantes a aprender; o conhecimento do céu não era o fim do ensino, mas o meio pelo qual se preparavam os discípulos para o que lhes seria ensinado depois. Isso significa que a Faculdade de Artes lidava com alunos adolescentes, alguns saídos pela primeira vez de suas cidades natais (ou das propriedades em que foram criados), muitas vezes imaturos e, de forma geral, sem muita bagagem intelectual. Além disso, Paris reunia estudantes de diversas origens e idiomas. Isso significa que João de Sacrobosco precisava ser claro, abrangente, razoavelmente direto, sem ser demasiado exigente com a perfeição formal ou meticuloso demais, e sem levar a discussões teóricas sobre pontos controversos. Além disso, não poderia exigir muito em termos de conhecimento prévio do aluno (que entrava na faculdade sabendo o latim básico, os algarismos romanos e os fundamentos da aritmética; começava a estudar astronomia/astrologia depois de passar pelas outras artes, é verdade, mas ainda assim era, de forma geral, “verde”). Essas linhas gerais parecem estar refletidas nos seus escritos; ao menos, nos que deviam ser usados em sala de aula. O Computus podia ou não ser um desses escritos. Seu assunto não era necessariamente parte do currículo, embora fosse importante para os alunos que desejassem seguir carreira religiosa. Os tratados sobre os algarismos indo-arábicos (uma novidade) e sobre o quadrante parecem ser introdutórios ao assunto principal. E o assunto principal – das aulas e do Sphaera – era astronomia. Alguns leitores talvez estranhem que o conteúdo da obra – o qual, hoje em dia, seria destinado definitivamente à seção de astrologia – fosse ensinado em universidades (e justo na Universidade de Paris); outros, que fosse ensinado em universidades católicas. Em primeiro lugar, é bom lembrar que a noção de ciência de então não era a mesma de agora. Se deixarmos de lado discussões terminológicas, podemos dizer que o que se chamava de ciência era “conhecimento acerca de algo” (enviii Francisco Juntino (Francesco Giuntini, 1523/1590, teólogo carmelita italiano), na introdução ao seus comentários ao Tratado. “Sunt enim quasi optima quaedam instrumenta, quibus via paratur animo ad planem philosophiae intelligentiam.” Fr. Iunctini Florentini, Sacrae Theologiae Doctoris, Commentaria in Sphaeram Joannis Sacro Bosco accuratissima, 1578. página 1, “Septem artium liberalium utilitas”.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
quanto arte era “técnica para fazer alguma coisa”). Então, astronomia/astrologia era o conhecimento sobre o céu e os corpos celestes. Este conhecimento não pode surgir nem se sustentar sozinho: ele se funda numa compreensão orgânica, simbólica e teocêntrica do Cosmos. Assim, o movimento dos astros se ajusta a esta visão de mundo que os organiza (e a todo o resto) em esferas perfeitamente harmonizadas e coordenadas entre si, porque, como diz o salmista, “Os céus narram a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos”. A interação entre as diversas esferas, a relação entre os diversos níveis da Criação (o que está por trás da famigerada “influência dos astros”) não seria posta em dúvida antes que este modelo mesmo o fosse. Basta uma rápida olhada nos malabarismos teóricos feitos para manter as esfericidades das órbitas mesmo quando as medições indicavam que outros movimentos pudessem ser explicações mais simples (como, por exemplo, no quarto capítulo deste Tratado, sobre os círculos excêntricos pelos quais o Sol e a Lua transitariam). Ou seja, ninguém, à época, duvidaria de que o mundo é constituído por esferas concêntricas, de que as coisas são compostas por combinações diferentes dos quatro elementos (terra, água, ar e fogo), e que há correspondências (se simbólicas ou causais, não importa – e não creio que houvesse uma diferença absoluta entre as duas opções) entre as diversas esferas: ou seja, que há “influência dos astros nas nossas vidas”. Isso não quer dizer, é lógico, que qualquer uso desse conhecimento tenha sido sempre bem aceito, mas que um discurso sobre as esferas e suas influências era parte do que se esperaria ouvir em uma aula sobre astronomia. E era o que se esperaria ouvir em um ambiente religioso. Em primeiro lugar, porque na Europa daquela época praticamente todo ambiente era, em alguma medida, religioso. Depois, porque as universidades são “invenções de religiosos”. ix O conhecimento apresentado no Tratado não é oculto, secreto ou para iniciados: como afirmei mais acima, era o que se ensinava aos alunos antes dos estudos superiores de fato. Também não era religioso (no sentido de sagrado, ou com fins místicos) ou mágico; era o conhecimento astronômico da época. ix A Universidade de Paris começou como uma corporação de alunos e professores em um anexo da Catedral de Notre-Dame. Foi formalmente reconhecida como “Universitas” pelo Rei Felipe II em 1200. No édito constava que os alunos seriam regidos pela lei eclesiástica. Os estudantes usavam hábitos pretos e raspavam o topo da cabeça (tonsura monástica), demonstrando que estavam sob as leis e (o que gerou não pouca dor de cabeça à época) sob a proteção da Igreja.
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação
Outras pessoas também podem estranhar que um tratado medieval, citando autores ainda mais antigos, considere o mundo uma esfera, como se isto fosse consenso. Afinal, eles não acreditavam que a terra era plana? Não. Isso nunca foi a crença predominante no Ocidente. É claro que houve pessoas que acreditavam nisso e em coisas mais absurdas – embora não tantas quanto hoje em dia –, mas a idéia de que “os antigos acreditavam” que o mundo fosse um quadrado ou um prato plano, e que seria possível “cair” dele pelas bordas, é uma lenda sem qualquer fundamento. Isto não era verdade na Idade Média (durante a qual o ensino de astronomia incluía noções dos climas e das regiões do mundo), nem, muito menos, no Renascimento (durante o qual o conhecimento astronômico auxiliou a orientação no mar). Aliás, nem mesmo em períodos muito anteriores a estes: uma das fontes de Sacrobosco e de autores que cita é Ptolomeu, que viveu no século II d.C. e era um sintetizador do conhecimento da época – ou seja, refere-se a um saber que era de domínio razoavelmente público e muito anterior a si próprio. x A história de que Cristóvão Colombo teria viajado para “demonstrar que a terra não era plana” é sem pé nem cabeça: um dos autores nos quais o navegador se baseou para realizar os cálculos de suas viagens foi Al-Farghani (Alfragano), uma das fontes de Sacrobosco, que, como suas outras fontes (incluindo Ptolomeu, de cuja obra Al-Farghani foi comentador e sintetizador), concebiam o Cosmos como uma esfera. Esses pontos serão retomados nas notas ao texto, mas é preciso estabelecer, desde já, que para a mente medieval, o mundo não só era esférico segundo a teoria vigente, os dados dos sentidos e a experiência acumulada da astronomia e da navegação: ele tinha de ser esférico. A Esfera era considerada a forma geométrica mais perfeita (como o círculo, seu correspondente bidimensional). Ela é a forma mais simples: sem ângulos x E ele não é, nem de longe, o único autor antigo conhecido na Idade Média a tratar desses assuntos. Um De Sphaera Liber, que durante séculos acreditou-se ser de Proclo, foi estudado e recebeu diversos comentários, embora não tantos quanto o texto de Sacrobosco. O texto circulou originalmente em grego e foi traduzido ao latim pela primeira vez por Thomas Linacre (erudito inglês, 1460–1524) para o uso de seu pupilo, Artur, Príncipe de Gales (filho e herdeiro de Henrique VII; sua morte prematura levou seu irmão Henrique ao trono). Hoje em dia, há consenso sobre o texto não ser de Proclo. É provavelmente uma coleção bizantina de trechos do Isagoge (em grego, Εἰσαγωγὴ εἰς τὰ Φαινόμενα, Introdução aos Fenômenos), tratado introdutório do astrônomo e matemático grego Gêmino de Rodes, que viveu no séc. I a.C., tendo versado sobre a Esfera, portanto, mais de um século antes de Ptolomeu.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
ou quinas, sua superfície é eqüidistante do centro; não há faltas ou excessos; esferas concêntricas podem, cada uma delas, girar sem “esbarrar” umas nas outras. Seu movimento natural, a revolução em torno do próprio eixo, também é sumamente simples. A luz, na ausência de obstáculos, se propaga como uma esfera. Ela também é infinita, no sentido de que não se pode determinar um começo ou fim na sua superfície, ou de nenhum círculo inscrito sobre ela. Simples, infinita, imagem da perfeição. A Esfera do Mundo xi reflete seu Criador. Ela reflete – naturalmente – a Mão que a fez existir ex nihilo. Quando o Gênesis abre as Sagradas Escrituras dizendo que “No princípio, Deus criou o Céu e a Terra”, podemos entender “Céu” como as esferas celestes, e a “Terra” como as esferas terrestres, ou a Terra como a Criação, e o Céu como o que está além da Criação: o Céu Empíreo, morada de Deus, dos anjos e santos, imóvel e perfeito. Neste segundo sentido (que parece ser reforçado pelos versículos 6–8 do primeiro capítulo do Gênesis, sobre a criação do Firmamento no segundo dia; versaremos mais sobre isso nas notas ao texto), o Cosmos também é uma esfera porque não há outra forma possível. Do “Fiat Lux” inicial, no centro, a Criação se expande até o Empíreo, que é esférico. É o Céu que dá forma à Terra. As esferas concêntricas – do Primeiro Móvel, em contato com o Céu Empíreo, até a Terra – traduziam a hierarquia visível e invisível da Criação. A astronomia/astrologia, num certo sentido, era uma síntese do Quadrivium, porque ela envolve, necessariamente, o número (Aritmética), a figura (geometria) e o movimento (música). Por isso era a última disciplina das Artes Liberais a ser ministrada; em tese, os alunos que chegavam a Sacrobosco já haviam passado pelo Trivium e pelas outras disciplinas do Quadrivium, e, se tudo corresse como o planejado, sairiam dali para os estudos posteriores. Dessa forma, Sacrobosco podia citar livremente os clássicos da poesia – como, veremos no texto, ele o faz com freqüência – com dois objetivos complementares: exemplificar a astronomia que está sendo descrita através de autores familiares aos alunos e, portanto, diminuir um pouco a distância entre eles e os céus, e ao mesmo tempo explicar passagens destes poemas que xi Esfera do Mundo, Esfera do Universo, Máquina do Mundo (expressão retirada de De Rerum Natura, de Lucrécio, poeta e filósofo romano do século I a.C.), Máquina do Universo, Cosmos, Universo, ou Mundo eram todos sinônimos (entre outras expressões usadas) para o universo criado. Nos textos antigos, “Mundo” nunca é o planeta Terra. Neste texto, “Esfera” em maiúsculo é o Cosmos; “esfera” em minúsculo é uma das esferas concêntricas que o compõem. “Esfera Celeste” são as Esferas Planetárias e as superiores, “Esfera Terrestre” (ou “Elemental”) são as esferas sublunares, a Terra inclusive.
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação
fossem mais difíceis de compreender sem o devido conhecimento astronômico/astrológico. A astrologia se beneficiava do que os alunos haviam visto no Trivium, e, ao mesmo tempo, os alunos recebiam uma espécie de reforço e aprofundamento do que viam (metodologia que, pela condição geral dos alunos, mencionada mais cedo, não era uma má ideia). Sacrobosco também podia citar autores como Euclides ou Teodósio com alguma segurança de ser compreendido. No Tratado, essa síntese foi feita de forma direta, clara e curta, xii o que lhe garantiu aceitação e notoriedade. xiii Um dos primeiros livros a serem impressos com a invenção de Gutenberg, teve inúmeras edições e traduções, xiv e serviu de base para muitos outros textos do mesmo tipo. Uma tradição de comentadores logo se formou – alguns mais objetivos (como os comentários de D. Pedro na presente tradução), outros mais extensos (como o de Francisco Juntino, com mais de 600 páginas). Robert Grosseteste, bispo de Lincoln e figura intelectual importante da Idade Média, também escreveu um Tractatus De Sphaera, mais ou menos na xii Simples o suficiente para merecer que o tradutor escrevesse, numa nota: “Não posso crer que este autor ignorasse quanto vai nisto [uma medida do movimento anual do Sol] que ele diz ser insensível [desprezível]. Mas fala com principiantes”. D. Pedro também inseriu, além da Teórica do Sol e da Lua, das Teóricas de Purbáquio, do primeiro capítulo da Geografia de Ptolomeu, e de dois tratados de sua autoria sobre navegação, um capítulo (também de sua autoria) dedicado a demonstrar matematicamente um ponto do terceiro capítulo do Tratado. xiii Martin de Perer Bearnois, em 1546, no prefácio (“contendo a utilidade da astrologia”) à sua tradução ao francês, dizia [tradução do comentarista]: “Por esta razão amo, maravilhado, o livrinho de João de Sacrobosco, que me parece ter abrangido de forma adequada os rudimentos desta ciência, e estimo que tenham um bom parecer os homens doutos das universidades, os quais, unanimemente, preferem este livreto aos outros que são do mesmo gênero, e por todas as escolas quiseram que estivesse todo ele, e nas mãos de todos”. xiv De acordo com Roberto de Andrade Martins (“Las fuentes literarias del Tratado de la Esfera de Sacrobosco”, in Epistemología y Historia de la Ciencia, vol. 9 (2003), nº 9, pp. 307–313), “depois da invenção da imprensa, o Tratado da Esfera foi um dos primeiros livros científicos que se publicou. Posteriormente houve umas 200 edições ou mais do texto de Sacrobosco, geralmente com acréscimos e comentários, até o século XVIII. Foi o tratado astronômico mais popular de todos os tempos”. Segundo Isabelle Pantin, houve trinta edições da Esfera entre 1489 e 1550 (“Sacrobosco in Paris at the Beginning of the Sixteenth Century: the Sphere, the Reform of the University and the Rise of the Book Market”, nos resumos para o workshop “The authors of the Early Modern Commentaries on De Sphaera”, realizado em 13–15 de fevereiro, 2018, no Max Planck Institute for the History of Science, Berlin, Alemanha) Encontramos traduções em português, castelhano, francês, inglês, italiano e alemão, além de diversas edições comentadas; algumas delas estão na bibliografia. Além disso, muitos outros livros posteriores sobre o mesmo assunto se baseiam, de forma explícita ou implícita, em Sacrobosco.
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mesma época que Sacrobosco. É bem menor, mas segue a mesma linha geral e a mesma ordem de exposição. Segundo Lynn Thorndike, xv Grosseteste provavelmente se baseou em Sacrobosco, mas inseriu alguma coisa nova; no entanto, como não há nenhuma menção disso no trabalho de Grosseteste, e como as datas de confecção dos dois textos são desconhecidas, é difícil precisar qual a relação entre ambos. De qualquer forma, o bispo de Lincoln foi autor de um tratado concorrente, como o foram John Peckham, arcebispo de Canterbury que também frequentou a Universidade de Paris, e Campanus de Novara, matemático, astrônomo, astrólogo e médico italiano. Nenhum deles, no entanto, obteve o mesmo sucesso. Alguns comentários ao Tratado, especialmente os primeiros, eram provavelmente notas de aula. O de Robertus Anglicus, por exemplo, é dividido em lições, e parece ter um público-alvo parecido com o da obra original. Outros parecem ter objetivos que variam desde aproveitar o texto para defender a astrologia judiciária em polêmicas até utilizá-lo como ferramenta de educação para navegantes (caso do nosso tradutor).
Esquema da obra O Tratado da Esfera se divide em quatro capítulos. No primeiro, Sacrobosco define a figura geométrica da esfera, segundo autores que certamente eram conhecidos de seus alunos, e parte para explicar a Esfera do Mundo, como ela pode ser considerada em si mesma (“substancialmente”) e com relação à posição geográfica do observador (“acidentalmente”), quais são suas esferas concêntricas constituintes e as diferenças entre elas. Em seguida, apresenta breves argumentos a favor do movimento do céu, sua esfericidade, a esfericidade da Terra e do oceano (“Da redondeza da Terra” e “Da redondeza da Água”), a posição central da esfera terrestre no cosmos e a sua imobilidade, e termina com uma estimativa do tamanho do globo terrestre. No segundo capítulo, o autor menciona os círculos que dividem a Esfera. Ele diferencia círculo maior de menor, e apresenta e explica os círculos maiores (equador celeste ou Equinocial, Eclíptica – ou, no texto, o Zodíaco, que não é xv Lynn Thorndike, The Sphere of Sacrobosco and its Commentators, “I – Introduction”, Chicago, The University of Chicago Press, 1949.
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação
exatamente um círculo –, os coluros, o meridiano, o horizonte) e menores (os trópicos e os círculos polares) relevantes. No terceiro, versa sobre como se observam os corpos celestes ascendendo e se pondo no céu, a diferença na duração dos dias e das noites ao longo dos anos nas diferentes regiões da Terra (que ele divide usando as projeções terrestres do equador celeste, dos trópicos, dos círculos polares e dos pólos), e explica a divisão da parte conhecida do mundo nos chamados sete climas. No quarto e último capítulo, Sacrobosco se detém sobre as trajetórias aparentes do Sol e da Lua no céu, explicando os “círculos” que perfazem dentro das respectivas esferas, e seus eclipses.
Acréscimos do tradutor Além de notas ao longo do texto, D. Pedro Nunes acrescenta um capítulo (“Anotação sobre as derradeiras palavras do capítulo dos climas”, uma demonstração geométrica da diminuição progressiva da extensões latitudinais dos climas) ao fim do tratado, uma tradução (reproduzida em parte nas notas ao texto) do começo de uma obra de Purbáquio, outra do primeiro livro da Geografia, de Ptolomeu, e dois textos originais (Tratado em defesa da carta de marear e Tratado sobre certas dúvidas da navegação, xvi sobre a carta de navegação, a determinação da latitude em alto-mar e outros tópicos), com diversas tabelas. Ptolomeu e os textos originais de Nunes, por limitações de espaço e para manter a unidade da edição, não foram incluídos neste volume. Se seus assuntos, embora relacionados, não eram exatamente os interesses originais de Sacrobosco, eles se harmonizam perfeitamente com as intenções de D. Pedro.
O tradutor A vida de D. Pedro Nunes – embora sobre ela também pairem algumas dúvidas – é mais bem conhecida e documentada que a de Sacrobosco. Ele xvi
“O tema deste tratado foi sugerido por dúvidas que Martim de Afonso e Sousa terá compilado durante a sua viagem pelo Hemisfério Sul. Além de homem da corte, este fidalgo estabeleceu ao longo da vida fortes ligações à vida marítima, quer em explorações, quer a nível da administração de territórios”. De Bruno José M. G. Pereira de Almeida, A influência da Obra de Pedro Nunes Na Náutica dos Séculos XVI e XVII – Um estudo de transmissão de conhecimento, Tese de Doutoramento em História e Filosofia das Ciências, Universidade de Lisboa, 2011. A tese de De Almeida é rica em informações sobre as obras de Nunes e sua influência.
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nasceu em Alcácer do Sal, cidade no Distrito de Setúbal, em Portugal, de pais cristãos-novos, em 1502. Estudou na Universidade de Salamanca; graduou-se antes de 1526 em medicina (sua proficiência em matemática e astronomia/ astrologia provavelmente se origina daí); atingindo notoriedade – não se sabe se como médico ou matemático/astrônomo –, foi chamado pelo Rei D. João III de volta a seu país natal. D. João III o encarregou primeiro da educação de seus irmãos mais novos, D. Luís (a quem o Tratado foi dedicado) e D. Henrique (futuramente cardeal e rei), e, finalmente, do neto deste (também futuro rei – governou antes do tio e depois do avô), D. Sebastião. Ensinou, a partir de 1529, Filosofia Moral; a partir de 1530, Lógica, e, a partir de 1531, Metafísica na Universidade de Lisboa. Esta instituição teve uma história atribulada, tendo-se mudado algumas vezes da capital para Coimbra e retornado. Em uma dessas transferências a Coimbra, em 1537, D. Pedro se transfere junto, e lá passa a ensinar matemática (até o ano de 1562). Ensinou navegação a Martim Afonso de Sousa (militar português, governador da Índia e primeiro donatário da Capitania de São Vicente) e João de Castro (também governador e depois vice-rei da Índia). Sua capacidade matemática valeu-lhe o elogio de “gênio matemático supremo” feito por Cristóvão Clávio. O bávaro, ele próprio considerado o maior astrônomo da Europa na sua maturidade, assistiu às aulas de Nunes durante sua estadia na Universidade de Coimbra, tendo sido influenciado pelo português. Foi o inventor do aparelho náutico chamado de “nônio” (cujo nome deriva de Petrus Nonius, latinização de Pedro Nunes), usado para aumentar a precisão do astrolábio; foi o primeiro a descobrir as curvas de rumo, ou “derrotas loxodrômicas” (justamente numa das contribuições originais anexadas à tradução do Tratado): o arco, que espirala na direção dos pólos, feito por um navio que corte todos os meridianos no mesmo ângulo (desde que o ângulo não seja nulo ou reto; neste caso, o navio percorre um grande círculo). Defensor da divulgação do conhecimento científico, publicou suas obras em português, castelhano e latim, sobre aritmética, geometria, astronomia, cartografia e navegação. Em 1547, foi designado como primeiro Cosmógrafo-mor de Portugal, mantendo o cargo até sua morte (havia sido nomeado cosmógrafo do reino
Tradução de D. Pedro Nunes · Apresentação
em 1529). Entre as atribuições deste cargo (de importância compatível com ser responsável pelas navegações de um país a elas voltado) estavam avaliar pilotos, cartógrafos e fabricantes de instrumentos náuticos, a verificação de cartas e instrumentos, e uma “lição de matemática” aos mareantes. Daí se entende que este homem de intensa atividade em diversas áreas quisesse unir as múltiplas facetas de sua vida: a especulação teórica, o ensino científico e a melhoria das técnicas de navegação. Segundo Henrique Leitão, ele avançou um “programa” que “passava por tornar a navegação numa disciplina com bases matemáticas”. xvii O Tratado não era um manual para navegantes – grande parte dos marinheiros da época era analfabeta – mas se inseria nesse projeto geral. Ainda se discute o quanto os esforços de Nunes foram frutíferos, e de que maneira. O que não se discute, porém, é a sua influência no meio científico contemporâneo e posterior, ultrapassando as fronteiras portuguesas e chegando à Espanha, à Itália e mesmo à Inglaterra de John Dee, outro admirador ilustre do cosmógrafo salaciense. Outra coisa indiscutível é a qualidade dos esforços de D. Pedro – e a tradução que aqui discutimos é um ótimo exemplo do alto nível de sua obra. Composto em 1537, o Tratado da Sphera é a primeira publicação de Nunes. D. Pedro não foi o primeiro tradutor do Tractatus ao português. A primeira versão impressa apareceu pela primeira vez em 1510. Era bastante simples, sem comentários, de forma geral bastante fiel ao texto latino, com a particularidade de omitir quase todas as citações de poetas; ela foi republicada em 1914 por Joaquim Bensaude, que adicionou uma introdução. xviii Houve outra, publicada provavelmente em 1910, também anônima, e talvez a tradução de Nunes tenha circulado em manuscrito antes de sua versão impressa. Ele também não foi o último. Por exemplo, João de Castro é o provável autor de uma tradução na forma de perguntas e respostas (O Tratado da Sphaera por Perguntas e Respostas a Modo de Diálogo). Sua tradução e comentários (ou, para usar o vocabulário do cosmógrafo-real, suas “anotações”), por outro lado, ultrapassam em importância todos os seus rivais. xvii
Apud Bruno José M. G. Pereira de Almeida, op. cit.
xviii Nossa fonte inicial de informações foi o blog “The Sphere of Sacrobosco” (https://sacroboscoblog.
wordpress.com/), mantido por Kathleen Crowther.
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O texto que publicamos é obra de um gigante, traduzida e comentada por outro. Espero que tenhamos auxiliado o leitor a compreendê-lo melhor, sem distorcê-lo. Marcos Monteiro Janeiro de 2018
Tratado da Esfera Tractatus de sphaera
Tratado da Esfera com a Teórica do Sol e da Lua,1 e o primeiro livro da Geografia de Cláudio Ptolomeu Alexandrino,2 tirados novamente de latim em linguagem3 pelo Doutor Pedro Nunes, cosmógrafo do Rei Dom João,4 o terceiro deste nome (nosso Senhor)5 e acrescentados de muitas anotações e figuras para que mais facilmente se possam entender. Tem dois tratados que o mesmo doutor fez sobre a carta de marear, nos quais se declaram todas as principais dúvidas da navegação, com as tábuas do movimento do Sol e sua declinação, e o regimento da altura, assim ao meio-dia como nos outros tempos.6
1 D. Pedro não menciona em momento algum quem foi o escritor da Teórica, embora deixe claro que é uma tradução. Seu autor é Georg von Peuerbach (Jorge Purbáquio em português – Purbachius em latim – foi astrônomo, matemático e construtor de instrumentos astronômicos), e faz parte de uma obra maior, intitulada Theoricae novae planetarum (“Novas teóricas dos planetas”). Um comentário de Nunes a essa obra, em latim (In Theoricas Planetarum Georgii Purbachii Annotationes) foi publicado por volta de três décadas depois da publicação desta tradução, em Basiléia. 2 Não consta desta edição. O primeiro Livro da Geografia trata da diferença entre geografia e corografia (descrição de uma região por meio de mapas), dos pressupostos da ciência geográfica, da circunferência da Terra, sobre as fontes do conhecimento geográfico, além de uma crítica à obra do geógrafo grego Marino de Tiro. 3 “Em linguagem”: em vernáculo, ou seja, em português. Como mencionamos na Introdução, D. Pedro não foi o primeiro tradutor do Tractatus. 4 Falamos mais sobre D. Pedro Nunes e sua vida na Introdução. A posição de “Cosmógrafo do Rei” explica sua intenção ao traduzir o Tractatus, a qual era divulgar este conhecimento aos marinheiros, dos quais não se poderia exigir o domínio do latim; daí, portanto, estar “em linguagem”. 5 Dom João III (1502–1557), rei de Portugal e Algarves de 13 de dezembro de 1521 até sua morte, era filho de D. Manuel I e Maria de Aragão. O sucessor de D. João foi seu neto, o lendário D. Se-
Eu, o Rei, faço saber a quantos este meu alvará virem, que eu hei por bem e me apraz que o Doutor Pedro Nunes, meu Cosmógrafo, possa mandar imprimir todas as obras que tem feitas, tanto em latim como em linguagem [vulgar], das Ciências Matemáticas e Cosmografia. As quais obras pessoa alguma poderá imprimir, nem trazer impressas de fora do reino, por tempo de dez anos que começaram da feitura deste, sob pena de cinqüenta cruzados: a metade para o Hospital de Todos os Santos desta cidade de Lisboa,7 e a outra metade para quem os acusar; e mais: perderá todos os volumes que lhe forem achados. Notifico-o assim a todos os meus corregedores, juízes e justiças, oficiais e pessoas a quem o conhecimento disto pertencer, e mando que lhe cumpram, guardem e façam inteiramente cumprir e guardar este alvará como nele se contém, o qual quero que valha e tenha força e vigor, como se fosse Carta por mim assinada e selada do meu selo pendente e passada pela minha chancelaria, sem embargo da ordenação do segundo livro, título XX, que diz que as coisas cujo efeito houver de durar mais de um ano, passem por cartas. Manuel da Costa o fez em Lisboa, 27 de setembro de 1537
bastião, o monarca (provavelmente morto em guerra) que os portugueses acreditavam que voltaria para restaurar a glória do reino. 6 Não constam desta edição. Preferimos deixá-los de fora para manter a unidade do Tratado. Falamos a respeito de ambos, o Tratado em defensa da carta de marear e o Tratado sobre certas dúvidas da navegação, na Introdução. 7 O Hospital de Todos os Santos – mandado construir pelo avô de D. João, D. João II – fora terminado em 1504, funcionando até o Sismo de Lisboa de 1755 tê-lo danificado. Tal hospital nunca chegou a ser reconstruído, tendo sido abandonado e demolido; situava-se onde está hoje está a Praça da Figueira.
Ao sereníssimo e excelentíssimo Príncipe, o Infante Dom Luís8
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iz o bem-aventurado Doutor Santo Agostinho no décimo9 quinto livro que escreveu sobre a Trindade, muito esclarecido e muito excelente Príncipe, que os conceitos e, pela mesma razão, a ciência, não têm própria linguagem,10 porque ciência não é outra coisa senão um conhecimento habituado no entendimento, o qual se adquiriu por demonstração, e demonstração é aquele discurso que nos faz saber.11 E, pois a voz não serve de mais que de explicarmos nossos conceitos por ela, manifestamente se segue que a ciência não tem linguagem e que, por qualquer que seja, se pode dar a entender. E, portanto, se em alguma hora dizemos “isto são termos de ciência”, ou não sabemos ou não olhamos o que falamos.12 A ciência não trata
8 D. Luís de Portugal, Duque de Beja (1506–1555), era irmão do rei D. João III e foi aluno de D. Pedro. Além deles, Nunes teve outros ilustres discípulos da família real: o cardeal-rei Henrique I – irmão mais novo de D. Luís e de D. João III –, o qual assumira o trono português após o desaparecimento de D. Sebastião I, seu sobrinho-bisneto; e o próprio D. Sebastião I, o qual era filho de Manuel e neto de Dom João III. Devido à morte precoce de seu pai, que falecera em razão de diabetes dezoito dias antes de seu nascimento, Dom Sebastião I herdaria o trono de seu avô, D. João III. 9 No texto, “quinto”; corrigido na errata que consta ao final da edição original. 10 “Própria linguagem”: não existe um idioma próprio para a ciência. Aqui, D. Pedro Nunes justifica seus esforços de tradução de um tratado científico do latim – língua franca e idioma usado na discussão científica e na catalogação e transmissão do conhecimento – ao português. Isso não quer dizer que o homem de ciência, conhecido também como Petrus Nonius, tenha escrito e publicado exclusivamente em português. Além de uma obra em castelhano (Libro de algebra en arithmetica y geometria), ele publicou alguns volumes em latim, como De Crepusculis e De Erratis Orontii Finei. Como fica claro pelos acréscimos ao texto original de Sacrobosco (o começo da Geografia de Ptolomeu, e dois tratados sobre “a arte de marear”, ou seja, sobre navegação), a intenção do Cosmógrafo do Rei era trazer esses conhecimentos do mundo teórico para os navios. Essa mudança de foco (do quadrivium para as navegações) pode ser percebida nos comentadores ao longo dos anos e em obras inspiradas em Sacrobosco e/ou sobre o mesmo assunto, como o Tratado de la Esfera y del arte de Marear, de Francisco Faleiro (1535), ou o Imagen del Mundo, sobre la Esfera, Cosmografía y Geografía, Teórica de Planetas, y arte de navegar, de Lorenzo Ferrer Maldonado (1626). Isso reflete, é claro, a mudança geral na visão de mundo européia. 11 Ambas as definições, de “ciência” e “demonstração”, são versões portuguesas de tradicionais definições técnicas em latim da alta escolástica (respectivamente, de scientia e demonstratio), herdadas de Aristóteles e ainda vivíssimas à época de Pedro Nunes, como se vê por esta edição do Tratado. [Nota do Editor; doravante, N. E.] 12 No século seguinte, na Inglaterra, o médico e astrólogo Nicholas Culpeper escreveria sua obra mais conhecida (Culpeper’s Herbal, um catálogo de plantas encontráveis nos quintais e seus efeitos
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das coisas que são somente imaginárias, falsas ou impossíveis, mas das certas e verdadeiras, as quais todas têm nome em qualquer linguagem, por muito bárbara que seja, que certo é que os primeiros escritores em qualquer ciência não foram buscar nomes fora de sua linguagem materna para os porem às coisas de que tratavam. E, pois, de uma linguagem em outra se pode tirar qualquer escritura que não seja de ciência sem se estranhar; não sei entender donde veio tamanho receio de trasladar na linguagem vulgar outra qualquer obra de ciência, senão que os letrados quiseram encarecer isto, por lhes parecer que desta sorte acrescentavam mais em sua autoridade. E, porque o bem, quanto mais comum e universal, tanto é mais excelente, vendo eu que o Tratado da Esfera e Teórica do Sol e da Lua, com o primeiro livro da Geografia de Ptolomeu,13 são aqueles princípios que deve ter qualquer pessoa que em Cosmografia deseja saber alguma coisa, por carecerem disto os que não sabem latim, os tirei em nossa linguagem. Acrescentei-lhe algumas anotações para que mais facilmente se pudessem entender. Pus-lhe ao cabo uns tratados que compus sobre a carta de marear e o regimento da altura, porque não sou tão confiado de minhas coisas que cresse que por si as quereriam ver, e indo nesta companhia alguma hora por acerto se abriria o livro neles. E duvidando muito comigo se dirigiria isto a V. A., a matéria da obra me convidava a fazê-lo, que pois14 V. A. tem tanto primor em Cosmografia, e na parte instrumental, e tem tão alto e tão claro entendimento e imaginação que pode facilmente inventar muitas coisas que os
benéficos à saúde) em vernáculo, mais ou menos pelos mesmos motivos: tornar o conhecimento científico disponível aos leigos. 13 Cláudio Ptolomeu (cerca de 90–160 d.C.), grande sintetizador do conhecimento antigo, escreveu sobre astronomia, astrologia, física, matemática e geografia. Nasceu e provavelmente viveu a vida inteira em Alexandria; escrevia em koiné (dialeto grego falado de cerca de 300 a.C. a 300 d.C., tornado língua franca no período helenístico) e tinha cidadania romana. Entre os diversos tratados que escreveu e que não se perderam, três têm maior importância história e científica: O Tetrabiblos ou Quadripartitum (“Quatro Livros”), sobre astrologia, profundamente influenciado pela filosofia aristotélica; O Almagesto (“O Grande”, de Al-Majisti, em árabe, latinizado Almagestum; o nome original em grego era Tratado Matemático, mas com o tempo passou a ser conhecido como O Grande Tratado) é um tratado de astronomia que explica os movimentos aparentes dos corpos celestes. Ele é anterior ao Tetrabiblos, sendo mencionado neste; A Geografia, conhecida algumas vezes como Cosmografia, é um tratado de geografia e cartografia. Ptolomeu é uma das fontes tanto de Nunes e Sacrobosco quanto de vários dos autores que Sacrobosco utiliza. 14 Isto é, “porque, uma vez que”.
Tradução de D. Pedro Nunes
antigos ignoraram, parece que de direito lhe pertencia. De outra parte, punha-me grande receio ser a obra tão pequena e não haver nela coisa que a V. A. seja nova. Finalmente, considerando que os serviços que se fazem aos príncipes, não se estimam por grandes nem se desprezam por pequenos, senão pelo ânimo com que se fazem, e por ter muita confiança e experiência de sua humanidade, que me quererá relevar este meu atrevimento, lha dediquei para que, levando o título de seu esclarecido nome, pois a obra por si não é, possa ficar ilustre e imortal.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
[Proemium] Tractatum de sphæra quattuor capitulis distinguimus. Dicturi primo, quid sit sphæra, quid eius centrum, quid axis sphæræ, quid sit polus mundi, quot sunt sphæræ, et quæ sit forma mundi. In secundo de circulis ex quibus sphæra materialis componitur et illa supercælestis quæ per istam imaginatur componi intelligitur. In tertio de ortu et occasu signorum, de diversitate dierum et noctium, quæ fit habitantibus in diversis locis, et de divisione climatum. In quarto de circulis et motibus planetarum, et de causis eclipsium.
Capitulum primum Sphæra igitur ab Euclide sic describitur: Sphæra est transitus circumferentiæ dimidii circuli quotiens fixa diametro quousque ad locum suum redeat, circumducitur, id est, sphæra est tale rotundum et solidum quod describitur ab arcu semicirculi circumducto. Sphæra etiam a Theodosio sic describitur: Sphæra est solidum quoddam una superficie contentum, in cuius medio punctus est, a quo omnes lineæ ductæ ad circumferentiam sunt æquales. Et
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
[Proêmio do autor] O Tratado da Esfera se parte em quatro capítulos: no primeiro diremos da composição da esfera, que coisa seja a esfera e o seu centro, que coisa é o eixo da esfera e que coisa é o pólo do mundo, quantas são as esferas e que figura tem o mundo; no segundo diremos dos círculos dos quais a esfera material é composta, pelos quais entendemos a esfera celestial que por esta material imaginamos; no terceiro diremos como nascem e se põem os signos, da diversidade dos dias e noites que há em diferentes lugares e poremos a divisão dos climas; no quarto se dirá dos círculos e movimentos dos planetas e como se causam os eclipses.
Capítulo I Esfera, segundo Euclides,15 é um corpo que se causa16 pelo movimento da circunferência do meio círculo17 levado por derredor até tornar ao seu lugar, estando o diâmetro quedo [parado]. Segundo Teodósio,18 esfera é um corpo maciço19 recolhido debaixo de uma só face,20 e tem no meio um ponto, do qual todas as linhas levadas até a circunferência são iguais; este ponto se chama 15 Euclides de Alexandria, matemático grego (falecido em 285 a.C.), conhecido como o pai da geometria. Sua obra mais conhecida, chamada Elementos, trata de geometria e teoria dos números. Sua apresentação lógica e demonstrativa fez dela um dos textos mais importantes de todos os tempos. “Euclides” (que em grego quer dizer “glorioso” ou “renomado”) pode não ter sido seu nome, mas um epíteto posterior; diversos autores o citam como “O autor dos Elementos”. 16 Isto é, que é produzido, gerado geometricamente. [N. E.] 17 Robertus Anglicus (astrônomo inglês do séc. XIII) complementa que “deve-se notar que há uma diferença entre ‘circunferência’ e ‘círculo’, uma vez que uma circunferência é meramente uma linha curva, mas um círculo é a superfície inteira dentro desta linha. Também há uma diferença entre ‘diâmetro’ e ‘eixo’, pois um diâmetro é de um círculo em um plano e seu nome deriva de dia, que quer dizer ‘dois’, e metros, ‘medida’, mas diz-se que um eixo é de um corpo redondo como uma esfera”. Todas as citações de Anglicus a seguir são traduções deste comentarista, retiradas da edição de Lynn Thorndike. 18 Teodósio de Bitínia, astrônomo e matemático grego (c. 160 a.C.–c. 100 a.C.), escreveu um tratado sobre geometria esférica, conhecido como Esférica, que parece ter sido concebido como um suplemento aos Elementos de Euclides, visando à sua utilização em astronomia. 19 Anglicus: “Em seguida, deve-se notar, com relação à segunda definição, que ‘maciço’ é usado em três sentidos. Em um, ‘maciço’ é considerado a mesma coisa que ‘duro’, e assim a terra é chamada de ‘maciça’. Em outro sentido, ‘maciço’ é o mesmo que ‘contínuo’, e assim todos os elementos e corpos celestes são chamados de ‘maciços’. Em um terceiro sentido, ‘maciço’’ é o mesmo que tridimensional, e, portanto, ‘maciço’ é a mesma coisa que ‘corpo’. Portanto, não é supérfluo dizer ‘Uma esfera é um corpo maciço’”. Thorndike traduz “solidum” por “solid”, enquanto Nunes usa “maciço”. 20 Ou seja, sob uma única superfície.
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ille punctus dicitur centrum sphæræ. Linea vero recta transiens per centrum sphæræ applicans extremitates suas ad circumferentiam ex utraque parte dicitur axis sphæræ; duo quidem puncta axem terminantia dicuntur poli mundi. Sphæra autem dupliciter dividitur secundum substantiam et secundum accidens. Secundum substantiam, in sphæras nouem, scilicet sphæram nonam,
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
centro da esfera.21 A linha direta que passa pelo centro da esfera e toca com os seus cabos a circunferência chama-se eixo da esfera. Os dois pontos que são cabos do eixo são pólos do mundo.22 Duas divisões há na esfera: a primeira é substancial, e a segunda é acidental.23 Substancialmente se divide a esfera em nove esferas:24 na nona, que é o Primum 21 Luís de Camões, o maior poeta da língua portuguesa, muito provavelmente leu o Tratado da Esfera na tradução de D. Pedro Nunes, como provam as diversas passagens dos Lusíadas nas quais o autor usa do simbolismo astronômico/astrológico, em especial no Canto X, no qual a Deusa Tétis exibe uma miniatura da Esfera do Mundo a Vasco da Gama. Nesta e em outras notas, alguns trechos do poema serão transcritos junto das passagens que lhe estão mais intimamente relacionadas. A leitura da obra A Astronomia dos Lusíadas (Luciano Pereira da Silva, Imprensa da Universidade de Coimbra, 1915) esclareceu vários pontos da relação entre Camões e D. Pedro. Sobre a definição de esfera, escreve Camões (Canto X, estrofes 77–78): “(…) Aqui um globo vêm no ar, que o lume/ Claríssimo por ele penetrava,/ De modo que o seu centro está evidente,/ Como a sua superfícia, claramente. Qual a matéria seja não se enxerga,/ Mas enxerga-se bem que está composto/ De vários orbes, que a Divina verga/ Compôs, e um centro a todos só tem posto./ Volvendo, ora se abaxe, agora se erga,/ Nunca s’ ergue ou se abaxa, e um mesmo rosto/ Por toda a parte tem; e em toda a parte/ Começa e acaba, enfim, por divina arte, (…)” Uma versão didática do grande épico de Camões, com muitas notas explicativas e paráfrases em prosa de cada estrofe, foi lançada em 2018 pela Editora Concreta, no selo Coleção Lusitana. 22 Algumas definições que serão importantes mais à frente: Uma esfera é perfeitamente definida pelo seu centro e pelo seu raio (ela é a – ou ela é limitada pela –superfície cujos pontos são eqüidistantes do centro; essa distância entre a superfície da esfera e seu centro é o raio). A intersecção de um plano que corte o centro da esfera com sua superfície é um grande círculo ou círculo maior. Dois círculos maiores que não sejam coincidentes se cortam em dois pontos opostos (ou seja, grandes círculos paralelos são necessariamente coincidentes). Círculos menores (círculos cujo centro não é o centro da esfera) são sempre paralelos a algum círculo maior. Um eixo é uma reta que passe pelo centro da esfera. Os dois pontos opostos nos quais o eixo corta a superfície da esfera são chamados de pólos. O movimento natural, ou próprio, de uma esfera é a revolução, que é a rotação em torno de um eixo. Na revolução, todos os pontos da esfera (exceto os pólos) descrevem círculos paralelos sobre sua superfície. Todos esses círculos têm seus centros no eixo de rotação. O círculo descrito por pontos eqüidistantes dos pólos é um grande círculo. A Esfera do Mundo é uma esfera cujos pólos são o Pólo Norte e o Pólo Sul celestes (que são projeções dos pólos terrestres na esfera celeste). Os pólos definem um grande círculo chamado equador celeste (porque é a projeção do equador terrestre no céu) ou Equinocial (porque o Sol passa por este círculo nos equinócios). Os trópicos e os círculos polares, dos quais se falará mais tarde, são círculos menores paralelos ao equador. 23 Em latim, “secundum substantiam et secundum accidens”, ou seja, segundo a substância ou essência – a divisão da esfera de acordo com suas qualidades essenciais, sua “organização interna” – e segundo o acidente – a divisão da esfera de acordo com a posição do observador (e a ascensão observável do céu no horizonte). A divisão secundum substantiam é a divisão da Esfera do Mundo em esferas concêntricas, cada uma na sua posição imutável, com suas qualidades e movimentos. A divisão secundum accidens é a divisão, como o texto explica mais à frente, em esfera reta (no equador,
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quæ primus motus siue primum mobile dicitur. Et in sphæram stellarum fixarum quæ firmamentum nuncupatur, et in septem sphæras septem planeta-
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
Mobile;25 na esfera das estrelas fixas, que se chama Firmamento;26 e em sete esferas de sete planetas, das quais umas são maiores e outras são menores, segundo a esfera celeste parece surgir sempre num ângulo reto em relação ao horizonte), esfera oblíqua (em qualquer outra latitude, a esfera celeste parece surgir obliquamente) e esfera paralela (nos pólos, a esfera não ascende porque o movimento aparente do céu é ao redor dos pólos; esta divisão não é tratada pelo autor, que julgava os pólos inabitados e inabitáveis). Isso fica mais fácil de se perceber quando lembramos que estar no equador, ou a latitude zero, é a mesma coisa que estar sob o equador celeste. Se ele estivesse desenhado no céu, uma pessoa no equador veria um círculo subindo do horizonte leste perpendicularmente, passando pelo “alto do céu” (zênite: sobre o qual tratamos mais à frente) e chegando ao horizonte do outro lado, dividindo o hemisfério superior (a parte do céu visível “acima da Terra”) em duas metades iguais, uma ao norte e uma ao sul do círculo. O Pólo Norte estaria no ponto norte do horizonte, e o Pólo Sul, no ponto oposto. Alguém estando fora do equador veria essa mesma linha, mas inclinada. Como ela é um círculo de acordo com o movimento da esfera, isso quer dizer que o movimento de revolução do céu está inclinado em relação ao observador. A pessoa veria somente um dos dois pólos. Alguém estando exatamente sob o pólo (Norte ou Sul) veria essa mesma linha coincidindo com o horizonte. Para esta pessoa, a esfera nunca sobe, porque gira em redor do eixo que coincide com a sua posição. No pólo as estrelas fixas têm sempre a mesma altura, e os planetas não surgem exatamente no céu; eles mudam de altura ao longo do ano, contudo num mesmo dia parecem girar em torno da pessoa (é por isso que nos pólos há meses inteiros sem Sol e meses nos quais o Sol está constantemente acima do horizonte). A distinção entre a divisão essencial e acidental é relevante, entre outras coisas, para entender os círculos mais importantes. 24 Anglicus: “Aqui, duas questões dignas de nota podem ser levantadas: a primeira, sobre se as esferas celestiais são contínuas ou contíguas; a segunda, se devemos supor uma nona esfera. Com relação à primeira questão, o raciocínio é o seguinte. Imaginemos uma linha que atravesse a superfície de duas esferas, por exemplo, as de Saturno e Júpiter, e imaginemos um ponto pelo qual esta linha passa na última superfície da esfera de Saturno e outro ponto pelo qual a mesma linha passa na primeira superfície convexa da esfera de Júpiter. Então, aqueles dois pontos ou são o mesmo, ou são diferentes. Não são o mesmo, porque é impossível que um ponto esteja em superfícies diferentes. Se eles estão em pontos diferentes, então, entre dois pontos quaisquer se pode traçar uma linha que os conecte, como mostra a geometria, e em cada linha pode ser construído um triângulo equilátero. Portanto, entre duas superfícies vizinhas, é possível construir um triângulo; donde, estas linhas não são contínuas, porque são contínuas as cujas superfícies externas são a mesma. Além disso, se estas orbes fossem contínuas, eles teriam um limite comum. Portanto, uma vez que as orbes são movidas por movimentos contrários, como será evidente mais à frente, então a mesma coisa seria movida por movimentos contrários, o que é impossível. Por último, se seguiria então que se uma orbe fosse movida pelo mesmo movimento, todas as outras orbes seriam movidas pelo mesmo movimento, o que, apesar disso, sabemos que é impossível.” 25 “Primeiro Móvel”, a esfera mais externa, em contato com o Céu Empíreo (de que Sacrobosco não fala, mas que está incluído em alguns outros tratados). Seu movimento é o movimento “geral” do mundo, em torno dos pólos, à velocidade de uma revolução completa em cerca de 24 horas. Seu movimento é conhecido por “rapto”, por arrastar obrigatoriamente (“violentamente”) as outras esferas. Como dito anteriormente, a idéia de simplicidade era algo que norteava a visão de mundo antiga, a qual orientava sua concepção do universo. O movimento geral das estrelas parecia ser composto, o que violava a idéia de uma esfera em rotação simples. Sacrobosco afirma, ao contrário do que pensava Aristóteles, que o Primum Mobile não é o céu das estrelas fixas (o Firmamento) por esta razão. Pelo mesmo motivo, outros autores postularam (como a
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
rum, quarum quædam sunt maiores quædam minores, secundum quod plus accedunt vel recedunt a firmamento. Unde inter illas sphæra Saturni maxima est. Sphæra vero Lunæ minima, prout in sequenti figuratione continetur.
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
quanto mais se chegam ou se apartam do firmamento.27 E, portanto, a esfera de Saturno é a maior e a da Lua é a menor, como na figura parecerá.
nota de Nunes deixa claro) uma outra esfera entre as duas, a Esfera dos Signos: ela se movimenta em torno de outro eixo (o eixo associado à eclíptica, grande círculo por onde o Sol parece se movimentar ao longo do ano; a ser tratado mais adiante), inclinado 23° em relação ao eixo do Primum Mobile, e seu movimento não só vai no sentido contrário (oeste–leste), como é também extremamente lento, demorando milhares de anos para encerrar sua revolução. Esse problema foi percebido medindo-se a diferença entre a posição das estrelas e das constelações e a posição dos equinócios – ou seja, trata-se do fenômeno astronômico conhecido hoje em dia como precessão dos equinócios, do qual se tem conhecimento desde a Antiguidade. Assim, o Primum Mobile é a décima, e não a nona esfera. Esta é o Céu dos Signos (chamado por alguns autores de “Cristalino” – porque nele estariam as águas superiores ao Firmamento, que seriam cristalinas – e também de Segundo Móvel). A evolução do modelo é bem explicada por Lorenzo Ferrer Maldonado em Imagen del Mundo (tradução do comentarista): “Aristóteles e os astrólogos de seu tempo disseram ser a Máquina Celeste composta por oito ciclos, fazendo da oitava esfera o movedor violento das outras esferas inferiores, chamando-se Primeiro Móvel; mas Alfragano, Tebith [Al-Sabi Thabit ibn Qurrah al-Harrani, astrônomo, médico, matemático e tradutor de origem árabe sabiana, nascido em Harran, Assíria, no que hoje é a Turquia, e que, como Alfraganus, serviu à Dinastia Abássida na corte em Bagdá] e João de Sacrobosco disseram serem nove os Céus, seguindo a opinião de Ptolomeu, o qual percebeu na oitava esfera dois movimentos, por onde disse ser impossível e incompatível que em um corpo pudesse haver dois movimentos distintos, e que, de necessidade, aqueles haviam de ser dois orbes ou céus. O Rei D. Afonso [Afonso X, o Sábio, rei de Castela, Leão e Galícia, promoveu a tradução e o estudo de diversas obras astrológicas na sua corte], George Pubachio [Georg von Peuerbach, astrônomo vienense do século XV. Alguns de seus textos foram traduzidos ao português por D. Pedro Nunes; v. nota 1 supra] e João de Monte Regio [Johannes Müller von Könisberg, matemático, astrólogo, cosmógrafo e bispo alemão conhecido postumamente como Regiomontanus] põem, sobre estas nove esferas, outra – chamando-a Primeiro Móvel –, a qual descobriram que se move em um movimento diurno regularíssimo, único e simplíssimo, de 24 horas; e à nona esfera chamaram o Segundo Móvel, obtido pelo seguinte motivo: perceberam que a oitava esfera possuía três movimentos, de onde imaginaram outros dois céus sobre ela. Um destes movimentos é o que se perfaz do Oriente ao Poente, no espaço de 24 horas sobre os pólos do mundo. O segundo é o que se perfaz sobre os pólos do Zodíaco, pelo espaço de 49 mil anos, partindo do Ocidente ao Oriente. E o outro movimento é o que chamam de trepidação, que se faz de um pólo [da Equinocial] a outro, pelo espaço de sete mil anos sobre pólos particulares. Este céu é chamado firmamento”. 26 Ele é chamado de Firmamento por causa dos seguintes trechos do Gênesis 1,6–8, “Deus disse: ‘Faça-se um firmamento entre as águas, separando umas das outras’. E Deus fez o firmamento. Separou as águas que estão debaixo do firmamento das águas que estão por cima do firmamento. E assim se fez. Ao firmamento Deus chamou ‘céu’. Fez-se tarde e veio a manhã: o segundo dia” e 1,14–19, “Deus disse: ‘Façam-se luzeiros no firmamento do céu para separar o dia da noite. Que sirvam de sinal para marcar as festas, os dias e os anos. E, como luzeiros no firmamento do céu, sirvam para iluminar a terra’. E assim se fez. Deus fez os dois grandes luzeiros: o luzeiro maior para governar ao dia e o luzeiro menor para presidir à noite, e as estrelas. Deus os colocou no firmamento do céu para iluminar a terra, governar o dia e a noite e separar a luz das trevas. E Deus viu que era bom. Fez-se tarde e veio a manhã: o quarto dia.” Como mencionamos antes, esses trechos deram origem ao nome da esfera superior de Cristalino, porque seria o céu das “águas que estão por cima do firmamento”.
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
Além disso, a comparação com o primeiro versículo do Gênesis (“No princípio Deus criou o céu e a terra”) nos faz concluir que “céu” tem dois sentidos diferentes aqui: o criado no primeiro dia é o Empíreo (e “terra” é a Criação inteira, ou a “possibilidade da Criação”); o criado no segundo dia, o Firmamento, é parte da Criação (parte da “terra” criada “no princípio”). Essa é também a interpretação que S. Agostinho (Confissões, Livro XII) dá ao início do Gênesis: Capítulo II: “Mas, comparado com esse céu do céu, o céu da nossa terra também não passa de terra”. Capítulo XIII: “‘No princípio criou Deus o céu e a terra. A terra era invisível e informe, e as trevas se estendiam sobre o abismo’. Ouço estas palavras, meu Deus, e não encontrando menção do dia em que criaste essas coisas, concluo dessa omissão que se trata do céu do céu, do céu intelectual, onde a inteligência conhece simultaneamente e não por partes. (…) Dessas realidades, uma de forma acabada desde o início, a outra absolutamente informe, o céu, isto é: o céu do céu, e a terra, isto é: terra invisível e informe, é bem a propósito delas que tua Escritura diz, sem mencionar o dia: ‘No princípio criou Deus o céu e a terra’. E acrescenta imediatamente de que terra se trata. E, indicando que no segundo dia foi criado o firmamento, que foi chamado de céu, dá a entender também de que céu falara antes, sem precisar o dia.” O movimento dessa esfera é entre os pólos do Primum Mobile, o que também representou problemas conceituais (porque essa esfera parecia não ter um pólo estático). 27 Camões, depois de apresentar o Céu Empíreo (Canto X, estrofes 81–84), trata das demais esferas (Canto X, estrofes 85–90; as explicações em colchetes são do comentarista): “Enfim que o Sumo Deus, que por segundas/ Causas obra no Mundo, tudo manda. [Porque a Causa Primeira é Deus, não as esferas]/ E tornando a contar-te das profundas/ Obras da Mão Divina veneranda,/ Debaxo deste círculo onde as mundas/ Almas divinas gozam, que não anda, [Ou seja, debaixo do Empíreo, que é imóvel]/ Outro corre, tão leve e tão ligeiro/ Que não se enxerga: é o Móbile primeiro. [O Primum Mobile, primeiro móvel, é a esfera mais veloz de todas] “Com este rapto e grande movimento/ Vão todos os que dentro tem no seio;/ Por obra deste, o Sol, andando a tento,/ O dia e noite faz, com curso alheio. [Curso alheio: O Sol faz o dia e a noite pelo movimento, o rapto, do primeiro móvel, não por seu próprio movimento]/ Debaxo deste leve, anda outro lento,/ Tão lento e sojugado a duro freio,/ Que enquanto Febo, de luz nunca escasso,/ Duzentos cursos faz, dá ele um passo. [Debaixo do Primeiro Móvel está o Cristalino, Céu dos Signos, que anda 1 grau a cada 200 anos – um ano é um curso de Febo, ou seja, um ciclo inteiro do movimento próprio do Sol –, como explica D. Pedro Nunes em uma das suas notas]. “Olha estoutro debaxo, que esmaltado/ De corpos lisos anda e radiantes,/ Que também nele tem curso ordenado/ E nos seus axes correm cintilantes. [O Firmamento, ou céu das estrelas, tem corpos lisos e radiantes, que correm cintilantes nos seus eixos]/ Bem vês como se veste e faz ornado/ C’o largo Cinto d’ ouro, que estelantes/ Animais doze traz afigurados,/ Apousentos de Febo limitados. [As constelações zodiacais, os aposentos de Febo visíveis. Não se trata dos signos, divisões ideais do Zodíaco, que estão no céu anterior. Mas – D. Pedro e outros autores também o fazem – Camões considera o grupo das constelações zodiacais como um outro Zodíaco, ou cinto. E este é de ouro, porque é feito de estrelas; o Zodíaco stricto sensu é invisível] “Olha por outras partes a pintura/ Que as Estrelas fulgentes vão fazendo:/ Olha a Carreta, atenta a Cinosura,/ Andrômeda e seu pai, e o Drago horrendo;/ Vê de Cassiopéia a formosura/ E do Oriente o gesto turbulento;/ Olha o Cisne morrendo que suspira,/ A Lebre e os Cães, a Nau e a doce Lira. [Camões menciona as constelações fora do Zodíaco. A Carreta é Auriga, o Cocheiro; Cinosura, a Ursa Menor; Orionte é Órion] “Debaxo deste grande Firmamento, [Ele menciona agora as sete esferas planetárias]/ Vês o céu de Saturno, Deus antigo;/ Júpiter logo faz o movimento,/ E Marte abaxo, bélico inimigo;/ O claro Olho
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Secundum accidens autem dividitur in sphæram rectam et obliquam. Illi enim dicuntur habere sphæram rectam, qui manent sub æquinoctiali, si ali-
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I Chamam-se fixas porque estão sempre a uma mesma distância de nós por estarem todas em um só céu, que é o oitavo, o qual por razão delas se chama firmamento; e se nos amostram estas estrelas sempre por umas mesmas figuras e guardam o mesmo sítio, as quais coisas não há nos planetas. E segundo a comum escola dos astrólogos, a nona esfera não é o primum mobile, mas o segundo, e o décimo é o primeiro, e nestes dois céus de cima não há estrelas, e portanto, não se compreende pelos sentidos, senão por razão, porque experimentamos os seus movimentos na oitava, que não são próprios a ela.28 [Nota do Tradutor; doravante, N. T.]
Divide-se a esfera acidentalmente em esfera direta e oblíqua. Esfera direta têm os que vivem debaixo da Equinocial,29 se alguém aí pode habitar.30 E do céu, no quarto assento,/ E Vénus, que os amores traz consigo;/ Mercúrio, de eloqüência soberana;/ Com três rostos, debaxo vai Diana. [Três rostos porque a Lua tem quatro fases, mas numa delas – a Lua Nova – ela não está visível] “Em todos estes orbes, diferente/ Curso verás, nuns grave e noutros leve;/ Ora fogem do Centro longamente,/ Ora da Terra estão caminho breve, [Ou seja, às vezes estão mais próximos da Terra, às vezes mais longe. Cada esfera planetária é concêntrica à Esfera do Mundo, mas contém em si céus excêntricos, dentro dos quais os planetas se movem, e que explicam as mudanças de velocidade – em alguns casos, de sentido aparente – e de distância da Terra]/ Bem como quis o Padre omnipotente,/ Que o fogo fez e o ar, o vento e neve,/ Os quais verás que jazem mais a dentro/ E tem c’o Mar a Terra por seu centro. [Ou seja, as esferas elementares são ordenadas de acordo com a sutileza dos elementos, com o fogo na esfera mais externa, por baixo dele o ar, e a terra e a água no centro]” 28 “Estrelas fixas” são o que hoje em dia chamamos (à exceção do Sol) estrelas. Os “planetas” (entre os quais, como se verá, incluem-se o Sol e a Lua) são as estrelas errantes, porque, além do movimento geral do céu (Leste–Oeste), eles também se movem na direção Oeste–Leste. Falaremos mais delas quando o texto mencionar a oitava esfera. “…porque estão sempre a uma mesma distância de nós”: os planetas, segundo o modelo descrito por Sacrobosco, também estão, cada um deles, na própria esfera ou céu, mas – como fica evidente na Teórica do Sol e da Lua – não estão sempre a uma mesma distância de nós. As estrelas “fixas”, por outro lado, estão “em um só céu, que é o oitavo, o qual por razão delas se chama firmamento”. D. Pedro ainda acrescenta que elas “se nos amostram […] sempre por umas mesmas figuras” – ou seja, ficam na mesma posição umas em relação às outras, mantendo o desenho geral das constelações, o que não é estritamente verdade. As estrelas se movem em relação umas às outras (o que faz com que o desenho geral das constelações mude ao longo dos milênios), porém, de forma muito lenta. O movimento do céu das estrelas (ou seja, o movimento aparente das estrelas em bloco) também não acompanha perfeitamente o movimento aparente geral do céu (o “movimento do Primum Mobile”), o que levou vários autores, incluindo Nunes, a postular um céu a mais. V. nota 25 supra. 29 Como dito anteriormente, Equinocial é o equador celeste (o grande círculo associado aos pólos e, portanto, ao eixo sobre o qual o Primum Mobile se move e arrasta as esferas inferiores). Ele é chamado de Equinocial porque o Sol, no seu movimento aparente pelo céu, corta-o duas vezes ao ano. Em uma delas, quando vai do Hemisfério Sul para o Hemisfério Norte celeste; o ponto em que ele o cruza é chamado de “Ponto de Áries” e marca o equinócio da primavera no Hemisfério Norte (e o do outono no Hemisfério Sul); na outra, quando faz o caminho oposto (do Norte para o Sul); esse ponto, oposto ao ponto de Áries, é o ponto de Libra, que marca o equinócio do outono no Hemisfério Norte (e o da primavera no Sul).
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Tratado da Esfera · João de Sacrobosco
quis [ibi] manere possit. Et dicitur recta, quoniam neuter polorum magis altero illis eleuatur. Vel quoniam illorum horizon intersecat æquinoctialem et intersecatur ab eodem ad angulos rectos sphærales. Illi vero dicuntur habere sphæram obliquam quicumque habitant circa æquinoctialem vel ultra. Illis enim supra horizontem alter polorum semper elevatur, reliquus vero semper deprimitur. Vel quoniam illorum horizon artificialis intersecat æquinoctialem et intersecatur ab eodem ad angulos impares et obliquos.
[Quae forma sit mundi] Universalis autem mundi machina in duo dividitur, in ætheream scilicet et elementarem regionem. Elementaris quidem alterationi continuæ pervia existens in quattuor dividitur. Est enim terra tamquam mundi centrum in medio omnium sita, circa quam aqua, circa aquam aër: circa aërem ignis illic purus et
Tradução de D. Pedro Nunes · Capítulo I
chama-se esfera direta porque a estes nenhum dos pólos mais que a outro se levanta, ou porque o seu horizonte e a Equinocial se cortam por ângulos diretos esferais.31 Esfera oblíqua têm todos os que vivem fora da Equinocial para uma parte ou para outra, e chama-se oblíqua porque os tais sempre têm um dos pólos em cima do horizonte e o outro debaixo, ou porque o seu horizonte e a Equinocial se cortam por ângulos desiguais e oblíquos.32
[De que forma é o mundo] A universal máquina do mundo33 se divide em duas partes: celestial34 e elemental.35 A parte elemental é sujeita à contínua alteração e divide-se em quatro: Terra, a qual está como centro do mundo, no meio assentada; segue-se logo a Água;36 e por derredor dela o Ar, e logo o Fogo puro, que chega ao
Ou seja: o Sol só está na Equinocial durante os equinócios. Estar “debaixo da Equinocial” é estar no equador (terrestre: a 0º de latitude). 30 A Zona Equatorial era considerada inóspita, quente demais para comportar a vida. Nunes, obviamente, já sabia que isso não era verdade. 31 Isto é, ângulos retos, perpendiculares, mas medidos sobre a esfera. 32 Sacrobosco e Nunes não mencionam a terceira possibilidade, que é de alguém se encontrar em um dos pólos; v. nota 23 supra. 33 A Esfera do Mundo em sua totalidade; a Criação. 34 Ou “etérea”: das esferas que não são compostas dos quatro elementos e, portanto, não estão sujeitas à geração ou à corrupção. 35 Compostas pelos quatro elementos do mundo antigo: A terra, fria e seca; a água, fria e úmida; o ar, quente e úmido; e o fogo, quente e seco. As qualidades essenciais (frio, calor, secura e umidade) não são a mesma coisa que as qualidades comuns de mesmo nome. Umidade, aqui, não é quantidade de água, e poderia ser melhor definida como “maleabilidade”; enquanto secura, a qualidade contrária, é “resistência”. Calor é “expansão”, e frio é “permanência”. Há uma graduação de peso e de sutileza entre elas: a terra é o mais pesado; a água é mais leve que a terra, tendendo ambas, porém, a descer; o ar e o fogo tendem a subir; sendo o fogo, por fim, mais leve que o ar. 36 As esferas seriam ordenadas de acordo com a diferença de sutileza dos elementos – do mais grosseiro (terra) ao mais sutil (fogo). Isso obviamente contraria a experiência: a terra não é uma esfera perfeita cercada por uma esfera de água, ambas envolvidas por uma esfera de ar. Autores diferentes resolveram esse “problema” de formas diferentes. Francisco Faleiro, por exemplo, diz que há quatro elementos, mas apenas três esferas: a do fogo, a do ar, e a da água/terra. Outros postularam que as esferas da água e da terra eram excêntricas (o que faria com que parte da terra não fosse coberta pela água).
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