Entrevista com o autor
No dia 23 de fevereiro de 2016, o autor participou de um hangout1 de lançamento da campanha que financiou a publicação desta obra. No programa, Luiz foi entrevistado pelo editor, Renan Santos, e respondeu a uma série de perguntas enviadas por seus alunos e leitores. A transcrição a seguir foi generosamente concedida por Paulo Henrique Brasil Ribeiro, um dos colaboradores da campanha, e revisada pelo editor. Renan: Primeiramente, gostaria de dar as boas-vindas ao professor Luiz neste hangout – embora seja eu o estrangeiro aqui no canal do ICLS [Instituto Cultural Lux et Sapientia] –, e dizer que para mim é uma honra imensa, quase inexprimível, fazer esta entrevista com o senhor. O senhor é o professor – depois do seu pai [Olavo de Carvalho] – que eu mais admiro, de todos que eu já tive em minha vida. As suas aulas sempre foram realmente inspiradoras, tanto na vida intelectual, como na vida espiritual, principalmente. Já há alguns anos acompanho o seu trabalho, logo que conheci o seu pai: através de áudios, cursos, umas páginas perdidas na internet, desde os tempos de Orkut até, e hoje em dia no seu instituto. Queria só deixar registrado o imenso respeito e carinho que tenho pelo senhor. Tive a honra de conhecê-lo pessoalmente, em 2015, no maravilhoso I congresso do ICLS, sendo que na época até fiz uma brincadeira, prestando reverências [gestuais], na tentativa de mostrar o tamanho do meu respeito pelo senhor e o quão importante foram seus ensinamentos para mim, tanto quanto os do seu pai, chegando eu muitas vezes a equiparar os dois. 1 O hangout pode ser assistido no YouTube: <https://www.youtube.com/watch?v=c9eiv99sxZ0>.
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Então, para mim é uma honra imensa. Agradeço novamente a oportunidade, por ter buscado a mim e a Concreta para publicar essa obra maravilhosa. Luiz: Eu é que agradeço a oportunidade de publicar o livro. Não precisa muita reverência, é uma alegria estar aqui, poder conversar sobre esses assuntos e poder publicar este livro. Renan: A primeira pergunta já meio que emenda com essa percepção que eu tenho de suas aulas, cursos e palestras. Uma vez li em São Boaventura uma distinção muito interessante que ele fazia entre Aristóteles e Platão, que era até certo motivo de embate entre ele e S. Tomás, seu amigo. Embora estivesse havendo um grande florescimento de Aristóteles naquele meio escolástico medieval do século XIII, S. Boaventura e os franciscanos em geral sempre faziam questão de ressaltar a importância de Platão, de sua linguagem e estilo. São Boaventura diz numa obra – acho que é o Hexameron – que Aristóteles foi um grande filósofo – aquilo que hoje chamaríamos de “cientista natural”, ou filósofo natural – mas que sábio de verdade mesmo era Platão. Essa comparação eu acho muito interessante. Porque nós percebemos a diferença entre a linguagem de Platão e a linguagem de Aristóteles, e eu já vi o senhor falando sobre isso numa aula também, comparando os dois espíritos. Parece que Platão realmente sobe vôos mais altos do que Aristóteles, com aquela linguagem simbólica, aquele jeito de ensinar verdades tão profundas, com uma linguagem mais compacta, justamente por ser uma linguagem mitológica, que ascende a níveis mitológicos em alguns diálogos, retornando ao diálogo em seguida, enquanto Aristóteles é mais expositivo – mais “científico”, diríamos hoje em dia. E eu percebo essa diferença notadamente nas suas palestras e cursos, e neste livro a cujo texto revisado pelo Juliano Alcântara tive acesso. Eu reparo que a forma que o senhor tem de ensinar sobre essas coisas – me corrija se estiver errado – é uma forma mais platônica, mais compacta. O senhor apela aos símbolos, o senhor faz com que a inteligência dos seus alunos desperte num sentido diferente, por exemplo, de um estudo acadêmico ou de uma leitura mais acadêmica que a pessoa possa fazer de filósofos, dos Santos Padres, de teólogos, especialmente – vemos que mesmo na teologia medieval escolástica parece que o autor se detém de forma tão lógica, tão analítica sobre os problemas da religião, que acaba se perdendo muitas vezes essa dimensão mais simbólica, mais cosmológica, essa repercussão de símbolos mais profunda, que é o que o senhor acaba elucidando em grande parte nesta sua obra, onde se mostra a estrutura do Pai Nosso e seu alcance, que é o da própria natureza humana, num sentido realmente mais transbordante de
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significado. Esse seu estilo de expor a oração e os elementos do cristianismo remete muitas vezes ao que percebemos nos Santos Padres e na Patrística inteira – e não é por menos que eles eram muito inspirados por Platão. Então, leio a pergunta do Juliano Alcântara, tentando encaixar uma coisa na outra: “O Gugu [Luiz Gonzaga de Carvalho Neto] relaciona as Bem-aventuranças, os dons e os pedidos, e é sabido que outros já fizeram isso, como S. Agostinho, S. Tomás, etc., mas a maneira que ele faz é inédita. Eu mesmo já perguntei para ele se era um jeito novo de fazer, e ele respondeu ‘É, eu li um monte de comentários sobre o Pai Nosso e nunca vi feito desse jeito’, mas ele não me disse qual ter sido a novidade. Então, Gugu, qual é a novidade apresentada por você na utilização das Bem-aventuranças e dos dons para a explicação do Pai Nosso?” Luiz: Olha só, o conteúdo objetivo do livro não é realmente inédito. Correlacionar os pedidos do Pai Nosso com as Bem-aventuranças, com os dons do Espírito Santo faz parte da tradição cristã e da Revelação, faz parte da tradição pelos inúmeros autores que explicitaram essas relações e da Revelação por já estar na Escritura. O que é inédito não é isso. O inédito aí é mais uma questão de ênfase, em dois pontos fundamentais. [Primeiro] a insistência em mostrar em cada pedido um ciclo quaternário: pedido, argumento, Dom do espírito e Bem-aventurança (recompensa). Você tem um pedido, ao qual corresponde uma Bem-aventurança. Se você lembrar bem, em cada Bem-aventurança o Cristo menciona um tipo de pessoa e logo depois fala que essa pessoa merece aquilo, receberá algo por ser aquela pessoa. Bem-aventurados os pobres de espírito, porque será deles o Reino dos Céus, aí temos um tipo de pessoa, o pobre de espírito; Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra, [temos o manso] e assim por diante. Em cada Bem-aventurança é mencionado um tipo de pessoa, uma certa qualidade pessoal. A ênfase que colocamos nesse texto é que essa qualidade pessoal é como que uma oferenda de sinceridade que você faz para Deus logo depois de fazer um pedido. Eu peço para Deus: santificado seja o Vosso Nome, mas o que você apresenta como argumento para Deus para que Ele atenda ao seu pedido? Você tem que apresentar alguma coisa também – não porque Deus precise de alguma coisa, mas porque você é um agente livre, e um agente livre, quando tem um interlocutor, por mais elevado que este seja em relação a ele, tem que apresentar algo também. Você não é uma pedra diante de Deus. Se a pedra diante de Deus tem uma oração, ela pede que ela seja pedra, e não precisa apresentar nada porque ela não é um agente livre. Mas cada um de nós é um agente livre, então se eu peço algo para alguém eu apresento para
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esse alguém uma razão que justifica o pedido, o que o torna persuasivo. Então, enfatizo o tipo de pessoa que o Cristo descreve na Bem-aventurança – isto aqui é uma oferenda que você faz que dá um sinal de sinceridade diante de Deus, da sinceridade do seu pedido, e aí mostro o Dom do Espírito Santo como a causa eficiente da realização do pedido. Você pediu e apresentou algo – num certo sentido, a metade humana. É a sua iniciativa, você escolhe se você pede, o que você pede, e o que você oferece como argumento a favor do seu pedido, a favor da sua causa, e aí você tem o Dom do Espírito Santo, que é justamente o instrumento de Deus para que sua vida seja guiada por E então, recebendo aquele dom, vivendo aquele dom, você se torna capaz de participar da Bem-aventurança, de participar da outra vida. Como diz Santo Agostinho, em cada Bem-aventurança, o que é prometido como recompensa é o céu ou a santidade, de uma maneira ou de outra. Então, essa ênfase de 1, 2, 3, 4, 1. Pedido, 2. Argumento do pedido, 3. Dom do Espírito Santo, 4. Bem-aventurança (resultado final), não é que nunca tenha sido feito na Tradição, existem apresentações, mas enfatizar esse andamento eu acho muito importante. Renan: É como se tudo isso estivesse virtualmente contido lá naqueles ensinamentos, e o senhor os tivesse explicitando. Luiz: Sim. Quando S. Agostinho explica essa relação, temos que lembrar que ele viveu em pleno momento de combate contra o pelagianismo (a idéia de que o homem podia salvar a si mesmo com a sua ação), então enfatiza muito o aspecto de que, desde o começo, é tudo obra de Deus. Então Deus revelou a oração, Deus pôs em você o desejo de fazer a oração, Deus pôs em você o argumento a favor, etc. Em tudo ele enfatiza a graça divina desde o começo, e isto é muito importante, e era especialmente importante naquele momento, em que o fiel enfrentava este grande perigo de acreditar que ele podia salvar a si mesmo. Eu acho que hoje em dia enfrentamos um perigo muito diferente. Vivemos numa época em que não é a capacidade humana, a liberdade do indivíduo humano que é excessivamente valorizada. É, pelo contrário, o reducionismo do ser humano a um elemento da natureza. Então você não é um agente livre, nada do que você faz importa, você é só o seu DNA, você é só o seu condicionamento social, cultural, você não é nada, nada do que você faz é importante, etc. Isso conduz o sujeito a uma fraqueza moral, a um amo-
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ralismo e a uma falta de iniciativa diante de Deus. Na religião isso é muito prejudicial, porque o que acontecerá é que o sujeito não fará nada. Então achei muito importante enfatizar isto: você tem que se dar conta do que está pedindo. “Eu quero mesmo isso? Quanto eu quero isso?” Você apresentar esse querer sinceramente diante de Deus é muito importante. Esqueça por um momento esse fato de que é claro que sua ação tem origem na própria Providência e graça divinas, [e lembre-se] que no momento em que ela está em você ela é sua ação. Então, a ênfase é diferente porque achei que a dificuldade que o fiel enfrenta hoje é diferente da que o fiel enfrentava naquele momento específico. Outra ênfase diferente: fiz um grande esforço para ligar o primeiro ato, o primeiro pedido, à última recompensa. No primeiro pedido você fala Santificado seja o Vosso Nome, e daí enfatizo um aspecto desse pedido – o qual tem inúmeros significados, a Escritura Sagrada é discurso divino, então ela é muito mais rica que um único significado –, o de que você mesmo é um nome divino, você é imagem de Deus, que Ele criou aqui, e você perdeu essa identidade. Nós não nos conhecemos como nome divino. Então, começa você pedindo para recuperar essa identidade e termina com Deus te nomeando: porque serão chamados filhos de Deus, esta é a última recompensa na última Bem-aventurança, Deus te dando um nome, “filho”, que te relaciona com ele. Essa ênfase é mais ou menos inédita. Renan: [Falando sobre o quaternário,] aproveito para emendar com a próxima pergunta, a primeira do Felipe Azuma: “Essa estrutura do quaternário tem alguma relação com as quatro causas de Aristóteles?” Luiz: Olha, eu tentei pensar, mas não consegui achar uma analogia exata entre esses quatro elementos de cada pedido e as quatro causas. Dá para relacionar a recompensa da Bem-aventurança com a causa final, é claro, é o propósito desse pedido alcançar aquela qualidade divina, então até aí é fácil. Dá para imaginar o Dom do Espírito Santo como a causa eficiente, o que opera essa transformação, a obra da restauração do homem é realizada pelo Espírito Santo. Certo... mas e a causa material? É o pedido? Não, o pedido é a expressão da existência de uma causa material. Neste sentido, tem alguma relação, tem uma potencialidade aqui que ainda não está realizada, o pedido de fato expressa essa potencialidade, mas eu não posso dizer que o pedido é a causa material, é uma analogia imperfeita. Renan: Claro. E, na medida em que Aristóteles viu as quatro causas não como um constructo teórico seu, mas como a expressão da própria realidade, aparecerá na oração também, aparecerá em qualquer ação humana.
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Luiz: Sim, tem um pouco dessa estrutura. O pedido não é análogo à causa material, mas tem alguma relação estrutural. A intenção, a qualidade pessoal descrita pela Bem-Aventurança, como o pobre de espírito, num certo sentido é a causa formal, e aí você tem a causa eficiente que realiza plenamente essa forma em você e te faz alcançar o fim, então existe alguma analogia, por causa disto mesmo: Aristóteles simplesmente percebeu que todo e qualquer processo de mudança tem essa estrutura. A mudança de um sujeito que não era pobre de espírito para um sujeito que possui o Reino dos Céus é uma mudança também! Então você poderá procurar ali e achar essa estrutura quaternária de Aristóteles. É um dos elementos da sua genialidade, é daqueles momentos em que você olha e fala: ninguém nunca mais vai conseguir uma análise melhor do que essa, agora isto aqui está assentado. Renan: Perfeito. Aristóteles era um fenomenólogo avant la lettre. Luiz: Com certeza. Renan: Aproveitando que estamos nessa questão dos números, falamos do quatro e etc., obviamente teremos que passar pelo sete, os sete pedidos, e o Felipe Azuma pergunta também se há uma relação entre os sete pedidos e os sete dias da Criação, e parece que nas aulas que o senhor deu sobre o Pai Nosso chegou a começar a falar sobre isso mas acabou não concluindo, e ele quer saber se no livro tem isso explicitado de alguma maneira. Luiz: Aí existe uma relação muito exata, muito perfeita. E acho que uma das primeiras coisas que estudei foi interpretação do Gênesis. Quando pensei: certo, religião é um negócio importante, temos que segui-la, então [me perguntei] “como é que Deus fez o mundo?” O primeiro estágio da Criação de fato corresponde ao primeiro estágio da vida espiritual, e portanto ao primeiro pedido do Pai Nosso, que corresponde também ao primeiro estágio da vida espiritual. E Deus disse Faça-se a luz, e a luz se fez: ora, o que é a luz? A luz, na vida espiritual, é a primeira constatação que sempre te move a algum progresso espiritual, e essa primeira constatação é sempre: “Ih, algo está faltando na minha vida! Há algo de errado com a minha vida!” A primeira luz não é um conteúdo espiritual positivo, mas o diagnóstico de uma privação. É você perceber que está faltando algo, ou que tem algo errado. Como diz o próprio S. Agostinho a respeito das pessoas que procuravam o batismo, comentando com seus diáconos: dificilmente vai te procurar uma pessoa que não tenha sido movida pelo temor de Deus. Aconteceu alguma coisa grave na vida dela, e ela percebeu: “Ih, caramba, eu não tenho controle sobre isto aqui!”
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Renan: Algo análogo ao espanto aristotélico. Luiz: Exatamente. Se não me engano, é Hugo de S. Vítor que menciona esta relação: espiritualmente, a luz do Gênesis, no processo de desenvolvimento espiritual de uma alma, corresponde justamente à luz inicial, ao discernimento inicial de perceber: “Estou privado de uma qualidade fundamental, ou estou privado de Deus”. Não desenvolvi essa analogia no livro, pelo menos não nesta primeira edição, por um motivo muito simples: o propósito daquela seqüência de aulas [que fundamentaram o livro] e o propósito deste livro não é dar um tratamento exaustivo do simbolismo ou da teologia do Pai Nosso; é dar um manual de instruções para a oração. Não é para o sujeito pensar no livro cada vez que ele rezar o Pai Nosso, mas para, [pelo menos] uma vez por semana, refletir sobre o pedido, dar-se conta de qual é o seu conteúdo. Esta é outra diferença que talvez seja inédita: é mais um guia prático, um auxiliar prático, do que um tratado exaustivo do simbolismo. [Se quiséssemos fazer isto,] seria muito interessante acrescentar a comparação com os dias da Criação, porque isso também lança luz sobre o Gênesis. Mas não fiz isso no livro. Talvez numa edição futura acrescente como notas de rodapé. Renan: Inclusive uma das perguntas aqui é se terá notas de rodapé relacionando os sete pedidos com as sete moradas da Santa Teresa d’Ávila, então acha que isso se encaixa na sua explicação. Luiz: Sim, isso também não está nesta primeira edição. Porque, como falei, isto aqui é para você tomar, ler até quase decorar essas estruturas, para, regularmente, uma vez por semana, pensar o quanto você quer cada pedido, o quanto aquele pedido exige de você de sinceridade, o que pode acontecer se Deus atender, etc., para de vez em quando você elevar sua oração às últimas conseqüências. É muito comum a oração virar só um mecanismo habitual para nós. E não tem problema, desde que, de vez em quando, ela seja um ato plenamente consciente e refletido. Se regularmente, de vez em quando, ela for um ato refletido, este ato reverberará nas vezes em que você a repetir mecanicamente. Ecoará nelas. Não pode se tornar sempre mecânico, é isso que não pode acontecer. Renan: É, muitas pessoas se espantam com esse mecanicismo, com esse automatismo em que incorre muitas vezes a oração, e acham que isso pode acabar acarretando numa perda da compreensão profunda do que está por trás ali, como seu livro explica. Mas acho que é um falso dilema, não é, professor? Luiz: É um falso dilema. Como no nosso trabalho cotidiano. Vários componentes do trabalho podem – e devem – se tornar repetições mecânicas
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que não tem que ser pensadas, senão você não consegue trabalhar. O que não pode acontecer é todo o seu trabalho se tornar um processo mecânico e repetitivo. Porque existem momentos cruciais que você tem que cumprir. Para que ele se torne mecânico de maneira eficaz, primeiro tenho que compreendê-lo e assimilá-lo. Ele pode se tornar 90% mecânico, desde que haja uma compreensão de fundo, e que 10% nos momentos cruciais se torne um processo plenamente consciente. Com a oração a mesma coisa. Renan: É, acho que o pessoal acaba hoje em dia talvez achando que a oração seja um momento extraordinário (no sentido temporal) e se esquecem dessa dimensão orgânica da própria religião. Luiz: Exatamente. É claro que a oração é um momento privilegiado, porque é o momento em que estou lidando com Deus. No meu trabalho, estou lidando com pessoas, ou com coisas, ou com idéias. Mas a religião não pode ser um momento – a religião tem que ser a seiva da sua vida. E para que ela se torne a seiva da sua vida, é preciso que ela ecoe em numerosos atos quase mecânicos. Ela não pode se reduzir a esses atos, mas tem que ecoar neles, repetir-se neles. Renan: Tanto é que existe até um negócio chamado oração perpétua, ou oração do coração. Luiz: Sim, se o sujeito fizer a oração perpétua, muitas vezes estará apenas repetindo aquelas palavras. Só não pode o tempo todo fazer isso. Renan: E mesmo a oração do Pai Nosso dita num momento de distração tem valor, não se perde. Luiz: Claro que ela tem valor. Primeiro porque as palavras são reveladas, o discurso é divino. Se eu pintar esse discurso na parede, a parede não entende o discurso, não ouve o discurso, não ficará santa, mas se eu pintá-lo na parede já é um ato importante, já é um pequeno grau de sacralização da vida. Se você tem um quadro com uma pequena passagem do Evangelho e nunca lê aquele quadro, mas o pôs na sua vida, isso marcou a sua ambiência. Do mesmo jeito, por mais que seja mecânica a oração, porque ela é um discurso sagrado ela trouxe algo do discurso divino para minha vida. E, além disso, a vida consiste muitas vezes em criar oportunidades para que coisas boas aconteçam. Você não pode estar o tempo todo realizando coisas boas e alcançando bens, mas você pode o tempo todo estar criando oportunidades para você. Então, o sujeito tem o hábito de rezar, mesmo que mecanicamente, durante anos e anos, e de repente numa dessas orações mecânicas vem uma inspiração; porque ele estava fazendo aquilo, porque ele estava repetindo aquelas palavras.
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Renan: Assim você está recheando sua vida de mais oportunidades para ter esse contato, essa inspiração. Luiz: Exatamente. E grande parte da vida é criar oportunidades. Renan: E, justamente – fazendo um gancho com o que eu falei na primeira pergunta, naquele imenso preâmbulo que fiz –, este livro contém aquilo que o Tales [irmão do autor] me falou que se tentou fazer neste texto, que foi manter o estilo das suas aulas, capacitando-nos a ler a obra e imaginar o senhor falando, com aquela presença mais humana, e não meramente exercendo uma reflexão teológica abstrata, mas com alguém oferecendo um conselho mesmo. Luiz: Esse tom é muito bom, justamente por dois motivos. Um, é para ser mais um guia prático do que um amplo aprofundamento teológico. Vamos fornecer alguma bibliografia, e o leitor poderá escolher se quer desenvolver mais o tema, seja da teologia mística, seja da teologia racional, seja da teologia moral, com este e aquele autor, todos tratando disso amplamente. Se você quiser transformar o livro num estudo, você pode, mas eu quero que você leia isto aqui com o intuito de parar e lembrar: “O que é que eu vou pedir agora? Por que é que eu vou pedir? Eu quero realmente pedir? Quanto eu quero?” Então esse tom menos formal é muito importante. Existem momentos para a formalidade. Se fôssemos realizar uma profunda análise teorética do conteúdo do Pai Nosso, então a linguagem formal seria excelente para isso, e praticamente indispensável. Mas se você só quer agora que [o livro] infunda um pouco essa atitude na sua oração, para que ela fique mais real e mais viva neste momento, então uma pessoa falando com você é muito importante. Renan: Um tom mais pedagógico. Luiz: Exatamente. Renan: Que era o normal na tradição cristã. Luiz: Sempre foi o normal. Se você tomar os textos e os discursos dos santos, o tom formal só surge com o desenvolvimento teorético de uma questão muito universal que tem que ser tratada de modo muito preciso. Mas quando ele quer que você reze e faça isto muito bem, aí o tom muda completamente. Renan: Engraçado, parece que houve mesmo essa cisão entre a linguagem mais prática da vida religiosa e essas alturas que os estudos teológicos hoje em dia buscam atingir, e que isso reflete o próprio afastamento da vida
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religiosa em relação às verdades eternas. Parece que a religião fica se transformando mesmo num caminhar nas nuvens. Luiz: Exatamente. Podemos – e devemos – lembrar do S. Tomás de Aquino teólogo e filósofo, mas podemos – e devemos – lembrar do S. Tomás de Aquino compositor de hinos. No hino ele não fará uma exposição formal, com desdobramento perfeito, mas fará um negócio que te dá a síntese daquela realidade e que te faz sentir aquilo vivamente naquele momento. Renan: Exato. E eles foram fazer essas análises teológicas, como fizeram na escolástica, séculos e séculos depois de um desenvolvimento da linguagem teológica. Então, entrando em detalhes mais práticos mesmo, vamos para a linguagem da oração do Pai Nosso. O Luís Pereira tem uma pergunta que também é minha, que é sobre essa celeuma que muitos católicos tradicionalistas fazem em torno da mudança de dívidas para ofensas no pedido “Perdoai as nossas dívidas, assim como nós perdoamos aos nossos devedores”, porque alguns consideram que a mudança para “quem nos tenham ofendido” não é banal, mas modifica o próprio sentido da oração, que pode prejudicar muitas vezes a intenção da pessoa que está orando. Luiz: Pessoalmente, considero essa mudança gravíssima. É evidente que Deus sonda os rins e corações, então Ele conhece as pessoas quando elas estão rezando, mas essa é uma mudança muito grave. Considere a cosmovisão cristã. Como nós pensamos que é o universo? O que é o homem? Quando Deus criou o homem, Adão já tinha uma dívida para com Deus, mas ele não tinha nenhuma ofensa. Ele não poderia dizer para Deus “Perdoai as minhas ofensas”. “Que ofensas? Eu não cometi nenhuma ainda!” Mas ele já podia dizer para Deus “Perdoai as minhas dívidas”, porque já tinha uma dívida para com Deus. Então, a dívida, por assim dizer, se refere a um estrato ontológico mais profundo do ser humano do que a ofensa. Mais ainda: também em relação ao próximo. Porque Deus nesse pedido faz a ligação entre o amor a Ele e o amor ao próximo, relacionando os dois mandamentos supremos: Perdoai as nossas dívidas é uma relação com Deus, assim como nós perdoamos aos nossos devedores é uma relação com o próximo. E de novo a diferença entre dívida e ofensa é muito importante. Porque perdoar uma ofensa é menos do que perdoar uma dívida. Primeiro porque as ofensas são mais excepcionais, são mais raras. Dívidas são mais comuns. Você faz alguma coisa boa para alguém, e esta pessoa deve amizade de gratidão para você. Nós devemos amor de gratidão aos pais, é uma
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dívida que nós temos. Cada vez que eles nos perdoam, Deus perdoa-os de alguma coisa, porque nós como filhos somos devedores. Os pais podem não ter dado uma educação perfeita, então você perdoa essa dívida como filho. Não é uma ofensa. [Outro exemplo:] o matrimônio é uma acumulação de dívidas de um para com o outro. “Puxa, eu devia ter sido assim para com minha esposa, ela devia ter sido assim para comigo”. Não foi uma ofensa, mas uma dívida. E é o acúmulo dessas dívidas que arruína a nossa vida, não das ofensas. As ofensas que os outros cometem contra nós raramente arruínam a nossa vida. Não se trata de dívidas apenas no sentido financeiro, porque nem os gregos nem os romanos pensavam em dívidas apenas financeiramente, pensavam em dívida de amizade, dívida de nobreza, do que é devido, que vem de dever, incluindo todos os deveres. É muito mais profundo, muito mais amplo. Se eu peço para Deus perdoar as dívidas, estou ganhando muito mais do que se estiver só pedindo para ele perdoar minhas ofensas. E se eu aprendo a perdoar no meu próximo as dívidas, estou aprendendo a perdoar muito mais do que se estiver aprendendo a perdoar só as ofensas. Renan: E tem uma carga psicológica em ofensas hoje em dia que pode levar o fiel até a pensar em defeitos muito superficiais do próximo. Luiz: Exatamente. E ofensas envolve uma imoralidade, um erro, um vício. Dívidas não. Se eu perdoar só as ofensas da minha esposa, e não as dívidas, e vice-versa, nós terminaremos divorciando. Mas se perdoarmos as dívidas um do outro, nós permaneceremos juntos a vida toda. Veja bem, não sou apegado a picuinhas de tradução, mas nesse caso considero que houve uma queda de grau. Renan: Perfeito. E a longo prazo pode ser algo realmente deletério. Luiz: Se em duas, três ou quatro gerações só se ouvir a oração assim, o sujeito não saberá mais que existe uma questão de dívida, que mesmo sem ofender ninguém você pode dever algo a essa pessoa. Que mesmo se você nunca tiver ofendido a sua esposa, os seus pais, os seus irmãos, você ainda pode dever algo a eles. Renan: Perfeito. E, ainda nessa questão dos termos utilizados na tradução, o Elpídio Fonseca pergunta: “Qual é o sentido de não nos deixeis cair em tentação do Pai Nosso, que parece não ser a tradução da versão em latim, ne nos inducas in tentationem,” – que significa não nos leves à tentação, e não deixeis cair, isto é, tem um sentido positivo [e não negativo] – “e qual seria o texto
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correspondente na koiné, e no que isso influencia nessa mudança de significado? No português perdemos alguma coisa também?” Luiz: São várias perguntas embutidas. É uma pergunta muito boa, pelo jeito que é formulada. A direção que ele dá já é inteligente. Toda vez que você tiver uma dúvida sobre a Escritura, tente procurar o que foi dito exatamente, na língua original, para ver se algo foi perdido. Embora não nos leves à tentação seja uma tradução mais literal, mais exata do latim, neste caso acho que é favorável o modo como foi traduzido [em português], por motivos bastante simples: primeiro, não muda gravemente o sentido. Os termos-chaves estão lá: tentação, algo grave de que não quero me aproximar. É certo que o texto latino explicita algo que é mais interessante que o português, não nos leves, não nos aproximes da tentação, enquanto no português diz: quando eu chegar na tentação, não me faça cair nela. Acho que o texto latino é mais prudente. Isso se dá um pouco por causa do sentido mesmo da palavra tentação na Bíblia. Um breve parêntese: nós tendemos – e isto, talvez, seja uma das mais graves partes da herança maldita do Iluminismo – a pensar na religião em termos puramente morais, de bondade, sentimentos, valores, e coisas assim, e esquecemos muito a sua profunda e ampla dimensão intelectual. A visão que temos da religião é a seguinte: você tem o universo da inteligência de um lado, e o universo moral do outro, em que o ápice é a religião. Devemos contrastar essa visão com a visão tradicional expressa pelo brilhante Hugo de S. Vítor: a religião é a síntese e o ápice de toda a atividade espiritual humana, e com atividade espiritual humana ele considerava todo o trabalho da inteligência, da vontade livre, do amor à beleza, e ele vai mais longe que todo mundo e inclui até as artes mecânicas – fazer tecido, curar pessoas, etc.; a religião é como que o ápice e a síntese de tudo isso daí, tudo isso faz parte do mesmo edifício. Essa é a visão tradicional cristã, e o Hugo de S. Vítor a expressa claramente. Tentação para nós [hoje em dia] é o seguinte: é estar diante de uma coisa gostosa demais, à qual minha vontade não consegue resistir. Existe esse elemento, mas ele não era enfatizado nas Escrituras e nem era a intenção fundamental desse pedido. Se quisermos saber mesmo, vamos procurar no grego o que estava dito ali. A palavra para tentação no Pai Nosso é peirasmós. É uma palavra interessantíssima. Vamos ver as palavras que na língua portuguesa derivam dessa mesma raiz: experiência, empírico, perigo, etc. A palavra-chave no grego para entender peirasmós é empeiría, que significa literalmente experiência – mas com uma conotação e uma ênfase muito específicas do pensamento
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e da cultura gregas. Significa mera experiência sem compreensão profunda. Empeiría era contrastada com theoría. Hoje em dia temos uma mentalidade bastante utilitarista, então tendemos a pensar “isso é só uma teoria, e na prática a coisa é outra”, com essa supervalorização da prática, do conhecimento dos macetes e pouco da compreensão geral. Teoria hoje em dia significa um palavreado formal e complicado mas que não tem nenhuma aplicação prática. Na mente do grego, era outra coisa que se pensava. Para o grego, empeiría significava conhecer na prática certas relações mas não ter uma compreensão dos mecanismos em questão. Um exemplo muito simples: nós estamos aqui no computador, e eu tenho um conhecimento empírico de que, quando movo o mouse na minha mesa, move-se uma flechinha na minha tela; esta é uma relação que eu conheço. Mas esse é um conhecimento puramente empírico, eu não tenho a menor idéia de qual é o mecanismo causal em jogo. Eu sei que tem uma eletricidade que vai do mouse para o computador, do computador para a tela, etc. [Mas] como um movimento se transforma no outro é algo que eu ignoro completamente. Neste caso, o conhecimento empírico me é favorável, porque eu só preciso saber isso para usar o mouse. Mas existem certas ocasiões em que você possuir um conhecimento empírico e não possuir a teoria é muito grave. Porque uma relação aparente e imediata pode te induzir a uma ação com um resultado completamente imprevisto para você. Renan: Sim, como um sujeito que sabe utilizar um bisturi, mas não conhece nada de anatomia. Luiz: Exatamente. Um outro exemplo: um conhecido meu, que é piloto de corridas amador, explicou-me uma coisa que me espantou. [Normalmente,] se você está na estrada, ou na rua, e tem de fazer uma curva, você desacelera. Ele me disse que se fizer isso numa corrida, você morre. Provavelmente todo motorista tem o conhecimento empírico: na hora de fazer a curva, tem que desacelerar. Mas ele disse que, por causa do modo pelo qual os carros de corrida são construídos, se você desacelerar, começará a derrapar e não terá mais o controle dele de novo. Você tem que, pelo contrário, acelerar um pouco, porque isso mudará o centro de gravidade do carro, etc., e ele deu o restante da explicação. Você tem um caso em que o mero conhecimento empírico pode ser fatal. Empeiría significa então essa percepção de uma relação entre dois ou três fenômenos que é pura e simplesmente concreta, mas você não sabe o que causa aquela relação, e não sabe qual será a conseqüência última disso. [Já] o sujeito que tinha theoría era o que tinha compreensão dos mecanismos
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em jogo e era capaz de prever quando aquelas relações empíricas valeriam e quando elas simplesmente se transformariam completamente. A palavra peirasmós significa teste, prova, tentação, dificuldade. Uma tentação é um teste em que o conhecimento das relações práticas e a ignorância do mecanismo de fundo pode arruinar a sua vida. Uma tentação é algo que no microcosmo do seu conhecimento faz com que algo pareça bom, mas no macrocosmo da compreensão teorética mostraria para você que isso que está parecendo bom é [na verdade] ruim. Então, existe um forte componente intelectual na tentação. Renan: Acaba sendo uma decisão intelectual, no fim das contas. Luiz: Um exemplo típico das nossas gerações: é comum você ouvir das pessoas o seguinte argumento: “Se Deus não quisesse que [você] dormisse com todas as mulheres bonitas que se oferecem [para você], por que Ele as faria tão bonitas? E por que faria elas se oferecerem [para você]?” Qual a questão aqui? Você está percebendo uma relação empírica, o conhecimento empírico da razão da existência dessa beleza feminina: há uma mulher linda se oferecendo para você, e quando você olha para essa beleza, a sua imaginação percebe que se você abraçar isso, se você beijar isso, será muito melhor. E será mesmo. Mas não é uma compreensão real da situação total. Você não sabe realmente quais serão as conseqüências desse ato no conjunto total da sua vida ou da vida da mulher. A tentação surge quando essa visão empírica ou parcial ofusca a sua ignorância teorética. E aí você age com base nesse mini-conhecimento e cai vítima da sua imensa ignorância. Então, a palavra tentação é perfeitamente adequada para isso. Tentar significa justamente agir com base num conhecimento menor sabendo que existe uma ignorância de fundo maior. Renan: Sim, [na tentação] você está, como os americanos dizem, guessing. Você está tentando. Se você soubesse o que está se passando ali profundamente, você não estaria tentando. Luiz: Exatamente. Ou essa solução [é que] está me tentando, está chamando essa pequena parte de mim que conhece uma certa relação e me pondo, de repente, num beco sem saída. Quando você tem uma compreensão profunda de algo, você não é tentado. Quando [por exemplo] você sabe que, se apertar este botão, agora o computador desligará. Mas o que eu quero fazer é conversar com o Renan, e eu sei que desligará, então eu não sou tentado a desligar. Quanto mais você sabe o que acontecerá, menos existe o elemento de tentação.
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Então, a tentação não ocorre pura e simplesmente porque se trata de um objeto agradável ou desejável, mas porque você não sabe o que acontecerá de ruim se você se relacionar com o objeto dessa maneira. E você sabe que alguma coisa boa ou gostosa vai acontecer se fizer isso. Renan: Sim, neste caso aqui, por exemplo, se eu estivesse tramando alguma coisa [contra o senhor], o senhor desconhecendo isso estaria caindo em tentação, porque não estaria contemplando todas as dimensões deste fato aqui. Luiz: Exatamente. Com isso, o pedido não me deixeis cair em tentação é um pedido muito mais amplo agora: “Meu Deus, não me ponha em situações que a minha inteligência não pode compreender e que eu não posso julgar para agir direito. Só me ponha em situações em que o Senhor ilumina a minha inteligência para que eu possa agir direito e decidir direito. Afaste-me de situações em que só tenho empeiría e não tenho theoría.” “Preserve-me dessas situações não apenas no campo moral, mas, por exemplo no campo financeiro” – onde caímos em situações assim o tempo todo! No campo das relações pessoais, em tudo. Quando uma situação crucial em que o meu conhecimento empírico, aliado à minha ignorância teorética, pode ter conseqüências graves para a minha vida ou a de um outro, isto é uma tentação. Evidentemente, no campo moral a maior parte das vezes a tentação é grave, porque é um campo crucial, mas não é o único em que isso acontece. Renan: Acaba que o pedido de não cair em tentação então se converte num pedido para que eu tenha plena posse da minha inteligência. Luiz: Isso, [para que Deus] só me ponha em situações em que minha inteligência seja suficiente para discernir e vencer. Renan: O que significa a mesma coisa que a plena posse da liberdade humana, não é? Luiz: Significa exatamente isso. Só me ponha em situações em que eu seja plenamente livre. Não me ponha em perigo. Um perigo é algo que eu sei que é hostil, mas que não sei de onde vem, como agirá, qual sua capacidade de ação. Renan: E esse pedido envolve, em certa medida, a esperança de que Deus também te auxilie inclusive nesses momentos em que a sua inteligência está bloqueada por essas limitações? Luiz: Sim. Deus tem inúmeras maneiras de agir, Ele pode não te por na situação, ou pode iluminar sua inteligência na situação. Ele pode pensar que essa é uma situação que você pode superar. “Porque você pediu não nos dei-
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xeis cair em tentação, Eu iluminarei sua inteligência, e a situação não será uma tentação”. E você saberá claramente qual a melhor ação. Muitas vezes as pessoas falam “mas você ter o conhecimento de uma situação não te livra da tentação”, e aí elas estão usando conhecimento num sentido inadequado. O que elas querem dizer é o seguinte: uma noção abstrata, um conceito abstrato, não é causa imediata e direta de ação, e portanto é insuficiente para te livrar de uma situação difícil. O conceito de coragem não te tornará corajoso numa determinada situação. É verdade, todos os educadores em todos os tempos sabem disso. A sua inteligência puramente abstrata move a sua vontade por meio da imaginação. O que você precisa é uma imagem da ação corajosa naquele momento, que seja imitável. Por exemplo, se você está com fome, o conceito abstrato de alimento não te ajudará de maneira nenhuma. Onde está o alimento? Isto não é dado pelo conceito abstrato. Mas se de repente a sua imaginação reproduzir o que está dentro da geladeira, ou a imagem das pizzas da pizzaria para a qual você telefona, esta imagem pode determinar sua ação. Mas essa imagem é parte do conhecimento. A compreensão teorética de uma situação implica [também] numa capacidade de imaginá-la adequadamente. Aí o conhecimento te livra da tentação sim! Você não sente tentação! É um erro pensar que a tentação seja uma fraqueza da vontade, e que deve ser combatida volitivamente. Não, é uma fraqueza da inteligência, é uma ignorância. Renan: Perfeito. Essa compreensão da tentação que o senhor explicitou traz uma percepção do problema que é muito mais ampla e muito mais profunda do que se imagina hoje em dia. Formamos uma imagem da tentação meramente volitiva e moral, às vezes até meramente ética – ainda mais aqui no Brasil. Luiz: É, é simplesmente a imagem de uma coisa que é gostosa, que tenho o desejo de fazer mas não a força para resistir. Isso é verdade, acontece muitas vezes – mas por que que acontece? Acontece porque eu tenho alguma idéia de que Deus mandou não fazer aquilo, mas não tenho a menor idéia do porquê. Então eu olho a situação e não consigo ver nela uma razão real para não agir do jeito errado. Só consigo ver nela uma razão para agir do jeito errado. Isto é uma tentação. Se você visse o que está por trás, é evidente que você não faria. Você nunca, nunca faz o que sabe plenamente que vai dar errado. Se eu colocar o dedo na tomada, levarei um choque, não tenho dúvida. Mas e a criança? Se você diz que ela levará um choque, ela pergunta: “O que é um choque?” [Por outro lado,] a criança sabe que descobrir uma coisa que você não conhece é uma satisfação. A criança é um curioso por natureza, um macaquinho por natureza. Todo mundo sabe a satisfação de
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descobrir uma novidade. Então, se você falar para ela “não ponha o dedo na tomada”, você criou uma situação de tentação. “Tem alguma coisa lá que eu não sei o que é”, este é todo o conhecimento que a criança tem da situação. E ignorância teorética: ela não sabe o que é eletricidade, o que é choque, etc. O pessoal acha que para a criança “o proibido é gostoso”! Não, é que você criou uma situação de tentação [intelectual]. A curiosidade da experiência nova é uma motivação. E a ignorância acerca do que vai acontecer? Bem, não é obstáculo nenhum. Renan: Perfeito. E enquanto o senhor falava, eu estava imaginando o quanto isso se conecta com o ensinamento do seu pai, o Olavo de Carvalho, sobre a questão da presença. Porque o sujeito que está diante do objeto (como ele fala) em sua inteireza, na sua concretude, (como dizia também o Mário Ferreira dos Santos), está justamente se esforçando para não cair em tentação, na medida em que se coloca diante da solidez do real, com todas as coordenadas e dimensões que, naquele fato, naquele momento, estão influenciando a sua tomada de decisão. Por outro lado, ao captar só uma forma abstrata, ele está caindo em tentação, porque está captando só uma parte, uma dimensão daquele fato. Luiz: Exatamente. É evidente que o sujeito num estado de presença total não é tentado nunca. Como não sou tentado a fazer aquilo que sei de maneira imediata, aquilo que eu sei, de saber, de sentir o sabor da coisa na minha cabeça. Quando dou uma martelada no meu próprio dedão, dói, eu sei, tenho o sabor da coisa na minha inteligência, então não sinto a tentação de fazer isso. Renan: Isso traz realmente a dimensão existencial da tentação. Interessante é que o esforço do seu pai em conseguir fazer com que o sujeito atente-se para essa dimensão densa das coisas, da realidade, é exatamente a mesma experiência que o senhor está descrevendo na idéia de [evitar a] tentação. Quer dizer, tornar-se inteligente, no fim das contas, parece o esforço de se livrar da tentação. É a dimensão intelectual da religião. Luiz: É claro que é! Então, se você juntar esse contraste cognitivo com a gravidade existencial, é uma tentação. É evidente que é com muita vontade que fazemos esse pedido para Deus. Renan: E na medida em que os escritores da Patrística e os apóstolos fomentavam sempre em seus interlocutores essa necessidade da sua inteligência, do seu espírito contemplar desde cima todas essas circunstâncias da vida, da alma humana, da experiência, eles alimentavam essa verdadeira
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inteligência. Hoje em dia há essa distinção entre vida religiosa e vida intelectual... Um negócio que eu aprendi muito com as suas aulas é justamente o contrário: a vida intelectual é a vida religiosa nesse sentido! Luiz: Sim! É evidente! Toda vez que sua alma entra em contato com a verdade, com a bondade, com a beleza – quando você entende uma verdade, p. ex., estudando química, então você entende algo sobre a estrutura daqueles elementos, ou se você está estudando mecânica de automóveis e você entende alguma correlação, etc. –, toda vez que você conhece uma verdade, isto é uma atividade espiritual. Toda vez que você contempla uma beleza e é preenchido e enriquecido por ela, e você sente aquela infinitude da alma, isto é uma atividade espiritual. Toda vez que você é tocado pela bondade, pela grandeza moral, isto é uma experiência espiritual. O que quero dizer com experiência espiritual? São os princípios superiores da sua alma que estão em jogo, que estão em atividade ali. É o que há de melhor na sua alma que está em atividade ali. E a religião diz simplesmente o seguinte: “não cometa o erro de dedicar toda essa atividade superior apenas a questões que só são relevantes para esta vida temporal.” [A religião] está aqui para nós não cometermos um engano fácil de cometer. Por quê? Porque as questões temporais são muito importantes para nós aqui agora. Mas elas não serão para sempre. E existem questões que serão importantes para sempre. Então, a religião vem como coroa da atividade intelectual e espiritual do homem, de conhecer a verdade, amar o bem e fruir a beleza. Os grandes santos que deram uma visão de conjunto e explicaram a cosmovisão cristã (porque nem todo santo tratou deste assunto) falam o seguinte: o que opera na contemplação estética é a mesma coisa que opera na contemplação de [p. ex.] S. João da Cruz. São as mesmas faculdades que estão operando do mesmo jeito. Quando você tem discernimento intelectual no estudo, é a mesma coisa que quando você tem discernimento espiritual lá na religião – é a mesmíssima coisa. E todos eles falam que algum treinamento dessas faculdades antes de você dedicá-las à religião é indispensável para que você tire proveito dela. Eles consideravam tudo isso parte da religião. Tudo que te leva a conhecer a verdade, amar o bem e gozar da beleza faz parte da religião. Renan: Como diz o título daquele livro do S. Boaventura, Da redução das artes à teologia. Luiz: É justamente disso que ele está falando! Aliás, um livro que é quase que diretamente inspirado em Hugo de S. Vítor. A estrutura que ele utiliza ali é diretamente tirada de lá.
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Renan: Quando entendemos isso, caem escamas dos olhos, professor. Nós imaginamos o santo como o “cara bonzinho”, mas, nesse sentido em que o senhor está explicando, o santo na verdade é o homem mais inteligente! Luiz: Sim, exatamente! É o homem que tirou o máximo proveito possível da sua inteligência objetiva e da sua vontade livre. O que a religião diz é isso: olha, se você se dedicar ao estudo de todas as ciências, de todas as artes, de todas as técnicas, você ainda assim não terá tirado todo o proveito que a sua inteligência objetiva e sua vontade livre te oferecem. Enquanto você não dedicar algo disso a este objeto supremo que é Deus, e a como você deve se relacionar com Ele, você ficou abaixo do nível esperado. E se você não for uma pessoa muito inteligente, de muita firmeza moral, de muita sensibilidade estética, então tome pelo menos a religião, dedique tudo o que você tem de espírito a esse objeto essencial. Mas se você possui muito [daquelas faculdades], terá que usar para outras coisas, porque sem isso você nem conseguirá captar a religião e tirar todo o proveito dela. Temos que lembrar que foram os monges que preservaram a literatura pagã. Não foram os “clubes de paganismo”, enquanto os monges queimavam a literatura clássica! Pelo contrário, os monges eram os únicos que pensavam “nós temos que guardar isso daqui, porque se perder isso aqui, perderemos tudo”. Porque eles consideravam isso parte do edifício espiritual do homem. Renan: Como escadas, não é, professor? Luiz: Exatamente. Em parte também queríamos lembrar esse aspecto no livro, e em nossas aulas em geral sobre religião, para tentar resgatar o elemento intelectual da religião, da religião como sendo justamente o instrumento que Deus ofereceu ao homem para que ele tire o máximo proveito da sua inteligência objetiva e da sua vontade livre. A sua inteligência foi feita para o conhecimento da realidade como um todo, mas ela perderá essa função se não tiver o mínimo conhecimento, o mínimo de penetração acerca do elemento crucial da realidade, que é a sua Fonte. O que não implica em nenhum desprezo por alguém que tenha contribuído intelectualmente ou artisticamente ou moralmente em qualquer área sem nunca mencionar a religião. Como falei, os monges preservaram a literatura pagã! Eles viam que isso refinava sua inteligência, sua vontade, sua imaginação, e tudo isso é indispensável para que você tenha uma vida religiosa plena – portanto, faz parte da religião. Para os ouvidos de um Hugo de S. Vítor, contrastar fé e razão [seria absurdo, ele reagiria dizendo]: “do que você está falando, meu filho?! Não entendi qual é o seu
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problema. Uma coisa é parte da outra! Você não está entendendo como é o ser humano, como é a inteligência humana.” Renan: Sim, [o problema] é colocar a inteligência ao lado, e não acima. Luiz: Exatamente! Renan: Muito bom. Acho que esse é o tipo de explicação que certamente veremos no livro, tornando as coisas mais claras nesse sentido. Estamos falando aqui de homens mais concretos, então a leitura [também] tem que ser mais concreta. Luiz: Tem que ser mais concreta. O que você está pedindo aqui [na oração]? Você tem que se perguntar o quanto você realmente deseja isto. Quando estou só cumprindo uma ordem e quando isso é um pedido mesmo. Você não pode fazer isso enquanto não entender o que está pedindo. Renan: E é uma leitura como os antigos faziam, não é? Uma leitura densa. Luiz: Sim, sempre fizeram assim. Sempre uma parte da Escritura é explicada por outra. É a costura dessas diversas partes que ilumina [o sentido]. Renan: A própria Escritura tem essa característica. E por isso ela é Sagrada. Luiz: Eu acho que é S. Agostinho que menciona esse aspecto da Escritura: Deus a fez assim porque você é dotado de uma inteligência ativa. Se Deus explicar para você direitinho o manual de instruções da vida, você não cumprirá. Você olhará e dirá: “ah, está bem, mas eu não quero!” Ele preenche a Escritura de mistérios e descontinuidades para que você investigue. A resposta que você descobriu, que você conquistou, é sua, e você se agarrará a ela. Quando temos 15 anos, nossos pais nos falam, “você vai cometer este, este, este erro. Não os cometa, porque você só se dará mal.” Aí você passa dez anos cometendo aquilo, para dez anos depois chegar à conclusão: “Eu não devia ter feito isto, isto, isto”, exatamente como você foi avisado dez anos antes. Renan: É sempre assim mesmo. Luiz: Mas agora você aprecia a resposta. Renan: Agora você a tem em si. Luiz: Exatamente. Renan: Perfeito. O papo está excelente, mas acho que já podemos encerrar. [Por último, ainda] o pessoal me pergunta também sobre os próximos projetos do senhor. Luiz: Olha, não tenho uma intenção explícita de escrever nada, mas houve uma pergunta que alguém fez sobre os doze frutos do Espírito Santo, e
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este é um assunto ao qual eu gostaria de voltar com certeza, e que pode dar um livro também, para o sujeito notar qual desses frutos lhe é oferecido com mais freqüência, com mais naturalidade, e portanto o que ele pode fazer, como ele pode tirar proveito disso, etc. Provavelmente farei mais um ou dois cursos sobre isso, e aí talvez transformarei num livro. Renan: É, aquela amostra do curso sobre os doze frutos do Espírito Santo deixa um “gostinho de quero mais”. É muito profundo, já existe gente especulando analogias com os doze signos e querendo saber no que isso implica... Luiz: Claro que existe analogia, como existe analogia entre os pedidos do Pai Nosso e os sete planetas da astrologia tradicional. E essa analogia é útil para o sujeito que fará exegese da Escritura. A característica da Escritura – os santos todos insistem nisto – é o fato de que ela é uma narrativa simbólica, nela as coisas significam outras coisas – não somente as palavras significam, mas as coisas significam, e o fazem com base no simbolismo natural. Mas [o simbolismo] tem muito pouco impacto num livro que quer que você medite sobre a oração para pedir conscientemente a Deus. Então, você tem os dias da Criação, com os sete signos, com as escalas musicais... mas na hora em que reza, você não está pensando nisso, e nem vai te ajudar. Se fosse um livro sobre o simbolismo do Pai Nosso, e um livro sobre o septenário do Pai Nosso, certamente teria que incluir exaustivamente relações desse tipo, mas não é essa a finalidade da obra. Uma relação que talvez fosse mais interessante fazer seria a dos pedidos com os pecados capitais. Ocorre-me também uma relação com os terraços do Purgatório de Dante [na Divina Comédia]: o primeiro pedido com o terraço mais alto, o segundo com o terraço imediatamente inferior, etc., e cada um desses terraços está ligado a um dos pecados capitais, e me parece que há uma conformidade entre uma coisa e outra – mas é algo que eu mesmo nunca estudei muito. Renan: Sete virtudes... há muitos “setes” para fazer relações. Tenho até um amigo que perguntou sobre o dez, porque são dez frases no Pai Nosso... enfim, o simbolismo numérico, como o senhor deixa bem claro, penetra toda a Escritura. Luiz: Sim, o simbolismo é muito importante quando se quer investigar e tentar compreender uma determinada passagem da Escritura, então ele é indispensável. A Escritura é eminentemente simbólica. Quando diz, p. ex., que ali tinha uma árvore, não é só de uma árvore que ela está falando. Que árvore era? Por que escolheu essa? E aí você tem que conhecer o simbolismo natural. Mas num guia prático é menos relevante. Pelo contrário, pode só atrapalhar, só te distrair naquele momento.