O Ser e a Inteligência - S. Alberto Magno - TRECHO GRÁTIS

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O Ser e a InteligĂŞncia



Santo Alberto Magno

O Ser e a Inteligência Edição bilíngüe

Tradução:

Tiago Gadotti


O Ser e a Inteligência, Santo Alberto Magno © Editora Concreta, 2017 Título original: De intellectu et intelligibili · De quiditate et esse Texto latino utilizado nesta obra: Albertus Magnus, De intellectu et intelligibili, ed. A. Borgnet, Opera omnia IX, Paris, 1890.

Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Sidney Silveira Tradução: Tiago Gadotti Revisão: Deadline Revisões Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz

Ficha Catalográfica Alberto Magno, Santo, 1200-1280 A3344o O Ser e a Inteligência [ed. eletrônica] / tradução de Tiago Gadotti, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017. 192p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-29-9 1. Teologia. 2. Filosofia. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catolicismo. 7. Espiritualidade. I. Título. CDD-230.2

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.

www.editoraconcreta.com.br


C ol eç ão Esc ol á s t ic a

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oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus. O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes. Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.


Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto. Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados. No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos. Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica. Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento. Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro. Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica


Sumário

Apresentação - Santo Alberto, enciclopédia medieval das ciências   11 1. Um santo perante as proibições eclesiásticas 2. Liberdade de espírito e visão arquitetônica 3. O inteligível e o ser 4. Importância da presente publicação

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O SER E A INTELIGÊNCIA O Intelecto e o Inteligível - Livro I Tratado I - Da natureza do intelecto Capítulo 1 - Qual a intenção da obra e qual a sua ordem  27 Capítulo 2 - Aqui se demonstrará que a cognição dos animais depende de alguma outra coisa que é cognitiva  29 Capítulo 3 - De que modo a [potência] vegetativa e a intelectiva imperfeita emanam do intelecto primeiro e perfeito  35 Capítulo 4 - A natureza cognitiva é causada pela inteligência, como diz Platão  39 Capítulo 5 - Donde provêm a diversidade genérica das almas e as [potências] vegetativa, sensitiva e intelectiva  47


Capítulo 6 - Se a intelectualidade da alma é uma matéria ou uma emanação da causa primeira  53 Capítulo 7 - Se a natureza intelectual é universal ou particular, segundo o ato (não há dúvida de que seja universal segundo a aptidão, pois é uma forma)  59 Capítulo 8 - No qual se colige sumariamente a natureza intelectual da alma  63

Tratado II - O inteligível em si Capítulo 1 - Nada é inteligido senão o universal  69 Capítulo 2 - Se o universal está somente no intelecto, ou também na coisa externa  73 Capítulo 3 - Solução das dúvidas que surgem do que ficou estabelecido  79 Capítulo 4 - O erro da opinião que diz que o universal existe sempre e em todo lugar  83 Capítulo 5 - Refutação do erro de Platão acerca do que ficou estabelecido  85

Tratado III - Comparação entre o intelecto e o inteligível Capítulo 1 - De que modo o inteligível está no intelecto  91 Capítulo 2 - Da diversidade dos inteligíveis quanto ao gênero  93 Capítulo 3 - Da diversidade dos intelectos, em si mesmos, segundo os inteligíveis e segundo a faculdade recebida das inteligências  97

O Intelecto e o Inteligível - Livro II Tratado Único - A perfeição natural do intelecto Capítulo 1 - De onde a alma intelectual recebe a forma  105 Capítulo 2 - Por que as formas fluem da inteligência, enquanto forma do mundo (pois por este motivo entram na alma)  109 Capítulo 3 - De que modo o intelecto agente está na alma como uma luz e como uma arte, sendo o agente das perfeições  113 Capítulo 4 - De que modo o intelecto possível é uma potência, uma tábua rasa, e o lugar e a forma dos inteligíveis  121 Capítulo 5 - O intelecto formal, e como o intelecto possível é aperfeiçoado por ele  127


Capítulo 6 - O intelecto efetivo, e como o possível se torna efetivo  131 Capítulo 7 - A intelecção [intellectus] dos princípios e dos instrumentos mediante os quais o intelecto possível se torna atual  137 Capítulo 8 - O intelecto adquirido, como a alma é aperfeiçoada por ele, e como descobre a si mesmo pelo estudo  141 Capítulo 9 - O intelecto assimilativo, e como a alma se torna perfeita por ele  145 Capítulo 10 - A santidade do intelecto e a criação quádrupla  149 Capítulo 11 - O modo como a alma humana pode unir-se à luz das inteligências [separadas] mediante o intelecto  153 Capítulo 12 - Da redução da alma ao ser divino, segundo seu último estado de perfeição  157

Questão sobre a qüididade e o ser  161 Bibliografia citada  189 S. Alberti Magni Opera Omnia  191



Apresentação

Santo Alberto, enciclopédia medieval das ciências SIDNEY SILVEIRA

1. Um santo perante as proibições eclesiásticas

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om o projeto O Ser e a Inteligência, a Coleção Escolástica traz para o leitor brasileiro duas obras inéditas de Santo Alberto Magno (1199-1280) em língua portuguesa: De intellectu et intelligibili e De quiditate et esse.i Trata-se de opúsculos em que o Doutor Universal aborda dialeticamente dois pontos cardeais da filosofia – gnosiologia e metafísica –, no estilo inconfundível em que estão presentes atributos como profundidade conceptual, capacidade de síntese, limpidez expositiva, primor lógico, rigor teorético e argúcia hermenêutica. Nestes tratados do grande mestre alemão medieval, ser e conhecer estão integrados num sistema harmonioso, revelador daquilo que o medievalista Étienne Gilson chamou, com propriedade, de ideal pantagruélico do saber.ii Antes de qualquer alusão ao conteúdo destes dois escritos, cumpre-nos dizer algumas palavras sobre o estudioso de quem o dominicano catalão Raii ii

O intelecto e o inteligível e A qüididade e o ser. Étienne Gilson, A Filosofia na Idade Média, Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 626.


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mundo Martí (1220-1284) escrevera certa vez: In filosofia magnus, in theologia maximus. iii Comecemos, pois, por consignar que a amplitude enciclopédica dos conhecimentos de Santo Alberto coloca-o num patamar muito acima do observado nos trabalhos da grande maioria de seus contemporâneos: filósofo, matemático, físico, metafísico, rétor, exegeta bíblico, comentador de Aristóteles, fisiólogo, pregador, polemista, astrônomo, teólogo, bispo, professor universitário e, além do mais, santo. Ao mencionarmos algumas das atividades a que se entregou com afinco este homem notável, vemos o quão justa foi a homenagem que Dante, maior gênio poético do Trecento, lhe prestou: Questi, che m’è a destra piú vicino fratre e maestro fummi ed esse Alberto è di Cologna, ed io Thomas d’Aquino. iv

O traço característico da personalidade filosófica albertina é a universalidade, associada à erudição fora do comum e ao trabalho minucioso de coleta de dados científicos de épocas as mais distintas.v Bernardo Gui (1262-1331), coetâneo do nosso autor, diz o seguinte na obra intitulada Compilação histórica sobre a Ordem Dominicana: “Alberto Teutônico foi máximo em ciência física [da natureza] e também divina. Deixou incontáveis volumes escritos, tanto relativamente à Teologia Sagrada como a outras ciências, com profundidade de conceito, altitude de significado e de sentenças”.vi Estamos, pois, diante de um pensador douto e profundo, um espírito atento às necessidades do seu tempo, escritor que, entre vários outros iii Menos de dois séculos depois que Raimundo Martí escreveu estas famosas palavras, surgem textos paleo-renascentistas com referência a Alberto Magno como magnus in magia, maior in philosophia, maximus in teologia. Em resumo, a história póstuma do grande santo de Colônia teve percalços porque vários escritos sobre alquimia lhe foram atribuídos indevidamente, o que, a partir do século XV, lhe rendeu fama – em meios esotéricos extravagantes – como mestre das artes ocultas. Observe-se que estávamos numa época em que a química ainda se confundia com a alquimia, porém nos importa aqui salientar o seguinte: não se trata de obras de Santo Alberto, mas de apócrifos. Contemporaneamente, este corpus hermético é atribuído ao Pseudo-Alberto Magno. Leia-se, a propósito deste instigante tema, o artigo de Antoine Calvet intitulado L’alchimie du Pseudo-Albert le Grand, publicado pela Revue Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge (Tomo 79), coleção francesa impressa pela prestigiosa editora Vrin. iv “Este que a minha destra é já contínuo/ mestre e irmão me foi, e ele é Alberto/ de Colônia, e eu sou Tomás de Aquino”. Dante Alighieri, Divina Comédia (Paraíso, X, 97-99), tradução de Vasco Graça Moura. v Cf. Guillermo Fraile, O. P., História de la Filosofía, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 1960, p. 814. vi Apud Battista Mondin, Storia della Metafisica, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 1998, p. 450.


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méritos, resgatou tesouros do pensamento greco-árabe e, sobretudo, defendeu os princípios da metafísica aristotélicavii como ninguém até ele.viii Para aquilatar a coragem do resgate aristotélico levado a efeito por S. Alberto Magno, é preciso ter em vista que a Universidade de Paris, ainda em seus primeiros passos institucionais, agitara-se a tal ponto com a recepção do corpus filosófico do Estagirita que, em 1210, um Sínodo foi especialmente convocado para condenar erros panteístas, ocasião em que Aristóteles foi interditado nos seguintes termos: “E não se leiam [ou seja, não haja lectio, não se expliquem aos alunos] os livros de Aristóteles de filosofia natural, nem seus comentários [árabes, de sabor neoplatônico], quer em público, nas aulas, quer em segredo, privadamente, sob pena de incorrer em excomunhão [quem o fizer]”. ix O interdito, contudo, não parou por aí: esta proibição foi repetida em 1215 nos Estatutos de Robert de Courçon (1160?-1218), x cardeal francês que então ocupava o importante cargo de Chanceler da Universidade de Paris: “E não se leiam os livros de Aristóteles de Metafísica e de Filosofia Natural, nem as summae do mesmo, xi nem tampouco as doutrinas do mestre David de Dinant, nem do herege Amaury, nem as do hispano Maurício”. xii O resultado não poderia ser outro: as ressalvas das autoridades eclesiásticas fizeram aumentar sobremaneira a curiosidade em torno das obras de Aristóteles que adentravam os ambientes universitários latinos. Quando S. Alberto inicia a empreitada civilizacional que tomou a peito levar adiante, ainda vigiam em Paris as censuras canônicas – com particular ênfase para os professores da Faculdade de Artes – no tocante à explicação dos livros de ciências naturais e da Metafísica de Aristóteles, o que constituía grave empecilho para o seu projeto. A criativa solução do mestre alemão para contornar o problema foi adotar um método em que, em vez de realizar comentários cingidos aos textos do Estagirita, traçava um plano geral da enciclopédia aristotélica com interpretações pessoais. Assim, logrou divulgar o filósofo grego sem ferir as eriçadas susceptibilidades dos homens investidos vii

Sob influência sobretudo da interpretação aviceniana, diga-se. O mestre de Colônia, nisto como em outras coisas, seria superado nas décadas seguintes por seu maior discípulo: S. Tomás de Aquino. ix Josep-Ignasi Saranyana, La Filosofía Medieval – Desde sus orígenes patrísticos hasta la Escolástica Barroca, III, § 68, Prohibición de Aristóteles en la Universidad de Paris, Ediciones Universidad de Navarra (EUNSA), Pamplona, 1999, p. 234. x Op. cit., p. 234 xi Referência às paráfrases de Avicena que Santo Alberto Magno tinha em altíssima conta. xii Alguns estudiosos crêem que o mestre Maurício era Averróis, o mouro hispano. viii

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pela Igreja de autoridade perante a classe acadêmica, além de mostrar que não era um espírito servil. Como frisa Mandonnet, Santo Alberto foi muitíssimo além dos simples comentários a Aristóteles, xiii chegando a uma síntese que leva a sua inegável assinatura. A proibição quanto aos textos aristotélicos prosseguia à margem do estudo de sua obra. Em 1231, com a bula que ficou conhecida como Parens scientiarum parisius, xiv o Papa Gregório IX (1145-1241) retoma a interdição a Aristóteles nos mesmos termos dos documentos anteriores, não obstante a grita de estudantes e professores ávidos por haurir a sabedoria daquele universo filosófico. xv O texto de Gregório IX abria, porém, uma brecha: “Não se empreguem em Paris os livros de Aristóteles antes de serem examinados e expurgados de qualquer suspeita de erro”. Pouco depois da publicação da referida bula, Gregório IX designa uma comissão para que se leve a cabo o expurgo da obra aristotélica, composta por Guilherme de Auxerre (1150-1231), Simão de Alteis (1180-1235) e Étienne de Provins (?-1251), xvi a qual não chegou a realizar o seu trabalho devido à morte repentina de Guilherme de Auxerre, em novembro de 1231. xvii O interdito a Aristóteles continuou por muitos anos, graças à atitude contrária ao aristotelismo da parte de Guilherme de Auvergne (?-1249), bispo de Paris desde 1228 até o ano de sua morte. A desconfiança com relação aos textos aristotélicos perdurou nos ambientes católicos até meados do século XIV, quando começou a diluir-se.

2. Liberdade de espírito e visão arquitetônica A mesma independência que Santo Alberto demonstrara com relação à obra de Aristóteles vê-se também no que diz respeito a autores árabes e juxiii

Pierre Mandonnet, Siger de Brabant et le averroïsme latin au XIII siècle. Institut Supérieure de Philosophie de l’Université. Louvain, 1911, pp. 34-39. xiv Chartularium Universitatis Parisiensis, Éditions H. Denifle et Chatelain, Paris, Delalain, 1889, Tome 1. xv Para quem pretenda ter um primeiro contato com o tema das interdições do Papa Gregório IX aos textos aristotélicos, vale a leitura do breve artigo intitulado “Gregoire IX et la philosophie d’Aristore”, de Jean-Barthélémy Hauréau, publicado na revista Comptes rendus des séances de l’Académie des Inscriptions et Belles-Letres, 16ª anné, 1872, pp. 528-536. O texto pode ser lido em: <http://www.persee.fr/doc/crai_0065-0536_1872_num_16_1_67985>. xvi Mestre de Artes da Universidade de Paris a quem Michel Scot dedicou a sua tradução do livro De coelo et mundo, de Averróis. xvii Josep-Ignasi Saranyana, Op. cit., p. 234


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deus, assim como a escritores da Antiguidade, como os da escola estóica, por exemplo. xviii Em suma, a verdade é mais importante do que quem a diz, e, portanto, venha de onde vier, deve ser acolhida. xix Esta é a razão por que S. Alberto não deixou de acolher Platão, filósofo de que provavelmente só conheceu o Timeu, xx assim outros autores gregos naquilo que lhe parecesse bom. Diz Gilson que a liberdade de espírito para com a letra dos autores que expunha parece ter sido uma das causas da profunda impressão produzida pela obra de Santo Alberto sobre os seus contemporâneos. Seja como for, o programa albertino era eminentemente aristotélico: “Seguirei a ordem e o pensamento de Aristóteles, e direi tudo o que me parecer necessário para explicá-lo e prová-lo, mas de tal modo que nunca seja mencionado o texto. Além disso, farei digressões a fim de submeter as dúvidas que poderão oferecer-se ao pensamento e preencher certas lacunas que obscureceram, para muitos espíritos, a obra do filósofo. (...) Além disso, acrescentarei livros inteiros que nos faltam ou foram omitidos, seja porque o próprio Aristóteles não os escreveu, seja porque os escreveu sem que tenham chegado até nós”. xxi

Além de Aristóteles, entre os autores não católicos estudados por Santo Alberto avulta Avicena (980-1037), cujas interpretações ao texto aristotélico são consideradas relevantíssimas pelo santo de Colônia. Na introdução do comentário à Metafísica de Aristóteles escrito por Alberto, por exemplo, as convergências chegam a compor um paralelo simétrico com a Metafísica do filósofo árabe, chegada ao mundo latino sob nome de Liber de philosophia prima sive scientia divina. xxii Mas ninguém se engane que, por conta do que vem sendo dito nesta Apresentação, Santo Alberto tivesse em mente realizar um sincretismo entre autores e doutrinas díspares – como o próprio Avicena, Averróis (1126-1198), S. Agostinho (354-430), Boécio (480-525), Moisés Maimônides (1137-1204) e muitos outros. xxiii O suposto ecletismo albertino é impugnado por Battista xviii As doutrinas estóicas – de claro sabor platônico – citadas habitualmente por Alberto são consideradas summa philosophia. Cf. Santo Alberto Magno, Metaph., I, 1, trat. 4, c. 2. xix “Accipiemus igitur ab antiquis quaecumque bene dicta sunt ab ipsis”. Santo Alberto Magno, De causis et proc. univer., II, trat. 1, c. 1. xx Cf. Guillermo Fraile, O. P. Op. cit. p. 818. xxi Apud Étienne Gilson, Op. cit., p. 626. A propósito deste programa que foi cumprido à risca, Gilson acerta ao dizer que os discípulos e contemporâneos de S. Alberto o consideram menos um comentador do que um filósofo original. xxii Cf. David Torrijos-Castrillejo, Introducción a la Metafísica. Paráfrasis al Primer Libro de la Metafísica de Aristóteles, Ediciones Universidad San Dámaso, 2013, p. 81. xxiii Não obstante haja – em algumas aporias ante as quais Alberto não avançou de maneira decisiva –

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Mondin, que rebate as críticas de quem enxerga um caráter fragmentário e disforme nos escritos do grande enciclopedista latino. xxiv Essa liberdade de espírito a que vimos fazendo referência foi a base para a magnífica classificação das ciências feita por S. Alberto Magno, que sugere a plasticidade de uma inteligência para a qual o mais importante era compor quadros sinópticos da verdade, característica esta que o grande discípulo do autor alemão, Santo Tomás de Aquino (1225-1274), levará às últimas conseqüências – sobretudo na Suma Teológica. Seja como for, o fato é que as perquirições deste estudioso de coração livre levaram-no a estabelecer, de maneira como nenhum outro até então, uma hierarquia entre as ciências segundo a qual existem graus de subordinação entre elas. Neste sentido, S. Alberto tem das matemáticas – as quais abstraem da matéria sensível a quantidade inteligível – uma noção realista, ou seja, não as supervaloriza porque tem consciência do plano intermédio que ocupam entre a física, ciência do ente móvel, e a metafísica, ciência do ente enquanto ente. xxv As três divisões principais do saber são, pois, as seguintes segundo o Doutor Universal: • Physica • Mathematica – Quadrivium: Arithmetica, Geometria, Astronomia et Musica • Metaphysica – Philosophia Prima • Theologia Divina Advirta-se que outros filósofos medievais, do tempo de Santo Alberto ou de séculos anteriores, propugnavam uma classificação semelhante das ciências. Ocorre que o nosso autor afina esta visão e lhe dá um rigor extraordinário. Exemplifiquemos isto com o panorama estabelecido pelo mestre de Colônia para as ciências naturais: • Secundum se: De auditu physico • Contractum ad materiam: • Simplex et subiectum: elementos sincréticos, como por exemplo entre a doutrina agostiniana da iluminação e a aristotélica da abstração. xxiv Cf. Battista Mondin, Op. cit., pp. 453-455. xxv Cf. Santo Alberto Magno, Metaph., I, 1, trat. 4, c. 1.


O Ser e a Inteligência · Apresentação

1. Motui formali: De gen. et corrup. 2. Motui locali: a. Secundum se: De caelo et mundo b. Secundum ordinem ad mobile secundum formam:De natura locorum / De causis propiet. • Mixtum 1. In via mixtionis: Meteora 2. In esse constitutum: * In communi De anima secundum se: De anima De quinque operibus eius: - Per substantiam: De morte et vita - Per potentias: * Vegetativam: De nutrimento * Sentitivam: De sono et vigilia, De sensu et sensatu, De mem. et. reminis., De motibus animal., De spirit. et. respir. * Intelectivam: De intelectu et int. xxvi * In specie Plantae : De veget. et plantis Animalis: De animalibus xxvii Como abóbada de um sistema complexo, a sabedoria por excelência é a metafísica, considerada por Santo Alberto uma ciência divina porque tem como sujeito o ser em si mesmo, à parte de quaisquer determinações ou modulações – ser que, por criação, flui de Deus. xxviii

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Este é um dos opúsculos que compõem o presente projeto editorial. Cf. Guillermo Fraile, O. P., Op. cit. pp. 822-3. xxviii Certamente, Santo Tomás tem em vista esta concepção do seu mestre quando afirma que o ser é a novidade da criação. “A criação não é outra coisa senão uma relação [da criatura] a Deus com novidade no ser” (creatio nihil est aliud realiter quam relatio quaedam ad Deum cum novitate essendi). Santo Tomás de Aquino, De Potentia Dei, q. 3, art. 3, resp. xxvii

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3. O inteligível e o ser Os dois tratados que a editora Concreta apresenta a partir deste volume trazem a base da filosofia de Santo Alberto Magno nos quesitos “teoria do conhecimento” e “metafísica”. No caso específico da gnosiologia, o opúsculo O Intelecto e o Inteligível pode considerar-se como um decisivo passo em busca de uma resolução eficaz para o problema do conhecimento, cujo status quaestionis no primeiro quartel do século XIII era uma enorme confusão, na qual a atividade propriamente cognoscitiva se via envolvida em teses que chegavam a propor nada menos que oito tipos diferentes de intelecto. xxix Para colocar ordem nisto, Alberto já havia assinalado na Summa de homine que os intelectos agente e possível encontram-se ambos na alma, frisando que o intelecto agente não é um habitus nem uma inteligência separada. xxx Porém há mais: o intelecto agente assimilativo é aquele por cujo intermédio o homem se eleva, mediante analogias, ao intelecto divino, ao qual se assemelha na medida em que a sua potência ativa esteja menos sujeita aos escolhos da matéria. xxxi Ao definir graus de participação dos intelectos na realidade espiritual divina, Santo Alberto mostra-se um fiel discípulo do neoplatônico Pseudo-Dionísio Areopagita, outro autor por ele comentado em diferentes obras. Em síntese, a alma humana sobe na escala dos inteligíveis até chegar à contemplação de Deus, bem ao modo dos melhores místicos. Neste horizonte, o mestre de Colônia ensina uma doutrina que será muito cara a S. Tomás de Aquino: a felicidade é uma atividade própria do intelecto, pelo qual é possível à criatura inteligente ver o esplendor da glória que irradia d’Aquele que é a própria vida eterna. xxxii De Deus derivam todas as formas, sensíveis e inteligíveis, embora no caso das primeiras haja certo obscurecimento devido à potência da matéria. Diz a este respeito o filósofo alemão que os intelectos mais arrojados no plano da matéria afastam-se da região luzente e imaterial do inteligível: “Quanto mais [uma natureza] penetra nas regiões da dessemelhança, tanto mais é obscurecida, até o ponto em que perde a natureza intelectual, e retém apenas o conhecimento das coisas sensíveis”. xxxiii xxix

Cf. Battista Mondin, Op. cit., p. 469. Cf. Santo Alberto Magno, Summa de homine, I, 1, 1. xxxi Cf. O Intelecto e o Inteligível, I, 8, n. 54, p. X desta edição. xxxii Cf. Santo Alberto Magno, In IV Sent., d. 49, a. 5. xxxiii Cf. O Intelecto e o Inteligível, I, 5, n. 31, p. X. xxx


O Ser e a Inteligência · Apresentação

Na inteligência divina se encontram todas as idéias exemplares das coisas – são os universais ante rem. xxxiv Tais formas universais são necessárias como matéria de que se vale o intelecto agente para fazer o inteligível transitar da potência ao ato. xxxv É justamente neste ponto que a teoria da iluminação, de cunho agostiniano, encontra-se com a da abstração, de matriz aristotélica, na exata medida em que a luz natural do intelecto agente não basta, de acordo com Santo Alberto, para o ato cognoscitivo ser perfeito; é necessária outra luz, superior, que não é outra senão a do próprio Deus. xxxvi A iluminação divina difunde-se em todas as direções de maneira hierárquica e escalonada: xxxvii de Deus passa às hierarquias angélicas e destas, através de uma série descendente de inteligências, até chegar ao débil entendimento humano, que precisa ser iluminado por luzes superiores. xxxviii Como o leitor poderá observar, a teoria do conhecimento de Santo Alberto apresenta clara influência do Pseudo-Dionísio, de Santo Agostinho e de Avicena. No tocante ao livro Sobre a quididade e o ser – outra obra constante deste projeto da Coleção Escolástica –, vemos S. Alberto laborar com conceitos metafísicos, gnosiológicos e antropológicos aristotélicos, como potência e ato, substância e acidentes, natureza, raciocínio, coisa, ente, movimento, matéria, forma, alma, etc. xxxix Não se enganaria quem dissesse que este opúsculo representa um esforço por tornar Aristóteles palatável a um público que, por conta das interdições acima mencionadas, o tinha como autor suspeitoso. Embora seja um texto brevíssimo, o seu pano de fundo é o mesmo do comentário à Metafísica de Aristóteles, no qual toda a realidade se apresenta como estrutura dinâmica – ou seja, de movimento – em relação ao ato puro do ser divino. Diz a certa altura Alberto: “Aristóteles, no começo do livro II da Física, diz: ‘A natureza é o princípio e a causa do movimento e do repouso daquilo em que está per se, e não por acidente’. Ao dizer per se, e não per accidens, note-se que [para Aristóteles] a natureza é um princípio intrínsexxxiv Citados na nota 28 ao texto da tradução da primeira parte do tratado que o leitor tem em mãos. V. p. X. xxxv Cf. O Intelecto e o Inteligível, II, 1, n. 117. xxxvi Nisto S. Tomás de Aquino afasta-se completamente de Alberto Magno, na medida em que refuta a teoria da iluminação como concausa, no plano dos atos humanos naturais, da intelecção. xxxvii Cf. Guillermo Fraile, O. P. Op. cit., p. 831. xxxviii Santo Alberto Magno, I Sent, d. 2, a. 5. xxxix Por exemplo: “Substância é aquilo que subsiste, enquanto subsiste, segundo as considerações de Aristóteles nas Categorias. Digo ‘enquanto subsiste’ por causa da matéria, que, embora subsista, não é necessário porém que sempre subsista atualmente, pois de outro modo não poderia haver materia prima (...)”. Santo Alberto Magno, De quiditate et esse, 1.

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Santo Alberto Magno co, por oposição ao movimento violento, cujo princípio é extrínseco, como fica claro no [corpo] pesado que é lançado para cima. Embora diga que a natureza é o princípio e a causa do movimento e do repouso daquilo em que está, contudo, em alguns não é senão o princípio do movimento, como nos corpos supercelestes, que sempre se movem. Isso ocorre porque o princípio do movimento não é totalmente intrínseco, mas tais corpos também são movidos pelas inteligências angélicas ou pela inteligência primeira, isto é, por Deus (...) e portanto o fim de seu movimento está fora deles, pois [seu fim] é a multiplicação dos entes geráveis no mundo inferior, na consideração do filósofo natural, ou a assimilação ao primeiro [princípio] segundo as possibilidades de seu movimento, na consideração do filósofo primeiro e metafísico”. xl

Pressuposta a esta passagem em que Alberto relaciona os movimentos do universo ao Ente Imóvel, Deus mesmo, está a gradação hierárquica do ser proposta em sua metafísica e também no comentário que fez às Sentenças de Pedro Lombardo: • Realidade supraceleste • Mundo celeste • Mundo terrestre xli O escalonamento de movimentos considerado em cada um desses graus se dá num crescente aumento da potência ativa, conforme o ente aproxima-se ontologicamente da causa prima, e conseqüente diminuição da potência passiva, em vista da superação das dificuldades trazidas pela matéria. No sentido oposto dá-se o mesmo: quanto mais distante do princípio universal está um ente, menor é a sua potência ativa e maior a passiva. A analogia é um instrumento importante de que se vale Santo Alberto para apresentar vários conceitos em A qüididade e o ser. Tomemos como exemplo o termo “razão”, explicado pelo filósofo alemão de diversas maneiras – desde a própria até as impróprias. O tópico analógico é o sentido próprio, que, para o filósofo de Colônia, é a “reunião/comparação que a alma [racional] faz das coisas apreendidas”. xlii Os demais sentidos derivam deste primeiro como conseqüência lógica inescapável, e, a partir daí, S. Alberto parte para o problema espinhoso da distinção entre a essência em Deus e a essência nos entes participados. xl

Santo Alberto Magno, De quiditate et esse, 1. Santo Alberto Magno, II Sent., d. 3, a. 4. xlii Santo Alberto Magno, De quiditate et esse, 1. xli


O Ser e a Inteligência · Apresentação

Não é nosso propósito exaurir os temas estudados nos dois tratados que compõem o projeto O Ser e a Inteligência, mas apenas apontar diretrizes em meio às quais o caminho de compreensão destes textos pode ser palmilhado com relativa segurança por leitores não de todo familiarizados com a forma mentis escolástica, sem jamais perdermos de vista que a riqueza de qualquer obra filosófica é, pertencendo a uma época determinada, transcendê-la em virtude das perguntas que suscita e das respostas a que chega.

4. Importância da presente publicação Nenhum estudioso sério dos dias que correm ignora o quanto a Escolástica contribuiu para a história da filosofia e da ciência. Acontece que, para a contemporaneidade ter a clara visão da altitude filosófica deste período tão caluniado por maus filósofos e por historiadores mal-intencionados, é preciso traduzir para as línguas vernáculas – e apresentar devidamente – incontáveis textos desconhecidos por leitores desta desaçaimada pós-modernidade em que nos cabe viver. Que estes dois tratados de Santo Alberto contribuam para a diminuição da ignorância, ainda considerável entre nós, com relação à filosofia da Alta Idade Média. E que o apresentador desta Coleção encontre alguma benevolência da parte de leitores, na consideração de que o projeto de difusão de autores tão importantes muitas vezes parece estar para muito além de suas forças e capacidade.

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O Intelecto e o InteligĂ­vel

(De intellectu et intelligibili)



LIVRO I Tratado I Da natureza do intelecto

(De natura intellectus)


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Caput Primum De quo est intentio et quis dicendorum ordo? (1) Sicut a principio istius operis diximus, scientia de anima non satis complete habetur ex hoc, quod de anima secundum se ipsam in libro De anima determinatum est. Oportet enim cum hoc scire de obiectis, quae proprias partibus animae inferunt passiones. Horum autem obiectorum, quorum propria passiva pro partibus sive potentiis habet anima, quaedam proprias passiones inferunt animae, quaedam autem communes animae et corpori. Communes enim sunt passiones quaecumque sunt talia, circa quae operans anima instrumento utitur corporeo, ut quaecumque sunt circa vegetabilem et sensibilem animam. Propter quod etiam Peripatetici veteres scientias de talibus communibus animae et corporis vocaverunt. Et de his in parte iam pro modulo nostro expediti sumus in libris De nutrimento et nutribili et De sensu et sensato. Restant autem adhuc libri De somno et vigilia, De iuventute et senectute, De inspiratione et exspiratione et De motibus qui dicuntur animalium, De vita et morte, qui omnes sunt de operibus communibus animae et corporis. (2) Sed quia nequaquam interpretatio somnii et natura eius bene determinabilis est, nisi prius scito de intellectu et intelligibili, ideo oportet nos hic interponere scientiam de intellectu et intelligibili, licet intelligere animae humanae sit proprium praeter corpus. Attendimus enim, sicut saepe protestati sumus, principaliter facilitatem doctrinae, propter quod magis sequimur in traditione librorum naturalium ordinem, quo facilius docetur auditor, quam ordinem rerum naturalium. Et hac de causa non tenuimus in exsequendo libros ordinem, quem praelibavimus in prooemiis nostris, ubi divisionem librorum naturalium posuimus. (3) Determinantes autem de intellectu et intelligibili supponemus, quaecumque in libro nostro III De anima convenienter determinata sunt. Quaecumque vero hic inquirenda esse videntur, quantum per demonstrationem et rationem investigare poterimus, tractabimus sequentes principis nostri vestigia, cuius librum de hac scientia licet non viderimus, tamen discipulorum eius plurimorum de hac materia quam plurimos et bene tractatos perspeximus libros et epistolas. Interdum etiam Platonis recordabimur in his, in quibus Peripateticorumsententiis in nullo contradixit.


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

Capítulo 1

C

Qual a intenção da obra e qual a sua ordem

omo dissemos em obras anteriores, não se possui ciência suficientemente completa da alma somente pela consideração do que foi determinado no livro De anima acerca da alma em si mesma. Com efeito, é necessário, além disso, conhecer os objetos que produzem as paixões próprias nas partes da alma. Dentre esses objetos, que são os passivos próprios das partes e potências da alma, alguns produzem paixões próprias à alma; outros, paixões comuns à alma e ao corpo. Há paixões comuns quando a alma, ao operá-las, serve-se do corpo como de um instrumento, como são, por exemplo, todas as [operações] ligadas à alma vegetativa e à sensitiva. Por essa razão, os antigos peripatéticos chamavam de ciências da alma e do corpo às ciências das [paixões] comuns. Já explicamos essas coisas em parte, segundo a medida de nossas forças, nos livros De nutrimento et nutribili e De sensu et sensato. Restam-nos ainda os livros De somno et vigilia, De juventute et senectute, De inspiratione et exspiratione, De motibus animalium e De vita et morte, todos sobre as operações comuns da alma e do corpo. 2. Porém, como a interpretação dos sonhos, e [também] a sua natureza, não é bem esclarecida se primeiro não elucidamos o que são o intelecto e o inteligível, convém que interponhamos aqui a ciência do intelecto e do inteligível, mesmo que o inteligir seja próprio da alma humana sem [o auxílio prestado] pelo corpo. Com efeito, buscamos acima de tudo, como dizemos com freqüência, a facilidade da doutrina. Por isso, ao tratarmos dos livros naturais, seguimos a ordem que facilita o aprendizado do ouvinte, e não a ordem das coisas naturais. Assim, ao escrever os livros, não nos ativemos à ordem que anunciamos em nossos proêmios, onde pusemos a divisão dos livros naturais. 3. Ao determinarmos [a questão] sobre o intelecto e o inteligível, tomamos como pressuposto tudo o que ficou estabelecido em nosso terceiro livro De anima. As coisas que hão de ser inquiridas aqui, tratá-las-emos, tanto quanto pudermos, por demonstrações e argumentos, seguindo os passos de nosso mestre.1 Embora nunca tenhamos visto um livro seu que trate desta ciência, pudemos examinar muitas cartas e livros bem escritos de vários discípulos seus que trataram dessa matéria. Ademais, remetemo-nos a Platão naquilo em que nada discorda da opinião dos peripatéticos. 1 Aristóteles.

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(4) Cum autem secundum plurimos probatiores philosophos intellectus faciat intelligibile in forma intelligibilitatis, oportet nos prius loqui de natura intellectus, secundum quod est intellectus, et deinde de intelligibili, secundum quod est intelligibile, et deinde de unitate et diversitate intellectus ad intelligibilia, quia his cognitis satis perfecte habetur scientia de intellectu de intelligibili. Operae autem pretium investigare est huiusmodi, quia his scitis et proprie homo scit, quid proprie ipse est, cum sit solus intellectus, sicut dixit Aristoteles in X Ethicorum, et scit insuper principium inter ea, quae faciunt in ipso felicitatem contemplativam. Incipientes igitur investigare naturam intellectus imprimis ponemus, quae secundum naturam sunt priora.

Caput Secundum In hoc demonstratur, quod omne cognitivum animalium causatum est ex alio quodam cognitivo. (5) Dicamus ergo omnem naturam, quae habet potentiam aliquid cognoscendi, aut a se ipsa virtutem cognitionis habere aut ab aliqua alia natura, quae est ante ipsam. Constat autem, quod non habet a se ipsa: Sic enim esset principium cognitionis in omnibus aliis, et esset sua virtus cognitiva non imperfecta, sed perfecta, neque esset passiva, sed activa – quae omnia non convenire animabus animalium clarum est per ea, quae in libro De anima declarata sunt. (6) Si quis autem forte diceret, quod anima animalium habet a se ipsa virtutem cognitivam, eo, quod in natura sua est cognitiva eius potestas, sicut triangulus a se ipso habet habere tres angulos et cetera, et propter hoc non est principium causans in aliis aliquid, dicemus, quod ‘a se ipso habere’ dicitur duobus modis: uno quidem modo secundum causam efficientem et alio modo secundum causam formalem. Nos autem hic quaerimus de cognitivo a se ipso secundum utramque causam, sicut in


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

4. Contudo, como muitos dentre os filósofos mais recomendáveis dizem que o intelecto produz o inteligível na forma da inteligibilidade, convém que primeiro falemos da natureza do intelecto enquanto intelecto, e em seguida do inteligível enquanto está no intelecto, e por fim da unidade e da diversidade entre o intelecto e os inteligíveis, pois, uma vez conhecidas essas coisas, ter-se-á de modo assaz perfeito a ciência do intelecto e do inteligível. A recompensa pelo esforço dessa investigação é a seguinte: conhecendo essas coisas, o homem conhece o que propriamente é, pois ele é [somente] o intelecto,2 como diz Aristóteles no livro X da Ética, e conhece, ademais, os princípios daquilo que produz nele a felicidade contemplativa. Portanto, começando a investigar a natureza do intelecto, examinaremos primeiro aquelas coisas que são primeiras segundo a natureza.

Capítulo 2

Aqui se demonstrará que a cognição dos animais depende de alguma outra coisa que é cognitiva 5. Digamos, portanto, que toda natureza que possui alguma potência cognitiva, possui a virtude cognitiva ou por si mesma, ou por alguma outra natureza que lhe é anterior. Mas é evidente [que o animal] não a possui por si mesmo, pois, se fosse assim, sua virtude cognitiva seria o princípio de conhecimento para todas as outras coisas e seria perfeita, não imperfeita; tampouco seria passiva, mas ativa. Que todas essas coisas não convenham às almas dos animais, fica patente pelo que se disse no livro De anima.3 6. Mas se alguém disser que a alma dos animais possui por si mesma a virtude cognitiva, porque sua potência é, por natureza, cognitiva (assim como o triângulo tem três lados por natureza, e nem por isso é princípio causal das outras coisas), responderemos que “ter por si” se diz de dois modos: de um modo, segundo a causa eficiente, de outro modo, segundo a causa formal. Nós, porém, buscamos aqui algo que seja cognitivo por si segundo ambas 2 A doutrina de Aristóteles é a de que o homem é aquilo que nele é o principal e o mais excelente, ou seja, o intelecto. Cf. Aristóteles, Ética a Nicômaco, Livro X, Cap. VII. [Nota do Coordenador, doravante N. C.] 3 “(...) tampouco inteligir é o mesmo que perceber sensivelmente; prova disto é que a percepção dos sensíveis próprios é sempre verdadeira e se dá em todos os animais, ao passo que o raciocinar pode ser falso, mas não se dá em nenhum animal que não seja dotado de razão”. Aristóteles, Sobre a Alma, III, 427b, 5-10.

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physicis primum movens est motivum a se ipso, tum quia ante se non habet causam sui motus efficientem, tum quia a natura et essentia sua est movens; propter quod etiam omne, quod movet, motivam virtutem habet a se ipso et est sua virtus motiva fontaliter influens omnes virtutes motivas in omnibus aliis moventibus. Sic enim quaerendo, utrum anima animalium cognitiva sit a se ipsa, et sequuntur, quae praeinducta sunt. Cum enim omne creatum a nobiliori necessario deficiat a causa prima, defectus cognitionis, qui est in virtute cognitiva animae animalium, ostendit, quod non solum ab alio quodam habet vim cognoscitivam, sed etiam, quod multum distat ab illo, quod est prima causa et fons cognitionis. Oportet ergo dici, quod habeat ab alio quodam, quod est primum et perfecte cognitivum omnium. Si enim ab alio non primo et perfecte diceretur habere, de illo esset eadem quaestio et abiret hoc in infinitum aut stabitur in primo et perfecte cognitivo. (7) Amplius omne cognitivum animalium mortalium cum omni cognitivo mortalium est idem genere, aut si diceretur ‘per prius et posterius’,


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

as causas, assim como se diz no livro da Física4 que o primeiro movente é movente por si, tanto porque não tem antes de si uma causa eficiente de seu movimento, como porque é movente por sua natureza e essência, razão por que tudo o que move [algo] recebe dele5 a virtude motiva, que influi, como uma fonte, em todas as virtudes motivas de todos os outros moventes. Portanto, se neste sentido perguntamos se a alma dos animais é cognitiva por si mesma, seguem-se as coisas ditas acima.6 Porém, como tudo o que é criado por algo mais nobre é necessariamente deficiente em relação à causa primeira, o defeito de conhecimento que está na virtude cognitiva da alma dos animais mostra que não só recebem a virtude cognitiva de outro, mas também que estão muito distantes daquilo que é a causa primeira e a fonte do conhecimento. Convém, portanto, dizer que [o animal] recebe [sua virtude cognitiva] daquilo que conhece todas as coisas de modo primeiro e perfeito.7 Com efeito, se se diz que recebe de algo que não é primeiro e perfeito, ter-se-ia de pôr a mesma questão quanto a ele, e iríamos ao infinito, ou então chegaríamos num conhecedor primeiro e perfeito. 7. Ademais, toda [virtude] cognitiva dos animais mortais é uma só, segundo o gênero, com [a virtude] cognitiva dos mortais; mesmo que se diga segun4 “No caso daquilo que se move por si mesmo, é evidente que o movido e o movente estão juntos”. Aristóteles, Física, VII, 2, 10. [N. C.] 5 Ou seja: do primeiro movente. 6 As copiosas paráfrases aristotélicas realizadas por Santo Alberto Magno são o mais notável contributo de sua filosofia, no momento histórico tormentoso em que defender Aristóteles acarretava um pesado ônus intelectual e moral para quem – entre os latinos – o fizesse. Neste ponto do seu tratado, S. Alberto tem diante de si um esquema aristotélico próximo à interpretação de Avicena, a saber: a coexistência anímica das faculdades vegetativa, sensitiva, motora e intelectual. Também está pressuposta nesta passagem a teoria segundo a qual, na alma humana, o intelecto agente e o intelecto possível se encontram inextricavelmente relacionados. O intelecto agente, para o Doctor Universalis, é simples no sentido de não possuir nenhuma idéia até o momento em que são abstraídos os fantasmas, ou seja, as imagens intuídas materialiter pelo aparato sensitivo externo: tato, olfato, visão, audição e paladar. Para uma aproximação ao problema, ver Santo Alberto Magno, Summae de Homine, I. q. 1. O texto latino encontra-se no seguinte endereço eletrônico: <http://albertusmagnus. uwaterloo.ca/PDFs/Borgnet-volumen%2035.pdf>. No caso dos animais irracionais, que só possuem conhecimento sensitivo, S. Alberto vincula, na linha de Aristóteles, as potências da alma a instâncias físicas. [N. C.] 7 Para Santo Alberto, a ciência divina é ordenadora de todas as coisas, como também é a causa exemplar que faz as vezes de fonte de toda a ordem do ser. O exemplarismo divino do doutor de Colônia tem como base a premissa de que Deus – a verdade em Pessoa – é o paradigma de todos os tipos de conhecimento possíveis, inclusive o sensitivo. Como se pode deduzir, o conceito de participação, tão caro a Santo Tomás, já estava presente na obra do seu mestre. “(...) veritas, quae est exemplar et paradigma harum veritatum duarum dictarum in mente divina. Et haec est veritas divina lumine suo resplendens in omnibus veris secundis, quae in hoc formam veritatis habent, quod lumen primae veritatis participant”. Santo Alberto Magno, Suma Teológica, I, q. 25, m. 3, a. 1. [N. C.]

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hoc tamen est per respectum ad unum. Quaecumque autem talem habent generis vel naturae convenientiam et unitatem, ab uno aliquo exeunt, quod est causa convenientiae illius in omnibus. Oportet igitur cognitivum animalium ab uno alio cognitivo primo causatum esse secundum efficientem causam simul et formalem. (8) Si autem quis dicat, quod hoc non concluditur nisi de causis univoce, sicut homo generat hominem, cognitiva autem non habent univocam causam in genere, sed aequivocam, convincemus adversarium veritatis per hoc, quod omne aequivocum ad aliquod reducitur univocum, quod est ante ipsum. Hic ergo generans erit aequivocum, quod, ut dicit, habet aliquod univocum ante se, quod est prima causa huius. Et sic redibit idem, quod conclusum est prius. (9) Amplius in omnibus ita esse videmus, quod, quandocumque inveniuntur aliquae virtutes et formae in pluribus et in quibusdam earum sunt imperfectae, in quibusdam autem perfectae, imperfecta causata sunt a perfectis et imperfectio venit ex diversitate et imperfectione materiae. Sic ergo oportet, quod sic se habeat et in cognitivis naturis. Natura igitur, qua cognitiva sunt alia animalia, erit ab aliqua prima natura cognitiva et perfecta. (10) Haec autem disputatio tota trahitur ex epistola quadamAristotelis, quam scripsit de universitatis principio, cuius mentionem in Metaphysica facit Avicenna. Dicit autem Eustratiussuper VI Ethicorum Aristotelis omnem cognitionem animalium fluere a prima causa cognitiva.


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

do um anterior e um posterior, diz-se, porém, em relação a um só. Mas todas as coisas que possuem conveniência e unidade de gênero e natureza procedem de um outro que é a causa da conveniência deles todos. É necessário, portanto, que a [virtude] cognitiva dos animais8 seja causada por outra [virtude] cognitiva primeira, segundo a causalidade eficiente e formal. 8. Mas se alguém disser que isso não é conclusivo, senão com respeito aos causados unívocos (assim como o homem que é gerado pelo homem), e que a [virtude] cognitiva não tem uma causa genérica unívoca, mas equívoca, convenceremos da verdade o adversário dizendo que todo equívoco se reduz a algum unívoco, que lhe é anterior. Portanto, este que gera é [uma causa] equívoca, o qual, como disse, possui [uma causa] unívoca que lhe é anterior e que é sua causa primeira.9 E assim voltamos ao que concluímos primeiro. 9. Ademais, vemos que em todas as coisas cuja maioria possui certas virtudes e formas (algumas delas de modo perfeito, enquanto outras de modo imperfeito), as coisas imperfeitas são causadas pelas perfeitas, e a imperfeição procede da diversidade e da imperfeição da matéria. Convém, portanto, que também seja assim quanto às naturezas cognitivas. Logo, a natureza segundo a qual os outros animais são cognitivos, procede de outra natureza primeira, cognitiva e perfeita.10 10. Toda essa questão parte de certa carta escrita por Aristóteles sobre o princípio de universalidade, que Avicena menciona em sua Metafísica.11 Eustrácio, no comentário ao sexto livro da Ética de Aristóteles, diz que todo o conhecimento dos animais emana da primeira causa cognitiva.

8 Lat. cognitivum animalium. 9 Causa unívoca é aquela cujo efeito é proporcional à natureza da causa, e causa equívoca é aquela cujo efeito não é proporcional à natureza da causa. Um exemplo de causalidade unívoca é o homem que gera o homem, produzindo um ente da mesma natureza da causa. Um exemplo típico de causalidade equívoca é o sol como causa dos seres corruptíveis terrestres, que não são da mesma natureza que o sol; outro exemplo é o homem enquanto causa dos entes artificiais. [Nota do Tradutor] 10 Cf. nota 7 supra. 11 Todos os principais estudiosos da obra de Santo Alberto estão de acordo quanto ao fato de que a Metafísica de Avicena foi uma das influências decisivas de sua carreira. Este notável Doutor da Igreja – chamado de “magnus” pelo dominicano catalão Raimundo Martí – soube, como poucos do seu tempo, assimilar elementos das filosofias grega e muçulmana naquilo em que podiam contribuir para o enriquecimento do acervo cultural e teológico do catolicismo. [N. C.]

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Caput Tertium Qualiter vegetabile et intelligibile imperfectum fluunt ab intellectivo primo et perfecto? (11) Quaeramus igitur, quae sit illa natura. Cum enim primum in ordine naturae influit in secundum et non e converso, prius autem in ordine naturae sit vivere quam sentire et sentire quam intelligere, videtur alicui fortassis, quod primus fons omnis cognitionis esset vivum solum et non sentiens et intelligens, praecipue cum prius in ordine naturae sit per modum unius et secundum per modum duorum, quorum unum additum est ad aliud tertium per modum trium sibi consequenter ordine naturae additorum, si sentire additur ei, quod est vivere, et intelligere ei, quod est sentire, eo, quod, sicut in libro De anima diximus, eadem est ratio animae, quae figurae; sicut enim in figuris trigonum est in tetragono, ita vegetativum est in sensibili et sensibile in intellectivo. (12) Hoc autem erroneum esse probatur ex hoc, quod numquam secundum naturam imperfectum causa est univoca perfecti. Vivum autem separatum secundum esse a sensibili et intelligibili imperfectissimum est in genere vivorum nec aliquam vitae nobilitatem habet, qua principium esse possit. Adhuc in omnibus causatis univocis secundum naturam sic est: Quodcumque essentialiter inest causato, hoc potentius et nobilius et clarius, prius et perfectius inest causae illius causati; omnibus cognoscitivis essentialiter inest principium cognoscitivum; hoc ergo potentius, nobilius, prius et perfectius inest causae eorum, quae cognitiva sunt. Non ergo fluit natura, qua cognitiva sunt, aliquando ab aliquo uno vivo, cuius vivere separatum sit a cognitivo. (13) Amplius inter causata est nobili primo propinquius, quod est causa, quod pluribus bonitatibus et nobilitatibus appropinquat; sed intellectivum pluribus nobilitatibus et bonitatibus appropinquat primo cognitivo et perfecte, et hoc est magis intellectivum quam vivum solum vel sentiens et vivens tantum; oportet igitur, quod fons et origo cognitionis vitae sit aliqua natura intellectualis. (14) Amplius, quae perfectiva sunt visus, videmus omnia causari ab eo, quod per se ipsum et perfectissime est visibile. Omnis enim diversitas colorum causatur a luce, et diversitas colorum provenit ex multiformi


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

Capítulo 3

De que modo a [potência] vegetativa e a intelectiva imperfeita emanam do intelecto primeiro e perfeito 11. Investiguemos qual é essa natureza. Com efeito, como aquilo que é primeiro na ordem da natureza influi naquilo que é segundo, e não ao contrário, e o viver é anterior, na ordem da natureza, ao sentir, e o sentir, ao inteligir, talvez alguns pensem que a fonte primeira de todo conhecimento seria apenas viva, e não senciente e inteligente, sobretudo porque o que é primeiro segundo a ordem natural é semelhante à unidade, e o que é segundo, à dualidade, à qual se acrescenta mais uma unidade para formar uma terceira coisa, que será uma trindade, que se segue imediatamente [à dualidade], segundo a ordem natural das adições. Ora, se o sentir se acrescenta ao viver, e o inteligir ao sentir, assim como dissemos no livro De anima, então na alma haverá a mesma relação que existe entre as figuras. Com efeito, assim como o trígono está no tetrágono, assim também a [potência] vegetativa está na sensitiva, e a sensitiva na intelectiva. 12. Mas podemos provar que isso é errôneo, porque na natureza o imperfeito jamais é a causa unívoca do perfeito. Aquilo que é vivente, mas não é senciente e inteligente, é no gênero dos viventes o mais imperfeito. Sua vida não possui nenhuma nobreza que lhe permita ser princípio. Ademais, em todos os causados unívocos segundo a natureza, ocorre o seguinte: tudo o que é essencialmente intrínseco ao causado, é também intrínseco à causa do causado, só que de modo primeiro, mais potente, nobre, claro e perfeito. Ora, o princípio cognitivo é essencialmente intrínseco a todos os cognoscentes. Portanto, esse [princípio] é intrínseco à causa dos cognoscentes de modo primeiro, mais potente, nobre e perfeito. Logo, a natureza segundo a qual são cognoscentes não emana de um ser vivente cuja vida esteja separada do conhecimento. 13. Além disso, dentre os causados está mais próximo do primeiro [ente] nobre aquele que se aproxima mais das perfeições e excelências [da causa primeira]. Mas o ser intelectivo se aproxima mais das perfeições e excelências do primeiro e perfeito cognoscente, que é inteligente, e não somente vivente ou somente senciente e vivente. É necessário, portanto, que a fonte e origem da vida do conhecimento seja uma natureza intelectual. 14. Ademais, vemos que os [objetos] que causam a perfeição da visão são causados por aquilo que é visível por si e de modo perfeito. Com efeito, todas as diversas cores são causadas pela luz, e as diversas cores surgem da combina-

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permixtione opaci et terminati corporis cum diaphano, cuius per se actus est lumen. Similiter igitur ab eo, quod perfectissime est cognitivum, fluit omnis cognitio, et diversitas cognitionum provenit ex multiformi obumbrativo cognitivi luminis irradiantis super ea, quae sunt cognitiva in diversitate animalium. (15) Ex omnibus autem his probatissimi philosophi determinaverunt omnem cognitionem intelligibilem et sensibilem animalium effluere ab intellectuali natura perfecte et intellectualiter cognitiva. Cum enim dicatur causa prima plus influere quam secunda, hoc tradiderunt Peripatetici esse verum de causa vera. Vivum autem separatum a cognitivo causa non est cognitivi, et ideo non influit. Sed cum causa prima omnes suas bonitates influat super causatum et bonitates in ipsa nullam habeant distinctionem et ordinem eo, quod ipsa simpliciter omnia prima habet ante causata, in causatis tamen ea, quae influuntur, ex ipsa influuntur sub ordine et distinctione, et sic prius influit, quod secundum ordinem intelligendi est generalius et prius eo, quod remota causalitate primi non influit aliquid secundorum, sed remota causalitate secundi adhuc influit primum. Similiter autem in causa, quae est fons vitae et cognitionis, vivum non addit aliquid super alterum, quia suum vivere est suum intelligere. Sed in causatis, in quibus distinctionem habet vivum, vivum est in alio quasi fundamentum ipsius. Quantum autem ad attributas nobilitates nihil est adeo multiplex sicut causa prima. Sed ista multiplicitas nobilitatum in causa prima nullam simplicitatem adimit eo, quod omnes simpliciter et unite has nobilitates praehabet ante causata. Et ideo dicit egregie Philosophus, quod causa prima omnibus causatis suis praenominatur et quod est dives in se, in quibus nulli causatorum datur et largitur, et est dives in aliis, quae proportionaliter causatis communicat.


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

ção multiforme do corpo opaco e limitado com o diáfano, cujo ato, por si, é a luz. De modo similar, portanto, todo o conhecimento emana daquele que é o cognoscente perfeitíssimo, e os diversos conhecimentos provêm do multiforme obscurecimento da luz cognitiva que resplandece nas potências cognitivas dos diversos animais. 15. Considerando tudo isso, os [filósofos] mais recomendáveis determinaram que todo o conhecimento inteligível e sensível dos animais emana de uma natureza intelectual, que é cognoscente de maneira perfeita e intelectual. Mas quando se diz que a causa primeira é mais influente que a segunda, ensinam os peripatéticos que isso é verdadeiro quanto à causa verdadeira. Mas o vivente, separado do cognoscente, não é a causa do cognoscente, e, portanto, não influi nele. Mas como a causa primeira faz penetrar todas as suas perfeições no causado, e como nela as perfeições não possuem distinção ou ordem – porque possui em sua simplicidade todas as coisas primeiras antes dos causados, enquanto o que parte dela aos causados, parte dela com ordem e distinção –, influencia, portanto, primeiro aquilo que, segundo a ordem do inteligir, é mais geral e primeiro, pois, se se remove a causalidade do primeiro, as causas segundas não influenciam mais, mas se se remove a causalidade das causas segundas, a causa primeira continua a influenciar. De modo similar, na causa que é fonte da vida e do conhecimento, a vida não acrescenta nada ao [conhecimento], pois seu viver é seu inteligir. Já nos causados, nos quais o viver é distinto [deles], a vida está em outro, como seu fundamento. Quanto às perfeições que podem ser atribuídas a [algo], não há nada tão múltiplo quanto a causa primeira. Mas essa multiplicidade de perfeições na causa primeira não lhe tolhe a simplicidade, pois possui todas as perfeições de maneira simples e unida, antes dos causados. Por isso o Filósofo diz de maneira memorável que a causa primeira predomina sobre todos os causados, pois é rica em si mesma – [essa riqueza própria] não é dada nem concedida a nenhum dos causados –, e é rica em outras coisas que comunica proporcionalmente aos causados.12

12 Santo Alberto tem uma noção hierárquica da realidade, segundo a qual os entes escalonam-se em três grandes planos, conforme o grau de perfeição de suas respectivas formas: supraceleste, celeste e terrestre. A este último plano pertencem os minerais, os vegetais, os animais e o homem. Cumpre dizer que as instâncias celeste e terrestre da ordem do ser se subordinam – de modos diversos – ao influxo da causa primeira, Deus, ser simplícimo. Cf. Guillermo Fraile, Historia de la Filosofía, Tomo II, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), Madrid, 1960, p. 820. [N. C.]

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Caput Quartum Quod ab intelligentia natura cognitiva sit causata, sicut dicit Plato. (16) His autem sic declaratis oportet ulterius investigare, quae sit illa natura, quae fontaliter effluit omnem cognitionem et vitam. Et videtur Plato velle, quod intellectualitas in homine et sensibilitas in brutis utrumque vitae principium in vegetabilibus et brutis effluat a motoribus orbium et stellarum. Inducit enim in Timaeo summum Deorum ad motores caelestium loquentem et dicentem: “Horum sementem ego faciam vobisque tradam; vobis autem exsequi par est.” In idem autem consentire videntur, quotquot animas animalium ab intelligentiis profluxas et causatas tradiderunt. (17) Confirmant autem isti dicta sua triplici ratione potissime, quarum una est, quod omne ultimum in ordine causatorum non exit a prima causa nisi per causas, quae in medio sunt. Ultima autem causata sunt formae generabilium et corruptibilium Mediae autem causae sunt motores orbium caelestium, quos ‘intelligentias caelestes’ vocaverunt philosophi. Proximum autem fundens animas est intelligentia ultimum movens orbem. Secunda ratio, quia intelligentia imprimit in animam, sicut anima in corporis animati naturam. Sicut ergo dicimus animam esse causam corporis animati et motuum et passionum eius, secundum quod est animatum, ita debemus dicere intelligentiam infimam esse causam animae cognitivae, secundum quod est cognitiva, eo, quod cognitio animae quaedam est resultatio luminis intelligentiae. Tertia est, quod, sicut corpus animatum est sub corpore caelesti causatum et rectum ab ipso, ita anima corporis est sub intelligentia et recta ab ea. (18) Huius autem contrarium videtur. Si enim cognitivum mortalium flueret et regeretur ab intelligentia ultimi orbis vel alicuius aliorum orbium vel omnium, tunc ipsa in suis motibus et operibus cognitionis et affectus necessario subderetur motibus astrorum eo, quod omne effluens ab aliquo continetur et restringitur ab illo in potentiis operationum. Quod autem anima praecipue sub motibus astrorum restringitur, contra omnes est Peripateticos et contra Ptolemaeum. Ipsa enim et superiora in sphaeris apprehendit, et ab his, ad quae motus astrorum inclinat,


O Ser e a Inteligência · I. I. Da natureza do intelecto

Capítulo 4

A natureza cognitiva é causada pela inteligência, como diz Platão 16. Tendo explicado isso, é necessário, por fim, investigar qual é essa natureza donde partem todo conhecimento e toda vida, como de uma fonte. Platão parece afirmar que a intelectualidade do homem, e a sensibilidade dos brutos, e o princípio da vida, tanto dos vegetais como dos brutos, procedem dos motores dos orbes e das estrelas. No Timeu, cita o maior dos deuses dirigindo-se aos motores celestes, e dizendo-lhes: “Criarei as sementes destas coisas, e vo-las darei. Convém que vós as façais crescer”. Parecem concordar com a mesma [opinião] todos aqueles que ensinam que a alma dos animais emana das inteligências e é por elas causada. 17. Tentam confirmar sua doutrina por meio de três argumentos principais. O primeiro é: tudo o que é último na ordem dos causados não procede da primeira causa senão por meio das causas intermediárias. Ora, os últimos causados são as formas dos entes geráveis e corruptíveis, e as causas intermediárias são os motores dos orbes celestes, que os filósofos chamaram de inteligências celestes. Portanto, a [causa] próxima das almas é a inteligência que move o último orbe. O segundo argumento é: a inteligência deixa sua marca na alma, assim como a alma [deixa sua marca] na natureza do corpo animado. Portanto, assim como dissemos que a alma é a causa do corpo animado, e de seus movimentos e paixões, enquanto animado, assim também devemos dizer que a última inteligência é a causa da alma cognitiva, enquanto cognitiva, pois o conhecimento da alma é certo produto da luz da inteligência. O terceiro argumento: assim como o corpo animado é causado sob [a influência de] um corpo celeste e é por ele regido, assim também a alma do corpo está sob [a influência de] uma inteligência e é por ela regida. 18. Mas o contrário parece ser verdade. Com efeito, se a potência cognitiva dos entes mortais emanasse da inteligência do último orbe e fosse por ela regida, ou por outra [inteligência] de outros orbes, ou por todas elas ao mesmo tempo, então os movimentos e as operações de conhecimento e afeto estariam necessariamente submetidos ao movimento dos astros, uma vez que tudo aquilo que emana de algo está compreendido nele e é restringido por ele em suas potências operativas. Mas que a alma esteja limitada pelo movimento dos astros, negam-no todos os peripatéticos e Ptolomeu. Ela é capaz de apreender as coisas que estão acima das esferas, é capaz de repelir livremente a inclinação

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libere avertitur, et alia advertit per sapientiam in intellectum, sicut testatur Ptolemaeus. (19) Amplius in natura ideo est ordo primi ad media et mediorum ad ultima, quod aliquid causetur in ultimis a mediis, quod a causa prima non sit perfectum. Et dico de his causatis, quae nomine suo important aliquam nobilitatem. Aliter enim ex ultimis ad media non esset recursus ad primum. Et hoc esse non potest, cum omne, quod est, aliquam bonitatem causae primae desideret et propter illam agat, quidquid agit. Sive ergo dicamus media aliquid agere in ultimorum productione sive non, semper bonitates ultimorum principaliter et efficaciter sunt a causa prima, et ea, quae intermedia sunt, operantur ut instrumenta, si quid ad ea operantur. (20) Amplius autem in lumine, quod est universalis causa colorum, videmus, quod, licet ultimos colores constituat per commixtionem priorum, tamen omnis constitutio coloris est per naturam perspicui participantis lumen tamquam prima colorum hypostasis, et quidquid aliquis color de natura habet coloris, ab ipso habet, et si quid aliud est in ipso, potius est de privatione naturae coloris, quam mereatur dici coloris essentia. (21) Omnino igitur eodem modo, cum primum effluit bonitates suas super media et ultima, si aliquid esset a mediis influxum super ultima, tamen constitutio ultimorum non erit nisi ex participatione bonitatum primi; et si quid aliud est in eis, est aliquid privationis. Et haec sententia optimorum fuit sapientium Graecorum, Theophrasti et Dionysii et aliorum philosophorum. Adducebant autem simile de lumine solis, quod infundit se aeri limpido et nubibus terrenis diversis: Quod licet ab aere sit in nube et a nube sit in terra, tamen, quia media non dant, nisi quod a sole receperunt, totum solis est, quod est in ultimis, et si in mediis et ultimis


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impressa pelo movimento dos astros,13 e é capaz de inteligir outras coisas pela sabedoria, como nos atesta Ptolomeu. 19. Ademais, na natureza a ordem dos primeiros aos intermediários e dos intermediários aos últimos é tal, que nada é causado nos últimos pelos intermediários que não seja realizado pela causa primeira.14 Digo isso quanto aos causados cujo nome indica alguma perfeição. Se fosse de outro modo, os últimos não chegariam ao primeiro através dos intermediários. Mas isso não pode dar-se, pois tudo o que existe deseja alguma perfeição da causa primeira, e por causa dela faz tudo o que faz. Portanto, quer digamos que os intermediários participem na produção dos últimos, quer o neguemos, as perfeições dos últimos procedem sempre da causa primeira, como de seu princípio e causa eficiente, enquanto os intermediários operam somente como instrumentos, se é que operam. 20. Ademais, vemos que a luz, que é causa universal das cores, embora as últimas cores constituam-se pela mistura com as primeiras, produz, contudo, as cores mediante a natureza do transparente, que participa da luz como a primeira hipóstase das cores.15 Qualquer cor que possua a natureza da cor, recebe-a [do transparente], e tudo o mais que há nela é antes uma privação da natureza da cor do que a essência da cor. 21. Portanto, ocorre exatamente o mesmo quando o primeiro [princípio] derrama suas perfeições (bonitates) nos intermediários e nos últimos. Mesmo que os intermediários influenciem os últimos, contudo, a constituição dos últimos não se dá senão por participação das perfeições do primeiro.16 Se há neles alguma outra coisa, é ela uma privação. Esta foi a opinião de excelentes sábios gregos, como Teofrasto, Dionísio e outros filósofos. Faziam eles uma comparação com a luz do sol, que se difunde pelos diversos terrenos através do ar limpo e das nuvens; essa luz, embora chegue à nuvem pelo ar, e à terra pela nuvem, contudo, como os intermediários não transmitem senão o que receberam do sol, tudo o que está presente nos últimos procede do sol. E se a 13 A seu modo, nesta passagem Santo Alberto estabelece – como também o fará seu discípulo S. Tomás de Aquino, alguns anos mais tarde – o princípio de que corpo influencia corpo, ou seja: nenhuma transmutação corpórea causada pelo movimento dos astros pode ter caráter absoluto, pois o homem, dadas as potências superiores de sua alma, inteligência e vontade, pode livremente suplantar as inclinações impressas pelos astros. [N. C] 14 Noutras palavras, as causas segundas operam, direta ou indiretamente, pela virtude da causa primeira. [N. C.] 15 O transparente (perspicui) como hipóstase das cores é o horizonte ontológico possibilitante da manifestação de todas as cores. [N. C.] 16 Nesta passagem temos, novamente, o conceito de participação. Cf. nota 7 supra.

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distet lumen a limpiditate solis, hoc potius privationis materiae est quam alicuius causae hoc efficientis. (22) His igitur consentientes dicimus, quod, cum Plato dicat, quod proprium caelestium sit exsequi bonitates primi, et sementes substantiarum cognitivarum hoc modo consequuntur, quod instrumenta inducunt ea, quae sunt in arte artificis illa instrumenta moventis, et constat, quod instrumenta moventis ea non faciunt ea ex suo proprio aliquo influxu. Est enim in omnibus intelligentiis ordo formarum practicarum, quae per ipsas in materiam generabilium descendit, et sunt formae in omnibus eaedem, sed in inferioribus magis et magis determinatae, sicut forma lucis eadem in sole et in aere et nube et corpore determinato, licet lumen, secundum quod magis descendit a sole, magis et magis coartetur et determinetur ad naturam coloris. Eodem autem modo est de forma artis in mente artificis, quam exsequitur manus, et cadit in instrumentum et suscipit ferrum, quae proportionaliter in omnibus est eadem, et tamen magis determinata ad materiam in manu quam in mente artificis et magis in malleo quam in manu, maxime autem in ferro est determinata eo, quod ferrum materialiter suscipit eam. Et esset hoc in multis simile intelligentiis et causae primae et materiae generabilium, si manus intellectum haberet et malleus, quo conceptam formam a mente artificis explicarent et exsequerentur. Unde sicut nihilominus tali existente hypothesi in arte omnia erunt a mente artificis, sic omnia in praehabitis sunt a causa prima, licet intelligentiae quasdam bonitates explicent et per motum caelestem inducant in materiam. (23) De his autem plenius est tractare primi philosophi. Ad propositum enim sufficit, quod inductum est: Quotquot tamen posteriorum philosophorum animas ab intelligentiis causatas et profluxas esse tradiderunt, hunc modum fluxus, qui dictus est, intellexerunt. Et hac de causa et animam imprimi ab intelligentia posuerunt et eam esse stramentum intelligentiae et subiectum illuminationibus eius, in hoc verum utique dicentes, sicut ostendunt divinationes somniorum et alia multa, de quibus in aliis libris erit tractandum. Propter quod etiam in libro De motu cor-


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luz que está nos intermediários e nos últimos é deficiente em relação à pureza [da luz] do sol, isto é assim por causa da privação que advém da matéria, e não em virtude de alguma causa eficiente. 22. Portanto nós, concordando com eles, dizemos que, quando Platão afirma que é próprio dos [entes] celestes atualizar as perfeições da [causa] primeira, devemos entender que os [entes] celestes produzem as sementes das substâncias cognoscentes, assim como um instrumento realiza aquilo que está na ciência do artífice que move o instrumento. Mas é evidente que os instrumentos de quem os move não agem por sua própria virtude. Com efeito, existe em todas as inteligências uma ordem das formas práticas, que descem à matéria dos geráveis por meio das inteligências. Essas formas são as mesmas em tudo, embora nos [entes] inferiores sejam cada vez mais determinadas, assim como a forma da luz, que é a mesma no sol, no ar, na nuvem e no corpo determinado, embora seja cada vez mais restringida e determinada à natureza da cor à medida que se afasta do sol. O mesmo ocorre com a forma da arte, que existe na mente do artífice, que a mão executa, que é transmitida ao instrumento e é impressa no ferro; é proporcionalmente a mesma forma em todos os casos, embora seja mais determinada materialmente na mão, do que na mente do artífice, ainda mais [determinada] no martelo do que na mão, e maximamente determinada no ferro, pois o ferro a recebe materialmente. Se a mão e o martelo tivessem um intelecto que lhes permitisse desdobrar e executar a forma concebida na mente do artífice, a relação [entre mão, mente e martelo] seria em muito semelhante à relação que existe entre as inteligências, a causa primeira e a matéria dos entes geráveis. Portanto, assim como nessa suposição todos os efeitos da arte procedem da mente do artífice, assim também todas as coisas que mencionamos acima procedem da causa primeira, mesmo que as inteligências desdobrem algumas perfeições, e imprimam [as formas] na matéria por meio do movimento celeste. 23. Porém, investigar essas questões de modo mais pleno é próprio do filósofo primeiro.17 Por ora, basta o que dissemos. Mesmo que alguns filósofos posteriores tenham ensinado que as almas são causadas pelas inteligências e delas emanam, entenderam essa emanação do modo como a explicamos. Por isso disseram que a alma recebe a impressão da inteligência, e é o leito da inteligência, o sujeito que recebe sua iluminação. Quanto a isso dizem a verdade, como se pode provar pelas adivinhações que se fazem pelos sonhos, e por muitas outras coisas que trataremos em outros livros. Por isso também se diz 17 Ou seja, é mais adequado ao metafísico.

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dis anima illuminationum, quae sunt a primo, secunda revelatione dicitur esse perceptiva. (24) Per ista etiam, quae dicta sunt, satis patet, qualiter motores inferiorum sphaerarum fundant et qualiter non. Prima enim et tota fusio animae et omnis naturae est a prima causa. Inferiores autem orbes operantur organice determinando et inclinando naturas ad materiam. Propter quod Plato dicit, quod in quolibet orbe anima aliquid accipit, memoriam in orbe Saturni et alias in aliis, sicut in I De anima determinavimus. Et secundum hunc modum essentia animae a prima causa tota et sola, applicatio autem et determinatio ad corpus est ab aliis instrumentaliter primae causae deservientibus, et quoad hoc regenda in illuminationibus et movenda motibus temporalibus subicitur intelligentiis aliorum orbium. Et quia sic totus caeli concentus refertur ad causam primam, ideo melius intelligentes philosophi totum unicum motorem dixerunt habere et inferiores motores ad sphaeras dixerunt esse virtutes et membra primi caeli et sui motoris. De his autem in II Caeli et mundi fecimus mentionem. Erit autem de his perscrutatio completa in prima philosophia.


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no livro De motu cordis, que a alma recebe as iluminações da [causa] primeira, mediante uma revelação que vem das causas segundas.18 24. Tudo o que dissemos também deixa claro de que modo os motores das esferas inferiores difundem [sua influência], e de que modo não: a difusão primeira e completa das almas e de toda natureza é causada pela causa primeira. Já os orbes inferiores operam organicamente ao determinar as naturezas e incliná-las à matéria. Por essa razão Platão diz que a alma recebe alguma coisa de cada orbe: a memória, de Saturno, e assim por diante, como determinamos no primeiro livro De anima. Assim, a essência da alma provém total e unicamente da causa primeira. Mas o ser aplicado e determinado ao corpo dá-se por meio de outras [causas] que servem à causa primeira a modo instrumental. Portanto, a alma é regida em suas iluminações – e movida em seus movimentos temporais – pelas inteligências dos outros orbes. E como toda a harmonia celeste é relativa à causa primeira, os filósofos mais entendidos disseram que [o céu] possui um só motor, e que os [orbes] inferiores são virtudes e membros do primeiro céu e do seu motor. Mencionamos isso no segundo livro do De coelo et mundo. A investigação completa desse assunto se fará na Filosofia Primeira.19

18 A teoria do conhecimento de Santo Alberto comporta um sincretismo – cujas aporias não foram de todo superadas – entre a doutrina agostiniana da iluminação e a aristotélica da abstração. Segundo Kennedy, tanto em suas obras filosóficas quanto nas teológicas, S. Alberto sustenta que o intelecto é iluminado por Deus e pelos anjos em algo que diz respeito estritamente ao conhecimento natural, e esta iluminação é essencialmente distinta da abstração e a precede. Leonard A. Kennedy, “St. Albert the Great’s Doctrine of Divine Ilumination”, in: The Modern Schoolman, n. 40, St. Louis University, 1962, p. 35. [N. C.] 19 Em Santo Alberto, o poder dos corpos celestes está vinculado ao conceito de luz, na medida em que a potência manifesta-se na relação da luz dos corpos celestes com a matéria. Cf. Santo Alberto Magno, Suma Teológica, II, tr. 1, q. 4, art. 1. Em síntese, os diversos corpos celestes relacionam-se com a matéria do mundo sublunar de modo a induzir nela novas formas. De acordo com o medievalista Bruno Nardi, as formas que “flutuam” na matéria são irradiadas pela inteligência do Primeiro Motor – ou seja, Deus –, que imprime a forma ideal na matéria por intermédio das inteligências celestes cujo ofício é determinar, de grau em grau, o influxo universal da causa prima, adaptando-o às coisas particulares do mundo sublunar. Cf. Bruno Nardi, Studi di filosofia medievale, Storia e Letteratura, Roma, 1980, p. 27. Vale consignar que há um segundo tipo de potência da matéria ao qual Santo Alberto chama forma corporeitatis (Cf. Santo Alberto Magno, Op. cit.), que é a dos quatro elementos; por fim, ele faz menção a um terceiro tipo, ao qual chama potentia formativa, que está no sêmen – ou na semente – do ente que gera. Cf. Santo Alberto Magno, Op. cit. [N. C.]

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Caput Quintum Unde provenit generum animae diversitas, et vegetabile scilicet et sensibile et intellectivum? (25) Consequens autem ex dictis est, ut modum descensus animarum determinemus. Cum enim prima causa fundens luce sua animas sit natura una simplex intellectualis, videbitur mirum, qualiter multa sunt genera animarum, vegetabile scilicet et sensibile et intellectuale. Non enim hoc accidere potest ex motoribus intermediis eo, quod omnes illi intellectuales a philosophis esse traduntur. Nec est verum, quod dicit Pythagoras omnes animas esse intellectuales et omnia corpora esse animata nec motus sensus vel intellectus posse exsequi inquit animam in quibusdam corporibus ob materiae gravitatem. Lapis enim, ut ait, animatus est, sed propter terrestreitatem est in eo oppressa anima, ne ostendat motus vegetationis vel intellectus vel sensus. In plantis autem propter minorem terrestreitatem ostendit et operatur anima vegetationem, sed non sensum. In brutis autem minus terrestribus operatur unum vel duos vel omnes sensus, sed non intelligere. In humano vero corpore, quod minus omnibus terrestre est et incomplexione maxime recedens ab excellentia contrariorum, omnes complete habet anima operationes. (26) Hoc enim esse non potest, cum natura numquam deficiat in necessariis. Si enim fuisset anima perfecta sensibilis et intellectiva in lapide vel planta, dedisset utique natura organa lapidi et plantae, quibus explicare possent operationes animae sensibilis et intellectualis. (27) Adhuc autem omnis diversitas materiae est propter diversitatem formae, sicut prius saepe in expositis libris est probatum. Quomodo ergo dici potest, quod in omnibus corporibus, quae valde figuris differentia sunt et quantitate et natura, sit idem genus animae? (28) Nec conveniens est ratio Platonis dicentis, quod secundum merita materiae infundantur formae, quia secundum hoc materialis diversitas esset causa diversitatis formarum, cum hoc non sit verum eo, quod ma-


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Capítulo 5

Donde provêm a diversidade genérica das almas e as [potências] vegetativa, sensitiva e intelectiva 25. Tendo dito isso, é preciso determinar o modo como as almas descem [aos corpos]. Como a causa primeira, que difunde as almas por meio de sua luz, é uma natureza única, simples e intelectual, talvez pareça estranho que haja muitos gêneros de alma: a vegetativa, a sensitiva e a intelectiva.20 [Essa diversidade] não pode provir dos motores intermediários, uma vez que todos os filósofos dizem que eles são intelectivos. Tampouco é verdade o que dizia Pitágoras, [a saber,] que todas as almas são intelectuais e todos os corpos são animados, ainda que a alma de alguns corpos seja incapaz de realizar os movimentos dos sentidos e do intelecto por causa da gravidade da matéria. A pedra é animada, dizia ele, mas por causa da abundância do [elemento] terra sua alma é oprimida e não consegue realizar os movimentos vegetativos, intelectivos e sensitivos. Nas plantas, por causa da presença menor de terra, a alma vegetativa faz-se manifesta e opera, embora não operem os sentidos. Nos brutos aparecem todos os sentidos, mas não a inteligência. Já no corpo humano, que é o menos terrestre de todos, e que mais se afasta da incompleição, devido à excelência das [qualidades] contrárias [que há nele], a alma possui completamente todas as operações. 26. Mas as coisas não podem ser assim, pois a natureza nunca é deficiente no [que é para ela] necessário. Se na pedra ou na planta houvesse uma alma sensitiva e intelectiva perfeita, a natureza daria à pedra e à planta órgãos que permitissem à alma sensível desdobrar as operações da alma sensível e intelectual. 27. Ademais, toda a diversidade presente na matéria existe por causa da forma, assim como muitas vezes se provou nos livros que expusemos. Portanto, como seria possível dizer que existe um só gênero de alma em todos os corpos, que são muito diferentes quanto à figura, à quantidade e à natureza? 28. Tampouco é conveniente o argumento de Platão, que dizia que as formas são infundidas segundo as qualidades da matéria, pois, se fosse assim, a diversidade material seria a causa da diversidade formal.21 Mas isso não é 20 Cf. nota 6 supra. 21 A matéria não pode ser princípio de diversidade das formas, mas sujeito dessa diversidade – e isto apenas nos entes compostos de matéria e forma. Se não fosse assim, não haveria solução filosófica

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