Sobre a Profecia
Santo Tomás de Aquino
Sobre a Profecia Edição bilíngüe
Tradução:
Luiz Astorga
Sobre a Profecia, Santo Tomás de Aquino © Editora Concreta, 2017 Título original: Quaestiones disputatae de veritate (q. 12) Os direitos desta edição pertencem à Editora Concreta Rua Barão do Gravataí, 342, portaria – Bairro Menino Deus – CEP: 90050-330 Porto Alegre – RS – e-mail: contato@editoraconcreta.com.br Editor: Renan Martins dos Santos Coordenador editorial: Sidney Silveira Tradução: Luiz Astorga Revisão: Emílio Costaguá Capa & Diagramação: Hugo de Santa Cruz
Ficha Catalográfica Tomás de Aquino, Santo, 1225?-1274 T655s Sobre a Profecia [ed. eletrônica] / tradução de Luiz Astorga, edição de Renan Santos. – Porto Alegre, RS: Concreta, 2017. 208p. :p&b ; 16 x 23cm ISBN 978-85-68962-28-2 1. Teologia. 2. Profecias. 3. Filosofia medieval. 4. Metafisica. 5. Cristianismo. 6. Catolicismo. 7. Espiritualidade. I. Título. CDD-231.745
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer meio.
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C ol eç ão Esc ol á s t ic a
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oram características marcantes do período escolástico a elevação da dialética a um cume jamais superado – antes ou depois, na história da filosofia –, o notável apuro na definição de termos e conceitos, a clareza expositiva na apresentação das teses, o extremo rigor lógico nas demonstrações, o caráter sistêmico das obras, a classificação das ciências a partir de um viés metafísico e, por fim, a existência duma abóboda teológica que demarcava a latitude e a longitude dos problemas esmiuçados pela razão humana, os quais abarcavam todos os hemisférios da ordem do ser: da materia prima a Deus. O leitor familiarizado com textos de grandes autores escolásticos, como Santo Tomás de Aquino, Duns Scot, Santo Alberto Magno e outros, estranha ao deparar com obras de períodos posteriores, pois identifica perdas de cunho metodológico que transformaram a filosofia num enorme mosaico de idéias esparzidas a esmo, nos piores casos, ou concatenadas a partir de princípios dúbios, nos melhores. A confissão de Edmund Husserl ao discípulo Eugen Fink de que, se pudesse, voltaria no tempo para recomeçar o seu edifício fenomenológico serve como sombrio dístico do período moderno e pós-moderno: o apartamento entre filosofia e sabedoria – entendida como arquitetura em ordem ao conhecimento das coisas mais elevadas – acabou por gerar inúmeras obras malogradas, mesmo quando nelas havia insights brilhantes. Constatamos isto em Descartes, Malebranche, Espinoza, Kant, Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, Husserl, Heiddegger, Ortega y Gasset, Wittgenstein, Sartre, Xavier Zubiri e vários outros autores importantes cujos princípios filosóficos geraram aporias insanáveis, verdadeiros becos sem saída.
Na prática, o filosofar que se foi cristalizando a partir do humanismo renascentista está para a Escolástica assim como a música dodecafônica, de caráter atonal, está para as polifonias sacras. Em suma, o nobre intuito de harmonizar diferentes tipos de conhecimento foi, aos poucos, dando lugar à assunção da desarmonia como algo inescapável. As conseqüências desta atitude intelectual fragmentária e subjetivista, seja para a religião, seja para a moral, seja para a política, seja para as artes, seja para o direito, foram historicamente funestas, mas não é o caso de enumerá-las neste breve texto. Neste ponto, vale advertir que a Coleção Escolástica, trazida à luz pela editora Concreta em edições bilíngües acuradas, não pretende exacerbar um anacrônico confronto entre o pensar medieval e tudo o que se lhe seguiu. O propósito maior deste projeto é o de apresentar ao público brasileiro obras filosóficas e teológicas pouco difundidas entre nós, não obstante conheçam edições críticas na grande maioria das línguas vernáculas. Tal lacuna começa a ser preenchida por iniciativas como esta, cujo vetor pode ser traduzido pela máxima escolástica bonum est diffusivum sui (o bem difunde-se por si mesmo). Ocorre que esta espécie de bens, para ser difundida, precisa ser plantada no solo fértil dos livros bem editados. No mundo ocidental contemporâneo, plasmado de maneira decisiva na longínqua dúvida cartesiana, assim como nos ceticismos de todos os tipos e matizes que se lhe seguiram; mundo no qual as certezas são apresentadas como uma espécie de acinte ou ingenuidade epistemológica; mundo que se despoja de suas raízes cristãs para dar um salto civilizacional no escuro; mundo, por fim, desfigurado pelas abissais angústias alimentadas por filosofias caducas de nascença; em tal mundo, não nos custa afirmar com ênfase entusiástica o quanto este projeto foi concebido sem nenhum sentimento ambivalente. Ao contrário, moveu-nos a certeza absoluta de que apresentar o Absoluto é um bálsamo para a desventurada terra dos relativismos. Vários autores do período serão agraciados na Coleção Escolástica com edições bilíngües: Santo Tomás de Aquino, São Boaventura, Santo Anselmo de Cantuária, Santo Alberto Magno, Alexandre de Hales, Roberto Grosseteste, Duns Scot, Guilherme de Auvergne e outros da mesma altitude filosófica. Em síntese, a Escolástica é uma verdadeira coleção de gênios. Procuraremos demonstrar isto apresentando-os em edições cujo principal cuidado será o de não lhes desfigurar o pensamento. Que os leitores brasileiros tirem o melhor proveito possível deste tesouro. Sidney Silveira Coordenador da Coleção Escolástica
Sumário
Apresentação - O conhecimento humano sob o signo da profecia 9 A essência noética da profecia Sentido analógico da profecia Sobrenaturalidade da profecia e futuros contingentes
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SOBRE A PROFECIA
Artigo 1 - Se a profecia é hábito ou ato 21 Artigo 2 - Se a profecia versa sobre conclusões cognoscíveis 41
Artigo 3 - Se a profecia é natural 51
Artigo 4 - Se se requer uma disposição [humana] 79 natural para haver profecia Artigo 5 - Se para a profecia se requer a bondade dos costumes 87 Artigo 6 - Se os profetas vêem no espelho da eternidade 95 Artigo 7 - Se na revelação profética se imprimem de modo divino na mente do profeta novas espécies das coisas, 111 ou se se imprime apenas a luz intelectual
Artigo 8 - Se toda e qualquer revelação profética 125 é feita por intermédio de um anjo
Artigo 9 - Se o profeta sempre se distancia dos sentidos 131 quanto o toca o espírito da profecia Artigo 10 - Se a profecia se divide convenientemente em profecia de predestinação, presciência e cominação 141 Artigo 11 - Se na profecia encontra-se verdade imutável 157 Artigo 12 - Se a profecia dada somente segundo a visão intelectual é mais eminente que aquela com visão intelectual simultânea à visão imaginária 167 Artigo 13 - Se os graus da profecia se distinguem segundo a visão imaginária 185 Artigo 14 - Se Moisés foi mais excelente que os outros profetas 197 Bibliografia citada 203 S. Thomae de Aquino Opera Omnia 205
Apresentação
O conhecimento humano sob o signo da profecia SIDNEY SILVEIRA
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m se tratando de questões nas quais metafísica e teologia estão implicadas, o afetado desdém da pós-modernidade é de amplo escopo. Não é por acaso que quase nenhum filósofo contemporâneo considera a hipótese de abordar o tema da profecia na perspectiva gnosiológica, ou seja, inseri-lo – de pleno direito – no âmbito da teoria do conhecimento, como no século XIII fizera o Anjo da Escola, S. Tomás de Aquino. A razão disto parece-nos clara: por paradoxal que pareça, a mentalidade cientificista cuja carregada abóboda hoje nos oprime firmou-se no horizonte de um brutal amesquinhamento epistemológico, sobretudo a partir da Ilustração. Como resultado, séculos inteiros de sabedoria acumulada foram atirados ao limbo, como se não valessem nada. O ar de superioridade desinteressada dos neocéticos que pululam nos ambientes filosóficos começa, porém, a ceder quando lhes são apresentadas as questões implicadas no tema da profecia: A que âmbitos do ser se espraia o conhecimento humano? Qual é a natureza da espécie inteligível? O que diferencia o futuro necessário do futuro contingente? Qual é a fonte dos sonhos? Como se estrutura a relação entre sentidos internos e sentidos internos na cognição das coisas pelo homem? De que maneira uma verdade pode ser
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imutável? Estes e outros tópicos de grande complexidade permeiam o denso escrito Sobre a Profecia, i número 12 das Questões Disputadas sobre a Verdade. Como se será adiante, o tema da profecia espraia-se a pontos cardeais da filosofia.
A essência noética da profecia Cumpre previamente assinalar que a primeira parte do magnífico De Veritate ii versa, em ordem seqüencial, sobre: a) a natureza da verdade (q. 1); b) o conhecimento divino (qq. 2-7); c) o conhecimento angélico (qq. 8-9); e d) o conhecimento humano (qq. 10-20). iii Portanto, a questão Sobre a Profecia insere-se, como se salientou acima, na esfera da gnosiologia, o que Santo Tomás esclarece na definição da qual não se aparta substancialmente noutros escritos: iv “A profecia é certa cognição sobrenatural”. v Diga-se que esta proposição não irrompe de maneira súbita no tratado, mas é o ponto de chegada de um rico procedimento dialético do qual é possível ter um vislumbre já na sinopse desta disputatio: 1. Natureza da profecia: a) Se é hábito ou ato, Art. 1. b) Objeto da profecia, Art. 2. i Os principais catalogadores recentes da obra de Santo Tomás – como, por exemplo, o Padre Busa – situam cronologicamente a redação da questão De Prophetia entre os anos de 1257 e 1258. Cf. Roberto Busa et Al., Index Thomisticus Sancti Thomae Aquinatis Operum Omnium (...), Stuttgart, Frommann-Holzboog, 1974-1980. Treze anos depois de escrever o texto que a Coleção Escolástica apresenta agora em língua portuguesa, em 1271, o Aquinate elaborou um tratado sobre a profecia na Suma Teológica (II-II, qq. 171-174), mais amplo com relação aos temas, porém mais conciso no tocante no tratamento dos problemas. ii Compreendida pelas questões de 1 a 20. iii Cf. Eliseo Rodríguez Gutiérrez, “Cuestión sobre la Profecía”, in Opúsculos y Cuestiones Selectas, Tomo V, Madrid, Biblioteca de Autores Cristianos (B.A.C.), 2008, p. 791. iv A propósito, eis o elenco básico dos escritos nos quais o Doutor Angélico abordou o tema da profecia: De commendatione et partitione Sacrae Scripturae (1252); In I Sent, prol. Art. 5 (1253) ; De commendatione Sacrae Scripturae (1256); De Veritate, q. 12 (1257-58); In Dionysii de div. nom. c. 1, lect. 1 (1261); In Ep. St. Pauli lectura, a partir de I Cor até Heb (1259); De Potentia, q. 4, (1265-67); Quodlibet VII, q. 6 (1266); Summ. Theol., I, q. 1, aa. 9-10; Contra Gentiles, III (1270-72); Summ. Theol., II-II, qq. 171-174. v “Prophetia est quaedam supernaturalis cognitio”. Cf. art. 7, pág. 114 da presente edição.
Sobre a Profecia · Apresentação
2. Causa da profecia: a) Natural ou sobrenatural, Art. 3. b) Condições psicofísicas do profeta, Art. 4. c) Condições morais do profeta, Art. 5. 3. Modo do conhecimento profético: a) Visão profética e espelho da eternidade, Art. 6. b) Como se dá o conhecimento profético: • Lumen Propheticum e imagens sensíveis, Art. 7. • Papel dos anjos na profecia, Art. 8. • Estado de consciência do profeta, Art. 9. 4. Tipos de profecia: a) Divisões clássicas da profecia (Cassiodoro e São Jerônimo), Art. 10. b) Se há verdade imutável nas distintas espécies de profecia, Art. 11. c) Paralelo entre os níveis de profecia: • Superioridade da profecia de mera visão intelectual, Art. 12. • Graus de profecia, Art. 13. • Preeminência do profeta Moisés, Art. 14. No contexto da definição geral de profecia como cognição, vi o Aquinate traz à baila alguns motes de sua antropologia filosófica, como a elementar distinção entre conhecimento corpóreo, conhecimento imaginativo e conhecimento intelectual, hierarquizados de acordo com o caráter crescentemente indelével dos signos impressos na alma por cada um destes processos cognoscitivos. Em síntese, do sensível recebido pelos sentidos externos até o inteligível, passando pelo grau intermédio do labor das imagens pelos sentidos internos, o conhecimento ganha não apenas em qualidade, mas também em padrão de perdurabilidade, pois o que se conhece pelos sentidos é mais suscetível de variação do que o que se conhece pela inteligência. Considerados os três modos acima mencionados, cumpre advertir que, stricto sensu, para S. Tomás só existe um conhecimento propriamente humano vi Trata-se, ordinariamente, da cognição de um futuro contingente, não obstante o lumen propheticum também possa trazer um conhecimento relativo ao presente, ao passado ou à eternidade. “(...) todas as coisas cuja cognição pode ser útil para a salvação são matéria da profecia, sejam pretéritas, presentes, futuras ou até eternas”. V. p. 45 deste volume.
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– abarcador dos elementos sensível, imaginativo e intelectivo. vii Começa-se pela acceptio, ou seja, a recepção dos sensíveis pelos sentidos externos; passa-se à elaboração, ainda num grau primário de abstração, desses sensíveis pela potência imaginativa; e, enfim, chega-se à intelecção a partir do movimento próprio do intelecto agente de transformar as imagens sensíveis em formas inteligíveis, as quais geram uma visão da realidade no que esta tem de imaterialmente assimilável. viii Em resumo, é o homem integral (totus homo) que conhece as coisas, e não apenas esta ou aquela potência de sua alma, de maneira isolada. ix Dos diferentes tipos de continuidade entre os sentidos e o intelecto segundo Santo Tomás, retratemos o chamado conhecimento reflexivo, cujo resumo é o seguinte: ao conhecer o universal a partir das imagens abstraídas do aparato sensitivo, o intelecto retorna a seu próprio ato de conhecer (ou seja: conhecendo as coisas, conhece a sua natureza intelectiva), e, por este procedimento, tem a notícia cognitiva do objeto singular que contempla. Estamos na ordem da acceptio a rebus, ou apreensão. x Nesta forma de continuidade se dá uma tríplice reflexão: sobre o ato de conhecimento (intelecto), sobre a espécie abstraída (imaginação) e sobre o fantasma (sentidos). No caso do conhecimento profético, é na Suma Teológica (II-II, q. 171) que Santo Tomás chega à sua formulação final, em que os elementos dispersos encontram a sistematização e unificação: xi a profecia é conhecimento (prophetia primo et principaliter consistit in cognitione); é relativa a coisas que estão longe das possibilidades de conhecimento humano natural (quae sunt procul remota ab hominum cognitione); tem por objeto edificar a Igrevii
Cf. Eliseo Rodríguez Gutiérrez, Op. cit., p. 796. Este é um esquema sumariíssimo da teoria do conhecimento de S. Tomás, pois não é o caso de aprofundar o tema nesta breve apresentação. ix O ponto de partida do conhecimento propriamente humano são as sensações geradas pela recepção dos sensíveis pelos sentidos externos, a partir das quais a imaginação gera um fantasma, ou seja, uma imagem particular do objeto recebido. O intelecto agente atua sobre essa imagem ou fantasma abstraindo as características essenciais para formar a espécie impressa. A partir desta forma-se a espécie expressa ou conceito universal. Advirta-se apenas que as expressões impressa e expressa relacionadas a “espécie” não estão nos textos de Santo Tomás; pertencem à escolástica posterior. São, porém, congruentes com o seu pensamento. x Cf. Martín F. Echavarría, El conocimiento intelectual del individuo material según Tomás de Aquino, Barcelona, Universitat Abat Oliba – CEU, 2014. Artigo disponível em: <http://www. academia.edu/8332709/El_conocimiento_intelectual_del_individuo_material_seg%C3%BAn_ Tom%C3%A1s_de_Aquino>. xi Brian MacCarthy, “El modo do conocimiento profético y escriturístico en Santo Tomás de Aquino”, in Revista Scripta Theologica, Navarra, 1977, p. 449. viii
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ja (aedificationem Ecclesiae quaerite ut abundetis), como diz São Paulo; e, por fim, pertence à profecia a realização de milagres para confirmação do anúncio profético (prophetiam pertinet operatio miraculorum, quasi confirmatio quaedam propheticae Annuntiationis). xii Nada disto seria possível se o profeta não conhecesse os conteúdos que Deus lhe revela para anunciar aos homens. Mesmo em se tratando de profecia, cada uma das instâncias partícipes do conhecimento natural é valorizada pelo Doutor Comum, xiii que sempre leva em consideração a aludida interdependência entre elas, assim como o sentido de unidade da cognição humana, o qual se perfaz na harmoniosa ordenação entre as potências integrantes da nossa forma entis. No caso do profeta, não obstante a fonte da intelecção seja sobrenatural – por tratar-se de infusão direta de um inteligível por Deus, com a intermediação dos anjos xiv –, o modo de recepção da luz divina não é alheio às capacidades naturais postas em marcha no conhecimento humano. Invariavelmente, o elemento essencial da profecia é o noético, xv pois, nas palavras de S. Tomás, prophetia primo et principaliter consistit in cognitione. xvi Reiteremos que, no conhecimento, mesmo quando a fonte é sobrenatural, as potências naturais precisam ser movidas para o inteligível ser assimilado de maneira congruente pelo homem. Em termos simples, a luz é divina, mas o modo de recepcioná-la é humano. xvii
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S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 171, art. 1, resp. Para ilustrar a valorização a que aludimos, citamos a passagem na qual Santo Tomás chama a potência imaginativa de tesouro: “(...) Deve-se dizer que não é necessário que sejam novamente infundidas as espécies das coisas que o profeta vê, e sim que das espécies guardadas no tesouro da potência imaginativa (thesauro virtutis imaginariae) se faça certa agregação ordenada, conveniente à designação da coisa por profetizar”. Art. 7, ad. 3, p. 119 da presente edição. xiv “Deve-se dizer que na revelação profética concorrem duas coisas, a saber: a iluminação da mente e a formação das espécies na potência imaginativa. Portanto, a própria luz profética (pela qual é iluminada a mente do profeta) procede originalmente de Deus; contudo, para sua adequada recepção, a mente humana é fortalecida pela luz angélica e, de certo modo, por ela preparada”. Art. 8, resp., p. 127 da presente edição. xv Cf. Battista Mondin, Dizionario Enciclopedico del Piensero di San Tommaso d’Aquino, Bologna, Edizioni Studio Domenicano, 2000, p. 551. xvi “A profecia consiste primária e principalmente em conhecimento”. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 171, art. 1. xvii Aqui vige o princípio quidquid recipitur ad modum recipientis recipitur (“tudo o que se recebe, recebe-se segundo o modo do recipiente”). Cf. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 75 art. 5, resp. xiii
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Sentido analógico da profecia Com acerto, afirma Eliseo Gutiérrez que o termo “profecia” não é unívoco em Santo Tomás, mas sim analógico, na medida em que “todo influxo sobrenatural se reduz à profecia”. xviii Entenda-se aqui o termo “influxo” como moção divina por cujo intermédio um sujeito passa da potência ao ato. xix Nesta questão disputada, numa mesma passagem o Aquinate frisa que há graus distintos de profecia: • O grau ínfimo (infimus gradus prophetiae), no qual há certa audácia e presteza (audacia et promptitudo) em agir ou afirmar algo, caso de Sansão; • O segundo grau (secundo vero gradus), no qual a visão intelectual profética se dá apenas de acordo com o juízo, caso de Salomão; • O terceiro grau (tertio vero), no qual a visão intelectual vem acompanhada da imaginativa, casos de Isaías e Jeremias; • O quarto grau (quartus vero), no qual há uma mais plena visão intelectual, quer quanto ao juízo, quer quanto à recepção das imagens. xx É preciso levar em conta que, na composição deste esquema, está pressuposta pelo Doutor Angélico a idéia – cara à tradição agostiniana – segundo a qual qualquer revelação divina, mesmo as que não constam da Sagrada Escritura, é uma locutio Dei que pode dar-se por manifestações sensíveis, imaginativas ou intelectuais. Busquemos no comentário de Santo Tomás à Epístola de São Paulo aos Hebreus os cinco requisitos que identificam o verus propheta: 1) revelação de verdades que não podem ser conhecidas pela razão humana por virtude própria (Salomão, neste sentido, não foi profeta, mas apenas sábio); 2) inteligência das coisas reveladas (intelligentia revelatorum), no sentido de que o profeta precisa compreender o conteúdo da revelação (Nabucodonosor, por não ter compreendido o que lhe foi revelado, não é profeta, mas Davi sim); 3) conteúdo revelado por uma visão que não se esgota na recepção das imagens, pois alcança as intenções significadas por elas; 4) percepção clara do que foi revelado (ut cum certitudine revelata percipiat); 5) vontade de anunciar o que foi revelado (ut adsit voluntas annunciandi quae revelata sunt). xxi xviii
Art. 13, resp., p. 191. Eliseo Rodríguez Gutiérrez, Op. cit., p. 800. xx Art. 13, resp, p. 185. xxi S. Tomás de Aquino, Comentário a Hebreus, c. 1, lec. 1. xix
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Permeia estas considerações a tese de que, assim como o agente principal move o instrumento de que se vale, assim também o Espírito Santo move a mente do profeta. xxii Ora, de três maneiras o Espírito Santo pode mover o profeta, segundo S. Tomás: fazendo-o conhecer o que vê; fazendo-o falar o que viu; e fazendo-o agir conforme o que viu. xxiii Esta força que arroja o profeta ad cognoscendum, ad loquendum e ad faciendum provém da circunstância de a profecia ser um conhecimento explícito e evidentemente sobrenatural, ou seja, uma luz inteligível participada por Deus de maneira inequívoca. Como se pode deduzir, o constitutivo formal da profecia é conhecer o que se vê, razão pela qual entre a visão corpórea, a visão imaginativa e a visão intelectual somente esta última representa a perfeição da espécie prophetia, sendo as duas outras analogados menores. Neste ponto, cumpre-nos salientar, juntamente com o Cardeal Caetano, que um análogo se predica dos seus analogados – por exemplo: ente predica-se de substância e de quantidade; forma predica-se de alma; etc. – como algo superior que mantém certa proporcionalidade com os inferiores. xxiv Essa proporção se mede pelo empréstimo conceptual e real que o análogo fornece aos analogados. No caso da profecia, é a visão intelectiva o que se espraia lógica e ontologicamente às demais visões de que o profeta pode ter.
Sobrenaturalidade da profecia e futuros contingentes Em algumas passagens de sua vasta obra, Santo Tomás é explícito ao falar de uma classe de profecia que consiste unicamente no juízo sobrenatural, de outra que consiste neste juízo acompanhado da recepção de imagens sensíveis, ao passo que exclui a possibilidade de haver profecia se somente ocorrer a acceptio – porque é necessário, como se disse acima, haver inteligência das coisas reveladas, daí a superioridade da visão intelectiva não apenas no plano natural, mas também quando a fonte do inteligível
xxii “Spiritus Sanctus movet mentem prophetae, sicut agens principale movet instrumentum suum”. Cf. S. Tomás de Aquino, Comentário a Hebreus, c. 11, lec. 7. xxiii Idem ibidem. xxiv "Et quoniam secundum veritatem analogum ut superius praedicatur de analogatis, et non sola voce commune est eis, sed conceptu unico proportionaliter". Tommaso de Vio, De nominum analogia, n. 61.
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é sobrenatural. xxv Não basta, pois, o profeta receber as espécies; é preciso entendê-las com certeza. A sobrenaturalidade da profecia consiste em tratar-se de uma luz divina – formalmente distinta da luz da fé (lumen fidei) e da luz da glória (lumen gloriae). xxvi A primeira destas luzes propicia ao homem um assentimento à Sagrada Escritura, ou seja, às verdades anunciadas justamente pelos profetas; a segunda propicia ao homem um estado de irreversível felicidade. Deste esquema deduz-se facilmente que a luz da fé se ordena à luz da glória como a seu fim último, tendo como instrumento a luz profética. Esta última é a luz pela qual Deus dá a conhecer o Seu mistério e os planos para a vida do profeta, xxvii o que está para muito além das possibilidades do conhecimento humano natural. A cognição em que se constitui a profecia faz igualmente transluzir o seu caráter sobrenatural nos objetos aos quais se dirige: discernimento dos espíritos, conhecimento dos futuros contingentes, recepção do dom da sabedoria e uso proficiente do dom da ciência. Neste contexto, deve-se dizer que a manifestação dos conteúdos recebidos por revelação divina vem comumente acompanhada de diferentes carismas: a gratia locutionis, que é a capacidade de falar de modo absolutamente persuasivo; a pregação por meio de sinais extraordinários, como a cura miraculosa dos enfermos ou a transmutação dos entes, como ocorreu com a vara de Moisés que se transformou em serpente; a expulsão dos demônios; etc. A luz profética é uma participação da presciência divina na mente do profeta, consoante vários autores da escola tomista destacam. Aqui – na região xxv
“(...) se deve conceder que a profecia que tem apenas a visão intelectual é mais digna que a que tem a visão imaginária acrescida. Art. 12, resp., p. 177 da presente edição. xxvi Neste contexto em que se mencionam a luz da fé e a luz da glória, não podemos deixar passar em branco um tema caro a Santo Tomás: houve ou não profecia em Cristo? (Utrum in Christo fuerit prophetia. Cf. Suma Teológica, III, q. 7, art. 8). A pertinência deste problema teológico provém da consideração de que toda profecia implica certo grau de imperfeição e obscuridade quanto ao conhecimento (prophetia enim importat quandam obscura et imperfectam notitia, cf. op. cit.), o que parece contrariar a omnisciência de Cristo, signo da união hipostática. No conjunto de objeções desta questão da IIIª Pars da Suma Teológica, argumenta-se, entre outas coisas, que o profeta é ontologicamente inferior ao anjo; e que Cristo não teve fé nem esperança – as quais se dão nos profetas –, mas apenas caridade. A resposta teológica do Doutor Comum aponta para o fato de que, ao encarnar-se, Cristo foi não apenas bem-aventurado, mas também homo viator, e nisto participou das debilidades da nossa condição peregrina. Por esta razão, não obstante Cristo tivesse conhecimento pleno e direto (plenam et apertam) em sua parte intelectiva (partem intellectivam), também teve, dada a sua condição de viator, a recepção de certas imagens pelas quais podia atinar com as coisas divinas. Em síntese, Cristo teve, a um só tempo, ciência de comprehensor e de viator, pois nele refulgia a luz do intelecto divino com certa mescla de sombra do intelecto humano. Este é um problema que desde muitos séculos, já na época de Santo Tomás, ocupava os teólogos, os quais tinham diante de olhos as considerações metafísicas do clássico de Boécio intitulado De duabus naturis et una persona Christi. xxvii Cf. Eliseo Rodríguez Gutiérrez, Op. cit., p. 798.
Sobre a Profecia · Apresentação
limítrofe em que a gnosiologia adentra o terreno da teologia sagrada – salta aos olhos a sobrenaturalidade da profecia, na medida em que os processos naturais de intelecção são potencializados pela infusão sobrenatural de verdades, conforme a argumentação de Santo Tomás o indica. Donde ser apropriado dizer que a profecia é o conhecimento divino enxertado na estrutura humana de conhecer. xxviii No comentário que fez à Epístola de São Paulo aos Coríntios, o Aquinate é categórico ao afirmar que a profecia é uma clara visão ou manifestação dos futuros contingentes. xxix O profeta é o vidente cuja translucidez intelectual ultrapassa a barreira do tempo, por uma especial moção de Deus. Diz S. Tomás: “O princípio em que podem conhecer-se os futuros contingentes e outras coisas que superam a cognição natural, acerca das quais versa a profecia, é o próprio Deus”. xxx Não pára por aqui o Aquinate, pois, embora diga nesta questão 12 da obra Sobre a Verdade que a profecia pode ter como objeto o passado, o presente e até mesmo a eternidade, xxxi alhures assinala que o carisma ao qual chama donum prophetiae é, acima de tudo, um vaticínio, xxxii ou seja, é o conhecimento preciso dos futuros contingentes – aqueles cuja verdade não está determinada no plano natural porque não se inserem em quaisquer séries de causas essencialmente ordenadas. Ver o futuro no presente é o que constitui essencialmente o profeta. xxxiii Em resumidas contas, o homem pode conhecer a Deus de muitas maneiras: pela razão natural; pela fé; pela sabedoria infusa; pela revelação angélica ou profética; e pela luz da glória. xxxiv Pela razão natural o homem conhece que Deus existe (ou que Deus é); pela fé conhece o que Deus quer em ordem à salvação; pela sabedoria infusa conhece aspectos da divina providência; pela revelação angélica ou profética conhece o futuro sob o influxo da ciência divina; pela luz da glória locupleta a vontade e a inteligência de tal maneira, que a este seu estado só se pode chamar felicidade perfeita e irreversível. xxviii
Cf. Eliseo Rodríguez Gutiérrez, op. cit., p. 798. “Est igitur prophetia visio seu manifestatio futurorum contingentium, seu intellectum humanum excedentium”. S. Tomás de Aquino, In I Cor., c. 14, lec. 1. xxx Art. 2, resp., p. 31 deste volume. xxxi Cf. nota VI supra. xxxii Brian MacCarthy, op. cit., p. 453. xxxiii “(...) pertence à profecia principalmente a revelação de sucessos futuros, donde se toma o nome profecia. A este respeito diz São Gregório ao comentar Ezequiel. Sendo a profecia assim chamada porque prediz o futuro, ela perde a razão do seu nome quando fala do passado ou do presente”. S. Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 171, art. 3, resp. xxxiv Brian MacCarthy, op. cit., p. 454. xxix
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Se a edição deste Sobre a Profecia ajudar algumas pessoas a se enfronharem com confiança na beleza dos mistérios divinos, como coordenadores da Coleção Escolástica nos sentiremos regiamente pagos. Amém!
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ARTICULUS 1 Quaestio est de prophetia. Et primo quaeritur utrum sit habitus, vel actus Et videtur quod non sit habitus. 1. Quia ut dicit Commentator in III de anima, habitus est quo quis quando vult operatur. Sed propheta non potest prophetia uti cum voluerit, sicut patet IV regum, III, 15, de Eliseo, qui regi quaerenti, responsum dare non potuit nisi vocato psalte, ut sic super eum manus domini fieret. Ergo prophetia non est habitus. 2.Praeterea, quicumque habet aliquem habitum cognitivum, potest ea quae subsunt illi habitui, considerare sine hoc quod ab alio accipiat; qui enim ad hoc quod consideret, indiget instruente, nondum habet habitum. Sed propheta non potest inspicere prophetabilia nisi sigillatim ei revelentur: unde IV regum cap. IV, 27, dixit Eliseus de muliere cuius filius erat defunctus: anima eius in amaritudine est; et dominus celavit a me, et non indicavit mihi. Ergo prophetia non est habitus cognoscitivus; nec alius esse potest, cum ad cognitionem prophetia pertineat. 3. Sed dicebat, quod ad hoc habitu aliquo propheta indiget, ut ea quae sibi divinitus indicantur, cognoscere possit.- Sed contra, divina locutio est efficacior quam humana. Sed ad hoc quod aliquis ex humana locutione
Sobre a Profecia · Artigo 1
ARTIGO 1
Se a profecia é hábito ou ato1 E parece que não é hábito.2 1. Pois, como diz o Comentador em Sobre a Alma,3 hábito é aquilo por que alguém obra quando quer. Mas o profeta não pode utilizar a profecia quando quer, como se vê em II Reis [3:15]4 sobre Eliseu, que não pôde dar resposta ao rei que o interrogava sem que se tivesse chamado um citarista, para que deste modo a mão do Senhor viesse sobre ele. Portanto, a profecia não é hábito. 2. Ademais, quem quer que tenha algum hábito cognitivo pode considerar o que está submetido a este hábito sem que o receba de outro, pois quem carece de alguém que o instrua no que está a considerar ainda não possui o hábito. Mas o profeta não pode contemplar os profetizáveis, salvo se lhe forem separadamente revelados. Por isso disse Eliseu, em II Reis [4:27], sobre a mulher cujo filho havia morrido: “Sua alma está em amargura; o Senhor escondeu-o de mim e não mo indicou”. Portanto, a profecia não é hábito cognoscitivo; e tampouco pode ser outro hábito, visto que a profecia se relaciona com a cognição. 3. Poderia dizer-se, porém, que o profeta necessita de algum hábito para que possa conhecer o que lhe é divinamente revelado. Mas, em sentido contrário: a locução divina é mais eficaz que a humana. Ora, nenhum hábito é 1 Cf. Suma Teológica, II-II, q. 171, a. 2; Comentário a 1 Coríntios, c. 14, lect. 6. 2 Em linhas gerais, na perspectiva da metafísica de Santo Tomás o hábito é intermediário entre a potência e o ato. No caso particular do ente humano, o hábito intermedeia, no plano natural, as faculdades e os atos aos quais elas tendem, daí dizer o Aquinate que a potência é princípio do agir, ao passo que o hábito é princípio do agir pronta e facilmente (potentia est principium agendi absolute; sed habitus est principium agendi prompte et faciliter. Cf. S. Tomás de Aquino, In 3 Sententiarum, d. 33, q. 1). Para o que cabe ressaltar neste primeiro artigo, diga-se que o profeta não precisa dotar-se de nenhum hábito – aqui entendido como predisposição entitativa – para profetizar, pois a luz profética é ação da parte de Deus e paixão da parte do profeta. Admitir que a profecia seja um hábito na mente do profeta equivaleria a admitir que este tem, na vida presente, uma visão perene da essência divina no tocante aos futuros contingentes, por exemplo, o que é absurdo supor. Este é o motivo por que, na resposta à primeira objeção do presente artigo, S. Tomás diz que a disposição para profetizar não pode considerar-se um hábito em sentido estrito, porque a infusão do dom da profecia depende exclusivamente da vontade divina (influentia prophetiae dependet ex sola divina voluntate). [Nota do coordenador da Coleção Escolástica, doravante N. C.] 3 Cf. Averróis, Sobre a Alma, III, com. 18. 4 O texto original indica “IV Reis”. Os dois primeiros livros dos Reis foram posteriormente renomeados como I e II Samuel, o que alterou a numeração de III e IV Reis para I e II Reis. [Nota do tradutor, doravante N. T.]
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intelligat aliquid esse futurum, nullo habitu indiget. Ergo videtur quod multo minus ad percipiendam revelationem qua Deus prophetae loquitur. 4. Praeterea, habitus sufficit ad omnia cognoscenda quae subsunt habitui. Sed per donum prophetiae aliquis non instruitur de omnibus prophetabilibus; ut enim dicit Gregorius in I homilia super Ezech. et exemplis probat, aliquando spiritus prophetiae ex praesenti tangit animum prophetantis, et ex futuro nequaquam tangit; aliquando ex futuro tangit, et ex praesenti non tangit. Ergo donum prophetiae non est habitus. 5. Sed dicebat, quod dono prophetiae non subsunt omnia prophetabilia, sed illud tantum ad cuius revelationem datur.- Sed contra, influentia aliqua coarctari non potest nisi vel ex parte influentis, vel ex parte recipientis. Sed influentia prophetici doni non recipit coarctationem, quo minus ad omnia prophetabilia se extendat, ex parte recipientis: quia intellectus humanus est capax cognitionis omnium prophetabilium; nec ex parte influentis, cuius est largitas infinita. Ergo donum prophetiae ad omnia prophetabilia se extendit. 6. Praeterea, ex parte affectivae se ita habet, quod per unum gratiae influxum ab omni culpa anima liberatur. Ergo et ex parte intellectus ita
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necessário para que alguém entenda, a partir da locução humana, que algo acontecerá. Portanto, com muito menos razão se necessitaria de um hábito para receber a revelação que Deus faz aos profetas. 4. Ademais, o hábito é suficiente para conhecer tudo aquilo que lhe está submetido. Mas pelo dom da profecia não se é instruído acerca de todas as coisas profetizáveis,5 como diz Gregório na Primeira Homilia sobre Ezequiel, onde prova, com exemplos, que o espírito de profecia às vezes toca o espírito do que profetiza quanto ao presente, mas não quanto ao futuro, e às vezes o faz quanto ao futuro, mas não quanto ao presente.6 Portanto, o dom da profecia não é hábito. 5. Poderia dizer-se, porém, que sob o dom de profecia não se encontram todos os profetizáveis, mas somente aqueles para cuja revelação tal dom é concedido. Mas, em sentido contrário: uma influência só pode ser limitada ou por parte do que influencia, ou por parte do que a recebe. Mas a influência do dom profético não sofre, por parte do que a recebe, nenhuma limitação que a impeça de estender-se a todos os profetizáveis, pois o intelecto humano é capaz da cognição de todos eles; e tampouco sofre tal limitação por parte do que influencia, cuja liberalidade é infinita. Portanto, o dom da profecia se estende a todos os profetizáveis. 6. Ademais, da parte afetiva7 se dá que a alma é liberada de toda culpa mediante um único influxo da graça. Portanto, também da parte do intelecto
5 Lat. prophetabile. Trata-se de tudo aquilo que poderia ser objeto de profecia. [N. T.] 6 S. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I, hom.1 (PL 76, 788B). Os profetizáveis são comumente relacionados aos “futuros contingentes”, ou seja, aos acontecimentos que não estão inseridos numa série causal essencial e, portanto, podem vir a suceder ou não no tempo. A profecia não é, pois, a dedução de um futuro necessário, mas a clara visão de um futuro possível, metafisicamente contingente, de que o homem não pode ter ciência porque o seu intelecto não tem esse alcance. Ocorre que, nesta objeção, Santo Tomás está a salientar – valendo-se da autoridade de São Gregório Magno – que a luz profética pode também relacionar-se a algo presente. [N. C.] 7 O Prof. Martín Echavarría, um dos principais psicólogos tomistas da atualidade, salienta que a afetividade tem papel decisivo na formação da personalidade humana, dado o seu influxo sobre os atos da inteligência e da vontade. Cf. Martín Echavarría, La práxis de la Psicología y sus niveles epistemológicos según Santo Tomás de Aquino, Editorial Ucalp, La Plata, 2009, p. 138. Em suma, a parte afetiva (parte affectivae), como Santo Tomás a entende e à qual se refere Echavarría, implica os movimentos dos apetites concupiscível e irascível, ou seja: o ímpeto em direção a tudo o que os sentidos percebem como bom e a fuga a tudo o que percebem como mau. O pressuposto desta passagem é de que a parte afetiva, chamada pelo Doutor Angélico de sensualitas em outras obras, pode implicar pecado em seus movimentos, embora apenas venial (non potest in sensualitate esse peccatum mortale, quod est perfectum peccatum, sed solum veniale). Cf. S. Tomás de Aquino, De Veritate, q. 25, art. 6, resp. Que se trate aqui de culpa venial o próprio Santo Tomás o diz, expressamente, na resposta a esta objeção na qual se vale de uma analogia entre a parte afetiva e a parte intelectiva da alma humana, e entre a graça e a luz profética. [N. C.]
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erit quod ex influentia unius prophetici luminis, ab omni ignorantia prophetabilium anima purgabitur. 7. Praeterea, habitus gratuitus est perfectior quam acquisitus. Sed habitus acquisitus se extendit ad plures actus. Ergo et prophetia, si sit habitus gratuitus, non se extendet ad unum tantum prophetabile, sed ad omnia. 8. Praeterea, si de singulis conclusionibus singuli habitus habeantur, illi habitus non uniantur in unius totalis scientiae habitu, nisi conclusiones illae connexionem habeant secundum quod ex eisdem principiis deducuntur. Sed huiusmodi futura contingentia, et alia de quibus est prophetia, non habent aliquam connexionem ad invicem, sicut habent conclusiones unius scientiae. Ergo sequitur quod si donum prophetiae ad unum tantum prophetatum se extendit, in uno propheta tot sunt prophetiae habitus quot prophetabilia cognoscit, si prophetia sit habitus. 9. Sed dicebat, quod habitus prophetiae semel infusus, ad omnia prophetabilia se extendit; requiritur tamen nova revelatio quantum ad specierum aliquarum ostensionem.- Sed contra, habitus prophetiae infusus debet esse perfectior quam habitus scientiae acquisitae; et lumen propheticum quam lumen naturale intellectus agentis. Sed ex virtute luminis intellectus agentis, et habitu scientiae, adiuncto etiam ministerio imaginativae virtutis, possumus formare tot species quot sunt nobis necessariae ut exeamus in actualem considerationem eorum ad quae habitus se extendit. Ergo multo fortius hoc potest propheta, si habitum aliquem habet, sine hoc quod ei aliquae species de novo ostendantur.
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se dará que, pela influência de uma única luz profética,8 a alma seja purificada de toda a ignorância relativa aos profetizáveis. 7. Ademais, o hábito gratuito é mais perfeito que o adquirido. Mas o hábito adquirido se estende a vários atos. Portanto, também a profecia, se for hábito gratuito, não se estenderá a apenas um profetizável, mas a todos. 8. Ademais, se se têm hábitos singulares a partir de conclusões singulares, estes não estão unidos no hábito de uma única ciência total, a menos que estas conclusões tenham uma conexão que as faça ser deduzidas dos mesmos princípios. Mas os futuros contingentes e as outras coisas sobre as quais versa a profecia não possuem certa conexão recíproca, como se dá com as conclusões de uma única ciência. Portanto, segue-se que, se o dom da profecia se estende a apenas uma única coisa profetizada, e se consideramos a profecia um hábito, então num único profeta haverá tantos hábitos de profecia quantos profetizáveis ele conheça. 9. Poderia dizer-se, porém, que o hábito da profecia, uma vez infundido, se estende a todos os profetizáveis, mas requer-se uma nova revelação quanto à apresentação de certas espécies.9 Mas, em sentido contrário: o hábito infuso da profecia deve ser mais perfeito que o hábito da ciência adquirida; e a luz profética, mais perfeita que a luz natural do intelecto agente. Ora, mediante a luz do intelecto agente e o hábito da ciência, acrescidos do ministério da potência10 imaginativa, podemos formar tantas espécies quantas nos são necessárias, a fim de que passemos à consideração atual daquelas coisas a que o hábito se estende. Portanto, com muito mais razão pode fazê-lo o profeta, se possui algum hábito, sem que lhe sejam mostradas espécies novas.11 8 A metáfora da luz é muito usada na gnosiologia tomista, e expressa geralmente a intelecção em ato, ou, noutras palavras, a passagem do sensível ao inteligível realizada pelo intelecto agente. No caso do lumen propheticum, mesmo tratando-se de luz formalmente sobrenatural, não se excluem os processos cognoscitivos naturais do profeta para que receba o referido conteúdo inteligível, como se verá ao longo desta questão. [N. C.] 9 Entendidas aqui, como ao longo de toda esta questão, como “formas inteligíveis”. [N. C.] 10 Lat. virtus. O termo virtus às vezes se verte em filosofia por força, virtude, potência, faculdade ou ainda capacidade, e comumente encontra sinônimo aproximado no lat. vis. Também nesse sentido, é oportuno dizer, o leitor encontrará ocasionalmente o latim potentia. Buscaremos, como regra geral, verter estes termos latinos como “potência”, “faculdade” ou ainda “capacidade”, quando se referirem às capacidades da alma. Ao ver expressões como “as potências da alma”, o leitor deve aí entender por “potência” não a pura passividade metafísica, mas certa capacidade que tem a alma de exercer um ato. Daí “potência intelectiva”, “volitiva”, “sensitiva” (e, dentro desta, “visiva”, “auditiva”), etc. [N. T.] 11 O lat. de novo não indica principalmente repetição (como em nosso “de novo”, ou “novamente”), mas “por primeira vez”, “com novidade”. [N. T.]
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10. Praeterea, sicut habetur in Glossa in principio Psalterii, prophetia est divina inspiratio, rerum eventus immobili veritate denuntians. Inspiratio vero non nominat habitum, sed actum. Ergo prophetia non est habitus. 11. Praeterea, videre est quoddam pati, secundum philosophum. Ergo et visio passio. Sed prophetia est visio quaedam; I Reg. IX, 9: qui nunc dicitur propheta, olim dicebatur videns. Ergo prophetia non est habitus, sed magis passio. 12. Praeterea, secundum philosophum habitus est qualitas difficile mobilis. Prophetia vero facile movetur, quia non semper prophetae immanet, sed ad tempus: unde Amos VII, 14, super illud, non sum propheta, dicit Glossa: spiritus non semper administrat prophetiam prophetis, sed ad tempus; et tunc recte dicuntur prophetae cum illuminantur. Gregorius etiam super Ezech. in I homilia dicit, quod aliquando prophetiae spiritus prophetis deest, nec semper eorum mentibus praesto est, quatenus, cum hunc non habent, se agnoscant ex dono habere cum habent. Ergo prophetia non est habitus. Sed contra. 1. Secundum philosophum in III Ethic., tria sunt in anima: potentia, habitus et passio. Sed prophetia non est potentia, quia sic omnes essent prophetae, cum potentiae animae omnibus sint communes; similiter nec est passio, quia passio est tantum in parte animae sensitiva, ut dicitur in VII Lib. physicorum. Ergo prophetia est habitus. 2. Praeterea, omne quod cognoscitur, aliquo habitu cognoscitur. Sed propheta ea quae denuntiat, cognoscit: non autem habitu naturali vel acquisito. Ergo aliquo habitu infuso, quem dicimus prophetiam. 3. Praeterea, si prophetia non sit habitus, hoc non erit nisi quia propheta non potest sine nova acceptione omnia alia prophetabilia inspicere.
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10. Ademais, como se tem na Glosa no início do Saltério, “a profecia é uma inspiração divina que anuncia com verdade imutável os acontecimentos das coisas”.12 Mas seu autor não chama a tal inspiração hábito, e sim ato. Portanto, a profecia não é hábito. 11. Ademais, ver é um tipo de padecer, segundo o Filósofo. Portanto, também a visão é uma paixão.13 Mas a profecia é uma forma de visão: “O que agora se chama profeta era outrora chamado vidente” [I Sm 9,9]. Portanto, a profecia não é um hábito, mas antes uma paixão. 12. Ademais, segundo o Filósofo, o hábito é uma qualidade dificilmente mutável.14 A profecia, por sua vez, é facilmente mutável, pois não é sempre imanente ao profeta, mas apenas por certo tempo. Por tal razão diz Amós [7,14] acerca disto: “Não sou profeta”. Diz a Glosa: “O espírito nem sempre fornece a profecia aos profetas, a não ser por certo tempo; então, quando são iluminados, são corretamente chamados profetas”.15 Também Gregório, na Primeira Homilia Sobre Ezequiel, afirma que “às vezes falta aos profetas o espírito de profecia. Eles nem sempre o têm em suas mentes, para que assim reconheçam, quando o têm, que é por dom que o têm”.16 Portanto, a profecia não é hábito. Mas, em sentido contrário: 1. Segundo o Filósofo, no livro III da Ética,17 há três coisas na alma: a potência, o hábito e a paixão. Mas a profecia não é potência, pois deste modo todos seriam profetas, uma vez que as potências da alma são comuns a todos; de modo semelhante, também não é paixão, pois a paixão se encontra apenas na parte sensitiva da alma, como se diz no livro VII da Física.18 Portanto, a profecia é hábito. 2. Ademais, tudo o que é conhecido é-o por algum hábito. Mas o profeta conhece o que anuncia; não, porém, por um hábito natural ou adquirido. Portanto, conhece por algum hábito infuso, que chamamos “profecia”. 3. Ademais, se a profecia não fosse um hábito, isto apenas se daria porque o profeta não pode, sem nova inspiração, observar todos os outros profetizá12 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 58B-C), tomado de Cassiodoro (PL 70, 12B). 13 Aristóteles, Sobre a Alma, II, 7 e 10 (415b 24, 416b 32). 14 Aristóteles, Categorias, 8 (9a 4). 15 Glossa Ordinaria, ibid. 16 S. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I, hom. 1 (PL 76, 792D). 17 Mais propriamente Ética a Nicômaco, II, 4 (1105b 20). 18 Aristóteles, Física, VII, 6 (248b 27).
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Sed hoc non impedit quin sit habitus: quia etiam habens habitum communem principiorum, non potest considerare particulares conclusiones alicuius scientiae, nisi superaddatur aliquis habitus particularis scientiae. Ergo et nihil prohibet prophetiam esse habitum quemdam universalem, et tamen ad singula prophetabilia cognoscenda requiri novam revelationem. 4. Praeterea, fides habitus quidam est omnium credibilium; nec habens tamen habitum fidei, statim novit distincte omnia credibilia, sed indiget instructione ad hoc quod articulos distincte cognoscat. Ergo etsi prophetia sit habitus, adhuc requiretur divina revelatio, quasi quaedam allocutio, ut propheta distincte prophetabilia cognoscat. Responsio. Dicendum, quod, sicut dicit Glossa in principio Psalterii, prophetia visio dicitur, et propheta videns, ut patet I Reg. IX, 9, ut supra dictum est. Non tamen quaelibet visio prophetia dici potest, sed visio eorum quae sunt procul a communi cognitione; ut sic dicatur esse propheta non solum procul fans, id est annuntians, sed etiam procul videns, a phanos, quod est apparitio. Cum autem omne quod manifestatur, sub lumine quodam manifestetur, ut etiam haberi potest ab apostolo, Ephes. V, 13, oportet ut ea quae manifestantur homini supra cognitionem communem, quodam altiori lumine manifestentur, quod lumen propheticum dicitur, ex cuius receptione aliquis propheta constituitur. Sciendum est autem, quod aliquid recipitur in aliquo dupliciter: uno modo ut forma in subiecto consistens; alio modo per modum passionis; sicut pallor in eo qui naturaliter vel ex aliquo forti accidente hunc colorem habet, est ut quaedam qualitas; in eo
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veis. Ora, isso não impede que ela seja um hábito: pois tampouco aquele que tem o hábito comum dos princípios pode considerar as conclusões particulares de alguma ciência sem que lhe seja acrescentado algum hábito de ciência particular. Portanto, nada impede que a profecia seja certo hábito universal e que, não obstante, se requeira uma nova revelação para conhecer cada um dos profetizáveis. 4. Ademais, a fé é um tipo de hábito que versa sobre tudo o que é crível; no entanto, nem o que tem o hábito da fé conhece de uma só vez e distintamente19 tudo o que é crível, senão que carece de instrução para que conheça os artigos distintamente. Portanto, embora a profecia seja um hábito, ainda se faz necessária a revelação divina, como certa alocução, para que o profeta conheça distintamente o profetizável. Respondo. Deve-se dizer que, segundo a Glosa no início do Saltério,20 a profecia é chamada visão e o profeta, vidente, como está patente em Reis [I Sm 9,9], como dito acima. Todavia, não se pode chamar a qualquer visão “profecia”, mas apenas à visão daquelas coisas que estão longe da cognição comum, como se profeta significasse não somente “procul fans” (ou seja, o que diz o que está distante), mas também “procul videns” (ou seja, o que vê o que está distante), de phanos, que significa aparição.21 Dado que tudo o que se manifesta o faz sob certa luz, o que também pode ser depreendido do Apóstolo em Efésios [5,13], é necessário que aquelas coisas que se manifestam ao homem e que estão além da cognição comum o façam por certa luz superior, que é chamada luz profética (lumen propheticum), por cuja recepção se é constituído como profeta. Contudo, deve saber-se que algo é recebido em outro de duas maneiras: de uma, como forma que reside no sujeito; de outra, pelo modo da paixão.22 Assim, a palidez naquele que tem esta cor naturalmente ou por causa de algum grave acidente é como certa qualidade; naquele, no entanto, que subitamente empalidece por causa de algum 19 No contexto desta obra, o lat. distincte não significa tanto “de modo diferente” (como o fazem os termos aliter e diversimode), mas “de maneira precisa”, em oposição a um conhecimento confuso ou geral. [N. T.] 20 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 58C). 21 Embora a palavra “profeta” derive do grego prophétes – literalmente “o que fala antes”, “núncio” –, as etimologias medievais, quase ecoando o Crátilo de Platão, valem-se da liberdade de apoiar-se em trocadilhos sonoros com uma palavra para ilustrar seu sentido. A referência a uma raiz etimológica exata é raramente o ponto mais importante destas ilustrações, que sobretudo desenvolvem o contexto e o próprio significado já assentado do termo. [N. T.] 22 Ou seja, como algo que recebe de outro certo influxo causal. [N. C.]
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vero qui subito ex aliquo timore pallescit, est ut quaedam passio. Similiter etiam et lumen corporale est quidem in stellis ut stellarum qualitas, utpote quaedam forma in eis permanens; in aere vero est ut quaedam passio, quia lumen non retinet, sed recipit tantum per appositionem corporis lucidi. In intellectu igitur humano lumen quoddam est quasi qualitas vel forma permanens, scilicet lumen essentiale intellectus agentis, ex quo anima nostra intellectualis dicitur. Sic autem lumen propheticum in propheta esse non potest. Quicumque enim aliqua cognoscit intellectuali lumine, quod est ei effectum quasi connaturale ut forma in eo consistens, oportet quod de eis fixam cognitionem habeat. Quod esse non potest, nisi ea inspiciat in principio in quo possunt cognosci: quamdiu enim non fit resolutio cognitorum in sua principia, cognitio non firmatur in uno, sed apprehendit ea quae cognoscit secundum probabilitatem quamdam utpote ab aliis dicta: unde necesse habet de singulis acceptionem ab aliis habere. Sicut si aliquis nesciret geometriae conclusiones ex principiis deducere, habitum geometriae non haberet; sed quaecumque de conclusionibus geometriae sciret, apprehenderet quasi credens docenti, et sic indigeret ut de singulis instrueretur: non enim posset ex quibusdam in alia pervenire firmiter, non facta resolutione in prima principia. Principium autem in quo possunt cognosci futura contingentia, et alia quae cognitionem naturalem excedunt, de quibus est prophetia, est ipse Deus. Unde cum prophetae Dei essentiam non videant, non possunt ea quae prophetice vident, cognoscere aliquo lumine quod sit quasi quaedam forma habitualis eis inhaerens: sed oportet quod de singulis sigillatim instruantur. Unde oportet quod lumen propheticum non sit habitus, sed magis sit in anima prophetae per modum cuiusdam passionis ut lumen solis in aere. Unde, sicut lumen non remanet in aere nisi apud irradiationem solis, ita nec lumen praedictum remanet in mente prophetae nisi quando actualiter divinitus inspiratur. Et inde est quod sancti de prophetia loquentes, de ea per modum passionis loquuntur, dicentes eam esse inspirationem vel tactum quemdam, quo spiritus sanctus dicitur tangere cor prophetae: et aliis huiusmodi verbis, de prophetia loquuntur. Et sic patet quod quantum ad lumen propheticum, prophetia non potest esse habitus.
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temor, é como certa paixão.23 De modo semelhante, também a luz corporal está nas estrelas como qualidade das estrelas, como certa forma que nelas permanece; no ar, porém, ela está como certa paixão, pois este não retém a luz, senão que apenas a recebe por aposição do corpo luminoso. Portanto, há no intelecto humano certa luz que é como uma qualidade ou forma permanente, a saber, a luz essencial do intelecto agente, pelo qual nossa alma se diz intelectual. E, deste modo, a luz profética não pode estar no profeta. Pois quem quer que conheça as coisas pela luz intelectual (que lhe é um efeito quase conatural, como uma forma que nele reside), deve necessariamente possuir uma cognição fixa sobre elas, o que não ocorre a menos que as observe no princípio em que podem ser conhecidas. Pois, enquanto não se reduzir o que é conhecido a seus princípios, a cognição não se firmará em um só, mas apreenderá o que conhece segundo certa probabilidade, como algo dito por outros, razão por que se faz necessário obter de outros a acepção sobre cada coisa. Assim, se alguém não soubesse deduzir de seus princípios as conclusões da geometria, não teria o hábito da geometria, senão que tudo o que soubesse das conclusões desta ciência, fá-lo-ia como que crendo no docente e, destarte, precisaria ser instruído sobre cada uma delas. Com efeito, não poderia passar de modo seguro de certas conclusões a outras, se não houvesse uma redução aos primeiros princípios. Ora, o princípio em que podem conhecer-se os futuros contingentes e outras coisas que superam a cognição natural, acerca das quais versa a profecia, é o próprio Deus. Por isso, como os profetas não vêem a essência de Deus, aquilo que profeticamente contemplam não pode conhecer-se por uma luz que seja como certa forma habitual inerente a eles; ao contrário, é necessário que sejam instruídos sobre cada uma das coisas isoladamente. Por esta razão é necessário que a luz profética não seja hábito, senão que esteja na alma do profeta ao modo de certa paixão, como a luz do sol no ar. Logo, assim como a luz não permanece no ar senão na irradiação do sol, tampouco a luz supramencionada permanece na mente do profeta senão quando inspirado em ato por Deus. E é por esse motivo que os santos, discorrendo sobre a profecia,24 falam dela ao modo de uma paixão, dizendo que é certa inspiração ou toque com que se diz que o Espírito Santo toca o coração do profeta; e falam da profecia com outras palavras deste tipo. Fica assim patente que, no que se refere à luz profética, a profecia não pode ser hábito. 23 Aristóteles, Categorias, 8 (9b20 e ss). 24 Cf. acima as objeções 4 e 10.
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Sed sciendum, quod sicut est in rebus corporalibus, quod aliquid post passionem, etiam passione abeunte, efficitur habilius ad patiendum, sicut aqua calefacta prius, facilius postmodum post infrigidationem calefiet, et homo post frequentes tristitias facilius ad tristitiam provocatur; ita etiam quando mens aliqua divina inspiratione tangitur, etiam illa inspiratione abeunte remanet habilior ad iterato recipiendum, sicut post devotam orationem remanet mens devotior; unde propter hoc, ut Augustinus dicit in Lib. de orando Deum: ne mens quae curis et negotiis tepescere coeperat, omnino refrigescat, et penitus extinguatur, nisi crebrius inflammetur, certis horis ad negotium orandi mentem revocamus. Unde et mens prophetae postquam fuerit semel vel pluries divinitus inspirata, etiam actuali inspiratione cessante remanet habilior ut iterum inspiretur. Et haec habilitas potest habitus prophetiae dici; sicut etiam Avicenna dicit, VI de naturalibus, quod habitus scientiarum in nobis nihil aliud sunt quam habilitates quaedam animae nostrae ad hoc quod recipiat illustrationem intelligentiae agentis, et species intelligibiles ab ea in se effluentes. Sed tamen non proprie potest dici habitus, sed magis habilitas vel dispositio quaedam, a qua aliquis nominatur propheta, etiam quando actu non inspiratur. Tamen ne fiat vis in vocabulo habitus, sustinentes utramque partem, utrisque rationibus respondeamus. 1. Ad primum igitur dicendum, quod definitio illa inducitur de habitu proprie accepto: et sic habilitas praedicta prophetandi, habitus dici non potest; per quem tamen modum potest dici habitus secundum opinionem Avicennae etiam habilitas animae nostrae ad recipiendum ab intelligentia agente, quia illa receptio est naturalis secundum eius opinionem. Unde in eo, qui habet habilitatem, habet in potestate recipere cum vult, quia influentia naturalis non deest materiae dispositae. Sed influentia prophetiae dependet ex sola divina voluntate; unde, quantacumque sit habilitas in mente prophetae, non est in eius potestate ut prophetia utatur. 2. Ad secundum dicendum, quod si lumen propheticum inesset menti ut habitus quidam scientiae de rebus prophetatis, non indigeret propheta
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Mas deve saber-se que, assim como acontece nas coisas corporais, nas quais algo se torna mais inclinado a padecer após uma paixão ou mesmo após esta paixão haver-se dissipado (como a água que, anteriormente aquecida, se aquecerá mais facilmente após resfriada, e como o homem que, após sucessivas tristezas, é mais facilmente levado à tristeza), assim também, quando a mente é tocada por alguma inspiração divina, permanece mais apta a recebê-la novamente mesmo após haver cessado aquela inspiração (do mesmo modo que a referida mente permanece mais devota após uma oração devota). Por isso diz Agostinho no livro Da Oração a Deus: “Para que a mente que começara a arrefecer nas preocupações e ocupações de modo algum se esfrie e se extinga completamente, a menos que seja inflamada com maior freqüência, em certas horas voltamos nossa mente à ocupação da oração”.25 Por esta razão também a mente do profeta, após ter sido uma ou várias vezes inspirada por Deus, permanece mais apta a ser novamente inspirada, mesmo que cesse a inspiração atual. E esta habilidade pode chamar-se “hábito de profecia”, assim como Avicena diz no livro VI de Das Coisas Naturais26 que o hábito das ciências em nós nada mais é que certa aptidão da alma para que receba a iluminação da inteligência agente e as espécies inteligíveis que, partindo da inteligência agente, fluem para a alma. Contudo, isto não se pode dizer propriamente “hábito”, mas sim “certa habilidade” ou “certa disposição”, pela qual alguém é chamado “profeta”, ainda que não esteja inspirado em ato. Contudo, para que não se force o vocábulo “hábito”, respondamos às duas argumentações sustentando cada uma das duas partes. 1. Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que esta definição corresponde ao hábito segundo sua acepção própria; e, deste modo, a supracitada habilidade de profetizar não pode ser chamada hábito. Todavia, segundo a opinião de Avicena, pode chamar-se “hábito” em sua acepção própria também a habilidade de nossa alma para receber [formas] da inteligência agente, pois, segundo sua opinião, esta recepção é natural. Por isso, aquele que tem habilidade tem em seu poder o receber quando quiser, dado que à matéria disposta não falta influência natural. Mas a influência da profecia depende apenas da vontade divina, donde se tem que, por maior que seja a habilidade na mente do profeta, não está em seu poder fazer uso da profecia. 2. Quanto ao segundo, deve-se dizer que, se a luz profética residisse na mente como certo hábito de ciência das coisas profetizadas, não precisaria o 25 S. Agostinho, Epístola 130, c. 9 (PL 33, 501). 26 Avicena, Sobre a Alma, V, 6.
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ad quaelibet prophetabilia cognoscenda, nova revelatione; indiget autem, quia illud lumen non est habitus. Sed habilitas ipsa ad lumen percipiendum, similitudinem habitus habet, sine quo lumine prophetabilia cognosci non possunt. 3. Ad tertium dicendum, quod post perceptionem divinae locutionis, qua prophetam alloquitur interius, quae nihil aliud est quam mentis illustratio; non requiritur aliquis habitus quo interius audita percipiantur; sed ad hanc locutionem percipiendam tanto magis videtur habilitas aliqua operari, quanto ista locutio est excellentior, et eius perceptio vires naturales excedit. 4. Ad quartum patet solutio ex dictis. 5. Ad quintum dicendum, quod lumen propheticum semel infusum non facit cognitionem de omnibus prophetabilibus, sed solum de illis propter quorum cognitionem datur. Haec autem arctatio non provenit ex impotentia largientis, sed ex ordine sapientiae ipsius, qui dividit singulis prout vult. 6. Ad sextum dicendum, quod omnia peccata mortalia habent in hoc convenientiam quamdam, quod per eorum quodlibet homo separatur a Deo; unde gratia, quae hominem Deo coniungit, ab omni peccato mortali liberat; non autem ab omni veniali, quia venialia a Deo non separant. Res autem prophetabiles non habent ad invicem connexionem nisi in ipso ordine divinae sapientiae; unde ab his qui divinam sapientiam totaliter non intuentur, potest unum sine alio videri. 7. Ad septimum dicendum, quod habitus infusus est perfectior quam acquisitus secundum genus suum, scilicet ratione originis, et ratione eius propter quod datur, quod est alius eo ad quod ordinatur habitus acquisitus. Sed quantum ad modum habendi vel perficiendi, nihil prohibet habitum acquisitum perfectiorem esse; sicut patet quod per habitum fidei infusum non ita perfecte videmus credibilia sicut per habitum scientiae acquisitum conclusiones scientiarum. Et similiter lumen propheticum quamvis sit infusum, non tamen ita perfecte in nobis existit sicut habi-
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profeta de nova revelação para conhecer novos profetizáveis; ora, ele tem essa necessidade, porque aquela luz não é um hábito. Mas a própria habilidade de receber a luz guarda semelhança com o hábito, pois sem tal luz não se podem conhecer os profetizáveis. 3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que, após a percepção da locução divina, na qual se fala ao profeta interiormente (o que nada mais é que a iluminação da mente), não se requer nenhum hábito pelo qual sejam recebidas27 interiormente as coisas ouvidas; mas, para receber esta locução, tanto mais parece operar certa habilidade quanto mais excelente é a locução – e sua percepção excede as forças naturais. 4. Quanto ao quarto, a solução está clara pelo que se disse antes. 5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que a luz profética, uma vez infundida, não dá a cognição de todos os profetizáveis, mas apenas daqueles para cuja cognição é concedida. Ora, esta restrição não provém da impotência do concedente, mas da ordem de sua sabedoria, que distribui a cada um como quer. 6. Quanto ao sexto, deve-se dizer que todos os pecados mortais têm certa conveniência no fato de que mediante qualquer deles o homem se separa de Deus; por isso a graça que une o homem a Deus livra de todo pecado mortal, mas não de todo venial, porque os veniais não separam o homem de Deus. Ora, os profetizáveis não possuem conexão entre si senão na própria ordem da divina sabedoria; logo, pode um ser visto sem o outro por aqueles que não observam a divina sabedoria em sua totalidade. 7. Quanto ao sétimo, deve-se dizer que o hábito infuso é mais perfeito que o adquirido segundo seu gênero, isto é, por razão de origem e por razão do propósito por que é concedido, que é distinto daquilo a que se ordena o hábito adquirido; mas, quanto ao modo de ter ou de perfazer-se,28 nada impede o hábito adquirido de ser mais perfeito, o que se evidencia pelo fato de que através do hábito infuso da fé não vemos tão perfeitamente as coisas críveis como, através do hábito adquirido da ciência, as conclusões das ciências. E, de modo semelhante, a luz profética, embora seja infusa, não existe em nós tão 27 Assim verteremos o lat. percipio nesta obra, salvo raras exceções, exigidas pelo contexto. [N. T.] 28 O lat. perficere é termo técnico que denota a passagem plena de uma potência a seu ato, ou seja, a compleição deste ato. A essa noção devem relacionar-se também, nesta obra, expressões como “a perfeição de um ato” e similares. O verbo “aperfeiçoar” conota normalmente em nossa língua o sentido de “melhorar”, “progredir”, o que, não obstante não se distancie do significado correto, às vezes dá oportunidade a um entendimento errôneo do conceito, e poderá ser preterido em favor de “perfazer”, quando houver risco de má compreensão. Este padrão de tradução será mantido ao longo da obra. [N. T.]
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tus acquisiti; quod etiam dignitati infusorum habituum attestatur, quia ex eorum altitudine contingit ut humana infirmitas eos plene possidere non possit. 8. Ad octavum dicendum, quod ratio illa procederet si lumen quo perfunditur mens prophetae, esset habitus; non autem si ponimus habilitatem ad percipiendum lumen praedictum esse habitum, vel quasi habitum; cum ex eodem possit esse aliquis habilis ut illuminetur de quocumque. 9. Ad nonum dicendum, quod qualiter formatio specierum de novo requiratur ad propheticam revelationem, infra dicetur. 10. Ad decimum dicendum, quod, licet inspiratio habitum non nominet, tamen ex hoc non potest probari quod prophetia non sit habitus; consuetum est enim quod habitus per actus definiantur. 11. Ad undecimum dicendum, quod videre, secundum philosophum dupliciter dicitur: scilicet habitu, et actu; unde et visio actum et habitum nominare potest. 12. Ad duodecimum dicendum, quod lumen propheticum non est qualitas difficile mobilis, sed aliquid transiens; et secundum hoc loquuntur auctoritates inductae. Sed habilitas illa quae remanet ad illustrationem denuo percipiendam, non est facile mobilis; immo diu permanet, nisi in propheta fiat magna transmutatio, per quam talis habilitas tollatur. 1. Ad primum vero eorum, quae sunt in contrarium, dicendum quod quia actus totaliter ab habitu oritur, ideo in illa philosophi divisione actus ad habitum reducitur, vel etiam ad passionem, eo quod passio actus quidam animae est, ut irasci et concupiscere. Prophetia autem quantum ad ipsam visionem prophetae est actus quidam mentis; quantum vero ad lumen, quod raptim, et quasi pertranseunter, decipitur, est similis passioni, prout in intellectiva parte receptio passio dicitur: quia intelligere etiam quoddam pati est, ut dicitur III de anima. Vel potest dici, quod illa divisio philosophi, si membra divisionis proprie accipiantur, non sufficienter
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perfeitamente como os hábitos adquiridos – o que dá testemunho da dignidade dos hábitos infusos, pois, por causa de sua excelência, ocorre que a fraqueza humana não pode possuí-los plenamente. 8. Quanto ao oitavo, deve-se dizer que este argumento procederia se a luz que permeia a mente do profeta fosse um hábito, mas não se afirmamos que a habilidade para receber a supracitada luz é um hábito ou quase um hábito, uma vez que a partir disto pode alguém estar apto a ser iluminado sobre qualquer coisa. 9. Quanto ao nono, deve-se dizer que a maneira pela qual a formação de novas espécies seria requerida para a revelação profética se explicará mais abaixo.29 10. Quanto ao décimo, deve-se dizer que, embora a inspiração não se diga hábito, disso não se pode provar que a profecia não é um hábito. Pois é costume que os hábitos se definam por seus atos. 11. Quanto ao décimo primeiro, deve-se dizer que, segundo o Filósofo,30 “ver” diz-se de duas maneiras, a saber: pelo hábito e pelo ato; donde também a visão pode dizer-se ato e hábito. 12. Quanto ao décimo segundo, deve-se dizer que a luz profética não é uma qualidade dificilmente mutável, mas algo passageiro; e é neste sentido que falam as autoridades citadas. Mas não é facilmente móvel a habilidade que permanece de receber uma nova iluminação; ao contrário, permanece por longo tempo, a menos que no profeta ocorra uma grande transmutação pela qual tal habilidade seja tolhida. 1. Quanto ao primeiro dos argumentos em sentido contrário, deve-se dizer que, como o ato é totalmente oriundo do hábito, nesta divisão do Filósofo o ato é reduzido ao hábito ou ainda à paixão, já que a paixão é certo ato da alma, como irar-se ou desejar.31 Ora, no que se refere à própria visão do profeta, a profecia é certo ato da mente, mas, no que se refere à luz, que é percebida repentinamente e de modo passageiro, é semelhante à paixão, na medida em que a recepção na parte intelectiva se diz paixão (pois entender é também um tipo de padecer, como se diz no livro III Sobre a Alma).32 Ou ainda se pode dizer que esta divisão do Filósofo, se se tomam seus membros em 29 Cf. o artigo 139 infra. 30 Aristóteles, Tópicos, I, 15 (106b 18). 31 O Aquinate se refere aqui a duas paixões: uma do apetite concupiscível (desejar), outra do apetite irascível (irar-se). [N. C.] 32 Aristóteles, Sobre a Alma, III, 4 (429b 24).
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comprehendunt omnia quae in anima sunt; sed ea tantum quae ad materiam pertinent moralem, de qua philosophus intendit, sicut etiam patet per exempla, quibus ibidem philosophus se exponit. 2. Ad secundum dicendum, quod non omne quod cognoscitur, sub aliquo habitu cognoscitur, sed solum illud de quo perfecta cognitio habetur; sunt enim actus imperfecti in nobis qui ex habitu non procedunt. 3. Ad tertium dicendum, quod in scientiis demonstrativis sunt quaedam communia, in quibus particulares conclusiones quasi in quibusdam seminibus virtualiter continentur; unde ille qui habet habitum illorum communium, non se habet ad particulares conclusiones nisi in potentia remota, quae indiget motore ut in actum pertingat. Sed in rebus prophetabilibus non est talis ordo, ut quaedam ex aliis primis deducantur, ut sic qui habet primorum habitum, habeat sub quadam confusione habitus secundorum; unde ratio non sequitur. 4. Ad quartum dicendum, quod intellectus alio modo perficitur prophetia et fide. Prophetia enim perficit intellectum secundum se; unde oportet ut ea, ad quae propheta est perfectus dono prophetiae, possit distincte inspicere. Sed fides perficit intellectum in ordine ad affectum: actus enim fidei est intellectus imperati a voluntate; unde per fidem intellectus nihil aliud habet nisi ut sit paratus ad assentiendum his quae Deus credi mandat. Et hinc est quod fides assimilatur auditui; sed prophetia visioni. Et sic non oportet quod habens habitum fidei distincte cognoscat omnia credibilia, sicut oporteret de habente habitum prophetiae quod omnia prophetabilia distincte agnosceret.
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sentido próprio, não abrange33 tudo o que está na alma, mas somente o que pertence à matéria moral de que trata o Filósofo – como se vê pelos exemplos que utiliza no mesmo lugar citado. 2. Quanto ao segundo, deve-se dizer que nem tudo o que é conhecido é-o sob certo hábito, mas apenas aquilo de que se tem perfeita cognição; pois há em nós atos imperfeitos que não procedem de hábito. 3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que nas ciências demonstrativas existem certas coisas comuns em que as conclusões particulares estão virtualmente contidas, como que em certas sementes; por conseguinte, o que tem o hábito destas coisas comuns não está para as conclusões particulares senão em potência remota, a qual carece de um motor para que chegue ao ato. Mas nas coisas profetizáveis não há a ordem de que certas coisas sejam deduzidas de outras primeiras (de modo que quem tem o hábito das primeiras tenha o hábito das segundas em certa confusão). Logo, o argumento não procede. 4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que o intelecto se perfaz pela profecia e pela fé de modo distinto. Com efeito, a profecia perfaz o intelecto em si mesmo, e por isso é forçoso que o profeta possa observar distintamente aquelas coisas para as quais o perfez o dom de profecia; mas a fé, por outro lado, perfaz o intelecto ordenando-o ao afeto (pois o ato da fé é um ato do intelecto comandado pela vontade); donde pela fé o intelecto nada mais possui além de estar preparado para assentir naquelas coisas em que Deus ordena crer. Por isso a fé se assemelha à audição, mas a profecia à visão. E assim não é necessário que aquele que tem o hábito da fé conheça distintamente todas as coisas críveis, como seria necessário àquele que tem o hábito da profecia que conhecesse distintamente todos os profetizáveis.
33 Aqui preferimos a correção de concordância introduzida na família Phi de manuscritos, indicada no aparato crítico da Edição Leonina, p. 370, l. 367. [N. T.]
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ARTICULUS 2 Secundo quaeritur utrum prophetia sit de conclusionibus scibilibus Et videtur quod non. 1. Quia prophetia est inspiratio, rerum eventus immobili veritate denuntians. Eventus autem rerum dicuntur futura contingentia, cuiusmodi non sunt conclusiones scientiae demonstrativae. Ergo de talibus non potest esse prophetia. 2. Praeterea, Hieronymus dicit quod prophetia est signum divinae praescientiae. Praescientia autem de futuris est. Cum igitur futura, praecipue contingentia, de quibus maxime videtur esse prophetia, non possint esse conclusiones alicuius scientiae, videtur quod non possit de scibilibus conclusionibus esse prophetia. 3. Praeterea, natura non abundat superfluis, nec deficit in necessariis; et multo minus Deus, cuius actio est ordinatissima. Sed homo ad sciendum conclusiones scientiarum demonstrativarum, habet aliam viam quam per prophetiam, scilicet per principia per se nota. Ergo videtur quod superfluum esset, si huiusmodi per prophetiam cognoscerentur. 4. Praeterea, diversus modus generationis est indicium diversitatis speciei; unde mures generati ex semine, non sunt eiusdem speciei cum illis qui ex putrefactione generantur, ut dicit Commentator VIII Phys. Sed homines naturaliter conclusiones scientiarum demonstrativarum ex prin-
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Se a profecia versa sobre conclusões cognoscíveis34 E parece que não. 1. Pois “a profecia é uma inspiração divina que anuncia com verdade imutável os acontecimentos das coisas”. Ora, chamam-se “acontecimentos das coisas” os futuros contingentes; mas as conclusões da ciência demonstrativa não são deste tipo. Logo, a profecia não pode versar sobre tais coisas. 2. Ademais, diz Jerônimo35 que a profecia é um sinal da presciência divina. Ora, a presciência versa sobre coisas futuras. Portanto, dado que as coisas futuras – sobretudo as contingentes, sobre as quais a profecia parece principalmente versar – não podem ser conclusões de nenhuma ciência, parece que a profecia não pode versar sobre as conclusões cognoscíveis. 3. Ademais, a natureza não abunda em coisas supérfluas e tampouco carece das necessárias;36 e muito menos Deus, cuja ação é a mais ordenada de todas. Mas o homem, para conhecer as conclusões das ciências demonstrativas, possui outra via além da profecia, isto é, a dos princípios conhecidos por si mesmos. Portanto, parece que seria algo supérfluo se conclusões deste tipo fossem conhecidas mediante a profecia. 4. Ademais, um modo diverso de geração é indício de diversidade da espécie; donde se tem que os ratos gerados do sêmen não são do mesmo tipo dos gerados por putrefação, como diz o Comentador no livro VIII da Física.37 Mas os homens, de modo natural, recebem as conclusões das ciências demons34 Cf. Suma Teológica, II-II, q. 171, a. 3; Comentário ao Salmo 50, nn. 8-9; Comentário a Isaías, 1, lect. 1; Comentário a Romanos, c. 12, lect. 2; Comentário a I Coríntios, c. 12, lect. 1-2. 35 Glossa Ordinaria sobre Mateus 1,22-23. 36 Aristóteles, Sobre a Alma, III, 9 (432b 21). 37 Averróis, Comentário à Física, VIII, com. 46. Vale aqui fazer menção à doutrina da geração espontânea, de matriz aristotélica, segundo a qual certas formas de vida animal e vegetal aflorariam de maneira fortuita, a partir de matéria orgânica, inorgânica ou de uma combinação de ambas. Por exemplo: as moscas surgiriam – em estado larvar – de processos naturais como a putrefação de corpos. Nesta passagem relativa a ratos que surgiriam a partir de putrefação, a menção de Santo Tomás ao comentário de Averróis à Física de Aristóteles indica que o Aquinate nisto não difere muito do Estagirita. Neste contexto, frise-se que a geração, em sentido geral, dá-se a partir da potencialidade da matéria. “Com efeito, a geração se produz essencialmente a partir do ente em potência, ou seja, da matéria, que é sujeito das realidades naturais. Pois à matéria da qual algo se gera sucede estar sujeita a uma forma que se induzirá de acordo com um não-ente em ato”. S. Tomás de Aquino, In Gen. et Cor., lec.7, n. 57. [N. C.]
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cipiis per se notis accipiunt. Si igitur sunt aliqui homines qui alio modo scientias demonstrativas accipiant, utpote per prophetiam, erunt alterius speciei, et aequivoce homines dicuntur; quod videtur absurdum. 5. Praeterea, scientiae demonstrativae sunt de his quae se habent indifferenter ad omne tempus. Sed prophetia non similiter se habet ad omne tempus; immo quandoque spiritus prophetarum tangit cor prophetae de praesenti et non de futuro, quandoque e contrario, ut Gregorius dicit super Ezech. Ergo prophetia non est de illis de quibus est scientia. 6. Praeterea, ad ea quae per prophetiam sciuntur, non eodem modo se habet mens prophetae, et cuiuscumque alterius. Sed in omnibus quae sciuntur per demonstrationem, idem est iudicium prophetae, et cuiuscumque alterius scientis illud; et neuter alteri praefertur, ut dicit Rabbi Moyses. Ergo de his quae per demonstrationem sciuntur, non est prophetia. Sed contra. 1. Prophetis non credimus nisi quatenus spiritu prophetiae inspirantur. Sed illis quae sunt scripta in libris prophetarum, oportet nos fidem adhibere, etiam si pertineant ad conclusiones scientiarum, utpote quod dicitur: qui firmavit terram super aquas, vel si qua sunt alia huiusmodi. Ergo prophetiae spiritus inspirat prophetas etiam de conclusionibus scientiarum. 2. Praeterea, sicut se habet gratia signorum ad operandum ea quae sunt supra virtutem naturae, ita se habet donum prophetiae ad cognoscendum ea quae naturalem cognitionem excedunt. Sed per gratiam signorum non solum fiunt ea quae natura facere non potest, ut puta illuminare caecos et suscitare mortuos, sed etiam quae natura facere potest, ut curare febrientes. Ergo per donum prophetiae non solum cognoscuntur ea ad quae naturalis cognitio non potest attingere, sed etiam ea ad quae naturalis cognitio attingere potest, cuiusmodi sunt conclusiones scientiarum; et sic videtur quod de eis possit esse prophetia.
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trativas a partir de princípios conhecidos por si mesmos. Se, então, há certos homens que recebem as ciências demonstrativas por outro modo, como, por exemplo, pela profecia, serão de outra espécie e chamam-se “homens” de modo equívoco, o que parece absurdo. 5. Ademais, as ciências demonstrativas versam sobre coisas que se relacionam indiferentemente com o tempo. Mas a profecia não se relaciona com qualquer tempo do mesmo modo; especialmente porque algumas vezes o espírito dos profetas38 toca o coração do profeta quanto ao presente e não quanto ao futuro,39 e outras vezes se dá o contrário, como diz Gregório sobre Ezequiel.40 Portanto, a profecia não versa sobre as coisas sobre as quais versa a ciência. 6. Ademais, a mente do profeta, como a de qualquer outro, não se relaciona do mesmo modo com as coisas que são conhecidas mediante a profecia. Mas em todas as coisas que são conhecidas mediante a demonstração é o mesmo juízo o do profeta e o de qualquer outro que as conheça; e nenhum se sobrepõe ao outro, como diz o Rabi Moisés.41 Portanto, não há profecia sobre as coisas que são conhecidas por demonstração. Mas, em sentido contrário: 1. Não cremos nos profetas senão na medida em que são inspirados pelo espírito de profecia. Mas é necessário que creiamos nas coisas que estão escritas nos livros dos profetas, ainda que tais coisas pertençam às conclusões das ciências, como o que se diz em: “que firmou a terra sobre as águas” [Sl 136,6], ou outras coisas do tipo, se as há. Portanto, o espírito inspira os profetas também quanto às conclusões das ciências. 2. Ademais, assim como a graça dos sinais está para o operar aquelas coisas que estão além do poder da natureza, assim também o dom da profecia está para o conhecer aquelas coisas que excedem a cognição natural. No entanto, pela graça dos sinais não se produz apenas aquilo que a natureza não pode fazer (como fazer ver aos cegos e ressuscitar os mortos), mas também aquilo que a natureza pode fazer (como curar os que têm febre). Portanto, pelo dom da profecia não se conhece apenas aquilo que a cognição natural não pode atingir, mas também aquilo que ela pode atingir, e deste tipo são as conclusões das ciências; e assim se vê que a profecia pode versar sobre elas. 38 Isto é, o espírito que os imbui da profecia. [N. T.] 39 Cf. nota 6. 40 S. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I, hom. 1 (PL 76, 788B). 41 Maimônides, Guia dos Perplexos, II, c. 34.
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Responsio. Dicendum, quod in omnibus quae sunt propter finem, materia determinatur secundum exigentiam finis, ut patet in II Phys. Donum autem prophetiae datur ad utilitatem Ecclesiae, ut patet I ad Cor., XII, 7: unicuique datur manifestatio spiritus ad utilitatem, et subiungit multa inter quae connumerat prophetiam; unde omnia illa quorum cognitio potest esse utilis ad salutem est materia prophetiae, sive sint praeterita, sive praesentia sive futura, sive etiam aeterna, sive necessaria, sive contingentia. Illa vero quae ad salutem pertinere non possunt, sunt extranea a materia prophetiae; unde Augustinus dicit, II super Genesim ad litteram, quod quamvis auctores nostri sciverint cuius figurae sit caelum; tamen per eos dicere noluit nisi quod prodest saluti; et Ioannis cap. XVI, vers. 13 dicitur: cum venerit ille spiritus veritatis, docebit vos omnem veritatem; Glossa saluti necessariam. Dico autem necessaria ad salutem, sive sint necessaria ad instructionem fidei, sive ad informationem morum. Multa autem quae sunt in scientiis demonstrata, ad hoc possunt esse utilia; utpote intellectum esse incorruptibilem, et ea quae in creaturis considerata in admirationem divinae sapientiae et potestatis inducunt. Unde et de his in sacra Scriptura invenimus fieri mentionem. Sciendum tamen, quod cum prophetia sit cognitio eorum quae sunt procul, non eodem modo se habet ad omnia praedicta. Quaedam enim sunt procul a nostra notitia ex parte ipsorum, quaedam vero ex parte nostra. Ex parte quidem ipsorum sunt procul futura contingentia, quae per hoc non cognoscibilia sunt, quod ab esse deficiunt, cum nec in se sint, nec in causis suis determinentur. Sed ex parte nostra sunt procul illa, in quorum cognitione accidit difficultas propter nostrum defectum, non propter ea, cum sint maxime cognoscibilia et perfectissima entia, sicut res intelligibiles, et praecipue aeternae. Quod autem competit alicui secundum se, verius competit ei quam quod competit sibi ratione alterius; unde et futura contingentia verius sunt procul a cognitione quam quaecumque alia, et ideo praecipue
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Respondo. Deve-se dizer que, em todas as coisas que existem em ordem a um fim, a matéria é determinada segundo a exigência do fim, como se vê no livro II da Física.42 Ora, o dom da profecia é dado para a utilidade da Igreja, como vemos em I Coríntios [12,7]: “a cada um é dada a manifestação do Espírito para a utilidade”, e acrescenta muitas coisas, entre as quais enumera a profecia. Por isso, todas as coisas cuja cognição pode ser útil para a salvação são matéria de profecia, sejam pretéritas, presentes, futuras ou até eternas, e sejam necessárias ou contingentes. Já as que não podem pertencer à salvação são estranhas à matéria da profecia; daí que diga Agostinho, no livro II do Comentário Literal ao Gênesis: “Embora nossos autores soubessem de que forma é o céu, no entanto [Deus] não quis dizer por meio deles senão o que é útil à salvação”.43 Está dito em João [16,13]: “quando vier aquele Espírito de verdade, há de ensinar-vos toda a verdade”, e o complementa a Glosa: “...necessária à salvação”.44 E digo necessárias à salvação quer sejam necessárias à instrução da fé, quer o sejam à formação dos costumes. Ora, muitas coisas que são demonstradas nas ciências podem ser úteis para isso; como a incorruptibilidade do intelecto, por exemplo, e aquelas coisas que, contempladas nas criaturas, levam à admiração da sabedoria e do poder divinos. Por isso, também encontramos menção delas na Sagrada Escritura.45 Não obstante, deve saber-se que, embora a profecia seja a cognição das coisas que estão distantes, ela não se relaciona do mesmo modo com todas as coisas preditas. Pois algumas estão longe de nossa cognição por parte delas próprias, enquanto outras o estão por nossa parte. Seguramente estão longe por parte de si próprios os futuros contingentes, que são incognoscíveis por carecerem de ser, já que nem existem em si nem estão determinados em suas causas. Mas por nossa parte estão distantes as coisas em cuja cognição há dificuldade devido a uma deficiência nossa, não devido a elas em si, uma vez que são entes maximamente cognoscíveis e perfeitos (como as coisas inteligíveis e, sobretudo, as eternas). Ora, o que convém a algo segundo ele próprio, mais verdadeiramente lhe convém do que aquilo que o faz em razão de outro; donde também os futuros contingentes estarem mais verdadeiramente distantes da cognição do que qualquer outra coisa, e por isso parecerem precipu42 Aristóteles, Física, II, 15 (200a 15). 43 S. Agostinho, Comentário Literal ao Gênesis, II, 9 (PL 34, 270). 44 Glosa Interlinear, ibid. 45 Cf. por exemplo Romanos 1,20 e Eclesiastes 12,7. Ver também S. Tomás de Aquino, Suma Contra os Gentios, II, 79.
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videntur ad prophetiam pertinere, in tantum quod quasi praecipua prophetiae materia in definitione prophetiae ponantur, in hoc quod dicitur: prophetia est divina inspiratio, rerum eventus etc.; ex quo etiam nomen prophetiae videtur esse acceptum; unde dicit Gregorius super Ezech., quod cum ideo prophetia dicta sit quod futura praedicat; quando de praeterito vel praesenti loquitur, rationem sui nominis amittit. Eorum vero quae sunt procul ex parte nostra, est etiam consideranda quaedam distinctio. Quaedam enim sunt procul utpote omnem cognitionem humanam excedentia, ut Deum esse trinum et unum, et alia huiusmodi: et talia non sunt conclusiones scientiarum. Quaedam vero sunt procul utpote excedentia cognitionem alicuius hominis, non cognitionem humanam simpliciter; utpote quae a doctis per demonstrationem sciuntur, sed indocti naturali cognitione ad ea non pertingunt, sed quandoque elevantur ad ea revelatione divina: et huiusmodi non sunt prophetabilia simpliciter, sed respectu huius. Et sic possunt subesse prophetiae conclusiones demonstratae in scientiis. 1. Ad primum igitur dicendum, quod eventus rerum ponuntur in definitione prophetiae quasi materia maxime propria prophetiae, non autem ita quod sint tota prophetiae materia. 2. Et similiter dicendum ad secundum, quod ratione principalis suae materiae prophetia signum praescientiae dicitur. 3. Ad tertium dicendum, quod quamvis conclusiones scientiarum possint sciri alio modo quam per prophetiam, non tamen est superfluum ut lumine prophetiae ostendantur, quia firmius adhaeremus prophetarum dictis per fidem quam demonstrationibus scientiarum; et in hoc etiam Dei gratia commendatur, et ipsius perfecta scientia ostenditur. 4. Ad quartum dicendum, quod causae naturales habent determinatos effectus, cum earum virtutes sint finitae et limitatae ad unum; et ideo quae a diversis causis naturalibus producuntur in esse, secundum diversum generationis modum oportet esse specie diversa. Sed virtus divina, cum sit infinita, potest producere eosdem effectus in specie sine operatione naturae quos natura producit; unde non sequitur quod, si ea quae naturaliter
Sobre a Profecia · Artigo 2
amente pertencer à profecia, ao ponto de constarem como matéria principal na definição de profecia, quando se diz que “a profecia é uma inspiração divina, etc.”.46 Também daí parece tomar-se o nome de “profecia”; donde dizer Gregório nas Homilias sobre Ezequiel47 que a profecia assim se diz por predicar de coisas futuras; quando fala do presente ou do passado, [ela] perde a razão de seu nome. Quanto às coisas que estão distantes por nossa parte, nelas devemos também considerar certa distinção. Pois certas coisas estão distantes por exceder toda e qualquer cognição humana, como o fato de Deus ser uno e trino, e outras deste tipo: tais verdades não são conclusões das ciências. Já outras coisas estão distantes porque excedem a cognição deste ou daquele homem, não a cognição humana simpliciter,48 como as conhecidas pelos doutos através da demonstração, e que todavia os indoutos não alcançam pela razão natural, embora às vezes sejam elevados a elas pela revelação divina; e as deste tipo não são profetizáveis simpliciter, mas apenas com respeito a este ou aquele. E assim podem ser objeto de profecia as conclusões demonstradas nas ciências. 1. Quanto ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que os acontecimentos das coisas se põem na definição da profecia como sua matéria maximamente próxima, e não de modo que sejam toda a matéria da profecia. 2. Quanto ao segundo, deve-se dizer, de modo semelhante, que é em razão de sua matéria principal que a profecia se diz sinal de presciência. 3. Quanto ao terceiro, deve-se dizer que, embora as conclusões das ciências possam ser conhecidas de outro modo que mediante a profecia, não é supérfluo que sejam mostradas pela luz profética, pois que mais firmemente aderimos pela fé aos ditos dos profetas do que às demonstrações das ciências; e nisso também a graça de Deus é exaltada e sua ciência perfeita se manifesta. 4. Quanto ao quarto, deve-se dizer que as causas naturais possuem efeitos determinados, uma vez que suas virtudes são finitas e limitadas a uma coisa só. Por isso, as coisas que são levadas ao ser por diversas causas naturais devem ser diversas em espécie, segundo seu modo diverso de geração. Mas a virtude divina (que é infinita) pode produzir na espécie,49 sem a operação da natureza, os mesmos efeitos que esta produz; daí que não se siga que, se é divinamente 46 Glosa de Pedro Lombardo (PL 191, 58B-C). 47 S. Gregório Magno, Homilias sobre Ezequiel, I, hom. 1 (PL 76, 786A). 48 Ou seja, em sentido absoluto. 49 Entenda-se: na forma inteligível.
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cognosci possunt, divinitus revelentur, illi qui diversimode cognitionem accipiunt, specie differant. 5. Ad quintum dicendum, quod licet prophetia interdum sit de his quae diversis temporibus distinguuntur, interdum tamen est de illis quae per omne tempus sunt vera. 6. Ad sextum dicendum, quod Rabbi Moyses non intelligit quin de his quae per demonstrationem sciuntur, possit fieri revelatio prophetae; sed quia ex quo per demonstrationem sciuntur, non differt an de eis habeatur prophetia, vel non.
Sobre a Profecia · Artigo 2
revelado algo que pode ser naturalmente conhecido, devam diferir em espécie aqueles que recebem a cognição de modo diverso. 5. Quanto ao quinto, deve-se dizer que, embora a profecia às vezes verse sobre coisas que se distinguem em tempos diferentes, outras vezes versa sobre coisas que são verdadeiras para todos os tempos. 6. Quanto ao sexto, deve-se dizer que Rabi Moisés não julga que não possa haver uma revelação de profeta sobre as coisas conhecidas por demonstração, senão que, pelo mero fato de serem conhecidas por demonstração, é indiferente se acerca delas há profecia ou não.
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