Além das 95 teses - Stephen J. Nichols

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Como fazer um livro que trata de tudo – da formação dos filhos ao cântico dos hinos, da pregação aos conflitos políticos – e conseguir que isso transborde do glorioso evangelho? Nichols teve êxito nisso. Alerta: as pessoas se esquecem de como o evangelho realmente transforma vidas e, depois, assustam-se quando se lembram disso ao lerem Lutero. - D. Clair Davis, professor emérito de História da Igreja, Seminário Teológico de Westminster, Filadélfia

Maravilhosa e interessante combinação de biografia, história e teologia. Se você não sentir o pulsar da Reforma nestas páginas, por favor, verifique sua pressão arterial! - Sinclair Ferguson, autor, O Espírito Santo

Este atraente volume de Stephen Nichols merece ser lido na íntegra. Como franco admirador de Lutero, espero que seja assim. - J. I. Packer, professor de Teologia, Regent College

Nichols tem o dom de tornar simples um assunto complexo, sem ser simplista. - Michael A. Rogers, pastor, Igreja Presbiteriana de Westminster, Lancaster, Pensilvânia


No momento em que celebramos o aniversário de 500 anos da Reforma, devemos não apenas apreciar o modo profundo como Deus usou Martinho Lutero, como também aprender com ele. O Dr. Nichols nos dá uma visão de primeira linha da vida de Lutero. Assim, ao observarmos esta obra, que tenhamos a mesma ousadia e o mesmo compromisso em relação a toda a vida no evangelho. - R. C. Sproul, fundador, Ministério Ligonier

É raro encontrarmos a rica combinação de precisão teológica e paixão histórica escrita de uma forma tão acessível quanto temos aqui no tratamento agradável do Dr. Nichols a respeito de Martinho Lutero. Trata-se de uma maravilhosa introdução. - Derek W. H. Thomas, professor de Teologia Sistemática e Pastoral, Seminário Teológico Reformado, Atlanta

Aqueles que nada sabem sobre Lutero serão beneficiados por esta introdução tão fácil de se ler, enquanto os que o conhecem melhor testemunharão o entusiasmo contagiante de Nichols. - Carl B. Trueman, professor de História da Igreja, Seminário Teológico de Westminster, Filadélfia


STE P H E N J. N I C H O LS

lem Adas 95

A vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero

teses


N622a

Nichols, Stephen J. Além das noventa e cinco teses : a vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero / Stephen J. Nichols ; [tradução: Elizabeth Gomes]. – São José dos Campos, SP: Fiel, 2017. 299 p. Tradução de: Beyond the ninety-five theses : Martin Luther's life, thought, and lasting... Bibliografia: p. [295]-299. ISBN 9788581324166 1. Lutero, Martinho, 1483-1546. 2. Reformadores – Alemanha - Biografia. 3. Biografia cristã - Alemanha I. Título. CDD: 922.4

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477

Além das 95 teses; a vida, o pensamento e o legado de Martinho Lutero

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

Traduzido do original em inglês Beyond The 9 5 Theses Martin Luther’s Life, Thought, and Lasting Legacy Por Stephen J. Nichols © Copyright 2016 Stephen J. Nichols

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer

Publicado por P&R Publishing Company, P.O. Box 817, Phillipsburg, New Jersey 08865-0817. Copyright © Editora Fiel 2017 Primeira Edição em Português: 2017

meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago J. Santos Filho Tradutor: Elizabeth Gomes Revisor: Shirley Lima Diagramação: Rubner Durais Capa: Rubner Durais ISBN: 978-85-8132-416-6

Caixa Postal 1601 CEP: 12230-971 São José dos Campos, SP PABX: (12) 3919-9999 www.editorafiel.com.br


Para Benjamin Hunt Nichols, que você possa crescer apreciando e assumindo a rica herança da igreja de Cristo!



SUMÁRIO

Lista de Ilustrações..........................................................................................9 Prefácio............................................................................................................11 Agradecimentos.............................................................................................15 Introdução: O Legado de Martinho Lutero ............................................17 Parte 1: Lutero, uma Vida............................................................. 27 1. Os Primeiros Anos: 1483-1521..................................................................29 2. Os Últimos Anos: 1522-1546.....................................................................55 Parte 2: Lutero, o Reformador..................................................... 79 3. O Cerne do Problema: Entendendo a Teologia de Lutero....................81 4. Nunca mais o Silêncio: Os Três Tratados....................................................101 5. A Peça Central da Reforma: O cativeiro da vontade.................................119 6. Este é o Meu Corpo: Confissão sobre a Ceia do Senhor...........................137 7. Pragas, Príncipes e Camponeses: Escritos Éticos................................. 153 Parte 3: Lutero, o Pastor............................................................. 171 8. A Próxima Geração: Catecismo menor..........................................................173 9. Jantar com Lutero: “Conversa à Mesa”................................................... 191 10. Uma Nova Canção Começou: Os Hinos............................................... 205 11. As Marcas de uma Igreja Verdadeira: Sobre os concílios e a igreja........223 12. O Pastor Relutante: Os Sermões............................................................. 239


Parte 4: As 95 Teses de Lutero................................................... 257 13. As 95 Teses Comentadas: Discussão sobre o Poder e a Eficácia das Indulgências....................... 261 Breve Guia para os Livros de e sobre Martinho Lutero....................... 287 Bibliografia................................................................................................... 293


ILUSTRAÇÕES

1.1 Linha do Tempo: Primeiros Anos..........................................................30 1.2 O Lutero de Sete Cabeças (1529).........................................................34 1.3 Página de Rosto do Exame de predestinação eterna, de Johann von Staupitz (1517)..............................................................44 2.1 Linha do Tempo: Anos Derradeiros......................................................56 2.2 Sansão Mata um Leão, Frontispício do Panfleto de Lutero em Resposta aos Teólogos Católicos de Louvain...............................60 2.3 Martinho Lutero (1546)..........................................................................69 3.1 Os Solas da Reforma.................................................................................90 3.2 Página de Rosto de Comentário sobre Gálatas, de Lutero..................93 4.1 O Ano Decisivo de Lutero (1520)...................................................... 114 4.2 Página de Rosto da Bula Papal Proferida por Leão X (1520)....... 116 5.1 Desidério Erasmo (1466-1536).......................................................... 121 6.1 Principais Escritos sobre a Ceia do Senhor e Eventos Relacionados......................................................................... 143 6.2 Ulrico Zuínglio (1484-1531)............................................................... 147 7.1 Principais Escritos sobre Ética............................................................. 156 7.2 Página de Rosto do Panfleto (1527)................................................... 159 8.1 Página de Rosto do Livro ABC para crianças, de Lutero................. 180 8.2 Frontispício da edição alemã do Catecismo menor, de Lutero....... 184 9.1 Noites no Lar de Lutero........................................................................ 201 10.1 “Castelo Forte é nosso Deus”............................................................... 213


10.2 O Castelo de Wartburg.......................................................................... 214 11.1 Marcas da Verdadeira Igreja................................................................. 229 11.2 Culto Luterano de Adoração (por volta de 1550)........................... 232 12.1 Ilustração de Lucas Cranach de Gênesis 22, da Tradução para o Alemão da Bíblia por Lutero (1523).............. 243


PREFÁCIO

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ARTINHO LUTERO saiu do Claustro Negro em Wittenberg. Nesse prédio, ele e seus companheiros, todos monges agostinianos, acadêmicos da universidade e estudantes, ensinavam e aprendiam, comiam e bebiam, oravam e dormiam. Foi ali que Martinho Lutero viveu. Também era ali que ele escrevia. Ele cruzou o portão na direção oeste, guiado pela torre do sino da igreja Schlosskirche, ou Igreja do Castelo, que se erguia sobre a vila de Wittenberg. Lutero era capaz de fazer esse percurso enquanto dormia. Um quilômetro à frente, ele chegou a seu destino. Martinho Lutero passou o ano de 1517 em conflito. De fato, ele estivera perturbado nos últimos 12 anos e, infelizmente, isso se estendeu por muitos anos ainda. Em 1505, ele se viu em meio a uma tempestade violenta, de raios e trovões, que ele concluiu ser o juízo de Deus sobre a sua alma, e a forma de Deus aniquilá-lo. Sem alternativa, Lutero tomou uma decisão. Ele entraria no monastério e dedicaria sua vida a buscar piedade e paz com Deus – isso se Deus poupasse sua vida daquela tempestade que ameaçava aniquilá-lo. Desde então até 1517, os problemas de Lutero só aumentaram. A paz parecia fugir dele. Ele tinha muita expectativa em relação à igreja e, naquela época, só existia uma opção, a Igre-


Além das 95 teses

ja Católica Romana, mas, ali, Lutero experimentava desilusão após desilusão. Sua viagem a Roma, à Santa Sé, deixara-o totalmente esgotado. Lá, Lutero começou a ouvir histórias de causar arrepios e reviravoltas no estômago. Nas regiões vizinhas, vendiam-se indulgências. A “Indulgência de Pedro”, como era chamada, resultara de uma negociação feita entre Alberto, arcebispo de Mainz, e o papa Leão X. De forma inédita, essas indulgências ofereciam aos compradores passe livre para o céu. Também ofereciam alívio do purgatório para os parentes que estavam ali sofrendo. Bastava, para tanto, que se lançasse uma moeda no cofre. Naquele verão, Lutero conseguiu uma cópia da “Instrução Sumária”. Esse documento, preparado por Alberto e seus teólogos, dava instruções explícitas aos pregadores de vendas de indulgências – a quem Lutero chamava de “mascates”. O documento em si era bastante perturbador, pois zombava da lei da igreja. E pior: os próprios membros da paróquia de Lutero, em Wittenberg, estavam viajando para a região de Alberto e comprando indulgências, em uma espiral descendente em suas vidas. Mas qual incentivo eles tinham para agir de outro modo? Eles tinham sua indulgência: uma passagem livre para sair da prisão. Lutero sentia, de forma contundente, essa pressão. A indulgência contava com o selo de aprovação do papa, mas estava claro que não havia garantia alguma. A tensão interior de Lutero aumentava enquanto ele assistia ao mal que estava sendo feito. À medida que o outono se aproximava de Wittenberg, com o ar se tornando cada vez mais frio e as folhas mudando de cor, Lutero não podia mais ficar calado. Afinal, ele era doutor em Teologia Sagrada. Era sacerdote. Era bem-treinado, e ocupava 12


Prefácio

uma posição que o obrigava a servir à igreja, mesmo que isso significasse repreendê-la. Assim, ele encheu seu tinteiro, sentou-se à escrivaninha e começou a trabalhar. Quando terminou de escrever, tinha 95 argumentos e observações a respeito da venda de indulgências. Então, preparou-se para um debate. E, naquele mesmo dia, enviou uma carta a Alberto, arcebispo de Mainz. Lutero planejava afixar à carta uma cópia de suas teses, de modo a possibilitar que seus colegas acadêmicos de Wittenberg se envolvessem no debate. Assim, ele levou sua cópia e um martelo e dirigiu-se para o portão oeste, do lado de fora da igreja do castelo. Quinhentos anos mais tarde, celebramos esse momento da história, pois, efetivamente, esse ato se tornou história. O que Lutero fez no último dia de outubro de 1517 deu início à Reforma Protestante, impactando a igreja e a cultura por mais de cinco séculos. Foi realmente um evento notável, executado por uma das figuras mais empolgantes da história. A afixação das 95 Teses no portal da igreja permanece como um momento épico na vida de Lutero. Mas esse não é o único. Outros momentos definidores viriam depois de 31 de outubro de 1517. Muito mais coisas fluiriam da pena e do tinteiro de Lutero do que somente as 95 teses. Este livro oferece uma turnê orientada da vida de Martinho Lutero, de seus escritos e pensamentos. Tem por objetivo não apenas que valorizemos Lutero e seu legado, mas também que encontremos a mesma confiança em Deus, o Castelo Forte, em sua Palavra certeira e em Cristo e sua obra completa na cruz. Assim, podemos olhar para trás e sentir gratidão pela vida e o legado de Lutero. 13


Além das 95 teses

Que nós também possamos olhar adiante! Se Cristo se demorar em seu retorno e a igreja chegar ao ano de 2517, será que haverá razão para celebrarmos nossos atos e nosso legado? Nossa celebração do passado nos lembra da obrigação que temos no presente de nosso compromisso em relação ao futuro. Olhar para frente nos parece o melhor modo de celebrar o aniversário de quinhentos anos da postagem das 95 teses de Martinho Lutero.

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AGRADECIMENTOS

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OU GRATO aos amigos da editora P&R Publishing, incluindo Bryce Craig, Amanda Martin e Ian Thompson. Obrigado por seu apoio para esta nova edição. Também sou grato aos meus colegas de Ligonier e da Faculdade Bíblica da Reforma. Há muito tempo desejo voltar no tempo e ter apenas uma refeição com Lutero. Trabalhar com R. C. Sproul está bem próximo disso. Caleb Gorton, Anthony Salangsang, Megan Taylor, Emberlee van Eyk e Jeanna Will, todos me ajudaram a chegar à reta final. Sem o bondoso encorajamento de Chris Larson, esta nova edição provavelmente não teria acontecido. Lutero era, acima de tudo, um homem de família. Eu também sou grato à minha família por seu amor sem limites. Obrigado.



INTRODUÇÃO O Legado de Martinho Lutero

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OMADO DE PURO PAVOR, ele fez um juramento à sua santa padroeira. Desiludido, questionou as práticas da igreja à qual dedicara sua vida. E, de modo resoluto, afixou uma lista de protestos na porta da igreja. Com total satisfação, ele abraçou a ideia libertadora de que a justiça de Deus é uma dádiva, e não um merecimento. Em face de intensa batalha espiritual, ele clamou por Deus, seu “castelo forte”, seu “baluarte que nunca falha”. Esses são momentos decisivos na vida de Martinho Lutero. A maioria – embora nem todos os cristãos – conhece esses momentos decisivos. A maioria também sabe que, a cada movimento do martelo na porta da igreja de Wittenberg, Lutero provocou a Reforma Protestante. Porém, muito mais que isso, esses acontecimentos também servem para formar nossas vidas, pois encarnam a Reforma, estabelecendo o fundamento do Protestantismo. Certo historiador comentou que qualquer vestígio do Cristianismo na cultura ocidental se deve inteiramente a esse homem, Martinho Lutero. No entanto, apesar de Lutero ser bastante conhecido, para além de alguns momentos significativos, boa parte de sua vida ainda representa um mistério para a maior parte dos cristãos.


Além das 95 teses

Embora seus escritos formem o berço do Protestantismo e articulem os princípios essenciais da teologia reformada, ainda permanecem sem ser lidos por muitas pessoas nos dias atuais. Essa falta de conhecimento acerca da obra de Lutero é exatamente a razão para este livro. Trata-se de uma tentativa de colocar seus descendentes há muito perdidos em contato com seu legado, um convite para dedicar algum tempo à mesa de Lutero, a fim de examinar sua vida e ouvir suas ideias. Tais ideias, contudo, não são relíquias do passado. Com certeza, seu pensamento inspirou toda uma geração em seus próprios dias e também tem o poder de impactar a igreja de hoje, acendendo, em nossa própria geração, uma busca apaixonada por Deus e por sua verdade. São abundantes as biografias sobre Lutero, e as obras especializadas a respeito de seu pensamento enchem de livros muitas prateleiras. Seus próprios escritos continuam a ser publicados séculos depois de sua morte. Com toda a atenção dispensada a Lutero, pode-se perguntar o porquê disso. Ou seja, o que demanda tanta atenção em Lutero?

O Legado de Lutero O papel de Lutero como catalisador da Reforma é a principal razão para tal interesse perene nele. Imagine um mundo sem o Protestantismo. Se você fosse um jovem monge agostiniano nas primeiras décadas do século XVI, não seria difícil imaginar. Para Lutero, a realidade era um mundo sem o Protestantismo. Suas escolhas eram claras: ou a Igreja Católica Romana ou o paganismo. Como monge, claro, ele abraçava a primeira opção. Quando Lutero morreu, em 1546, contudo, o mundo havia mudado de forma significativa. Assim, entre o 18


Introdução: O Legado de Martinho Lutero

Catolicismo Romano e o paganismo, agora havia uma ampla gama de escolhas, incluindo o Luteranismo, o Anabatismo, a Igreja Reformada, o Anglicanismo e o Presbiterianismo. Essas opções religiosas simplesmente não existiam em 1517. Naquele ano, Lutero deu início a um mar de mudanças e reformas que abalariam todo o mundo. Antes do desafio de Lutero, no sentido de transformar a igreja, diversas tentativas de reforma haviam ocorrido. Alguns movimentos, como a Devotio Moderna (Nova Devoção), criticavam a apática espiritualidade, como também a vasta riqueza da igreja. No entanto, embora as objeções fossem profundas, o movimento não contava com uma base teológica sólida para elaborar suas críticas. Outros movimentos, ainda que mais teologicamente orientados, também não tiveram êxito em reformar a igreja. Na Inglaterra, John Wycliffe e, na Boêmia (a moderna República Checa), John Hus prepararam desafios formidáveis, mas foram esmagados pelo poder de Roma. Hus foi queimado em um poste e, embora Wycliffe tenha morrido de causas naturais, a igreja o exumou e queimou seus ossos. Contudo, ainda que esses reformadores da pré-Reforma não tenham logrado uma mudança permanente, firmaram um importante alicerce sobre o qual Lutero construiu. Na verdade, Lutero reconheceu essas valiosas contribuições dos reformadores anteriores à Reforma. De Wycliffe, Lutero reconheceu a importância de se colocar a Bíblia nas mãos do povo em uma língua que todos pudessem entender. De Hus, Lutero aprendeu a desafiar as diversas práticas e funções da igreja que se opunham às Escrituras. Da Devotio Moderna, Lutero entendeu também que a falta de vigor espiritual da igreja deveria ser desafiada. No 19


Além das 95 teses

entanto, de uma forma diferente em relação a esse movimento, ele sabia que tal desafio teria de ser construído sobre um firme fundamento teológico. Na verdade, ao debater com Erasmo sobre as questões da vontade e do livre-arbítrio, Lutero destaca que a preocupação central para a igreja é sempre teológica. Tirem a doutrina, Lutero argumenta, e não se tem uma igreja. Lutero se mostrava cético quanto ao entendimento teológico básico da igreja desde meados de 1510, quando começou a palestrar, em Wittenberg, a respeito dos Salmos, de Romanos, Gálatas e Hebreus. Sua primeira restrição contra a igreja, contudo, manifestou-se com a contemplação dos severos problemas causados pelas indulgências. Claro, esse erro levou à publicação das 95 teses em Wittenberg. Por meio desse evento, e também com a recuperação da doutrina da justificação pela fé, sua posição corajosa diante da igreja e do império na Dieta de Worms, bem como sua incansável dedicação à edificação de uma igreja alicerçada tão somente na Escritura, Lutero atuou como arquiteto da Reforma. Seu trabalho em Wittenberg agitou as terras alemãs e toda a Europa. Na época de sua morte, o Protestantismo e a nova igreja evangélica estavam firmemente estabelecidos. Mas Lutero não chama a atenção apenas por seu envolvimento nos eventos da Reforma; ele também desempenhou importante papel na formação das ideias reformadas. Talvez mais que qualquer outra pessoa, Lutero moldou os pressupostos que definem o Protestantismo. Os teólogos utilizam uma série de expressões latinas que encerram esses conceitos. Conhecidas como os “Solas da Reforma”, essas expressões incluem sola Scriptura, só a Escritura; sola fide, somente a fé; sola gratia, 20


Introdução: O Legado de Martinho Lutero

somente pela graça; solus Christus, somente Cristo; e soli Deo gloria, somente para a glória de Deus. Todas essas ideias encontram raiz no pensamento de Martinho Lutero. O fato de elas continuarem a definir o Cristianismo é um testemunho duradouro da influência de Lutero. Lutero chama a atenção também por sua personalidade empolgante. “Dizem que a indiscrição”, Lutero comentou certa vez, “é minha maior falha”. Em consequência disso, tanto seus escritos como seus atos são recheados de humor pungente e vívido. Sua personalidade marcante se estende às conversas e aos escritos. Certamente, ler alguns trechos de suas “Conversas à mesa” fará algumas pessoas ficarem ruborizadas. Além do mais, quando se tratava de envolver seus inimigos, era raro Lutero mostrar um linguajar contido. De alguma maneira, essas não são necessariamente características positivas. Contudo, a atitude transparente de Lutero e, por vezes, sua candura oferecem numerosas historietas e vinhetas que, ainda hoje, continuam a fascinar os leitores. Algumas vezes, as figuras históricas podem parecer unidimensionais para as futuras gerações de leitores. Costumamos reunir as facetas da pessoa por meio de diversos relatos distintos, mas vemos o retrato pessoal um tanto ofuscado. Esse não é o caso de Lutero. O retrato pessoal que surge de Lutero, a despeito de seus pequenos pecados, é um tanto enternecedor. Friedrich Nietzsche, luterano alemão, pelo menos em um momento de sua vida declarou que somos “humanos, todos humanos demais”. Tal sentimento também descreve Lutero. Saudado pelo artista alemão Hans Holbein como o “Hércules alemão”, Lutero parecia, para muitos, maior que a própria 21


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vida. Mas, na realidade, embora ele tivesse pernas de ferro, seus pés eram de barro. Talvez a maior falta de Lutero se reflita em sua atitude severa contra os judeus em uma fase tardia de sua vida. Assim, em vez de esconder essas falhas ou enfatizá-las ao extremo, somos bem-servidos ao reconhecê-las. Apesar do retrato de Holbein, Lutero era bastante humano. Isso não funciona como uma desculpa para seus erros, mas nos lembra que, embora admiremos Lutero, também devemos vê-lo como um pecador salvo pela graça. Finalmente, o incansável compromisso de Lutero para com a igreja lhe garante lugar de destaque na história. Ele demonstrou surpreendente versatilidade, coragem nos momentos decisivos e resistência para suportar a caminhada. É raro encontrarmos a combinação de um visionário que também consegue implementar sua visão. A vida de Lutero oferece um desses casos raros. Ele não somente se posicionou de maneira ousada e apontou a direção certa para a igreja, como também dedicou sua vida a conduzi-la nesse caminho. Lutero trabalhou incansavelmente, muitas vezes com grande sacrifício pessoal, para garantir que a igreja vicejasse no período em que viveu e para além dele. Essas razões, ao lado de outras, consubstanciam a atenção difundida que Lutero recebe. Nos capítulos seguintes, continuaremos a examinar por que Lutero não apenas recebe tanta atenção, como também as razões pelas quais a merece.

Visão Panorâmica Começamos nossa turnê de Martinho Lutero levando em conta sua vida repleta de eventos. No Capítulo 1, traçamos os passos iniciais de sua vida pela estrada até a Reforma Protestante. Com 22


Introdução: O Legado de Martinho Lutero

a conclusão de seus estudos e após uma experiência traumática durante uma tempestade, Lutero entra no monastério. Cerca de doze anos depois, o papa o declara herege. Seguindo o confronto decisivo na Dieta de Worms, Lutero entra em seu “exílio” no Castelo de Wartburg. No Capítulo 2, prosseguimos com a narrativa de sua vida, iniciando por sua volta a Wittenberg e terminando com as últimas décadas de sua vida. A Segunda Parte apresenta diversas discussões acerca de Lutero, o Reformador. No Capítulo 3, oferecemos uma visão geral de sua teologia. O capítulo seguinte envolve os Três Tratados, textos fulcrais dos meses relativos ao outono de 1520. A obra máxima de Lutero, O cativeiro da vontade, é o foco do Capítulo 5, que aborda o que Lutero chamou de “ponto vital” da Reforma. Aqui, exploramos esse texto crucial que desenvolve o entendimento de Lutero sobre o livre-arbítrio e a soberania de Deus. No Capítulo 6, examinamos a Ceia do Senhor e o papel que isso desempenhou na Reforma. A Segunda Parte se encerra quando examinamos o pensamento e os escritos de Lutero relativos à ética. Alguns acontecimentos históricos fundamentais de seus dias, como a Guerra dos Camponeses e a Peste em Wittenberg, ajudam-nos a ver a aplicação do pensamento de Lutero. Lutero devotou a maior parte de seus esforços à teologia e à prática da igreja. Na Terceira Parte, continuamos nossa turnê da vida e do pensamento de Lutero ao examinar suas contribuições à vida da igreja. O Catecismo menor, assunto do Capítulo 7, perdura como testemunho ao reconhecimento de Lutero acerca do papel da igreja em treinar corretamente a próxima geração. O Capítulo 8 volta-se para um texto singular na história da igreja, as Conversas à mesa de Lutero. Aqui, Lutero vivencia 23


Além das 95 teses

sua teologia de modo transparente diante de sua família, seus colegas e alunos, enquanto todos se reúnem em torno da mesa de jantar. Devido à sagacidade tanto de Lutero como de alguns estudantes e escribas, podemos “escutar” essas conversas. Embora todos nós conheçamos o hino “Castelo Forte é Nosso Deus”, de Lutero, talvez não estejamos familiarizados com o lugar de destaque que a música desempenhava em sua vida. O Capítulo 10 oferece a oportunidade de ingressar nessa parte da experiência de Lutero. No Capítulo 11, exploramos as ideias de Lutero sobre o que é a “verdadeira igreja”, ao estudarmos um de seus textos menos conhecidos, porém profundos, Sobre os concílios e a igreja. Finalmente, Lutero deixou uma enorme quantidade de sermões. Examinamos um sermão em especial, “Sobre como contemplar o santo sofrimento de Cristo”, como representativo de seus aproximadamente seis mil sermões. Em suma, este livro apresenta tanto a vida como o pensamento de Martinho Lutero. Não é nossa intenção dispensar um tratamento exaustivo a qualquer um desses aspectos. De forma ideal, seria de muita valia incluir muitos outros textos e assuntos para mostrar Lutero em toda a sua genialidade. Mas, em termos práticos, isso esgotaria igualmente a paciência do leitor e do escritor. A coleção mais completa dos escritos de Lutero em língua inglesa totaliza 55 volumes e cobre apenas cerca de metade da sua obra. Assim, escolhi os textos e assuntos que parecem cruciais ao pensamento de Lutero. Portanto, este livro tem a intenção de familiarizá-lo com Lutero, o que servirá como portal para uma melhor análise de sua vida e de seu pensamento. A conclusão oferece algumas sugestões e diretrizes para que se prossiga nessa jornada. 24


Introdução: O Legado de Martinho Lutero

Após a morte de Lutero, seu grande amigo, o artista Lucas Cranach, pintou um último retrato do reformador. Cranach captou toda a vida e o propósito de Lutero nesse quadro de três painéis, que foi instalado na Igreja do Castelo de Wittenberg. O painel direito mostra Lutero no púlpito, proclamando a Palavra de Deus, enquanto pastoreia fielmente seu rebanho. Com uma Bíblia aberta à sua frente, ele se posta de pé, apontando para a congregação. À esquerda, o painel mostra uma congregação reunida, escutando atentamente o reformador. Cranach pintou a esposa de Lutero, Katie, um filho e até mesmo sua filha Magdalena, que morrera alguns anos antes, na congregação. Mas eles não estão olhando diretamente para Lutero. O painel central mostra Cristo na cruz. Tomados coletivamente, os três painéis expressam, de maneira pungente, a paixão de Lutero ao apontar para que todos vissem Cristo. Mais especificamente, quando olhamos para Lutero, ele nos remete a todos para Cristo. É dessa forma que ofereço este livro, que, embora aponte para Lutero, nos direciona a Cristo. Em última instância, esse é o legado de Martinho Lutero.

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Parte 1

Lutero, uma vida

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ARTINHO LUTERO teve uma vida plena; assim, todo biógrafo é desafiado quando se vê diante da questão do que deixar de fora. Com apenas dois capítulos especificamente dedicados à biografia, enfrentamos, de modo especial, esse desafio. No entanto, procurei abordar os eventos cruciais da vida de Lutero. Esses acontecimentos, examinados no Capítulo 1, incluem momentos decisivos, como o juramento feito durante a tempestade de trovões e raios que o enviou ao monastério, a postagem das 95 teses, que o lançou ao centro da atenção em 1517, e a descoberta da Reforma da justificação pela fé, que “abriu os portais do paraíso” para ele, tornando-se a mensagem fundamental para tudo que ele pregava. Esse capítulo se encerra com a ousada posição de Lutero diante da Dieta de Worms e, então, descreve seu “sequestro”.


Além das 95 teses

No capítulo seguinte, retomamos o fio da história quando Lutero retorna de seu exílio no Castelo de Wartburg. Os eventos que se desenrolam nesses últimos anos incluem o casamento do ex-monge com uma ex-freira, o estabelecimento da primeira casa pastoral da era moderna, o encontro decisivo com o teólogo Ulrico Zuínglio, em Marburg, e o compromisso incansável de estabelecer a recém-formada igreja. Através do estudo dos acontecimentos de seus primeiros anos, como também dos últimos, começamos a entender por que Lutero figura com tamanha proeminência nas páginas da história, e por que continua a fascinar os leitores cinco séculos depois de sua morte.

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Capítulo 1

OS PRIMEIROS ANOS 1483-1521 “Se ainda há sentido para a civilização cristã no Ocidente, esse homem, Lutero, em não pouca medida merece tal crédito.” Roland Bainton “Martinho Lutero, o Reformador, é uma das pessoas mais extraordinárias da história e deixou uma impressão mais profunda de sua presença no mundo moderno que qualquer outro, à exceção de Colombo.” Ralph Waldo Emerson

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M 1529, JOHANNES COCHLAEUS escreveu um folheto atacando Martinho Lutero. Intitulado “Lutero de Sete Cabeças”, colocava em destaque uma xilogravura na página de rosto com a caricatura de Lutero como um indivíduo perigosamente conflitante que, de acordo com o escritor, representava uma grande risco para a igreja, em virtude de suas diversas e contraditórias personalidades. Um retrato mostra Lutero como um louco com abelhas sobrevoando sua cabeça. A xilogravura final o mostra como Barrabás, deixando implícito que ele era o próprio inimigo de Cristo.


Além das 95 teses

O papa Leão X, que, inicialmente, via os disparates de Lutero como nada mais que delírios de um alemão bêbado, passou a apontar Lutero como arqui-inimigo da igreja, conseguindo reunir tanto a igreja como o império contra o monge alemão. E, mesmo na morte de Lutero, muitos questionavam qual teria sido seu verdadeiro legado. Teria sido ele um instrumento de Deus? Ou uma ferramenta na mão do diabo? No entanto, um ponto no qual os estudiosos concordam é que o mundo em que nasceu “Martin Luder”, em 10 de novembro de 1483, era bem diferente daquele que ele deixou em 18 de fevereiro de 1546. As décadas em que viveu contiveram mudanças e turbulências sem precedentes, e Martinho Lutero esteve no centro de tudo isso. Porém, Lutero experimentou um início bastante modesto para uma figura tão proeminente. Como escreveu em sua fase madura: “Venho de uma família de camponeses”. E continuou: Quem imaginaria que eu receberia um bacharelado e depois um mestrado em Artes para, em seguida, abandonar minha boina marrom de estudante para deixá-la para outros, a fim de me tornar monge, obtendo para mim, então, tamanha vergonha que meu pai ficou amargamente descontente; e que, a despeito de tudo isso, eu incomodaria o papa e tomaria por esposa uma freira fugitiva? Quem teria previsto isso para mim? Figura 1.1 Linha do tempo: Primeiros Anos 1483

Nascido em 10 de novembro, em Eisleben

1492-98 Frequenta a escola em Mansfield, Magdeburg, e em Eisenach 1501-05 Frequenta a Universidade de Erfurt; recebe B.A. (1502), M.A. (1505)

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Os Primeiros Anos: 1483-1521 1505

Faz um voto durante uma tempestade de trovões, em 2 de julho. Entra no monastério

1507

É ordenado

1509

Recebe B.A. em Bíblia. Começa a lecionar em Erfurt sobre as artes

1510

Faz uma peregrinação a Roma

1511

Entra no Claustro Negro, monastério agostiniano em Wittenberg

1512

Recebe doutorado em teologia. Designado para o corpo docente de teologia em Wittenberg

1513-17 Leciona sobre Salmos, Romanos, Gálatas e Hebreus 1517

Posta as 95 teses na porta da igreja, em 31 de outubro

1518

Debate contra Cajetan em Augsburg

1518-19 Possível data para início da Reforma (ou 1515–16) 1519

Debates contra Eck em Leipzig

1520 Escreve Três Tratados 1520

Recebe a Bula Papal

1521

Aparece na Dieta de Worms no período de 16 a 18 de abril

1521

É colocado sob banimento imperial e condenado como herege fora da lei em maio

1521

Vai para o “exílio”, no castelo de Wartburg

A Educação Inicial de Lutero Poucos teriam previsto os desdobramentos da vida de Lutero, especialmente seus pais. Hans e Margeret Luder mudaram-se de Esleben, Alemanha, lugar onde Lutero nasceu e foi batizado, para Mansfield, durante o primeiro ano de vida do filho. Em Mansfield, Hans prosseguiu com seu trabalho como mineiro, supervisonando dois fornos de fusão e provendo, cuidadosamente, 31


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a educação do jovem Martinho. Assim, em vez de trabalhar na infância – a sina da maior parte dos jovens camponeses –, Lutero frequentou a escola, onde estudou latim, gramática elementar e o essencial da educação religiosa: os Dez Mandamentos, a Oração do Senhor e os credos infantis. A essa altura, ele escolheu a versão latinizada de seu nome, Lutero, em vez da alemã, Luder. Quando Lutero completou 14 anos, seus pais o enviaram para continuar os estudos no monastério de Magdeburg. Esse monastério estava sob a jurisdição da ordem da Irmandade da Vida Comum, conhecida por sua piedade e por ter, entre seus membros, Tomás de Kempis, autor do clássico devocional A imitação de Cristo. Magdeburg era uma escola respeitada e, consequentemente, muito cara. Os modestos proventos da família de Lutero mal davam para pagar seu primeiro ano, razão pela qual, a exemplo de outros estudantes camponeses, ele passou a mendigar na rua por seu pão. “Panem propter Deum”, pão pelo amor de Deus, era a expressão que, com frequência, saía da lingua de Lutero quando ele mendigava pelas ruas de Magdeburg. No ano seguinte, Lutero continuou com seus estudos em Eisenach. Presumivelmente, Eisenach atraía Lutero por razões tanto acadêmicas como financeiras. A mãe de Lutero tinha parentes por perto que, sem dúvida, ofereciam algum alívio, como também eventuais refeições. Mas foi uma senhora idosa da cidade que, admirando a capacidade e a decisão de Lutero, cuidou dele de maneira especial. No entanto, mesmo com essa ajuda, o período que Lutero passou em Eisenach foi uma verdadeira batalha. A despeito desse desafio, contudo, ele se superava nos estudos, sendo o melhor da classe. Seus feitos lhe permitiram, assim, passar para Erfurt, onde estudaria Direito, concretizan32


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do o sonho que seus pais tinham para sua vida. Ao entrar numa profissão tão nobre, os pais esperavam que ele escapasse da classe de agricultores e trouxesse honra e status para o nome da família. Em Erfurt, ele recebeu seu bacharelado em 1502, e seu mestrado, em 1505. Ambos o preparariam para estudos futuros de Direito e um doutorado em Jurisprudência.

Eu Serei um Monge O estudo em Erfurt representou, em muitos aspectos, um ponto de virada na vida de Lutero. Em sua caminhada diária, ele via uma escultura que despertava sua atenção. A imagem mostrava Cristo como juiz, com uma espada presa entre os dentes e o olhar penetrante. Essa imagem, não somente nas interpretações medievais de Cristo, assombrou Lutero durante muitos anos, na medida em que ele contemplava sua própria culpa diante de Deus. Uma palavra alemã específica nos ajuda a entender o verdadeiro impacto dessa imagem sobre a vida de Lutero: anfechtung. Traduzida como “crise” ou “luta”, no caso de Lutero se encaixaria melhor como intensa luta espiritual e crise. Na verdade, é melhor usar a palavra no plural, anfechtungen, pois, na realidade, é uma série de crises espirituais que marca o início da vida de estudo de Lutero. Após completar o mestrado em Artes, em janeiro de 1505, Lutero permaneceu em Erfurt para receber treinamento especializado em Direito. Ele se superava no campo das leis e estava no caminho certo para cumprir o desejo do pai. Em junho daquele ano, viajou para casa em Mansfield. Na volta para Erfurt, Lutero foi pego em violenta tempestade de trovões. Nesse momento, ele ficou paralisado pela tempestade e atribuiu elevado significado 33


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Courtesy of the Pitts Theology Library, Candler School of Theology

espiritual a ela, crendo que Deus havia soltado os trovões do céu para julgar sua alma. Em total desespero, clamou a Santa The E arly Years Ana, padroeira dos mineiros: “Ajudai-me Santa Ana, e eu me tornarei as “crisis” or “struggle,” in Luther’s case it is best described as monge”.anIsso aconteceu em 2 deand julho de 1505. intense spiritual struggle a crisis. In fact,Exatamente it is better to duas semanas tarde,inLutero ofereceu uma seus colegas, usemais the word the plural, anfechtung en, festa for inareality a series enof spiritual crises marked Luther’s early life of study. tregando a eles seus livros de Direito e sua boina de mestre, e se After completing his M.A. in January 1505, Luther retirouremained dos estudos de doutorado. Na ocasião, Lutero disse-lhes at Erfurt to receive specialized training in law. He que, noexcelled dia seguinte, entraria para o well monastério. in the legal field and was on his way to fulfilling

Figura 1.2 Nemalltodas as reações a Lutero eram favoráveis. A represen1.2 Not responses to Luther were favorable. This depiction of as acomo seven-headed monster the title page of Johannes tação deLuther Lutero um monstro degraces sete cabeças ganhou a primeira Cochlaeus’s 1529 book criticizing Luther.

página do livro de Johannes Cochlaeus, de 1529, criticando Lutero. 29

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Lutero desejava obter a bênção do pai por trocar a boina de mestre pela túnica de monge; essa bênção, porém, não veio. Como se recorda Lutero: “Quando me tornei monge, meu pai quase ficou louco. Estava muito aflito e recusava-se a me dar sua permissão”. Mais tarde, em 1521, Lutero desculpou-se por haver desobedecido aos pais em sua dedicatória de Sobre os votos monásticos, dirigido a seu pai. Quinze anos antes desse livro, e apesar da recusa de seus pais, Lutero entrara no monastério. Todos os candidatos eram aceitos em experiência durante um ano. Durante esse período como “noviço”, Lutero se lançou ao rigor da vida monástica e completou esse ano de estágio. Tomou o hábito de monge em 1506, em uma cerimônia que culminou com Lutero prostrando-se diante do abade. De forma irônica, foi essa imagem, sobre a lápide, que cobriu o túmulo do principal acusador do reformador Jan Hus. Nessa lápide, estava a assombrosa imagem de Cristo como juiz. Seus pais não atenderam ao convite para comparecer à cerimônia. Lutero esperava que, com sua entrada no monastério, resolveria suas crises espirituais. Mas, na realidade, elas só aumentaram. Um ano após seu juramento a Santa Ana, Lutero foi abandonado por sua família e também se sentia gravemente abandonado por Deus. Anos mais tarde, Lutero refletiu sobre sua vida de monge: “Eu fui monge por vinte anos. Eu me torturava com orações, jejuns, guardando vigílias e congelando-me – só o frio já era suficiente para me matar –, e infligia sobre mim tanta dor que jamais faria isso de novo, mesmo que conseguisse”. Na verdade, Lutero cumpria seus deveres com tamanho rigor que exclamou: “Se algum monge chegasse ao céu simplesmente por ser monge, eu deveria tê-lo alcançado. Todos os meus companheiros do 35


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monastério me conheciam e podiam testificar isso”. Ele conclui suas lembranças observando: “Se tivesse durado mais um pouco, eu teria me matado de vigílias, orações, leituras e outros labores”. Mas ainda não havia solução para suas crises espirituais. No final da primeira década do século XVI, dois acontecimentos impactaram profundamente o jovem monge, colocando-o em um decurso que viria a revolucionar a igreja. Seu prior, ou superior, em Erfurt muitas vezes expressara ao abade, Johann von Staupitz, sua exasperação com o jovem Martinho Lutero. Staupitz, contudo, embora confuso pelas lutas espirituais de Lutero, reconhecia a capacidade intelectual e o futuro do jovem. Ordenou, assim, que Lutero fosse transferido para o monastério de Wittenberg. Poucos anos antes, Staupitz e outros haviam fundado a Universidade de Wittenberg. Frederico, o Sábio, não poupara gastos para tornar sua nova universidade rival das universidades já estabelecidas que cobriam as terras alemãs e além delas. Ele queria contar com o melhor e mais brilhante corpo docente, e aprovava, de coração, a escolha de Lutero. O treinamento de Lutero, contudo, não era em Bíblia e teologia; assim, antes de iniciar sua carreira como professor de Bíblia e teologia, mais uma vez ele se tornou estudante. Enquanto estudava em Wittenberg, ele dava aulas de Artes e sobre Aristóteles. Assim, Staupitz esperava que a ocupação mental com a academia abafasse as muitas lutas interiores de Lutero. Mas ele estava errado. Lutero começou a obter seu segundo conjunto de graduações, recebendo outro bacharelado de Artes em Bíblia, em 1509. Na ocasião, foi enviado de volta a Erfurt, na qualidade de professor. Enquanto permaneceu ali, o monastério de Erfurt 36


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necessitou enviar alguns documentos a Roma. Staupitz, então, viu esse pedido como uma oportunidade para Lutero fazer a paz com Deus, acreditando que a Cidade Santa lhe faria muito bem à alma. Assim, Lutero e outro monge embarcaram em sua peregrinação a Roma em 1510, percorrendo a mesma rota que milhares de monges, no passar dos séculos da era medieval, haviam trilhado. Prevendo que depararia com um paraíso espiritual, Lutero descobriu, em vez disso, algo mais parecido com a “feira das vaidades” descrita por John Bunyan em O peregrino. “Quando vi Roma pela primeira vez, joguei-me no chão, ergui as mãos e disse: “Ave a ti, ó Santa Roma”, recorda ele. Porém, essa impressão rapidamente se dissipou. Ele continua: “Ninguém consegue imaginar a desonestidade, a horrível pecaminosidade e a devassidão desenfreada de Roma”. Ao subir a escadaria de Pôncio Pilatos, recitando o Pai-Nosso a cada degrau, sua desilusão só fez aumentar. Ao chegar ao topo, ele exclamou: “Quem sabe se isso é verdade?”. A viagem a Roma não aquietou a tempestade que agitava a alma de Lutero. Certa ocasião, após o seu retorno, Lutero se encontrou com Staupitz no jardim do claustro de Wittenberg. Staupitz não conseguia entender por que Lutero não compreendia o amor de Deus por ele. “Amar a Deus?”, retrucou Lutero. “Não posso amar a Deus; eu o odeio.” Staupitz não tinha solução para o jovem, exceto mandar que ele fizesse um doutorado em Teologia. Novamente, ele argumentou que o estudo dos pais da igreja e a tradição medieval acabariam com sua luta com Deus. Em 1512, Lutero recebeu seu doutorado, não em seu curso de Direito, que fora sua intenção original, mas em Teologia, afiliando-se ao corpo docente daquela disciplina em Wittenberg. 37


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Acadêmico em Wittenberg Na época, Lutero ainda não tinha consciência, mas essa prescrição de mais estudos correspondia exatamente às suas necessidades, embora não tenha dissipado, de imediato, as negras nuvens espirituais. Na verdade, a vida ficaria até pior antes de melhorar. Lutero se lançou nas palestras e no trabalho de doutorado, começando com o livro de Pedro Lombardo: Quatro livros das sentenças (1158). Esse tratamento sistemático e lógico da doutrina servira como livro-texto de Teologia desde 1200 até os dias de Lutero, estendendo-se para além deles. Tal obra tinha tamanha influência que era preciso dominá-la inteiramente para se qualificar ao grau de doutorado nas universidades medievais. Algo na leitura que Lutero fizera de Lombardo chamou sua atenção para Agostinho. Nas notas de rodapé de sua cópia de Sentenças, Lutero rabiscou várias referências ao grande e antigo pai da igreja. Enquanto voltava o foco para Agostinho, foi imediatamente conduzido por ele até Paulo. As notas de Lutero nas margens mostram também que esse aspirante a teólogo encontrava dificuldades para conciliar o que lia em Paulo e Agostinho com Lombardo e alguns ensinamentos da igreja na alta Idade Média e em seus últimos anos. Especificamente as questões acerca da vontade humana e do pecado deixavam Lutero perplexo. As notas também mostravam que ele afirmava conceitos medievais católicos sobre fé e salvação. Mas, já em 1512, Lutero começava a discordar de Roma quanto a essas duas últimas questões. As perguntas fervilharam lentamente até 1517, e suas consequências foram experimentadas após Lutero haver afixado as 95 teses no portão de Wittenberg. Nos anos intermediários, ele continuou com seu trabalho em Wittenberg, ensinando, pregan38


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do, orando e, ainda assim, duvidando, sondando e questionando. Além de suas palestras de Teologia extraídas das Sentenças de Lombardo, ele preparava aulas sobre os Salmos (1513-1515), depois Romanos, Gálatas e Hebreus (1515-1518). Nessas aulas, Lutero refletia o humanismo do século XVI. Essa nova abordagem, contudo, não deve ser confundida com o humanismo secular de nossos dias. O humanismo expressava o espírito da Renascença, enfatizando um retorno às culturas grega e romana. Era, de muitas formas, um movimento reacionário contra as tradições medievais. Tal abordagem, chamada de escolasticismo, ressaltava os pais latinos mais recentes e o pensamento de Aristóteles. O escolasticismo enfatizava os comentários medievais sobre Aristóteles – e até mesmo os comentários sobre os comentários –, e não, primariamente, seus escritos. Como os andaimes em volta de um prédio, esses comentários bloqueavam a linha direta às fontes. O humanismo propôs mover-se para além dos andaimes com o seguinte grito de guerra: “Ad Fontes” (“para as fontes” ou “às origens”). Nesse espírito, Lutero foi além dos andaimes que obstruíam a Bíblia, partindo diretamente para o texto bíblico. E, quando Lutero foi ao texto, continuou a encontrar dificuldade para reconciliar a Escritura com o ensinamento da igreja. Em seu trabalho sobre os Salmos, como outros exegetas ou intérpretes medievais, ele aplicava boa parte do texto, especialmente os elementos da majestade, a Cristo. Porém, diferente dos outros, ele também aplicava os elementos de sofrimento e de servidão a Cristo. Para Lutero, Cristo era visto tanto em sua majestade como em sua humildade, em altura e em rebaixamento, como rei e como mendigo. Mas, para os líderes da igreja romana, a eles somente o lado majestoso de Cristo interessava. 39


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Alguns anos mais tarde, essa diferença entre Lutero e a igreja tornou-se ainda mais ampla, quando Lutero passou a articular sua teologia como uma “teologia da cruz”, contra a “teologia da glória”. Ele não apenas pensava sobre Cristo de um modo diferente de seus contemporâneos, como também pensava diferente sobre pecado e salvação, conforme evidenciado em seus escritos sobre Romanos, Gálatas e Hebreus. Seus pensamentos sobre pecado e salvação são examinados, com mais detalhes, em outros capítulos; por ora, fazemos apenas uma breve menção às suas ideias-chave, o que nos ajudará a visualizar a progressão de seu pensamento. O primeiro conceito envolve um entendimento do pecado que vai além dos pecados individuais cometidos. Conforme Lutero entende Paulo, nosso pecado é como a raiz de uma planta; assim como a raiz está no cerne da planta e a permeia, também o pecado está em nossa vida. Lutero usa a palavra latina para raiz, radix, como uma figura vívida de nossa verdadeira natureza como pecadores de raiz. O resultado desse entendimento é que o perdão e a redenção terão de ir além dos pecados que cometemos como indivíduos e de tratar nossa natureza como pecadores. Tal reconhecimento está em intenso conflito com o sistema medieval penitencial e confissional, baseado nos pecados individuais. Quanto à salvação, a ideia-chave que Lutero começa a examinar é de “justiça alheia”. Esse termo quer dizer simplesmente que a justiça que Deus requer, na condição de nosso justo juiz, não pode ser produzida por nós, porque somos pecadores desde a raiz. Essa justiça tem de vir de fora de nós; em consequência, é alheia a nós, e não inerente ou com origem em nós mesmos. Alguns anos seriam necessários até que essas ideias 40


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chegassem a uma plena fruição para Lutero, mas, já em 1516, seu pensamento estava se direcionando ao grande princípio da Reforma de sola fide, ou da justificação somente pela fé. Com tal entendimento, Lutero estava se afastando de Roma.

As 95 teses Durante esses anos, Lutero esteve no palco central de um dos eventos mais significativos da história ocidental: a postagem das 95 teses no portão da igreja de Wittenberg, em 31 de outubro de 1517. Em seu prefácio a tal documento, Lutero explicou seus motivos: “Por amor à verdade e pelo desejo de trazê-la à luz, as seguintes proposições serão discutidas em Wittenberg, sob a supervisão do reverendo padre Martinho Lutero... [que] pede que aqueles que não puderem estar presentes para debater conosco oralmente, façam-no mais tarde, por carta”. Lutero nunca conseguiu ter esse debate; as 95 teses, escritas originalmente em latim, foram rapidamente traduzidas e distribuídas por toda a Alemanha e além dela. Uma cópia chegou às mãos do papa Leão X, que descartou o documento como nada mais que as divagações de um alemão embriagado, o qual, ele acreditava, pensaria de modo bem diferente quando estivesse sóbrio. A questão das 95 Teses, uma série de curtas proposições apresentadas para um argumento, concerne às indulgências e à venda específica de indulgências pelo monge Tetzel. Tetzel estava em uma missão para Alberto de Mainz. Alberto já havia excedido todos os limites da lei canônica ao manter duas dioceses enquanto tentava tornar-se arcebispo de Mainz. Leão X, papa naquela época, concedeu a necessária dispensa papal, mas isso teve um preço. Leão X, da família Médici, de Florença, era 41


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um mecenas apaixonado pelas artes. Ao decidir que seu legado, a grande Capela Sistina da Basílica de São Paulo, não teria paralelos, ele angariou a assistência de artistas como Rafael, Dürer e Michelangelo. Esse empenho, obviamente, custou muito caro e exauriu os cofres da igreja. Em consequência, Alberto poderia ter seu arcebispado se oferecesse dinheiro para essa empreitada. A grande riqueza de Alberto consistia principalmente de grandes propriedades de terra, e não de moeda, mas Tetzel inventou um esquema para levantar os fundos necessários: as indulgências. Mas, para entendermos as indulgências, temos de, em primeiro lugar, conhecer o sistema de penitência para a igreja romana. A penitência envolvia quatro passos: contrição, confissão, satisfação e absolvição. A indulgência de Tetzel, que vinha com o selo de aprovação de Leão X, solapava esse processo ao reduzir os primeiros três passos para um só, bastante simples: a compra de uma ficha de indulgência. Com a indulgência, Tetzel assegurava a seus compradores a plena absolvição ou o “completo perdão de todos os pecados”. Tetzel oferecia indulgências para as pessoas e também para seus parentes mortos que estivessem sofrendo no purgatório. Suas indulgências encontraram um mercado pronto, mas também um monge muito irado. Quando Lutero ouviu falar das indulgências e da forma como os paroquianos de Wittenberg viajavam a curta distância até Mainz para comprá-las, redigiu, febrilmente, as 95 teses. Lutero tinha claramente em vista Tetzel quando se referiu a “mascates das indulgências” e a “luxúria e licensiosidade dos pregadores de indulgências”. Estava bastante cônscio do motivo final de Tetzel e procurava expô-lo: “Os cristãos devem aprender que, se o papa soubesse das exigências 42


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dos pregadores de indulgências, preferiria que a igreja de São Pedro se tornasse cinzas a ser construída com a pele, a carne e os ossos de suas ovelhas”. A Tese 53 explica ainda por que essa posição causava tantos problemas para Lutero: “São os inimigos de Cristo e do papa que mandam calar a Palavra de Deus em algumas igrejas, a fim de pregar o perdão em outras”. A venda de indulgências amarrou as mãos de Lutero. Como poderia pregar sobre boas obras e seguir a Escritura se seus párocos podiam simplesmente mostrar seus bilhetes de indulgências? Lutero argumentava principalmente contra as indulgências com base no entendimento da igreja do que seria penitência. Mais tarde, ele escreveu: “Certamente, eu imaginava que, nesse aspecto, eu contaria com a proteção do papa, em cuja confiabilidade eu me apoiava fortemente, pois, em seus decretos, ele teria condenado a imoderação dos pregadores de indulgências”. Lamentavelmente, Lutero nunca recebeu o apoio de Leão X; em vez disso, esse ato iniciou, para Lutero, um caminho que o levaria para bem longe de Roma. A essa altura e ao longo dos dois anos seguintes, Lutero ainda desejava reformar a igreja por dentro, pois não tinha a intenção de quebrar relações com ela. Porém, ao desenvolver seu entendimento teológico, logo Lutero percebeu a impossibilidade de prosseguir com essa abordagem.

A Descoberta da Reforma Estudiosos de Lutero discordam quanto à data exata da conversão do reformador. Sugere-se, em geral, que vai de 1513 a 1520. É mais provável, contudo, que Lutero se tenha convertido em 1515-1516 ou 1518. A evidência em favor da data mais precoce 43


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apoia-se, em grande parte, em alguns de seus comentários nas palestras sobre Romanos. Evidências em prol do ano de 1518 incluem alguns de seus comentários nas 95 Teses, que não são coerentes com a justificação pela fé. Isso tem mais peso quando Lu t her, a L i fe consideramos como Lutero, em seus anos mais tardios, desgosof a 1518 date includes some of his comments in the Ninetytou-se desses escritos, em razão de seu conteúdo. Além disso, há Five Theses that are not consistent with an understanding of ainda ojustification próprio testemunho de Lutero acercawhen de we suacondescoberta by faith. This holds more weight sider how Luther, in his later years, regretted these writings da Reforma, registrado em 1545, no prefácio à edição latina de for their content. Secondly, Luther’s own testimony of the suas obras coligidas, que aponta descoberta como tendo sido Reformation discovery, given esta in 1545 in the preface to the of his collectedque works, the discovery to em de Latin 1518.edition Lutero relembra issodates se deu após proferir suas 1518. Luther recalls that it was after he had given his lectures palestras Romanos, e Hebreus, estava em onsobre Romans, Galatians, Gálatas and Hebrews and was quando giving his já secondsegunda series of lectures on palestras the Psalms,sobre which os occurred in 1518. curso sua série de Salmos, em 1518.

Figura 1.3. Johann von Staupitz, o mentor de Lutero, publicou seu 1.3 Johann von Staupitz, Luther’s mentor, published his work on in 1517. trabalhopredestination sobre predestinação em 1517.

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Enquanto se debate a data da conversão de Lutero, a natureza em si dessa conversão permanece notável. Para Lutero, a verdadeira fé significava enfrentar a justiça de Deus em Romanos 1.17, passagem em que Paulo exclama que “a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: ‘O justo viverá pela fé’”. No entanto, embora Lutero refletisse sobre a justiça de Deus, não a abraçou logo de início; pelo contrário, ele declara: “Eu odiava o Deus justo que castiga os pecadores (...); assim, eu estava furioso, com uma consciência feroz e perturbada”. Odiava a justiça de Deus porque entendia que significava o que ele teria de alcançar. Sua ruptura, com a solução de suas lutas espirituais de longa duração, veio quando, “pela misericórdia de Deus”, ele finalmente percebeu que a justiça a que Paulo se refere, requerida por Deus, não é algo que tenhamos de merecer, mas algo que Cristo realizou por nós. Assim, ele explica: Ali comecei a entender que a justiça de Deus é aquela pela qual o justo vive por um dom de Deus, ou seja, pela fé. Este é o significado: a justiça de Deus é revelada pelo evangelho, ou seja, a justiça passiva com que o Deus misericordioso nos justifica pela fé (...). Aqui eu senti que nasci totalmente de novo e entrei pelas portas abertas no paraíso.

O resultado disso foi que Lutero trocou sua ira contra Deus por amor. Ele escreveu: “Eu exaltava essa mais doce palavra com um amor tão grande quanto era o ódio que eu tinha antes da expressão ‘justiça de Deus’”. 45


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Lutero deixou de ver a justiça como ativa, algo que ele tinha de fazer, para algo passivo, que Cristo realizara em seu lugar, adquirido não por nossos méritos, mas somente pela fé. Nasceu, então, o lema da Reforma – sola fide, somente a fé –, e Lutero nasceu de novo.

Debates com Roma O resultado de haver escrito as 95 Teses e de sua conversão foi que Lutero recebeu uma convocação de Roma para explicar seu comportamento. Mas, através da intercessão de Frederico, o Sábio, ele não compareceu. Se tivesse ido, talvez jamais tivesse voltado; assim, foi convocado a Augsburgo, em meados de outubro de 1518, para debater com o cardeal Cajetan. Tratava-se, de fato, mais de uma inquisição do que de um debate, e a reunião teve pouco sucesso. As duas partes falavam além do outro. Lutero enfatizou a autoridade da Escritura e a salvação pela fé. Nenhum desses pontos era compreendido por Cajetan, muito menos lhe parecia persuasivo. A intenção de Cajetan era forçar Lutero a se retratar quanto aos seus escritos e às suas ideias, ou conseguir evidências para condená-lo como herege. Embora estivesse claro para Cajetan que Lutero era radical, ele se mostrou incapaz de extrair quaisquer comentários claros do reformador que pudessem condená-lo como herege. Lutero saiu da reunião incerto quanto ao que representaria o próximo movimento da igreja; Cajetan saiu de lá sem uma retratação ou uma prova de heresia. Lutero encontrou um opositor muito maior em Leipzig, no debate de 1519: Johann Eck, um teólogo que também era professor na prestigiosa Universidade de Ingolstadt. Eck come46


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çara a escrever contra Lutero assim que as primeiras cópias das 95 Teses surgiram da impressora. Oficialmente, os debates se deram entre Eck e Andreas Karlstadt, colega sênior de Teologia de Lutero, em Wittenberg. Mas, na realidade, o debate se desenrolou entre Eck e Lutero. Eck adotou uma estratégia de efeito: alinhou Lutero a Wycliffe e Hus, ambos condenados como hereges. Lutero, consequentemente, tornou-se culpado apenas por associação. Porém, para Lutero, o debate ofereceu uma plataforma para a exposição de sua doutrina sobre a autoridade da Escritura, conhecida como sola Scriptura (somente a Escritura). O compromisso de Lutero com a autoridade da Escritura acima da autoridade dos pais da igreja, dos concílios e até mesmo do papa ressoou durante todo o debate. A certa altura, Lutero chegou a ponto de dizer que até mesmo um menino de escola, armado com o texto, seria mais bem preparado do que o próprio papa. Esse debate, diferente do que tivera com Cajetan, não deixou margem à ambiguidade quanto ao resultado; Martinho Lutero estava fora da conformidade em relação à igreja. Porém, ele ainda não fora declarado herege. Mas Eck se esforçou diligentemente para esse fim e, em 1520, obteve a bula papal que declarava oficialmente Lutero como inimigo da igreja, inimigo dos apóstolos e inimigo do próprio Cristo. Intitulada “Exsurge, Domine” (“Levanta, ó Senhor”), a bula de Leão X, proclamada em 15 de junho de 1520, clamava pela imediata detenção do “selvagem javali na vinha de Deus”. A Lutero, o javali selvagem, não dava alternativa: ele tinha apenas sessenta dias depois do recebimento da bula para se retratar. Se não o fizesse, “sua memória [seria] completamente extirpada da comunidade dos 47


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crentes em Cristo”. Seus livros seriam queimados, e ele e seus seguidores, bem como seus apoiadores, seriam tomados à força e enviados para Roma. A bula papal chegou em um momento bem conturbado para Lutero. Naquele outono, ele escrevera o que foi chamado popularmente de Três Tratados. Esse trabalho, discutido em detalhes no Capítulo 4, acentuou a quebra entre Lutero e a igreja. Ele, contudo, encontrou tempo para responder por escrito à bula papal: Sobre a Detestável Bula do Anticristo. Inicialmente, Lutero gostava de Leão X. A certa altura da carta remetida ao papa em 1518, Lutero expressou pesar por Leão X ser o chefe da igreja, dizendo: “Tu merecias ser papa em dias melhores”. Por volta de 1520, contudo, esse sentimento mudou, e Lutero se referia a Leão X como o Anticristo. Quanto à bula papal, quando se passaram os sessenta dias, Lutero a queimou publicamente em Wittenberg. Quando o papa recebeu esse informe sobre Lutero, excomungou-o e conclamou sua imediata entrega a Roma.

A Dieta de Worms Nesse momento, o palco estava pronto para a luta final entre Lutero e a igreja. E, mais uma vez, Frederico, o Sábio, interveio e evitou que Lutero fosse levado para Roma. Em vez disso, ele deveria apresentar-se perante a Dieta, o congresso Imperial em Worms, em abril de 1521. Depois da afixação das 95 Teses, esse é o acontecimento mais conhecido da vida de Lutero. Seu surgimento em Worms alcançou proporções quase míticas. Carlos V, imperador do Sacro Império Romano, supervisionava a Dieta. 48


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Como notam muitos historiadores, o Sacro Império Romano não era santo, nem romano, tampouco um grande império. Na verdade, tratava-se de uma confederação solta cujo futuro era precário. Esse era o primeiro encontro de Carlos V com os príncipes e governadores da Alemanha, e ele não poderia ter planejado um desafio mais complicado. Por um lado, ele era católico romano convicto e tinha uma grande dívida para com a cúria romana. O núncio papal, Alexandre, estava ali para garantir que os interesses de Roma fossem protegidos. Por outro lado, Carlos V ascendera ao trono, em grande parte, pela influência de Frederico, o Sábio, protetor de Lutero. Charles V estava em uma posição extremamente delicada; Lutero, igualmente. Lutero chegara com as boas-vindas de herói em Worms, armado para – e esperando por – um debate. Ele tinha a Escritura a seu lado, tinha Agostinho a seu lado e tinha argumentos que apelariam para seus compatriotas alemães também a seu lado. Por que, arrazoou Lutero, deveríamos abdicar de nossa autoridade local alemã de governar nossas terras e de praticar nossa religião em prol do papa, em Roma? Mas, em vez de se envolver em um debate, Lutero sofreu uma inquisição. Chegada a hora de ele aparecer diante da Dieta, foram feitas duas perguntas apenas: “Esses são teus escritos?” e “Tu te retratarás?”. Lutero ficou atônito diante da assembleia. Como poderiam esperar que ele se retratasse? Seus escritos continham as palavras da Escritura, as palavras dos concílios e até mesmo palavras dos papas. Ele não poderia simplesmente descartá-las. Além do mais, Lutero quis saber o que exatamente em seus escritos havia perturbado tanto Carlos V. Lutero estava disposto a admitir que estava errado se isso fosse provado. 49


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Roma, porém, não estava interessada em provar o equívoco de Lutero; os líderes queriam apenas que ele fosse embora. Lutero pediu um dia para pensar no assunto, e Carlos V anuiu. No dia seguinte, 18 de abril de 1521, mais uma vez Lutero ficou de pé diante da Dieta de Worms. Mais uma vez, pediu um debate e, mais uma vez, isso lhe foi negado. Então, ele proferiu seu discurso famoso e sucinto, em que se lê na íntegra: Como vossa serena majestade e vossos senhorios buscam uma resposta simples, eu a darei da seguinte forma, sem rodeios: A não ser que eu seja convencido pelo testemunho das Escrituras ou por uma razão bem clara, pois não confio no papa ou em concílios isoladamente, já que é sabido que frequentemente eles têm errado e se contradizem, estou atado às Escrituras que tenho citado, e minha consciência é cativa da Palavra de Deus. Não posso me retratar de nada, nem farei isso, já que não é seguro nem certo ir contra a consciência. Não posso fazer de outro modo: aqui eu me firmo. Que Deus me ajude, Amém!

Há controvérsia sobre se realmente Lutero teria proferido estas famosas palavras: Aqui me firmo. A primeira versão impressa da fala contém, como a última parte, as seguintes palavras: “Não posso fazer de outro modo, aqui me firmo. Deus me ajude”, em alemão, enquanto o material anterior é escrito em latim. Essas três palavras não aparecem na transcrição da fala. Não existe controvérsia, porém, acerca do resultado da fala de Lutero. Recusando-se a se retratar, ele admitia ser culpado e selou sua condenação como herege. Rapidamente, os nobres 50


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alemães o cercaram e conduziram em segurança para fora do salão. Carlos V emitiu uma carta no dia seguinte afirmando sua intenção de ver o “notório herege” imediatamente punido. Porém, em primeiro lugar ele tinha de voltar a atenção para outros assuntos. Finalmente, em maio, quando ficou claro que os nobres alemães não entregariam Lutero às autoridades papais, Carlos V o colocou sob banimento imperial. Lutero poderia ser caçado e morto por qualquer pessoa – uma lei sob a qual ele viveu pelo resto da vida. Além disso, qualquer um que protegesse Lutero também cairia sob a mesma condenação. Frederico, o Sábio, previra acertadamente o resultado de Worms. Ele planejou o sequestro de Lutero e o levou a um de seus castelos. Frederico certificou-se de que Lutero não soubesse para onde seria levado. Por quase um ano, Lutero assumiu uma nova identidade: Junker Jorg. Ele usou disfarces e, a certa altura, até mesmo vestiu-se de mulher, para evitar ser descoberto, escondendo-se no castelo de Frederico, na cumeeira de Wartburg. Esse monge, sozinho, manteve-se firme contra toda a igreja e o império. As atividades de Lutero, antes consideradas por Leão X apenas desvarios de um alemão bêbado, agora ameaçavam a ascendência da igreja na Alemanha e por toda a Europa. O “exílio em Patmos”, como Lutero se referia a seu esconderijo no castelo de Frederico, contudo, não estava isento de dificuldades. Na verdade, nesses dias, Lutero enfrentou algumas das lutas espirituais mais intensas de sua vida – ou anfechtungen, em alemão –, as quais caracterizaram sua vida inicial. Seus atos não tinham precedentes: ele havia desafiado a igreja e, agora, estava condenado como seu inimigo, inimigo do evangelho e inimigo do próprio Cristo. Durante essa intensa batalha espiri51


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tual em Wartburg, relatam que Lutero teria jogado um tinteiro contra a parede quando o diabo apareceu para atormentá-lo. Embora isso possa ser apenas mito, sem dúvida Lutero estava sob ataque. Escrevendo a um amigo, ele disse: Nessa solidão lúdica, estou exposto a mil diabos. É muito mais fácil lutar contra o diabo encarnado – ou seja, as pessoas – do que contra os espíritos de iniquidade nos lugares celestiais. Muitas vezes eu caio, mas a mão direita do Altíssimo me levanta novamente.

Os meses no castelo de Wartburg, de maio de 1521 até março de 1522, na verdade não foram muito recreativos. Nesse período, Lutero produziu um imenso acervo literário, incluindo a tradução do Novo Testamento grego para o alemão, em apenas quatro meses. Além disso, Lutero redigiu inúmeros sermões para as igrejas da Alemanha. Suas ideias teológicas revolucionaram o culto da igreja, e os sacerdotes precisavam de uma direção para sua nova tarefa: a pregação. Também manteve extensa correspondência. Na ausência de Lutero, a igreja e a universidade de Wittenberg estavam sendo ameaçadas por apoiadores excessivamente zelosos. A certa altura, Lutero arriscou-se a ser pessoalmente ferido ao retornar a Wittenberg por pouco mais de uma semana, mas rapidamente retirou-se para seu esconderijo. Alguns meses se passaram, e Lutero continuava a receber notícias perturbadoras de Wittenberg. Chegara ao fim o exílio de “Junker Jorg”, e Lutero retornou a Wittenberg. Durante a sua ausência, o clima político havia mudado de forma signi52


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ficativa. Os príncipes alemães e Carlos V estavam ocupados demais contendendo com os turcos, que se aproximavam, e não podiam dedicar recursos para procurar um monge teimoso. Lutero também contava com o apoio de Frederico, o Sábio. Lutero ainda estava sob interdição e permaneceria assim pelo resto da vida, mas estava seguro em Wittenberg. Até 1521, Lutero havia feito mais do que muitos realizam em toda a vida. Sem dúvida, a maioria dos eventos conhecidos de sua vida provém desses primeiros anos. No entanto, esses anos, por mais conturbados que tenham sido, nunca encontrariam par com os acontecimentos que encheram os últimos anos.

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