O Fabuloso Livro Azul - Andrew Lang

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O Fabuloso Livro Azul



Tradução:

Márcia Xavier de Brito Beatriz Caldas Hugo Langone William Campos da Cruz


O Fabuloso Livro Azul, Andrew Lang © Editora Concreta, 2016 Título original: The Blue Fairy Book Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – Telefone: (51) 9916-1877 – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenadora editorial: Camila Abadie Tradutores: Márcia Xavier de Brito (coord.) Beatriz Caldas Hugo Langone William Campos da Cruz Revisão: Carlos Nougué Ilustrações: Carolina Pontes Capa & Editoração: Hugo de Santa Cruz Ficha Catalográfica Lang, Andrew, 1844-1912 L2691o O Fabuloso Livro Azul [livro eletrônico] / edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2016. – 472p. : col. il. ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-19-0 1. Literatura infantil. 2. Contos de fadas. 3. Folclore. 4. Coletânea. I. Título. CDD-808.899282

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

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Q

uem acompanha os dados referentes ao sistema educacional brasileiro tem visto, ano após ano, uma nítida e acentuada decadência. Pesquisas recentes indicam que estamos na penúltima posição entre os 36 países investigados pela OCDE para o ranking internacional de educação. Agravando ainda mais o quadro nacional, metade dos nossos universitários são analfabetos funcionais. As trágicas repercussões disso fazem-se sentir de muitas formas em toda a sociedade. Enquanto os governantes repetem infinitamente as soluções de sempre à situação, seja propondo aumento da carga horária de aulas, aumento do número de anos de frequência obrigatória, melhor remuneração aos professores, (a clássica) “mais investimentos em educação”, ou ainda uma combinação de todas as opções anteriores, pouco ou nada revelando, contudo, sobre o que de fato têm em mente ao falar em educação, acredito que grande parte da solução do problema passa por uma distinção entre educação e escolarização. Em termos gerais, pode-se dizer que a primeira envolve a totalidade do sujeito, conduzindo-o de maneira autoconsciente para além de si mesmo em direção aos outros, ao mundo e à realidade; já a segunda diz respeito basicamente a um conjunto de habilidades que têm por objetivo a preparação da pessoa para o mundo do trabalho. Assim, compreen-


der que educação e escolarização são coisas diferentes, sendo a primeira muito mais ampla, profunda e podendo ou não abarcar a segunda, gera então a pergunta sobre quem seriam os responsáveis por este processo que extrapola em muito o âmbito da escola. A resposta contempla duas possibilidades: em se tratando de indivíduos adultos, eles próprios são os responsáveis pela promoção de seu crescimento; por outro lado, no entanto, em se tratando de crianças, os pais são os responsáveis por conduzi-las neste caminho para além de si mesmas, ampliando seus horizontes e possibilitando sua inserção no mundo de modo muito mais pleno. E é pensando nelas, nas crianças, que o selo Homebooks vem a público. Ao contrário do que afirmam os especialistas, acredito que os pais têm condições de educar seus filhos, adotando ou não, paralelamente, o apoio da escola. Baseada nessa convicção, confirmada pela realidade de um incontável número de famílias brasileiras que praticam o homeschooling, o selo Homebooks pretende oferecer aos leitores conteúdos de qualidade que contribuam para a restauração do protagonismo familiar na educação dos filhos. Para isso, estão entre os alvos contos de fadas em suas versões originais, manuais de homeschooling, apostilas de diferentes disciplinas e muito mais. Espero que esta iniciativa, empreendida por uma simples dona de casa e mãe homeschooler, e acolhida tão calorosamente por um jovem e entusiasmado editor, encoraje você, leitor, a não esperar pelas velhas “soluções” governamentais, mas a assumir o seu quinhão de responsabilidade pela conquista de uma formação melhor para suas crianças e, consequentemente, de um futuro melhor para o nosso país. Quiçá a longo prazo consigamos auxiliar na reversão do triste cenário atual. Com um abraço, Camila Abadie Coordenadora do selo Homebooks


Sumário

Prefácio à edição brasileira 17 Prefácio à edição original 31 O Anel de Bronze

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O Príncipe Jacinto e a Querida Princesinha

45

A Leste do Sol e a Oeste da Lua

53

O Anão Amarelo

65

Chapeuzinho Vermelho

89

A Bela Adormecida no bosque

93

Cinderela, ou o Sapatinho de Cristal

103

Aladim e a Lâmpada Maravilhosa

111

A história de um jovem que saiu pelo mundo para aprender o que é o medo

127

Rumpelstiltzkin 139 A Bela e a Fera

143

A Criada Sabida

163

Por que o mar é salgado

181


O Mestre Gato, ou o Gato de Botas

187

Felícia e o Vaso de Cravos

193

A Gata Branca

203

O Lírio d’água. As Fiandeiras de Ouro

221

A Cabeça Terrível

231

A história da bela Cachinhos Dourados

243

A história de Whittington

259

O Carneiro Maravilhoso

269

O Pequeno Polegar

287

Os Quarenta Ladrões

297

João e Maria

309

Branca de Neve e Rosa Vermelha

321

A Guardadora de Gansos

329

Sapos e Diamantes

337

O Príncipe Querido

341

Barba Azul

355

João Fiel

361

O Alfaiate Valente

371

A Viagem a Lilliput

383

A Princesa da Montanha de Vidro

405

A história do Príncipe Ahmed e da Maga Paribanou

417

A história de Jack, o Matador de Gigantes

449

O Touro Negro da Noruega

457

O Gigante Ruivo

463


Prefácio à edição brasileira

Era uma vez um conto de fadas Origens e características das histórias mais antigas do mundo

Há muitos e muitos anos, nos primórdios da humanidade, antes da escrita, as pessoas contavam histórias. Umas serviam para ensinar; outras, para entreter as longas noites ao redor do fogo depois de um dia de trabalho. De geração em geração, avôs e avós, pais e mães contavam para adultos e crianças histórias notáveis: sábias, mágicas, encantadoras. Histórias que falavam de outro mundo, muito, muito distante, povoado de magos, bruxas, seres estranhos e heróis valorosos, onde o impossível era possível. Essas narrativas foram as primeiras conselheiras da humanidade, e as versões mais antigas de que temos notícia chegaram até nós do Egito e têm mais de três mil e seiscentos anos; muitas outras histórias grandiosas vieram da Grécia Antiga, com diversos deuses e heróis; de Roma, temos notícia de muitos contos, até de contos de terror. Dos quatro cantos do mundo, conforme o desenrolar da história da humanidade, por onde quer que o homem tenha passado, histórias de fadas foram ficando pelo caminho. Ninguém sabe quem são os verdadeiros autores da maioria dessas histórias. Como eram transmitidas de memória pela tradição oral, de geração em geração, muitos elementos foram acrescentados e retirados, pois “quem conta um conto, aumenta (ou diminui) um ponto”. A maioria delas só foi escrita muito tempo depois, e deve ter sido assim para que as vovozinhas não se esquecessem mais de nenhuma parte emocionante.


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A receita da boa ficção popular, segundo Andrew Lang (1844-1912), o compilador das histórias apresentadas neste livro, consiste em um “bom punhado de incidentes chacoalhados em multivariadas combinações, como os fragmentos de vidros coloridos de um caleidoscópio”.1 A tradição oral parece ser um ponto comum no que geralmente chamamos de “contos de fadas”. No entanto, assim como existe o azul do céu e muitos outros tipos de azul (que, na maioria das vezes, só pintores e desenhistas conseguem ver), essas histórias também podem ser classificadas por seus estudiosos. Estes conseguem distinguir dentro da grande família das histórias contadas pelos homens o que poderíamos chamar de grandes classes de narrativas. Os mitos são as histórias mais antigas de que temos notícia. Muitas delas explicam o modo como os antigos compreendiam os mistérios e como o contador da história acreditava que tivessem realmente acontecido. Desenrolam-se em um passado imemorial e explicam as origens das coisas, como, por exemplo, o surgimento do dia e da noite, das estações do ano, como determinado povo apareceu, ou por que as pessoas são diferentes umas das outras. Tão antigas quanto os mitos, as lendas são outro tipo de narrativa que aparece com frequência na infância da humanidade. Diferentemente do mito, acontecem em um passado real e narram os feitos dos grandes heróis do povo. As pessoas que as contavam queriam transmitir a memória de um passado valoroso e acreditavam “de olhos fechados” que os fatos relatados tinham acontecido de verdade. De modo geral, o mito e a lenda, no mundo de hoje, podem ser convidados a participar da grande família das histórias folclóricas. Outro tipo de histórias antigas são as que podem ser identificadas como pertencentes a determinado grupo linguístico e geográfico, as chamadas histórias folclóricas por excelência. Folclore é uma palavra de origem alemã que quer dizer “conhecimento do povo”, ou seja, são histórias, costumes e tradição de determinado grupo de pessoas que vive em determinado canto deste planeta, passadas de pais para filhos desde 1 Andrew Lang (ed.), “Preface”, in The Grey Fairy Book, New York, Dover, 1967.

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Prefácio à edição brasileira

o início daquela população na face da Terra. Todos os povos do mundo possuem suas histórias folclóricas. Estas histórias foram bastante estudadas e discutidas por estudiosos, como veremos mais adiante. Os contos de fadas mais propriamente ditos começaram a ser escritos entre os séculos XVI e XVIII. Muitos desses contos eram histórias tradicionais passadas para a forma literária, como se as histórias do povo tivessem ido ao salão de beleza e ficassem muito arrumadas, sem palavras vulgares ou grosseiras, embelezadas para apresentar-se nos salões da corte (principalmente da corte francesa). Outras já nasceram nobres, muito belas e educadas, e saíram direto das cabeças de cabeleiras postiças de cortesãos espirituosos, de condessas e de marquesas elegantes que divertiam a todos nos salões. Nessa época, as histórias eram escritas para entreter principalmente os adultos, mas faziam muito sucesso também entre as crianças. As fábulas, por sua vez, são histórias curtas protagonizadas por animais, plantas ou objetos inanimados que agem como humanos. São escritas com o objetivo de ensinar alguma coisa e sempre trazem uma moral ao final. As fábulas antigas mais populares são as de Esopo, nascido no final do século VII a.C. ou no início do século VI a.C., em cuja obra alguns estudiosos identificam uma influência das histórias da Índia. Na modernidade, no século XVII, as fábulas renasceram na França pela pena de Jean de La Fontaine (1621-1695), que buscou modernizar as de Esopo e de outros para criticar reis, cardeais e ministros, transformados agora em leões, galos e raposas. Por sorte, tais distinções não importam tanto ao leitor. Quem lê um conto de fadas não pretende dissecar “hipogrifos e quimeras com mais frieza e desumanidade do que um zoólogo o faz com salamandras e besouros”.2 Esse leitor, adulto ou criança, busca o encantamento e o maravilhamento que todas essas histórias – sejam mitos, sejam lendas, sejam histórias folcóricas ou literárias – trazem para a vida. Sente-se grato pelos esforços de tantos compiladores e colecionadores, conhecidos e desconhecidos, que desde 2 G. K. Chesterton, The Chesterton Review (edição especial em português), vol. I, n. 1, 2009, pp. 6-9.

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o começo do mundo permitem que as portas da imaginação humana continuem abertas para um universo mágico e surpreendentemente verdadeiro.

1. Como surgiram os contos de fadas? Não existem provas de que a tradição de contos maravilhosos ou “contos de fada” propriamente ditos tenha existido na Europa antes da Idade Média. Nesse período, entre os séculos XII e XV, as histórias mágicas e maravilhosas começaram a ser transpostas do relato oral para a forma escrita por uma multidão de escritores anônimos e esquecidos nas brumas do tempo. Assim, o gênero “contos de fadas” foi adquirindo as características, o tom e o estilo que hoje conhecemos, mas não podemos precisar exatamente quando surgiu. A fórmula típica dos “contos maravilhosos” consolidou-se por permitir a memorização fácil do conteúdo pelo contador e pelos ouvintes, o que facilitava a reprodução e a transmissão do enredo, que quase sempre era adaptado aos gostos e costumes da audiência. O início das coletâneas de histórias de fadas no mundo ocidental, no entanto, deu-se com um misterioso escritor italiano chamado Giovani Francesco Straparola (1480-1557), cujo “sobrenome” parece mais um apelido, pois em italiano straparola significa “tagarela”. Parece que foi ele o primeiro a chamar esse tipo de histórias maravilhosas de “histórias de fadas”. Sua principal coleção em dois volumes chamava-se Le Piacevoli Notti (As Noites Agradáveis) e continha 75 histórias. O livro foi organizado como se as histórias fossem contadas pelos participantes de uma festa que durou treze noites na ilha de Murano, perto de Veneza.3 Esse estilo de narrativa, de histórias dentro da história de um grupo de pessoas, já tinha sido usado com sucesso por Giovanni Boccacio (1313-1375), outro autor italiano do século XIV, e foi muito copiado ao longo do tempo. Sabemos que Straparola é responsável pela primeira versão de “O Gato de Botas” e que o francês Charles Perrault (1628-1703) se inspirou em muitas de suas histórias. 3 Jack Zipes, The Great Fairy Tradition: From Straparola and Basile to the Brothers Grimm, Nova York/Londres, W. W. Norton & co., 2001, p. 841.

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Prefácio à edição brasileira

Entre os italianos importantes para os contos de fadas, temos também, um pouco mais tarde, outro coletor de histórias napolitanas: Giambattista Basile (1566-1632). A ele devemos as versões mais antigas de “Rapunzel” e de “Cinderela”, e sua coletânea de histórias mais famosa, também inspirada no estilo de Boccacio, chamava-se Il Pentamerone (O Pentamerão). Depois, os mais famosos coletores de histórias de fadas do mundo, os irmãos Grimm, elogiariam muito o trabalho de Basile, ao chamar sua obra de “a primeira coletânea nacional de histórias”.4 O apogeu das histórias de fadas, no entanto, aconteceu nas cortes europeias, principalmente nos belos salões da corte francesa que ditavam a moda para todo o mundo. Entre os anos de 1785 e de 1789, surgiu uma imensa coletânea de quarenta volumes ilustrados que continham as histórias mais famosas de contadores renomados desde os tempos de Luís XIV (1638-1715). Era o famoso “Cabinet des Fées ou Collection Choisie des Contes de Fées et Autres Contes Merveilleux” (Gabinete das Fadas ou Coleção Seleta de Contos de Fadas e de Outros Contos Maravilhosos). Reunidas pelo Cavaleiro Charles-Joseph de Mayer (1751-1825) para que não desaparecessem, as histórias constituíram essa imensa publicação que foi responsável por imortalizar as histórias de Perrault, de Madame d’Aulnoy (1651-1705), de Mademoiselle Leprince de Beaumont (1711-1780), de Mademoiselle de la Force (1654-1724), de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), entre outros. No entanto, em 1789 veio a Revolução Francesa e pôs fim aos belos salões e à monarquia francesa.

2. O início de uma grande tradição: os irmãos Grimm e as Sociedades de Folclore Quase trinta anos depois da Revolução Francesa, vemos despontar a “era de ouro” dos contos de fadas. Muitas grandes revoluções haviam sacudido e ainda estavam por abalar o mundo. Os povos se reorganizam 4 Benedetto Croce, The Fantastic Accomplishment of Giambattista Basile and His Tale of Tales, in Jack Zipes, op. cit., p. 889.

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para tentar alguma paz, e surge no horizonte uma nova configuração política: o Estado-nação, um território com uma mesma cultura e sob as mesmas leis para um mesmo povo. As pessoas voltaram a ficar muito interessadas em conhecer suas próprias origens. Entretanto, o surgimento do Estado-nação não foi o único fator que aumentou o interesse pelas histórias antigas; outras coisas colaboraram para o aumento da curiosidade, entre as quais o aumento do número de pessoas alfabetizadas, a consagração da imprensa como meio de comunicação, a popularização dos livros e, também, a expansão das universidades. Todas essas inovações colaboraram para que aumentasse a vontade de conhecer as histórias dos povos. Pouco a pouco foram surgindo, em todo o território europeu, as Sociedades de Folclore. Esses grupos de entusiastas ficaram responsáveis por coletar o “conhecimento do povo” e por elevar este conhecimento à condição de disciplina acadêmica, digna de estudo sério. Pretendiam resgatar as origens, salvar as relíquias do passado e estreitar os laços de identidade entre as pessoas de seus territórios e entre os povos – e, inseridas nesse passado memorável, estavam as histórias maravilhosas. Dois irmãos, Jacob (1785-1863) e William (1786-1859) Grimm, viriam a mudar para sempre a história dos contos de fadas. Nascidos na atual Alemanha, em uma família de classe média alta de certa importância na sociedade local (o pai era advogado e tornou-se o magistrado da localidade em que viviam), os irmãos Grimm tiveram uma infância feliz, educados por preceptores e cercados de empregados. Já com a morte do pai, em 1796 a família Grimm se viu em extrema pobreza, tendo de ser amparada pela família da Sra. Grimm. Jacob, o mais velho, aos 11 anos, junto com o irmão William, um ano mais novo, assumiu responsabilidades de gente grande, ajudando a mãe doente a tomar conta dos irmãos menores. Dois anos depois, Jacob e William, com a ajuda financeira da tia que era ama de uma rainha, foram estudar em uma escola em Kassel. Por serem mais pobres que os outros alunos bem-nascidos da escola, foram discriminados pelos colegas. Os irmãos Grimm, muito amigos, tudo partilhavam e não se deixaram abater pela 22


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tristeza. A aparente desvantagem financeira dos órfãos, no entanto, não impediu que se tornassem excelentes alunos e se formassem como os primeiros colocados de suas classes. Já na adolescência, os Grimm começaram a frequentar a Universidade de Marburg. Nesta prestigiosa universidade, viveram na pele o peso da pobreza. Foram discriminados por pertencer a uma classe social inferior e não obtiveram dispensa da taxa de matrícula. Por isso, tiveram de solicitar uma autorização especial e só puderam estudar Direito. A pobreza manteve-os afastados de toda a vida social da universidade, mas os irmãos transformaram este contratempo em força para estudar cada vez mais! Animados por um professor da faculdade de Direito que reconhecia o potencial dos rapazes para os estudos, começaram a interessar-se por Filologia e por História (em especial a história da literatura medieval). Esse mesmo professor também os apresentou ao círculo dos pensadores românticos alemães. Desde essa época os irmãos buscavam encontrar as origens de um passado alemão comum que pudesse ajudar a unificar a Alemanha, na ocasião um emaranhado de mais de duzentos principados. A situação financeira dos Grimm piorou. Jacob teve de abandonar os estudos para cuidar da mãe – que logo veio a falecer – e dos irmãos menores. Em 1808, Jacob foi indicado para ser o bibliotecário do rei da Vestfália, ocupação logo depois partilhada pelo irmão William. Nessa época, ambos começaram a colecionar as histórias do povo de modo superficial e a pedido de um amigo, mas não tinham muita ideia do que fazer com aquilo. Em 1812, publicaram o primeiro volume, de 86 histórias folclóricas recolhidas da tradição oral na região de Hessen, onde nasceram. A obra foi chamada de Kinder- und Hausmärchen (Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos). O segundo volume desta obra surgiu em 1815, com mais 70 novos contos, notas de rodapé e prefácio,5 5 No Brasil, há uma tradução dessa versão original dos contos de 1812-1815, feita diretamente do alemão: Irmãos Grimm, Contos Maravilhosos Infantis e Domésticos, trad. Christine Röhrig, São Paulo, Cosac Naify, 2015.

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no qual afirmam ter contado com a ajuda de amigos para reunir mais rapidamente tantos contos. Os Grimm acreditavam que a identidade nacional – os traços da germanidade – estavam espalhados na cultura do povo. No entanto, permitiram na coletânea de contos, por exemplo, apropriações de histórias que Perrault contava nos salões franceses ou que já constavam das “noites” de Straparola, pois as tinham ouvido de populares. Além disso, apresentaram como germânicas histórias não necessariamente alemãs, cujas versões estavam espalhadas por toda a Europa. Isto demonstra que, para os primeiros estudiosos, os limites “científicos” entre as histórias folclóricas e as literárias ainda não estavam claros – como não estão até hoje, dado que todos esses contos foram absorvendo influências dos lugares por onde passaram. Ao longo das várias edições, os irmãos também foram interferindo e embelezando as narrativas, tornando-as mais literárias, mais agradáveis ao leitor – atitude que depois viria a ser vista com verdadeiro horror pelo folclorista “profissional”. Apesar das possíveis objeções de estudiosos modernos ao trabalho incansável dos Grimm, a inovação e a genialidade desses precursores estão, sobretudo, no método de transposição do registro oral para o literário e na organização das histórias, uma vez que criaram um modelo para outros folcloristas e colecionadores de histórias populares realizarem a tarefa com maior precisão. Igualmente, os Grimm ajudaram a mostrar ao mundo, ao popularizar tantos contos, que “o povo”, que “as pessoas” eram importantes. Durante todo o século XIX, as sociedades para o estudo do folclore multiplicaram-se. As histórias folclóricas, por exemplo, foram estudadas, classificadas, “desmembradas e dissecadas” de maneira bem científica pelo folclorista finlandês Antii Aarne (1867-1925)6 e eram coleta6 Aarne desenvolveu e aperfeiçoou o método histórico-geográfico de folclore comparado criado por seu professor, o folclorista Julius Krohn (1835-1888). Identificou 2.300 tipos, o que permitia que os estudiosos do folclore e das tradições populares identificassem os temas e rotulassem categorias e subcategorias de todas as narrativas e suas variações. Depois, já no século XX, outro folclorista norte-americano, Stith Thompson (1885-1976), revisou e ampliou o sistema de Aarne, e até hoje os folcloristas do mundo inteiro utilizam o sistema

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das por todos os folcloristas autodidatas e amadores da Europa. Estes aficcionados pela tradição “popular” transcreviam, traduziam e cortavam palavras ou acrescentavam elementos conforme a formação acadêmica e as crenças que possuíam. O estudo do folclore ficou cada vez mais sério e transformou-se numa febre; contudo, não chegou a converter-se numa disciplina universitária que merecesse atenção exclusiva.

3. Um povo que acreditava em fadas: a Inglaterra vitoriana e os contos de fadas Os ingleses são mestres supremos na arte de contar histórias. Desde o poema épico fundamental da literatura inglesa, o Beowulf, passando por Geoffrey Chaucer (1340-1400), William Shakespeare (1564-1616) e John Milton (1608-1674), o mitológico, o fantástico, o maravilhoso – e as fadas – sempre estiveram presentes na ficção inglesa. Mais ou menos na mesma época em que os irmãos Grimm colecionavam histórias na Alemanha, o literato escocês Sir Walter Scott (17711832) já propunha, no poema “The Lady of the Lake” (“A Senhora do Lago”), de 1810, um estudo “sobre as origens da ficção popular e a transmissão das histórias do povo de geração em geração”, pois esperava que esse estudo ajudasse a explicar por que “tais ficções, ainda que selvagens e infantis”, continuavam a “gozar de tantos encantos junto ao povo”.7 Ao longo do século XIX, essas histórias foram caindo no gosto das famílias mais abastadas. Uma biblioteca vitoriana que se prezasse deveria conter volumes e mais volumes de contos e lendas de todas as partes do mundo. Aos poucos, os ingleses foram “encantados” por essas narrativas, capturados pela atmosfera mágica do reino das fadas, de modo que muito da produção cultural inglesa desse período é salpicada de “pó chamado Aarne-Thompson (também conhecido por AT) para a classificação das histórias folclóricas. A atualização mais recente no método de classificação foi feita pelo alemão Hans-Jörg Uther (1944-) em 2004, e o sistema classificatório agora é conhecido como Aarne-Thompson-Uther ou ATU. 7 Molly Clark Hillard, Spellbound: The Fairy Tale and the Victorians, Columbus, Ohio State University Press, 2014, pp. 1-2.

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de pirlimpimpim”. Os ingleses entenderam que o folclore era o berço da literatura, sua pré-história, uma tradição que permitiria manter viva a cultura, a língua e a literatura inglesas. Essa compreensão aumentou o desejo de preservar as “fadas” da extinção. A industrialização chegara para ficar, e os costumes tradicionais seriam substituídos pela ciência e suas máquinas modernas; a mudança era rápida, o que aumentava a urgência de salvar um reino tão efêmero e imaterial como o das fadas. Paradoxalmente, parte do resgate do reino encantado só foi possível graças à moderna indústria das publicações impressas! A impressão em massa de contos maravilhosos ocorreu em diversos meios: folhetos, revistas, folhetins, livretos (os famosos e populares chapbooks) e coletâneas organizadas em livros, o que colaborou para a consolidação dessas histórias no imaginário de todas as classes sociais. Na Inglaterra desse período, havia muitos folcloristas. No entanto, como já vimos, a postura de muitos estudiosos era a de tentar separar o estudo do folclore (tarefa considerada seriíssima) dos contos de fadas. Como nos recorda G. K. Chesterton, os estudiosos não sabiam apreciar essas histórias com olhos de criança. No entanto, um desses folcloristas ainda acreditava na magia das terras encantadas. Seu nome era Andrew Lang.

4. Andrew Lang e os Fabulosos Livros Coloridos Andrew Lang nasceu e cresceu em Selkirk, na fronteira da Escócia com a Inglaterra. Na sua meninice, as antigas histórias de fadas e as lendas (o verdadeiro folclore) ainda estavam muito vivos, e, nas longas noites de inverno, ao redor da lareira, ouviu de sua babá muitos relatos de fadas, duendes, ogros e fantasmas. O próprio Lang reconhecia que essas histórias da infância tinham sido a primeira influência determinante em sua vida e que, com o passar do tempo, fizeram-no mergulhar no estudo da Antropologia. Como antropólogo, começou a levar muito a sério o folclore e, depois de uma sólida carreira nesse campo – havia publicado muitos estudos 26


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acadêmicos sobre mitos e folclore, era membro ilustre e fundador da Sociedade de Folclore da Inglaterra, bem como já era autor de três contos de fadas inéditos –, decidiu, como um experimento, publicar contos de fadas especialmente adaptados para o gosto das crianças inglesas. Em 1889, selecionou algumas histórias (sem distinguir entre contos de fadas e histórias folclóricas) e reuniu uma equipe – da qual fez parte sua esposa, Leonora – para adaptá-las especialmente às crianças. Algumas dessas histórias folclóricas nunca haviam sido adaptadas ou contadas para o público infantil. O que viria a ser o primeiro livro da série, O Fabuloso Livro Azul, não seguiu nenhum plano na escolha dos contos. De todos os livros da série, foi o que mais acolheu contos de fadas propriamente ditos, como, por exemplo, as histórias de Madame d’Aulnoy, de Madame Leprince de Beaumont, a adaptação de Madame de Villeneuve das Mil e Uma Noites e, a mais estranha das escolhas, uma versão condensada por May Kendall (1861-1943) da primeira parte das Viagens de Gulliver, de Swift. A ideia de experimento se justifica e deve ter causado tremenda dor de cabeça aos editores da prestigiosa Longmans, Green & Co., pois na época do lançamento do primeiro volume, em 1889, os contos de fadas tinham, de certo modo, desaparecido das prateleiras dos berçários das crianças britânicas. O “romance infantil”, de caráter mais pedagógico, realista e moralizante, como as histórias de Juliana Horatia Ewing (1841-1885) e de Mary Louisa Molesworth (18391921), estava no auge da moda. No entanto, não seria exagero dizer que Lang reverteu esse processo, modificando o gosto de adultos e crianças, por várias gerações. No início, Lang não queria criar uma série de livros, mas a imensa popularidade de cada um dos livros coloridos forçava-o a reunir mais e mais histórias. Além dos 37 contos do Fabuloso Livro Azul, que agora apresentamos, Lang reuniu, nos 21 anos em que publicou a série dos Fabulosos Livros Coloridos, mais quatrocentas histórias nos onze volumes subsequentes. Como sempre, nos breves prefácios, insistia em dizer que não era o “autor” dos contos, apenas o editor. Com bom humor, eis como 27


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descrevia sua participação na composição dos livros: “Minha parte é a de Adão no Jardim do Éden, segundo Mark Twain (1835-1910). Eva trabalhava, Adão supervisionava”.8 Realmente, a participação de Lang nos livros limitava-se quase exclusivamente aos prefácios e à escolha dos contos que comporiam cada volume. Entretanto, nos dois primeiros volumes – no livro azul e no livro vermelho – Lang nos brinda, em prosa agradável, com algumas versões dos mitos e das lendas folclóricas dos povos antigos. Em O Fabuloso Livro Azul, Lang reescreve o mito de Perseu e a Medusa. Para não soar como um fragmento grego e perder a atemporalidade típica dos contos de fada, decide não mencionar nenhum nome ou lugar, e passa a chamar Perseu simplesmente de “o príncipe”, e as Hespérides de “fadas do oeste”. Em The Red Fairy Book (O Fabuloso Livro Vermelho), de 1890, Lang volta a escrever, na adaptação da “História de Sirgurd”, da saga nórdica do Volsungos, mas desta vez mantém os nomes das personagens. Todo o trabalho de reescrita, de adaptação e de tradução dos contos é devidamente creditado à sua equipe, conto por conto, muito embora até hoje as pessoas atribuam a Lang a “autoria” desses livros. O sucesso dessas publicações gerou muitas críticas dos colegas acadêmicos do folclore. No prefácio de The Yellow Fairy Book (O Fabuloso Livro Amarelo), de 1894, Lang decide expor aos leitores parte da controvérsia: “Ora, existe um cavalheiro que parece acreditar que não é certo imprimir tantos contos de fada, com gravuras, e publicá-las em capas azuis ou vermelhas. Chama-se G. Laurence Gomme (1853-1916) e é o presidente da Sociedade de Folclore”. E acrescenta, mais adiante: Essas pessoas são consideradas as maiores conhecedoras do reino das fadas e de seus habitantes (...). A Sociedade de Folclore, ou seu presidente, diz que as histórias deles [de autores como Madame D’Aulnoy e Andersen] não são tão verdadeiras quanto as restantes e não deveriam ser publicadas juntas. Nós, no entanto, dizemos que todas as histórias agradáveis de ler nos parecem bastante verdadeiras. [...] Uma criança sábia, portanto, lembrar-se-á de que, se crescer e se tornar um 8 Andrew Lang (ed.), “Preface”, in The Lilac Fairy Book, Nova York, Dover, 1968.

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Prefácio à edição brasileira membro da Sociedade de Folclore, nenhuma história deste livro foi oferecida como absolutamente verdadeira, mas publicadas simplesmente para diversão.9

Há certa ironia na vida e na obra de Andrew Lang; embora por profissão tenha escrito crítica literária, ficção, poemas, artigos acadêmicos, histórias infantis, entre outros, tornou-se mais conhecido pelos livros que não escreveu. No entanto, estabeleceu em língua inglesa o “cânone” dos contos de fadas e influenciou escritores como E. Nesbit, Robert Louis Stevenson, Rudyard Kypling, Arthur Conan Doyle, G. K. Chesterton, J. R. R. Tolkien, C. S. Lewis, por exemplo. Desde então, graças ao renascimento do reino das fadas provocado pelo literato com “olhos de criança”, as histórias de fadas estão gravadas em nossos corações, e todos, adultos e crianças, fomos felizes para sempre.

Conclusão: por que ler contos de fadas hoje? O poeta renascentista inglês Edmund Spenser (1552-1599) afirmava que, com o aparato imaginativo, a pessoa passava a ter uma “biblioteca de memórias [...] cheia de maravilhas no sótão da mente”. Russell Kirk (1918-1994), mais recentemente, recordava-nos que, “se quisermos que as crianças comecem a entender-se a si mesmas, a outras pessoas e às leis que governam a nossa natureza, deveremos incentivá-las a ler a coleção de contos de fadas de Andrew Lang”.10 Assim, vemos que as narrativas fantásticas, incluindo os contos de fadas, proporcionam um senso de estrutura e de regras que permitem a fixação do conteúdo moral, e, enquanto tal história persistir na “biblioteca de memórias”, as coisas reais passam a indicar algo mais que elas mesmas. A descoberta deste poder enche-nos de maravilhamento e faz-nos responder à realidade com um sentimento de gratidão, permitindo-nos 9 Andrew Lang (ed.), “Preface”, in The Yellow Fairy Book. Nova York, Dover, 1966. 10 Russell Kirk, “A Imaginação Moral”, in Communio: Revista Internacional de Teologia e Cultura, vol. XXVIII, n. 1 (edição 101), jan/mar de 2009, Rio de Janeiro, pp. 103-119.

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Andrew Lang · O Fabuloso Livro Azul

vislumbrar um sentido na Criação e acender o senso de mistério. Essas histórias encantadas também ensinam que existe uma constante comum de humanidade e que a felicidade é condicional: “uma incompreensível felicidade se apoia numa incompreensível condição”.11 Educar sem oferecer a possibilidade da formação de juízos de valor baseados nessa constante comum de humanidade, sem reconhecer os limites da realidade, no dizer de Chesterton, “o material que pode ser facilmente quebrado”,12 é criar, como dizia C. S. Lewis, “primatas de calças” – indivíduos verdadeiramente destituídos da capacidade humana de imaginar ou de sentir, que se tornarão “homens sem peito”, os homens desumanos, depressivos e entediados da sociedade moderna. Assim, os contos clássicos trazem uma mensagem bastante inconveniente à nova ideologia do politicamente correto: a de que “a natureza humana não é inatamente boa, o conflito é real, a vida é severa antes de ser feliz”.13 Eliminar o conflito, censurar palavras e expressões tidas como ofensivas ou violentas pelo tribunal dos ideólogos do “Mundo Feliz”, criar novas versões de contos e de cantigas tradicionais – nada disso elimina a verdade e a sabedoria contidas nos contos tradicionais. Portanto, fica aqui a advertência aos adultos: leiam contos de fadas para seus filhos, pois nem só de dinossaurinhos roxos bonzinhos vivem as criancinhas! Márcia Xavier de Brito Mecosta, Michigan, janeiro de 2016

11 G. K. Chesterton, “Ética da Terra dos Elfos”, in Ortodoxia, trad. Cláudia Albuquerque Tavares, São Paulo, LTR, 2001, p. 79. 12 Ibidem, p. 80 13 Maria Tatar, Contos de Fadas. Edição Comentada & Ilustrada, Rio de Janeiro, Zahar, 2004, p. 8.

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Prefácio à edição original Os contos deste volume são para crianças que gostarão – como é de esperar – das antigas histórias que alegraram tantas gerações. Os contos de Perrault foram publicados a partir de uma antiga versão inglesa do século XVIII. As histórias do Cabinet des Fées e de Madame d’Aulnoy foram traduzidas, ou melhor, adaptadas, pela srta. Minnie Wright, que também, com a gentil autorização do sr. Henry Carnoy, traduziu o conto “O Anel de Bronze” de Traditions Populaires de l’Asie Mineure (Paris, Maisonneuve, 1889). As histórias dos Grimm foram traduzidas pela srta. May Sellar; outras, do alemão, pela srta. Sylvia Hunt. Os contos nórdicos são versões da sra. Alfred Hunt; “A Cabeça Terrível” é uma adaptação do próprio editor de Apolodoro, Simônides e Píndaro. A srta. Violet Hunt condensou “Aladim”, e a srta. May Kendall fez o mesmo com As viagens de Gulliver; “A Maga Paribanou” é condensada de uma antiga tradução inglesa de Galland. A editora do sr. Robert Chambers gentilmente permitiu a reimpressão de “O Gigante Ruivo” e “O Touro Negro da Noruega” de seu livro Popular Traditions of Scotland. Dick Whittington é de um livreto popular editado pelo sr. Gomme e pelo sr. Wheatley da Villon Society. “Jack, o Matador de Gigantes” é de um livro popular, mas uma boa versão desse antiquíssimo conto de grande apreciação é difícil de encontrar. Andrew Lang, 1889



O Anel de Bronze

á muitos e muitos anos, em um reino distante, vivia um rei cujo palácio era cercado por um vasto jardim. No entanto, ainda que fossem muitos os jardineiros e o solo fosse bom, o jardim não dava flores, frutos, grama ou árvores sombrosas. O rei já não tinha esperanças a respeito do jardim, quando um velho sábio lhe disse: — Vossos jardineiros não conhecem o ofício: mas o que podeis esperar de homens cujos pais eram sapateiros e carpinteiros? Como poderiam ter aprendido a cuidar de vosso jardim? — Tens razão – lamentou o rei. — Por isso – prosseguiu o velho – deveis mandar buscar um jardineiro cujos pai e avô, antes dele, tenham sido jardineiros, e dentro de pouco tempo vosso jardim estará recoberto de grama verdejante e de belas flores, e saboreareis deliciosos frutos. Então, o rei enviou mensageiros a todas as cidades, vilarejos e vilas do reino para buscar um jardineiro cujos antepassados também tivessem sido jardineiros, e, após quarenta dias, encontraram um homem.


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— Vem conosco e serás jardineiro do rei – disseram-lhe. — Como um pobre coitado como eu – disse o jardineiro – poderei ir ter com o rei? — Isso não importa – responderam-lhe. – Cá estão novas roupas para ti e para tua família. — Mas devo dinheiro a várias pessoas. — Pagaremos teus débitos – disseram. Assim, o jardineiro deixou-se convencer e foi-se com os mensageiros, levando consigo a esposa e o filho. O rei, satisfeito por ter encontrado um jardineiro de verdade, confiou-lhe o cuidado de seu jardim. O homem não teve dificuldade em fazer com que o jardim real produzisse flores e frutos: no fim de um ano o parque já não era o mesmo, e o rei encheu o novo criado de presentes. O jardineiro, como sabeis, tinha um filho; um belo rapaz, de modos agradáveis e que todo dia levava para o rei o melhor fruto do jardim e para sua filha as mais belas flores. Ora, a princesa era incrivelmente bela e tinha apenas dezesseis anos. O rei começara a crer que já estava na hora de ela unir-se em matrimônio. — Querida filha – disse o rei –, estais na idade de casar, e por isso estou pensando em fazer-vos esposa do filho do primeiro-ministro. — Pai – respondeu a princesa –, nunca desposarei o filho do ministro. — Por que não? – perguntou o rei. — Porque amo o filho do jardineiro – respondeu a princesa. Ao ouvir isso, o rei ficou muito zangado. Depois chorou e suspirou, e declarou que tal marido não era digno de sua filha. A jovem princesa, todavia, não voltou atrás na decisão de desposar o filho do jardineiro. A essa altura, o rei consultou seus ministros. — Eis o que Vossa Alteza deve fazer – disseram. Para vos livrardes do jardineiro, deveis enviar ambos os pretendentes a um país distante, e aquele que primeiro retornar deverá casar-se com vossa filha. O rei seguiu esse conselho. Presenteou o filho do ministro com um cavalo esplêndido e com uma bolsa cheia de moedas de ouro, ao passo que o filho do jardineiro ganhou apenas um cavalo coxo e 34


O Anel de Bronze

uma bolsa repleta de moedas de cobre. Todos pensavam que nunca retornaria da viagem. Na véspera da partida, a princesa encontrou seu bem-amado e recomendou-lhe: — Sê bravo e lembra sempre que te amo. Toma esta bolsa cheia de joias e dá a elas o melhor uso que puderes por amor de mim, volta logo e exige minha mão. Os dois pretendentes deixaram a cidade juntos, mas o filho do ministro disparou a galope em seu maravilhoso cavalo, e logo sumiu de vista, por trás dos montes distantes. Viajou por alguns dias e acabou por alcançar uma fonte ao lado da qual se encontrava uma velha vestida em trapos, sentada em uma pedra. — Bom dia, jovem viajante – saudou-o a anciã. O filho do ministro, no entanto, nada respondeu. — Tem dó de mim, viajante – dirigiu-se a ele novamente. – Estou morrendo de fome; como vês, há três dias estou aqui e ninguém nada me deu. — Deixa-me em paz, velha bruxa! – exclamou o jovem. – Nada posso fazer por ti – e, ao dizê-lo, tomou seu rumo. Naquela mesma tarde, o filho do jardineiro chegou à fonte em seu cinzento cavalo coxo. — Bom dia, jovem viajante – saudou-o a mendiga. — Bom dia, boa mulher – respondeu. — Jovem viajante, tem dó de mim. — Toma minha bolsa, boa mulher – disse o jovem –, e monta na minha garupa, pois tuas pernas não devem ser muito fortes. A velha não esperou uma segunda oferta, montou atrás do jovem, e, assim, dessa maneira, chegaram à principal cidade de um poderoso reino. O filho do ministro estava hospedado em uma boa estalagem; o filho do jardineiro e a anciã repousaram em uma estalagem para pedintes. No dia seguinte, o filho do jardineiro ouviu um grande clamor na rua. Os arautos do rei passavam, tocando todo tipo de instrumentos e bradando: 35


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— O rei, nosso senhor, está velho e enfermo. Concederá grande recompensa a quem quer que o cure e o faça recuperar o vigor da juventude. Então a velha mendiga aconselhou a seu benfeitor: — Eis o que deves fazer para obter a recompensa prometida pelo rei. Sai da cidade pelo portão sul e lá encontrarás três cachorrinhos de cores diferentes. O primeiro é branco, o segundo negro e o terceiro acobreado. Deverás matá-los, depois incinerá-los separadamente e juntar as cinzas. Coloque as cinzas em sacos da mesma cor de cada cãozinho, depois vai para a frente do palácio e dize bem alto: “Chegou um médico famoso de Janina, na Albânia. Só ele poderá curar o rei e devolver-lhe o vigor da juventude”. Os médicos do rei dirão: “Este é um impostor e não um sábio”, e criarão todo tipo de dificuldades, mas ao fim tu os superarás a todos, e te apresentarás diante do rei enfermo. Deverás, então, pedir tanta madeira quanto três mulas consigam carregar e um grande caldeirão, trancar-te-ás em um quarto com o sultão e, quando o caldeirão ferver, deverás lançá-lo dentro e aí deixá-lo até que suas carnes estejam completamente separadas dos ossos. Então, disporás os ossos nos devidos lugares e sobre eles lançarás as cinzas dos três saquinhos. O rei voltará à vida e terá a mesma aparência de quando tinha vinte anos de idade. Como recompensa, deverás exigir-lhe o anel de bronze que tem o poder de dar tudo o que desejares. Vai, meu filho, e não te esqueças de nenhuma de minhas instruções. O jovem seguiu as instruções da velha mendiga. Ao sair da cidade, encontrou os cãezinhos branco, acobreado e negro, matou-os a todos e os queimou, juntando as cinzas em três sacos. Correu ao palácio e proclamou: — Um médico famoso de Janina, na Albânia, acaba de chegar. Somente ele poderá curar o rei e trazer-lhe de volta o vigor da juventude. Os médicos do rei, inicialmente, riram do viajante desconhecido, mas o sultão ordenou que o estrangeiro fosse acolhido. Trouxeram o caldeirão, o carregamento de madeira, e em pouco tempo o rei estava fervendo. Perto do meio-dia, o filho do jardineiro dispôs os ossos nos devidos lugares, e, mal havia lançado sobre eles as cinzas, o rei voltou à vida, encontrando-se novamente jovem e saudável. 36


O Anel de Bronze

— Como poderei recompensar meu benfeitor? – exclamou. – Gostarias da metade de meus tesouros? — Não – disse o filho do jardineiro. — Gostarias da mão de minha filha? — Não. — Fica com a metade de meu reino. — Não. Dá-me somente o anel de bronze que pode conceder instantaneamente qualquer coisa que eu deseje. — Ai de mim! – disse o rei. – Dou muito valor a este maravilhoso anel; no entanto, deverás possuí-lo. E deu o anel ao rapaz. O filho do jardineiro voltou para despedir-se da velha mendiga; então, disse ao anel de bronze: — Apronta um esplêndido navio para que possa continuar minha jornada. Que o casco seja de puro ouro, os mastros de prata e as velas de brocado. Faz que a tripulação seja de doze jovens de aspecto nobre, vestidos como reis, e que São Nicolau esteja na direção. Quanto à carga, que seja de diamantes, rubis, esmeraldas e granadas orientais. Imediatamente surgiu um navio no mar que em todos os detalhes se assemelhava à descrição feita pelo filho do jardineiro, que, ao entrar a bordo, continuou a jornada. Dentro de pouco, chegou a uma grande cidade e estabeleceu-se em um magnífico palácio. Alguns dias depois encontrou seu rival, o filho do primeiro-ministro, que gastara todo o dinheiro que tinha e fora reduzido à desagradável tarefa de catador de pó e de lixo. O filho do jardineiro perguntou-lhe: — Qual é teu nome? Qual é tua família? De que país vieste? — Sou o filho do primeiro-ministro de uma grande nação, e, no entanto, vê a que ocupação degradante estou reduzido. — Ouve: embora não saiba muito a teu respeito, estou disposto a ajudar-te. Dar-te-ei um navio para que voltes a teu país, com uma única condição. — Qualquer que ela seja, aceito-a de boa vontade. — Segue-me até ao palácio. 37



O Anel de Bronze

O filho do primeiro-ministro seguiu o rico desconhecido, a quem não tinha identificado. Ao chegar ao palácio, o filho do jardineiro acenou aos escravos para que despissem o recém-chegado. — Ponham este anel em brasa – ordenou o mestre – e marquem este homem nas costas. Os escravos lhe obedeceram. — Agora, jovem – disse o rico desconhecido –, dar-te-ei uma embarcação que te levará de volta ao teu país. Ao sair, tomou nas mãos o anel de bronze e disse: — Anel de bronze, obedece a vosso mestre. Prepara-me um navio de madeira apodrecida pintado de preto, com velas em farrapos e marinheiros enfermos e adoentados. Um deverá ter perdido uma perna, outro um braço, o terceiro será um corcunda, outro ainda deverá ser manco, ter perna de pau ou ser cego. Todos deverão ser horrendos e cobertos de cicatrizes. Vai, e faze com que minhas ordens sejam executadas. O filho do primeiro-ministro embarcou nesse navio velho e, graças aos ventos favoráveis, finalmente chegou a seu país. Apesar das condições deploráveis em que retornou, foi recebido com alegria. — Sou o primeiro a voltar – disse ele ao rei –; agora cumpri vossa promessa e dai-me a mão da princesa em matrimônio. Desse modo, imediatamente começaram a preparar os festejos das bodas. A pobre princesa, contudo, estava triste e furiosa com isso. Na manhã seguinte, ao raiar do dia, um maravilhoso navio de velas veio a ancorar na cidade. Calhou de o rei estar, naquele momento, na janela do palácio. — Que navio estranho – exclamou: – casco dourado, mastros de prata e velas de seda. Quem são os jovens príncipes que o tripulam? Não é que vejo São Nicolau ao leme? Partam imediatamente e convidem o capitão do navio para vir ao palácio. Os servos lhe obedeceram, e logo apareceu um jovem príncipe esplendorosamente belo, vestido em fina seda, ornamentada com pérolas e diamantes. 39


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— Meu jovem – cumprimentou-o o rei –, és bem-vindo, quem quer que sejas. Faz-me o favor de ser meu convidado enquanto estiveres na capital. — Mui agradecido, Alteza – respondeu o capitão –, aceito vossa oferta. — Minha filha está para casar-se – disse o rei –; gostarias de entregá-la ao noivo no altar? — Ficaria encantado, Vossa Alteza. Logo após, chegaram a princesa e o noivo. — Ora, como assim!? – exclamou o jovem capitão. – Vossa Alteza casaria esta encantadora princesa com tal homem? — Mas é o filho de meu primeiro-ministro! — Que importa? Não posso entregar vossa filha no altar. O homem a quem ela está prometida é um de meus servos. — Vosso servo? — Sem dúvida. Encontrei-o em uma cidade distante rebaixado a catador de pó e de lixo das casas. Tive pena dele e o recebi como a um de meus servos. — Isso é impossível! – bradou o rei. — Vossa Alteza gostaria que comprovasse o que digo? Este jovem retornou em uma embarcação que lhe forneci, um navio de casco preto deteriorado, incapaz de navegar longe, com marinheiros enfermos e aleijados. — Isso é verdade – disse o rei. — É mentira – disse o filho do primeiro-ministro. – Não conheço esse homem! — Senhor – disse o jovem capitão –, ordenai que o noivo de vossa filha seja despido e vede se a marca de meu anel não está ferrada em suas costas. O rei estava para dar as ordens, quando o filho do primeiro-ministro, para poupar-se de tamanha indignidade, admitiu ser verdadeira a história. — E agora Vossa Alteza não me reconhece? – disse o jovem capitão. — Eu te reconheço – disse a princesa –, és o filho do jardineiro a quem sempre amei e é a ti que desejo desposar. — Jovem, serás meu genro – exclamou o rei. – As festividades das bodas já começaram; portanto, deverás desposar minha filha hoje mesmo. 40


O Anel de Bronze

E assim, naquele mesmo dia, o filho do jardineiro se casou com a bela princesa. Vários meses se passaram. O jovem casal estava extremamente feliz, e o rei cada vez mais satisfeito consigo por ter conseguido um genro como aquele. No entanto, dentro de pouco o capitão do navio dourado viu ser necessário fazer uma longa viagem e, após abraçar ternamente a mulher, partiu. Ora, nas redondezas da capital vivia um velho, que passara a vida a estudar as artes das trevas – alquimia, astrologia, mágica e encantamentos. Esse homem descobrira que o filho do jardineiro só tinha conseguido casar-se com a princesa com a ajuda de um gênio que obedecia ao anel de bronze. — Hei de ter esse anel – disse a seus botões. Então, foi até à beira-mar e pescou uns peixinhos vermelhos. Na verdade, eram muito bonitinhos. Ao retornar, passou diante da janela da princesa e começou a falar bem alto: — Quem quer lindos peixinhos vermelhos? A princesa o ouviu e enviou suas escravas, que perguntaram ao velho mascate: — Quanto queres pelos peixes? — Um anel de bronze. — Um anel de bronze, velho parvo?! E onde acharei um anel assim? — Debaixo da almofada no quarto da princesa. As escravas retornaram à senhora. — O velho louco não quer ouro nem prata – disse uma delas. — O que ele quer, então? — Um anel de bronze que está escondido debaixo de uma almofada. — Acha o anel e dá-lho tu a ele – disse a princesa. Por fim, a escrava achou o anel de bronze que o capitão do navio dourado, por acidente, esquecera e o levou até ao homem, que fugiu em um instante. Tão logo chegou à sua casa, o velho tomou o anel e disse: — Anel de bronze, obedece a vosso mestre. Desejo que o navio dourado se transforme em um navio de madeira escura, e a tripulação em negros terríveis. Que São Nicolau largue o leme, e que a única carga sejam gatos pretos. 41


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O gênio do anel de bronze lhe obedeceu. Ao ver-se no mar nessa condição miserável, o jovem capitão compreendeu que alguém devia ter-lhe roubado o anel de bronze, e lamentou em alta voz seu infortúnio; mas isso não fez diferença. — Ai de mim! – disse-se a si mesmo –, quem quer que tenha roubado meu anel provavelmente levou consigo minha querida mulher. Que benefício poderia ter em retornar a meu país? E velejou de ilha em ilha, de costa em costa, acreditando que em qualquer lugar a que fosse todos estariam rindo-se dele, e logo sua pobreza era tão grande, que ele, a tripulação e os pobres gatos pretos nada tinham para comer senão ervas e raízes. Depois de muito vagar, chegou a uma ilha habitada por camundongos. O capitão ancorou na costa e começou a explorar o terreno. Os camundongos estavam em todo lugar, e não havia senão camundongos. Alguns dos gatos pretos o seguiram e, por não terem alimento fazia vários dias, estavam terrivelmente famintos, causando um tremendo estrago entre os ratos. A rainha dos camundongos reuniu um conselho. — Esses gatos nos devorarão a todos – disse – se o capitão do navio não prender esses animais ferozes. Enviemos-lhe uma delegação dos mais bravos de nós. Vários camundongos se ofereceram para tal missão e partiram para encontrar o jovem capitão. — Capitão – disseram –, parte rapidamente desta ilha ou perecerá cada um de nós, camundongos. — Com prazer – respondeu o jovem capitão –, com uma condição. Antes, que tragais de volta o anel de bronze que algum mago hábil roubou de mim. Se não o fizerdes, desembarcarei todos os meus gatos em vossa ilha e sereis exterminados. Os camundongos partiram consternados. — O que devemos fazer? – inquiriu a rainha. – Como encontraremos esse anel de bronze? Convocou um novo conselho, chamando os ratos de todos os cantos do globo, mas ninguém sabia onde estava o anel de bronze. 42


O Anel de Bronze

De repente, chegaram três camundongos de um país muito distante. Um deles era cego, o segundo era coxo, e o terceiro tinha as orelhas cortadas. — Ho, ho, ho! – disseram os recém-chegados – viemos de um país muito distante. — Vós sabeis onde está o anel de bronze que submete o gênio? — Ho, ho, ho! Sabemos. Um velho feiticeiro o possui agora. Mantém-no dentro do bolso durante o dia e dentro da boca durante a noite. — Ide e tomai-o dele. Voltai assim que puderdes. Assim, os três camundongos construíram um barco e partiram para a terra do feiticeiro. Ao chegarem à capital, atracaram e correram para o palácio, deixando no litoral somente o rato cego para tomar conta do barco. Esperaram até o anoitecer. O velho malvado deitou-se na cama, pôs o anel de bronze na boca e logo caiu no sono. — O que faremos agora? – disse um animal ao outro. O camundongo de orelhas cortadas encontrou uma lamparina cheia de óleo e um frasco cheio de pimenta. Então, mergulhou o rabo primeiro no óleo e depois na pimenta, e o enfiou no nariz do feiticeiro. — Atchim! Atchim! – espirrou o velho, mas não acordou. O espirro fez com que o anel de bronze pulasse de sua boca. Rapidamente o camundongo coxo arrebatou o precioso talismã e levou-o para o barco. Podeis imaginar o desespero do mago quando acordou e não encontrou o anel de bronze em nenhum lugar! Entretanto, nesse momento os três ratinhos tinham zarpado com seu prêmio. Uma brisa favorável os levou para a ilha onde a rainha dos camundongos os esperava. Naturalmente, começaram a falar sobre o anel de bronze. — Quem de nós merece maior crédito? – bradaram ao mesmo tempo. — Eu – disse o rato cego –, porque sem minha vigilância nosso barco se afastaria para mar aberto. — Claro que não – berrou o rato de orelhas cortadas –; o crédito é meu. Não fui eu o que fez o anel pular da boca do homem? — Não, o crédito é meu – exclamou o rato coxo –, fui eu o que correu com o anel. 43


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E dos berros logo vieram os socos, e, que azar! quando a briga estava no auge, o anel de bronze caiu no fundo do mar. — Como poderemos encarar nossa rainha? – disseram os três ratos. – Ao perdermos, por tolice, o talismã, condenamos nosso povo ao extermínio total. Não podemos voltar a nosso país, aportemos nesta ilha deserta e deixemos que aqui terminem nossos miseráveis dias. Dito e feito. O barco chegou a tal ilha e os ratos desembarcaram. O camundongo cego foi rapidamente desertado pelos outros dois, que partiram para caçar moscas. No entanto, enquanto vagava triste pelo litoral, o rato cego encontrou um peixe morto, e estava a comê-lo quando sentiu alguma coisa dura. Ao ouvirem os gritos, os outros dois camundongos chegaram correndo. — É o anel de bronze! É o talismã! – gritaram alegremente, e, ao subirem de novo no barco, logo chegaram à ilha dos camundongos. Chegaram na hora certa, pois o capitão estava justamente desembarcando o carregamento de gatos quando a delegação dos camundongos lhe trouxe o precioso anel de bronze. — Anel de bronze – ordenou o jovem –, obedece a vosso mestre. Faze com que meu navio volte a ser como antes. Imediatamente, o gênio do anel pôs-se a trabalhar, e o velho navio enegrecido transformou-se novamente no maravilhoso navio dourado com velas de brocado; os belos marinheiros correram para os mastros de prata e para as cordas de seda, e logo zarparam para a capital. Ah! como os marinheiros cantavam alegremente ao navegar nas águas transparentes do mar! Por fim, alcançaram o porto. O capitão desembarcou e correu para o palácio, onde encontrou o velho malvado a dormir. A princesa envolveu o marido em um longo abraço. O mago tentou escapar, mas foi preso e amarrado com cordas fortes. No dia seguinte, o feiticeiro, amarrado à cauda de um burro selvagem carregado de nozes, foi partido em tantos pedaços quantas eram as muitas nozes no lombo do burro.* * Traditions Populaires de l’Asie Mineure, Carnoy et Nicolaides, Paris, Maisonneuve, 1889.

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O Príncipe Jacinto e a Querida Princesinha

ra uma vez um rei que se apaixonou perdidamente por uma princesa; mas esta não podia casar-se com ninguém, porque estava sob encantamento. Então o rei saiu à procura de uma fada e perguntou-lhe o que poderia fazer para ganhar o amor da princesa. A fada disse-lhe: — Sabes que a princesa tem um gatinho adorável e que lhe tem grande estima. O homem que for hábil o bastante para pisar no rabo do gato é aquele com quem ela está destinada a casar-se. O rei pensou consigo mesmo que isso não seria muito difícil e deixou a fada, determinado a esmigalhar o rabo do gato em vez de tão somente pisar nele. Podeis imaginar que não demorou muito até que ele fosse ver a princesa, e o bichano, como de costume, foi em sua direção, com as costas arqueadas. O rei deu um passo mais largo e pensou que tinha o rabo sob


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o pé, mas o gato virou-se com tanta astúcia, que o rei pisou apenas no ar. E assim continuou por oito dias, até que o rei começou a pensar que este rabo agourento devia estar cheio de azougue – não parava quieto nem por um minuto. Por fim, contudo, teve sorte suficiente para aproximar-se do bichano enquanto este dormia profundamente com o rabo esparramado. Então o rei, sem perder um segundo, pisou nele com toda a força. Com um bramido terrível, o gato deu um pulo e de repente se transformou num homem alto que, fixando um olhar furioso no rei, disse: — Casar-vos-eis com a princesa porque fostes capaz de quebrar o feitiço, mas terei minha vingança. Tereis um filho que não será feliz até que descubra que tem um nariz grande demais, e, se contardes a quem quer que seja algo do que acabo de dizer, desaparecereis imediatamente, e ninguém mais vos verá ou ouvirá de novo. Embora estivesse morrendo de medo do feiticeiro, o rei não pôde conter o riso diante de tal ameaça. — Se meu filho tiver um nariz tão grande assim – disse-se a si mesmo –, certamente o verá ou o sentirá; ao menos se não for cego ou sem mãos. Mas, assim que o feiticeiro sumiu, o rei não perdeu mais tempo pensando e foi procurar a princesa, que logo consentiu em casar-se com ele. Sucede, porém, que ainda eram recém-casados quando o rei morreu, e a rainha nada tinha para fazer senão cuidar de seu filhinho, a quem chamou Jacinto. O princepezinho tinha grandes olhos azuis, os olhos mais lindos do mundo, e uma boca muito doce, mas, coitado! seu nariz era tão grande, que cobria metade do rosto. A rainha ficou inconsolável quando viu tal narigão, mas as criadas garantiram que não era tão grande quanto parecia; disseram que era um nariz romano e que bastaria abrir qualquer compêndio de história para ver que todo herói tinha um nariz grande. A rainha, devotada ao bebê, ficou feliz com o que lhe haviam dito, e, quando olhou Jacinto de novo, o nariz já não lhe parecia tão grande. O príncipe cresceu cercado de cuidados, e, assim que começou a falar, contaram-lhe todo tipo de histórias terríveis sobre pessoas que tinham narizes pequenos. Ninguém podia aproximar-se do príncipe se não tivesse 46


O Príncipe Jacinto e a Querida Princesinha

o nariz mais ou menos parecido com o dele, e os cortesãos, para conseguir o favor da rainha, começaram a puxar o nariz de seus filhos várias vezes por dia, para que ficassem compridos. Todavia, fizessem o que fizessem, os narizes não eram nada em comparação com o do príncipe. Quando chegou à idade da razão, aprendeu História; e, sempre que se falava de um grande príncipe ou de uma bela princesa, os professores tinham o cuidado de contar-lhe que tinham nariz comprido. Seu quarto era decorado com quadros, todos de pessoas de nariz grande; e o príncipe cresceu tão convencido de que um nariz comprido representava uma beleza admirável, que não gostaria, de maneira alguma, de ter o nariz nem um milímetro menor! Quando chegou seu aniversário de vinte anos, a rainha pensou que era hora de o príncipe casar-se, e ordenou que fossem trazidos, para que os visse, retratos de diversas princesas, e entre outros lá estava um retrato da Querida Princesinha! Ora, ela era a filha de um grande rei e um dia possuiria vários reinos; mas o príncipe Jacinto não teve nem um pensamento deste tipo, porque estava boquiaberto com a beleza dela. A princesa, que ele julgava bem graciosa, tinha, no entanto, um narizinho empinado que, em seu rosto, era a coisa mais linda, mas era causa de grande embaraço para os cortesãos, pois tinham adquirido o hábito de rir de narizinhos, a tal ponto que às vezes se pegavam rindo diante deles antes mesmo de parar para pensar. No entanto, esse narizinho não causou riso ao príncipe, que não achou graça na piada, e na verdade baniu dois de seus cortesãos que ousaram referir-se desrespeitosamente ao pequenino nariz da Querida Princesinha. Os outros, tomando o caso como advertência, aprenderam a pensar duas vezes antes de falar, e um chegou a dizer ao príncipe que, embora fosse verdade que nenhum homem podia ser digno de nada se não tivesse um nariz comprido, ainda assim a beleza da mulher era algo diferente; também disse conhecer um homem instruído que sabia grego e que lera em algum manuscrito antigo que a bela Cleópatra tinha nariz arrebitado! 47


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O príncipe preparou-lhe um presente esplêndido como recompensa pela boa notícia, e enviou embaixadores para pedir a mão da Querida Princesinha. O rei, pai da moça, deu o consentimento. O príncipe Jacinto, que, na ânsia de ver a princesa, caminhara três léguas para encontrar-se com ela, mal se aproximou para beijar-lhe a mão quando, para horror de todos os presentes, apareceu o feiticeiro, rápido como um raio, e arrebatou a Princesinha, arrastando-a para longe da visão de todos! O príncipe ficou inconsolável e declarou que nada o faria voltar a seu reino enquanto não a encontrasse novamente, e, ao proibir que seus cortesãos o seguissem, montou em seu cavalo e partiu, triste, deixando o animal escolher seu próprio caminho. Logo chegou a uma grande campina, pela qual cavalgou o dia todo sem ver uma única casa; cavalo e cavaleiro já estavam famintos quando, ao cair da noite, o príncipe viu uma luz que parecia brilhar de dentro de uma caverna. Cavalgou até lá e viu uma velhinha, que parecia ter pelo menos cem anos. Ela tentava pôr os óculos para dar uma olhada no príncipe Jacinto, mas demorou muito até consegui-lo, porque seu nariz era muito pequeno. O príncipe e a fada (pois era isto o que ela era) mal se tinham visto um ao outro e logo caíram na risada, exclamando ao mesmo tempo: — Oh! que nariz engraçado! — Não tão engraçado como o teu – disse o príncipe Jacinto à fada. – Mas, senhora, suplico que deixes a discussão sobre nosso nariz de lado – assim mesmo como são – e que sejas boa o bastante para dar-me algo que comer, pois estou faminto, e assim também meu pobre cavalo. — De todo o coração – disse a fada. – Embora teu nariz seja ridículo, és, no entanto, o filho de meu melhor amigo. Amei teu pai como a um irmão. Mas ele tinha um nariz muito bonito! — Então, dize-me o que falta ao meu – disse o príncipe. — Oh! não falta nada – respondeu a fada. – Ao contrário, tens de sobra. Não importa, é possível ser um homem de valor mesmo com um nariz comprido. Estava a contar-te que fui amiga de teu pai. Nos velhos tempos, ele geralmente vinha ver-me, e deves saber que eu era muito, muito bonita naquela época; pelo menos, era isso o que ele costumava 48


O Príncipe Jacinto e a Querida Princesinha

dizer. Gostaria de contar-te da conversa que tivemos na última vez em que nos encontramos. — Com toda a certeza – disse o príncipe –; depois de jantar, será um grande prazer escutar-te; mas considera, senhora, suplico-te, que não comi nada hoje.

— O pobrezinho tem razão – disse a fada. – Estava esquecendo-me. Então entra, vou servir o jantar, e, enquanto comes, posso contar minha história em poucas palavras – pois eu mesma não gosto de histórias sem fim. Uma língua comprida é pior que um nariz comprido, e lembro-me de que, quando jovem, era muito admirada por não ser tagarela. Costumavam dizer que a rainha, minha mãe, era assim. Apesar do que vês que sou agora, eu era a filha de um grande rei. Meu pai... — Teu pai, ouso dizer, conseguiu algo para comer quando estava com fome! – interrompeu-a o príncipe. — Oh! certamente – respondeu a fada – e tu também serás servido imediatamente. Só queria contar-te... — Mas realmente não conseguirei ouvir nada até que tenha algo para comer – exclamou o príncipe, que estava ficando nervoso; todavia, lembrando-se de que seria melhor ser educado, pois precisava muito da ajuda da fada, acrescentou: — Sei que com o prazer de ouvir-te deveria esquecer-me da própria fome; mas meu cavalo, que não pode ouvir-te, precisa mesmo ser alimentado! 49


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A fada ficou muito lisonjeada com essa declaração, e disse, chamando os criados: — Não esperarás nem mais um minuto; és muito educado, e, apesar de teu nariz enorme, és realmente muito agradável. “Que uma praga leve esta velha! Como ela insiste em falar do meu nariz!”, pensou consigo o príncipe. “Alguém pode até pensar que o meu nariz juntou todo o comprimento que falta ao dela! Se não estivesse com tanta fome, já teria dado uma lição a esta linguaruda que acha que fala pouco! As pessoas são estúpidas demais para ver os próprios defeitos! Isso porque é uma princesa: deve ter sido mimada por bajuladores, que sempre a fizeram acreditar que fala pouco!” Enquanto isso, os servos estavam colocando o jantar à mesa, e o príncipe estava entretido ouvindo a fada fazer-lhes mil perguntas só pelo prazer de ouvir a própria voz. Notou, sobretudo, uma criada que, não importasse o que fosse dito, sempre inventava um modo de elogiar a sabedoria de sua ama. — Bem! – pensou, enquanto comia o jantar. – Estou muito feliz por ter vindo aqui. Isso só demonstra quanto tenho sido prudente por nunca ter dado ouvido a bajuladores. Pessoas desse tipo nos elogiam pela frente sem a menor cerimônia e escondem nossos defeitos ou os tomam como virtudes. De minha parte, nunca fui pego por um deles. Conheço meus próprios defeitos, espero. Pobre príncipe Jacinto! Ele realmente acreditava no que dizia, e nunca lhe passou pela cabeça que as pessoas que elogiavam seu nariz estavam, na verdade, zombando dele, exatamente da mesma maneira que a criada da fada zombava dela; pois o príncipe a tinha visto rindo às escondidas, sem ser notada pela fada. Ele nada disse, entretanto. Quando sua fome começou a ser saciada, disse a fada: — Meu querido príncipe, por favor, vira-te um pouquinho para lá, pois teu nariz lança uma sombra que realmente não me permite ver o que tenho no prato. Ah! obrigado. Falemos agora de teu pai. Quando fui à sua corte, ele era só um garotinho, mas isso foi há quarenta anos. Estou 50


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aqui neste lugar desolado desde então. Conta-me o que acontece agora; ainda há tantas garotas ávidas de diversão? Na minha época, eram vistas em festas, teatros, bailes e desfiles todos os dias. Querido! Que narigão que tens! Não consigo acostumar-me com ele! — Realmente, senhora – disse o príncipe –, gostaria que deixasses de mencionar meu nariz. Não te interessa a aparência dele. Estou bastante satisfeito com meu nariz e nunca desejei que fosse menor. Deves aceitar o que te é dado. — Agora estás bravo comigo, meu pobre Jacinto – disse a fada –, e juro que não queria irritar-te; ao contrário, queria fazer-te um favor. Contudo, embora não possa impedir que teu nariz me espante, tentarei não falar nada dele. Aliás, tentarei pensar que tens um nariz comum. Para dizer a verdade, teu nariz daria uns três de tamanho razoável. O príncipe, que já não estava com fome, ficou tão impaciente com a insistência dos comentários da fada sobre seu nariz, que por fim saltou para sobre o cavalo e partiu às pressas. Onde quer que fosse em sua viagem, ele pensava que as pessoas estavam malucas, pois todas falavam de seu nariz; embora não chegasse a admitir que era comprido demais, acostumara-se a vida inteira a ouvir que era bonito. A velha fada, que desejava fazê-lo feliz, finalmente elaborou um plano. Trancou a Querida Princesinha num palácio de cristal e o pôs em um lugar em que o príncipe não poderia deixar de encontrá-lo. Sua alegria ao ver a princesa de novo foi extrema, e começou a trabalhar com todo o afinco para tentar libertá-la da prisão. Entretanto, apesar de todo o esforço, ele fracassou redondamente. Em desespero, pensou que ao menos deveria tentar chegar perto o bastante para falar à Querida Princesinha, que, por sua vez, esticou a mão para que ele a pudesse beijar; mas, qualquer que fosse a posição, ele nunca conseguia trazer a mão até seus lábios, pois seu nariz sempre atrapalhava. Pela primeira vez percebeu como seu nariz era comprido e exclamou: — Bem, devo admitir que meu nariz é comprido demais! 51


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Em um instante, a prisão de cristal se partiu em milhares de caquinhos, e a velha fada, tomando a Querida Princesinha pela mão, disse ao príncipe: — Agora, dize se não estás em dívida comigo. Foi muita bondade de minha parte falar-te de teu nariz! Nunca terias descoberto quão incomum era, se não o tivesse impedido de fazer o que queria. Vês agora como o amor-próprio nos impede de conhecer nossos próprios defeitos, tanto da mente quanto do corpo. Nossa razão em vão tenta mostrá-los a nós. Recusamo-nos a vê-los até que os encontremos no caminho de nossos interesses. O príncipe Jacinto, cujo nariz agora era como o de todo o mundo, não deixou de beneficiar-se da lição que recebeu. Casou-se com a Querida Princesinha, e viveram felizes para sempre.*

* Le Prince Desir et la Princesse Mignonne, pela Madame Leprince de Beaumont.

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ra uma vez um pobre lavrador que tinha muitos filhos e pouquíssimo para oferecer-lhes em matéria de comida e de roupa. Eram todos belos, mas a filha mais nova se destacava: sua beleza era tão grande, que não encontrava limites. Certa noite, então, em uma quinta-feira de outono – com um tempo impetuoso do lado de fora, sob uma escuridão terrível e uma tempestade que de tão pesada e agitada fazia as paredes da casinha sacudir-se sem parar –, encontravam-se todos juntos à lareira, cada qual ocupado com algo diferente, quando de súbito alguém bateu três vezes contra a vidraça. Saindo o homem para verificar de que se tratava, encontrou ali um urso branco enorme. — Boa noite, senhor – disse o Urso Branco. — Boa noite – respondeu o homem.


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— Porventura me concederias, senhor, tua filha mais nova? Se o fizeres, serás tão rico quanto hoje és pobre. Aquele homem em nada se opunha a fazer-se rico, mas antes refletiu: “Devo primeiro levar isso à minha filha”. Então, avançou casa adentro e declarou a todos que, do lado de fora, um urso branco e enorme prometera deixá-los a todos ricos se obtivesse a filha mais nova. A jovem se recusou e afirmou que não queria ouvir mais nada sobre o assunto. Assim, o homem saiu novamente e combinou com o Urso Branco que o animal deveria retornar na noite da quinta-feira seguinte para receber dela uma resposta. O lavrador a persuadiu em seguida, falando-lhe de tal maneira sobre a riqueza que possuiriam e sobre quão bom aquilo seria para ela, que acabou por fazer-lhe a cabeça: a jovem lavou e remendou todos os seus trapos, aprumou-se para parecer o mais inteligente possível e preparou-se para partir. Pouco era o que tinha para levar consigo. Na quinta-feira seguinte, o Urso Branco veio buscá-la. Tendo-se ela, com sua trouxinha, sentado sobre suas costas, partiram os dois. Percorrido já grande parte do trajeto, o Urso Branco lhe disse: — Estás com medo? — Não, de modo algum – respondeu ela. — Agarra-te firme em meu pelo, e não haverá perigo algum – disse ele. E assim ela foi para muito, muito longe, até chegarem a uma grande montanha. Nela o Urso Branco bateu, e uma porta se abriu. Os dois adentraram um castelo em que muitos cômodos brilhantemente iluminados refulgiam tons de ouro e de prata; havia também um enorme saguão, no 54


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qual se estendia uma mesa tão magnífica, que seria difícil fazer alguém compreender quão esplêndida era. O Urso Branco deu à jovem um sino de prata e revelou-lhe que, ao precisar de algo, deveria tão somente soá-lo para que surgisse o que desejasse. Assim, após ter comido e à medida que a noite se aproximava, ela, que enfrentara longa viagem, ficou com sono e notou que gostaria de ir para a cama. Mal a jovem soou o sino, encontrou-se em um quarto em que uma cama lhe fora preparada, e que era a cama mais bela em que se poderia querer dormir. Havia travesseiros de seda e, também de seda, cortinas com orladuras douradas. Tudo o que havia no cômodo era da cor do ouro ou da prata. No entanto, tendo-se ela deitado e tendo apagado a lamparina, um homem veio deitar-se ao seu lado. Pasmai: tratava-se do Urso Branco, que durante a noite havia abandonado a forma animal. Ela, porém, jamais o via, pois ele sempre chegava depois de apagada a lamparina e sempre partia antes do amanhecer. Tudo correu bem por um tempo. Então, ela começou a sentir-se muito triste e pesarosa, pois tinha de passar o dia inteiro sozinha. Desejava regressar à casa de seu pai e de sua mãe, de seus irmãos e de suas irmãs. O Urso Branco quis saber o que se passava com ela, que lhe disse que era maçante a vida ali na montanha, onde tinha de ficar sempre sozinha e que, na casa de seus pais, havia todos os seus irmãos e irmãs. Era por não voltar para eles que se sentia pesarosa. — Talvez se possa remediar isso – disse o Urso Branco –, se me prometeres que jamais conversarás a sós com tua mãe, mas somente quando houver também a presença de outros. Ela desejará tomar tua mão e conduzir-te a um quarto, para que possa conversar contigo a sós; não deves concordar com isso de modo algum: caso contrário, grande desgraça se abaterá sobre nós dois. Certo domingo, então, o Urso Branco veio ter com ela e lhe disse que poderiam partir para a casa de seu pai e de sua mãe. Com ela sobre as costas, ambos viajaram até lá, percorrendo um longuíssimo caminho em muitíssimo tempo. Por fim, chegaram a uma casa de fazenda enorme, fora da qual seus irmãos e suas irmãs corriam e brincavam. A casa era tão bela, que dava prazer contemplá-la. 55


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— Teus pais agora moram aqui – disse o Urso Branco –, mas não te esqueças do que eu te disse. Caso contrário, farás mal a ti e a mim. — Jamais me esquecerei – declarou ela. E, tão logo a jovem entrou na casa, o Urso Branco deu as costas e regressou. Tão jubilosos ficaram todos quando ela retornou para os pais, que parecia que tal alegria jamais teria fim. Todos achavam que seu pai não poderia agradecer-lhe o suficiente por tudo o que fizera por eles. Ora, eles possuíam agora o que sempre tinham querido, e nada poderia ser melhor. Todos lhe perguntaram como estava a vida onde ela então morava. Tudo também caminhava bem, respondeu; também ela tinha tudo o que poderia querer. Que outras respostas teve de dar não sei dizer, mas estou certo de que ninguém descobriu muito. À tarde, no entanto, tendo eles almoçado ao meio-dia, tudo se deu como o Urso Branco previra. A mãe da jovem desejou ter com ela a sós em seu quarto. Ela, porém, recordou-se do que o urso dissera e não se deixou levar. — O que há para ser dito pode ser dito a qualquer momento – respondeu. À sua maneira, contudo, a mãe acabou por convencê-la, e a jovem se viu forçada a revelar-lhe toda a história. Assim, disse-lhe que toda noite, uma vez apagada a lamparina, um homem vinha e se deitava ao seu lado; que jamais o via porque ele sempre a deixava antes de raiar o dia; que se pegava constantemente triste, pensando em quão feliz ficaria se pudesse vê-lo; e que tinha de ficar sozinha todo o dia, o qual acabava por tornar-se maçante e solitário. — Ah! – gritou a mãe, horrorizada. – Provavelmente te estás deitando com um trol! Eis que te ensinarei, porém, a vê-lo. Hás de levar contigo um pedaço de minhas velas, o qual podes ocultar em teu seio. Usa o pedaço para vê-lo enquanto estiver dormindo, mas cuida para que gota nenhuma do sebo o atinja. Ela então pegou a vela e a ocultou no próprio seio. Quando se aproximou a noite, o Urso Branco chegou para buscá-la. Tendo os dois per56


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corrido certa distância, o animal perguntou-lhe se tudo não havia transcorrido como ele previra, ao que ela se viu forçada a dizer que sim. — Se tiveres feito o que tua mãe desejava – disse ele –, terás atraído grande desgraça sobre nós. — Não – replicou ela –, não fiz nada. Tendo a jovem chegado a casa e tendo-se deitado, as coisas ocorreram como de costume, e um homem veio deitar-se a seu lado. Tarde da noite, quando pôde ouvir que ele estava dormindo, ela se levantou, fez fogo, acendeu a vela, deixou o lume iluminá-lo e o viu: tratava-se do príncipe mais belo que seus olhos já haviam contemplado. Ela gostou tanto dele, que teve a impressão de que morreria se não o beijasse naquele instante – e assim o fez. No entanto, enquanto o beijava, deixou três gotas do sebo quente cair sobre sua camisa, acordando-o. — Mas o que fizeste!? – disse ele. – Atraíste desgraça para nós dois! Se houvesses esperado um ano, eu ficaria livre. Possuo uma madrasta que me amaldiçoou, fazendo com que durante o dia eu seja um urso e à noite um homem. Agora, porém, tudo está acabado entre nós. Devo deixá-la e retornar para minha madrasta. Ela mora em um castelo localizado a leste do sol e a oeste da lua, onde há uma princesa cujo nariz possui três varas de comprimento. É com ela que devo agora casar-me. A jovem chorou e se queixou, mas em vão: ele devia partir. Em seguida, perguntou-lhe se não poderia acompanhá-lo, o que porém era impossível. — Podes indicar-me, então, o caminho que até lá conduz, para que vá procurar-te? Isso certamente eu posso fazer! — Sim, podes de fato fazê-lo – disse ele –, mas não há caminho para lá. O castelo fica a leste do sol e a oeste da lua, e jamais descobririas como alcançá-lo. De manhã, quando a jovem acordou, tanto o príncipe quanto o castelo haviam sumido. Estava ela deitada em um pequeno tufo de grama no meio de um bosque escuro e cerrado. A seu lado, encontrava-se a mesma trouxinha de trapos que havia trazido de casa consigo. Então, após ter esfregado os olhos para afastar o sono e chorado até não aguentar mais, 57


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ela se pôs a caminho, andando por dias e dias até chegar, por fim, a uma grande montanha. Do lado de fora, uma senhora, sentada, brincava com uma maçã dourada. A menina lhe perguntou se conhecia o príncipe que morava com a madrasta no castelo localizado a leste do sol e a oeste da lua e que se casaria com uma princesa cujo nariz tinha três varas de comprimento. — Como a senhorita tomou conhecimento dele? – perguntou-lhe a senhora. – Será que não és tu quem deveria tê-lo contigo? — Sou eu mesma – disse ela. — Mas és tu, então? – continuou a senhora. – Nada sei dele, exceto que mora em um castelo que se encontra a leste do sol e a oeste da lua. Levarás muito tempo para chegar lá, e isto se de fato chegares. Haverás, porém, de tomar contigo meu cavalo, para que possas cavalgar até uma senhora vizinha minha; talvez ela te possa dizer algo sobre ele. Quando lá chegares, deves golpear o cavalo debaixo de sua orelha esquerda e ordenar-lhe que volte para casa. A maçã dourada, contudo, poderás levar contigo. A menina então subiu no cavalo e cavalgou por um longuíssimo caminho, até que enfim chegou à montanha. Sentada do lado de fora, uma mulher de idade trazia uma escova de carda dourada nas mãos. A jovem quis saber se conhecia o caminho para o castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua, mas recebeu como resposta aquilo mesmo que a primeira senhora lhe havia dito: — Nada sei quanto a isso, exceto que fica a leste do sol e a oeste da lua e que demorarás muito para chegar lá, e isto se de fato chegares. Haverás, porém, de tomar meu cavalo contigo e cavalgar até a senhora que mais próximo mora de mim: talvez ela saiba onde se encontra o castelo. Quando tiveres chegado até ela, poderás apenas golpear o cavalo debaixo de sua orelha esquerda e ordenar-lhe que volte para casa. Em seguida, deu-lhe a escova de carda dourada, pois segundo ela lhe poderia ser útil. A jovem então montou no cavalo e voltou a percorrer um trajeto estafante. Muito tempo depois, chegou a uma grande montanha, na qual 58


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se sentava uma mulher de idade a girar uma roca dourada. Também a essa senhora a jovem perguntou se conhecia o caminho que levava ao príncipe e onde poderia encontrar o castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua. O que se seguiu, porém, não foi nada de novo. — Será que não és tu quem deveria tê-lo contigo? – perguntou-lhe a senhora. — Sim, sou eu mesma quem deveria tê-lo – respondeu a menina. A velha encarquilhada, porém, não sabia mais que as outras: que ficava a leste do sol e a oeste da lua ela sabia, e que “levarás muito tempo para chegar até lá, isto se de fato chegares”. E continuou: — No entanto, poderás tomar meu cavalo, e creio ser melhor que cavalgues até o Vento do Leste e o interrogue: talvez ele saiba onde se encontra o castelo e te sopre até lá. Ao chegares a ele, porém, deves golpear o cavalo debaixo de sua orelha esquerda, ao que ele voltará para casa. Em seguida, deu à jovem sua roca dourada, dizendo: — Talvez isto te venha a ser útil. A jovem precisou cavalgar por muitos dias. Depois desse cansativo período, conseguiu enfim chegar e perguntar ao Vento do Leste se lhe poderia revelar o caminho para o príncipe que vivia a leste do sol e a oeste da lua. — Bem – disse-lhe o Vento do Leste –, já ouvi falar do príncipe e seu castelo, mas não conheço o caminho que conduz até lá porque nunca soprei tão longe. Se assim o desejares, porém, acompanhar-te-ei junto com meu irmão, o Vento do Oeste. Ele deve conhecer o caminho, pois é muito mais forte que eu. Podes sentar-te sobre minhas costas, e assim te conduzirei. Sentou-se ela então sobre suas costas, e com que rapidez partiram! Ao chegarem, o Vento do Leste entrou e declarou que a jovem com quem viera era aquela que deveria ter o príncipe consigo no castelo localizado a leste do sol e a oeste da lua; disse também que ela estivera viajando para encontrar o príncipe novamente, que ele mesmo a acompanhara até ali e que gostaria de saber se o Vento do Oeste conhecia o paradeiro do castelo. 59


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— Não – respondeu o Vento do Oeste. – Jamais soprei tão longe. Se o desejares, posso acompanhar-te até o Vento do Sul, que é muito mais forte que nós dois e já vagueou por distâncias enormes. Talvez ele possa dizer-te tudo o que desejas saber. Senta-te sobre minhas costas e te levarei até ele. Ela então o fez e viajou até o Vento do Sul; mais uma vez, levou pouco tempo no trajeto. Quando chegaram, o Vento do Oeste perguntou ao Vento do Sul se poderia revelar à jovem o caminho do castelo que se localizava a leste do sol e a oeste da lua, pois era ela aquela que deveria casar-se com o príncipe que lá vivia. — Ah, sim! – disse o Vento do Sul. – Então é ela? Bem, muito já viajei ao longo da vida, e por toda sorte de lugares. No entanto, jamais soprei tão longe assim. Se quiseres, porém, irei contigo até meu irmão, o Vento do Norte. Ele é o mais velho e o mais forte de todos nós; se não souber dizer-te onde fica, ninguém mais poderá fazê-lo. Senta-te sobre minhas costas e te conduzirei até lá. Ela então sentou-se sobre as costas dele, que logo partiu com enorme pressa. Não se demoraram muito tempo no caminho; aproximando-se de onde morava o Vento do Norte, sentiram-no tão selvagem e furioso, que um frio lhes subiu pela espinha muito antes de lá chegarem. — O que quereis? – rugiu ele de muito longe, o que os deixou paralisados. O Vento do Sul respondeu: — Sou eu, e aqui está aquela que deveria ter consigo o príncipe que mora no castelo a leste do sol e a oeste da lua. Ela deseja perguntar-te se já estiveste lá e se lhe poderias revelar o caminho, porque gostaria de encontrá-lo de novo. — Sim – disse o Vento do Norte –, sei bem onde fica. Certa vez, soprei até lá uma folha de álamo, mas passei os dias seguintes tão cansado, que nada mais consegui soprar. Porém, se de fato ansiares por chegar ali e não tiveres medo de acompanhar-me, colocar-te-ei sobre minhas costas e, se possível, tentarei soprar-te até lá. — Para lá devo ir – afirmou ela. – E, se houver como fazê-lo, eu o farei. Tampouco terei medo, não importa quão rápido fores. 60


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— Muito bem – disse o Vento do Norte –, mas deves dormir aqui esta noite: para chegarmos lá, precisamos ter o dia inteiro pela frente. Na manhã seguinte, bem cedo, o Vento do Norte fê-la despertar, inflou-se e tornou-se tão grande e tão forte, que somente vê-lo já causava medo. Partiram assim os dois, lá no alto, abrindo caminho pelo ar como se não fossem parar até que chegassem ali onde o mundo terminava. Embaixo, caía uma furiosa tempestade, derrubando árvores e casas. Quando sobrevoaram o mar, os barcos afundaram às centenas. E assim iam avançando. Passou-se muito tempo, e depois mais tempo... e ainda se encontravam sobre o mar. O Vento do Norte ficava mais e mais cansado. Por fim, estava de tal maneira exausto, que mal conseguia soprar, e foi caindo e caindo, descendo e descendo... até que ficou tão baixo, que as ondas começaram a chocar-se contra os calcanhares da pobrezinha que estava carregando. — Estás com medo? – perguntou o Vento do Norte. — Não sinto medo – respondeu ela, sendo fiel à verdade. Todavia, não estavam muito longe da costa. O Vento do Norte possuía precisamente a força necessária para jogá-la sobre a praia, bem abaixo das janelas de um castelo que se encontrava a leste do sol e a oeste da lua. O vento ficou tão exausto e esgotado, que se viu obrigado a descansar dias a fio antes de regressar para casa. Na manhã seguinte, a jovem sentou-se à sombra dos muros do castelo para brincar com a maçã dourada. A primeira pessoa que a viu foi a donzela do nariz longo que deveria ter o príncipe. — O quanto desejas por esta maçã dourada, menina? – disse, abrindo a janela. — Não há ouro ou dinheiro que a compre – respondeu a jovem. — Se não é possível comprá-la com ouro ou com dinheiro, o que a comprará? Podes pedir o que bem te aprouver! – replicou a princesa. — Pois bem, se me for possível ir ter com o príncipe que aí vive e passar com ele a noite de hoje, poderás tê-la – disse a jovem que chegara com o Vento do Norte. 61


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— Muito bem – respondeu a princesa, que porém já se decidira quanto ao que fazer. Ela pegou, então, a maçã dourada. No entanto, quando chegou a noite e a jovem subiu ao aposento do príncipe, ele estava dormindo, por obra da outra. Aos prantos, a pobrezinha o chamou e sacudiu, mas foi incapaz de acordá-lo. De manhã, logo ao despontar da aurora, ali entrou a princesa do nariz longo e a pôs para fora. Durante o dia, a menina voltou a sentar-se sob as janelas do castelo, onde se pôs a brincar com a escova de carda dourada. Tudo, então, sucedeu como antes. A princesa quis saber quanto gostaria de receber pela escova, ao que a jovem respondeu que o objeto não seria vendido por ouro nem por dinheiro: somente se lhe fosse autorizado ver o príncipe e passar com ele aquela noite é que seria possível tê-lo. No entanto, quando a jovem subiu ao quarto do príncipe, estava ele adormecido novamente; não importava quanto o chamasse ou sacudisse, tampouco quanto chorasse: o príncipe continuava adormecido, e ela era incapaz de reavivá-lo. De manhã, ao despontar da aurora, a princesa do nariz longo esteve de novo ali e a colocou mais uma vez para fora. Firmado o dia, a jovem se sentou sob as janelas do castelo a fim de girar sua roca dourada. Também aquilo a princesa do nariz longo queria. Então, abriu a janela e perguntou à menina por quanto poderia comprá-la. A menina disse o mesmo que dissera nas ocasiões anteriores, isto é, que a roca não estava à venda por ouro nem por dinheiro: apenas se lhe fosse autorizado ir ao príncipe que ali vivia e passar com ele a noite, é que a princesa a teria. — Sim – disse a princesa. – Aceito-o de bom grado. Naquele lugar, porém, sentados em um aposento vizinho ao do príncipe, encontravam-se alguns cristãos que tinham sido levados para lá à força. Por duas noites seguidas, ouviram no quarto dele uma mulher que chorava e o chamava, e por isso decidiram avisá-lo. Naquela noite, então, quando a princesa mais uma vez lhe trouxe a poção do sono, o príncipe fingiu bebê-la e a despejou às suas costas, desconfiando do que se tratava. Tendo ela retornado a seu quarto, ele portanto estava acordado e pôde ouvi-la dizer como chegara ali. 62


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— Chegaste na hora certa – afirmou o príncipe –, pois amanhã mesmo eu me casaria. Não desejo, porém, ter comigo a princesa do nariz longo, e somente tu podes salvar-me. Direi que desejo ver de que minha noiva é capaz e lhe pedirei que lave a camisa que três gotas de sebo sujaram. A isso ela não se oporá, uma vez que ignora que foste tu quem as derramou ali. No entanto, só as pode lavar quem nasceu de pais cristãos, e não quem vem de um bando de tróis. Assim, decretarei que só poderei ter por esposa a quem puder lavá-las, e sei que disso tu és capaz. Grandes foram o gozo e a felicidade dos dois naquela noite. No dia seguinte, porém, aquele em que o casamento se realizaria, o príncipe declarou: — Devo ver agora de que minha noiva é capaz. — Isso tu podes fazer – disse a madrasta. — Tenho eu uma delicada camisa que gostaria de usar no casamento, mas sobre ela caíram três gotas de sebo que desejo ver lavadas. Fiz votos de que só me casaria com aquela que conseguisse retirá-las: a que for incapaz de tanto, não julgarei digna de ficar comigo. Bem, pensaram eles, tratava-se de algo muito pequeno, e assim não se opuseram. A princesa do nariz longo começou a lavar da melhor maneira que podia, mas, quanto mais lavava e esfregava, maiores ficavam as manchas. — Ah! Mas não és capaz de lavá-las – disse-lhe a bruxa trol que a princesa tinha por mãe. – Deixa-me tentar. Em pouco tempo, porém, também ela viu a camisa ficar pior; quanto mais a lavava e esfregava, maiores e mais escuras se mostravam as manchas. Outras tróis vieram ainda fazer o mesmo, mas, quanto mais a lavavam, mais escura e feia se tornava a camisa, até o momento em que ficou tão negra, que parecia ter passado pela chaminé. — Oh! – bradou o príncipe. – Nenhuma de vós serve para nada! Há uma pedinte do outro lado da janela, e certo estou de que é capaz de lavar melhor do que todas vós! Entra, menina! Tendo ela entrado, ele continuou: — És capaz de deixar esta camisa limpa? — Oh! Não sei – disse ela –, mas tentarei. 63


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E, tão logo pegou a camisa e a mergulhou na água, o tecido ficou branco como a neve, ou até mais branco. — Eis que me casarei contigo – declarou o príncipe. Então, a velha bruxa trol se encolerizou de tal maneira, que explodiu. O mesmo deve ter ocorrido à princesa do nariz longo e aos outros tróis, pois jamais se ouviu falar deles novamente. O príncipe e sua noiva libertaram todos os cristãos encarcerados ali e levaram consigo todo o ouro e toda a prata que conseguiram carregar, mudando-se para muito longe do castelo que ficava a leste do sol e a oeste da lua.*

* Asbjornsen e Moe.

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ra uma vez uma rainha que havia tido muitos filhos, e de todos eles só lhe restava uma filha. E assim, então, ela tinha o valor de mil filhos. Sua mãe, que desde a morte do rei, seu pai, não tinha ninguém no mundo com quem se importasse tanto quanto com essa princesinha, temia tanto perdê-la que a mimou demais, e nunca tentou corrigir nenhum de seus defeitos. A consequência foi que essa garotinha, que não poderia ser mais bela e que um dia teria uma coroa na cabeça, cresceu tão orgulhosa e tão apaixonada por sua própria beleza, que desprezava todas as outras pessoas do mundo. A rainha, sua mãe, por causa de seus afagos e lisonjas, ajudou a fazê-la crer que não havia nada bom o bastante para ela. Estava quase sempre usando os vestidos mais bonitos, como uma fada, ou como uma rainha em trajes de caça, e as senhoras da corte a acompanhavam, vestidas como fadas da floresta. E, para torná-la mais vaidosa ainda, a rainha fazia seu retrato ser pintado pelos artistas mais inteligentes e o enviava a vários reis vizinhos com quem ela mantinha laços de amizade.


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Quando viam esse retrato, apaixonavam-se pela princesa – um por um, mas a imagem provocava efeito diferente em cada um deles. Um adoeceu, outro ficou bem avariado da cabeça, e alguns dos que tinham mais sorte partiam para vê-la o mais rapidamente possível, mas esses pobres príncipes se tornavam escravos da princesa assim que seus olhos caíam sobre ela. Nunca existiu corte mais alegre. Vinte reis adoráveis faziam tudo o que podiam imaginar para fazer-se encantadores, e, depois de terem gastado dinheiro como nunca para promover uma única distração, julgavam-se muito felizes se a princesa comentasse: — Que bonito. Toda essa admiração agradava imensamente à rainha. Não se passava um dia sem que ela recebesse sete ou oito mil sonetos, outras tantas elegias e também madrigais e canções, enviadas a ela por todos os poetas do mundo. Toda a prosa e toda a poesia produzidas naquela ocasião eram sobre Belíssima – pois era este o nome da princesa –, e em todas as fogueiras que faziam ardiam, estalavam e faiscavam esses versos, melhor do que qualquer outro tipo de madeira. Belíssima já estava com quinze anos, e todos os príncipes desejavam esposá-la, mas nenhum deles se atrevia a confessá-lo. Como fazê-lo, se sabiam que qualquer deles poderia perder a cabeça cinco ou seis vezes por dia só para agradar a ela, e ainda assim ela julgaria que o esforço não era mais que uma ninharia, tão pouco lhe importava? Podeis imaginar a dureza de coração que os apaixonados atribuíam a ela; e a rainha, que desejava vê-la casada, não sabia como convencê-la a pensar nisso a sério. — Belíssima – dizia ela –, queria que não fosses tão orgulhosa. O que te faz desprezar todos esses adoráveis reis? Gostaria que te casasses com um deles, e não tentas me agradar. — Sou tão feliz! – respondia Belíssima. – Deixa-me em paz, senhora. Não quero me envolver com ninguém. — Mas tu ficarias muito feliz com qualquer desses príncipes –, argumentava a Rainha –, e vou ficar muito zangada se te apaixonares por alguém que não seja digno de ti. 66


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Mas a princesa tinha-se a si própria em tão alta conta, que não considerava que nenhum de seus apaixonados fosse inteligente ou belo o bastante para ela; e sua mãe, que estava ficando muito irritada com sua determinação de não casar, começou a lamentar que lhe tivesse permitido tanta liberdade. Por fim, não sabendo mais o que fazer, decidiu consultar certa feiticeira chamada “A Maga do Deserto”. Ora, fazer essa visita era muito difícil, porque a Maga era guardada por uns terríveis leões; mas por sorte a Rainha ouvira havia muito tempo que aquele que quisesse passar com segurança por esses leões deveria lançar-lhes um bolo feito de farinha de milheto, de rapadura e de ovos de crocodilo. Ela preparou esse bolo com suas próprias mãos, e após colocá-lo em uma cestinha partiu para procurar a fada. Porém, como não estava acostumada a andar longas distâncias, logo se sentiu muito exausta e se sentou ao pé de uma árvore para descansar, e em seguida adormeceu. Quando acordou, ficou desanimada ao ver sua cesta vazia. O bolo todo tinha sumido! E, para piorar as coisas, naquele momento ouviu o rugido dos grandes leões, que haviam descoberto que ela estava perto e vinham atacá-la. — O que devo fazer? – lamentou-se. – Vou ser devorada – e, com muito medo de dar um único passo para escapar, começou a chorar, e apoiou-se na árvore sob a qual estivera dormindo. Só então ouviu alguém dizer: — Hum, hum! Olhou em volta, e em seguida árvore acima, e lá viu um homenzinho minúsculo, que estava comendo laranjas. — Ó rainha – cumprimentou-a –, eu te conheço muito bem, e sei que estás com medo pavoroso dos leões, e de fato tens toda a razão, pois já comeram muitas outras pessoas: e o que podes esperar se não tens nenhum pedacinho de bolo para dar-lhes? — Tenho de me preparar para aceitar a morte – disse a pobre rainha. – Ai de mim! Não teria muito com que me preocupar se minha querida filha fosse ao menos casada. — Ah! Tens uma filha – gritou o Anão Amarelo (este era seu nome porque, além de ser anão, tinha um rosto muito amarelo, e morava em 67


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um pé de laranjeira). – Fico muito contente de saber disso, pois andei procurando uma esposa pelo mundo inteiro. Agora, se me prometeres que ela se casará comigo, nem um dos leões, tigres ou ursos te molestará. A rainha olhou para ele e sentiu quase tanto medo de sua carinha feia quanto sentira antes dos leões, de tal modo que não conseguia dizer uma só palavra. — O quê!? Estás hesitando – gritou o anão. – Deves adorar a ideia de ser comida viva. E, enquanto ele falava, a rainha viu os leões, que vinham correndo morro abaixo em sua direção. Cada um deles tinha duas cabeças, oito pés e quatro fileiras de dentes, e a pele dura como um casco de tartaruga, de cor vermelha brilhante. Diante dessa terrível visão, a pobre rainha, que tremia como uma pomba ao ver um falcão, gritou tão alto quanto podia: — Oh! Caro Anão, Belíssima se casará contigo. — Ah, certamente! – disse ele, com desdém. – Belíssima é bonita o suficiente, mas eu particularmente não quero me casar com ela, podes ficar com ela. — Ah, nobre senhor – replicou a Rainha, muito angustiada. – Ela não é de se recusar. É a princesa mais encantadora do mundo. — Ah bem! – respondeu ele. – Por caridade vou ficar com ela, mas tem certeza e não te esquece de que ela é minha. À medida que ele falava, uma portinha abriu-se no tronco da laranjeira, e a rainha correu para dentro, no momento exato, e a porta fechou-se com um estrondo na cara dos leões. A rainha estava tão confusa, que a princípio não notou outra portinha na laranjeira, mas em seguida esta se abriu e ela se viu em um campo de cardos e urtigas. Estava cercado por um fosso lamacento, e um pouco mais adiante havia uma cabanazinha de palha, da qual saiu o Anão Amarelo com ar muito animado. Calçava sapatos de madeira e um casaquinho amarelo, e, como ele não tinha cabelo e suas orelhas eram muito compridas, no conjunto parecia um objetozinho deplorável. 68


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— Estou muito feliz – disse à rainha – com que tu, na qualidade de minha futura sogra, venhas a conhecer a casinha em que tua Belíssima morará comigo. Com esses cardos e urtigas ela pode alimentar um burro que pode montar sempre que quiser; sob este teto humilde, nenhum mau tempo a atingirá, beberá água deste riacho e comerá rãs – que engordam bem por aqui –, e então sempre terá a mim junto a ela, bonito, simpático e alegre, como tu me estás vendo agora. Isso porque, se a sombra dela a acompanhar mais de perto do que eu, ficarei surpreso. A desditosa rainha, percebendo de uma só vez que vida miserável sua filha teria com esse anão, não conseguia suportar a ideia, e prostrou-se entorpecida, sem dizer uma palavra. Quando voltou a si, para grande surpresa sua, viu-se deitada em sua cama em casa, e, mais ainda, que estava usando a touca de dormir rendada mais linda que já vira em toda a sua vida. No início, pensou que todas as suas aventuras, os terríveis leões e a promessa ao Anão Amarelo de que ele se casaria com Belíssima não deviam ter sido mais que um sonho, mas havia a nova touca com uma bela fita e com renda para lembrar-lhe que era tudo verdade, e isto a deixou tão infeliz que não conseguia comer, beber nem dormir, tomada que estava por esses pensamentos. A princesa, que, apesar de sua obstinação, realmente amava a mãe de todo o coração, ficou muito pesarosa quando a viu com ar tão triste, e muitas vezes lhe perguntava qual era o problema; mas a rainha, que não queria que ela descobrisse a verdade, dizia apenas que estava doente, ou que um de seus vizinhos ameaçava declarar guerra contra ela. Belíssima sabia muito bem que algo lhe estava sendo ocultado, e que nenhum desses era o verdadeiro motivo para a inquietação da rainha. Portanto, decidiu que consultaria a Maga do Deserto sobre o assunto, principalmente porque tinha ouvido dizer muitas vezes que ela era sábia, e pensou que, nessa mesma ocasião, poderia pedir-lhe conselhos sobre quanto se faria bem casando-se ou não. Assim, com grande cuidado, ela fez um bolo apropriado para pacificar os leões, e uma noite recolheu-se a seus aposentos muito cedo, 69


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fingindo que ia dormir; porém, em vez disso, envolveu-se em um longo véu branco, desceu uma escada secreta e partiu completamente sozinha para encontrar a bruxa. No entanto, quando alcançou a mesma laranjeira fatal, e a viu coberta de flores e de frutas, parou e começou a colher algumas das laranjas – e, em seguida, após pousar a cesta no chão, sentou-se para comê-las. Mas, quando chegou a hora de partir novamente, a cesta tinha desaparecido, e, embora procurasse em todos os lugares, não conseguia encontrar vestígio dela. Quanto mais a procurava, mais assustada ficava, e por fim se pôs a chorar. Então, subitamente, viu diante de si o Anão Amarelo.

— Qual é o problema contigo, minha linda? – quis saber. – Por que razão estás chorando? — Ai de mim! – replicou a princesa. – Não é de admirar que eu esteja chorando, vendo que perdi a cesta de bolo que era para me ajudar a chegar em segurança à caverna da Maga do Deserto. — E o que queres com ela, linda? – disse o pequeno monstro. – Porque sou amigo dela, e por esse motivo sou tão inteligente quanto ela. 70


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— A rainha, minha mãe – respondeu a princesa –, nos últimos dias caiu em tristeza tão profunda, que temo que venha a falecer, e tenho medo de que talvez seja eu a causa disso, pois ela quer muito me ver casada, e devo dizer-te com sinceridade que ainda não encontrei ninguém que considere digno de ser meu marido. Assim, por todas estas razões, quis falar com a Maga. — Não te prestes a mais preocupações, princesa – replicou o anão. – Posso dizer-te tudo o que queres saber, melhor do que ela faria. A rainha, tua mãe, prometeu-te em casamento... — Prometeu-me a mim! – interrompeu a princesa. – Ah! Não. Tenho certeza de que não o fez. Ela me teria dito se o tivesse feito. Sou demasiado interessada no assunto para que ela prometesse algo sem meu consentimento... deves estar enganado. — Linda princesa – exclamou o anão subitamente, jogando-se de joelhos diante dela –, fico lisonjeado com que não venhas a desgostar da escolha dela quando eu te disser que é a mim que ela prometeu a felicidade de esposar-te. — Tu! – gritou Belíssima, começando a recuar. – Minha mãe quer casar-me contigo! Como podes ser tão tolo em pensar uma coisa dessas? — Ah, não é que eu faça questão de ter essa honra – vociferou o anão, zangado. – Mas aqui estão chegando os leões, vão comer-te em três bocadas, e esse será teu fim e o fim de teu orgulho. E, de fato, naquele momento, a pobre princesa ouviu urros tenebrosos das feras chegando cada vez mais perto. — O que devo fazer? – perguntou em lágrimas. – Será que toda a felicidade de meus dias chegará a este fim? O malvado Anão olhou para ela e começou a rir cheio de ódio. — Pelo menos – argumentou – tens a satisfação de morrer solteira. Uma princesa linda como tu deve com certeza preferir morrer a ser esposa de um pobre anãozinho como eu. — Ah, não fiques com raiva de mim – exclamou a princesa, juntando as mãos. – Preferiria casar com todos os anões do mundo a morrer desta maneira horrível. 71


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— Olha bem para mim, princesa, antes de dar-me tua palavra – disse ele. – Não quero que tenhas pressa alguma em fazer uma promessa. — Ah! – gritou ela – os leões estão chegando. Já te contemplei o suficiente. Estou tão assustada... Salva-me agora, ou morrerei de pavor. Na verdade, assim que falou, caiu inconsciente e, quando se recuperou, viu-se em seu próprio pequeno leito em casa; como chegou lá, não o saberia dizer, mas estava vestida com as mais belas rendas e as mais belas fitas, e em volta de seu dedo havia um anelzinho, feito de um único fio de cabelo ruivo, atado com tanta firmeza, que por mais que tentasse não conseguia tirá-lo. Quando a princesa viu todas essas coisas, e se lembrou do que havia acontecido, também caiu na mais profunda tristeza, surpreendendo e alarmando toda a corte, e à rainha mais que a ninguém. Cem vezes perguntou à Belíssima se alguma coisa estava acontecendo com ela; porém ela sempre respondia que não havia nada. Por fim, os principais homens do reino, ansiosos por ver casada sua princesa, enviaram apelos à rainha pedindo-lhe que escolhesse um marido para ela o mais rapidamente possível. A rainha respondeu que nada poderia agradar-lhe mais; porém, sua filha parecia muito pouco propensa a casar, e lhes recomendou que fossem e falassem pessoalmente com a princesa, de modo que eles o fizeram de imediato. Belíssima estava muito menos orgulhosa agora, após sua aventura com o Anão Amarelo, e não conseguia pensar em maneira melhor de livrar-se do pequeno monstro do que casar-se com algum rei poderoso. Portanto, atendeu-lhes o pedido de maneira muito mais favorável do que era a expectativa deles, dizendo que, embora estivesse muito feliz como estava, ainda assim, para agradar-lhes, concederia casar-se com o Rei das Minas de Ouro. Ele agora era um príncipe muito bonito e poderoso, que vinha apaixonado pela princesa havia anos, mas nunca acreditara que ela um dia tivesse olhos para ele. Não é difícil imaginardes como ele ficou feliz quando ouviu a notícia, e a que ponto perder para sempre a esperança de casar-se com a princesa deixou zangados a todos os outros reis; mas, afinal de contas, Belíssima não poderia ter-se casado com vinte reis – de 72


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fato, já tinha sido bastante difícil escolher um, porque sua vaidade a convencia que não havia ninguém no mundo que lhe fosse digno. Começaram imediatamente os preparativos para o casamento mais grandioso que já acontecera no palácio. O Rei das Minas de Ouro mandou somas de dinheiro tão vultosas, que o mar inteiro ficou coberto dos navios que o traziam. Mensageiros foram enviados a todas as cortes mais alegres e mais refinadas, em especial à corte de França, em busca de tudo o que houvesse de mais raro e de mais precioso para enfeitar a princesa, embora sua beleza fosse tão perfeita que nada que usasse poderia fazê-la parecer mais bela. Pelo menos era essa a opinião do Rei das Minas de Ouro, e ele nunca ficava feliz se não estivesse com ela. Com relação à princesa, quanto mais conhecia o rei, mais gostava dele; era tão generoso, tão bonito e tão inteligente, que finalmente ela estava quase tão apaixonada por ele quanto ele por ela. Como eram felizes quando caminhavam juntos pelos belos jardins, às vezes ouvindo uma música encantadora! E o rei costumava compor canções para Belíssima. Esta é uma de que ela gostava muito: Na floresta tudo é graça Quando a minha dama passa. As florzinhas logo vão Tremulando até o chão – dela querem ser pisadas – E as mais belas, mais delgadas, Olham-na, se ela caminha Roçando leve a graminha. Ah, Princesa! Os passarinhos Nos imitam em seus ninhos, Se cantamos, de mãos dadas, Nestas terras encantadas.*

* Todos os versos deste livro foram traduzidos e metrificados em português por Rafael Falcón.

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A felicidade deles durava assim o dia inteiro. Todos os rivais do rei estavam vencidos, e se tinham recolhido à sua casa, desesperados. Despediram-se da princesa com tanta tristeza, que ela não conseguia deixar de sentir pena deles. — Ah! senhora – disse-lhe o Rei das Minas de Ouro –, como é possível? Por que desperdiças tua piedade com esses príncipes, que te amam tanto, que todos os seus problemas ficariam bem resolvidos com um único sorriso teu? — Eu deveria estar arrependida – replicou Belíssima – se tu não tivesses percebido quanta pena eu sentia desses príncipes que se afastavam de mim para sempre; porém, para ti, meu senhor, é muito diferente: tens todos os motivos para estar satisfeito comigo, mas eles estão partindo cheios de tristeza. Assim, não deves alimentar rancores contra eles por causa de minha compaixão. O Rei das Minas de Ouro foi conquistado pelo jeito bem-humorado com que a princesa lidava com a interferência dele, e, atirando-se a seus pés, beijava-lhe a mão mil vezes e implorava que lhe perdoasse. Chegou, enfim, o dia feliz. Tudo estava pronto para o casamento de Belíssima. As trombetas soaram, todas as ruas da cidade estavam ornamentadas com bandeiras e cobertas de flores, e multidões corriam para a grande praça diante do palácio. A rainha estava tão feliz, que mal conseguira pregar os olhos e se levantara antes do alvorecer para dar as ordens necessárias e escolher as joias que a princesa deveria usar. Esses adereços eram nada menos que diamantes, até nos sapatos, que estavam cobertos deles, e seu vestido de brocado de prata fora bordado com uma dúzia de raios do sol. Podeis imaginar o alto valor que tinham; mas, ainda assim, nada poderia ter mais brilho do que a beleza da princesa! Sobre a cabeça, usava uma coroa esplêndida, com os lindos cabelos ondulados até quase os pés, e sua figura imponente podia facilmente destacar-se dentre todas as damas que a serviam. O Rei das Minas de Ouro não ficava atrás em nobreza e em esplendor; era fácil ver-lhe a felicidade estampada no rosto, e todos os que se aproximavam dele voltavam carregados de presentes, pois em todo o entorno do grande salão de banquetes tinham sido dispostos mil barris 74


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repletos de ouro, e inúmeros sacos feitos de veludo bordado com pérolas, abarrotados de dinheiro, cada um contendo pelo menos cem mil peças de ouro, distribuídas a todos que tivessem o prazer de estender-lhe a mão, e um número enorme de pessoas apressou-se a fazê-lo, e podeis ter certeza: alguns julgaram que essa ocasião foi de longe o momento mais divertido dos festejos do casamento. A rainha e a princesa estavam bem no momento de começar a caminhada com o rei quando viram, avançando na direção deles a partir do final da longa galeria, dois enormes basiliscos, arrastando uma caixa muito malfeita; atrás deles vinha uma velha de alta estatura, cuja feiura espantava ainda mais do que sua extrema velhice. Portava uma tira de pano de tafetá preto em volta do pescoço, uma capa de veludo vermelho e anquinhas todas em trapos, e apoiava-se pesadamente em uma muleta. Essa velha estranha, sem dizer uma única palavra, claudicou três vezes em volta da galeria, seguida pelos basiliscos, e em seguida estacou no meio do espaço e, brandindo ameaçadoramente a muleta, gritou: — Ho, ho, ho, rainha, ho, princesa! Achais que quebrareis impunemente a promessa que fizestes a meu amigo, o Anão Amarelo? Eu sou a Fada do Deserto; sem o Anão Amarelo e sua laranjeira, meus grandes leões vos teriam comido logo, tenho certeza, e em meu País Encantado não passamos por isso e não aturamos ser insultados dessa forma. Decidi logo o que quereis fazer, pois declaro que tu te casarás com o Anão Amarelo. Se não for assim, que eu faça arder no fogo a minha muleta! — Ah! princesa! – disse a rainha, aos prantos –, o que ouço? O que prometeste? — Ah! minha mãe – respondeu Belíssima, tomada de pesar –, o que tu mesma prometeste? O Rei das Minas de Ouro, indignado por ter tido sua felicidade interrompida por essa velha má, foi até ela e, ameaçando-a com sua espada, bradou: — Sai de meu país imediatamente e para sempre, criatura miserável, para que eu não dê cabo de tua vida, e fique assim livre de tua maldade. 75


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Mal havia proferido estas palavras, a tampa da caixa caiu no chão com um barulho terrível, e, para horror deles, de dentro pulou o Anão Amarelo, montado em um grande gato espanhol. — Isso não passa de arroubo de juventude! – clamou ele, pondo-se de imediato entre a Maga do Deserto e o rei. – Atreve-te a pôr um dedo nessa ilustre maga! Tua briga é somente comigo. Sou eu o teu inimigo e rival. Essa princesa infiel que se teria casado contigo está prometida a mim. Verifica se ela não tem no dedo um anel feito com um fio de meus cabelos. Basta tentar tirá-lo, e logo descobrirás que sou mais poderoso que tu! — Monstrinho miserável! – retrucou o rei –, tu te atreves a intitular-te amante da princesa, e reivindicar tal tesouro? Sabes que és um anão – que és tão feio que ninguém suporta pôr os olhos em ti – e que eu mesmo deveria ter-te matado muito antes se tivesses sido digno de morte tão gloriosa? O Anão Amarelo, tomado de fúria com essas palavras, fincou as esporas em seu gato, que lançou gritos horríveis, e pôs-se a saltar para lá e para cá, aterrorizando todo mundo, exceto o bravo rei, que perseguia o anão de perto, até que este último sacou um facão apavorante com que estava armado, e desafiou o rei a enfrentá-lo em um único combate, e correu para dentro do pátio do palácio com terrível estrépito. O rei, com ânimo acirrado, seguiu-o às pressas, mas, mal tinham tomado seus lugares de frente um para o outro, e mal tivera tempo toda a corte de retirar-se às pressas das galerias para assistir ao que se passava, já subitamente o sol ficou vermelho como sangue, e seguiu-se uma escuridão tal, que mal se podia ver alguma coisa. O trovão caiu com um estrondo, e parecia que os relâmpagos iam incendiar tudo; surgiram os dois basiliscos, um de cada lado do anão perverso, como gigantes, altos como montanhas, e o fogo lhes faiscou da boca e dos ouvidos, até que ficassem como fornalhas flamejantes. Nenhuma dessas coisas conseguia aterrorizar o nobre e jovem rei, e a ousadia de seu porte e de suas ações tranquilizaram a quem o observava, e talvez tenham até acabrunhado o próprio Anão Amarelo; mas mesmo a sua coragem esmoreceu quando viu o que estava sofrendo sua amada princesa. Pois a Maga do Deserto, com uma aparência ainda mais terrível do que antes, montada em um grifo alado, e com longas serpentes enroladas no pescoço, havia lhe desferido ta76


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manho golpe com a lança que carregava, que Belíssima caiu nos braços da rainha, sangrando e sem sentidos. Sua mãe amorosa, sentindo-se tão ferida pelo golpe quanto a própria princesa, proferiu gritos e lamentos tão lancinantes, que o Rei, ao ouvi-los, perdeu inteiramente a coragem e a presença de espírito. Desistindo do combate, disparou em direção à princesa para resgatá-la ou morrer com ela, mas o Anão Amarelo foi ágil demais para ele. Pulando com seu gato espanhol para a galeria, arrebatou Belíssima dos braços da rainha, e, antes que qualquer das damas da corte pudesse detê-lo, saltou para cima do telhado do palácio e desapareceu com sua prenda. O rei, hirto de pânico, contemplava em desespero essa sequência horrenda de acontecimentos, contra a qual não tinha forças para lutar, e, para piorar as circunstâncias, escureceu-se-lhe a vista, tudo ficou em sombras, e ele se sentiu alçado aos ares por uma forte mão. Essa nova desgraça era obra da malvada Maga do Deserto, que acompanhara o Anão Amarelo para ajudá-lo a levar a princesa, e se apaixonara pelo belo jovem Rei das Minas de Ouro assim que o avistara. Julgava que se o levasse para alguma caverna assustadora e o acorrentasse a uma rocha logo o medo da morte o faria esquecer Belíssima e tornar-se seu escravo. Então, assim que chegaram ao lugar, ela lhe devolveu a visão, mas sem libertá-lo de suas correntes, e por causa de seu poder mágico surgiu diante dele como uma fada jovem e bonita, fingindo ter chegado lá bem por acaso. — O que vejo? – exclamou. – Querido príncipe, és tu? Que desgraça te trouxe a este lugar sombrio? O rei, que fora bem ludibriado por sua transformação de aparência, replicou: — Ai de mim! bela fada, a maga que me trouxe aqui privou-me da visão, mas pela voz eu a reconheci como a Maga do Deserto, ainda que não consiga atinar por que motivo ela me trouxe até aqui. —Ah! – bradou a maga disfarçada – se caíste em suas mãos, não escaparás até que te cases com ela. Ela tomou mais de um príncipe dessa forma, e certamente tomará para si qualquer coisa que deseje ter. Enquanto fingia, assim, sentir pena do rei, ele subitamente notou-lhe os pés, que eram como os de um grifo, e percebeu em um átimo que esta 77


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deveria ser a Maga do Deserto, pois os pés eram a única coisa que não podia mudar, não importando toda a beleza que pudesse estampar no rosto. Sem dar a perceber que havia notado algo, ele disse, em tom confidencial: — Não que eu tenha alguma antipatia pela Maga do Deserto, mas na verdade não consigo suportar a maneira como ela protege o Anão Amarelo e me mantém acorrentado aqui como criminoso. É verdade que amo uma princesa encantadora, mas, se a maga me libertasse, minha gratidão me obrigaria a amá-la como única. — É mesmo verdade o que dizes, príncipe? – perguntou a maga, inteiramente ludibriada. — Certamente – respondeu o príncipe. – Como poderia enganar-te? Entende que é muito mais lisonjeiro para a minha vaidade ser amado por uma maga que por uma simples princesa. Mas, mesmo que eu esteja morrendo de amores por ela, vou fazer de conta que a odeio até que seja posto em liberdade. A Maga do Deserto, tomada de total enlevo por essas palavras, decidiu imediatamente transportar o príncipe para um lugar mais aprazível. Assim, forçando-o a entrar em sua carruagem, à qual havia atrelado cisnes em lugar dos morcegos que geralmente a puxavam, partiu voando com ele. Porém imaginai a aflição do príncipe quando, lá da altura vertiginosa em que viajava pelos ares, viu sua amada princesa em um castelo feito de aço polido, cujas paredes refletiam os raios do sol com tanto calor, que ninguém podia aproximar-se dele sem se transformar em cinzas! Belíssima estava sentada em uma pequena touceira à beira de um córrego, apoiando a cabeça sobre a mão e chorando copiosamente, mas, no exato momento em que passaram, ela olhou para cima e viu o rei e a Maga do Deserto. Bem, a Maga era tão inteligente que não parecia bonita só para o rei, senão que até a pobre princesa a julgou a criatura mais encantadora que vira em toda a sua vida. — O quê!? – exclamou. – Será que eu já não estava infeliz o bastante neste castelo solitário para onde me trouxe esse terrível Anão Amarelo? Será que também tenho de ficar sabendo que o Rei das Minas de Ouro 78


O Anão Amarelo

deixou de amar-me assim que me perdeu de vista? Mas quem poderá ser a minha rival, de beleza fatal maior que a minha? No momento em que ela proferia essas palavras, o rei, que estava de fato mais apaixonado por ela que nunca, sentiu-se terrivelmente triste por ser apartado de sua amada princesa de forma tão rápida; mas conhecia muito bem o desmesurado poder que tinha a Maga para ter qualquer esperança de escapar dela se não fosse por meio de enorme paciência e de enorme astúcia. A Maga do Deserto também tinha visto Belíssima, e tentou perceber nos olhos do rei o sentido que essa visão inesperada lhe causara. — Ninguém pode dizer-te o que desejas saber melhor que eu –, afirmou. – Este encontro casual com uma princesa infeliz por quem no passado tive uma queda, antes que tivesse a sorte de conhecer-te, afetou-me um pouco, admito, mas tu representas para mim tão mais que ela, que eu preferiria morrer a ter de deixar-te. — Ah, príncipe – argumentou –, será que posso acreditar que tu realmente me amas tanto assim? — O tempo te dirá, minha senhora – foi a resposta do rei. – Mas, se queres me convencer de que tens alguma consideração por mim, eu te imploro: de forma alguma te recuses a ajudar Belíssima. — Sabes o que me estás pedindo? – queixou-se a Maga do Deserto, franzindo a testa e olhando-o com desconfiança. – Queres que eu aplique minha arte contra o Anão Amarelo, que é meu melhor amigo, para tirar-lhe uma princesa orgulhosa a quem só posso considerar minha rival? O rei suspirou, mas não improvisou nenhuma resposta – o que se poderia dizer a uma pessoa tão lúcida? Por fim, chegaram a um vasto prado, enfeitado de alegria com todos os tipos de flores; um rio de águas profundas o cercava, e as águas de muitos regatos murmuravam baixinho sob as sombras das árvores, em lugar que ficava sempre fresco e renovado. Um pouco distante havia um esplêndido palácio cujas paredes eram de esmeraldas transparentes. Assim que os cisnes que puxavam a carruagem da maga pousaram sob uma galeria, ornada com piso de diamantes e com arcos de rubis, foram recebidos por todos os lados por 79


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milhares de belas criaturas, que vieram ao encontro deles com alegria, cantando estas palavras: Quando Amor n’algum peito quer reinar, Resistir-lhe é inútil; o orgulhoso Acha a dor mais dura de suportar, E Amor é duas vezes vitorioso. A Maga do Deserto encheu-se de júbilo ao ouvi-los louvar seus triunfos; conduziu o rei ao quarto mais esplêndido que se possa imaginar, e deixou-o sozinho por um tempo, o suficiente para que pudesse sentir que não era prisioneiro; mas ele tinha certeza de que ela de fato não se havia afastado muito, mas estava, sim, a espreitá-lo de algum esconderijo. Então, aproximando-se de um grande espelho, dirigiu-se a este com estas palavras: — Fiel conselheiro, deixa-me ver o que posso fazer para tornar-me agradável à encantadora Maga do Deserto; pois já não consigo pensar em mais nada senão agradar-lhe. E prontamente se pôs a agir para enrolar o cabelo, e, vendo em cima de uma mesa um casaco mais imponente que o seu, vestiu-o com cuidado. A maga voltou tão enlevada, que não conseguia esconder a alegria. — Tenho perfeita consciência dos problemas que tens vivido para agradar-me – comentou ela – e devo dizer-te que já conseguiste fazê-lo perfeitamente. Vês que não é difícil consegui-lo se tu realmente te importas comigo. O rei, que tinha suas próprias razões para querer manter a velha maga de bom humor; não poupou belos discursos, e depois de um tempo foi autorizado a caminhar sozinho na praia. A Maga do Deserto tinha usados suas feitiçarias para provocar uma tempestade tão terrível, que o mais ousado dos pilotos não se aventuraria no mar, e assim ela não tinha medo de que seu prisioneiro fosse capaz de evadir-se; e ele encontrou um pouco de alívio para pensar com tristeza sobre sua situação terrível sem ser interrompido por sua cruel sequestradora. 80


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Em seguida, após uma desatinada caminhada para cima e para baixo, ele escreveu estes versos sobre a areia com sua vara: Poderei nestas praias afinal Com doce pranto as mágoas aliviar. Meu amor, que me cura do meu mal, Ai de mim!, já não vejo – só o mar. És tu, ó mar cruel e tempestuoso, Por ventos de alto a baixo sacudido! Meu coração separas de seu gozo, E cá me mantém preso o teu bramido. Meu peito mais se agita do que o teu, Pois o Fado o molesta, torce e enfada. Por que no exílio vivo e sofro eu? Por que minha Princesa me é roubada? Ah, lindas Ninfas, filhas do Oceano, Que o amor verdadeiro conheceis, Vinde, abrandai o irado pai tirano E um amante infeliz libertareis! Enquanto ainda escrevia, ouviu uma voz que lhe atraiu a atenção, apesar do estado de espírito em que se encontrava. Observando que as ondas subiam mais altas do que nunca, olhou em volta, e logo viu uma moça encantadora que flutuava suavemente em direção a ele em cima da crista de uma onda enorme, com os longos cabelos espalhados em torno de si; em uma das mãos segurava um espelho, e na outra um pente, e em vez de pés tinha uma bela cauda como a de peixe, que usava para nadar. O rei emudeceu de espanto diante dessa inesperada visão; mas, assim que ela chegou à distância em que podia ser ouvida, disse-lhe: — Sei como estás triste por ter perdido tua princesa e ser mantido em cativeiro pela Maga do Deserto; se quiseres, vou ajudar-te a escapar 81


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deste lugar fatal; caso contrário, podes ter de penar uma vida desgastante durante trinta anos ou mais. O Rei das Minas de Ouro mal conseguia pensar como responder a essa proposta. Não porque não quisesse muito fugir, mas temia que isso não passasse de um estratagema por meio do qual a Maga do Deserto estivesse tentando ludibriá-lo. Como hesitou, a sereia, que lhe adivinhara os pensamentos, insistiu com ele: — Podes confiar em mim: não estou tentando iludir-te. Estou tão zangada com o Anão Amarelo e com a Maga do Deserto, que não existe possibilidade de que eu tenha vontade de ajudá-los, especialmente desde que passei a ver com frequência sua pobre princesa, cuja beleza e bondade me inspiram tanta piedade por ela; e assevero-te que, se tiveres confiança em mim, ajudar-te-ei a escapar. — Confio em ti inteiramente – exclamou o rei – e farei o que me disseres, mas, se já viste minha princesa, imploro-te que me digas como ela está e o que lhe está acontecendo. — Não devemos perder tempo em conversas – replicou ela. – Vem comigo e vou levar-te ao Castelo de Aço, e deixaremos nas areias desta praia uma figura tão semelhante a ti, que até a própria Maga será ludibriada por ela. Dizendo isso, ela rapidamente recolheu um monte de algas marinhas, e, ao soprá-las três vezes, proferiu as seguintes palavras: — Minhas amigas ervas-marinhas, ordeno que fiqueis aqui estendidas sobre a areia até que a Maga do Deserto chegue para levar-vos embora. E, de imediato, as ervas-marinhas tomaram a forma do rei, que se pôs a olhar para elas com grande espanto, pois estavam até vestidas com um casaco como o seu, mas jaziam ali pálidas e inertes como o próprio rei poderia ter ficado se um dos vagalhões o tivesse atingido e atirado sem sentidos sobre a praia. E em seguida a sereia pegou o rei, e partiram juntos nadando alegremente. — Agora – explicou – tenho tempo para informar-te sobre a princesa. Mesmo depois do golpe que a Maga do Deserto lhe desferiu, o Anão Amarelo a obrigou a montar atrás dele em cima de seu terrível 82


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gato espanhol; no entanto, ela logo desmaiou de dor e de pavor, e não se recuperou até que estivessem dentro das paredes do terrível Castelo de Aço, que pertence ao Anão Amarelo. Aí foi recebida pelas moças mais belas que se podem encontrar e que tinham sido trazidas pelo Anão Amarelo, que se apressou a servi-la e a dedicar-lhe toda a atenção possível. Deitaram-na sobre um sofá coberto com tecido de ouro, bordado com pérolas do tamanho de nozes. — Ah! – interrompeu o Rei das Minas de Ouro – se Belíssima me esquecer, e consentir em casar-se com ele, meu coração ficará partido. — Não precisas temer isso – esclareceu a sereia –, a princesa não pensa em ninguém além de ti, e o terrível anão não consegue convencê-la a olhar para ele. — Por favor, continua tua história – pediu-lhe o rei. — O que mais há para ser dito? – ponderou a sereia. – Belíssima estava sentado no bosque quando passaste, e viu-te com a Maga do Deserto, que se havia tão habilmente disfarçado, que a princesa a considerou mais bonita do que ela própria; podes imaginar seu desespero, pois julgou que te tinhas apaixonado por ela. — Ela acredita que eu a amo! – exclamou o rei. – Que erro funesto! O que deve ser feito para mostrar-lhe a verdade? — Tu o sabes – respondeu a sereia, abrindo-lhe um sorriso gentil. – Quando as pessoas estão tão apaixonadas uma pela outra, como é vossa situação, não precisam de conselhos de ninguém. Enquanto a sereia falava, chegaram ao Castelo de Aço, e o flanco contíguo ao mar era a única parte da construção que o Anão Amarelo tinha deixado desprotegida das tenebrosas muralhas abrasadoras. — Sei muito bem – explicou a sereia – que a Princesa está sentada ao lado do riacho, exatamente onde a viste quando passaste, mas, como terás muitos inimigos por enfrentar antes que possas chegar até ela, toma esta espada; armado com ela poderás ousar enfrentar qualquer perigo, e superarás as maiores dificuldades, basta apenas que cuides de uma coisa – que nunca deixes que a espada caia de tua mão. Adeus; agora vou esperar-te do lado daquela pedra, e, se precisares de minha ajuda para levar tua 83


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amada princesa, não te desapontarei, pois a rainha, sua mãe, é minha melhor amiga, e foi por causa dela que fui salvar-te. Dizendo-o, deu ao rei uma espada feita de um único diamante, que era mais brilhante que o sol. Ele não conseguia encontrar palavras para expressar sua gratidão, mas implorou-lhe que acreditasse que tinha consciência da importância do presente, e nunca esqueceria sua ajuda e sua generosidade. Agora temos de voltar à Maga do Deserto. Quando descobriu que o rei não retornara, apressou-se a procurá-lo, e chegou à praia com uma centena de damas em seu séquito, carregadas de esplêndidos presentes para ele. Algumas traziam cestas repletas de diamantes; outras, taças de ouro fabricadas com esmerada arte e com âmbar, coral, pérolas; e outras, ainda, equilibravam sobre a cabeça um pacote dos produtos mais valiosos e mais belos, enquanto as restantes carregavam frutas e flores, e até pássaros. Porém, qual não foi o horror da Maga, que acompanhava esta alegre comitiva, quando viu, esticada sobre a areia, a imagem do rei que a sereia havia feito com ervas-marinhas! Tomada de espanto e de tristeza, soltou um grito terrível, e atirou-se ao lado do falso rei, chorando e uivando, e apelando a suas onze irmãs, que também eram magas, e que acorreram em seu socorro. Mas todas ficaram embevecidas com a figura do rei, pois eram inteligentes, mas a sereia era ainda mais inteligente que elas, e tudo o que puderam fazer foi ajudar a Maga do Deserto a erguer um monumento maravilhoso sobre o que achavam que fosse o túmulo do Rei das Minas de Ouro. No entanto, enquanto coletavam jaspe e pórfiro, ágata e mármore, ouro e bronze, estátuas e apetrechos para imortalizar a memória do rei, ele agradecia à boa sereia e lhe pedia ainda que o ajudasse, ao que ela graciosamente aquiesceu e desapareceu; e em seguida ele partiu para o Castelo de Aço. Caminhava com presteza, olhando ansiosamente ao redor, e ansiava uma vez mais ver sua querida Belíssima, mas não tinha ido muito longe quando foi cercado por quatro esfinges terríveis que o teriam logo despedaçado com garras afiadas se não fosse pela espada de diamante da sereia. Pois, tão logo ele a fez cintilar diante de seus olhos, tombaram-lhe aos pés, completamente indefesas, e as matou com um único golpe. 84


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Porém, mal tinha se virado para continuar sua busca, encontrou seis dragões cobertos de escamas mais duras que ferro. A despeito de ser um encontro assustador, a coragem do rei foi inabalável, e com a ajuda de sua maravilhosa espada os fez em pedaços um por um. Agora, esperava que as dificuldades tivessem terminado, mas na próxima curva foi confrontado por uma charada que não sabia resolver. Vinte e quatro ninfas belas e graciosas avançaram em direção a ele, segurando guirlandas de flores, com as quais barravam o caminho. — Aonde estás indo, príncipe? – perguntaram. – É nosso dever proteger este lugar, e, se te deixarmos passar, grandes infortúnios te advirão a ti e a nós. Imploramos que não insistas em continuar. Queres matar vinte e quatro moças que nunca te desagradaram de nenhuma forma? O rei não sabia o que fazer nem o que dizer. O episódio contrariava todas as suas ideias quanto a um cavaleiro fazer qualquer coisa que uma dama lhe pedisse que não fizesse; mas, como hesitou, uma voz em seu ouvido soprou: — Ataca! ataca! e não tenhas complacência, ou tua princesa estará perdida para sempre! Assim, sem responder às ninfas, avançou imediatamente, quebrando as guirlandas, e espalhando-as em todas as direções; e prosseguiu sem mais obstáculos até a pequena touceira onde tinha visto Belíssima. Ela estava sentada junto ao córrego, com aparência pálida e cansada quando ele chegou, e ter-se-ia prostrado a seus pés, mas ela desviou-se dele com tanta indignação como se este fosse o próprio Anão Amarelo. — Ah! princesa – exclamou ele –, não tenhas raiva de mim. Deixa-me explicar tudo. Não sou infiel nem tenho culpa pelo que aconteceu. Sou um pobre coitado que te desagradou sem poder evitá-lo. — Ah! – bradou Belíssima – eu te vi singrando os ares com o ser mais encantador imaginável! Isto aconteceu contra tua vontade? — Na verdade, sim, princesa – retorquiu. – A perversa Maga do Deserto, não contente em me acorrentar a uma rocha, levou-me em sua carruagem para o outro lado da terra, onde estaria preso até agora se não fosse a ajuda inesperada de uma bendita sereia, que me trouxe aqui para 85


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salvar-te, minha princesa, das mãos indignas que te mantêm cativa. Não recuses a ajuda de teu mais fiel apaixonado. Ao dizer estas palavras, jogou-se aos pés da princesa e a segurou pelo manto. Mas, ai de mim! Ao fazer esse gesto, ele deixou cair a espada mágica, e o Anão Amarelo, que estava agachado atrás de uma alface, assim que o viu, pulou para fora e a agarrou, conhecendo bem seu maravilhoso poder. A princesa emitiu um grito de terror ao ver o anão, mas essa reação só irritou o pequeno monstro; murmurando algumas palavras mágicas, convocou dois gigantes, que prenderam o rei com enormes grilhões de ferro. — Bem – disse o anão –, sou senhor do destino de meu rival, mas vou conceder-lhe a vida e a permissão para partir ileso se tu, princesa, consentires em casar-te comigo. — Prefiro morrer mil vezes – vociferou o infeliz rei. — Ai de mim! – clamou a princesa. – Tens de morrer? Haveria algo mais terrível que isso? — Tu te casares com esse patife seria muito mais terrível – respondeu o rei. — Pelo menos – continuou ela –, morramos juntos. — Deixa-me ter a satisfação de morrer por ti, minha princesa – declarou ele. — Oh! não, não! – gritou ela, virando-se para o anão – Em vez disso, farei o que quiseres. — Princesa cruel! – bradou o rei – Farias minha vida horrível para mim casando-te com outro diante de meus olhos? — Não é assim – retrucou o Anão Amarelo; – és um rival a quem temo muito; não verás nosso casamento. Proferindo estas palavras, apesar das lágrimas e gritos de Belíssima, apunhalou o coração do rei com a espada de diamante. A pobre princesa, vendo seu apaixonado morto a seus pés, já não poderia viver sem ele; desabou ao seu lado e faleceu de coração partido. Foi este o fim desses infelizes apaixonados, a quem nem sequer a sereia conseguiu ajudar, porque todo o poder mágico havia sido perdido com a espada de diamante. 86


O Anão Amarelo

Quanto ao perverso anão, preferiu ver a princesa morta a vê-la casada com o Rei das Minas de Ouro; e a Maga do Deserto, quando ouviu as aventuras do rei, demoliu o enorme monumento que havia erguido, e ficou tão zangada por causa do engodo de que fora vítima, que passou a odiá-lo com a mesma intensidade com que o amara antes. A bondosa sereia, condoída pelo triste destino dos amantes, transformou-os em duas altas palmeiras, sempre lado a lado, sussurrando juntas sobre a fidelidade de seu amor e acariciando uma à outra com seus galhos entrelaçados.*

* Madame d’Aulnoy.

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Chapeuzinho Vermelho

á muitos e muitos anos vivia em um certo vilarejo uma camponesinha, a mais bela criatura já vista. Sua mãe era-lhe extremamente afeiçoada, e a avó a adorava ainda mais. Esta boa mulher fizera para a menina uma capinha vermelha com capuz que lhe caía tão bem, que todos a chamavam Chapeuzinho Vermelho. Um dia sua mãe, após fazer uns manjares, disse-lhe: — Vai, minha querida, vê como está tua avozinha, pois ouvi dizer que estava muito doente. Dá-lhe um manjar e este potinho de manteiga. Chapeuzinho partiu imediatamente para visitar a avó, que vivia em outro vilarejo. Ao cruzar a floresta, encontrou um lobo velhote que tinha a grande ideia de devorá-la, mas que não ousava fazê-lo por causa dos catadores de lenha que viviam pela floresta. Perguntou-lhe para onde ia. A pobrezinha, que não sabia ser perigoso aproximar-se de lobo e ouvir conversa sua, disse: — Vou ver minha vovozinha e levar-lhe um manjar e um pote de manteiga feitos pela mamãe.


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Chapeuzinho Vermelho

— Ela mora muito longe? – perguntou o lobo. — Ah, pobre de mim! – respondeu Chapeuzinho Vermelho – fica depois daquele moinho que vês ali adiante, na primeira casa do vilarejo. — Bem – disse o lobo –, irei contigo e a visitarei também. Seguirei por este caminho e tu segue por aquele, e assim veremos quem chegará primeiro. O lobo começou a correr o mais rápido que podia, tomando o caminho mais curto, e a menininha foi pelo mais distante, distraindo-se a colher nozes, a correr atrás de borboletas e a colher buquês de todas as flores que encontrava. O lobo não demorou a chegar à casa da velha senhora. Bateu à porta: — Toc, toc. — Quem está aí? — Tua neta, Chapeuzinho Vermelho – respondeu o lobo, imitando a voz da menina. – Trago-te um manjar e um potinho de manteiga feitos pela mamãezinha. A boa avó, acamada por estar um tanto doente, gritou: — Puxa a tramela da porta e o trinco subirá. O lobo puxou a tramela e a porta se abriu, e então imediatamente se lançou na direção da boa senhora e a devorou em um instante, pois fazia mais de três dias não via um naco de comida sequer. Depois, fechou a porta e foi para a cama da avó, para esperar Chapeuzinho Vermelho, que chegou algum tempo depois e bateu à porta: — Toc, toc. — Quem está aí? Chapeuzinho, no início, ao ouvir o vozeirão do lobo, ficou com medo, mas, por achar que sua avó pegara um resfriado e ficara rouca, respondeu: — É tua netinha, Chapeuzinho Vermelho; trago-te um manjar e um potinho de manteiga feitos pela mamãezinha. O lobo gritou-lhe, suavizando a voz tanto quanto podia: — Puxa a tramela da porta e o trinco subirá. Chapeuzinho puxou a tramela e a porta se abriu. 91



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