Violência Doméstica Linhas de Vida

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Isabela Maria Marques Thebaldi Extensionista do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Graduanda em Direito pela PUC Minas Praça da Liberdade. Laura Augusta Souza Freitas Extensionista do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Graduanda em Direito pela PUC Minas Praça da Liberdade.

O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” provoca a ressignificação dos componentes metodológicos implicados com a escuta atenta, as intervenções assertivas, o desenvolvimento de práticas que permitam a afirmação de novos modos de existência após o encontro infame com a violência e o Estado, bem como a problematização de gênero e das relações de poder estabelecidas a partir das estruturas patrimoniais, cartoriais e machistas. Assumida essa premissa, o professor, psicólogo e pesquisador, Bruno Vasconcelos de Almeida, parte da assertiva de que, para ser realizado com a pesquisa e a extensão, o ensino necessita incorporar os processos metodológicos da pesquisa, tendo a pergunta como ponto de partida da aprendizagem, para garantir aos professores e alunos a possibilidade de se debruçarem sobre os problemas da prática social, levando em conta desafios e oportunidades para a construção de uma sociedade que, entre ser justa ou injusta, seja minimamente justificada. Mas, o processo de argumentação não é, por assim dizer, linear, mas antes reticular; seu aspecto não lembra uma cadeia, mas, sim, a trama de um tecido. Trata-se da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, na forma da interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, implicadas com a publicação que é o único instrumento de caráter científico capaz de demonstrar a reflexão gerada a partir da prática – uma prática que favoreça o questionamento sistemático e crítico dos alunos com relação ao objeto de estudo, às teorias a partir das quais estes se constituem e aos aspectos da ação profissional futura. Luiz Augusto Lima de Ávila

Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas. Professor Adjunto IV da Faculdade Mineira de Direito e do Departamento de Ciências Humanas da PUC Minas.

Violência Doméstica e Linhas de Vida

Bruno Vasconcelos de Almeida Doutor em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo. Professor do Departamento de Psicologia da PUC Minas. Psicólogo e Acom­panhante Terapêutico. Coordenador do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Autor dos livros “Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura” e “Clínica e Beatitude”.

Violência Doméstica e Linhas de Vida Bruno Vasconcelos de Almeida Isabela Maria Marques Thebaldi Laura Augusta Souza Freitas (Orgs.)

O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” está implicado essencialmente com a vida. Ele objetiva reduzir os efeitos lesivos da violência doméstica e, ao mesmo tempo, fortalecer o conjunto de ações e estratégias de construção de redes de combate às diferentes modalidades da violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Ele é realizado por um coletivo. Esse coletivo contém sujeitos capturados nos processos da violência doméstica, profissionais da área de segurança, estudantes e professores da PUC Minas. Os caminhos do projeto propiciam encontros em salas de aula, em uma delegacia, em corredores, nas ruas. Intensidades são disparadas nas piores situações da vida, agressões que nos fariam descrer da possibilidade de um trabalho que aposta no aumento da potência de viver, sobretudo a partir dos cruzamentos subjetivos, legais, clínicos, sociais e de direitos, que giram em torno das forças esmagadoras da violência. O trabalho extensionista implica o abandono dessa descrença e traça cotidianamente linhas de vida que se destacam sobre as linhas de morte da violência, e afirma a capacidade criativa das práticas desenvolvidas na articulação ensino, pesquisa e extensão. Esse livro expressa algo desses movimentos heterogêneos. Bruno Vasconcelos de Almeida. Doutor em Psicologia Clínica – PUC-SP Professor do Departamento de Psicologia – PUC MINAS

ISBN 978-85-67020-01-3

Coordenador do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” www.livrariadplacido.com.br

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ViolĂŞncia DomĂŠstica e Linhas de Vida Bruno Vasconcelos de Almeida Isabela Maria Marques Thebaldi Laura Augusta Souza Freitas (Orgs.)

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Copyright © 2013, D’ Plácido Editora Copyright © 2013, os autores Editor Chefe

Plácido Arraes Produtor Editorial

Tales Leon de Marco Revisão

Alexandre Bomfim Capa e diagramação

Tales Leon de Marco (sobre imagem Ermordung des Hl. Petrus Martyr, de Domenico Zampieri. Wikimedia commons) Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, por quaisquer meios, sem a autorização prévia da D`Plácido Editora.

Catalogação na Publicação (CIP) Ficha catalográfica Violência Doméstica e Linhas de Vida / Bruno Vasconcelos de Almeida; Isabela Maria Marques Thebaldi; Laura Augusta Souza Freitas (Orgs.) -- Belo Horizonte : Editora D’Plácido, 2013. Bibliografia ISBN: 978-85-67020-01-3 1. Psicologia 2. Direitos Humanos 3.Direito de Família I. Bruno Vasconcelos de Almeida II. Isabela Maria Marques Thebaldi III. Laura Augusta Souza Freitas CDU342.16

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CDD 340

Editora D’Plácido Av. Brasil, 1843 , Savassi Belo Horizonte - MG Tel.: 3261 2801 CEP 30140-002

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Sumário

Prefácio

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Capítulo 1 Violência Doméstica e Linhas de Vida: narrativa de uma prática 13 extensionista na Delegacia de Mulheres de Belo Horizonte 1. Introdução 13 2. Desenvolvimento 15 2.1 Violência Doméstica e Linhas de Vida: aspectos metodológicos 17 2.2 Alegria da prática 18 3. Conclusão 19 Referências 19 Capítulo 2 Violência Doméstica: a qualidade do justo consiste em tratar bem as mulheres ou podemos dizer, ante essas mesmas coisas, 21 que uma vez é justo, outras injusto fazê-las? Referências 27 Capítulo 3 Fazer Viver ou Deixar Morrer: uma análise filosófica dos processos 29 biopolíticos gerados pela Lei Maria da Penha 1. Introdução 29 2. Pressupostos conceituais: a análise microfísica do poder e o diagnóstico 30 de um Estado de Exceção 3. Uma breve análise dos aparatos biopolíticos 31 3.1 Tecnologias de normalização na “aplicação” da lei 31 3.2 Estratégias de dominação e estratégias entre liberdades: O aparato biopolítico a serviço da efetivação dos direitos previstos 33 na Lei n. 11.340/2006 4. Conclusão 35 Referências 35

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Capítulo 4 Natureza Jurídica do Crime de Lesão Corporal Leve no Âmbito da Violência Doméstica: olhar crítico sobre a interpretação do 37 STF na ADI 4.424 à luz de um caso concreto 1. Introdução 37 2. Lei Maria da Penha e o tratamento do crime de lesão corporal leve 38 3. Apresentação do caso concreto 42 4. Direitos fundamentais em colisão e vitimização 44 5. Considerações finais 46 Referências 47 Capítulo 5 O Discurso da Vítima e a Vítima do Discurso 1. Introdução 2. Criminologia e vitimologia 3. O discurso e o poder das palavras 4. O discurso da vítima e a vítima do discurso 5. O discurso das mulheres vítimas de violência 6. Conclusão Refêrencias

49 49 50 51 53 55 59 60

Capítulo 6 Violência Doméstica e Assistência Social: benefício financeiro 63 para as vítimas dependentes de seus agressores 1. Introdução 63 2. Violência doméstica 64 3. O dever de assistência 65 68 4. Conclusão Referências 69 Capítulo 7 Violência Doméstica e Familiar: violência coibida apenas em relação à mulher? 1. Introdução 2. Jurisprudência escolhida 3. Conclusão Referências

71 71 72 76 77

Capítulo 8 Usucapião de Bem Imóvel e Violência Doméstica 1. Introdução

79 79

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2. Objetivos 3. Metodologia 4. Desenvolvimento 5. Resultados 6. Considerações finais Referências

79 80 80 85 86 86

Capítulo 9 Violência Doméstica e o Preso do Silêncio: Dor e medo 1. Introdução 2. Uma visão do campo: caso clínico 3. Conclusão Referências

89 89 92 93 94

Capítulo 10 O Tráfico de Mulheres no Brasil: o lado mais obscuro da violência contra as mulheres 1. O conceito de tráfico de pessoas 2. O contexto do tráfico de mulheres no Brasil 3. As formas de coibição ao tráfico de pessoas e a legislação atual 4. Considerações finais Referências

97 97 98 101 102 103

Capítulo 11 O Tribunal na Vida da Mulher Referências

105 112

Capítulo 12 Acolhimento Psicológico e Responsabilização Subjetiva: uma perspectiva psicanalítica sobre a violência doméstica 1. Introdução 2. Violência doméstica e responsabilização subjetiva 3. Considerações finais Referências

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Os autores

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Prefácio Bruno Vasconcelos de Almeida1 Poliana Renata Cardoso2 O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” nasceu do encontro entre profissionais da Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher de Belo Horizonte e professores dos cursos de Psicologia e Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Trata-se de um projeto transdisciplinar, construído cotidianamente por cidadãos envolvidos com a violência doméstica, profissionais da área de segurança, estudantes e professores da Universidade. Ele consiste na prestação de assistência psicológica e jurídica a pessoas em situação de violência doméstica, através de atendimentos individuais, orientações jurídicas, formação de grupos e oficinas de trabalho, articulações em rede e outros procedimentos. O livro que se segue é a primeira produção da equipe envolvida com o projeto, após seu primeiro ano de existência. Ele contém artigos de estudantes, professores e profissionais da Polícia Civil de Minas Gerais. A multiplicidade de temas e problemas espelha a riqueza das práticas desenvolvidas no âmbito da extensão universitária. O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” demandou agenciamentos e articulações metodológicas distintas: psicologia social, relações de gênero e poder, práticas de grupo, direitos humanos, antropologia, esquizoanálise, saúde pública, entre outros. Doutor em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo. Mestre em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo. Especialista em Saúde Mental: Família e Comunidade pela PUC Minas. Especialista em Administração de Serviços de Saúde pela Universidade de Ribeirão Preto. Professor do Departamento de Psicologia da PUC Minas. Psicólogo e acompanhante terapêutico. Coordenador do projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. 2 Mestre em Enfermagem pela UFMG. Especialista em Enfermagem pela UFPR. Professora do Departamento de Enfermagem da PUC Minas. Estudante de Direito da PUC Minas. Extensionista do projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. 1

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Do ponto de vista metodológico, escuta atenta, intervenções assertivas, desenvolvimento de práticas que permitem a afirmação de novos modos de existência, após o encontro infame com a violência e o Estado, recolocam o problema de gênero e das relações de poder estabelecidas a partir das estruturas patrimoniais, cartoriais e machistas. Linhas de vida são traçadas cotidianamente no encontro entre vítimas e equipe, entre agressores e equipe, entre integrantes do projeto, e, ainda, na construção de redes de sustentação para a redução dos efeitos lesivos da violência doméstica. Em seu segundo ano de existência, algumas mudanças estão em curso no projeto. Entre elas, encontram-se a ampliação das atividades para outros pontos da rede de enfrentamento e combate à violência doméstica, em especial a violência contra a mulher, e o incentivo à produção de pesquisa envolvendo professores e alunos. O artigo do professor, psicólogo e pesquisador, Bruno Vasconcelos de Almeida, intitulado “Violência Doméstica e Linhas de Vida: narrativa de uma prática extensionista na Delegacia de Mulheres de Belo Horizonte” apresenta o projeto e faz um relato do trabalho desenvolvido, explicitando suas ações, dificuldades e resultados preliminares. O texto “Violência Doméstica”, do professor, advogado e pesquisador Luiz Augusto Lima de Ávila aborda a violência doméstica pelo prisma de uma articulação lógica, justaposta ao problema das normas jurídicas e de pequenas histórias extraídas do cotidiano da violência. O artigo do estudante de direito e extensionista do projeto Cláudio Victor Carneiro de Mendonça, com o título “Fazer Viver ou Deixar Morrer: uma análise filosófica dos processos biopolíticos gerados pela Lei Maria da Penha”, traz uma discussão da ação do Estado na aplicação imediata da Lei n. 11.340/06 através dos pensamentos de Michel Foucault e Giorgio Agamben. O estudo “Usucapião de Bem Imóvel e Violência Doméstica”, de autoria da estudante de direito e extensionista do projeto Anita Aquino Fernandes, discute o direito à aquisição do bem de família destinado ao lar, através da modalidade de usucapião, pela vítima de violência doméstica, com base no artigo 1.240-A do Código Civil. Escrito pelos professores, advogados e pesquisadores Charley Teixeira Chaves e Ricardo Guerra Vasconcelos, o trabalho “Violência Doméstica e Familiar: violência coibida apenas em relação à mulher?” traz análise de recente jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em relação à aplicabilidade da Lei n. 11.340/06 quando a vítima é do sexo masculino. O artigo da estudante de direito e extensionista do projeto Laura Augusta Souza Freitas e do professor, advogado e pesquisador Adalberto Antonio 10 MIOLO_Violencia domestica e linhas de vida_230613_Tales.indd 10

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Batista Arcelo, sob o nome “Natureza Jurídica do Crime de Lesão Corporal Leve no Âmbito da Violência Doméstica: olhar crítico sobre a interpretação do STF na ADI 4.424 à luz de um caso concreto” trata dos efeitos decorrentes do recente entendimento do STF acerca da natureza pública incondicionada do crime de lesão corporal leve, praticado no ambiente doméstico. Trabalhado pela psicóloga e policial civil Isabella Maria de Almeida Feliciano Silva, o texto “O Discurso da Vítima e a Vítima do Discurso” problematiza o discurso das vítimas e a escuta dos profissionais que atendem as mulheres que chegam à Delegacia. O escrito da estudante de direito e extensionista do projeto Isabela Maria Marques Thebaldi, intitulado “Violência Doméstica e Assistência Social: benefício financeiro para as vítimas dependentes de seus agressores” aponta para as dificuldades que impedem as vítimas de romper o ciclo de violência, entre elas, a dependência econômica relativamente ao companheiro. Mesmo com a existência de previsões legais, na prática sua implementação é restrita. O artigo “Violência Doméstica e o Preso do Silêncio: dor e medo”, da estudante de psicologia e extensionista do projeto Grasiele Vieira dos Santos Martins, discorre sobre questões relativas à violência doméstica e à produção de subjetividade nas interações familiares. O trabalho da professora, psicóloga e pesquisadora Patrícia Eliane de Melo, intitulado “O Tráfico de Mulheres no Brasil: o lado mais obscuro da violência contra as mulheres”, conceitua e contextualiza o tráfico de pessoas no Brasil, discute formas para coibir o tráfico e aborda a legislação vigente no país. De autoria do psicólogo e policial civil Reinaldo Pereira da Silva, o estudo “O Tribunal na Vida da Mulher” busca problematizar a violência contra a mulher no âmbito do direito penal e da segurança pública, através da estética da existência de Michel Foucault e da filosofia da diferença de Gilles Deleuze. O artigo da estudante de psicologia e extensionista do projeto Carina Freitas Passos Pescara, intitulado “Acolhimento Psicológico e Responsabilização Subjetiva: uma perspectiva psicanalítica sobre a violência doméstica” apresenta reflexões advindas dos acolhimentos psicológicos, apontando para a responsabilização do sujeito em suas escolhas. O coletivo de trabalho do projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” espera, com esta publicação, contribuir para o debate de estratégias de enfrentamento à violência doméstica, dar visibilidade a um processo formativo e estimular trocas de experiências entre aqueles envolvidos com 11 MIOLO_Violencia domestica e linhas de vida_230613_Tales.indd 11

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essa realidade. O material contém inúmeras imperfeições, como todo projeto em construção, mas acreditamos que ele espelha a diversidade de uma prática que efetivamente aproxima universidade e comunidade.

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Violência Doméstica e Linhas de Vida:

narrativa de uma prática extensionista na Delegacia de Mulheres de Belo Horizonte

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Bruno Vasconcelos de Almeida3

Sou um lago, agora. Uma mulher se debruça sobre mim, Buscando em minhas margens sua imagem verdadeira. Então olha aquelas mentirosas, as velas ou a lua. Vejo suas costas, e a reflito fielmente. Me retribui com lágrimas e acenos. Sou importante para ela. Ela vem e vai. A cada manhã seu rosto repõe a escuridão. Ela afogou uma menina em mim, e em mim uma velha Emerge em sua direção, dia a dia, como um peixe terrível. (Espelho. PLATH, 1991, p.37).

1. Introdução Em outubro de 2011, a Delegacia Especializada de Atendimento às Mulheres de Belo Horizonte procurou a PUC Minas para o estabelecimento de estágios em seu espaço de atuação, autorizados pela Secretaria de Defesa Social. No mesmo ano, realizamos algumas reuniões e decidimos submeter um projeto de parceria à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade. Projeto aprovado, iniciamos os trabalhos em fevereiro de 2012. Selecionamos extensionistas remunerados e voluntários, e iniciamos com um curso de preparação, reunindo professores, estudantes e a equipe da Delegacia. Doutor em Psicologia Clínica (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Professor do Departamento de Psicologia (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais). Coordenador do Projeto de Extensão “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Email: brunovasconcelos@pucminas.br.

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“Que fazer?” (LÊNIN, 2006), a pergunta leninista do início do século passado emergia de nossas conversas. Os dados da violência doméstica normalmente estão abaixo de seu número de ocorrência, por diversas razões: dependência econômica, cultura machista, vergonha, revitimização nos procedimentos do Estado, entre outros (Saffioti, 2013). Na indissociabilidade de teoria e prática, a equipe iniciou seus trabalhos com atendimentos individuais quando da chegada das mulheres à delegacia. A sensibilização e o acolhimento psicossocial da vítima são realizados nos plantões com a adoção das medidas policiais. Essas medidas consistem basicamente dos seguintes procedimentos: Registro de Eventos de Defesa Social, também conhecido como Reds, medidas protetivas, representação criminal, exame médico legal, procedimento cartorial, detenção do agressor e o procedimento da autoridade policial. O acolhimento das vítimas tem, por seu turno, dois desdobramentos: os atendimentos psicológicos e jurídicos realizados pelos estudantes isoladamente ou em dupla e o convite para participação em grupos e oficinas. O campo móvel das afetações entre os participantes do projeto foi, desde o início, potencializado pela dramaticidade dos casos e pelas marcas terríveis da violência. No início, nosso trabalho se restringiu ao atendimento de mulheres entre dezoito e sessenta anos, dada a natureza das competências da delegacia especializada. Após alguns meses, principiamos o trabalho de abordagem dos homens agressores, com a tentativa de formação de grupos. O projeto contempla a ideia de que não é possível intervir nos ciclos da violência doméstica e contra a mulher sem abordar a dinâmica dos casais e da família onde a violência está presente. Sabemos que a violência contra a mulher tem aspectos culturais, sociais e econômicos. Seu modo de produção parece desvelar uma infinidade de linhas, em sua grande maioria, de exercício abusivo do poder, de morte e de negação dos valores atrelados à cidadania e à igualdade entre gêneros. O objetivo do projeto, juntamente com a prestação da assistência e a inserção na rede de enfrentamento e combate à violência contra a mulher, é a redução dos efeitos lesivos e danosos provocados pela violência, estabelecendo estratégias para minimização do sofrimento e consequente empoderamento das vítimas. As estratégias de resgate e reconstrução de vida das mulheres e homens envolvidos na violência doméstica valeram-se da articulação metodológica transdisciplinar entre psicologia e direito. O trabalho cotidiano, sempre discutido em supervisões ou em reuniões na delegacia, tem o mérito de não dar respostas ao problema da violência; ao contrário, possui o mérito de abrir novas perspectivas de atuação e conhecimento do problema. Essa abertura para a diferença permite que, a cada encontro, outras linhas, desta vez linhas de vida, sejam desenhadas a

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partir da resistência encontrada, lá onde o corpo psíquico, orgânico, social é agredido e violentado. Vale lembrar que o escopo legal para o desenvolvimento do projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” remete à Lei n. 11.340/06, conhecida como Lei Maria da Penha, e aos princípios da Polícia Comunitária no âmbito da Polícia Civil de Minas Gerais. O tema da violência contra a mulher ecoa os objetivos propostos na Convenção Interamericana de Belém do Pará, que, por sua vez, trata da prevenção, punição e erradicação da violência contra a mulher. A criação das delegacias especializadas, a capacitação dos serviços de saúde, a criação de uma rede de enfrentamento, a Lei Maria da Penha, entre outros, são fatores que apontam para o amadurecimento da sociedade brasileira e para a capacidade de combater a violência contra a mulher.

2. Desenvolvimento Atualmente, o perfil da família brasileira sofre grandes transformações; a multiplicidade dos modos de convivência cresce significativamente, como indica o CENSO 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística. A posição que as mulheres ocupam na composição social permite outros arranjos; contudo, traços de patriarcalismo, machismo e patrimonialismo sobrevivem da maneira acentuada nas relações de gênero. Junto às transformações sociais, o movimento feminista atuou no fortalecimento de relações menos desiguais entre homens e mulheres: O movimento feminista, nos anos 1970, teve muita influência no fortalecimento da mulher, mesmo para a parcela da população que nunca participou de manifestações feministas. Nos anos 1980, houve grande crescimento de movimentos de luta urbana, atuantes nas periferias das grandes cidades, reivindicando melhorias nos bairros, com relação à saúde, educação e outros benefícios próprios da infraestrutura urbana (Singer & Brant, 1980). Esses movimentos sociais eram formados e liderados, em sua maioria, por mulheres, que foram emergindo de suas tarefas domésticas para lançar o olhar sobre a cidade. Com o fim do regime militar e a nova Constituição, a atenção à família começou a crescer, tendo como foco, de início, a criança, contemplada com o Estatuto da Criança e do Adolescente. O Estado de bem-estar social que se imaginava em gestação nas décadas passadas, aparece sempre mais como um sonho destinado a não se realizar. (PETRINI apud BORGES E CASTRO, 2007, p.220).

A violência doméstica, sofrida pelas mulheres, historicamente ficou relegada ao âmbito privado. A violência masculina desfrutou de maior visibilidade, 15 MIOLO_Violencia domestica e linhas de vida_230613_Tales.indd 15

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Isabela Maria Marques Thebaldi Extensionista do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Graduanda em Direito pela PUC Minas Praça da Liberdade. Laura Augusta Souza Freitas Extensionista do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Graduanda em Direito pela PUC Minas Praça da Liberdade.

O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” provoca a ressignificação dos componentes metodológicos implicados com a escuta atenta, as intervenções assertivas, o desenvolvimento de práticas que permitam a afirmação de novos modos de existência após o encontro infame com a violência e o Estado, bem como a problematização de gênero e das relações de poder estabelecidas a partir das estruturas patrimoniais, cartoriais e machistas. Assumida essa premissa, o professor, psicólogo e pesquisador, Bruno Vasconcelos de Almeida, parte da assertiva de que, para ser realizado com a pesquisa e a extensão, o ensino necessita incorporar os processos metodológicos da pesquisa, tendo a pergunta como ponto de partida da aprendizagem, para garantir aos professores e alunos a possibilidade de se debruçarem sobre os problemas da prática social, levando em conta desafios e oportunidades para a construção de uma sociedade que, entre ser justa ou injusta, seja minimamente justificada. Mas, o processo de argumentação não é, por assim dizer, linear, mas antes reticular; seu aspecto não lembra uma cadeia, mas, sim, a trama de um tecido. Trata-se da indissociabilidade do ensino, pesquisa e extensão, na forma da interdisciplinaridade, multidisciplinaridade e transdisciplinaridade, implicadas com a publicação que é o único instrumento de caráter científico capaz de demonstrar a reflexão gerada a partir da prática – uma prática que favoreça o questionamento sistemático e crítico dos alunos com relação ao objeto de estudo, às teorias a partir das quais estes se constituem e aos aspectos da ação profissional futura. Luiz Augusto Lima de Ávila

Doutor em Lingüística e Língua Portuguesa pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC Minas. Professor Adjunto IV da Faculdade Mineira de Direito e do Departamento de Ciências Humanas da PUC Minas.

Violência Doméstica e Linhas de Vida

Bruno Vasconcelos de Almeida Doutor em Psicologia Clínica pela PUC de São Paulo. Professor do Departamento de Psicologia da PUC Minas. Psicólogo e Acom­panhante Terapêutico. Coordenador do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida”. Autor dos livros “Cartografias da Alegria na Clínica e na Literatura” e “Clínica e Beatitude”.

Violência Doméstica e Linhas de Vida Bruno Vasconcelos de Almeida Isabela Maria Marques Thebaldi Laura Augusta Souza Freitas (Orgs.)

O projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” está implicado essencialmente com a vida. Ele objetiva reduzir os efeitos lesivos da violência doméstica e, ao mesmo tempo, fortalecer o conjunto de ações e estratégias de construção de redes de combate às diferentes modalidades da violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Ele é realizado por um coletivo. Esse coletivo contém sujeitos capturados nos processos da violência doméstica, profissionais da área de segurança, estudantes e professores da PUC Minas. Os caminhos do projeto propiciam encontros em salas de aula, em uma delegacia, em corredores, nas ruas. Intensidades são disparadas nas piores situações da vida, agressões que nos fariam descrer da possibilidade de um trabalho que aposta no aumento da potência de viver, sobretudo a partir dos cruzamentos subjetivos, legais, clínicos, sociais e de direitos, que giram em torno das forças esmagadoras da violência. O trabalho extensionista implica o abandono dessa descrença e traça cotidianamente linhas de vida que se destacam sobre as linhas de morte da violência, e afirma a capacidade criativa das práticas desenvolvidas na articulação ensino, pesquisa e extensão. Esse livro expressa algo desses movimentos heterogêneos. Bruno Vasconcelos de Almeida. Doutor em Psicologia Clínica – PUC-SP Professor do Departamento de Psicologia – PUC MINAS

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Coordenador do Projeto “Violência Doméstica e Linhas de Vida” www.livrariadplacido.com.br

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