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Haykin, Michael A. G. 8 mulheres de fé / Michael A. G. Haykin ; [tradução: Catarina Muller] ; [ilustrações: Vanessa Alexandre]. – São José dos Campos, SP: Fiel, 2017. 210 p. : il. Tradução de: Eigth women of faith. Inclui bibliografia. ISBN 9788581324159 1. Mulheres no cristianismo - Biografia. 2. Vida cristã. I. Título. CDD: 248.843
Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477 Oito Mulheres de Fé Traduzido do original em inglês Eight Women of Faith Copyright © 2016 by Michael A. G. Haykin.
Publicado por Crossway Books, Um ministério de publicações de Good News Publishers 1300 Crescent Street Wheaton, Illinois 60187, USA.
Copyright © 2017 Editora Fiel Primeira Edição em Português: 2017 Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária
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Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.
Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago J. Santos Filho Coordenação Editorial: Renata do Espírito Santo Tradução: Catarina Muller Revisão: Shirley Lima - Papiro Soluções Textuais Diagramação: Larissa Nunes Capa: Larissa Nunes ISBN: 978-85-8132-415-9
Caixa Postal, 1601 CEP 12230-971 São José dos Campos-SP PABX.: (12) 3919-9999
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Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Gênesis 1.27
Para John Friesen, Bev Offner, bem como à equipe e aos visitantes do Centro Bíblico Muskoka, Huntsville, Ontário 5 2008–2015
Sumário Prefácio, por Karen Swallow Prior | 07 Introdução | 11
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Anne Dutton e suas obras teológicas “A glória de Deus e o bem das almas” | 77
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Esther Edwards Burr sobre a amizade “Um dos melhores auxílios para manter a religião na alma” | 145
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Ann Judson e o projeto missionário “A verdade nos impeliu” | 163
O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante “Somente a fé justifica” | 23 O testemunho de Richard Baxter sobre Margaret Baxter “Governado por seu amor prudente em muitas coisas” | 49
Sarah Edwards e a visão de Deus “Uma doçura maravilhosa” | 101 Anne Steele e seus hinos “A língua melodiosa que cantou... O grande louvor de seu Redentor” | 125
A fé cristã de Jane Austen “O valor da santa religião” | 189 7
pre ácio Gênesis 2 nos conta que Deus criou um jardim com “toda a sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento” (v. 9). Deus disse a Adão que comesse livremente de toda árvore, à exceção de uma. Mas, em vez de focarem na abundância que Deus havia oferecido livremente, Adão e Eva direcionaram o foco para a única coisa que estava fora dos limites. E, depois disso, o resto é a história da humanidade. Tanto dentro como fora da Igreja, temos tratado, de igual forma, a admoestação bíblica em relação ao ministério feminino: focamos na única coisa que está fora dos limites e, portanto, fracassamos em perceber as numerosas opor9
tunidades e os papéis que Deus claramente nos ofereceu, alguns, inclusive, retratados de maneira persuasiva nas histórias presentes neste livro. Igualmente, a admoestação bíblica tem gerado, com frequência, limitação extrabíblica às mulheres, assim como opressão antibíblica, o que também se reflete nas restrições no âmbito social que essas oito mulheres experimentaram em suas vidas. Esse tipo de fracasso em relação às mulheres – limitações injustamente impostas em sua personalidade e igualdade de alma – tem levado, algumas vezes, a um fracasso secundário: a falha em ver e contar as histórias das mulheres de modo claro, verdadeiro e satisfatório. Dessa forma, existe uma abundância de obras sobre a vida de mulheres na Igreja que apresentam aos leitores santas não realistas, mulheres que não são de carne e osso. Esses relatos constituem bons contos de fadas, mas não são exemplos justos ou adequados da verdadeira vida de fé. Por outro lado, boa parte da retrospectiva sobre as mulheres na história tende a voltar o foco, de maneira compreensível e às vezes justa, às limitações impostas às mulheres. Muito foi negado às mulheres, e ainda o é, tanto na igreja como na cultura em geral. Os instantâneos deste livro de somente oito mulheres em apenas dois séculos oferecem uma surpreendente gama de conquistas obtidas e de papéis desempenhados por mulheres em uma época em que não representavam nem mesmo uma segunda categoria de cidadãs, pois sequer eram 10
Prefácio
consideradas cidadãs. Então, apesar (e talvez por causa) desses tais obstáculos, as contribuições e realizações das mulheres são ricas e variadas. Nestas páginas, encontramos rainha, esposa, teóloga, compositora de hinos, romancista, missionária, filha e amiga. Ainda mais importante, encontramos mulheres de fé cujas vidas manifestaram a graça e a glória de Deus por meio de sua obediência fiel aos papéis para os quais foram chamadas, na vida de solteira ou no casamento, na doença ou na saúde, na riqueza ou na pobreza e, por fim, na morte. As facetas da feminilidade representadas em Oito mulheres de fé brilham intensamente. Essa abundância é notável especialmente no princípio da era moderna representada pelas vidas detalhadas aqui. O período se articula com um momento decisivo e bastante significativo tanto na história da humanidade como na história da Igreja: a Reforma Protestante. A ênfase da Reforma na fé somente e nas Escrituras somente deu origem ao indivíduo moderno (e, assim, à tradição evangélica) – e é a vida das mulheres que reflete mais claramente as dramáticas mudanças históricas daí decorrentes. São as mulheres de fé, particularmente a fé evangélica (com sua ênfase na salvação individual), que espelham, de modo mais evidente, essa grande mudança na história e na cultura da humanidade que engrandeceu a atividade humana e a igualdade. Esses avanços me levaram a fazer meu próprio estudo sobre uma mulher evangélica dessa era, Hannah More, poeta britânica, abolicionista e re11
formadora do final do século XVIII e começo do XIX – e me trouxeram também a esta obra fascinante. Os retratos pintados por Haykin dessas mulheres extremamente diferentes não as reduzem nem aos seus papéis, nem à sua religião, mas, em vez disso, mostram como a fé delas informava, formava e cumpria com seu chamado na terra. Além disso, independentemente de seus relacionamentos com os homens (solteiras, casadas, esposas, filhas ou mães), as mulheres são apresentadas como indivíduos, sendo tanto influenciadas como influenciadoras nos papéis que desempenham. Margaret Baxter e Sarah Edwards, por exemplo, são descritas como servas fiéis do evangelho, que tanto foram servidas como serviram a seus respectivos maridos, Richard Baxter e Jonathan Edwards. A teologia incorporada pelos escritos de Anne Dutton, Anne Steele e Jane Austen demonstra a abundância no jardim de Deus: podemos obedecer ao mandamento de não comer do fruto proibido e, ainda assim, usufruir de um banquete suficientemente abundante para nutrir todos os fiéis. As vidas aqui retratadas demonstram a verdade das palavras de Jane Austen, as quais se aplicam a homens e mulheres de igual forma: “Os cristãos devem levantar-se e trabalhar neste mundo”. As mulheres apresentadas nesta obra, cada uma à sua maneira, fizeram isso. E, após ler sobre elas, você também desejará fazer. Karen Swallow Prior Liberty University,Virgínia, EUA 12
˜ introduçao A palavra feminismo apareceu pela primeira vez na língua inglesa no final do século XIX.1 Apesar disso, já havia, por um período considerável antes disso, vários debates sobre o papel e o status da mulher na sociedade. Veja, por exemplo, a era histórica das Guerras Civis Britânicas (1638– 1651) e o governo republicano do puritano Oliver Cromwell (1599–1658), que se seguiram a essas guerras, na década de 1650. Trata-se de um período histórico que tem sido descri1 Lisa L. Moore e Joanna Brooks, “Introduction”, em Transatlantic Feminisms in the Age of Revolution, ed. Lisa L. Moore, Joanna Brooks e Caroline Wigginton (Oxford, UK: Oxford University Press, 2012), 7.
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to adequadamente como “um mundo de cabeça para baixo”. Muitos assuntos antes tomados como certos passaram a ser questionados e, entre essas questões, estavam aquelas que tratavam do papel da mulher. Os quakers e as mulheres pregadoras Os quakers, por exemplo, que surgiram como uma força poderosa nos anos 1650, declaravam que não havia diferença espiritual entre homens e mulheres, e, portanto, não deveria haver distinção no ministério. Margaret Fell (1614– 1702), esposa do líder quaker George Fox (1624–1691), afirmava seu direito de pregar em sua obra mais conhecida como Women’s Speaking Justified, Proved and Allowed of by the Scriptures (Londres, 1666),2 assim como algumas outras mulheres quakers nas décadas de 1640 e 1650, como Elizabeth Fletcher (c. 1638–1658), em Oxford, e Martha Simmonds, em Londres, e isso às vezes de modo contrário à liderança quaker masculina.3 Jacqueline Broad observa que os argumentos de Margaret Fell em favor da pregação feminina se baseavam em um princípio de igualdade espiritual 2 Ver Jacqueline Broad, “Margaret Fell”, na Stanford Encyclopedia of Philosophy. Acesso em 31 jul. 2015. Disponível em http://plato.stanford.edu/entries/margaret-fell/. Fox já tinha escrito The Woman Learning in Silence (1656), desafiando aqueles que limitavam o Espírito de Deus a “homens estudados, velhos livros e [velhos] autores” e não permitiam que as mulheres falassem na igreja. 3 Sobre Simmonds, ver Patricia Crawford, “The Challenges to Patriarchalism: How Did the Revolution Affect Women?”, em Revolution and Restoration England in the 1650s, ed. John Morrill (London: Collins & Brown, 1992), 122.
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Introdução
ou na ideia de que tanto homens como mulheres têm a luz sobrenatural de Cristo dentro de si. Mas, para Fell, a habilidade de alcançar aquela luz requer, implicitamente, que as mulheres tenham a capacidade natural de discernir por si sós a verdade, de exercitar a força de vontade e de exibir virtude moral ou excelência de caráter. Nesse aspecto, os argumentos de Fell favoráveis à pregação feminina contêm um desafio feminista implícito às percepções negativas no que diz respeito à moral e às habilidades intelectuais da mulher daquele tempo.4 Resposta puritana à visão quaker sobre a pregação feminina Essa breve discussão dos quakers é significativa, pois as mulheres pregadoras quakers fortaleceram na mente dos puritanos mais convencionais, como, por exemplo, os batistas, que haver mulheres pregando era algo definitivamente errado.5 Em 1645, antes do surgimento dos quakers, quando alguns representantes das igrejas batistas calvinistas se encontraram – no que ficou conhecido como Western Association, questionou-se se as mulheres podiam falar na igreja. A resposta foi clara: “Não é permitido que a mulher fale na Igreja em circunstância alguma, seja orando, pregan4 Broad, “Margaret Fell”. 5 Ver B. R. White, The English Baptists of the Seventeenth Century, vol. 1, A History of the English Baptists (Oxfordshire, UK: Baptist Historical Society, 1996), 136.
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do, profetizando ou perguntando, 1Co 14.34; 1Tm 2.11”.6 A mesma questão foi levantada cerca de dez anos depois, com o início do movimento quaker. Dessa vez, o questionamento foi feito na Midland Association. Basicamente, a resposta foi a mesma, somada à razão para o silêncio das mulheres: por causa da “inferioridade do sexo delas” e para prevenir qualquer “usurpação de autoridade sobre o homem”. Apesar disso, foram feitas cinco exceções para os momentos em que uma mulher podia falar na igreja: 1. Dar testemunho público de conversão ao desejar batizar-se ou se tornar membro da igreja. 2. Fazer relatório caso tenha trabalhado em prol da restauração de algum membro desobediente. 3. Se tiver recebido uma mensagem de outra congregação (teriam pensado em Febe aqui, Romanos 16.1.2?). 4. Se precisasse da ajuda da igreja e tivesse de expor essa necessidade diante da congregação. 5. Se tivesse sido “desassociada” por causa de pecado e estivesse em busca do perdão da congregação e de reconciliação.77
6 Citado em ibid., 147. 7 Ibid., 148–49.
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Introdução
Mulheres essenciais para o não conformismo puritano Apesar dessas restrições, nos grupos puritanos convencionais – batistas, assim como nos congregacionais e presbiterianos –, as mulheres desempenhavam papel crítico em duas áreas fundamentais. Em primeiro lugar, exerciam a função fundamental de ensinar às crianças e aos servos em casa, de acordo com a nota de rodapé na Bíblia de Genebra interpretando Deuteronômio 21.18: “É dever da mãe também instruir seus filhos”.8 Defensores da Igreja estatal temiam essa ênfase dos puritanos na família como uma escola de vida piedosa, pois, a seu ver, isso enfraquecia a igreja paroquial.9 Então, ao abrir seus lares para os ministros puritanos, as mulheres desempenhavam, com frequência, um papel importante no estabelecimento das congregações puritanas. Por exemplo, a sra. Dorothy Hazzard (–1675) se separou da igreja paroquial de seu marido, Matthew Hazzard, em 1640, a fim de estabelecer o que, mais tarde, se tornou a Igreja Batista Broadmead. A igreja começou de fato com Hazzard e quatro homens se encontrando na casa dos Hazzard, a qual, é claro, também era a casa do ministro da paróquia! Três anos depois, a igreja já contava com cento e sessenta 8 Richard L. Greaves, “The Role of Women in Early English Nonconformity”, Church History 52 (1983): 301–2. 9 Amanda Porterfield, “Women’s Attraction to Puritanism”, Church History 60 (1991): 205.
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membros. Não surpreende que essa congregação também designasse diaconisas nos anos de 1660 e 1670. A primeira diaconisa a ser nomeada foi Mary West, em 1662. Após a sua morte, Mary foi substituída, em 1673, por uma “irmã Murry” e, até 1679, outras três mulheres haviam sido designadas. De acordo com 1Tm 5.9, essas mulheres deviam ser viúvas com mais de sessenta anos de idade que concordassem em não buscar novo casamento. Elas deviam cuidar das necessidades físicas dos doentes da congregação e estar prontas a “comunicar palavras às suas almas sempre que a ocasião assim o exigisse”.10 Como Patricia Crawford corretamente conclui, “as mulheres foram essenciais para o não conformismo”, tanto para seu surgimento como para seu crescimento.11 O apóstolo Paulo e os dias modernos Os papéis fundamentais que as mulheres desempenhavam no avanço das congregações puritanas e não conformistas têm precedentes bíblicos de peso. Por exemplo, uma leitura atenta de Romanos 16.1-16 revela a verdade do co10 Greaves, “Role of Women in Early English Nonconformity”, 302; Claire Cross, “‘He-Goats Before the Flocks’: A Note on the Part Played by Women in the Founding of Some Civil War Churches”, in Popular Belief and Practice, ed. G. J. Cuming e Derek Baker (Cambridge, UK: Cambridge University Press, 1972), 195–98; Anne Laurence, “A Priesthood of She-Believers: Women and Congregations in Mid-Seventeenth-Century England”, em Women in the Church, ed. W. J. Sheils e Diana Wood (Oxford, UK: Basil Blackwell for the Ecclesiastical History Society, 1990), 350–51; White, English Baptists of the Seventeenth Century, 146. 11 Crawford, “Challenges to Patriarchalism”, 123.
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Introdução
mentário de Roger Gryson, no sentido de que “não há dúvidas de que Paulo se beneficiou de numerosos exemplos de assistência por parte de mulheres em seu serviço como apóstolo”.12 Dos vinte e sete crentes mencionados em Romanos 16, dez são mulheres, com uma parte sendo elogiada por seu trabalho dedicado ao Senhor (Maria, v. 6; Trifena e Trifosa, v. 12a; Pérsida, v. 12b) e outras que foram especialmente reconhecidas por sua ajuda a Paulo (Febe, v. 1-2; Priscila, v. 3-4; a mãe de Rufo, v. 13b). As observações de Paulo nesse capítulo de Romanos têm de ser vistas à luz do ambiente cultural de seu tempo, o qual, frequentemente, menosprezava as mulheres. Hoje, felizmente, as tendências misóginas de certas áreas da cultura ocidental têm sido desafiadas, e as questões que os cristãos enfrentam nesse sentido são, de certa forma, diferentes daquelas de Paulo. Um movimento feminista forte na cultura ocidental gerou, de maneira eficaz, uma crise de masculinidade em muitas áreas do pensamento ocidental. Do menosprezo das mulheres, nossa cultura tem oscilado em muitos aspectos para o extremo oposto: o menosprezo dos homens. E, no meio disso tudo, a Igreja precisa manter-se fiel ao testemunho bíblico. Em uma cultura inundada por um tsunami de feminismo, o grande perigo para a Igreja 12 Roger Gryson, Le Ministère des femmes dans l’Église ancienne (Gembloux, France: Editions J. Duculot, S. A., 1972), 25. Ver também H. Wayne House, “The Ministry of Women in the Apostolic and Postapostolic Periods”, Bibliotheca Sacra 145 (1988): 387–88.
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é ter uma reação automática e falhar em apreciar o que a geração dos apóstolos e a de nossos antepassados puritanos e não conformistas sabiam: a importância vital das mulheres para a vida da Igreja. A gênese e a natureza deste livro Este livro – um ensaio estendido que abrange oito diferentes vinhetas históricas e textuais – busca lembrar os cristãos contemporâneos, em especial os evangélicos, do papel vital que as mulheres têm desempenhado na história de nossa fé. Embora eu tenha começado a palestrar nos anos 1990 sobre as mulheres na história da Igreja, a inspiração imediata para este livro reside em uma sugestão feita por meu bom amigo Jim Fraser, professor de ensino médio no Simcoe County School Board, durante uma semana em que eu estava ensinando no Centro Bíblico Muskoka, em Ontário, no verão de 2013. Na ocasião, ele observou que Eric Metaxas acabara de lançar seu livro Seven Men: And the Secret of Their Greatness13 e que eu deveria escrever um livro equivalente sobre as mulheres. Eu estava desejoso de seguir essa sugestão enquanto reconhecia a real necessidade de um livro desse tipo na vida da Igreja. Sou muito grato pelo encorajamento contínuo de Jim para que eu escrevesse sobre esse tópico. 13 Eric Metaxas, Seven Men: And the Secret of Their Greatness (Nashville: Thomas Nelson, 2013).
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Introdução
Eu havia deparado com obras antigas, tais como Memoirs of Eminently Pious Women of the British Empire (1823), de Samuel Burder, uma expansão de três volumes de um volume anterior de Thomas Gibbons, que fora publicado pela primeira vez em 1777. No entanto, livros assim estavam esgotados havia muito tempo. Mais recentemente, Jamie Janosz escreveu When Others Shuddered: Eight Women Who Refused to Give Up,14 com foco em oito figuras do século XIX. De diversas maneiras, eu sentia que os séculos anteriores, principalmente o século XVIII, mereciam especial investigação, especialmente porque foi nesse século que a cultura ocidental se lançou no projeto “inovador” de reconfigurar a sociedade com base inteiramente na razão e na experiência humana. Como as mulheres cristãs daquele período teriam respondido aos desafios à sua volta? Assim, o livro que está em suas mãos resulta da interação desses eventos passados e de sugestões. Ao longo do caminho, tive o privilégio de ensinar parte desse material não apenas em minhas turmas no Seminário Teológico Batista do Sul, como também em conferências de um dia na Igreja Batista do Calvário de Lenexa, Kansas (graças, em particular, ao pastor Brian Albert), e na Igreja Batista Emmanuel, em Otisville, Michigan (graças ao pastor Leroy Cole). Boa parte desses capítulos também foi ensinada em sessões matinais em uma semana bíblica no Centro Bíblico Muskoka, 14 Jamie Janosz, When Others Shuddered: Eight Women Who Refused to Give Up (Chicago: Moody, 2014).
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no verão de 2014, e sou profundamente grato a John Friesen, CEO desse Centro, pela oportunidade de fazê-lo, e a toda a equipe do Centro Bíblico, que facilitou o processo. Finalmente, sou muito grato também a Linda Reed, pelo convite para coensinar um curso, “As grandes mulheres da fé cristã”, em junho passado, no Seminário Teológico Heritage, o que me ajudou a focar nos capítulos deste livro. De algumas maneiras, o livro se divide em duas partes. Os dois primeiros capítulos, sobre Lady Jane Grey e Margaret Baxter, exploram a vida das mulheres na Igreja antes das mudanças significativas do século XVIII. Jane fala de como as mulheres se apropriaram da fé na Reforma, e Margaret mostra como as mulheres ajudaram os homens em seu ministério – nesse caso, seu marido, Richard Baxter. Exploro esses temas analisando certos textos, escritos tanto por essas duas mulheres como a respeito delas. Os seis capítulos seguintes constituem um ensaio prolongado sobre como era ser uma mulher cristã no século XVIII, e os escritos, mais uma vez, desempenham papel crucial nos capítulos. Anne Dutton, uma autora teóloga altamente competente, ajudou ao atuar como guia espiritual em seus livros; Sarah Edwards, que praticamente não deixou nenhuma pegada impressa, embora isso revele o modo como as mulheres cristãs tiveram experiências profundas de Deus para a bênção da Igreja; Anne Steele é pioneira entre as mulheres compositoras de hinos, com os quais as mulheres auxiliaram o louvor congregacional por meio da canção e da melodia; o diário de 22
Introdução
Esther Edwards Burr, filha de Sarah Edwards, é uma janela fabulosa com vista para a amizade cristã, uma área da vida cristã há tanto tempo negligenciada. Ann Judson foi uma missionária pioneira com seu marido e se tornou uma espécie de ícone por gerações de mulheres missionárias que a seguiram; e, finalmente, há um capítulo sobre Jane Austen, de longe a mulher mais famosa entre todas as apresentadas neste livro, que também era uma cristã séria, embora isso não seja lembrado com frequência. Que o Espírito Santo se agrade de usar este livro para o bem tanto de homens como de mulheres na Igreja do Senhor Jesus. Dundas, Ontário 31 de julho de 2015
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01 O testemunho
de Jane Grey, uma rainha protestante “Somente a fé justifica” A data é 10 de fevereiro de 1554. Estamos em um quarto na Torre de Londres, onde Lady Jane Grey (1537–1554), que havia sido rainha da Inglaterra por pouco mais de uma semana no ano anterior – de 10 a 19 de julho de 1553 –, está aprisionada. Ela foi condenada à morte por sua prima, Maria I (1516–1558), também conhecida por “Bloody Mary”. Embora Mary, uma católica romana ultraconservadora, esteja determinada a dar um fim à vida terrena de Jane, tam25
bém quer salvar a alma da prima. Por isso, enviou um de seus capelães mais capacitados, um monge beneditino chamado John Feckenman (c. 1515–1584), para falar com Jane e convencê-la de seus erros teológicos.1 Feckenham não era nenhum novato no debate teológico, visto que havia argumentado com diversos teólogos protestantes importantes do começo dos anos 1550, homens como John Hooper (1500–1555) e John Jewel (1522–1571). É possível que ele tenha pensado que uma jovem como Jane encontraria dificuldade para resistir à sua capacidade de raciocínio. Após a partida de Feckenham, Jane fez o registro desse diálogo. De acordo com o relato dela – e não temos relato similar de Feckenham, embora não pareça haver motivo para duvidar da veracidade da recordação de Jane –, depois de ela haver confessado sua fé na triunidade de Deus, ela afirmou que as pessoas são salvas somente pela fé. Feckenham respondeu citando 1Co 13.2: “Ainda que eu tenha tamanha fé... se não tiver amor, nada serei”. Em outras palavras, Feckenham estava persistindo na ideia de que a salvação resultava tanto da fé como do amor demonstrado pelas boas obras. Jane manteve sua posição: 1 Seu nome verdadeiro era John Howman; ele nasceu em Feckenham, Worcestershire, e, como o historiador J. Stephan Edwards observa, era comum na época que monges abandonassem o sobrenome de suas famílias e, em seu lugar, usassem apenas seu primeiro nome e o nome da cidade em que haviam nascido – assim, “John de Feckenham”, em uma entrevista com Justin Taylor, “The Execution of Lady Jane Grey: 460 Years Ago Today”. Acesso em 27 jul. 2015. Disponível em http://www. thegospelcoalition.org/blogs/justintaylor/2014/02/12/the-execution-of-lady-jane-grey-460-years-ago-today/.
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O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante Jane: É verdade, pois como posso amar alguém em quem não confio? Ou como posso confiar em quem não amo? A fé e o amor caminham juntos, em consonância, embora o amor esteja compreendido na fé. Feckenham: Como podemos amar o nosso próximo? Jane: Amar o nosso próximo é alimentar os famintos, vestir aquele que está nu e dar de beber aos sedentos, e fazer a ele o que faríamos a nós mesmos. Feckenham: Por que, então, é necessário fazer boas obras para a salvação e crer apenas não é suficiente? Jane: Isso, eu nego e afirmo que somente a fé salva. Mas é apropriado para os cristãos, como sinal de que eles seguem seu mestre, Cristo, fazer boas obras, mas, apesar disso, não podemos dizer que elas tenham proveito para a salvação. Pois, embora todos nós façamos tudo o que podemos, ainda assim somos servos inúteis, e somente a fé no sangue de Cristo salva.2
2 An Epistle of the Ladye Jane Whereunto is added the communication she had with Master Feckenham... Also another epistle which she wrote to her sister, with the words she spake upon the Scaffold before she suffered (n.p., 1554), [18–19], grafia modernizada. Essa fonte não é paginada. O texto também pode ser encontrado em The Harleian Miscellany (London: Robert Dutton, 1808), 1:369–71, com a grafia original com que Jane o escreveu.
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Quem foi essa jovem extraordinária e como ela chegou a essa situação crítica na infame Torre de Londres? Sob alguns aspectos, é difícil contar a história de Jane, visto que não pode ser compreendida sem que se leve em conta a política em torno de sua vida. Assim, ao lembrarmos sua história, embora nosso foco se volte para sua fé cristã, o cenário político não pode ser ignorado. Jane era neta da irmã mais nova e favorita de Henrique VIII (1491–1547), Maria Tudor (1496–1533), e, portanto, era sobrinha-neta daquele malicioso monarca. Ao longo da vida, Jane foi a quarta na linha de sucessão ao trono inglês após os três filhos de Henrique – Eduardo VI (1537–1553), Maria e Elizabete (1533–1603) – e foi coroada depois da morte de seu primo Eduardo VI, em 1553. Assim, qualquer reflexão acerca da vida de Jane envolve, inevitavelmente, observar a política da época. O início da vida de Jane Jane Grey foi filha de Henry Grey (1517–1554), o Marquês de Dorset, e sua esposa, Frances (1517–1559), sobrinha de Henrique VIII. Jane nasceu em Bradgate Manor, a suntuosa casa que possuíam em Leicestershire, no começo de outubro de 1537. Seu nome parece ter sido uma homenagem à então rainha, Jane Seymour (c. 1508–1537), a terceira esposa de Henrique VIII e mãe do futuro Eduardo VI. Os pais de Jane eram extremamente ambiciosos e cruéis, pessoas que não retrocediam diante de nada. A princípio, 28
O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante
eles esperavam casar Jane com Eduardo, o único filho de Henrique VIII, que tinha nascido no mesmo mês de Jane. Por isso, impuseram à menina um sistema rígido de educação, exigindo que ela dominasse línguas como latim, grego, francês e italiano, a fim de se tornar atraente ao futuro monarca. Em 1546, quando tinha nove anos, Jane foi enviada à corte de Henrique, a fim de viver sob a guarda da Rainha Catherine Parr (1512–1548), a sexta e última esposa de Henrique VIII. Tudo isso fazia parte do esquema egoísta de seus pais de casá-la com Eduardo e, assim, melhorar seu status na sociedade. Mas, segundo a providência de Deus, isso fez com que Jane ficasse sob a influência de Catherine Parr, uma das mulheres mais charmosas e inteligentes da época, alguém que, ademais, era uma cristã genuína. Nas palavras de um de seus capelães: “Sua bondade rara fazia com que todo dia fosse domingo”.3 Parece que foi durante essa temporada na casa da Rainha Catherine que Jane adquiriu fé viva em Cristo.4 Como Paul Zahl observou, Catherine foi “a verdadeira mãe de Jane no cristianismo”.5 Em 1547, no entanto, com a morte de Henrique VIII, Catherine Parr ficou viúva e, em consequência, Jane logo 3 Faith Cook, Lady Jane Grey: Nine Day Queen of England (Durham, UK: Evangelical Press, 2004), 39. A obra de Faith Cook tem sido muito útil no estudo de Jane Grey, assim como o breve ensaio de Paul F. M. Zahl, Five Women of the English Reformation (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2001), 56–74. Para uma biografia recente de Katherine Parr, juntamente com uma edição de alguns de seus escritos, ver Brandon G. Withrow, Katherine Parr: A Guided Tour of the Life and Thought of a Reformation Queen (Phillipsburg, NJ: P&R, 2009). 4 Cook, Lady Jane Grey, 43. 5 Zahl, Five Women, 59.
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retornou para a casa de seus pais. Henrique foi substituído no trono por seu filho Eduardo, que foi coroado Eduardo VI, em 20 de fevereiro de 1547. Ele tinha apenas nove anos de idade. Apesar disso, Eduardo estava cercado de vários conselheiros piedosos, entre eles, Thomas Cranmer (1489– 1556), o Arcebispo de Canterbury, que estava determinado a tornar a Inglaterra o bastião da fé reformada.6 O grande reformador francês João Calvino (1509–1564) de fato escreveu uma carta ao guardião de Eduardo, seu tio Eduardo Seymour (c. 1500–1552), em que comparava Eduardo VI ao Rei Josias. E, com o tempo, o jovem monarca inglês foi realmente como Josias, desejoso de que seus súditos aprendessem a verdade bíblica. Entre uma centena de tratados que saíram das mãos de Eduardo, uma boa parte evidencia, de forma clara, seu comprometimento com a fé evangélica. Quando Jane retornou à casa dos pais, em Bradgate, parece que eles a viram como um “símbolo de fracasso e esforços em vão – e a trataram à altura”.7 A reação de Jane foi entregar-se aos estudos. Jane começou a se sobressair no grego e até começou a se corresponder com alguns reformadores do continente europeu, como Martin Bucer (1491– 1551), que, na ocasião, vivia em Cambridge, e Heinrich 6 Sobre Cranmer, ver Michael A. G. Haykin, The Reformers and Puritans as Spiritual Mentors: “Hope Is Kindled”, The Christian Mentor, vol. 2 (Ontário, Canadá: Joshua Press, 2012), 31–48. 7 “Lady Jane Grey – Biography: Jane and the Seymours – till Somerset’s fall (1549/1550)”. Acesso em 27 jul. 2015. Disponível em http://www.geocities.ws/ jane_the_quene/bio3.html.
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Bullinger (1504–1575), de Zurique.8 Ela estava crescendo na graça e se tornando bem articulada em sua fé, embora haja evidência de que ela tivesse uma personalidade muito forte e, às vezes, mostrasse um lado bastante teimoso, como muitos outros de seus parentes Tudor.9 Casamento e morte de Eduardo Na primavera de 1552, o Rei Eduardo contraiu sarampo e, sem tempo para se recuperar, logo começou a apresentar sintomas de tuberculose. À medida que o ano se passava, tornava-se cada vez mais claro para aqueles que estavam próximos ao rei que ele não chegaria à idade adulta. O testamento de Henrique VIII havia nomeado sua filha Mary como a próxima na linha de sucessão ao trono. Se Eduardo não se casasse e gerasse um herdeiro, um católico governaria a Inglaterra. O primeiro-ministro de Eduardo, John Dudley (1504–1553), Duque de Northumberland, bem sabia que seria punido por Maria em razão de seu apoio à causa protestante. Então, começou a buscar um meio de evitar que ela se tornasse rainha. Jane Grey era a quarta na linha de sucessão ao trono e representava, para Northumberland, sua única chance real de manter o poder e o status que ele havia conquistado. Assim, deu início a uma aproximação com Henry e Frances Grey e, no momento apropriado, os 8 Cook, Lady Jane Grey, 94–99. 9 Ibid., 93.
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convenceu a casar a filha deles, Jane, com seu filho, Guildford Dudley (1535–1554). No começo de maio de 1553, os pais de Jane disseram a ela que deveria casar-se com Guildford. Embora Jane tenha protestado e se recusado categoricamente, pois tinha aversão a Guildford, não obteve sucesso. Depois de seu pai insultá-la e amaldiçoá-la, e sua mãe lhe dar uma surra terrível, ela cedeu.10 Então, em 25 de maio de 1553, Jane se casou com Guildford em Durham House, Londres. Oito semanas depois, no dia 6 de julho de 1553, uma quinta-feira, o Rei Eduardo, então com quinze anos, faleceu, cercado por seus conselheiros, que se haviam reunido à beira de seu leito. Em seus últimos dias, encorajado por John Dudley, mas também em consonância com seu próprio modo de pensar, ele mudou o testamento de seu pai e fez de Jane sua herdeira. Suas duas meias-irmãs, Maria e Elizabete, haviam sido deserdadas pelo pai antes da morte de Henrique VIII, e Thomas Cranmer, o Arcebispo de Canterbury, declarara as duas ilegítimas, de modo que, tecnicamente, nenhuma das duas poderia herdar o trono.11 Jane não soube da morte de Eduardo até o dia 9 de julho, um domingo, quando, então, foi informada de que deveria ir à residência do Duque de Northumberland, a Syon House, em Isleworth, no Thames. Duas horas mais tarde, quando Jane entrou na Syon House pelo lado do rio, ingressou pri10 Ibid., 109–10. 11 Ibid., 116.
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meiro no que era chamado de Great Hall. Aos poucos, o recinto se encheu de pessoas conhecidas de Jane, inclusive os membros do Conselho Privado e sua família mais próxima, todos jurando defender, com a própria vida, o direito dela ao trono. Bastante comovida com a notícia da morte de seu primo, o rei, juntamente com o choque de ouvir sua proclamação como rainha, Jane desmaiou. Aparentemente, ninguém foi ajudá-la, até que ela, por fim, se reanimou por si só, se levantou e, mostrando-se inflexível, insistiu que não era ela a rainha por direito. Esse direito era de Maria. Dudley, então, respondeu: “Vossa Graça age indevidamente consigo mesma e com sua casa”. Ele, então, narrou os termos do testamento de Eduardo, que a nomeava como sua herdeira. Os pais de Jane se juntaram a ela, exigindo que ela aceitasse. Com isso, ela se ajoelhou em oração e encontrou força interior para dizer, um pouco depois, ainda ajoelhada: “Se o que me é dado é legitimamente meu, que sua divina Majestade me conceda a graça de poder governar para sua glória e serviço, em benefício deste reino”.12 Rainha Jane No dia seguinte, Jane foi levada de barco do Thames até a Torre de Londres, onde, tradicionalmente, os monarcas permaneciam até o dia da coroação. Foi, então, proclama12 Ibid., 126–27.
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do ao povo de Londres que “Jane, pela graça de Deus, [é] Rainha da Inglaterra, França e Irlanda, Defensora da Fé e da Igreja da Inglaterra e da Irlanda, sob Cristo na Terra, o Chefe Supremo”. A maioria das pessoas teria ficado bastante surpresa, visto que Jane era pouco conhecida na capital. Além disso, teriam reconhecido Maria como herdeira legítima, embora ela tivesse sido deserdada. De 9 de julho, um domingo, a 19 de julho, uma quarta-feira, Lady Jane Grey foi rainha. Ela assinou alguns documentos, talvez seis ao todo; teve um jantar oficial e participou de um ou dois compromissos. Também se recusou, de forma resoluta, a anuir com o pedido de seu marido e a exigência violenta de sua sogra de que Guildford Dudley fosse coroado rei. Nesse ínterim, tão logo Maria soube que Jane fora coroada rainha, marchou em Londres com um exército, e todos, à exceção de um ou dois dos cortesãos que haviam jurado defender Jane até a morte, evaporaram diante do poderio militar de Maria. Até o próprio pai de Jane declarou Maria como a rainha legítima, na esperança de que pudesse escapar com vida.13 É digno de nota que Thomas Cranmer, o Arcebispo de Canterbury, não abandonou Jane a seus inimigos. Quanto à própria Jane, uma testemunha ocular sugere que ela parecia aliviada por não ser mais rainha. Ingenuamente, ela esperava que lhe fosse permitido retornar para 13 Ibid., 135–41.
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sua casa. Mas Maria – que logo viria a ser Maria I – não confiava nela e a enviou à prisão na torre. Jane condenada à morte Em 24 de julho, o sogro de Jane, Dudley, que havia sido preso, também foi posto na torre como prisioneiro. Na esperança de obter o perdão da rainha, ele se retratou de suas crenças protestantes, dizendo que fora seduzido “pelos ensinamentos falsos e errôneos” dos evangélicos. Ele reivindicou o direito de frequentar a missa, no que foi atendido por Maria. Com desgosto, Jane viu, de sua janela, o sogro ser levado à missa, e ouviram-na dizer: “Oro a Deus para que nem eu nem algum amigo meu venhamos a morrer assim”. Um breve alívio foi concedido a Dudley, mas ele não conseguiu escapar da morte, sendo decapitado em 23 de agosto de 1553. Jane e o marido, Guildford, filho de Dudley, foram a julgamento em 13 de novembro. Ambos foram considerados culpados e sentenciados à morte. Mas Jane realmente não esperava morrer dessa forma e, a princípio, é provável que Maria tivesse pouca intenção de fazer cumprir a sentença. Contudo, uma insurreição civil, conhecida como a Rebelião Wyatt, a fez mudar de ideia. Sir Thomas Wyatt (1521–1554) reuniu um pequeno grupo de soldados em Kent que ficaram irritados quando souberam que Maria planejava casar-se com o Rei Filipe II da Espanha (1527–1598). Ao seu ver, 35
a presença de um rei espanhol católico no trono inglês era algo completamente impensável. Wyatt conseguiu abrir caminho por Londres em 7 de fevereiro de 1554. Mas, quando entrou na capital, os habitantes da cidade se recusaram a apoiar sua causa, e a rebelião sucumbiu. Henry Grey, o pai de Jane, estava estreitamente envolvido nesse levante, e esse envolvimento foi decisivo para Maria ordenar que tirassem a vida de Jane. Em 7 de fevereiro de 1554, em consequência disso, Maria assinou as sentenças de morte de “Guilford Dudley e sua esposa”. Quando Henry Grey foi executado, deve-se mencionar, afirmou que morria “na fé de Cristo, confiando ser salvo apenas pelo seu sangue (e não por qualquer coisa frívola)”.14 A conversa com Feckenham Foi assim que, alguns dias depois de sua sentença de morte ser assinada, Jane conheceu John Feckenham, travando o diálogo já citado. Eis a conversa na íntegra: Feckenham diz primeiro: O que se requer de um cristão? Jane: Crer em Deus Pai, em Deus Filho, em Deus Espírito Santo, três pessoas e um Deus.
14 Citado em Zahl, Five Women, 66–67.
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O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante Feckenham: Não há nada mais necessário em um cristão além de crer em Deus? Jane: Sim, devemos crer nele e amá-lo de todo o coração, de toda a nossa alma e de todo o nosso entendimento, e também ao nosso próximo como a nós mesmos. Feckenham: Por que, então, a fé não justifica nem salva? Jane: De fato, somente a fé (como São Paulo afirma) justifica. Feckenham: Por que Paulo diz: Se eu tiver tamanha fé sem amor, nada terei? Jane: É verdade, pois como posso amar aquele em quem não confio? Ou como posso confiar em quem não amo? A fé e o amor caminham juntos, em consonância, embora o amor esteja compreendido na fé. Feckenham: Como devemos amar o nosso próximo? Jane: Amar o nosso próximo é alimentar o faminto, vestir aquele que está nu e dar de beber ao sedento, e fazer ao próximo o que faríamos a nós mesmos.
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Feckenham: Por que, então, é necessário fazer boas obras para a salvação e crer apenas não é suficiente? Jane: Isso, eu nego e afirmo que somente a fé salva. Mas é apropriado para os cristãos, como sinal de que eles seguem seu mestre, Cristo, fazer boas obras, mas, apesar disso, não podemos dizer que elas tenham proveito para a salvação. Pois, embora todos nós façamos tudo o que podemos, ainda assim somos servos inúteis, e somente a fé no sangue de Cristo salva.2 Feckenham: Quantos sacramentos existem? Jane: Dois: Um é o sacramento do batismo, e o outro, o sacramento da Ceia do Senhor. Feckenham: Não, existem sete.15 Jane: Em que parte das Escrituras se encontra isso? Feckenham: Bem, falaremos disso doravante. Mas o que significam seus dois sacramentos? Jane: Pelo sacramento do batismo, sou lavada com água e regenerada pelo Espírito, e esse lavar é um sinal e uma lembrança para mim de que sou 15 O catolicismo romano crê em sete sacramentos – batismo, confirmação, confissão auricular, eucaristia, casamento, ordem e unção dos enfermos –, enquanto os protestantes, historicamente, se apegaram a dois: batismo e Ceia do Senhor.
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O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante filha de Deus. O sacramento da Ceia do Senhor me é oferecido como um selo e um testemunho certo de que eu sou, pelo sangue de Cristo que ele derramou por mim na cruz, feita copartícipe do reino eterno. Feckenham: Por qual razão, o que você recebe nesse pão? Você não recebe o próprio corpo e o sangue de Cristo? Jane: Certamente, não, não creio assim. Penso que, nessa ceia, não recebo nem carne nem sangue, mas tão somente pão e vinho. Pão que, quando é partido, e vinho que, quando é bebido, trazem à minha mente como o corpo de Cristo foi partido pelos meus pecados, e seu sangue derramado na cruz; e, com aquele pão e aquele vinho, recebo os benefícios que vieram pelo ato de partir seu corpo e de derramar seu sangue na cruz pelos meus pecados. Feckenham: Por que, Cristo não diz estas palavras: “Tomai, comei; isso é o meu corpo”?16 Precisamos de palavras mais óbvias? Ele não diz que aquele é o seu corpo? Jane: Concordo que ele disse isso e também afirmou: “Eu sou a videira, eu sou a porta”,17 mas, apesar disso, ele nunca foi a videira nem a porta. São Paulo não disse que ele chamou essas coisas 16 Marcos 14.22. 17 João 10.9; 15.1–10.
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que não são como se fossem?18 Deus me livre que eu dissesse que como o próprio corpo natural e o sangue de Cristo, porque, então, ou eu deveria arrancar minha redenção ou haveria dois corpos, ou dois Cristos ou ainda dois corpos – um que foi atormentado na cruz e, então, se eles realmente comeram outro corpo, então ou ele tinha dois corpos, ou, se seu corpo foi comido, ele não foi partido na cruz, ou então, se ele foi partido na cruz, não foi comido por seus discípulos. Feckenham: Por que não é possível que Cristo, pelo seu poder, fizesse seu corpo tanto ser comido como partido, assim como nascer de uma mulher sem a semente do homem, e andar sobre o mar, tendo um corpo, e outros milagres que ele realizou somente pelo seu poder? Jane: Sim, de fato, se Deus desejasse fazer um milagre em sua ceia, poderia ter feito, mas afirmo que ele não tinha em mente qualquer obra ou milagre além de partir seu corpo e derramar seu sangue na cruz pelos nossos pecados. Mas peço que você me responda a esta única pergunta: Onde estava Cristo quando ele disse: “Tomai, comei; isso é o meu corpo”? Ele não estava à mesa quando disse isso? Ele estava vivo naquele momento e, só no dia seguinte, começou o sofrimento. Bem, o que ele tomou a não ser pão? E o que ele partiu a não ser pão? E o que ele deu, 18 Rm 4.17.
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O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante além de pão? Veja, o que ele tomou, ele partiu, e veja, o que ele partiu, ele deu; e veja, o que ele deu, foi isso que eles realmente comeram; no entanto, tudo isso enquanto ele mesmo estava na ceia perante seus discípulos; se não foi assim, eles foram enganados. Feckenham: Você fundamenta sua fé nesses autores que dizem e desdizem, ambos com um fôlego, e não na Igreja, a quem você deve dar crédito. Jane: Não. Fundamento a minha fé na Palavra de Deus, e não na Igreja. Pois, se a Igreja é uma boa Igreja, a fé da Igreja deve ser provada pela Palavra de Deus, e não a Palavra de Deus pela Igreja, nem mesmo a minha fé. Devo acreditar na Igreja por causa de sua antiguidade? Ou devo dar crédito àquela Igreja que tira de mim a metade da Ceia do Senhor, e não permite que os leigos a recebam em ambos os tipos? Pois, ao nos negarem, negam-nos parte de nossa salvação, e eu digo que essa é uma Igreja má, e não a Noiva de Cristo, mas a noiva do diabo, que altera a Ceia do Senhor, e tanto retira dela como acrescenta a ela. A essa Igreja, eu digo que Deus acrescentará pragas e, dessa Igreja, ele tirará sua parte do Livro da Vida. Você não aprendeu com Paulo quando ele ministrou aos coríntios com os dois tipos?19 Devo, então, acreditar nessa Igreja? Deus me livre! 19 Ver 1Co 11.17–34.
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Feckenham: Isso foi feito com uma boa intenção da Igreja, a fim de evitar uma heresia que veio a lume nela. Jane: Por que a Igreja alteraria a determinação do Senhor e suas ordenanças com boa intenção? Como o Senhor definiu o Rei Saul? Com essas e outras persuasões, ele teria feito com que eu me inclinasse para a Igreja, mas isso não aconteceu. Houve muitas outras coisas que debatemos, mas essas foram as principais.20
Essa conversa é importante porque mostra como Jane havia abraçado as doutrinas centrais da Reforma como se fossem dela própria. De acordo com Paul Zahl, é possível que houvesse outros presentes nessa conversa e, assim, deve ter sido algo semelhante aos debates públicos que se desdobraram entre os católicos romanos e os protestantes na era da Reforma.21 Isso explicaria a forma como a conversa destaca as três áreas de controvérsia durante a Reforma: Como homens e mulheres são salvos? Qual é o significado da Ceia do Senhor? E com que base se articulam respostas a essas perguntas? A respeito de como uma pessoa é salva, Jane mantém o que se tornara a perspectiva protestante padrão: as pessoas são salvas somente pela fé. Não é a fé e o amor ou a fé e as 20 Epistle of the Ladye Jane, [18–23]. 21 Zahl, Five Women, 68.
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boas obras que salvam, mas somente a fé. Essa fé envolve tanto o amor como as boas obras; assim, a verdadeira fé se exterioriza em obras de amor e bondade. Mas Jane afirma, de modo inequívoco, que a salvação se baseia, antes de tudo, na simples confiança em Deus. Então, na segunda temática de debate entre Jane e Feckenham, Jane insiste no argumento de que a Ceia do Senhor é um memorial – [Os elementos] “trazem à minha mente” – e um instrumento de garantia – é “um selo e um testemunho certo” –, e de maneira alguma um evento em que o corpo físico e o sangue de Cristo se tornam presentes para o cristão. Esta foi uma questão decisiva na Reforma: Qual é a natureza da Ceia do Senhor e como Cristo está presente à sua mesa?22 Embora não pudessem concordar entre si quanto à natureza da presença de Cristo, todos os reformadores negavam a doutrina católica romana do final da Idade Média da transubstanciação, no sentido de que o pão e o vinho se tornariam os próprios corpo e sangue de Cristo durante a celebração da Mesa do Senhor. Implicitamente, Jane também negou essa doutrina ao rejeitar a ideia da unipresença do corpo de Cristo.23 Os reformadores também se opunham à prática católica romana de oferecer apenas o pão, e não o vinho, aos leigos durante a Santa Ceia, uma prática que se tornara quase uniforme no final da Idade Média. Para Jane, a prática católica 22 Ibid., 69. 23 Ibid.
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nesse quesito indicava que a Igreja de Roma era a noiva do Diabo, e não de Cristo, visto que, de forma flagrante, alterava os mandamentos de Cristo. Isso é parte de uma discussão maior que Feckenham introduziu ao dizer que Jane estava ouvindo, não a Igreja, mas vários autores individuais, os quais ele considerava hereges. A pergunta central do debate entre Jane e Feckenham nesse ponto tinha a ver com a fonte da doutrina fidedigna. Para Feckenham, a fonte era de fato as Sagradas Escrituras, mas as Escrituras como eram interpretadas pelos mestres sancionados pela Igreja. Jane, por outro lado, insistia em basear seu ponto de vista apenas na Palavra de Deus. E era por essa Palavra que toda doutrina tinha de ser provada. Ela claramente rejeitou a visão de que se devia crer apenas nas doutrinas aprovadas pela Igreja Católica Romana. Antes de Feckenham partir, disse que sentia muito por ela, acrescentando: “Estou certo de que nós dois iremos nos encontrar”, quer dizer, encontrar no céu, visto que ele considerava Jane uma herege. Confrontada com a iminência da morte, a fé de Jane brilhou claramente, e ela respondeu: A verdade é que nós dois nunca nos encontraremos, a não ser que Deus mude seu coração. Pois estou certa (a não ser que você se arrependa e se volte para Deus) de que você está em má situação, e eu oro a Deus, nas profundezas de sua misericórdia, que lhe envie seu Espírito Santo. 44
O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante Pois, assim como ele deu a você o grande dom da palavra, se agradar a ele, também abrirá os olhos de seu coração para a verdade dele.24
Feckenham ficou tão impressionado com a coragem de Jane que perguntou se poderia acompanhá-la ao cadafalso no dia de sua execução, que seria 12 de fevereiro. Jane concordou, pois Maria havia recusado seu pedido de ter um ministro evangélico para acompanhá-la.25 Algumas palavras finais Naquela noite, Jane escreveu, em seu Novo Testamento em grego, uma carta para sua irmã mais nova, Katherine (1540–1568): Eu lhe envio, boa irmã Katherine, um livro que, embora não seja adornado com ouro em seu exterior, no interior é mais valioso do que pedras preciosas. É esse o livro, querida irmã, da Lei do Senhor. É o testamento dele, o qual ele deixou como legado a nós, pecadores, e que poderá guiar você para o caminho da alegria eterna. E, se você o ler com boa disposição e com o desejo sincero de segui-lo, ele trará a você vida eterna e imortal. Ele a ensinará a viver e a morrer. (…) E, ao se aproximar a minha morte, alegre-se 24 Epistle of the Ladye Jane, [24]. 25 Cook, Lady Jane Grey, 187–88.
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como eu, boa irmã, que eu seja liberta dessa corrupção e levada à incorrupção. Pois estou certa de que eu, ao perder uma vida mortal, ganharei a vida que é imortal.26
Aqui, vemos três pontos sobre a fé de Jane. Ela sentia o mesmo amor da Reforma pelas Escrituras: “É mais valioso do que pedras preciosas”. Fundamental para esse amor foi a clara concepção de Jane sobre a razão pela qual a Bíblia foi dada à humanidade por Deus: com o propósito de levar pecadores – a quem Jane chamou de “nós, pecadores” – à “alegria eterna” e à “vida imortal e eterna”. Vemos aqui também a profunda certeza de Jane quanto à salvação, a mesma certeza que os reformadores também costumavam afirmar. Por que Jane tinha tanta certeza? Bem, um documento final que ela redigiu na véspera de sua execução nos fala a esse respeito. Ela escreveu as três sentenças seguintes em seu livro de oração: a primeira em latim, a segunda em grego e a última em inglês: Se a justiça foi feita com meu corpo, minha alma encontrará a misericórdia em Deus. A morte trará dor ao meu corpo pelos seus pecados, mas a alma será justificada perante Deus. Se as minhas falhas merecem punição, pelo menos minha juventude e minha imprudência
26 Epistle of the Ladye Jane, [25, 27].
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O testemunho de Jane Grey, uma rainha protestante foram dignas de perdão; Deus e a posteridade me mostrarão favor.27
Jane tinha certeza da salvação porque fora justificada diante de Deus, ou seja, fora feita justa com Deus e, portanto, estava confiante em seu favor. O fim terreno de Jane Pouco antes das onze da manhã de 12 de fevereiro, Sir John Brydges (1492–1557), o tenente da Torre de Londres, conduziu Jane até o cadafalso que fora construído contra a parede da Torre Branca central, na esquina noroeste (a esquina mais próxima da Capela Real de São Pedro ad Vincula).28 No cadafalso, Jane encontrou Feckenham, juntamente com vários outros capelães católicos. Uma testemunha registrou o que aconteceu em seguida: Ela subiu as escadas do cadafalso e, ali de pé, naquela manhã fria de fevereiro, Jane falou brevemente ao pequeno agrupamento presente e fez questão de que soubessem que ela morria como “uma cristã genuína”, dizendo: “Busco ser salva por nenhum outro meio além da misericórdia de Deus, no sangue de seu único Filho, Jesus Cristo”. Então, ajoelhou-se e recitou o Salmo 51 em 27 Citado em Zahl, Five Women, 67n3. 28 J. Stephan Edwards, em entrevista com Justin Taylor, “The Execution of Lady Jane Grey”.
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inglês. Em seguida, Feckenham recitou em latim e, depois disso, Jane disse a ele: “Rogo a Deus que ele o recompense abundantemente por sua bondade em meu favor”. Ele ficou completamente sem palavras e começou a chorar. Ao ver a sua angústia, Jane, ao que parece, inclinou-se e beijou-o na face, e por alguns momentos o capelão católico romano e a rainha protestante ficaram de mãos dadas.29 Em seguida, ela deu suas luvas à dama de companhia e seu livro de orações a Sir John Brydges. O carrasco, depois de pedir perdão a Jane, por ela concedido, mandou que ela ficasse próximo ao cepo para a execução. Ela, então, se ajoelhou, amarrando um lenço em volta dos olhos desajeitadamente. Com os olhos vendados, ela deveria estar diretamente de frente para o cepo e, assim, poderia posicionar o pescoço facilmente no sulco do cepo, mas ela calculou mal a distância. Impossibilitada de localizar o cepo, ela se mostrou ansiosa. “Onde está? O que devo fazer?”, perguntou ela com a voz fraquejante. Ninguém, contudo, se moveu para ajudá-la – talvez por não estarem dispostos a ser cúmplices daquela morte.30 Finalmente, depois do que deve ter parecido uma eternidade, um expectador subiu no cadafalso e a guiou ao cepo. Suas palavras finais foram gritadas com a voz nítida: “Senhor, em tuas mãos entrego o meu espírito”.
29 Citado em Cook, Lady Jane Grey, 198. 30 Ibid., 200.
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