Opúsculos sobre a Natureza - S. Tomás de Aquino - TRECHO GRÁTIS

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OpĂşsculos sobre a Natureza



Santo Tomás de Aquino

Opúsculos sobre a Natureza Edição bilíngüe

Tradução:

Luiz Astorga


Opúsculos sobre a Natureza, Santo Tomás de Aquino © Editora Concreta, 2017 Títulos originais: · De principiis naturae · De mixtione elementorum · De operationibus occultis · De motu cordis Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Sidney Silveira Tradução: Luiz Astorga Revisão: Emílio Costaguá Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz

Ficha Catalográfica Tomás de Aquino, Santo, 1225?-1274 T655o Opúsculos sobre a Natureza [ed. eletrônica] / tradução de Luiz Astorga, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017. 120p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-27-5 1. Ciência. 2. História da ciência. 3. Filosofia. 4. Filosofia medieval. 5. Metafisica. 6. Cristianismo. 7. Catolicismo. I. Título. CDD-509.4

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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C ol eç ão Esc ol á s t ic a

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oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus. O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes. Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.


Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto. Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados. No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos. Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica. Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento. Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro. Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica


Sumário

Apresentação   9 Sobre os Princípios da Natureza Sobre a Mistura dos Elementos Sobre as Operações Ocultas da Natureza Sobre o Movimento do Coração O horizonte metafísico da natureza

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OPÚSCULOS SOBRE A NATUREZA Sobre os Princípios da Natureza  21 Capítulo primeiro  23 Capítulo segundo  27 Capítulo terceiro  35 Capítulo quarto  41 Capítulo quinto  49 Capítulo sexto  53

Sobre a Mistura dos Elementos  59


Sobre as Operações Ocultas da Natureza  71 Sobre o Movimento do Coração  93 Bibliografia citada  109 S. Thomae de Aquino Opera Omnia  111


Apresentação

Natureza e entidade segundo S. Tomás de Aquino SIDNEY SILVEIRA

N

uma época pouco afeiçoada à precisão conceptual, em que – o mais das vezes – as palavras são usadas pelos filósofos de maneira anfibiológica, descuidada, equívoca, nada como apresentar ao público autores escolásticos, sempre ciosos em não deixar margem a dúvidas no tocante à argumentação que dá suporte a suas teses. No caso de S. Tomás de Aquino, o rigor metodológico atinge um padrão verdadeiramente admirável, a começar por seu extremo cuidado em definir os termos e os conceitos com meridiana clareza, nas mais diferentes áreas do saber. Seja na metafísica, seja na gnosiologia, seja na moral, seja na psicologia, o Aquinate como que pega o leitor pela mão, apontando-lhe as fontes das quais se vale, indicando-lhe o sentido em que cada termo é usado, sempre tendo em vista que argumentar é o modo próprio de a inteligência humana proceder, e é por meio de argumentos que se põe de manifesto a verdade da coisa à qual se aplicam. “(...) per argumentum veritas manifestatur eius ad quod inducitur argumentum”. i Em se tratando do Doutor Angélico, em geral são argumentos primorosos, pequenas obras-primas por cujo interi

Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol., IIa-IIae, q. 4, art. 1.


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médio é possível à criatura dotada de inteligência dar testemunho noético da realidade à qual chamamos ser. Este apuro de Santo Tomás quanto ao modo de apresentar os problemas – sejam filosóficos, sejam teológicos – perpassa os quatro opúsculos sobre a natureza constantes do volume que o leitor tem em mãos: De principiis naturae, De mixtione elementorum, De operationibus occultis naturae e De motu cordis. Ver-se-ão, aqui, os mais importantes vetores relacionados a tão dificultoso tema metafísico: o modo de ser dos princípios integrantes da natureza (matéria, forma e privação); a matéria como receptáculo da forma; a materia prima como ser real-potencial; a função dos elementos nos entes compostos de matéria e forma; os conceitos de causalidade próxima e remota; a distinção entre matéria e corpo; a forma como limite de operação dos entes; a atuação das criaturas espirituais (anjos e demônios) sobre os objetos; analogias entre o modo de operar do coração humano e o cosmos; o influxo causal das esferas celestes sobre os corpos deste mundo; se “vida” e “alma” são conceitos unívocos; etc. Nestas pequenas obras, as mais importantes fontes do Doutor Comum – quer expressas, quer pressupostas – são as seguintes: Aristóteles, Platão, Boécio, Santo Alberto Magno, São Boaventura, Avicena, Averróis, Algazel, Alfredo de Sareshel, Temístio, Moisés Maimônides e Alexandre de Hales. Para aferi-las valemo-nos sobretudo do tomo 43 da Edição Leonina, no qual estes quatro opúsculos estão detidamente apresentados e a crítica textual chega a minúcias concernentes a divergências entre os manuscritos, como também às fontes, diretas ou indiretas, das teses apresentadas por S. Tomás. Contemplados em conjunto, esses textos impressionam pela densidade filosófica e pela extraordinária concisão, virtude praticada pelo Boi Mudo da Sicília ao longo da sua trajetória como Magister in Sacra Pagina, como comentador de Aristóteles e, por fim, como autor de inúmeros tratados filosófico-teológicos que são um divisor de águas na história do pensamento humano. Antes de aludirmos propriamente aos opúsculos, vale mencionar que, em seu comentário à Metafísica de Aristóteles, ii S. Tomás apresenta seis significados principais para o termo “natureza”, os quais expomos a seguir com as nossas palavras: • em sentido mais amplo, natureza é a própria geração dos viventes – sejam vegetais, sejam animais; ii

Cf. Santo Tomás de Aquino, Sententia libri Metaphysicae, V, 1, lec. 5.


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• natureza é o princípio intrínseco da geração, imanente ao ente gerado; • natureza é o princípio intrínseco do movimento que integra a essência do ente natural; • natureza é o princípio material do devir nos entes compostos de matéria e forma (no caso da materia prima, que é mera potência, pode-se dizer o seguinte: ela é natural como princípio geral do ser e do devir das coisas compostas de matéria e forma); iii • natureza é o sínolo, o composto de matéria e forma; • natureza é toda e qualquer substância. Entre os termos acima mencionados, o mais pertinente para expressar o conceito de natureza, de acordo com S. Tomás, é o de “substância” – entendida como a forma de qualquer coisa que tenha em si mesma o princípio do seu operar. Primo et proprie natura dicitur substantia. iv É evidente que, nesta proposição, o Aquinate tem em mente o complexo arcabouço da metafísica aristotélica de cujas límpidas fontes bebeu, mas não percamos de vista as diferenças marcantes entre o Estagirita e o grande autor medieval, sobretudo na concepção deste último de natureza como arte divina. v Neste tópico, Tomás vai muito além da forma (morphé) como primado ontológico da natureza (physis). No tema ora em foco, com Aristóteles estamos diante de uma insanável aporia, pela circunstância de a natureza aprisionar-se em sua própria ação imanente, visto que, na doutrina do filósofo grego, nenhuma das operações do ente natural se dirige a uma ordem supranatural: a finalidade última da natureza, tanto interna (manifestada no interior dos seres vivos), quanto externa (manifestada na ordem do cosmos), acaba por conceber-se como tendência inconsciente a alguns fins, o que não se pode sustentar à luz dos princípios de ato e potência estatuídos pelo Estagirita, conforme salienta Ross. vi Com S. Tomás damos um enorme iii Como para o Aquinate existem entes em cuja forma não há composição de matéria – são as chamadas substâncias separadas –, às vezes somos forçados a repetir, numa mesma frase ou período, a expressão “entes compostos de matéria e forma”, em lugar de assinalar apenas “entes compostos”. A propósito, na instância da realidade situada para além da matéria, os entes têm composição de ato e potência, substância e acidentes e essência e ser. iv Cf. Santo Tomás de Aquino, Sententia libri Metaphysicae, V, 1, lec. 5, n. 19. v “(...) é evidente que a natureza não é outra coisa senão certa arte divina, interior às próprias coisas, pela qual estas se movem a determinado fim” [“Unde patet quod natura nihil est aliud quam ratio cuiusdam artis, scilicet divinae, indita rebus, qua ipsae res moventur ad finem determinatum”]. Cf. Santo Tomás de Aquino, In Comentaria in octo libros Physicorum, I, 2-2, Lec. 14. vi Sir Ross é enfático ao referir-se à aporia aristotélica aqui mencionada. “The notion of unsconcious teleology is, it is true, unsatisfactory”. William David Ross, Aristotle, Nova York, Taylor and Francis

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passo à frente devido ao conceito de criação, vínculo sem o qual a existência dos entes pode considerar-se nada menos que uma absurdidade metafísica, pois, em sua radical precariedade, os entes não têm potência para dar o ser a si próprios. Os entes clamam pelo ser; a natureza exige o sobrenatural. vii

Sobre os princípios da natureza Quanto à autenticidade do opúsculo De principiis naturae, não há dúvida entre os catalogadores da obra de S. Tomás. viii Com relação à data de sua composição, porém, há discrepâncias: Mandonnet a situa no ano de 1255, ix ao passo que Pauson x crê ter sido composta entre 1252, quando o Aquinate ministrou cursos na Universidade de Paris na condição de Bacharel Bíblico, e 1254, quando foi promovido a Bacharel Sentenciário. xi A dedicatória ao “irmão Silvestre” prova ser este um dos incontáveis textos do Doutor Angélico redigidos para atender a consultas. O tratado é uma exposição compendiada das mais relevantes teses aristotélicas arroladas nos livros I e II da Física, sob a luz dos comentários de Avicena e Averróis. Seja como for, diga-se que a principal fonte de consulta da qual se valeu S. Tomás para compor esta obra foi a Metafísica de Averróis – não obstante Avicena e Boécio ocuparem nela lugar de destaque, conforme aponta Estébanez. xii O fato é que Group, 2005, p. 192. vii “(...) tudo o que é imperfeito em algum gênero nasce daquilo que primeira e perfeitamente se encontra na natureza do gênero, como consta do calor nas coisas que são esquentadas pelo fogo. Pois muito bem: como qualquer coisa e tudo o que há nela participa de alguma maneira do ser e possui mescla de imperfeição, é necessário que a coisa, de acordo com tudo o que há nela, provenha do Ente primeiro e perfeito. E a isto chamamos criar, ou seja, produzir a coisa no ser segundo toda a sua substância” (producere rem in esse secundum totam suam substantiam)”. Santo Tomás de Aquino, II, Sent., d. 1., Art. 2 viii A Edição Leonina frisa que os Opuscula Thomae catalogados desde os séculos XIII e XIV incluem o tratado De principiis naturae e o dão por autêntico. Cf. Edição Leonina, Sancti Thomae de Aquino, Opera Omnia iussu Leonis XIII P. M. edita, Tomus XLIII, p. 5. ix Cf. Pierre Mandonnet, “Chronologie sommaire de la vie et des écrits de Saint Thomas” in Revue des sc. phylos. et théol., 9, Paris, 1920, p. 152. x Cf. J. J. Pauson, Saint Thomas Aquinas: De principiis naturae, Friburg, Societé Phylosophique, 1950. xi Ao Bacharel Bíblico cabia ler a Sagrada Escritura; ao Bacharel Sentenciário, as Sentenças de Pedro Lombardo, obra de currículo obrigatório para qualquer aspirante a teólogo no século XIII. Sobre a estrutura acadêmica nas universidades medievais, ver Celina A. Lértora Mendoza, “El concepto y la clasificación de la ciencia en el Medioevo”, in Luiz Alberto De Boni (org.), A ciência e a organização dos saberes na Idade Média, Porto Alegre, 2000, edipucrs, pp. 71-2. xii Emilio García Estébanez, Los princípios de la naturaleza (tradución, introducción y notas), in Santo Tomás de Aquino, Opúsculos y cuestiones selectas, Tomo I, Madrid, 2001, Biblioteca de Au-


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o escrito tem as inconfundíveis digitais do Aquinate, cuja sabedoria prática consistia em aproveitar verdades descobertas por outros filósofos e reuni-las numa síntese magistral, de autoria inequivocamente sua. A classificação dos princípios da natureza como intrínsecos e extrínsecos dá ao tratado a sua clave de leitura: • são princípios intrínsecos – a reboque dos conceitos de ato e potência – a matéria, a forma e a privação. A materia prima, por sua vez, não deixa de ter certo caráter de princípio, porque, como destaca S. Tomás, “embora (...) não possua em sua natureza nenhuma forma ou privação (assim como na razão de ‘bronze’ não há nem o figurado, nem o desfigurado), nunca está (...) despida de forma e privação”. xiii • são princípios extrínsecos as causas eficiente e final, sem as quais não poderia haver geração, visto que a natureza não pode ser autocausada nem pode ter como finalidade a si mesma. O leitor verá como S. Tomás distingue princípios de causas, sem deixar de lembrar-nos que Aristóteles, no livro II da Física, xiv já havia apontado quatro causas e três princípios, indicando não se tratar de termos unívocos. Mas não nos antecipemos; o texto do Angélico e as notas que o acompanham esclarecerão a dimensão deste magno problema filosófico abordado por frei Tomás.

Sobre a mistura dos elementos A autenticidade deste opúsculo é segura. Sem exceção, atestam-na quase todos os catalogadores, dos mais antigos aos modernos, conforme frisa a

tores Cristianos (B.A.C.), p. 4. xiii V. p. 35 desta edição. A forma à qual alude S. Tomás é a de um ser cuja realidade consiste em ser mera potência. Nas abalizadas palavras de Manser, trata-se de um ser real-potencial. Cf. Gallus Maria Manser, La esencia del tomismo, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas (Instituto Luis Vives), 1953, pp. 705-725. Não confundamos esta tese da escola tomista com a doutrina da materia prima como portadora de alguma atualidade – ao modo de Francisco Suárez –, pois o Aquinate é apaixonado na defesa da pura potencialidade da materia prima. A omnipotência passiva da materia prima distingue-se do nada absoluto porque este, por definição, não tem potências que possam transitar a qualquer ato que seja. Há, pois, um plano da realidade situado entre o “nada” e o “ser”: seu nome é materia prima; sua essência consiste em ser potência (“Materia prima est in potentia ad actum sustancialem, qui est forma; et ideo ipsa potentia est ipsa essentia eius”. Santo Tomás de Aquino, Quaestio Disputata de Anima, art. 12, ad. 12. xiv Cf. Aristóteles, Física, II, 3.

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Edição Leonina. xv Quanto à data em que foi escrito, Mandonnet estima o ano de 1273, xvi e isto coloca o De mixtione elementorum no rescaldo de uma batalha filosófica que resultara, em 1270, na condenação, por parte da autoridade da Igreja, xvii de 13 teses de cunho averroísta defendidas na Faculdade de Artes da Universidade de Paris. A propósito, Laureano Robles frisa – com justificados argumentos – que este texto de S. Tomás de Aquino tem razão de ser apenas no contexto da polêmica contra o averroísmo. xviii A leitura atenta do opúsculo sugere-nos que o destinatário Filipe de Castro Caeli era médico, o que nos indica a clave hermenêutica de leitura: antropologia, e não química – como a princípio poderia parecer. xix Em linhas gerais, a forma substancial difere da acidental devido a que esta última não dá o ser xx em sentido absoluto (simpliciter), mas apenas em certo sentido (secundum quid). Quando no composto sobrevém uma forma acidental, não devemos falar de formação ou geração, e sim de recepção desta ou daquela modalidade de ser, sem que o ente altere a sua essência. Por sua vez, a forma substancial dá o ser simpliciter, e neste sentido escreve S. Tomás, em diferentes obras, que o movimento, em sua acepção genuinamente metafísica, culmina na aquisição de uma nova forma (geração) e conseqüente perda da antiga (corrupção). Até este ponto, não havia significativas divergências entre os mestres do século XIII. Mas ocorre o seguinte: no homem existe uma só forma substancial, à qual chamamos alma intelectiva, e esta contém e abarca virtualmente a alma sensitiva e a alma vegetativa, entendidas não como formas superpostas no ente humano, xxi e sim como potências subordinadas ao todo em ordem do qual xv

Op. cit., Tomus XLIII, p. 135. Apenas três catalogadores antigos ignoram este opúsculo: Guilherme de Tocco, Pedro Roger (que veio a tornar-se o Papa Clemente VI) e Felipe de Castrocelo (que fora colega de estudos de Santo Tomás na Universidade de Paris). xvi Cf. Pierre Mandonnet, Bibliographie thomiste, Paris, J. Vrin, 1921, n. 16. xvii No caso, trata-se do bispo de Paris, Éttiene Tempier (?-1279). xviii Cf. Laureano Robles Carcedo, Tomás de Aquino, Salamanca, Ediciones Universidad de Salamanca, 1992, p. 64. xix Op. cit., p. 61. xx É clássico o axioma escolástico forma dat esse, que podemos entender de maneira simples: a forma dá o ser ao composto, ou seja, é graças à organização sistêmica da matéria pela forma que um ente é o que é; que tem esta ou aquela essência. xxi Uma das teses contra a qual S. Tomás se bateu com maior veemência – e que era defendida por grande parte dos mestres da Universidade de Paris – era a da pluralidade de formas. Ainda hoje, a sua vitória impressiona tanto na perspectiva filosófica, pela maneira como derrotou dialeticamente os seus adversários, quanto na perspectiva moral, pela coragem com que, sendo voz quase isolada, manteve firme posição para defender a verdade. Hoje, mais de 700 anos depois, nenhum metafísico


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atuam. xxii Na obra De mixtione elementorum, esta tese de S. Tomás está formulada no contexto da polêmica que manteve – e venceu, com sobras – contra os averroístas, embora não possamos afirmar com certeza que o mestre Filipe de Castrocelo fosse um averroísta convicto. xxiii Contemplado num horizonte mais amplo, este opúsculo deve ser lido à luz do seguinte princípio, caro a S. Tomás: “Ultima intentio naturae est ad speciem, non autem ad individuum, neque ad genus: quia forma est finis generationis (...)”. xxiv Em suma, é no horizonte da espécie, e não no do indivíduo ou do gênero, que a natureza atua de maneira mais direta. Sendo assim, os elementos de um composto de matéria e forma devem ser contemplados, em qualquer mistura, como entitativamente subordinados ao todo a que se ordenam. Eles possuem estatuto de entes, sem dúvida alguma, e as qualidades das quais são portadores são reais, mas estas atuam como “disposição própria para a forma do corpo misto”. xxv Por fim, salienta S. Tomás que “as formas dos elementos estão nos corpos mistos não em ato, mas em sua virtude”, xxvi ou seja, como potencialidades atualizáveis pela forma do composto.

Sobre as operações ocultas da natureza Da mesma maneira como em relação aos opúsculos anteriormente citados neste texto de apresentação, também o De operationibus occultis naturae é um escrito sobre cuja autenticidade não pairam dúvidas. xxvii Mandonnet situa-o

ousaria dizer, sem cair no ridículo, que no ente humano não existe uma só forma substancial. xxii Manser lembra-nos que a tese da pluralidade das formas no composto, defendida com ardor por vários filósofos da Alta Idade Média, tem origem filosófica em Plotino, com a sua concepção de que há três princípios diversos e inseparáveis no homem: alma, corpo e espírito. Cf. Plotino, Enéadas, I, 7. Esta doutrina chega porém aos escolásticos latinos do século XIII por um inusitado caminho: o livro Fons Vitae, de Avicebrão, cuja influência foi tão grande que a pluralitas formarum se transformou numa espécie de unanimidade. Cf. Gallus Maria Manser, op. cit., pp. 184-8. xxiii Cf. Laureano Robles Carcedo, op. cit., p. 64. xxiv “A intenção última da natureza é quanto à espécie, não quanto ao indivíduo nem quanto ao gênero: porque a forma é o fim da geração (...)”. Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol, I, q. 85, art. 3, ad. 4. xxv “(...) qualitas est propria dispositio ad formam corporis mixti”. V. p. 69. desta edição. xxvi Ibidem. xxvii “Ce petit ouvrage est en effect present dans toutes les collections d’Opuscula fr. Tomae qui nous ont éte conserves du XIII e du XIV siècles”. Edição Leonina, op. cit., Tomus XLIII, p. 163.

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entre os anos de 1269-1272, xxviii época de efervescentes disputas dialéticas na Universidade de Paris. O conteúdo da obra refere-se a operações naturais xxix nos entes compostos de matéria e forma que não deixam vestígios claramente perceptíveis, razão pela qual o homem tem grande dificuldade de dar testemunho delas. Neste contexto, diga-se que, embora os corpos geralmente se movimentem de maneira proporcional a seus elementos integrantes, nem tudo o que lhes sucede pode ser explicado nesta perspectiva. É necessário, pois, apelar a causas mais elevadas, tanto ontológica quanto cosmologicamente, sem as quais vários eventos não encontrariam explicação suficiente. Dedicado “a um soldado ultramontano”, xxx o De operationibus occultis faz referência à cosmologia que S. Tomás de Aquino dá por pressuposta ao apontar alguns trânsitos da potência ao ato nos corpos. Nela, o que caducou, xxxi em suas linhas gerais, é o papel dos astros como coprodutores, a seu modo, da forma a partir da potência da matéria nos corpos a que poderíamos chamar – para melhor compreensão dos leitores contemporâneos – de “sublunares”. E caducou porque hoje se sabe que os processos de geração e corrupção no plano físico devem menos aos astros do que se supunha no século XIII. Mas isto em nada diminui a abóboda metafísica da qual o Aquinate se vale para explicar até mesmo certos eventos ligados ao que hoje poderíamos chamar de “magia”, ou então algumas passagens da Sagrada Escritura. Aponte-se, como linha generalíssima, o seguinte: a) há operações da natureza corpórea que se dão a partir de formas impressas nela – acidental ou essencialmente – por entes de ordem superior, sejam os corpos celestes, xxxii sejam as substâncias separadas da matéria; e b) há operações da natureza corpórea que, por sua vez, se dão por conta de formas internas a ela, ou seja, em virtude xxviii Cf. Pierre Mandonnet, “Chronologie sommaire de la vie et des écrits de Saint Thomas” in Revue des sc. phylos. et théol., 9, Paris, 1920, p. 151. xxix E também se refere a algumas preternaturais. xxx Militar cuja identidade até hoje permanece desconhecida. xxxi Veja-se a este respeito a nota 27 do referido opúsculo constante deste volume. xxxii Vale ressaltar que, embora uma parte da teoria medieval relacionada aos corpos celestes esteja datada, isto não implica dizer que eles não exerçam influência sobre os corpos “subcelestes”. Que a lua influencie as marés; que o Sol, associado à inclinação do eixo da Terra relativo à sua translação, defina as quatro estações do ano; que o frio ou o calor excessivo predisponha o humor dos homens, a ponto de até mesmo mudar-lhes, circunstancialmente, o temperamento; estes e outros exemplos bastam para mostrar vários tipos de condicionamentos a que estão sujeitos os corpos que Santo Tomás chama de “inferiores”.


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de propriedades que lhe são inerentes, como o ruibarbo, o qual tem, nas palavras de Santo Tomás, a capacidade de purgar certos humores. xxxiii Como o leitor verá, ao corpo do texto deste opúsculo foram acrescentadas quarenta notas explicativas, com o intuito de esclarecer questões relevantes ou que estão para além dos questionamentos habituais do homem contemporâneo, como por exemplo a distinção entre “causa oculta da natureza” e “milagre”.

Sobre o movimento do coração É inconteste a autenticidade do opúsculo De motu cordis, xxxiv e o seu destinatário é o mesmo a quem foi dedicada a obra De mixtione elementorum: Filipe de Castro Caeli. A data de sua composição, conforme apontado de maneira convincente por Mandonnet, é 1273. xxxv O tratado procura estabelecer o movimento do coração, seja do homem, seja dos animais, como algo natural, e não violento, xxxvi como propusera Alfredo de Sareshel. xxxvii Em resumo, temos aqui, de maneira um pouco mais desenvolvida, o mesmo argumento arrolado na Suma Teológica, xxxviii a saber: o movimento do coração se dá conforme a natureza por ser um acidente próprio da vida que surge da união entre corpo e alma. xxxix Este problema tem interesse para o Aquinate xxxiii “Sicut rheubarbarum semper purgat determinatum humorem”, v. p. 78 desta edição. Hoje sabemos

que o ruibarbo ajuda no tratamento da prisão de ventre, da disenteria, de feridas na boca, de vermes e até das hemorróidas, devido à sua ação laxante, digestiva, adstringente e antibacteriana. xxxiv Cf. Edição Leonina, op. cit., Tomus XLIII, p. 95. xxxv Cf. Pierre Mandonnet, “Chronologie sommaire de la vie et des écrits de Saint Thomas” in Revue des sc. phylos. et théol., 9, Paris, 1920, p. 151. xxxvi Cf. Edição Leonina, op. cit., Tomus XLIII, p. 96. Sobre movimento violento em contraposição a movimento natural, registre-se a sua formulação já em Aristóteles, para quem o movimento violento é todo aquele que não ocorre em conformidade com natureza da coisa. Cf. Aristóteles, Física, IV, 215a. No caso do coração, S. Tomás de Aquino considera completamente alheia à razão a tese de que o seu movimento seja violento (“Dicere autem motum cordis esse violentum est omino extra rationem”), pois, uma vez subtraído o movimento do coração, morre o animal. xxxvii Mencionado em nota ao corpo do opúsculo. xxxviii Santo Tomás de Aquino, Sum. Theol., Ia-IIae, q. 17, art. 9. xxxix O estatuto ontológico do acidente, de acordo com S. Tomás de Aquino, é ser inerente à substância. Ocorre que há uma hierarquia nas condições de inerência dos acidentes, a qual pode definir-lhes o tipo – entre os quais está o próprio. Entre vários modos que não cabe aqui enumerar, o acidente pode “inerir” na substância pela quantidade ou pela qualidade. Cf. Battista Mondin, Dizionario Enciclopedico del Piensero di San Tommaso d’Aquino, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 2000, p. 24. No caso da qualidade, existe um tipo de acidente próprio: o que emana da substância como algo pertencente à espécie na qual ela mesma se enquadra. O problema é porém complexo e não há como esgotá-lo nesta Apresentação. Sendo assim, para o esclarecimento dos distintos graus de proprium

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na medida em que se insere noutro, de diferente escopo: no homem, a vontade exerce ou não o seu império sobre todas as operações corpóreas? Embora em seu opúsculo S. Tomás não mencione a Alfredo de Sareshel, parece-nos evidente que o livro De motu cordis deste último xl estava no horizonte do Angélico, quando este redigiu o seu tratado. Isto se pode aferir pelas diferentes alusões a teses de Sareshel criticadas pelo Doutor Comum, como a de que a alma causa o movimento do coração, porém não primacialmente; haveria, antes de tudo, certo calor gerado pela alma, o qual dilataria o coração. xli A isto S. Tomás responde: “(...) não é uma alteração do calor a causa do movimento do coração: pelo contrário, é o movimento do coração a causa de tal alteração [calorífera]”. xlii De grande interesse nesta pequena obra é a analogia que faz o Aquinate entre o movimento do coração e os movimentos celestes. Como diz o Prof. Luiz Astorga numa das notas a este opúsculo, “o que o desenvolvimento da Biologia nos traria posteriormente é que esta semelhança [entre ambos os movimentos] é maior do que se imaginava, e a analogia entre microcosmos proposta pelo Doutor Angélico era ainda mais próxima à realidade do que as ciências particulares lhe permitiam então detectar; pois é circular o caráter cíclico de ambos (...)”. Da mesma maneira como sucedeu ao denso De ente et essentia, a obra De motu cordis foi objeto de vários comentários filosóficos já a partir do século XIV. xliii Esperamos, pois, que ela desperte o interesse dos leitores brasileiros contemporâneos.

O horizonte metafísico da natureza Nenhum ente natural pode operar para além das potências inscritas em sua forma. Eis, portanto, uma das lições que podemos extrair destes opúsculos de S. Tomás de Aquino: a natureza – entendida como princípio existentes, recomendamos o estudo do tomista Luiz Astorga (tradutor dos quatro opúsculos que integram este volume) intitulado “El estatuto ontológico de la facultad intelectiva angélica y su relación com los predicables”, in Luiz Augusto de Oliveira Astorga, El intelecto de la substancia separada: su perfección y unidad según Tomás de Aquino, Navarra (ESP), eunsa – Ediciones Universidad de Navarra, 2016, pp. 106-114. xl Alfredus Angelicus, De motu cordis. Os interessados podem fazer upload desta obra de Sareshel em: <https://archive.org/details/desalfredvonsare00alfr>. xli Op. cit., cap. VII (“De causis motus cordis”). xlii V. p. 97 desta edição. xliii Cf. Edição Leonina, op. cit., Tomus XLIII, p. 96.


Opúsculos sobre a Natureza · Apresentação

intrínseco do ente – tem circunscrição metafísica aferível no contexto das relações entre potência e ato. Há, pois, uma linha intransponível para toda e qualquer natureza, e esta não é outra senão o seu limite de operação, proporcional ao grau de ser no qual se enquadra. Apenas excepcionalmente um ente pode movimentar-se fora das possibilidades radicadas em sua forma: quando movido por causas preternaturais ou sobrenaturais. xliv Mas, nestas circunstâncias, para dar razão dos eventos precisamos adentrar o terreno em que metafísica e teologia se cruzam. Não erraria quem dissesse que a natureza é a própria entidade; é o que “tem ser” (habet esse) de acordo com determinado modo. Já Santo Agostinho tivera este vislumbre ao definir, no extraordinário livro De Natura Boni, a natureza como “ordem”, “forma” e “modo”. Sendo assim, nada que possa ser dito natural está fora de uma ordem; nada que possa ser dito natural deixa de ser partícipe de uma espécie; nada que possa ser dito natural foge a uma modalidade de ser. Santo Tomás, ao mencionar o Bispo de Hipona e alguns de seus comentadores, xlv lembra-nos que o modo, a espécie e a ordem integram o bem de toda natureza, e que estas realidades só podem dizer-se más “quando são menores do que deveriam ser” (minora sunt quam esse debeant). xlvi Parabenizamos a editora Concreta por trazer ao público brasileiro estes opúsculos de Santo Tomás de Aquino na bela tradução técnica do Prof. Luiz Astorga.

xliv

Ou seja, por ação de anjos ou demônios ou por milagre. Como o seu mestre Santo Alberto Magno e São Boaventura. xlvi Santo Tomás de Aquino, De Veritate, q. 21, art. 6., ad 10. xlv

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Sobre os PrincĂ­pios da Natureza ao IrmĂŁo Silvestre

(De principiis naturae ad fratrem Sylvestrum)


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Caput 1 Nota quod quoddam potest esse licet non sit, quoddam vero est. Illud quod potest esse dicitur esse potentia; illud quod iam est, dicitur esse actu. Sed duplex est esse: scilicet esse essentiale rei, sive substantiale ut hominem esse, et hoc est esse simpliciter. Est autem aliud esse accidentale, ut hominem esse album, et hoc est esse aliquid. Ad utrumque esse est aliquid in potentia. Aliquid enim est in potentia ut sit homo, ut sperma et sanguis menstruus; aliquid est in potentia ut sit album, ut homo. Tam illud quod est in potentia ad esse substantiale, quam illud quod est in potentia ad esse accidentale, potest dici materia, sicut sperma hominis, et homo albedinis. Sed in hoc differt: quia materia quae est in potentia ad esse substantiale, dicitur materia ex qua; quae autem est in potentia ad esse accidentale, dicitur materia in qua. Item, proprie loquendo, quod est in potentia ad esse accidentale dicitur subiectum, quod vero est in potentia ad esse substantiale, dicitur proprie materia. Quod autem illud quod est in potentia ad esse accidentale dicatur subiectum, signum est quia; dicuntur esse accidentia in subiecto, non autem quod forma substantialis sit in subiecto. Et secundum hoc differt materia a subiecto: quia subiectum est quod non habet esse ex eo quod advenit, sed per se habet esse completum, sicut homo non habet esse ab albedine. Sed materia habet esse ex eo quod ei advenit, quia de se habet esse incompletum. Unde, simpliciter loquendo, forma dat esse materiae,


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O

Capítulo Primeiro

bserve que algo pode ser, embora não seja; não obstante, este algo é. Ao que pode ser, denominamos ser em potência; ao que já é, denominamos ser em ato. Mas o ser, por sua vez, é um conceito duplo: há o ser essencial ou substancial da coisa, como quando dizemos que “o homem é”,1 e isto é ser simpliciter; e há outro ser, acidental, como quando dizemos que “o homem é branco”, e isto é ser algo. Para ambos os sentidos de ser, existe algo em potência. Pois algo está em potência para ser homem, como o sêmen e o sangue menstrual; e algo está em potência para ser branco, como o homem. E tanto aquilo que está em potência para o ser substancial (como o sêmen, em relação ao homem) quanto o que está em potência para o ser acidental (como o homem, em relação à brancura) podem ser chamados de matéria. Porém, nisto diferem: pois a matéria que está em potência para o ser substancial é chamada de matéria “a partir da qual”, enquanto a matéria que está em potência para o ser acidental é chamada de matéria “na qual”.2 Ademais, propriamente falando, o que está em potência para o ser acidental denomina-se sujeito, enquanto o que está em potência para o ser substancial denomina-se propriamente matéria. Que o que está em potência para o ser acidental seja chamado de sujeito, assinala-o isto: diz-se antes que existem acidentes no sujeito, não que a forma substancial exista no sujeito. E é segundo isto que a matéria difere do sujeito, pois o sujeito é aquilo que não tem ser a partir de algo que lhe advenha, mas que possui por si o ser completo – assim como um homem não tem ser a partir da brancura. Já a matéria tem ser a partir de algo que lhe sobrevém, uma vez que, de si, possui ser incompleto. Donde, falando de modo simples, a forma dá ser à matéria,3 enquanto o sujei-

1 Convém frisar que, em Santo Tomás, ser e existir não são termos unívocos, mas análogos. De acordo com Battista Mondin, o Angélico Doutor valeu-se da palavra existência em algumas obras de juventude para indicar uma realidade que está para além das aparências – pois existe na coisa (in re) –, porém sem ainda fazer referência ao “ato de ser” (actus essendi), cujo conceito é intensivo. Cf. Battista Mondin, Dizionario Enciclopedico del Piensero di San Tommaso d’Aquino, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 2000, pp. 254-255. Portanto, dizer “o homem é” não é o mesmo que dizer “o homem existe”. A proposição “o homem é”, no glossário metafísico do Aquinate, não alude apenas à existência, pois indica, sobretudo, o fato de ele possuir determinado grau intensivo de ser. O ser é a mais perfeita de todas as coisas (esse est inter omnia perfectissimum), na medida em que é o ato em relação ao qual tudo o mais está em potência. [Nota do coordenador da Coleção Escolástica; doravante, N. C.] 2 Ou seja, matéria ex qua e matéria in qua, respectivamente. 3 Cf. Averróis, In Metaph., IX, comm. 16.

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sed subiectum accidenti, licet aliquando unum sumatur pro altero scilicet materia pro subiecto, et e converso. Sicut autem omne quod est in potentia potest dici materia, ita omne a quo aliquid habet esse, quodcumque esse sit sive substantiale, sive accidentale, potest dici forma; sicut homo cum sit potentia albus, fit actu albus, per albedinem et sperma, cum sit potentia homo, fit actu homo per animam. Et quia forma facit esse in actu, ideo forma dicitur esse actus. Quod autem facit actu esse substantiale, est forma substantialis, et quod facit actu esse accidentale, dicitur forma accidentalis. Et quia generatio est motus ad formam, duplici formae respondet duplex generatio: formae substantiali respondet generatio simpliciter; formae vero accidentali generatio secundum quid. Quando enim introducitur forma substantialis, dicitur aliquid fieri simpliciter. Quando autem introducitur forma accidentalis, non dicitur aliquid fieri simpliciter, sed fieri hoc; sicut quando homo fit albus, non dicimus simpliciter hominem fieri vel generari, sed fieri vel generari album. Et huic duplici generationi respondet duplex corruptio, scilicet simpliciter, et secundum quid. Generatio vero et corruptio simpliciter non sunt nisi in genere substantiae; sed generatio et corruptio secundum quid sunt in aliis generibus. Et quia generatio est quaedam mutatio de non esse vel ente ad esse vel ens, e converso autem corruptio debet esse de esse ad non esse, non ex quolibet non esse fit generatio, sed ex non ente quod est ens in potentia; sicut idolum ex cupro, ad quod idolum est (cuprum) in potentia, non in actu. Ad hoc ergo quod sit generatio, tria requiruntur: scilicet ens poten-


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to dá ser ao acidente, ainda que ocasionalmente um seja tomado em lugar do outro (quer dizer, “matéria” em vez de “sujeito” e vice-versa). Assim como tudo que está em potência pode ser chamado de matéria, também tudo a partir do qual algo tem ser – qualquer que seja este ser, tanto substancial quanto acidental – pode ser chamado de forma: tal como o homem, que é branco em potência, faz-se branco em ato pela brancura, e o sêmen, que é homem em potência, faz-se homem em ato pela alma.4 E, visto que a forma faz ser em ato, diz-se que ela “é ato”.5 Assim, é a forma substancial o que põe em ato o ser substancial, e é a forma acidental o que põe em ato o ser acidental. E, como a geração é um movimento à forma,6 a um duplo conceito de forma corresponde um duplo conceito de geração: à forma substancial corresponde a geração simpliciter; à forma acidental corresponde a geração secundum quid.7 Quando, pois, é introduzida a forma substancial, dizemos que uma coisa faz-se simpliciter. Quando, no entanto, introduz-se a forma acidental, não se diz que uma coisa é feita simpliciter,8 mas que ela é feita “isto”; assim como, quando um homem torna-se branco, não dizemos que ele se faz ou se gera simpliciter, mas que ele se faz ou se “gera” branco. E a esta dupla noção de geração corresponde uma dupla corrupção, a saber: simpliciter e secundum quid. Geração e corrupção simpliciter não existem senão no gênero da substância, mas a geração e a corrupção secundum quid existem nos demais gêneros. E, como a geração é certa mutação do não-ser (ou não-ente) ao ser (ou ente), inversamente a corrupção deve ser do ser ao não-ser. Não é a partir de qualquer não-ser que se dá a geração, mas sim a partir do não-ente que é ente em potência; assim como o ídolo9 faz-se a partir do cobre – ídolo para o qual o cobre está em potência, não em ato. Logo, para que ocorra a geração,

4 Que é a forma do homem. 5 A forma é ato da matéria; o ser é ato da forma. Mais ainda: o ser é o ato atualizante primeiro de toda e qualquer forma ou natureza. Cf. Cornelio Fabro, Partecipazione e Causalità, Roma, Casa Editrice dell’Instituto del Verbo Incarnato (edivi), 2010, Cap 2. [N. C.] 6 É clássica a tese aristotélico-tomista segundo a qual todo movimento termina no surgimento de uma nova forma. Vale, neste contexto, acrescer o seguinte: no tratado que o leitor tem em mãos, Santo Tomás refere-se a movimento tendo diante de si a doutrina aristotélica que preconiza seis tipos de movimento: quanto à substância: geração e corrupção; quanto à quantidade: aumento e diminuição; quanto à qualidade: alteração; quanto ao lugar: translação. [N. C.] 7 No vocabulário tomista, o par de termos simpliciter/secundum quid refere-se, respectivamente, a “em sentido absoluto” e a “em certo sentido”. [N. C.] 8 Cf. Averróis, In Phys., V, comm. 7. 9 Ou seja: a estátua.

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tia, quod est materia; et non esse actu, quod est privatio; et id per quod fit actu, scilicet forma. Sicut quando ex cupro fit idolum, cuprum quod est potentia ad formam idoli, est materia; hoc autem quod est infiguratum sive indispositum, dicitur privatio; figura autem a qua dicitur idolum, est forma, non autem substantialis quia cuprum ante adventum formae seu figurae habet esse in actu, et eius esse non dependet ab illa figura; sed est forma accidentalis. Omnes enim formae artificiales sunt accidentales. Ars enim non operatur nisi supra id quod iam constitutum est in esse perfecto a natura.

Caput 2 Sunt igitur tria principia naturae, scilicet materia, forma et privatio; quorum alterum, scilicet forma, est id ad quod est generatio; alia duo sunt ex parte eius ex quo est generatio. Unde materia et privatio sunt idem subiecto, sed differunt ratione. Illud enim idem quod est aes est infiguratum ante adventum formae; sed ex alia ratione dicitur aes, et ex alia infiguratum. Unde privatio dicitur esse principium non per se, sed per accidens, quia scilicet concidit cum materia; sicut dicimus quod hoc est per accidens: medicus aedificat: non enim ex eo quod medicus, sed ex eo quod aedificator, quod concidit medico in uno subiecto. Sed duplex est accidens: scilicet necessarium, quod non separatur a re, ut risibile hominis; et non necessarium, quod separatur, ut album ab


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requerem-se três coisas:10 o ente em potência (que é a matéria); o não estar em ato (que é a privação), e aquilo pelo qual o ente é posto em ato (que é a forma). Deste modo, quando, a partir do cobre, é feito um ídolo, o cobre (que está em potência para a forma do ídolo) é a matéria; que este cobre esteja desfigurado, indisposto, é a privação; e a figura a partir da qual ele é chamado “ídolo” é a forma, a qual no entanto não é substancial, mas acidental – uma vez que o cobre, anteriormente ao advento de tal forma ou figura, já tem ser em ato, e seu ser não depende daquela figura. Com efeito, todas as formas artificiais são acidentais; a arte, por sua vez, não opera senão sobre aquilo que já está, pela natureza, constituído no ser perfeito.11

Capítulo Segundo São três, portanto, os princípios da natureza: matéria, forma e privação, dos quais o segundo, isto é, a forma, é aquilo rumo ao qual se dá a geração. Os outros dois concebem-se como aquilo a partir do qual se dá a geração. Donde a matéria e a privação são o mesmo com relação ao sujeito, mas diferem segundo a razão. Pois aquilo mesmo que é “bronze” é também “desfigurado” antes do advento da forma, mas segundo certa razão dizemos que é “bronze”, e sob razão distinta, “desfigurado”.12 Por isto dizemos que a privação não é um princípio per se, e sim per accidens,13 visto que coincide14 com a matéria15 – como dizemos que um médico constrói per accidens; pois um médico não constrói porque é médico, mas porque é construtor, o que coincide com o médico num único sujeito. Contudo, é ainda dupla a noção de acidente: há o necessário, que não se separa da coisa, como a risibilidade [não se separa] do homem; e há o não necessário, que dela se separa, como ser branco [pode separar-se] do homem. 10 Cf. Aristóteles, Física, I, 12. 11 Neste caso particular, não é errôneo entender “figura” como “forma”. Trata-se, aqui, de uma forma artificial; ou seja, certa figura que se dê a um pedaço de cobre que não a tinha. Ressalte-se que o cobre, em si, já possui sua forma substancial; é a forma que o faz ser cobre, mesmo quando ainda careça de figura. [Nota do tradutor desta obra; doravante, N. T.] 12 Infiguratum. Ou seja: sem nenhuma figura antes do advento da forma. [N. C.] 13 O par de termos latinos per se/per accidens deve ser entendido como “em si” e “acidentalmente”. Neste caso, com “per se” Santo Tomás está simplesmente a indicar que a privação não é princípio substancial do ente, mas acidental. [N. C.] 14 De fato, concidit não é a origem etimológica de “coincide”, mas sim de “recair junto”, mas esta tradução se encaixa no contexto: incidir junto com algo num mesmo ponto. [N. T.] 15 Cf. Averróis, In Phys., I, comm. 74.

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homine. Unde, licet privatio sit principium per accidens, non sequitur quod non sit necessarium ad generationem, quia materia a privatione non denudatur; inquantum enim est sub una forma, habet privationem alterius, et e converso, sicut in igne est privatio aeris, et in aere privatio ignis. Et sciendum, quod cum generatio sit ex non esse, non dicimus quod negatio sit principium, sed privatio, quia negatio non determinat sibi subiectum. Non videt enim potest dici etiam de non entibus, ut Chimaera non videt; et iterum de entibus quae non nata sunt habere visum, sicut de lapidibus. Sed privatio non dicitur nisi de determinato subiecto, in quo scilicet natus est fieri habitus; sicut caecitas non dicitur nisi de his quae sunt nata videre. Et quia generatio non fit ex non ente simpliciter, sed ex non ente quod est in aliquo subiecto, et non in quolibet, sed in determinato (non enim ex quolibet non igne fit ignis, sed ex tali non igne, circa quod nata sit fieri forma ignis), ideo dicitur quod privatio est principium. Sed in hoc differt ab aliis, quia alia sunt principia et in esse et in fieri. Ad hoc enim quod fiat idolum, oportet quod sit aes, et quod ultima sit figura idoli; et iterum, quando iam idolum est oportet haec duo esse. Sed privatio est principium in fieri et non in esse: quia dum fit idolum, oportet quod non sit idolum. Si enim esset, non fieret, quia quod fit non est, nisi in successivis. Sed ex quo iam idolum est, non est ibi privatio idoli,


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E, assim, embora seja a privação um princípio per accidens, não ocorre que ela seja desnecessária à geração, uma vez que a matéria não está despida de privação: enquanto está sob uma forma, tem privação de outra, e vice-versa – assim como no fogo há privação de ar, e no ar há privação de fogo. Devemos notar ainda que, embora a geração se dê a partir do não-ser, não dizemos que a negação seja o princípio, mas a privação, uma vez que a negação não determina para si um sujeito: “não vê” pode dizer-se também com relação aos não-entes (como em “a quimera não vê”), e aos entes que por natureza não possuem a visão (como as pedras). Mas a privação não se diz senão de um determinado sujeito no qual é natural que exista tal hábito (assim como a cegueira não se diz senão daquelas coisas às quais o ver é natural). E, como a geração não se faz a partir do não-ente simpliciter, mas sim do não-ente que existe em um sujeito – e não de qualquer sujeito, mas de um sujeito determinado (pois não é a partir de qualquer não-fogo que se faz o fogo, mas a partir de um determinado não-fogo junto ao qual seja natural gerar-se a forma do fogo) –, por isto dizemos que é a privação o princípio.16 Todavia, este princípio difere dos outros dois, porque aqueles são princípios tanto no ser quanto no gerar-se. Pois, para que se faça um ídolo, é necessário que haja o bronze, e que haja a figura última do ídolo; e então, quando já existe o ídolo, é também necessário que haja ambos. Mas a privação, por sua vez, é um princípio no gerar-se, não no ser: enquanto se faz o ídolo, é necessário que o ídolo não seja – pois, se ele já fosse, não surgiria, visto que algo que ainda se está fazendo não é, exceto nas coisas sucessivas.17 No entanto, a partir 16 O conceito de “privação” em S. Tomás de Aquino pode entender-se em três sentidos principais: próprio, comum e comuníssimo. Em sentido próprio, a privação se dá quando o ente não possui um bem que, por sua natureza considerada relativamente à espécie, deveria possuir (por exemplo: um homem privado de visão). Em sentido comum, a privação se dá quando o ente não possui um bem que, por sua natureza considerada relativamente ao gênero, poderia possuir, porém não lhe compete especificamente (por exemplo: a ausência de visão nesta ou naquela espécie de toupeira). Em sentido comuníssimo, a privação se dá quando o ente não possui um bem que compete a outros gêneros de entes (por exemplo: a ausência de visão nas plantas). Ao apontar a privação como um dos três princípios da natureza – sendo os outros dois a matéria e a forma –, o Aquinate está usando o termo em sentido próprio, como ausência de um bem que o sujeito, por sua natureza específica, teria aptidão para possuir. Por isso a privação é princípio per accidens da natureza, ou seja: é princípio acidental, não essencial (privatio vel contrarium est principium per accidens) Cf. Santo Tomás de Aquino, Commentaria in octo libros Physicorum, 1, lec. 13. Aqui neste opúsculo, como também alhures, o Aquinate destaca o caráter acidental da privação como princípio da natureza. [N. C.] 17 De acordo com a definição aristotélica aceita por Santo Tomás, o tempo é a contagem do movimento segundo um antes e um depois. Quando, pois, Tomás escreve “exceto nas coisas sucessivas” (nisi in successivis), está a referir-se exatamente ao tempo e ao movimento, ou seja: ao devir que é cronométrico, próprio dos entes compostos de matéria e forma. Sim, porque existe um tipo de movi-

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quia affirmatio et negatio non sunt simul, similiter nec privatio et habitus. Item privatio est principium per accidens, ut supra expositum est, alia duo sunt principia per se. Ex dictis igitur patet quod materia differt a forma et a privatione secundum rationem. Materia enim est id in quo intelligitur forma et privatio: sicut in cupro intelligitur figura et infiguratum. Quandoque quidem materia nominatur cum privatione, quandoque sine privatione: sicut aes, cum sit materia idoli, non importat privationem, quia ex hoc quod dico aes, non intelligitur indispositum seu infiguratum, sed farina, cum sit materia respectu panis, importat in se privationem formae panis, quia ex hoc quod dico farinam, significatur indispositio sive inordinatio opposita formae panis. Et quia in generatione materia sive subiectum permanet, privatio vero non, neque compositum ex materia et privatione, ideo materia quae non importat privationem, est permanens: quae autem importat, est transiens. Sed sciendum, quod quaedam materia habet compositionem formae: sicut aes, cum sit materia respectu idoli, ipsum tamen aes est compositum ex materia et forma; et ideo aes non dicitur materia prima, quia habet materiam. Ipsa autem materia quae intelligitur sine qualibet forma et privatione, sed subiecta formae et privationi, dicitur materia prima, propter


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do momento em que o ídolo já é, não há mais a privação do ídolo, porque a afirmação e a negação não coexistem – como, igualmente, não coexistem a privação e o hábito.18 Assim, a privação é um princípio per accidens, como exposto acima; os outros dois são princípios per se. Pelo que foi dito, portanto, fica claro que a matéria difere da forma e da privação segundo a razão. Pois a matéria é aquilo em que inteligimos a forma e a privação, assim como no cobre inteligimos a figura e o desfigurado.19 Às vezes a matéria é denominada juntamente com a privação, às vezes não – como quando o bronze, sendo a matéria de um ídolo, não contém a noção de privação; pois, pelo fato de eu dizer “bronze”, não se intelige que ele esteja indisposto ou desfigurado. Mas a farinha, sendo matéria com respeito ao pão, implica em si a privação da forma do pão; pois, pelo fato de eu dizer “farinha”, está significada a não-disposição ou desordem opostas à forma do pão. E como na geração a matéria – ou sujeito – permanece, mas não a privação, nem o composto de matéria e privação, a matéria que não contém a privação é permanente, enquanto aquela que a contém é transeunte.20 Mas deve-se compreender que certa matéria tem composição de forma – assim como o bronze, que, embora seja matéria com respeito ao ídolo, é ele mesmo um composto de matéria e forma. E por isto o bronze não é chamado de materia prima;21 porque ele possui matéria. Já aquela matéria que inteligimos sem qualquer forma ou privação – mas que é sujeita à forma e à privação – denominamos materia prima, porque antes dela não existe outra matéria.

mento não cronometrável: o evo, o qual mede o modo de perduração no ser – assim como as operações – das criaturas espirituais. A teologia chama-as anjos; a metafísica, inteligências separadas. Neste trecho do opúsculo, a expressão “exceto nas coisas sucessivas” refere-se ao tempo e ao movimento que ainda não resultaram em nova forma, ou seja, às coisas que ainda estão sendo feitas. Manuscritos mais antigos deste texto de Santo Tomás trazem o acréscimo revelador: “...nisi in succesivis, ut tempus et motus”. [N. C.] 18 Em clave metafísica, o hábito é intermediário entre a potência e o ato. Trata-se da realidade que predispõe o ente a atualizar algumas potências inscritas em sua forma. Ao dizer “não coexistem a privação e o hábito”, Santo Tomás está apontando a impossibilidade de haver predisposições ontológicas no ente genericamente privado do bem que é sujeito do hábito. Trata-se da privação em sentido comuníssimo. Por exemplo: algo que esteja privado de ver em razão de sua natureza genérica (a pedra ou a planta), não pode ter o hábito de ver. [N. C.] 19 Cf. nota 12. 20 Transiens. A palavra portuguesa “transeunte”, da qual nos servimos para a tradução do termo latino usado por S. Tomás, refere-se àquilo que não é permanente, conforme assinala o Dicionário Houaiss numa das acepções deste vocábulo. [N. C.] 21 Ao bronze não podemos chamar materia prima porque esta é potência para todas as formas, visto não possuir nenhuma. [N. C.]

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hoc quod ante ipsam non est alia materia. Et hoc etiam dicitur yle. Et quia omnis definitio et omnis cognitio est per formam, ideo materia prima per se non potest cognosci vel definiri sed per comparationem ut dicatur quod illud est materia prima, quod hoc modo se habet ad omnes formas et privationes sicut aes ad idolum et infiguratum. Et haec dicitur simpliciter prima. Potest etiam aliquid dici materia prima respectu alicuius generis, sicut aqua est materia liquabilium. Non tamen est prima simpliciter, quia est composita ex materia et forma, unde habet materiam priorem. Et sciendum quod materia prima, et etiam forma, non generatur neque corrumpitur, quia omnis generatio est ad aliquid ex aliquo. Id autem ex quo est generatio, est materia; id ad quod est forma. Si igitur materia vel forma generaretur, materiae esset materia, et formae forma, in infinitum. Unde generatio non est nisi compositi, proprie loquendo. Sciendum est etiam, quod materia prima dicitur una numero in omnibus. Sed unum numero dicitur duobus modis: scilicet quod habet unam formam determinatam in numero, sicut Socrates: et hoc modo materia prima non dicitur unum numero, cum in se non habeat aliquam formam. Dicitur etiam aliquid unum numero, quia est sine dispositionibus quae faciunt differre secundum numerum: et hoc modo dicitur materia prima


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Também recebe ela o nome de yle.22 E, como toda definição e toda cognição se dão pela forma, a materia prima não pode ser por si conhecida ou definida, mas por comparação, como se chamássemos materia prima àquilo que está para todas as formas e privações do mesmo modo que o bronze está para o ídolo e o desfigurado. E dizemos que ela é prima simpliciter – porque também pode algo ser chamado [analogicamente] de materia prima com respeito a algum gênero, assim como a água é materia prima no gênero dos líquidos,23 mas já esta não é prima simpliciter,24 pois é [ela própria] composta de matéria e forma,25 donde possui matéria que lhe é anterior.26 E devemos considerar que a materia prima – e também a forma – não se geram nem se corrompem,27 pois toda a geração se dá de uma coisa a outra. É matéria, pois, aquilo a partir do qual se dá a geração; aquilo ao qual se dá a geração é a forma. Assim, se tanto a matéria quanto a forma fossem geradas, haveria a matéria da matéria e a forma da forma, ad infinitum. De modo que, propriamente falando, não há geração senão do composto. Devemos ainda considerar que a materia prima é chamada “una em número” em todas as coisas. Porém, algo pode dizer-se uno em número de dois modos: primeiro, porque possui uma forma determinada em número, como Sócrates – e deste modo não podemos dizer que a matéria-prima seja una em número, pois em si não possui nenhuma forma. Segundo, dir-se-ia que algo é uno em número por ser desprovido de disposições que fazem diferir segundo número. E deste modo dizemos que a materia prima é una 22 Hyle, do grego ὕλη. 23 Seria arriscado identificar plenamente o termo água, usado aqui por Santo Tomás, com aquilo hoje conhecido como a molécula H2O. Como bloco fundamental da natureza, o elemento água, assim como os outros três (fogo, ar, terra), portava, para diversos filósofos medievais, certos atributos próprios. Assim temos água: elemento pelo qual algo é frio, úmido, líquido; fogo: quente e seco, ar: frio, seco, gasoso; terra: quente, úmido, sólido. Trata-se de uma ressonância, ainda que longínqua, da doutrina platônica da criação do mundo sensível pelo Demiurgo, a qual recebeu substanciosos comentários de filósofos importantes como, por exemplo, Proclo. Em síntese, da presença maior ou menor desses conjuntos de atributos num ente se inferia a presença mais forte ou branda de um desses elementos. Lembremos, neste contexto, que o Demiurgo de Platão, contemplando as Idéias, utiliza a matéria caótica e o espaço vazio para construir os seguintes poliedros regulares: hexaedros de terra, tetraedros de fogo, octaedros de ar e icosaedros de água. A partir destes quatro elementos ele plasma o mundo sensível. Cf. Platão, Timeu, 31b-34c; 53b-58c. [N. T.] 24 Ou seja, não é materia prima em sentido próprio. 25 Isto é, a forma do elemento água. 26 Prior, isto é, anterior, ou, no presente contexto, “mais prima”. [N. T.] 27 Embora a materia prima não se gere nem se corrompa, isto não quer dizer que não tenha sido criada por Deus, conforme assinala o Aquinate. Cf. Santo Tomás de Aquino, Commentaria in octo libros Physicorum, 1, lec. 15. [N. C.]

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Santo Tomรกs de Aquino

unum numero, quia intelligitur sine omnibus dispositionibus a quibus est differentia in numero. Et sciendum quod licet materia non habeat in sua natura aliquam formam vel privationem, sicut in ratione aeris neque est figuratum neque infiguratum; tamen nunquam denudatur a forma et privatione: quandoque enim est sub una forma, quandoque sub alia. Sed per se nunquam potest esse, quia cum in ratione sua non habeat aliquam formam, non habet esse in actu, cum esse in actu non sit nisi a forma, sed est solum in potentia. Et ideo quicquid est actu, non potest dici materia prima.

Caput 3 Ex dictis igitur patet tria esse naturae principia scilicet materia, forma et privatio. Sed haec non sunt sufficientia ad generationem. Quod enim est in potentia, non potest se reducere ad actum: sicut cuprum quod est potentia idolum, non facit se idolum, sed indiget operante, qui formam idoli extrahat de potentia in actum. Forma etiam non extraheret se de potentia in actum (et loquor de forma generati, quam diximus esse terminum generationis); forma enim non est nisi in facto esse: quod autem


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em número: porque ela é inteligida sem nenhuma disposição pela qual haja diferença em número. Por fim, deve-se ter em mente que, embora a matéria não possua em sua natureza nenhuma forma ou privação (assim como na razão de “bronze” não há nem o figurado, nem o desfigurado), nunca está a materia prima despida de forma e privação. Às vezes está sob uma forma, às vezes sob outra. Mas per se ela nunca pode existir: como, por sua definição, não possui nenhuma forma, ela não tem ser em ato (visto que não há ser em ato senão pela forma), mas só em potência. Portanto, nada que esteja em ato pode ser chamado de materia prima.28

Capítulo Terceiro Pelo que foi dito, portanto, vemos ser três os princípios da natureza: matéria, forma, e privação. Mas estes não são suficientes para a geração. Pois o que está em potência não pode reduzir-se por si mesmo ao ato, assim como o cobre (que é ídolo em potência) não faz a si mesmo ídolo, mas carece de um agente que traga da potência ao ato a forma do ídolo. Tampouco a forma levaria a si mesma da potência ao ato – e me refiro aqui à forma do gerado, a qual dissemos ser o término da geração; pois a forma não existe senão no ser 28 Aristóteles definira a materia prima como “primeiro sujeito de todo ser corpóreo”. Aristóteles, Física, I, 9. A materia prima é “sujeito” na medida em que é portadora da forma recebida; e é “primeiro sujeito” como portadora do ser substancial do corpo. Tendo em vista a formulação do Estagirita, S. Tomás acaba por chegar, em diferentes obras, ao conceito de materia prima como uma espécie de ser real-potencial. Expliquemo-nos: como mera potência passiva, ela não pode dar a si mesma nenhuma forma, e quanto a isto é absolutamente potencial; por ser criada juntamente com a materia secunda no composto, ela é real. Neste ponto, para evitar possíveis equívocos, enfatizemos que, segundo S. Tomás, a materia prima é sempre potência. Em si mesma, ela não tem essência, ou melhor, ser potência é a sua essência. Diz o Aquinate: “Materia prima est in potentia ad actum sustancialem, qui est forma; et ideo ipsa potentia est ipsa essentia eius”. Santo Tomás de Aquino, Quaestio Disputata de Anima, art. 12, ad. 12. Vale ainda frisar que o ser potencial da materia prima não se identifica com o nada absoluto, pois o nada absoluto é, por definição, desprovido de qualquer potência. Podemos também destacar, com Mondin, que a materia prima é potência para o ser substancial; a materia secunda é potência para o ser acidental. Battista Mondin, op. cit., p. 417. Neste opúsculo, como em outros tratados, o Doutor Angélico afirma que a materia prima não possui ser em ato, mas apenas em potência. Em seu Comentário à Metafísica, S. Tomás aponta três maneiras pelas quais algo se pode dizer “não-ente”: a primeira é o nada em sentido absoluto; a segunda é a privação considerada em um sujeito; e a terceira é a materia prima, o não-ente em ato que, contudo, é ente em potência. “Dicitur enim non ens tripliciter. Uno modo quod nullo modo est; et ex tali non ente non fit generatio, quia ex nihilo nihil fit secundum naturam. Alio modo dicitur non ens ipsa privatio, quae consideratur in aliquo subiecto: et ex tali non ente fit quidem generatio, sed per accidens, inquantum scilicet generatio fit ex subiecto, cui accidit privatio. Tertio modo dicitur non ens ipsa materia [prima], quae, quantum est de se, non est ens actu, sed ens potentia”. Santo Tomás de Aquino, In Metaphys., XII, 1. 2, n. 14. [N. C.]

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