Conferências sobre os Dez Mandamentos - São Boaventura - TRECHO GRÁTIS

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ConferĂŞncias sobre os Dez Mandamentos



S. Boaventura

Conferências sobre os Dez Mandamentos Edição bilíngüe

Tradução:

Tiago Gadotti


Conferências sobre os Dez Mandamentos, São Boaventura de Bagnoregio © Editora Concreta, 2018 Título original: Collationes De Decem Praeceptis Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Sidney Silveira Tradução: Tiago Gadotti Revisão: José Renato Lima Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz

Ficha Catalográfica Bagnoregio, S. Boaventura de, 1221-1274 B147c Conferências sobre os Dez Mandamentos [livro eletrônico] / tradução de Tiago Gadotti, coordenação de Sidney Silveira. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2018. 136p. ISBN 978-85-68962-35-0 1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Cristianismo. 5. Catolicismo. 6. Espiritualidade. I. Título. CDD-230.2

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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C OL EÇ ÃO ESC OL Á S T IC A

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oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus. O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes. Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída. Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter


atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto. Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados. No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos. Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica. Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento. Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro. Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica


Sumário

Apresentação - Boaventura de Bagnoregio: um agostiniano no olho do furacão

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CONFERÊNCIAS SOBRE OS DEZ MANDAMENTOS

Conferência I Sobre os quatro motivos que nos induzem a observar 23 os preceitos divinos e sobre o Decálogo em geral   Conferência II 39 Sobre o primeiro preceito do Decálogo, considerado especificamente

Conferência III 61 Sobre o segundo preceito do Decálogo

Conferência IV 79 Sobre o terceiro preceito do Decálogo


Conferência V 91 Sobre o quarto preceito

Conferência VI 105 Sobre o quinto, o sexto e o sétimo preceito

Conferência VII 119 Sobre o oitavo, nono e décimo preceito   Bibliografia citada  133 Doctoris Seraphici S. Bonaventurae Opera Omnia  135


Apresentação

Boaventura de Bagnoregio: um agostiniano no olho do furacão SIDNEY SILVEIRA

1. Aristóteles: o pomo da discórdia

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redomina entre medievalistas a opinião de que o itinerário intelectual de São Boaventura (1221–1274) passa, necessariamente, pela obra de Santo Agostinho (354–430). Esta é uma verdade que, para ser compreendida em sua complexa dimensão, precisa ser entrevista no contexto de uma contenda de proporções colossais no ambiente universitário do século XIII, então pautada nas seguintes considerações: • Aristóteles (384 a.C.–322 a.C.) representa ou não um perigo para a fé católica? i • A Metafísica do Estagirita deve ou não ser acolhida pelos cristãos?

i Frise-se que, naquela altura dos acontecimentos históricos, Aristóteles estava sendo descoberto com entusiasmo, porém com grande ressaibo, no Ocidente latino – em parte pelo viés da hermenêutica averroísta.


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Passar ao largo destas duas indagações, ambas aparentemente simples, implica não compreender um dos principais motores da obra do grande teólogo franciscano do século XIII; ii não ter sequer o vislumbre de seu alcance teorético – confrontado com o da corrente dominicana, que conheceu em Santo Tomás de Aquino, o Doctor Communis da Igreja, um ápice insuperável. Neste cenário, um nome deve ser trazido à baila: Alexandre de Hales (1185–1245), a quem São Boaventura costumava referir-se como pater et magister nostrae bonae memoriae. iii É da lavra de Hales uma monumental Suma Teológica, iv na qual o uso do método dialético e a variedade das fontes citadas são de grande valor. Baseando-se sobretudo na Sagrada Escritura, porém recorrendo freqüentemente a autoridades teológicas, v assim como a filósofos, vi Hales traça uma linha demarcatória rígida entre a teologia, a filosofia e todas as ciências. vii Logo no início da Suma de sua autoria, viii da mesma maneira como faria Santo Tomás de Aquino (1225–1274) algum tempo depois, na obra máxiii É famosa a seguinte passagem da obra que o leitor tem em mãos: “Quando eu era estudante, ouvi que Aristóteles afirmava que o mundo é eterno; quando ouvi as razões e os argumentos a favor dessa idéia, meu coração ficou agitado e comecei a pensar como isso poderia ser possível. Mas hoje esses assuntos são tão claros que não há margem para nenhuma dúvida [Sed haec modo sunt manifesta ut nullus de hoc possit dubitare]”, cf. p. 57 desta edição. Com relação a estas palavras, diga-se que a ojeriza a Aristóteles está presente em toda a obra boaventurana e dá molde a uma concepção na qual se procura evitar, tanto quanto possível, que a filosofia se coloque como um saber em pé de igualdade com o conhecimento teológico. Para muitos cristãos do século XIII, este era o grande risco de uma assimilação acrítica da obra aristotélica. “Philosophia quidem agit de rebus, ut sunt in natura, seu in anima secundum notitiam insitam, vel etiam acquisitam; sed teologia, tanquam scientia supra fidem fundata et per Spiritum Sanctum revelata, agit de eis que spectam ad gratiam et gloriam ad Sapientiam aeternam”. São Boaventura, Brevil., Prol., § 3. iii Cf. Battista Mondin, Storia della Metafisica (Volume 2), Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 1998, p. 621. iv Completada por seus discípulos. v Como Santo Agostinho (354–430), Santo Anselmo (1033–1109), São Bernardo (1090–1153), Hugo de São Vítor (1096–1141) e outros. vi Principalmente Avicena (980–1037), Al-Farabi (872–951) e Avicebrão (1021–1058). A propósito, Hales manteve – tanto quanto foi possível, na conjuntura universitária em que lhe coube atuar – profilática distância da “perigosa” Metafísica de Aristóteles (Cf. Battista Mondin, loc. cit.). vii Num ambiente de grande competitividade intelectual, diga-se que Alexandre de Hales, malgrado a sua relevância filosófica, teve detratores. Um dos principais deles foi Roger Bacon (1214–1294), para quem Hales era “ignorante” porque, ao contrário de seu mestre Roberto Grosseteste (1168–1253), não sabia grego, hebraico, ótica e matemática. Cf. Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía – Tomo II (El Judaísmo y la Filosofia. El Cristianismo y la Filosofía. El Islam y la Filosofía), Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1960, p. 743. viii Neste ponto, não nos custa lembrar que o século XII foi o século das Sentenças, e o século XIII, o das Sumas.


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ma por ele trazida à luz, ix Alexandre de Hales indaga se a teologia é ciência. x A resposta dada pelo filósofo franciscano que tanta influência exerceu sobre São Boaventura, contudo, é bem distinta da do Aquinate: para ele a teologia não é ciência, e sim sabedoria, por transcender a todas as ciências. xi O fim da teologia não seria “apenas” conhecer a verdade, mas mover o coração do homem ao amor a Deus e proporcionar-lhe um conhecimento saboroso (sapida scientia). E mais: a teologia não provém da investigação humana, mas apenas da revelação divina. xii Em breves palavras, na obra de Hales a separação entre a ciência da causa suprema (sapientia) e a das causas segundas (scientia) parte da pressuposição de que uma é a teologia cristã, e outra é a teologia dos filósofos, sendo a primeira delas sabedoria que bebe de fonte divina; a segunda, ciência que se aperfeiçoa pela arte do raciocínio. xiii Muitas destas distinções marcarão decisivamente São Boaventura. Entre elas, destaquemos a doutrina agostiniana da iluminação, xiv o exemplarismo de ix

Ou seja: a Suma Teológica que rendeu a Santo Tomás a glória máxima na Igreja – como teólogo e como filósofo – desde os séculos que se seguiram à sua morte até os dias de hoje. x “Inquirentes de doctrina theologiae: I. Utrum sit scientia; II. Utrum distinguatur ab aliis scientiis; III. De quo sit ista scientia; IV. De modo traditionis huius scientiae”. Alexandre de Hales, Summ. Theol., introd., q. I. Vale consignar que a Suma de Alexandre acabou por se tornar célebre com o nome de Summa fratris Alexandri. xi No caso do Doutor Angélico, diferentemente de Hales, a resposta a este magno problema indica que a teologia é, a um só tempo, ciência especulativa e prática (Cf. Santo Tomás de Aquino, Summ. Theol., I, q. 1, art. 4). Além do mais, o fato de a teologia ser ciência não implica, para o Boi Mudo, que não seja também sabedoria. “Esta doutrina é, dentre todas as sabedorias humanas, sabedoria em sentido absoluto (simpliciter)”. Cf. Santo Tomás de Aquino, Summ. Theol., I, q. 1, art. 6. xii Esta é uma atitude predominante entre franciscanos do século XIII: não considerar a teologia como ciência stricto sensu. Nesta matéria, a novidade absoluta vem de Santo Tomás, que define magistralmente os modos segundo os quais a teologia pode ser dita ciência. xiii Cf. Alexandre de Hales, Op. cit., introd., q. I, c. I. xiv Nas pegadas de S. Agostinho, S. Boaventura considera que todo conhecimento humano procede de uma iluminação divina. O esquema concebido por ele é, no entanto, mais complexo que o do Bispo de Hipona e contempla luzes distintas – utilizáveis, instrumentalmente, por ciências diversas: a) lumen artis mechanicae; b) lumens cognitionis sensitivae; c) lumen philosophiae naturalis; d) lumen Sacrae Scripturae; e) lumen seu iluminatio gloriae. Levando-se em conta esta estrutura, o empenho racional humano consistiria na busca por se abrir à iluminação que vem do Alto. “Todo conhecimento vem de Deus e retorna para Deus (…) Toda ciência tem sua origem numa iluminação divina, quer seja natural, quer seja sobrenatural. O homem conhece as coisas sensíveis por meio da sensação e da imaginação. Mas ele é capaz também de transcender o sensível e apreender o inteligível. Ele é capaz de operar a abstração do inteligível junto ao sensível. Esta abstração é obra quer do intelecto possível quer do intelecto agente, que são, para Boaventura, duas differentiae (diferenças) da mesma faculdade intelectiva (…). Entretanto, no exercício desta faculdade intelectiva, a criatura racional que é o homem necessita ser iluminada pela Verdade divina. Aquilo sobre o que julgamos provém da experiência, mas aquilo a partir do que e segundo o que julgamos já não provém da experiência e nem

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sabor neoplatônico, xv assim como a aludida superação das ciências humanas pela teologia – o que se pode entrever no título de uma das obras do Doutor Seráfico: De reductione artium ad Theologiam. Este e outros trabalhos boaventuranos possuem como pano de fundo a idéia de acordo com a qual o que interessa não é o homem natural, e sim o homem elevado pela graça e resgatado pelo sangue de Cristo. Este sim seria o homem real, inserido numa visão metafísica de cunho místico na qual o universo, com todos os seus modos de ser e de operar, é espelho da realidade divina. Em síntese, Deus é o exemplo, o modelo perfeito de toda a criação entendida como imagem e similitude da sabedoria eterna. xvi O caráter eminentemente teológico da obra de São Boaventura – quase em contraposição formal à filosofia – não passou despercebido de muitos medievalistas. xvii Aqui, porém, é preciso ter em vista que os ataques do frade franciscano à filosofia não implicavam pura e simples negação desta, como a princípio se poderia pensar. A sua maior preocupação era acentuar o caráter instrumental da filosofia com relação à sagrada teologia, xviii a partir do pensamento agostiniano. Acerta, portanto, quem destaca a importância dos escritos do Bispo de Hipona para São Boaventura, xix mas é necessário pontuar o promesmo da própria razão, mas de uma iluminação divina que nos faz conhecer o ideal [grifo nosso]”. Cf. Marcos Aurélio Fernandes, “Confronto de São Boaventura com a filosofia nas ‘Conferências sobre os Dez Mandamentos’ e em sobre ‘Os Sete Dons do Espírito Santo’”, Curitiba, Coniunctio – Revista Eletrônica de Psicologia e Religião (Ichthys), Ano 2, N.º. 2, 2013, pp. 53-68. xv Para São Boaventura, as idéias exemplares – realidade incontestável, segundo o seu parecer – são modelos de todas as coisas que aprouve a Deus criar. Nas Collationes in Hexaemeron, n. 6., o teólogo franciscano chega a dizer que Aristóteles na Metafísica abominou as idéias de Platão (execratur ideas Platonis) com argumentos que não têm nenhum valor (et nihil valente rationes suae). As diatribes boaventuranas contra o Estagirita, neste e noutros escritos, vão longe: entre outras coisas o filósofo grego é acusado de negar a Divina Providência, a existência do céu e do inferno e também a do demônio. xvi “(…) omnis enim criatura ex natura est ilius aeternae sapientiae quaedam effigies et similitudo”. São Boaventura, Itinerarium Mentis in Deum, II, 12. xvii Gilson chega a dizer o seguinte, no denso tratado que escreveu sobre São Boaventura: “Si philosophie égale raison pure, il n’y a pas de philosophie bonaventurienne [“Se filosofia é o mesmo que ‘razão pura’, não existe filosofia boaventurana”]”. Cf. Étienne Gilson, La philosophie de saint Bonaventure (Deuxième Édition Revue), Paris, Vrin, 1943, p. 387. xviii Nos termos que anteriormente destacamos. xix “São Boaventura foi um guardião zeloso da mundividência teológica agostiniana, engrossada pelas contribuições de Santo Anselmo, São Bernardo, os Vitorinos e pelo seu ‘mestre e pai’ Alexandre de Hales. Além disso, notabilizou-se como o segundo fundador da Ordem dos Frades Menores, pois, fiel ao carisma de São Francisco, enfrentou a realidade determinando como os frades, sem embargo da pobreza, deveriam estudar e lidar com os livros, para bem se desencumbirem das obrigações do ministério sacerdotal, máxime da pregação e do ensino. Por fim, a preocupação essencial de São


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pósito antiaristotélico da empreitada que os franciscanos de meados do século XIII levaram adiante. Não fazê-lo significa contemplar de maneira limitada aquela conturbada centúria; xx tenhamos a medida disto ressaltando que, por norma, entre os Frades Menores não se comentava Aristóteles. xxi Sem embargo desta regra geral, São Boaventura estudou a fundo os textos do Estagirita disponíveis desde o tempo em que era um jovem estudante da Faculdade de Artes da Universidade de Paris. Na prática, a sua aversão ao notável grego, manifesta desde muito cedo, acentuou-se do meio para o fim da sua trajetória como teólogo, culminando nas três Collationes em que denuncia sem pruridos o “racionalismo” aristotélico: • Collationes in Hexaemeron; • Collationes de septem donis Spititus Sanctis; e • Collationes de decem praeceptis, cujo texto em português integra a presente edição. Fique, pois, assentado ser impossível estudar a obra boaventurana sem levar em conta o olho do furacão em que a (re)descoberta de Aristóteles meteu os melhores espíritos do século XIII. xxii Saiu faísca para todo lado, ao longo de muitas décadas. xxiii

Boaventura, no seio da família franciscana, era manter-se unido a Deus, fiel a Jesus Cristo e à sua doutrina e, com essa intenção, ele reduz (…) as artes liberais à Teologia e traça com mão de mestre o itinerário da mente para Deus. Foi, desse modo, um consumado místico, e um dos maiores mestres da sabedoria cristã”. Cf. Ruy Afonso da Costa Nunes, “São Boaventura e Aristóteles”, Cadernos de História e Filosofia da Educação, São Paulo, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo – USP, Vol. 6. Nº. 6, 2001. Texto disponível em: <http://www.hottopos.com/videtur15/ruy.htm>. xx Em síntese, devemos levar em consideração que muitos teólogos franciscanos apoiaram-se em S. Agostinho – assim como no neoplatonismo cristão, sobretudo em Pseudo-Dionísio Areopagita – para fazer frente à enorme influência que Aristóteles começava a ter nas universidades latinas. xxi Cf. Jacques-Guy Bougerol. “Dossier pour l’étude des repports entre Saint Bonaventure et Aristote, in Archives d’histoire Doctrinale et littéraire du moyen age”, t. 40, Paris, Vrin, 1974, p. 221. xxii Diz com sarcasmo S. Boaventura: “Philosophus dicit quod magna delectatio est scire quod diameter est asymeter costae; haec delectatio sit sua, comedat eam”. São Boaventura, Collationes in Hexaemeron, XVII. xxiii O problema é complexo e não se trata duma refutação em bloco do corpus aristotélico. Corroboremos esta afirmação lembrando que há mais de 900 citações à obra de Aristóteles nos textos de São Boaventura, muitas delas em temas estritamente filosóficos. Cf. Jacques-Guy Bougerol, Introducción a San Buenaventura, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1984, pp. 53-81.

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2. Cristocentrismo e outras características Além das influências mencionadas de Santo Agostinho e Alexandre de Hales, assim como de São Gregório, Hugo de São Vítor e São Bernardo de Claraval, xxiv assinalemos mais alguns pontos da obra de São Boaventura antes de aludirmos às Conferências Sobre os Dez Mandamentos – isto sem jamais perdermos de vista as disputas em torno dos escritos de Aristóteles. xxv Sem sombra de dúvida, o Cristocentrismo é uma das notas mais importantes dos escritos do teólogo franciscano. No magnífico Itinerarium Mentis in Deum, por exemplo, o intuito de Boaventura é mostrar que os atos humanos, em si mesmos considerados, têm importância apenas em ordem ao fim último da criatura racional: Deus, em quem reside a paz que ultrapassa todo sentimento. xxvi Caberia, pois, ao homem não perder de vista a face divina de Deus, o Verbo que se fez carne, o mestre de todos os mestres (Christus omnium magister), o meio de todas as ciências (medium omnium scientiarum) xxvii e a fonte primeva do aludido exemplarismo. xxviii Como arquétipo perfeito, Cristo é o necessário meio luminoso sem o qual a razão humana, literalmente, estaciona. Neste cenário, as perorações de S. Boaventura contra os filósofos pagãos se ancoram na circunstância de eles não terem conhecido a Cristo, princíxxiv A lista de autores católicos que, direta ou indiretamente, influenciaram São Boaventura é grande; nela não poderia faltar Pedro Lombardo, cujas Sentenças foram lidas e detidamente comentadas pelo Doutor Seráfico. xxv “Os novos livros de Aristóteles vinham principalmente da Espanha árabe. Foram logo seguidos das traduções de seu Abreviador, Avicena, e de seu Comentador, Averróis, o mais célebre peripatético do Islã. (…) Os escritos de Aristóteles encerravam teorias capazes de deixar inquieta a autoridade eclesiástica, de que dependia então o mundo escolar. Sabia-se, aliás, desde o século anterior, que o Estagirita se encontrava, em pontos muito importantes, em conflito com a fé cristã. Os mesmos comentários de Averróis (…) tinham trazido à luz e, ademais, exagerado os aspectos da filosofia de Aristóteles opostos às crenças das grandes religiões monoteístas. Ir-se-iam abrir as escolas da Cristandade a um mestre pagão cujo ensinamento era precioso, sem dúvida, mas cujas doutrinas não concordavam inteiramente com a fé da Igreja? Ir-se-ia sobretudo deixá-lo entrar em companhia de Averróis, seu devoto muçulmano (…)?” Quase não se teve tempo de pensar antes de responder: Aristóteles e Averróis traduzidos já estavam presentes. A autoridade eclesiástica deu o vigoroso golpe para deter o perigo da freqüentação de tais pagãos. A primeira proibição foi a do concílio da província eclesiástica de Sens, reunido em Paris em 1210”. Cf. Pierre Mandonnet, Siger de Brabante e o Averroísmo Latino do Século XIII, São Paulo, Primus, 2017, pp. 30-1. xxvi “(…) pacis illius, quae exuperat omnem sensum”. São Boaventura, Itinerarium Mentis in Deum, Prólogo, n. 1. xxvii Cf. Guillermo Fraile, Op. cit., p. 758. xxviii Cf. São Boaventura, In Hexaem., col. I, n. 17.


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pio e fim de toda intelecção superior. xxix Tal conclusão é congruente com a premissa boaventurana segundo a qual a filosofia é um dédalo sem saída. xxx Como se vê, não é a troco de nada que, em São Boaventura, se encontram paralelos do seguinte teor entre os gregos Platão e Aristóteles e o cristão S. Agostinho: “(…) entre os filósofos, Platão recebeu a palavra da sabedoria, e Aristóteles a da ciência. Aquele considerou preferencialmente as coisas superiores; este, as inferiores. Porém ambas as palavras, a da sabedoria e a da ciência, foram outorgadas pelo Espírito Santo a Agostinho”. xxxi

Esta perspectiva cristocêntrica, da qual evidentemente careceram os gregos, coloca o Logos divino como mediador da inteligência humana rumo à posse da verdade. Na iluminação da mente, da qual Cristo é o espelho, há uma tríplice conformidade das criaturas em relação a seu princípio causal divino: xxxii • há entes conformados a Deus enquanto vestígio; • há entes conformados a Deus enquanto imagem; e • há entes conformados a Deus enquanto semelhança. xxxiii Para compreender esta estrutura ontologicamente hierarquizada, S. Boaventura aponta três modos de conhecimento: creditivus (a certeza pia que provém da fé); collativus (a certeza racional que provém da teologia); e contemplativus (a clara visão da verdade que está no cume da trajetória mística). Para o franciscano, Cristo é a expressão do Pai, o paradigma de toda a criação e o modelo divino do homem. Este Cristocentrismo preconiza que em Nosso Senhor estão escondidas todas as riquezas da sabedoria e da ciência de Deus; xxix

“Horum ostium est intellectus Verbi incarnati, qui est radix intelligentiae omnium; (…) Philosophi autem habent pro impossibili quae sunt summe vera, quia ostium est eis clausum”. São Boaventura, Op. cit., III, 3-4. xxx Cf. São Boaventura, Op. cit., XVII, 25. xxxi São Boaventura, Christus unus omnium Magister, 18s. Aqui se observa que Boaventura, na esteira do seu mestre Alexandre de Hales, estabelece uma dicotomia entre ciência e sabedoria. xxxii Cf. Gerald Cresta, “Razón de Conocimiento y Conocimiento de Razão en el Sermón Bonaventurano”, Scintilla – Revista de Filosofia e Mística Medieval, Instituto de Filosofia São Boaventura (ISSN-2525-3034), Vol. 12, nº 2, p. 72. xxxiii Do vestígio à imagem e da imagem à semelhança há graus ascendentes de representatividade dos entes em relação a Deus. No centro disso tudo está Jesus Cristo, fonte iluminadora de toda realidade conhecida pelo homem.

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n’Ele também está o epicentro de todas as ciências, como matemática, física, metafísica, lógica, ética, política e teologia. xxxiv Outro aspecto proeminente da obra do Doutor Seráfico é o viés místico da metafísica. Delineemos aqui o arcabouço básico neste tópico: em razão de a realidade xxxv ser centrada em Cristo, no homem há uma superioridade ontológica do amor sobre o conhecimento, no sentido de que este último não basta. A sabedoria cristã começa, pois, na intelecção e se consuma no afeto amoroso, xxxvi na medida em que o nosso amor ao Verbo será sempre mais perfeito do que qualquer coisa que dele possamos conhecer. Frise-se, em tal cenário, que as razões do coração são uma nota peculiar da metafísica mística de São Boaventura e, de acordo com Gilson, designam uma tendência profunda do agostinismo medieval. xxxvii À parte do exemplarismo de matriz agostiniana, do Cristocentrismo de cunho místico e da quase completa reductio da metafísica à teologia, em S. Boaventura encontram-se pontos comuns com outros filósofos e teólogos do seu tempo: o labor em dividir as ciências de maneira orgânica, xxxviii algumas provas da existência de Deus, a defesa do pluralismo das formas xxxix e a tese da luz como primeira forma substancial xl são alguns desses motes. Vale ainda mencionar a sua adesão à teoria das razões seminais – outra influência agostiniana na obra do Doutor Seráfico –, num horizonte de considerações em que as causas segundas, embora não sejam criadoras no sentido estrito do termo, colaboram com a Causa Prima na obra da criação, ao colocarem em xxxiv

Cf. São Boaventura, In Hexaem., II. Em sua complexidade dinâmica. xxxvi “(…) in cognitione inchoatur et in affectione consummatur”. São Boaventura, III Sent., XXXV, 1. xxxvii Étienne Gilson, Op. cit., p. 394. xxxviii Naturalis: ciências da verdade acerca das coisas; Rationalis: ciências da verdade dos discursos; Moralis: ciências da verdade dos costumes. Cada um desses três ramos se subdivide em vários outros. Cf. Guillermo Fraile, Op. cit., p. 762. xxxix Neste tema, S. Boaventura acompanha a grande maioria dos autores do seu tempo e aceita a tese da pluralidade das formas substanciais no composto humano. Santo Tomás, que nisto é voz solitária, porém vitoriosa, defende que só pode haver uma forma substancial – ou seja: as instâncias vegetativa, sensitiva e volitivo-intelectiva não são formas distintas justapostas, mas, como potências distintas, integram a forma única da alma humana. Ressalve-se que S. Boaventura, não obstante o seu acolhimento do pluralismo formal, dá uma resolução mais satisfatória ao problema do que muitos do seu tempo, ao frisar em diferentes obras que o homem, embora composto, é uno por essência (cum homo sit unus per essentiam), porque as formas inferiores, apesar de não se destruírem, são reduzidas à unidade da forma superior. xl Na linha de Roberto Grosseteste e Guilherme de Auvérnia. xxxv


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ato matérias que estavam em potência. Em síntese, Deus teria criado a matéria universal com uma forma imperfeita e incompleta, porém com potência para formas mais perfeitas e completas. xli

3. As Conferências de S. Boaventura Os gêneros de produção literária do século XIII estão hoje devidamente identificados. O consenso entre os principais estudiosos é de que a quaestio – cuja origem remonta à lectio divina, no século IX – é o primeiro marco metodológico de todo o período escolástico. Isto nos leva a uma época muito anterior, mais especificamente a Santo Agostinho, para quem o mestre deve sempre ensinar a verdade com clareza, sem jamais dar margem a obscuridades semânticas. xlii Na obra De Doctrina Christiana, na esteira de Marco Terêncio Varrão (116 a.C.–27 a.C.), o Doutor da Graça insinua-nos haver uma ligação entre modos de ensinar a arte da gramática: lectio, emendatio, enarratio, iudicium. xliii Pois bem, a partir de tópicos como os acima mencionados, o método dialético conheceu um extraordinário florescimento no tempo de S. Boaventura, e contemporaneamente ninguém mais põe em discussão os vínculos pedagógicos e históricos existentes entre a lectio, a quaestio e a disputatio, em meio às quais se situa a collatio, que, no decorrer dos tempos, teve importância decisiva na elaboração dos textos de direito canônico. xliv A collatio, a propósito, é mais atual do que a princípio se poderia supor. Ainda hoje usa-se, por exemplo, o termo “colar grau”, mas poucos procuram xli

São Boaventura, II Sent., XII, I, 3. “(…) onde seja preciso resolver as dificuldades de algumas questões, é necessário lançar mão da clareza e da agudeza de engenho, o que é algo peculiar e implica simplicidade”. Santo Agostinho, De Doctrina Christiana, Cap. XII, n. 52. xliii Cf. Celina A. Lértora Mendoza, “Los géneros de producción escolástica: algunas cuestiones histórico-críticas”, Revista Española de Filosofía Medieval, Córdoba (ARG), Universidad de Córdoba, n.º 19, 2012, pp. 11-22. Em breves palavras, a lectio consistia na decifração de um texto a partir da identificação de letras, sílabas, palavras e frases; a emendatio, na correção dos textos dos alunos; a enarratio, no estudo do vocabulário e das figuras retóricas, assim como na interpretação dos textos; e o iudicium, na avaliação das qualidades estéticas e dos valores morais de um texto. Cf. Maísa de Alcântara Zakir, “De decifradores e copistas a leitores e produtores de textos”, em http://www.filologia.org.br/ileel/artigos/artigo_345.pdf xliv Cf. Thierry Lesieur, “La collatio: un modele chrètien de résolution de la question?”, apud Mireille Chazan e Gilbert Deham, La méthode critique au Moyen Âge, Turnhout, Brepols, 2006, pp. 167-180. xlii

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saber o que nele está implicado – embora a cerimônia de colação de grau indique tratar-se da outorga do bacharelado ou licenciatura para o exercício de uma profissão a partir do reconhecimento da comunidade acadêmica. Em síntese, “colação” vem do vocábulo latino collatio, xlv e este provém de collatus, particípio de conferre, o qual remete a cola, reunião, relação, comparação. Na colação de grau, como hoje a conhecemos, está subentendido que o graduando reuniu, xlvi em padrão mínimo de excelência, um conjunto de conhecimentos e competências importantes; portanto, graduar-se é ter relacionado, de maneira proficiente, vários saberes de determinada área. Voltemos agora às comunidades das abadias medievais, onde os irmãos se reuniam para ouvir conferências ministradas pelo abade e conversar sobre tópicos da Sagrada Escritura, sobretudo em dias solenes de festas alusivas a um santo ou a uma data importante do calendário litúrgico. Naquelas ocasiões, a primeira collatio que se realizava pela manhã, ainda no claustro, antes do trabalho manual, era uma conferência de caráter teológico, espiritual ou de formação, um sermão monástico dirigido pelo superior da comunidade. Podia também ser um sermão monástico que versasse sobre o livro a ser lido durante as refeições, bem no espírito da Regra de São Bento. A segunda collatio tinha lugar no finalzinho da tarde, depois das Vésperas, e se tratava de um diálogo com diversos interlocutores. xlvii Neste ambiente contemplativo, a collatio dava importante contribuição magisterial para uma compreensão efetiva da Palavra de Deus, fonte do convívio fraterno entre homens que buscavam edificar-se reciprocamente a partir de algo situado para muito além deles próprios. Tratava-se de uma lectio divina em sentido amplo, xlviii na qual predominava uma atitude de atenção e escuta ante o que era lido e comentado. Lectio e collatio eram, pois, realidades pedagogicamente complementares; podemos muito bem chamá-las de Conferências

xlv “Collatio, onis. s. a. f. (de conferre). Plaut. Ajuntamento, reunião, assembléia. (…) Cotejo, confrontação, paralelo”. Cf. F. R. dos Santos Saraiva, Novíssimo Dicionário Latino-Português – Etimológico, prosódico, histórico, geográfico, mitológico, biográfico, etc. Belo Horizonte, Livraria Garnier, 2006, p. 245. xlvi Ou deveria ter reunido. xlvii Pedro Edmundo Gómez, OSB, “La actualidad de la collatio monástica medieval”, texto acessível no seguinte link: < https://www.academia.edu/24770235/La_actualidad_metodol%C3%B3gica_ de_la_collatio_mon%C3%A1stica_medieval> xlviii Pedro Edmundo Gómez, OSB, Op. cit.


Conferências sobre os Dez Mandamentos · Apresentação

Espirituais. xlix Neste exato sentido devem ser entendidas as Collationes de Decem Praeceptis de São Boaventura que o leitor tem em mãos. Como se destacou acima, as collationes boaventuranas l surgiram como resposta aos desafios trazidos, tanto para a metafísica como para a teologia, pelo aristotelismo de matiz averroísta. li Isto permeia todas as páginas destas Conferências Sobre os Dez Mandamentos, nas quais o grande santo franciscano extrai do texto sacro conclusões preciosas, sempre com especial colorido, como nesta passagem: “Mas sabemos que para um paladar doente a comida doce parece amarga. De modo similar, para o homem que tem a vontade pervertida, os mandamentos de Deus, que são fáceis e suaves, parecem difíceis”. lii

Em suma, para S. Boaventura, da reprovável audácia filosófica procedem erros liii não apenas relativamente às verdades de razão, mas também no tocante às verdades da fé católica, motivo suficiente para o homem prudente colocar-se em guarda contra quem os propaga, que para o Doutor Seráfico está retratado pelo profeta Jeremias de modo enfático, na seguinte passagem: “Todo homem se torna néscio com a sua ciência”. liv

A Coleção Escolástica tem a honra de apresentar ao público leitor brasileiro, em tradução do jovem latinista Tiago Gadotti, este livro que integra com destaque o corpus boaventurano. Nesta breve apresentação, não é nosso propósito antecipar passagens da obra; fique apenas assentado que se trata de uma conferência espiritual de altíssimo nível, bastante útil para um tempo cada vez mais afastado dos princípios evangélicos. Lições valiosas de um dos grandes mestres que já pisaram o pó deste mundo. Entendemos cumprir, com a presente publicação, mais uma etapa do roteiro por nós concebido para esta coleção de clássicos escolásticos, tendo em vista que uma civilização que não bebe de suas próprias fontes está fadada a morrer de inanição espiritual, cedo ou tarde. xlix

Em ordem da salvação das almas. Collationes de Decem Praeceptis, Collationes de Septem Donis e Collationes in Hexaemeron li Cf. Marcos Aurélio Fernandes, Op. cit. lii V. p. X desta edição. liii V. p. X. liv Jr, 10,14–15. l

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(Collationes de Decem Praeceptis)


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COLLATIO I De quatuor motivis ad observantiam divinorum praeceptorum inducentibus et de decalogo in genere 1. Si vis ad vitam ingredi, serva mandata. Verba ista scripta sunt in Matthaeo et sunt verba Salvatoris nostri, in quibus explicatur nobis summa totius nostrae salutis quantum ad duo: primo, quantum ad praemium retributionis aeternae; ibi: Si vis ad vitam ingredi; secundo, quantum ad meritum operationis humanae, ibi: serva mandata. Et est hic rectus ordo, quia finis movet agentem, ut se exerceat in debitum finem. — Sequamur igitur formam istius magni Magistri; et antequam de istis praeceptis aliquid dicamus, prius dicamus de observantiis praeceptorum. 2. Praemittit Dominus motivum, postea subiungit actum, per quem possumus devenire in debitum finem. Et notandum, quod sunt quatuor, quae nos movent ad observandum mandata Dei. Primum est auctoritas sive dignitas mandantis; secundum est utilitas observationis; tertium est trangressionis periculum; quartum est irreprehensibilitas mandatorum. Quoniam igitur ille qui mandat, praecepta observari, est magnae auctoritatis, et observatio mandatorum est magnae utilitatis, et in transgressione magnum consistit periculum, et irreprehensibile est mandatum; ideo nullus est, qui possit habere excusationem de observatione mandatorum. 3. Primum igitur movere nos debet ad observandum mandata Dei auctoritas mandantis: quia Deus est, qui mandat, observari praecepta. Est enim magnae auctoritatis; quod patet ex tribus: primo, quia ipse sua magna potentia nos creat; secundo, quia nos sua mira sapientia regit et gubernat; tertio, quia sua munifica benevolentia nos salvat. — Primo dico, quod ille qui mandat, observari mandata Dei, est magnae auctoritatis, quia sua magna potentia nos creat; Iob: Manus tuae fecerunt me et plasmaverunt me totum in circuitu; et Deuteronomii undecimo: Oculi vestri viderunt omnia opera magna Dei, quae fecit, ut custodiatis mandata eius. 4. Secundo, est magnae auctoritatis, quia sua mira sapientia nos gubernat. Unde dicit Isaias: Ego Dominus, docens te utilia, gubernans te in via, qua ambulas. Utinam attendisses mandata mea! facta fuisset sicut flumen pax


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

CONFERÊNCIA I Sobre os quatro motivos que nos induzem a observar os preceitos divinos e sobre o Decálogo em geral 1. Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos. Estas palavras estão escritas em Mateus (19,17), e são palavras de nosso Salvador que resumem dois aspectos da nossa salvação: primeiro, o prêmio da recompensa eterna: se queres entrar na vida; segundo, o mérito das obras humanas: guarda os mandamentos. Esta é a ordem correta, pois o fim move o agente a buscar o fim devido. Sigamos, pois, a ordem proposta por nosso grande Mestre, e, antes de falar dos preceitos, falemos da observância dos preceitos. 2. O Senhor põe primeiro o motivo e depois a ação por meio da qual podemos alcançar o fim devido. Note-se que há quatro coisas que nos movem a observar os mandamentos de Deus: a primeira é a autoridade ou a dignidade de quem manda; a segunda é a utilidade da observância; a terceira é o perigo que advém da transgressão; a quarta é a irrepreensibilidade dos mandamentos. Portanto, como aquele que nos manda observar os preceitos possui grande autoridade, como a observação dos preceitos é maximamente útil e como há grande perigo em transgredi-los, sendo os mandamentos irrepreensíveis, ninguém pode escusar-se da sua observância. 3. Assim, a primeira coisa que nos deve mover a observar os mandamentos é a autoridade de Deus, que nos manda, pois quem manda observar os preceitos é o próprio Deus. Ele possui grande autoridade, como fica claro por três considerações: primeira, é Ele quem por Seu imenso poder nos criou; segunda, Ele rege e nos governa com Sua admirável sabedoria; terceira, Ele salva-nos por Sua generosa benevolência. Digo, em primeiro lugar, que aquele que nos manda observar os preceitos de Deus possui grande autoridade porque Seu imenso poder nos criou: As tuas mãos fizeram-me e modelaram-me (Jó 10,8); Os vossos olhos viram todas as grandes obras que o Senhor fez, para que observeis todos os seus mandamentos (Dt 11,7-8). 4. Em segundo lugar, possui grande autoridade porque nos governa com admirável sabedoria. Diz Isaías (48,17–18): Eu sou o Senhor teu Deus, que te ensino o que é útil, que te dirijo pelo caminho que segues. Oxalá que tu tivesses atendido os mandamentos! A tua paz teria sido como um rio. E o Salmo

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tua. Psalmus: Servavi mandata tua et testimonia tua; quia omnes viae meae in conspectu tuo. 5. Tertio, est magnae auctoritatis, quia sua munifica benevolentia nos salvat; Deuteronomii decimo: Et nunc, Israel, quid petit Dominus Deus tuus a te, nisi ut timeas Dominum Deum tuum et ambules in viis eius et diligas eum ac servias Domino Deo tuo in toto corde tuo et in tota anima tua, custodiasque mandata Domini? — Dominus, qui te creavit; Deus, qui te gubernat; tuus, qui te salvat. — Patet modo, quod ad servandum mandata Dei debet nos movere primo auctoritas mandantis. 6. Secundo debet nos movere ad observandum mandata Dei observationis utilitas. In servando enim mandata Dei est multiformis utilitas, quae ad tres utilitates reducitur. Prima utilitas est impetratio divinorum charismatum; secunda est revelatio sacrarum Scripturarum; tertia est assecutio caelestium praemiorum. 7. Prima, dico, utilitas in servando mandata Dei est impetratio divinorum charismatum; unde in loanne: Si diligitis me, mandata mea servate, et ego rogabo Patrem meum, et dabit vobis alium paracletum. 8. Secunda utilitas est intelligentia sacrarum Scripturarum; Psalmus: Super senes intellexi, quia mandata tua quaesivi. Sed quomodo perveniamus ad intelligentiam sacrarum Scripturarum, ostendit Gregorius; unde super illud, quod discipuli, quando viderunt Iesum, ipsum non intellexerunt, sed quando audierunt ipsum loquentem, tunc ipsum intellexerunt, dicit ibi Gregorius, quod “audiendo Dei praecepta discipuli illuminati non sunt, sed faciendo ea illuminati sunt”; quia non auditores legis tantum, sed factores iustificabuntur. Propter hoc dicit Iacobus in sua canonica: Estote factores verbi Dei et non auditores tantum, fallentes vosmetipsos; quia, si quis auditor est verbi Dei tantum et non factor, hic comparabitur viro consideranti vultum nativitatis suae in speculo. Si videt homo decies vultum suum proprium in speculo, adhuc non bene cognoscet ipsum; sed si videt vultum alterius hominis extra speculum, bene cognoscit ipsum; et hoc est propter fortem impressionem speciei super organum visus secundum lineam rectam, sed in speculo non est verus intuitus. Similiter, quando homo audit verbum Dei, videtur ei,


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

(118,168): Guardei os teus mandamentos e os teus testemunhos, porque todos os meus caminhos estão presentes aos teus olhos. 5. Em terceiro, possui grande autoridade porque nos salva por generosa benevolência. E agora, ó Israel, que é o que o Senhor teu Deus pede de ti, senão que temas o Senhor teu Deus, e andes nos seus caminhos, e o ames, e sirvas o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e que observes os mandamentos do Senhor? (Dt 10,12–13). O Senhor, que te criou, Deus, que te governa, teu, que te salva. Fica claro, portanto, que a primeira coisa que nos deve mover a observar os mandamentos de Deus é a autoridade de quem manda. 6. Em segundo lugar, deve mover-nos a observar os mandamentos de Deus a utilidade da observância. Observar os mandamentos é útil sob muitos aspectos, que se reduzem a três. Primeiro, é útil porque Deus se dispõe a nos conceder Seus dons; segundo, porque alcançamos o entendimento das Sagradas Escrituras; terceiro, porque obtemos os prêmios celestes. 7. Digo que o primeiro fruto da observância dos mandamentos é conseguirmos receber os dons de Deus. Está dito em João (14,15–16): Se me amais, observai os meus mandamentos. E eu rogarei ao Pai, e ele vos dará um outro Paráclito. 8. Segundo, é útil porque entendemos as Sagradas Escrituras. Salmo (118,10): Entendi mais que os anciãos, porque busquei os teus preceitos. Gregório1 explica-nos como podemos alcançar o entendimento das Sagradas Escrituras. Ao comentar aquela passagem em que Jesus não fora de imediato reconhecido por Seus discípulos – sendo-o apenas depois de lhes ter dirigido a palavra –, diz Gregório que “quando ouviram os preceitos de Deus, os discípulos não foram iluminados; mas quando os praticaram, foram iluminados”, pois não os que apenas ouvem a lei, mas os que observam a lei serão justificados (Rm 2,13). Por isso diz Tiago em sua Epístola (1,22–23): Sede, pois, fazedores da palavra e não ouvintes somente, enganando-vos a vós mesmos, porque se alguém é ouvinte da palavra e não fazedor, este será comparado a um homem que contempla num espelho o seu rosto. Se um homem contempla dez vezes seu rosto num espelho, nem por isso o conhece bem; mas se vê o rosto de outro homem fora de um espelho, conhece-o bem. Isso se dá pela forte impressão causada no órgão visual por uma imagem vista diretamente; no espelho, porém, não temos uma verdadeira visão da coisa. De modo similar, quando o homem só ouve a palavra de Deus, parece-lhe que a entendeu bem, mas logo se afasta 1 São Gregório Magno, Homil. in Evang., 23, n. 2.

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quod ipsum bene intelligat, sed statim recedit; sed quando ponit ipsum ad experientiam bene operando, tunc ipsum intelligit. 9. Tertia utilitas observationis mandatorum Dei est assecutio caelestium praemiorum. Unde dicitur in Proverbiis: Serva mandata mea, et vives; et legem meam quasi pupillam oculi. Haec est ratio, quare homini existenti in paradiso Deus dedit observantiam mandatorum. — Patet modo, quod ad observandum mandata Dei debet nos movere utilitas observationis. 10. Tertio debet nos movere ad observantiam mandatorum transgressionis periculum, quia transgressor mandatorum incidit in multa pericula: primo, quia multa bona perdit; secundo, quia in nefanda flagitia ruit; tertio, quia aeterna supplicia meretur. — Primo, dico, debet nos movere ad servandum mandata Dei transgressionis periculum, quia transgressores multa bona perdunt; unde in Levitico: Si non audieritis vocem meam et non feceritis omnia mandata mea; visitabo vos in egestate et calore, qui conficiet oculos vestros et consumet animas vestras. Dicit: Visitabo vos in egestate; ecce, omnium honorum privatio; et calore, qui conficiet oculos vestros et consumet animas vestras, quia excaecat intellectum veri et aufert affectum boni; et propter hoc in persona transgressoris dicit Psalmista: Dereliquit me virtus mea et lumen oculorum meorum, et ipsum non est mecum. 11. Secundo, transgressores mandatorum in nefanda flagitia ruunt; unde in Baruch: Non obedivimus voci Domini, ut ambularemus in mandatis eius, et abivimus unusquisque in sensum cordis sui maligni. De talibus transgressoribus dicit Psalmus: Populus meus non audivit vocem meam, et Israel non intendit mihi, et dimisi eos secundum desideria cordis eorum. Tales enim transgressores dat Dominus in manus daemonum. Quod bene significatum est in Danielis tertio, ubi dicitur, quod tres pueri existentes in fornace ignis dixerunt: Peccavimus et inique egimus et praevaricati sumus; sequitur: Et traditi sumus in manibus inimicorum nostrorum iniquorum et pessimorum praevaricatorumque et regi iniusto et pessimo ultra omnem terram. 12. Tertio, transgressores mandatorum aeterna supplicia promerentur; Psalmus: Maledicti, qui declinant a mandatis tuis; maledicti, quia dicetur eis: Ite, maledicti, in ignem aeternum, Matthaei vigesimo quinto.


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

dela; porém quando põe a palavra em prática, agindo corretamente, então verdadeiramente entende [a palavra]. 9. Terceiro, a observância dos mandamentos de Deus é útil, pois alcançamos os prêmios celestes. Por isso se diz em Provérbios (7,2): Observa os meus mandamentos, e viverás; guarda a minha lei como a menina dos teus olhos. Essa é a razão por que Deus deu mandamentos ao homem quando ainda estava no Paraíso. Fica claro, portanto, que a utilidade da observância dos mandamentos de Deus deve mover-nos a observá-los. 10. Em terceiro lugar, deve mover-nos a observar os mandamentos o perigo que advém de não os observarmos, pois o transgressor dos mandamentos corre muitos riscos: primeiro, perde muitos bens; segundo, incide em torpezas abomináveis; terceiro, torna-se merecedor dos suplícios eternos. Digo primeiro que o perigo que advém da transgressão deve mover-nos a observar os mandamentos de Deus, porque os transgressores perdem muitos bens. Está dito em Levítico (16,14 e 16): Se porém não me ouvirdes, e não observardes todos os meus mandamentos, visitar-vos-ei prontamente com a indigência e com um ardor, que vos seque os vossos olhos, e consuma as vossas almas. Diz que os visitará com a indigência, privando-os de todos os bens, e com um ardor, que lhes seque os olhos, e consuma as suas almas, pois secará o entendimento da verdade e o amor do bem. Por isso diz o Salmista, na pessoa do transgressor: A minha força desamparou-se, e a própria luz dos meus olhos não está comigo (Sl 37,11). 11. Segundo, os transgressores dos mandamentos incidem em torpezas abomináveis. Está dito em Baruc (1,18 e 22): Não ouvimos a voz do Senhor, para andarmos segundo os preceitos que ele nos deu, e cada um de nós andou segundo o sentido e a inclinação do seu coração corrompido. O Salmo (118,21) diz o seguinte sobre tais transgressores: O meu povo não ouviu a minha voz, e Israel não me atendeu. E abandonei-os aos desejos do seu coração. Com efeito, o Senhor entrega tais transgressores nas mãos dos demônios. Isso está indicado no terceiro livro de Daniel (vv. 29 e 32), que relata as seguintes palavras dos três jovens lançados na fornalha de fogo: Pecamos e procedemos iniquamente, e em todas as coisas temos delinqüido, e nos entregaste nas mãos de nossos inimigos iníquos, e malvadíssimos, e prevaricadores, e a um rei injusto, e o pior que há em toda a terra. 12. Terceiro, os transgressores dos mandamentos tornam-se merecedores dos suplícios eternos. Malditos os que se afastam dos teus mandamentos (Sl 118,21), porque Deus lhes diz: apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno (Mt 25,41).

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13. Ecce, observationis mira utilitas et transgressionis mira calamitas. Unde Dominus per Moysen: En, inquit, propono tibi benedictionem et malediclionem: benedictionem, si mandata mea feceris; maledictionem, si non feceris. Ponit nos Dominus in medio et operatur nobiscum mirabiliter. Quando aliquis vult aliquid alii ostendere, procedit contra ipsum duplici via, scilicet per rationem ostensivam et per rationem ducentem ad impossibile. Sic facit Dominus: ponit hominem in medio inter caelum et infernum; in caelo est aeterna gloria, in inferno sunt aeterna supplicia: Et quando Dominus ostendit honiini gloriam paradisi, quam potest promereri servando mandata; tunc inclinat ipsum ad observantiam mandatorum per rationem ostensivam. Quando vero ostendit ei supplicia inferni, in quae ruet, si transgreditur mandata; tunc inclinat ipsum per rationem ducentem ad impossibile. — Ecce, proponit nobis maledictionem et benedictionem; dimittamus Iudae proditori maledictionem et laqueos, de quo dicitur, quod noluit benedictionem, et elongabitur ab eo; et nos cum beato Mathia recipiamus benedictionem. 14. Quarto debet nos movere ad observantiam mandatorum irreprehensibilitas mandatorum. Mandatum dicitur irreprehensibile, quando non continet aliquid impossibile nec aliquid onerosum nec aliquid iniquum. Sic est in mandatis Dei. 15. Primo, dico, sunt mandata Dei irreprehensibilia, quia non continent aliquid impossibile; unde in prima Ioannis: Haec est caritas Dei, ut mandata eius custodiamus, et mandata eius gravia non sunt. Praemittit: haec est caritas Dei; habenti enim caritatem mandata Dei sunt facilia et suavia, sed non habenti caritatem videntur difficilia. Et ponit Augustinus exemplum de ave habente plumas et de ave sine plumis; et dicit, quod avi habenti plumas facile est volare, sed avi non habenti plumas est difficile. Similiter homini perversae voluntatis videntur mandata difficilia, quae ha-


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13. Eis aí as vantagens da observância e as desgraças causadas pela transgressão. Por isso diz o Senhor por meio de Moisés: Eis que eu ponho hoje diante dos vossos olhos a bênção e a maldição: a bênção, se obedecerdes aos mandamentos; a maldição, se não obedecerdes (Dt 11: 26-28). O Senhor procede conosco de modo admirável, pondo-nos diante [de duas escolhas]. Quando alguém quer demonstrar algo a outro, serve-se de duas vias: de argumentos probantes, ou de argumentos que levam ao impossível.2 Assim faz o Senhor: põe o homem entre o Céu e o Inferno. No Céu está a eterna glória; no Inferno, os suplícios eternos. Quando o Senhor mostra ao homem a glória do Paraíso que pode ser merecida pela observância dos mandamentos, inclina-o à observância dos mandamentos por um argumento probante. Quando, porém, lhe mostra os suplícios do inferno, inclina-o por um argumento que leva ao absurdo.3 Eis que nos propõe a maldição e a bênção; que nos afastemos da maldição e dos laços do traidor Judas, sobre o qual está dito que não quis a bênção (Sl 108,18), e abracemos a bênção com Matias. 14. Em quarto lugar, deve mover-se à observância dos mandamentos a sua irrepreensibilidade. Um mandamento é irrepreensível quando não contém algo impossível, nem algo pesado, nem algo iníquo. E os mandamentos de Deus são assim. 15. Digo, primeiro, que os mandamentos de Deus são irrepreensíveis porque não contêm nada de impossível. Por isso se diz na Primeira Epístola de João (5,3): Porque o amor de Deus consiste em guardarmos os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são custosos. João antepõe a expressão o amor de Deus, pois, para quem tem caridade, os mandamentos de Deus são fáceis e suaves, mas para quem não tem caridade, parecem difíceis. Agostinho compara [esses dois tipos de homem] a uma ave que tem penas e a uma ave que não as tem, e diz que, para a ave que tem penas, é fácil voar, mas para a ave que não as tem, é difícil. De modo similar, para o homem que tem uma vontade pervertida, os mandamentos parecem difíceis, enquanto são fáceis para quem 2 Cf. Aristóteles, II, Prior., c. 14. Lat. “ducentem ad impossibile”. No tempo de São Boaventura, a lógica aristotélica foi estudada a fundo e muitos autores dedicaram textos copiosos ao argumento conhecido como apagógico, pelo qual se procurava demonstrar a falsidade de uma proposição levando-a a extremos e, destes, a uma conclusão absurda, inaceitável para o senso comum. No caso de que se trata, os suplícios eternos a que o raciocínio inclina eram considerados uma absurdidade para o senso comum, na medida em que pareciam contrariar o infinito amor divino. [Nota do Coordenador, doravante N. C.] 3 Lat. “tunc inclinat ipsum per rationem ducentem ad impossibile”.

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benti caritatem sunt facilia. Unde dicitur in Deuteronomio: Mandatum hoc, quod ego praecipio tibi hodie, non est super te nec procul positum nec in caelo situm nec trans mare positum sed iuxta te est valde sermo, in ore tuo et in corde tuo, ut facias illum. 16. Secundo, mandata Dei sunt irreprehensibilia, quia non continent aliquid onerosum, imino sunt suavia. Unde dicitur in Ecclesiastico: Nihil melius est quam timor Dei, et nihil dulcius quam respicere in mandatis Domini; Psalmus: Desiderabilia super aurum et lapidem pretiosum multum et dulciora super mel et favum. Gaudium iusto est facere iudicium sive iustitiam. Sed videmus, quod palato infecto cibus dulcis videtur esse amarus; similiter homini perversae voluntatis mandata Dei, quae sunt facilia et suavia, videntur difficilia. 17. Tertio, mandata Dei sunt irreprehensibilia, quia non continent aliquid iniquum; unde Apostolus: Lex quidem sancta, et mandatum sanctum et iustum et bonum. Propter hoc dicit alibi: Praecipio tibi coram Deo, qui vivificat omnia, ut sine macula serves mandatum irreprehensibile. — Patet igitur modo irreprehensibilitas mandatorum. 18. Coniungamus igitur ista quatuor, scilicet auctoritatem praecipientis, utilitatem observationis, transgressionis periculum et irreprehensibilitatem mandatorum; et videbimus, quod nullus est, qui se poterit excusare de observatione praeceptorum. 19. Sed quod est mandatum primum et magnum in Lege? Respondet Dominus in Matthaeo: Diliges Dominum Deum tuum ex toto corde tuo et in tota anima tua et in tota mente tua. Hoc est maximum et primum mandatum. Secundum autem simile est huic: diliges proximum tuum sicut te ipsum. In his duobus universa Lex pendet et Prophetae. Augustinus ostendit, quod in isto verbo: Mihi autem adhaerere Deo bonum est, continetur totum hoc, quod dicitur: Diliges Dominum Deum etc. Debemus enim diligere Deum, quia hoc est iustum, sanctum, facile et suave. Unde Augustinus:  Domine, quis mihi es? Et ego quis tibi, ut iubeas me amare te, et si non amem te, mineris mihi ingentes miserias�?


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

tem caridade. Por isso se diz em Deuteronômio (30,11–14): Este mandamento, que eu hoje te intimo, não está sobre ti, nem longe de ti, nem está posto no céu, nem está da banda d’além do mar, mas está perto de ti, está na tua boca e no teu coração, para o cumprires. 16. Em segundo lugar, os mandamentos de Deus são irrepreensíveis porque não contêm nada de pesado – em verdade, são suaves. Por isso se diz no Eclesiástico (23,37): Não há coisa melhor do que o temor de Deus, e nada há mais doce do que observar os mandamentos do Senhor. E no Salmo (18,11): São mais para desejar do que o muito ouro e as muitas pedras preciosas; e são mais doces do que o mel e o favo. [E em Provérbios (21,15)]: O justo encontra a sua alegria na prática da justiça. Mas sabemos que para um paladar doente a comida doce parece amarga. De modo similar, para o homem que tem uma vontade pervertida, os mandamentos de Deus, que são fáceis e suaves, parecem difíceis. 17. Em terceiro lugar, os mandamentos de Deus são irrepreensíveis porque não contêm nada de iníquo. Diz o Apóstolo: A lei é santa, e o mandamento é santo, e justo e bom (Rm 7,12). Por isso também diz em outro lugar: Eu te ordeno, diante de Deus, que dá vida a todas as coisas, que observes este mandamento irrepreensível. Fica claro, portanto, que os mandamentos são irrepreensíveis. 18. Juntemos essas quatro coisas – a autoridade de quem manda, a utilidade da observância, os perigos da transgressão e a irrepreensibilidade dos mandamentos –, e veremos que ninguém pode escusar-se da observância dos mandamentos. 19. Mas qual é o primeiro e maior mandamento da lei? Responde o Senhor em Mateus (22, 36–40): Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu espírito. Este é o máximo e o primeiro mandamento. E o segundo é semelhante a este: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Destes dois mandamentos depende toda a lei e os profetas. Agostinho diz que as palavras “para mim é bom unir-me a Deus (Sl 72,28)” contêm todo o primeiro mandamento:4 Amarás o Senhor teu Deus, etc. Com efeito, devemos amar a Deus, pois isso é justo, santo, fácil e suave. Diz Agostinho:5 “Senhor, quem és tu para mim? E quem sou eu para ti, para que me ordenes a amar-te e me ameaces com imensas misérias se não te amar?”. 4 Santo Agostinho, De moribus Eccles. Cath., c. 8, n. 13 (PL 32, 1316). 5 Santo Agostinho, Confess., I, c. 5., n. 5 (PL 32, 663).

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20. Ceterum decalogus sacer, qui datus est Moysi in monte Sinai, ostendit, quomodo debemus custodire mandata Dei; et volo vobis ostendere, quod sicut sunt octo partes orationis, quae sunt fundamentum omnium eorum, quae per vocem exprimi possunt in grammatica, et sicut sunt decem praedicamenta, quae sunt fundamentum omnium eorum quae determinantur in dialectica; sic decem praecepta sunt fundamentum omnium legum et divinorum praeceptorum. Voluit enim Dominus, quod non sine ratione essent Moysi data. — Dicam modo ista praecepta in generali: Non habebis deos alienos. Non assumes nomen Dei tui in vanum. Memento, ut diem Sabbati sanctifices. Honora patrem tuum et matrem tuam. Non occides. Non moechaberis. Non furtum facies. Non falsum testimonium dices. Non concupisces uxorem proximi tui, Neque aliquam rem eius. 21. Et notandum, quod lex omnis non mandat nisi iustitiam. Est enim lex regula iustitiae; iustitia autem est, secundum quam homo habet ordinari ad Deum et ad proximum. Secundum hoc est duplex iustitia: una, qua ordinamur ad Deum; alia, qua ordinamur ad proximum; et secundum hoc datae fuerunt Moysi duae tabulae, scilicet prima et secunda. In prima continentur mandata ordinantia nos ad Deum, in secunda continentur mandata ordinantia nos ad proximum. 22. In prima, dico, tabula continentur mandata ordinantia nos ad Deum; Deus autem est Trinitas, Pater et Filius et Spiritus sanctus. Patri attribuitur maiestas, Filio veritas et Spiritui sancto bonitas. In Patre est summa maiestas humiliter adoranda; in Filio est summa veritas fideliter asserenda; in Spiritu sancto est summa bonitas sincere amanda. Sed si ista


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

20. Por fim, o sagrado Decálogo que foi dado a Moisés no Monte Sinai mostra-nos como devemos guardar os mandamentos de Deus. Desejo mostrar-vos que, assim como na Gramática há oito classes de palavras6 – que são o fundamento de tudo que podemos exprimir verbalmente –, e assim como há dez predicamentos, que são o fundamento de tudo o que se estabelece na Dialética, assim também os Dez Mandamentos são o fundamento de todas as leis e preceitos divinos. O Senhor deu-os a Moisés de modo ordenado. Direi agora quais são esses preceitos, de modo geral: 1. Não terás outros deuses; 2. Não tomarás o nome de Deus em vão; 3. Lembra-te de santificar o dia de Sábado; 4. Honra teu pai e tua mãe: 5. Não matarás: 6. Não cometerás adultério: 7. Não furtarás: 8. Não darás falso testemunho: 9. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, 10. Nem nada do que é dele. 21. Note-se que toda lei não ordena senão à justiça. Com efeito, a lei é a regra da justiça, e a justiça é aquilo segundo o qual o homem se ordena a Deus e ao próximo. Assim, há uma dupla justiça: uma segundo a qual nos ordenamos a Deus, e outra segundo a qual nos ordenamos ao próximo. Por isso foram dadas a Moisés duas tábuas: a primeira e a segunda. Na primeira estão os mandamentos que nos ordenam a Deus; na segunda estão os mandamentos que nos ordenam ao próximo. 22. Digo que na primeira tábua estão os mandamentos que nos ordenam a Deus. Mas Deus é Trindade: Pai, Filho e Espírito Santo. Ao Pai atribui-se a majestade; ao Filho, a verdade; ao Espírito Santo, a bondade. No Pai devemos adorar humildemente a Suma Majestade; no Filho, devemos afirmar fielmente a Suma Verdade; no Espírito Santo, devemos amar sinceramente 6 Boaventura refere-se às oitos classes de palavras descritas em Prisciano (Institutiones Grammaticae), muito estudado no seu tempo: nomen, pronomen, verbum, participium, adverbium, praepositio, coniunctio e interiectio. [N. C.]

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tria ex aeterna ordinatione debemus facere, tunc necesse est, in prima tabula esse tria mandata secundum ista tria appropriata tribus personis divinis. In primo quidem mandato praecipitur humilis adoratio divinae maiestatis, cum dicitur: Non habebis deos alienos. In secundo mandato praecipitur fidelis assertio divinae veritatis, cum dicitur: Non assumes nomen Dei tui in vanum. In tertio praecipitur divinae bonitatis sincera dilectio, cum dicitur: Memento, ut diem Sabbati sanctifices. Ista sunt tria mandata primae tabulae. 23. In secunda tabula continentur septem mandata ordinantia nos ad proximum, quae significantur per duo praecepta legis naturae, scilicet: hoc facias alii, quod tibi vis fieri; non facias alii, quod tibi non vis fieri. — Et secundum haec duo praecepta legis naturae accipitur duplex iustitia, quarum una est innocentiae, altera beneficentiae; et secundum istam duplicem iustitiam duplex est mandatum: primum beneficentiae, alterum innocentiae. — Mandatum beneficentiae est: Honora patrem tuum et matrem tuam. Hoc autem mandatum non solum est reverentiae, sed est etiam beneficii et obsequii; et non solum est in patre, immo in omnibus, qui a patre procedunt. 24. Mandatum autem, quod est innocentiae, necesse est multiplicari, quia consistit in hoc, ut homo caveat ab offensa proximi sui. Tripliciter autem contingit offendere proximum, scilicet in animo, verbo et facto. Offensa autem in facto est tribus modis, quia potest homo offendere proximum per factum aut in persona propria, aut in persona sibi coniuncta, aut in possessione terrena. Et secundum hoc sunt tria mandata: Non occides; non moechaberis; non furtum facies. Deinde sequitur offensa in verbo, contra quam est unum mandatum, scilicet non falsum testimonium dices. Per falsum autem testimonium significantur omnia, quae homo potest dicere contra proximum suum. Offensa autem in animo duas habet radices secundum duplicem concupiscentiam, scilicet carnis et oculorum. Contra concupiscentiam carnis est


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

a Suma Bondade. Mas, como a vontade eterna [de Deus] quer que façamos essas três coisas, é necessário que na primeira tábua haja três mandamentos que correspondam às três apropriações7 das três Pessoas divinas. No primeiro mandamento ordena-se a humilde adoração da majestade divina, ao se dizer: Não terás outros deuses. No segundo mandamento ordena-se a afirmação fiel da verdade divina, ao se dizer: Não tomarás o nome de Deus em vão. No terceiro, ordena-se o amor sincero da bondade divina, ao se dizer: Lembra-te de santificar o dia de Sábado. Esses são os três mandamentos da primeira tábua. 23. Na segunda tábua estão os sete mandamentos que nos ordenam ao próximo, que são o desdobramento de dois preceitos da lei natural,8 isto é, “faz a outro o que queres que te façam” e “não faças a outro o que não queres que te façam”. De acordo com esses dois preceitos da lei natural, existe uma dupla justiça: a de inocência e a de beneficência. Assim, de acordo com essa dupla justiça, há dois tipos de mandamento: o de beneficência e o de inocência. O mandamento de beneficência é: Honra teu pai e tua mãe. Esse mandamento não ordena apenas que prestemos reverência, mas que prestemos auxílio e favores, não só ao pai, mas a todos que participam da idéia de paternidade.9 24. Os mandamentos de inocência devem multiplicar-se, porque consistem em proibições de ofensas ao próximo. Ora, podemos ofender o próximo de três modos: em pensamento, em palavras e em atos. A ofensa em atos pode dar-se de três modos, pois o homem pode em atos ofender o próximo em sua própria pessoa, na pessoa que está unida a ele, ou em suas posses terrenas. Há três mandamentos que correspondem [a essas três ofensas]: Não matarás; não cometerás adultério; não furtarás. Depois vem a ofensa em palavras, contra a qual há um só mandamento: Não darás falso testemunho. “Falso testemunho” significa tudo que o homem pode falar contra seu próximo. A ofensa em pensamento tem duas raízes, a concupiscência da carne ou a concupiscência dos olhos. Há um mandamento contra a concupiscência da 7 Lat. “appropriata”. Ou seja, ao que é próprio de cada Pessoa da Santíssima Trindade. [N. C.] 8 A partir de Duns Scot, já no começo do século XIV, muitos teólogos franciscanos passarão abstrusamente a defender que somente os dois primeiros mandamentos da primeira tábua pertencem à lei natural; os demais nada teriam que ver com ela. [N. C.] 9 Lat. “patre procedunt”. S. Boaventura parece referir-se aqui a todos os que – fazendo as vezes do pai – têm a sua autoridade haurida da idéia de paternidade. [N. C]

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unum mandatum: Non concupisces uxorem proximi tui. Contra concupiscentiam oculorum est aliud mandatum: non agrum neque aliquam aliam rem. Patet modo in generali, quae sint decem praecepta et penes quid accipiantur.


Conferências sobre os Dez Mandamentos · I

carne: Não cobiçarás a mulher do teu próximo, e outro contra a concupiscência dos olhos: Não cobiçarás seu campo nem nada do que é seu. Fica claro, portanto, quais são os Dez Mandamentos e o que significam.

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COLLATIO II De primo praecepto decalogi in specie 1. Ascende ad me in montem, et dabo tibi duas tabulas lapideas et Legem et mandata, quae scripsi, ut doceas filios Israel, Exodi vigesimo quarto. — Declinate a me maligni, et scrutabor mandata Dei mei. Legitur, quod beatus Gregorius, qui fuit Papa et Doctor Ecclesiae, habuit pro consuetudine, quod quando ibat ad studium legis divinae, semper dicebat ista verba: Declinate a me etc. Quaesitum fuit ab eo, quare hoc faceret; et respondit Petro, cui consuevit dicere secreta sua, quod experimento didicerat, quod quando cogitare voluit in lege Dei, sentiebat daemones semper sibi adversantes. In aliis autem subtilitatibus non instigant daemones, quia in ipsis non vident suum damnum; immo exspectant emolumentum. Sed quando fit mentio de documentis veritatis, per quae fugantur daemones; tunc princeps tenebrarum occurrit armatus modo per occupationes terrenas, modo per illusiones phantasticas, et nititur revocare animos hominum a studio veritatis. Verum est, quod verba ista: Declinate a me etc., dixit beatus Gregorius, qui virtutem habuit compescendi daemones; sed ego non sum ex illis. Ideo in principio rogemus Dominum, ut imperet daemonibus, ne nos impediant, sed ut det nobis mentes serenas ad intelligendum verba de mandatis suis. 2. Ascende ad me etc. Verbum illud dixit Dominus Moysi, et Moyses, audito verbo, ascendit in montem et accepit duas tabulas lapideas et Legem et mandata. In quo significatur, quod si volumus pervenire ad intelligentiam mandatorum Dei, debemus ascendere in montem, id est in eminentiam mentis; quia secundum impressionem lucis aeternae lex naturae est nobis data, et secundum illam lucem documenta legis divinae suscepimus. 3. Tangebam vobis alias, quod certum est, quod ens ex se primo cadit in animam. Duplex autem est ens, scilicet creatum et increatum, et secun-


Conferências sobre os Dez Mandamentos · II

CONFERÊNCIA II Sobre o primeiro preceito do Decálogo, considerado especificamente 1. Sobe para mim ao monte, e eu te darei as tábuas de pedra, e a lei, e os mandamentos, que eu escrevi para os ensinares aos filhos de Israel (Êx 24,12). Retirai-vos de mim, malignos, e eu estudarei os mandamentos do meu Deus (Sl 118,115). Lemos que o bem-aventurado Gregório, que foi Papa e Doutor da Igreja, tinha o costume de dizer as seguintes palavras, sempre que empreendia o estudo da lei divina: Retirai-vos de mim, etc. Perguntaram-lhe por que fazia isso, e respondeu a Pedro, a quem costumava confiar seus segredos, que tinha aprendido por experiência que, toda vez que se propunha meditar na lei de Deus, os demônios sempre se opunham. Os demônios não o incomodavam quando se dedicava a outras especulações, porque não só não são prejudicados por essas especulações, como também esperam delas algum ganho. Mas quando nos lembramos das doutrinas da Verdade, que afugentam os demônios, então o Príncipe das Trevas se arma e nos ataca – ora pelas ocupações terrenas, ora pelas ilusões da imaginação – e tenta afastar o espírito dos homens do estudo da Verdade. É verdade que as palavras “retirai-vos de mim, etc.” eram ditas pelo bem-aventurado Gregório, que tinha poder de expulsar os demônios; mas eu não o tenho.10 Por isso, roguemos logo no princípio ao Senhor para que impere aos demônios que não nos atrapalhem, e para que nos dê uma mente serena, a fim de entendermos as palavras de Seus mandamentos. 2. Sobe para mim, etc. O Senhor disse essas palavras a Moisés, e Moisés, tendo-as ouvido, subiu ao monte e recebeu as duas tábuas de pedra, a Lei e os mandamentos. Isso significa que, se quisermos alcançar o entendimento dos mandamentos de Deus, devemos subir ao monte, isto é, ao cume de nossa mente, porque a lei natural nos foi dada por uma impressão da luz eterna, e mediante essa luz recebemos os ensinamentos da lei divina. 3. Em outro lugar vos disse que “ente” é a primeira coisa percebida pela alma, e isso é certo.11 Mas como existem dois tipos de ente, o criado e o 10 Lê-se na edição crítica de 1891: “Non invenimus unde sumta sit haec de Gregorio narratio”. Cf. S. Boaventura, Opuscula Varia, Tomus V, Roma, Ed. Claras Aquas (Quaracchi), 1891, p. 511. [N. C.] 11 São Boaventura refere-se a passagens de outras obras suas em que se faz alusão a Avicena, Metaph., tr. 1, c. 6, onde o pensador árabe afirma que o ente estabelece a primeira impressão na alma humana. [N. C.]

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dum hoc duplex est iustitia: una, per quam ordinamur ad ens increatum, alia, per quam ordinamur ad ens creatum. Et secundum hanc duplicem iustitiam duplex est tabula Moysi data, scilicet prima et secunda. In prima tabula continentur mandata, per quae ordinamur ad ens increatum, id est Deum. In secunda tabula continentur mandata, per quae ordinamur ad ens creatum, scilicet proximum. 4. Ens autem increatum est causa omnium rerum, causa, dico, efficiens, formalis-exemplaris et finalis, et habet potentiam, sapientiam et benevolentiam et producit omnia in esse. Et ista tria appropriantur tribus personis in Trinitate: potentia sive maiestas appropriatur Patri, sapientia sive veritas Filio, benevolentia sive bonitas Spiritui sancto. Summa maiestas in Patre humiliter est adoranda, summa veritas in Filio fideliter est asserenda, et divina bonitas in Spiritu sancto sincere est amanda. — Ista dicta fuerunt de mandatis primae tabulae in generali; sed quia sermones circa mandata in generali dicti sunt inutiles, nisi fiant in speciali; ideo oportet explicare de mandatis in speciali. — Dictum fuit in generali, quod sunt decem mandata, quorum prima tria continentur in prima tabula et septem in secunda. 5. Dicam autem vobis generale documentum: aeterna Dei sapientia, quae scripsit tabulas istas, brevissimo modo, clarissimo modo et facillimo modo, quo potuit, tradidit. Brevissimo quidem modo tradidit, ne oneraretur nostra memoria; clarissimo modo, ne offuscaretur nostra intelligentia; facillimo modo, ne retraheretur vel revocaretur nostra voluntas. Haec est ratio, quare per verba quanto breviora et quanto clariora et faciliora et per actus synecdochicos data sunt mandata. 6. Primo igitur videamus de primo mandato. Et hic notandum, quod, sicut videmus in aliis rebus, quod primum opus est fundamentum et regula omnium subsequentium, sic primum mandatum est fundamentum et regula omnium aliorum mandatorum. 7. Prima verba de mandatis sunt haec: Ego sum Dominus Deus tuus, qui eduxi te de terra Aegypti, de domo servitutis. Non habebis deos alienos coram


Conferências sobre os Dez Mandamentos · II

incriado, existem também dois tipos de justiça: uma que nos ordena ao ente incriado; outra que nos ordena ao ente criado. Segundo essa dupla justiça, foram dadas a Moisés duas tábuas, a primeira e a segunda. Na primeira estão os mandamentos que nos ordenam ao ente incriado, isto é, a Deus, e na segunda estão os mandamentos que nos ordenam ao ente criado, isto é, ao próximo.12 4. Ora, o ente incriado é a causa de todas as coisas, a saber, [a causa] eficiente, formal-exemplar e final, e tem poder, sabedoria e benevolência, e produz todas as coisas no ser. Esses três [atributos] são apropriados a cada uma das três Pessoas da Trindade: o poder, ou a majestade, é apropriado ao Pai; a sabedoria, ou a verdade, ao Filho; a benevolência, ou a bondade, ao Espírito Santo. A Suma Majestade deve ser humildemente adorada no Pai, a Suma Verdade deve ser fielmente afirmada no Filho, e a Suma Bondade deve ser sinceramente amada no Espírito Santo. Dissemos isso, em geral, quanto aos mandamentos da primeira tábua. Mas como a consideração genérica dos mandamentos é inútil, a menos que passemos a uma consideração específica, por isso convém explicar os mandamentos especificamente. Dissemos, em geral, que há dez mandamentos, dos quais os três primeiros estão contidos na primeira tábua, e os sete [últimos], na segunda. 5. Eu vos direi uma verdade: a eterna sabedoria de Deus, que escreveu essas tábuas, registrou seu conteúdo do modo mais breve, claro e fácil possível. Escreveu de modo brevíssimo, para que não sobrecarregasse nossa memória; de modo claríssimo, para que não se ofuscasse nossa inteligência; de modo facílimo, para que nossa vontade não se afastasse e retrocedesse: eis a razão por que os mandamentos foram dados de modo sinedóquico e em palavras na forma mais breve, clara e fácil possível. 6. Vejamos, pois, o primeiro mandamento. Note-se que, assim como em todas as outras coisas, aquilo que é primeiro é, também, fundamento e medida de tudo que é subseqüente, assim também o primeiro mandamento é o fundamento e a medida de todos os outros mandamentos. 7. Estas são as palavras do primeiro mandamento: Eu sou o Senhor teu Deus, que te tirei da terra do Egito, da casa da servidão. Não terás outros deuses 12 S. Boaventura vale-se, nesta passagem, de uma analogia de atribuição metafórica para aludir aos dois tipos de leis constantes dos Dez Mandamentos: as que dizem respeito às relações do homem para com Deus e às que dizem respeito às relações do homem para com o seu próximo. [N. C.]

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