Perdido no Meio - Paul David Tripp

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PERDIDO NO



PERDIDO NO A CRISE DA MEIA-IDADE E A GRAÇA DE DEUS

PAUL DAVID TRIPP


T836p

Tripp, Paul David, 1950Perdido no meio : a crise da meia-idade e a graça de Deus / Paul David Tripp ; [tradução: João Paulo Tomas de Aquino]. – São José dos Campos, SP : Fiel, 2016. 405 p. Tradução de: Lost in the middle: midlife and the grace of God. ISBN 9788581323787 1. Pessoas de meia-idade – Direcionamentos para vida cristã. 2. Crise de meia-idade – Aspectos religiosos. I. Título. CDD: 248.84

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477 PERDIDO NO MEIO: A CRISE DA MEIA-IDADE E A GRAÇA DE DEUS

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária Proibida a reprodução deste livro por quaisquer

Traduzido do original em inglês: Lost in the Middle: Midlife and the grace of God, por Paul David Tripp Copyright © 2004 por Paul David Tripp

Publicado originalmente por Shepherd Press PO Box 24 Wapwallopen, PA 18660 www.shepherdpress.com Copyright © 2014 Editora Fiel Primeira edição em português: 2016

meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Versão bíblica utilizada Almeida Revista e Atualizada da Sociedade Bíblica do Brasil

Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago José dos Santos Filho Tradutor: João Paulo Tomas de Aquino Revisor: Márcia Gomes Diagramação: Rubner Durais Capa: Rubner Durais ISBN: 978-85-8132-378-7 Caixa Postal 1601 CEP: 12230-971 São José dos Campos, SP PABX: (12) 3919-9999 www.editorafiel.com.br


Para Dave e Ed Vocês tem sido meus amigos, professores e parceiros de ministério por 20 anos. Sou grato pelas diversas formas em que me ajudaram a ver, pensar e ouvir. Sou grato principalmente pela maneira que vocês me ajudaram a crescer em amor e apreciação pelo meu Senhor.



SUMÁRIO

Prefácio: Uma Nova Consciência....................................................9

Introdução: A Bíblia e a Meia-idade............................................ 13

1 – Meia-idade: um retrato............................................................... 29 2 – Dois salmos da meia-idade......................................................... 61 3 – A morte da invencibilidade........................................................ 87 4 – As folhas caem das árvores.......................................................121 5 – Torres até o céu...........................................................................159 6 – Perdido no meio: a história de Don .......................................187 7 – Fé dolorosa: a história de Deus e o sofrimento ...................209 8 – Posso falar com o gerente, por favor?.....................................245 9 – Bezerros de ouro.........................................................................277 10 – Encontrando o verdadeiro você ...........................................309 11 – Último capítulo, primeiros valores ......................................343 12 – A graça é maior.........................................................................369



PREFÁCIO

UMA NOVA CONSCIÊNCIA

Eu não acredito que as pessoas envelheçam. Eu acho que o que acontece cedo na vida é que, em uma certa idade, as pessoas param e ficam estagnadas. — T. S. ELIOT Ainda não há cura para o aniversário. — JOHN GLENN

Eu gosto de estar ocupado. Não gosto de analisar tudo, pois isso atrapalha o fazer. Para mim, um dia de atividade frenética empilha sobre o outro, dia após dia, até que os dias tenham se tornado em semanas, as semanas em meses e os meses em anos. Eu tento gastar a maior parte da minha vida olhando para a frente, vivendo na expectativa de algo. Recentemente, no entanto, em um momento poderoso, a vida trovejou sobre mim com um poder para o qual eu não estava preparado. Não foi um momento dramático. Ninguém na sala nem percebeu. Foi no Natal, uma época do ano que eu amo. Nós havíamos decorado a casa, embrulhado muitos presentes, e preparado mais comida do que qualquer família pudesse comer (embora tenhamos tentado). Nós tínhamos acabado de terminar a nossa festa deliciosa do dia de Natal e estávamos assentados em volta da mesa batendo papo, en-


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tremeando conversas, quando, sem razão, eu fiquei quieto e olhei ao redor da mesa. Para a minha surpresa eu vi dois homens sentados à minha frente, discutindo suas carreiras, um no mercado de ações e o outro em design. Meu pensamento imediato foi, de onde vieram esses homens? Que direito eles pensam que têm de invadir a nossa celebração familiar de Natal? Enquanto eu continuava ouvindo, entendi que esses homens não eram intrusos; eles eram os meus filhos! Homens, não meninos! Porque é que eles não estavam discutindo sobre skate ou brigando para decidir quem lavaria seu prato primeiro? Não parecia possível que eles pudessem ser meus filhos. Eu não sou tão velho! Não se passaram anos o suficiente. Há coisas que eu gostaria de ter feito com eles. Essa coisa toda não é possível, disse a mim mesmo. Eu estava sozinho em minha cabeça e ninguém à minha volta fazia ideia que, de repente, meus olhos tinham sido abertos. As coisas nunca mais seriam as mesmas. Agora, eu tenho de olhar para cima para falar com meu filho menor que está na faculdade. O antigo ninho proverbial está, de fato, vazio. Eu não sou mais um jovem casado recentemente, não sou mais um pastor jovem, não mais o pai de quatro crianças, nem mesmo de um monte de adolescentes. Eu não estou prestes a celebrar meu décimo aniversário de casamento nem de comprar a minha primeira casa. Eu não estou diante da ansiedade e temor de um novo ministério. Eu não estou embarcando nas primeiras grandes férias familiares. Eu não estou no meio dos meus estudos para um grau avançado. A maioria das primeiras coisas da minha família já ficou para trás de mim. Todos os nossos filhos já falaram as suas primeiras palavras, deram os seus primeiros passos, tiveram o seu primeiro dia de escola, tiveram a sua primeira aula de música e sobreviveram ao primeiro romance. Já houveram muitos boletins, incontáveis reuniões de pais e mestres, eventos atléticos, acampamentos e formaturas. Houve mais 10


Prefácio: Uma Nova Consciência

excursões, finais de semana fora de casa e férias do que eu consigo me lembrar. Houve incontáveis momentos de disciplina, correção e instrução. Compramos montanhas de roupas, caminhões de comida e papel suficiente para reflorestar a Amazônia! Luella e eu conversamos e oramos, discutimos e choramos. Saímos para um número incontável de restaurantes só para ficarmos juntos. Saímos para diversas viagens de final de semana para tomar fôlego e renovar o nosso amor. Deixamos para trás um estacionamento cheio de veículos usados, um depósito de roupas que não servem mais, montes de cacos de copos, pratos e decorações quebradas – artefatos de uma civilização familiar que passou. Ainda assim, tudo isso passou diante de mim com uma velocidade de cegar, e passou bastante despercebido – até aquele dia de Natal divisor de águas. Foi um momento de profunda conscientização pessoal. Eu finalmente vi: eu não sou mais um jovem! Eu tenho um pedaço enorme da minha vida atrás de mim. Eu tenho mais vida atrás de mim do que para frente, e, se você está lendo esse livro, há uma grande possibilidade de que esse seja o seu caso também. No dia seguinte, as coisas estavam diferentes. Quando eu saí da cama estava mais consciente das dores do que antes. O rosto que eu barbeei parecia mais velho e eu tinha mais cabelos grisalhos do que havia percebido anteriormente. Eu me encontrei, nos momentos quietos, pensando a respeito do passado mais do que nunca antes. Meus olhos foram abertos e eu não podia mais fechá-los. É difícil se conscientizar de sua própria história até que você esteja vivendo o meio dela. Mas Deus não nos deixou para vagar pelos corredores dos nossos próprios dramas. Ele nos deu uma história maior, a história da redenção que preenche as páginas da Escritura. Essa grande história nos habilita não somente a fazer sentido das realidades interna e externa de nossas histórias pessoais, mas, mais importante, a conhecê-lo de maneiras novas e gloriosas. 11


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A Bíblia nunca discute a meia-idade, da mesma forma que nunca discute a adolescência. Ainda assim, é capaz de desembrulhar quaisquer experiências da vida, porque ela foi escrita por aquele que fez todas as coisas. Você não precisa ficar perdido no meio de sua própria história. Você não precisa ficar paralisado pelo remorso, derrotado pela idade e desencorajado por ver seus sonhos ficarem para trás. Você não precisa tornar em um problema ainda maior a situação que já está experimentando. Esse momento da vida, que pode parecer o final de muitas coisas, pode, na verdade, dar as boas-vindas a você para uma forma nova de vida. Como frequentemente é o caso em sua caminhada com o Senhor, esse momento de dor também é um momento de graça. Por causa dele, há esperança para você do lado de lá. A vida do lado de cá da glória é difícil. Esse mundo é um lugar quebrado. Você verá coisas que batem nos limites de sua fé. Por causa disso, todos precisamos, ocasionalmente, dar um passo para trás, diminuir a velocidade e parar, olhar e escutar. Minha esperança é que Perdido no Meio ajude você a fazer isso. Uma palavra final: embora este livro seja dirigido para todos aqueles que estão lutando com as questões da meia-idade, ele tem uma rede muito mais ampla do que isso. Perdido no Meio pode ajudar todos que estão lutando com a vida nesse mundo quebrado e se perderam. A Bíblia fala com poder e praticidade com respeito a tudo que você está passando, pensando e sentindo. O Deus que parece tão distante de você, na verdade, está próximo e ativo nesse momento. Perdido no Meio foi escrito para dar a você olhos para vê-lo, para ver a si mesmo mais claramente, e para encontrar a esperança funcional que você precisa para continuar em frente. Paul David Tripp

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INTRODUÇÃO

A BÍBLIA E A MEIA-IDADE

Por que, pois, dizes, ó Jacó, e falas, ó Israel: O meu caminho está encoberto ao Senhor, e o meu direito passa despercebido ao meu Deus? Não sabes, não ouviste que o eterno Deus, o Senhor, o Criador dos fins da terra, nem se cansa, nem se fatiga? Não se pode esquadrinhar o seu entendimento. Faz forte ao cansado e multiplica as forças ao que não tem nenhum vigor. Os jovens se cansam e se fatigam, e os moços de exaustos caem, mas os que esperam no Senhor renovam as suas forças, sobem com asas como águias, correm e não se cansam, caminham e não se fatigam. Isaías 40.27-31


PERDIDO NO MEIO

Vou apresentar-lhe duas afirmações aparentemente contraditórias e depois conectá-las para você: • A Bíblia não fala absolutamente nada a respeito da crise da meia-idade. • A Bíblia lhe diz tudo o que você precisa saber sobre a crise da meia-idade. Vamos considerar a primeira afirmação. Se for à Escritura procurando pela crise da meia-idade como um tópico, você não encontrará nada. É evidente que isso é verdadeiro a respeito de muitos tópicos. Como resultado, muitos cristãos adotam uma postura do tipo “Bíblia-para-a-parte-religiosa-da-minha-vida” a respeito das Escrituras. Eles tendem a procurar ajuda na Bíblia somente quando ela fala claramente a respeito de certos tópicos. Assim, normalmente procuram em outros lugares a sabedoria que necessitam para as diversas áreas da vida que não são diretamente tratadas nas páginas da Escritura. Ou eles podem cair em outro erro sutil. Se são cristãos, sabem que a Bíblia é um livro repleto de sabedoria impressionante, revelada por Deus, aquele que é a fonte de toda a sabedoria. Eles estarão famintos por conhecer a mente divina em cada área da vida. Dirigidos por esse zelo, podem torcer, revirar e esticar as Escrituras para prover a informação que estão procurando. Assim, ambos grupos de pessoas cometeram o mesmo erro. Ambos veem a Bíblia como a grande enciclopédia de Deus, um índice tópico de problemas humanos e soluções divinas. Um grupo fica um pouco triste por considerar que a Bíblia não fala mais a respeito da vida. O outro está crescentemente convencido de que a Bíblia fala a respeito de mais tópicos do que parece a princípio. Ambos 14


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

perderam a razão de ser da Bíblia, o cerne daquilo que a Bíblia realmente trata. Visto que a Bíblia não é uma enciclopédia, é correto dizer que ela não tem realmente nada a dizer a respeito da crise da meia-idade. Neste livro nós não vamos escavar através da história, poesia, profecia e ensino das Escrituras, caçando material que diga respeito à meia-idade. Nós não indagaremos se o pecado de Davi com Bateseba foi uma crise da meia-idade, ou se Moisés estava tendo uma crise de meia-idade quando erradamente feriu a rocha para conseguir água. Não vamos olhar os evangelhos em busca de qualquer evidência de como Jesus lidou com as tentações da meia-idade. Não é assim que a Bíblia funciona nem a forma como foi organizada. Por outro lado, também não vamos procurar em outro lugar pela verdade e sabedoria que precisamos. A Bíblia é uma narrativa e, porque é uma narrativa, nos conta tudo o que precisamos saber sobre as preocupações da meia-idade. A Bíblia é a grande história da redenção, que abrange a história de cada vida humana. Ela é a história abrangente de “tudo”. Ela é compreensiva em escopo sem ser exaustiva em conteúdo. Ela nos dá sabedoria para tudo, sem diretamente discutir cada coisa em particular. A grande narrativa da Palavra de Deus me dá tudo o que eu preciso saber sobre Deus, sobre mim mesmo, sobre o propósito e o significado da vida e sobre aquilo que é verdadeiro, bom e belo. A Bíblia é a lente por meio da qual eu olho o todo da vida. Nela eu encontro as verdades, valores, objetivos e esperanças que visam dar forma e direção à minha vida. Todas essas coisas são fios tecidos na trama de uma história grandiosa e maravilhosa. Sem sua história, as doutrinas, princípios, mandamentos e promessas não fazem nenhum sentido. 15


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À luz dessa história, cada passagem da Escritura revela coisas sobre Deus, sobre as pessoas, sobre a vida nesse mundo caído, sobre a redenção e a eternidade que me ajudam a entender qualquer coisa que eu esteja considerando naquele momento. Por exemplo, a maioria do que a Bíblia fala sobre casamento não é encontrado em passagens que discutem o casamento. O Salmo 73 é uma passagem sobre casamento porque apresenta um tipo de luta que cada pessoa nesse mundo experimenta. 1Pedro 1 é uma passagem sobre casamento porque esquematiza o que Deus está fazendo no período de tempo entre a nossa salvação e a sua vinda – o período de tempo no qual todos os casamentos acontecem. Apocalipse 5 é uma passagem sobre casamento porque nos permite espiar a eternidade e, assim, clarear os valores que devem estruturar cada casamento cristão. Assim, mesmo que a Bíblia nunca fale nada sobre a experiência da crise da meia-idade, ela é um recurso rico para compreendê-la e aprender como respondê-la. Mas antes de examinarmos experiências particulares da meia-idade, é importante examinar como quatro perspectivas explicam ou interpretam as questões mais profundas de cada experiência humana.

A BÍBLIA NOS APRESENTA O MUNDO REAL Você não precisa ler por muito tempo para encontrar honestidade chocante na Bíblia. Viver em um mundo caído não é minimizado ou coberto por uma cobertura de açúcar. Tão cedo quanto no quarto capítulo de Gênesis, você encontra um fratricídio – o tipo de relato que te daria arrepios ao ler o jornal pela manhã. De violência doméstica a guerras, pragas e doenças; de animais ferozes a perversidade sexual e corrupção no governo. A Escritura descreve firmemente o drama diário da vida real. É um mundo de promessas quebradas, expectativas frustradas e sonhos riscados. É um mundo onde pessoas 16


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

más parecem prosperar e pessoas boas estão sofrendo. É um mundo onde coisas boas se transformam em más, coisas novas se deterioram, coisas jovens envelhecem e coisas fortes se tornam fracas. É um mundo familiar porque é o mesmo mundo em que vivemos. A Bíblia também é honesta sobre o porquê o mundo é desse jeito. Por que Caim matou Abel? Por que o dilúvio global foi necessário? Por que cônjuges por vezes são infiéis? Por que Davi precisou fugir de seu filho Absalão? Por que pessoas mentem? Por que Judas traiu o Messias? Por que os filhos se rebelam contra os seus pais? Por que a devassidão é atrativa? Por que existem filosofias que competem com a verdade? A Bíblia apresenta uma resposta firme a todas essas questões que capturam a experiência de todas as pessoas. A explicação da Escritura a essas questões parece simples, ainda assim é a única perspectiva ampla o suficiente para cobrir a gama ampla daquilo que está errado, desde motivações pessoais internas sombrias até os males culturais, históricos e ambientais. Vivemos em um mundo que tem sido envergado e torcido por uma força tão fundamental, tão poderosa que literalmente impacta cada pensamento humano, cada intenção humana, cada situação, cada experiência da sociedade e cada momento da história, essa força é uma patologia inescapável do universo criado. É o pecado. Apenas uma palavra e ainda assim um conceito sem o qual é impossível entender a sua vida ou a minha. Essa questão fundamental é poderosamente apresentada em Romanos 8.20-22: Pois ela foi submetida à inutilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosa liberdade dos

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PERDIDO NO MEIO filhos de Deus. Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. (NVI)

Que descrição poderosa! Três expressões nessa curta passagem capturam a vida real nesse mundo caído. Primeiro, a criação foi submetida à inutilidade. As coisas simplesmente não funcionam da maneira que foram ordenadas para funcionar. Depois, Paulo afirma que o mundo está em uma escravidão da decadência. O fato lamentável é que tudo está em processo de morte. Finalmente, ele diz que a criação geme até agora, como em dores de parto. O mundo em que vivemos se contorce com dores tão agudas que não podem ser ignoradas. Todas essas realidades encontram expressão concreta nas páginas das Escrituras. Do drama da guerra entre as nações (Josué) ao túnel escuro do desespero pessoal (Salmo 88), das alegrias do nascimento de um bebê há muito esperado (Lucas 1), ao lamento diante do túmulo de um homem morto (João 11), a Bíblia captura a verdade a respeito da vida real com uma familiaridade e clareza profundas. Então como é que a Bíblia nos ajuda com um tópico como a meia-idade? Provendo-nos de um contexto – um retrato honesto e expansivo do mundo real. Muitas pessoas estão perdidas simplesmente porque não entendem o contexto em que vivem, trabalham, se divertem e adoram. Eles ficam constantemente surpresas e estão despreparadas porque não têm se beneficiado da sabedoria funcional que a Bíblia concede.

A BÍBLIA NOS APRESENTA A PESSOAS REAIS As personagens da Bíblia não são figuras de cera em um museu de mobilidade humana. Nem são personagens de desenho animado 18


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

com sorrisos de sacarina e vozes melódicas. Reconhecemos as pessoas da Bíblia porque elas são exatamente como nós. Adão e Eva são transferidores de culpa competentes. O rei Saul é paranoico e instável. Quando olhamos as páginas da Escritura, encontramos pessoas em relacionamentos familiares: eles são filhos e filhas, maridos e esposas, pregadores e poetas. Vemos multidões de espectadores, mendigos carentes na rua, líderes políticos de diversas etnias e classes sociais, professores e alunos, escultores e artesãos, advogados e juízes, os mais velhos e os jovens. Uma demonstração rica e de cores variadas da humanidade pinta quase cada página da Escritura. A palavra de Deus, de forma cuidadosa, também demonstra a gama completa de paixões humanas. Vemos alegria e regozijo, luto e lamento, temor e timidez, contentamento e deleite, ciúmes e inveja, fé e dúvida, paciência e perseverança. Vemos ira, desencorajamento, ódio, amor auto sacrificial, luxúria, obsessão e egoísmo. Podemos testemunhar como os seres humanos respondem às situações e pessoas em volta deles. E somos introduzidos nos corredores dos corações humanos para examinar pensamentos, inspecionar desejos e conhecer escolhas. No processo, nós mesmos somos expostos e confrontados. Até mesmo os mandamentos e princípios da Bíblia descrevem a nossa real humanidade de carne e sangue, tratando das mesmas questões que cada ser humano experimenta. Esses mandamentos falam dos olhos, língua, mãos e da mente. Eles dizem como responder quando for maltratado, como planejar para o futuro, como ver o governo, como reconciliar um relacionamento, como educar e corrigir uma criança, como dirigir uma igreja, como amar a seu marido ou a sua esposa, como tratar os idosos e como viver com o seu próximo. Não há forma melhor de autoconhecimento e autoexposição do que o espelho da Escritura. À medida que eu me examino à luz 19


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disso, aprendo coisas fundamentais a respeito de mim mesmo, as quais tem implicações práticas para tudo o que eu encontro neste mundo caído. A Bíblia nos expõe como realmente somos. A Escritura nunca nos permite crer em uma humanidade neutra, não direcionada ou desmotivada. Ela requer que admitamos que, por trás de tudo o que fazemos ou dizemos, estamos perseguindo alguma coisa – alguma esperança ou sonho ou coisa sem a qual nos recusamos a viver. Há coisas que valorizamos tanto, que estamos dispostos a sacrificar outras coisas boas para consegui-las. Diminuímos a nossa humanidade a fim de deificar a criação. As coisas que procuramos possuir passam a nos possuir. Vivemos pelas sombras da glória e esquecemos a única glória pela a qual vale a pena de viver. Em seu retrato magistral da humanidade, a Bíblia exige que admitamos algo doloroso e humilhante – aquela confissão que tentamos evitar a todo custo: que nosso problema mais profundo, mais penetrante e mais enraizado somos nós mesmos! Se você puder fazer essa admissão humildemente, sua vida nunca mais será a mesma. Novamente, veja como isso tem conexão com a meia-idade. Porque tantas pessoas na cultura ocidental tendem a se perder durante essa época da vida? Porque todas as trilhas do labirinto da existência humana pelos quais a Escritura nos conduz levam ao mesmo lugar. Eles nos levam a nós mesmos. Somente aqui conseguiremos entender a verdadeira natureza de nossa necessidade e a verdadeira magnitude da provisão de Deus.

A BÍBLIA NOS CONVOCA A ADORAR O DEUS REAL O Deus da Escritura não é o herói de um mito. Ele não é a projeção de mentes fracas, que simplesmente precisam de algo maior do que elas mesmas para que possam depender. Ele, o criador, sustentador 20


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

e governante de todas as coisas é o único ser do universo digno de adoração. A luz de sua glória brilha em cada página das Escrituras. Sua voz é ouvida primeiro, ele escreve o final do drama e cada cena é dominada pela sua presença. Ele existe eternamente e não tem necessidade de sustento. Ele é tem a sabedoria definitiva e ainda assim nunca teve um único professor. Ele fez tudo o que existe, mas não tinha matéria-prima para trabalhar. Ele nunca falhou e não tem nenhuma falha pessoal. Todas as palavras que ele já falou são verdadeiras, e cada promessa que ele fez se tornará realidade. Ele nunca fica confuso, desencorajado ou sobrecarregado. Ele nunca sente ciúmes de forma errada, exigente demais ou de forma enraivecida. Ele está presente em todos os lugares ao mesmo tempo. Não há circunstância que não esteja sob o seu controle. Todas as coisas continuam funcionando porque ele mantém tudo junto pelo poder de sua vontade. Ele tem poder para punir de forma destrutiva, mas se deleita em perdoar. Ele pode mover montanhas, mas é carinhoso, gentil e amável. Sua sabedoria e conhecimento ultrapassam a nossa imaginação, ainda assim ele fala palavras que qualquer um pode compreender. Ele é a fonte de toda justiça verdadeira, e, ainda assim é abundante em misericórdia. Ele está distante em sua glória e ainda assim sempre presente e sempre perto. Ele exige a nossa fidelidade, mas nos dá o poder para obedecer. Ele nos chama a segui-lo, mas pacientemente dá espaço para que aprendamos e cresçamos. A cada dia ele nos dá aquilo que não conquistamos e não poderíamos obter. Ainda assim, esse Deus grande e glorioso, por causa da redenção, se tornou um homem. A linha intransponível entre o Criador e a criatura foi transposta. O Verbo se tornou carne. O pé de Deus tocou a terra! A voz de Deus se fez ouvir na terra! O Senhor veio como o segundo Adão, a Palavra da vida, o sacerdote final e o Cor21


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deiro sacrificial. Ele satisfez as exigências de Deus, fez expiação pela ira de Deus e derrotou a morte. Essa reunião de glória e humanidade revela que todos os outros deuses são falsificações, ficções da imaginação humana e imagens feitas pela mão dos homens. Somente o Deus de glória última e graça que se encarna oferece aquilo que necessitamos frente à terrível devastação pessoal e ambiental do pecado. Aquele que criou todas as coisas passou por aquilo que passamos. Ele, que é puro e santo, pagou o preço definitivo pelo pecado. Ele, que é o criador da vida, saiu andando da morte. Ele pode ajudar! Como tudo isso pode nos ajudar à medida que nos aproximamos de experimentar a meia-idade? A revelação de Deus na Escritura é o único lugar onde podemos encontrar esperança verdadeira. Ele é o único que, de uma vez por todas, está completamente acima de todas as coisas que enfrentamos e ainda assim tem uma intimidade familiar com todas elas por experiência própria. Nós corremos a ele porque ele é Senhor sobre todas as coisas e ele tem poder para ajudar.

A BÍBLIA DÁ BOAS-VINDAS À REDENÇÃO VERDADEIRA O mundo está cheio de sistemas falsos de redenção. Governo, educação, filosofia, sociologia e psicologia, todos esses prometem redenção, mas nenhum deles pode cumprir a promessa, porque sistemas humanos nunca conseguem redimir. Se eles pudessem ter lidado com os resultados amplos e devastadores do pecado, Jesus nunca teria vindo. Ele veio à terra para sofrer e morrer, porque era exatamente isso o necessário. A Bíblia me convida à esperança que somente pode ser encontrada em um Redentor. Eu preciso de mais do que ajuda, eu preciso de resgate. Eu preciso que alguém faça por mim aquilo que eu não consegui fazer por mim mesmo. A minha 22


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

luta maior não é com o mal que está fora de mim, mas com o mal que está aqui dentro. Se não há esperança para aquilo que está dentro de mim, de forma alguma há chance de que eu consiga lidar com o que está fora de mim. Duas passagens bíblicas ilustram a necessidade de redenção real. A primeira, Gênesis 6.5, é devastadora em seu retrato da natureza abrangente e interna de nossa luta contra o pecado. “Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na terra e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração.” Uau! Permita que essas palavras sejam absorvidas. O pecado diz respeito a uma coisa mais fundamental do que fazer o que é errado ou falhar em fazer o que é certo. O pecado mata cada célula do coração e converte tudo o que fazemos para o mal. Nós gostamos de acreditar que somos melhores do que isso. Queremos nos agarrar à fantasia da intenção pura e sem mácula. Queremos pensar que a nossa fofoca era, na verdade, um pedido de oração. Queremos pensar que não foi a autoabsorção feia, mas o cansaço físico que nos fez irritadiços. Queremos acreditar que foi zelo pela verdade e não impaciência que nos fez falar alto e forte. Provérbios 16.2 diz: “Todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito”. Gênesis 6 abre o nosso coração e revela o pecado e a profundidade de cada pensamento e intenção. Se isso é verdade, então você não pode me educar para fora dele. Você não pode exercer poder suficiente sobre mim a fim de esmagar os seus efeitos. Você não pode prover técnicas práticas para me elevar acima do meu pecado. Sem a ajuda divina, eu estou tomado do câncer do pecado e meu prognóstico é a morte. Qualquer coisa incapaz de erradicar esse câncer de dentro de mim é inútil para me ajudar. Mas há uma segunda passagem que deve ser colocada junto a Gênesis 6. 23


PERDIDO NO MEIO Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu Ser, sustentando todas as coisas pela palavra do seu poder, depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade, nas alturas. (Hebreus 1.3)

Com uma palavra, “assentou-se”, o escritor de Hebreus captura a completude da obra de Cristo. Jesus fez tudo o que era necessário para lidar com cada um dos efeitos do pecado. Ele conseguiu fazer o que os sacerdotes do Antigo Testamento nunca conseguiram fazer: parar. Os sacerdotes do Antigo Testamento foram chamados para sacrificar pelos pecados do povo de Deus. Exaustos e cheios de sangue até os joelhos, eles ofereciam sacrifício após sacrifício, dia após dia. Se víssemos a cena, ficaríamos com náuseas. Não eram apenas as ofertas diárias, mas dúzias de sacrifícios diários, semanais e sazonais oferecidos de acordo com o calendário religioso. Milhares de animais eram sacrificados a cada ano. Ainda assim, nunca era o suficiente. Antes que uma camada de sangue secasse, outra era derramada. O odor de carne queimando nunca parava. Esse trabalho sacrificial não podia parar, porque o poder do pecado nunca era quebrado e a penalidade pelo pecado nunca era totalmente paga. Assim, é maravilhoso ler que depois que Jesus realizou seu trabalho ele se assentou! A única razão pela qual ele poderia se assentar é que ele fez tudo o que era necessário para completar a redenção que tinha sido provida. Coloque essas duas expressões bíblicas juntas e você começará a entender a magnitude e praticidade da redenção que somente poderia ser suprida por Cristo Jesus: “era continuamente mau todo desígnio do seu coração” e “depois de ter feito a purificação dos pecados, assentou-se”. Na história da redenção da Escritura, a tristeza 24


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

da totalidade de nossa depravação beija a celebração da totalidade da provisão de Cristo. Deus é satisfeito, Cristo se assentou e, então, há esperança para nós – uma esperança prática que se estica de agora até o final, na eternidade. Como resultado, abordamos cada tópico da nossa vida como as pessoas mais tristes e mais celebrantes da terra. Essa tensão funcional entre tristeza e celebração resulta no tipo de sabedoria prática que a somente a Bíblia concede. A meia-idade deve ser vista a partir dessas duas perspectivas da redenção.

RESUMINDO Essas quatro perspectivas bíblicas (mundo real, pessoas reais, Deus real e redenção real) nos dão a sabedoria essencial para qualquer coisa que encaremos em nossa vida humana. Somente quando virmos o mundo explicado como verdadeiramente é, nós mesmos como realmente somos, Deus em toda a sua glória e a completude da obra redentora de Cristo, poderemos ter uma perspectiva equilibrada, funcional e digna sobre qualquer coisa. Deixe-me detalhar o que essas quatro perspectivas nos proveem ao abordarmos o tópico da meia-idade. 1. Uma cosmovisão abrangente que diz respeito a tudo o que existe. A Escritura não é exaustiva no sentido de abordar diretamente cada assunto, mas é abrangente no sentido de prover informação para compreender todos os aspectos da realidade. 2. Perspectivas práticas sobre cada problema humano. A Bíblia tem algo a dizer sobre tudo o que é mais importante para a vida humana. Ela nos dá uma compreensão essencial dessas coisas e de como devemos responder a elas. 3. Vida antes da morte. A Bíblia não simplesmente promete que algum dia, em uma eternidade distante, conheceremos a vida. A Bíblia nos chama a abraçar uma qualidade de vida agora, qualida25


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de essa que, de outra forma, seria impossível sem a pessoa e obra do Senhor Jesus. 4. Esperança real e autoconhecimento. Você não precisa ficar preso na prisão da cegueira pessoal. Você pode ver, conhecer e compreender a si mesmo, até mesmo os pensamentos e motivos do seu próprio coração. Isso é possível porque a Bíblia funciona como o espelho perfeito. Quando olha para ele, você se vê como realmente é. 5. Ajuda prática para as questões mais profundas da experiência humana. Na Bíblia eu encontro o Criador que me fez e que, portanto, conhece tudo a meu respeito. Eu encontro o Salvador que viveu na terra como eu e compreende tudo a respeito da minha experiência. A Bíblia encara de frente as questões mais profundas da experiência humana, com uma esperança brilhante e uma sabedoria funcional. 6. Esperança real para mudança pessoal duradoura. Visto que Cristo veio, a mudança realmente é possível. A Bíblia, com toda a sua honestidade chocante, também é impressionantemente positiva e esperançosa. Não há nenhuma página cínica nas Escrituras. Não há traços de desistência. A promessa de mudança pessoal radical e duradoura ilumina cada canto de pecado que é encontrado nas Escrituras. 7. Conforto real. Quanto mais você lê a Bíblia, mais compreende que nenhuma experiência humana está fora do escopo do evangelho. Deus entende tudo e seu Filho providenciou tudo. A cada dia podemos ser confortados pela realidade bíblica maravilhosa de que existe provisão para qualquer coisa que enfrentarmos. Ao começarmos uma jornada de descoberta bíblica e pessoal, devemos reconhecer o desafio pessoal que esses sete benefícios de uma perspectiva bíblica colocam diante de nós. Frequentemente, mesmo em nossa celebração das Escrituras, a deixamos separada 26


Introdução: A Bíblia e a Meia-idade

das situações e relacionamentos de nosso dia a dia. Pergunte a si mesmo agora: Onde você permitiu a si mesmo responder aos puxões e empurrões da vida nesse mundo caído de forma não-bíblica? Onde falhou em observar a descrição honesta que a Escritura faz da humanidade e reservou a sua sabedoria para as áreas “religiosas” de sua vida? Onde você procurou ideias para os desafios particulares da vida em qualquer fonte, exceto na Bíblia? Onde você ignorou a fonte interna de seus problemas e implacavelmente procurou colocar a culpa fora de si mesmo? Onde você reduziu a obra de Cristo de perdão de pecados e perdeu a esperança na total renovação do seu coração, dos seus relacionamentos e do seu mundo? É fácil seguir uma religião da mente; outra coisa é render o seu coração e, portanto, cada aspecto da sua vida a Deus. A esperança desse livro é nada menos do que corações transformados, que radicalmente levem a vidas transformadas. Nós não podemos descansar de expandir conhecimento e fomentar entendimento. Não podemos porque Deus não faz isso. Deus demanda isso de todos nós. Ele não vai sossegar, porque já conquistou uma parte de nós. Da mesma forma, à medida que começamos o nosso exame da crise que frequentemente aparece na meia-idade, urjo a você que faça os seguintes compromissos: 1. Eu vou examinar cuidadosamente e entender esse período importante da minha vida. 2. Vou procurar entender tudo o que eu encontrar a partir do ponto de vista das Escrituras. 3. Vou olhar para mim mesmo por meio dos sempre preciso espelho da Palavra de Deus. 4. Eu vou pessoalmente identificar e confessar as áreas em que a mudança se faz necessária. 27


PERDIDO NO MEIO

5. Eu resolverei agir com base na esperança e ajuda que são encontradas no Senhor Jesus Cristo. Você está disposto a fazer esses compromissos enquanto partimos nessa jornada?

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CAPÍTULO 1

MEIA-IDADE: UM RETRATO

Eu penso que idade é um preço muito alto que se paga em troca de maturidade. — TOM STOPPARD Eu suponho que a idade realmente avançada começa quando alguém começa a olhar para trás em vez de para frente. — MAY SARTON

Eles estavam na segunda metade dos quarenta, no entanto, naquela primeira manhã, pareciam muito mais velhos. Ela se arrastou para o meu escritório como se realmente tivesse todo o peso do mundo em seus ombros. Ele parecia irritado desde o início. Eles vieram para falar sobre o seu casamento, mas quaisquer que fossem os problemas que estivessem enfrentando, eram o resultado de algo maior, algo inesperado, para o qual nenhum dos dois havia sido preparado. Eles se casaram logo depois da faculdade. Bill rapidamente encontrou um emprego muito bom e Tammy ficou grávida nos pri-


PERDIDO NO MEIO

meiros meses de casamento. Ambos eram muito felizes com o que a vida lhes deu. A compra de sua primeira casa própria aconteceu logo depois. Tammy pensava estar vivendo o sonho de todo mundo: um marido maravilhoso com um ótimo emprego, a casa dos seus sonhos e uma família a caminho. Eles conversaram muito sobre os anos que seguiriam, ansiosos por construir sua família, acrescentando à casa, e sobre o avanço na carreira, o que certamente estava no futuro de Bill. Tudo parecia bom demais para ser verdade. Encontraram uma boa igreja para frequentar e começaram a conhecer casais de sua idade. Parecia que a peça final do quebra-cabeças estava no lugar. A gravidez de Tammy progrediu rapidamente até o último mês, quando ela começou a ter complicações e foi enviada para o hospital para o término da gestação. O parto foi violento e doloroso, seguido pela notícia terrível de que ela não poderia ficar grávida de novo. Bill e Tammy ficaram surpresos e tristes, mas isso foi em breve anuviado pela alegria que sentiram quando seguraram a pequena Lori em seus braços. Ela era perfeitamente saudável, com dez dedinhos gordinhos nas mãos e dez dedinhos simétricos nos pés. Tammy decidiu que se essa era toda a família que teria, ela faria isso da forma correta. Colocou seu coração e alma naquela preciosa menininha. Nenhum trabalho era árduo demais e nenhum gasto alto demais. Desde cedo de manhã até tarde da noite, Lori era o centro da atenção de Tammy. Ela não se esqueceu que o Bill existia, mas viu Lori como o foco central de seus afazeres. Bill não se importava. Ele estava muito agradecido pelo presente maravilhoso que era essa pequena flor, e era completamente louco por ela. Logo, Lori estava na escola. Tammy se envolvia da maneira que podia na educação dela. Iniciou um programa de mães voluntárias e trabalhava como auxiliar de classe. Bill e Tammy colocaram Lory em aulas de ballet, piano e ginástica. Todas as noites eram dedicadas 30


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ao dever de casa de Lory, sempre com mamãe ou papai do seu lado. Bill e Tammy foram a miríades de performances, recitais, eventos esportivos e banquetes de premiação. Levaram Lory para todo o tipo de passeio que uma criança amaria e enviaram-na aos melhores acampamentos. Se certificaram de que ela estivesse envolvida com o programa infantil da igreja e, depois, com os adolescentes. Eventualmente chegou o momento de Lori se formar no ensino médio. Em meio a toda a celebração de suas conquistas, Tammy estava temendo o momento quando Lori estaria fora de casa e não mais no topo de sua lista de afazeres. Assim, quando a filha foi contemplada com uma bolsa para uma universidade local, Tammy ficou muitíssimo aliviada. Embora Lori vivesse nos dormitórios da faculdade, estaria em casa todos os finais de semana e ao menos uma noite por semana para o jantar. E por ainda estar na cidade, Bill e Tammy puderam participar de muitas de suas atividades. Então, em setembro do seu último ano de faculdade, Lori conheceu o homem dos seus sonhos. Tammy pensava que ficaria feliz por sua filha, mas não estava. O sentimento de medo passou a segui-la todos os dias. Ela participou alegremente de todos os preparativos para o casamento, determinada de que Lori tivesse a cerimônia mais perfeita que ela conseguisse preparar. Ainda assim, estava constantemente triste e chorosa durante o processo. Logo antes do casamento, o noivo de Lori a surpreendeu com a notícia de que havia recebido uma inesperada oferta de emprego em Seattle. Eles viajaram no final de semana e logo concluíram que era uma oferta que não poderiam recusar. Três dias antes do casamento, Lori contou a notícia para sua mãe e seu pai; ela se mudaria para uma cidade a três mil milhas de distância. Tammy quis ficar feliz por sua filha, mas sentiu como se tivesse recebido a notícia de que estava com câncer, como se alguma coisa 31


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dentro dela tivesse morrido. Ela chorou até dormir naquela noite e estava com lágrimas nos olhos até o dia do casamento. Lori e seu marido visitaram Bill e Tammy por uma semana depois da lua de mel e então começaram a longa viagem para Seattle. Bill ficou preocupado com Tammy naquelas primeiras semanas depois que Lori e seu marido se foram, mas pensava que a esposa conseguiria superar. Ela estava constantemente emotiva e estranhamente silenciosa. Já era ruim o suficiente que a casa vazia e a falta de atividade fizesse com que Bill se sentisse velho, mas ele estava frustrado com Tammy. Ele tentava passear no final de semana, mas eles voltavam para casa mais cedo porque Tammy “não estava se sentindo bem”. Ele tentava trazer visitas, mas Tammy dizia que era mais peso do que alegria. Bill tentou envolver ambos em atividades como um casal, mas ela mostrava pouco interesse. As coisas não melhoraram. Havia dias que Tammy ficava horas na cama. Ela quase não cozinhava e raramente fazia o tipo de faxina que antes fazia a casa parecer imaculada. Bill ficava cada vez mais irritado com tudo isso. Embora ainda trabalhasse, olhara com ansiedade para a liberdade que teriam quando os dias de paternidade estivessem para trás. Ele havia pesquisado locais para ir e coisas para fazer, mas Tammy não estava interessada nem mesmo em sair para comer. A irritação de Bill em breve se transformou em amargura. “Foi para isso que trabalhei?” Ele pensava. “É isso que eu ganho por ter feito tudo certo?” Logo, Bill estava sentindo que havia perdido, como se a vida tivesse passado por ele. Sentia inveja das famílias jovens com as quais tinha contato. Não conseguia não se arrepender das decisões que ele e Tammy haviam feito. Também começou a perder o interesse em seu trabalho e, mais importante, começou a abrigar dúvidas sutis a respeito de sua fé. Bill estava cada vez mais amargo, iracundo 32


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e desencorajado. Ficava louco com o fato de que as únicas vezes em que Tammy parecia sair do casulo era quando Lori ligava ou visitava. Ele pensou que deveria arrumar um passatempo, como restaurar um carro ou comprar uma moto. Afinal, ele e Tammy faziam muito pouco juntos e raramente tinham um diálogo maior. Passaram-se três anos da partida de Lori até que Bill entendesse que algo estava errado e que era hora de procurar ajuda. Seus olhos foram abertos pela médica da família, que chamou Bill de lado e lhe disse que os problemas de Tammy não eram físicos e não exigiam remédios. Ela sugeriu que eles conversassem com alguém que poderia ajuda-los. Foi aí que me telefonaram. Embora a história de Bill e Tammy seja única em seus detalhes específicos, a luta deles é bem comum. Nós todos tendemos a crer que aquilo que é de determinada maneira vai continuar sendo igual para sempre. Tendemos a ignorar o fato de que, nesse mundo de Deus, tudo está sempre mudando, e toda a criação está em estado de degradação. Ficamos embalados pela nossa correria frenética, um dia se sobrepondo ao outro, até que grandes porções de tempo tenham passado. No meio-tempo, não notamos o quanto nós e as coisas ao nosso redor mudaram. Então, de repente, algo nos desperta para a surpreendente consciência de que estamos muito mais velhos do que pensamos e de que a vida mudou muito mais do que percebemos. Essa consciência e a desorientação que segue a partir dela é aquilo que a nossa cultura chama de crise da meia-idade. Assim, muitas pessoas dos 35 aos 55 passam por essa experiência que, em anos recentes, tem recebido quase tanta atenção da mídia quanto a adolescência. Todas as pessoas têm uma crise da meia-idade? Não necessariamente. Assim como muitos adolescentes não tem uma adolescência tumultuosa. No entanto, prestar atenção às dificuldades potenciais 33


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e aos perigos dos anos da adolescência tem ajudado tanto adolescentes quanto pais a estarem mais preparados. Minha esperança é que esse livro faça o mesmo pelas hordas de pessoas que estão agora nos anos da meia-idade ou que estão se aproximando deles.

PROBLEMA DE INTERPRETAÇÃO Uma das perspectivas bíblicas mais importantes sobre as pessoas é que os seres humanos pensam. Há um sentido em que nunca deixamos nossa vida sozinha. Estamos sempre tomando a nossa história nas mãos, virando e tentando extrair sentido de tudo. Quando estamos fazendo atividades servis ou repetitivas, rapidamente descemos às cavernas de nossa mente. Quando vamos dormir, debatemos a nossa vida em nossa cabeça, e pegamos no sono sem entender tudo. Duas coisas são verdadeiras em cada pessoa da meia-idade. Primeiro, estamos cientes de que nossa vida não tem andado de acordo com o nosso plano. Você e eu não poderíamos ter escrito a nossa própria história. Não poderíamos nem mesmo ter escrito a história da nossa última semana! A nossa vida tem mudanças e viradas que nunca teríamos imaginado. Algumas dessas mudanças nos deixam maravilhados e agradecidos, enquanto outras nos causam perda e dor profunda. Em meio a todo o nosso planejamento e cuidadosas tomadas de decisão, ainda somos pegos desprevenidos, surpreendidos pelos detalhes de nossa própria existência. Duas experiências recentes demonstraram de forma poderosa que a minha vida não está funcionando de acordo com o meu plano, A primeira aconteceu em um dia normal no The Christian Counseling and Educational Foundation. Eram 17h30m e eu já estava para sair quando recebi uma ligação do meu irmão, Tedd. Tedd é uma pessoa muito nivelada. Se o plano A não funciona, ele é sempre 34


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capaz de conceber o plano B e C até o triplo Z. Dificilmente ele demonstra estar estressado ou sem recursos, no entanto, essa ligação foi diferente. No minuto em que ouvi a sua voz, eu sabia que alguma coisa estava muito errada. O que aconteceu naquele dia nos mudaria para sempre. Mudaria também a nossa família e tudo a respeito dela. Uma conversa e a vida mudou para sempre. Todos ficamos chocados. Foi uma mudança na história que nós não esperávamos e estávamos mal preparados para enfrentar. Emoções poderosas bateram de frente conosco. Pensamentos rápidos e intensos, conversas ansiosas eram a ordem do dia. Em um instante parecia não somente que eu tinha perdido a história da minha família, mas também tinha perdido a minha identidade. Eu estava ferido, irado e à deriva. Eu tinha ido para o seminário, mas eu nunca fiz o curso que me preparou para isso. Eu não podia fugir porque, por mais confusa e estressante, essa era a minha história. A minha segunda experiência inesperada aconteceu em Seul, na Coreia do Sul. Eu estava sentado no palco da maior Igreja Presbiteriana do mundo (35.000 membros), preparando-me para pregar no culto do domingo à tarde. Eu olhei para aquele mar de rostos coreanos, enquanto ouvia hinos familiares cantados em uma língua estrangeira. Em um instante, eu fiquei completamente dominado. Parecia impossível que Paul Tripp pudesse ser convidado para se assentar nessa plataforma, quanto mais para falar! Naquele momento eu fiquei tão maravilhado pela minha própria história que comecei a chorar. Como podia ser que eu estava ali? Como podia ser essa a vocação da minha vida? Como assim, eu recebo para expor o Evangelho dia após dia? Como é que eu saí de 3437 North Detroit Avenue, em Toledo, Ohio para essa igreja enorme, no meio de Seul, na Coreia do Sul? Quanto mais eu pensava, maior era o meu senso de gratidão e assombro, e mais eu chorava. Eu simplesmente não estava conse35


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guindo me controlar. Meu tradutor olhou para mim com um olhar preocupado e disse: “Paul, eu estou bem preparado para a função de intérprete, mas eu não preparei o meu próprio sermão. Você precisa se controlar ou isso não vai funcionar!” Pela graça de Deus, minhas lágrimas arrefeceram, eu levantei para pregar nos espasmos de meu deslumbramento pela minha própria história. A vida nunca funciona de acordo com o nosso plano porque nossas histórias individuais são parte de uma história maior. O personagem central da HISTÓRIA é soberano sobre cada detalhe de nossas histórias. Assim, viveremos sempre com o reconhecimento de que há mudanças e viradas que nunca foram parte do nosso próprio plano para a nossa vida. Mas uma segunda coisa também é verdade com relação à pessoa da meia-idade. Estamos sempre tentando resolver a equação da nossa vida. Desde as perguntas incessantes da criança pequena até as perguntas do homem idoso frente à morte, todos nós somos os nossos investigadores privados pessoais. Analisamos os detalhes de nossa existência todos os dias. Algumas vezes somos arqueólogos, peneirando os fragmentos de cerâmica de nossas civilizações pessoais passadas. Algumas vezes somos detetives, procurando por uma única pista que dê sentido a tudo. Algumas vezes somos filósofos e teólogos, trazendo questões profundas da vida aos detalhes de nossas histórias. Algumas vezes somos diagnosticadores, examinando os sintomas pessoas para descobrir o que está errado. Algumas vezes somos historiadores, examinando o passado em busca de sabedoria para hoje. Atuamos em todos esses papéis em um ponto ou outro. Ainda assim o nosso pensamento é tão constante e tão instintivo que não vemos o quão incessante e influente ele é realmente. Esses dois pontos – que a nossa vida nunca funciona de acordo com os nossos próprios planos e que nós estamos sempre tentando 36


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entender a nossa vida – definem de forma efetiva e explicam a “crise” da meia-idade. A desorientação da meia-idade é o resultado da colisão entre uma profunda consciência pessoal e uma interpretação pessoal poderosa. No entanto, isso não deveria nos surpreender, porque não vivemos pelos fatos de nossas experiências, mas pelas formas que nossas interpretações dão a esses fatos. A desorientação difícil da meia-idade não é porque a passagem em si seja desorientadora. Qualquer que seja o problema que a meia-vida nos traga, é essencialmente causado pelo pensamento errado que trazemos a ele. De repente vemos coisas sobre nós mesmos, as quais estavam se desenvolvendo por anos, mas passaram desapercebidas. Nós não respondemos a esses novos significados da conscientização, nós nos prendemos a eles. Esses significados formarão e determinarão como responderemos à meia-idade. Os dois elementos de profunda consciência pessoal e interpretação pessoal poderosa devem sempre ser incluídos naquilo que fazemos para compreender e lidar com as realidades da meia-idade. Pense a respeito de Bill e Tammy. A partida de Lori de repente abriu os olhos de ambos para as mudanças em sua idade e para a condição que tinham desenvolvido ao longo dos anos, mas que passaram amplamente despercebidas. A dificuldade que eles experimentaram não foi criada pela sua situação, mas por uma grade interpretativa, que define a agenda para a nossa resposta.

CATEGORIAS DESLEIXADAS Uma das formas que usamos para entender a vida é organizá-la em categorias. Dizemos que Deus é um Espírito, Sally é uma menina e Fido é um cachorro. Falamos de coisas como sendo pequenas, importantes ou sem importância, lixo ou tesouro, saudável ou in37


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salubre, verdadeiro ou falso e valioso ou barato. Dividimos coisas em categorias como biológico, mecânico, artístico, filosófico e emocional. Pensamos nas coisas como sendo ocidentais ou orientais, femininas ou masculinas, cultas ou bárbaras e legais ou ilegais. Instintivamente, organizamos coisas em pequenas caixas que carregamos em nosso cérebro. Algumas vezes somos suficientemente sábios para ver que nossas caixas são muito pequenas ou muito poucas, mas frequentemente somos hábeis o bastante em espremer a nossa história em quaisquer caixas que estejamos carregando em nossa mente. Ao fazê-lo, falhamos em reconhecer quão importante e influente essa função interpretativa é. A vida sempre vai parecer como as categorias que você traz a ela, e o que você faz sempre será determinado pela forma como você organiza a compreensão de sua própria história. Um dos fatores interpretativos que nos gera problemas na meia-idade é que as nossas categorias culturais típicas para organizar a vida humana são lamentavelmente inadequadas. Tendemos a organizar a gama completa de desenvolvimento humano em quatro categorias: criança (0-12), adolescência (13-20), adulto (21-65), idoso (65+). Quando você examina essas categorias não demora muito para perceber como elas são inadequadas. As categorias de criança, adolescente e idoso são relativamente breves porções de tempo, enquanto a categoria de adulto abrange quarenta e cinco anos! Considere por um momento as diferenças massivas entre um homem de vinte e um e outro de sessenta e quatro. Ou, vamos diminuir o escopo. Considere a diferença impressionante de maturidade entre a pessoa de vinte e dois e a de trinta e cinco. Emocional, física, espiritual, relacional, econômica e socialmente essas duas pessoas estão em lugares bastante diferentes. Ao dizer que uma pessoa é adulta fazemos uma observação tão generalizada que quase não significa nada. 38


Meia-idade: um retrato

A categoria supergeneralizada de adulto tende a ignorar o fato de que, como seres humanos, estamos sempre em algum tipo de processo de mudança. Uma das diferenças fundamentais entre o Criador e a criação é que tudo desse lado da linha está sempre em algum estado de mudança, enquanto Deus é constante em sua imutabilidade. A Bíblia apresenta tudo na vida como estando sempre em mutação. Governantes surgem e caem. A grama se desvanece e as flores murcham. Pessoas crescem e amadurecem. Adolescentes se tornam homens. Pessoas passam espiritualmente da morte à vida. Gerações dão espaço para outras gerações. Tolos se tornam sábios. Tudo o que é criado será diferente de alguma forma amanhã. Antecipar mudança e fazer mudanças é uma parte essencial da vida cristã produtiva. Mas somos pegos de surpresa. Os pais são constantemente surpreendidos com o fato de que o seu bebê de repente virou um adolescente. Filhos e filhas parecem ficar chocados com o fato de que a mamãe e o papai de repente ficaram velhos. A mãe não acredita em como um dia acordou com um novo título: avó. Parecemos indispostos a aceitar o fato de que não podemos fazer aquilo que antes fazíamos – uma dinâmica que mantém as salas de emergência cheias aos finais de semana! Precisamos de formas mais robustas de pensar a respeito da vida humana, crescimento e mudança do que as amplas categorias orientadas pela idade. Embora a Bíblia não pense nas pessoas em termos de idade, ela tem formas muito mais ricas de localizar e compreender os seres humanos. Deixe-me sugerir somente uma.

TUDO TEM A VER COM RELACIONAMENTOS A Escritura de uma forma muito natural entende as pessoas localizando-as em quatro relacionamentos fundamentais. O primeiro e mais fundamental é o meu relacionamento com Deus. Tudo o que eu 39


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sou e tudo o que eu faço é moldado pela saúde e vitalidade desse relacionamento. Não importa onde eu esteja (localização), o que aconteça à sua volta (situação), e como você responda a isso (comportamento), a forma mais importante de entender a si mesmo é examinar o seu relacionamento com Deus. Por exemplo, Adão e Eva estavam bastante unidos como marido e mulher quando comeram do fruto proibido. Mas estavam em rebelião contra Deus. Da mesma forma, como qualquer outro período da vida, a meia-idade expõe poderosamente a verdadeira condição de nosso relacionamento com Deus. O segundo relacionamento é o meu relacionamento com os outros. A Bíblia sempre vê as pessoas em algum tipo de comunidade umas com as outras. Mesmo em sua graça salvífica, Deus não está somente gerando uma massa de indivíduos salvos isoladamente, mas como Paulo diz a Tito, “um povo exclusivamente seu” (ARA). Eu sou um filho ou um pai. Eu sou um marido ou uma esposa. Eu sou um vizinho ou um amigo. Eu sou um cidadão do reino de Deus. Sou um filho da aliança, um membro do corpo de Cristo e uma pedra no templo em que Deus habita. De Gênesis 2 em diante, a Bíblia sempre olha para as pessoas do ponto de vista privilegiado de comunidades às quais elas foram chamadas. A vida humana diz respeito a relacionamentos e relacionamentos definem a vida humana. Eu nunca estou bem, não importa o quanto pareça estar conquistando e quão feliz e satisfeito eu esteja, se eu não estou vivendo propriamente nos relacionamentos primários onde Deus me colocou. Paulo comunica isso com uma clareza impressionante em Gálatas 5.14: “toda a lei se cumpre em um só preceito”. Você não espera que ele vá dizer “Ame a Deus acima de todas as coisas”? Mas em vez disso ele diz: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Visto que fomos criados por Deus como seres sociais e somos investidos por 40


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ele com uma responsabilidade pelo nosso próximo, nossa vocação para viver em comunidade é uma forma primária de entender quem somos e o que fomos chamados para ser. Aqui há ajuda para nós na medida em que procuramos entender as questões da meia-idade. Aquelas lutas não existem à parte dos relacionamentos principais da vida humana; em vez disso, eles estão inter-relacionadas. As lutas da meia-idade expõem a saúde verdadeira e o caráter dos relacionamentos que Deus me chamou para fazer parte. O terceiro relacionamento é o meu relacionamento comigo mesmo. Isso pode ser estranho para você, mas há uma forma real em que nos relacionamos com nós mesmos. O salmista registra uma conversa consigo mesmo: “Por que estás abatida, ó minha alma?” (Sl 42.5). Pense sobre isto: não há voz mais influente em sua vida do que a sua própria voz, porque ninguém fala mais com você do que você mesmo. Você já teve conversas regulares com você hoje mesmo, na maior parte do dia, na maior parte do tempo sem nem mesmo estar consciente disso. Esse relacionamento tem a ver com a forma como pensamos a respeito da nossa identidade e nossa responsabilidade. Tudo o que fazemos é, éde. algum jeito, formado por quem pensamos que somos e o que achamos que fomos chamados para fazer. Pedro, por exemplo, diz que a vida das pessoas é ineficaz e infrutífera porque elas se esquecem de quem são (2Pedro 1.8-9). Todos vivemos com algum senso de responsabilidade moral, seja acurado ou mal direcionado e, todos nós, ou nos agarramos às nossas responsabilidades ou de alguma forma fugimos. Novamente, há ajuda real aqui para entendermos a desorientação dos anos da meia-idade. A crise da meia-idade é uma luta de identidade e responsabilidade, e ela expõe a fraqueza nessas áreas, a qual tem existido por muito tempo, mas é tornada explícita nesse momento da vida. 41


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O quarto relacionamento é o meu relacionamento com o resto da criação. Como um ser humano feito à imagem de Deus, também sou chamado a uma interação responsável com o mundo físico. Esse relacionamento diz respeito a duas dimensões muito importantes da vida humana: minha vida de trabalho e a forma como eu vejo e me relaciono com o mundo das coisas materiais. Vivemos em uma cultura que tende a ver o trabalho como um preço doloroso que você tem de pagar para conseguir o prazer para o qual você realmente está vivendo. A nossa cultura tende a ver o corpo material e as posses materiais como essencial à verdadeira alegria e satisfação. Assim, a cultura ocidental tende a ser avessa ao trabalho e obcecada por coisas. A Bíblia, por outro lado, não diz que o corpo e as posses não são importantes, mas nos chama à responsabilidade moral em cada área. Como eu vejo e uso o meu corpo é biblicamente muito importante. (Veja 1Co 6.12-20, por exemplo.) Como eu me relaciono com o mundo criado e a maneira como eu vejo e possuo as minhas coisas também são apresentados na Bíblia como sendo algo de grande importância. (Veja Lucas 12.13-21). A Bíblia apresenta o trabalho, não como uma maldição, mas como a parte principal do plano ordenado por Deus para toda a humanidade, visto que o trabalho já existia antes da Queda. Viver como Deus manda não é uma questão de trabalhar de cara feia a fim de experimentar o excitamento do prazer, mas encontrar prazer nas várias esferas de labor às quais Deus me chamou. Eu sou designado para ser um trabalhador, e meu trabalho é parte de uma agenda muito maior do que a aquisição de prazeres materiais momentâneos. Novamente, esse relacionamento final interpreta as lutas da meia-idade. Aquelas lutas dizem respeito ao corpo físico, elas têm a ver com o lugar onde procuramos prazer, e dizem respeito ao modo como vemos o mundo das coisas materiais. 42


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Assim, ter esses quatro relacionamentos sempre em foco provê um preparo melhor para a vida do que as formas típicas com as quais nossa cultura geralmente organiza e categoriza a vida. (Examinaremos essas categorias em capítulos futuros.)

CRISE DA MEIA-IDADE: UM RETRATO Temos dito que as lutas da meia-idade resultam de uma colisão entre conscientização pessoal poderosa e interpretações pessoais poderosas, mas o que realmente é, de fato, a crise da meia-idade? Aqui estão algumas características de uma pessoa em meio aos espasmos da confusão e das lutas da meia-idade. 1. Insatisfação com a vida. De repente você começa a olhar à sua volta e não gosta de sua vida. Você pode ter problemas com seu trabalho ou seu casamento como você nunca teve antes. Você pode olhar para a sua vida em geral e ela parece sem propósito, uma rotina sem sentido e entediante. Você pode experimentar um enfado constante, uma inquietude, descontentamento e desilusão. O fato é que você não está feliz com a sua história. A vida dos outros à sua volta parece interessante e atrativa como nunca antes. Essa insatisfação não é necessariamente sobre uma coisa em particular, mas um sentimento geral de descontentamento. 2. Desorientação. Há momentos em que todos nós ficamos perdidos por um tempo, quando ficamos absortos em nossa própria história. A desorientação da meia-idade diz respeito a identidade e função. Durante essa época da vida, muitas formas pelas quais uma pessoa pensou a respeito de si mesma não se aplicam mais. Muitas das principais tarefas que a ocupavam não são mais necessárias. Quando isso acontece, frequentemente as pessoas experimentam uma perda de identidade. Essa perda de identidade não é filosófica, no sentido de que não é o resultado de não conseguir responder às 43


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questões profundas da vida; em vez disso, é funcional: Eu pensava saber que eu era e o que deveria estar fazendo, mas agora eu não tenho muita certeza. 3. Desencorajamento. Em algum ponto você começa a perceber que perdeu a expectativa, vibração, esperança e coragem da juventude. Quando você é jovem, é fácil ver os seus potenciais como possibilidades, mas quanto mais velho você se torna, mais difícil é fazer isso. Existe um provérbio antigo que diz: “Se o jovem não for liberal, não tem coração; se o velho não for conservador, não tem cérebro”. Independente de você concordar completamente com o provérbio ou não, ele certamente aponta as diferenças na forma em que a pessoa jovem e a velha olham para a vida. A juventude é uma fase da vida de possibilidades ilimitadas. Jovens são visionários e sonhadores. É opressor acordar para o fato de que você, há muito tempo atrás, colocou de lado a sua sacola de sonhos. É difícil encarar o fato de que você agora é mais cínico do que cheio de esperanças. 4. Temor. Não são muitas pessoas na cultura ocidental que anseiam por idade avançada. Com o altíssimo valor que colocamos em beleza e juventude física, é difícil ser positivo a respeito da idade. Quando jovem, você vive com sentimentos funcionais de invencibilidade. Eu comecei a observar a dieta do meu filho de dezessete anos recentemente. O que ele come ou me deixaria pesando quinhentos quilos ou me deixaria morto. Ficou claro para mim que o pensamento de cuidar do que come nunca passa por sua mente. Ele não pensa a respeito de suas veias, coração e cintura. A morte é um conceito remoto para ele. Não é assim para a pessoa na meia-idade. Coisas como cansaço, ganho de peso, dores e colesterol alto começam a me lembrar de que eu não sou mais um jovem, que o meu relógio físico está progredindo a cada dia. Frequentemente isso resulta em preocupação generalizada ou temor da morte. 44


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5. Desapontamento. Duas realizações podem bater de frente com você de forma muito poderosa na meia-idade. A primeira é o remorso. Você analisa a sua vida e se conscientiza de que há coisas que você quis alcançar, mas nunca conseguiu. Talvez você olhe para trás e diga: “eu sempre quis ter um momento diário de adoração com meus filhos, mas eu nunca consegui fazer isso de forma consistente”. Ou, “eu queria ter uma noite fora com minha esposa regularmente, mas as coisas não caminharam dessa forma”. Ou, “eu quis me envolver mais nos ministérios da minha igreja, mas isso nunca aconteceu”. Ou, “eu sempre achei que conseguiria lidar com o meu peso, mas eu nunca consegui sucesso ao longo da vida”. Todos nós temos os nossos remorsos pessoais. A segunda conscientização tem a ver com sonhos frustrados. Todos nós temos sonhos pessoais. Talvez fosse ir bem na carreira, de forma que você pudesse se aposentar mais cedo e se dedicar mais a um ministério. Talvez fosse comprar uma chácara ou ter mais filhos. Talvez você sempre tenha sonhado em voltar para a escola e sair dessa ocupação que nunca te estimulou de fato. Quando você é jovem, ainda consegue dizer a si mesmo que ainda dá tempo de realizar os seus sonhos, mas quanto mais velho fica, mas difícil as coisas se tornam. 6. Desinteresse. Aqui eu começo a ver que eu já não tenho mais interesse nas coisas que antes me motivavam. Na verdade, eu acho difícil motivar a mim mesmo a fazer coisas que antes eu achava estimulantes e atraentes. Eu antes gostava de alguns relacionamentos, mas agora, se for honesto, eu não me importo muito se vou ou não ver tais pessoas novamente. Ou talvez seja o meu trabalho. Eu acho difícil ir para o meu trabalho e me entregar completamente quando estou lá. Ou, quem sabe, meu marido ou esposa, a quem antes eu achava muito atraente, já não me atraia da mesma forma. Ou 45


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talvez seja o desinteresse espiritual. Minha busca de Deus se torna sem alegria, as devocionais pessoais praticamente somem e participação em algum ministério ativo se torna rara. Eu tenho perdido interesse em minha própria vida. 7. Distância. Em toda essa desorientação, perdição e inabilidade para encontrar motivação para coisas que antigamente me motivavam, é difícil não desistir. Eu não quero que as pessoas me persigam. Eu não quero que me perguntem como eu estou. Eu não quero ter de explicar porque eu já não participo mais da forma que participava antes, eu só quero ficar sozinho. Eu não me sinto confortável com você sabendo o quão perdido eu realmente estou e não quero tentar explicar coisas que nem mesmo eu entendo. 8. Distração. Com todo esse rebuliço acontecendo dentro de mim, eu me encontro em um lugar de vulnerabilidade real à tentação. A tendência de todo pecador é lidar com suas lutas internas alimentando o homem exterior. Alguns de nós exageram na reação quando estão bravos. Alguns de nós lidam com o desapontamento adquirindo coisas que pensamos que trarão satisfação. Alguns de nós entorpecem a si mesmos com uma busca excessiva por lazer ou prazer. Quando eu estou desapontado comigo mesmo e desencorajado com a minha vida, é tentador dar espaço à concupiscência da carne. É tentador lidar com a ausência de contentamento verdadeiro, indo atrás de prazeres físicos fugazes, mas potencialmente escravizantes que estão ao meu redor. Eu estou sempre em perigo quando funcionalmente estou trocando a glória de andar com Deus, confiar e servir a ele pelas sombras de glória do mundo criado.

ENTÃO, O QUE É QUE ESTÁ REALMENTE ERRADO? Vários dos temas que aparecem ao longo dessa lista devem ser reconhecidos por aquilo que são. Eles atingem o coração daquilo que 46


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a luta da meia-idade diz respeito, porque vão no coração da nossa luta como pecadores vivendo em um mundo caído. Nós vamos desenvolver esses temas no resto desse livro. Eles são simples e profundos. São pessoais e, ao mesmo tempo, são a luta geral de todo ser humano. Eles são profundamente teológicos, mas presentes nos momentos mais mundanos de nosso dia a dia. Eles tendem a se esconder por trás das máscaras de pessoas que, na superfície, parecem estar indo muito bem. Eles são mais profundos do que nossas escolhas ou comportamento e influenciam tudo o que fazemos. Talvez a melhor maneira de desenvolver esses temas seja examinando a vida de três pessoas. Procure por esses temas à medida em que você lê. Phil parecia ter tudo. Ele tinha quarenta anos, uma esposa bonita, três filhos saudáveis, um ótimo trabalho. Ele havia iniciado por baixo em sua firma como um projetista, fazendo detalhes para projetos de engenharia. Ao longo dos anos avançou posições lentamente. Agora ele era o engenheiro responsável por um time de 250 projetistas em uma das empresas mais influentes do mundo. Ele amava o poder e prestígio que vieram junto com sua posição. Amava a dinâmica e ambiente criativo nos quais ele circulava todos os dias. Amava o fato de que desenvolvia projetos importantes. Ele não acreditava que realmente era pago para fazer aquilo que sempre quis fazer, e amava os diversos benefícios que sua família gozava como resultado de seu trabalho. Phil era um homem feliz e era completamente engajado em sua família e em sua igreja. Foi pelo jornal, em uma noite, que Phil ouviu pela primeira vez que sua empresa estava envolvida em um processo jurídico enorme por causa de acidentes que resultaram de um dos projetos. Ele estava preocupado, mas pensava que certamente a empresa tinha seguro para esse tipo de situação. Não demorou muito para que os clientes começassem a desistir de seus contratos, tendo perdido a 47


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confiança na habilidade da empresa de Phil de trabalhar bem. Phil ouviu que teria que se desfazer de metade de seu departamento. Foi difícil para ele, mas Phil era um bom trabalhador em grupo e sabia que a medida era necessária. Quando tinha somente cinco pessoas trabalhando em sua equipe, ele viu o seu nome escrito à mão no mural. Phil seria mandado embora no mês seguinte. No primeiro instante, parecia que Phil estava bem. Ele falava sobre a soberania e a fidelidade de Deus. Parecia bastante confiante de que, com seu currículo e experiência, em pouco tempo estaria no mercado de trabalho de novo. Ele espalhou seu currículo e esperava por respostas rápidas. Phil ficou chocado quando a primeira remessa dos correios não trouxe nenhuma resposta. Depois de um mês da mesma forma, a confiança de Phil começou a arrefecer. Sarah, esposa de Phil foi quem reparou primeiro. Ele estava gastando horas sozinho no escritório de casa. Estava cada vez mais irritadiço e nervoso. Tinha explosões de ira que ela nunca vira antes. Phil se tornou mais mal-humorado e deprimido à medida em que meses se seguiram. Ainda assim, com ira, ele recusava olhar para qualquer outro tipo de trabalho. Phil estava chegando no fim de seu seguro desemprego e o fundo de ex-funcionários não cobriria as necessidades de sua família. Em muitas manhãs, Phil nem tentava sair da cama. Ele vagueava para a cozinha em algum momento durante a tarde e ficava violentamente irado se alguém perguntasse como as coisas estavam indo. Phil renunciou aos seus cargos na igreja e mal ia ao culto no domingo. Sarah começou a perceber que Phil estava gastando muitas horas longe de casa. Ele nunca havia feito nada parecido antes e isso a alarmou. Ele dava um monte de desculpas, mas nunca dava uma resposta satisfatória para as suas muitas ausências. Não demorou muito para que Sarah descobrisse que seu mari48


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do estava tendo um caso com outra mulher que já durava alguns meses. Quando confrontou Phil, no início, ele negou a sua infidelidade, mas eventualmente admitiu o que havia feito. Infelizmente, Phil não parecia estar arrependido. Em vez disso, ele começou a expressar verbalmente suas dúvidas a respeito de Deus e a questionar as verdades da Bíblia. Ele não podia crer que um Deus bom faria isso com ele. Não acreditava que depois de anos obedecendo a Deus essa era a paga que estava recebendo. Sentia como se tudo pelo o que trabalhou tivesse sido tirado dele. Como ele poderia competir com caras com metade da idade dele e que queriam metade do salário? Ele via a vida como sendo injusta e Deus distante e sem cuidado. Amargo e cínico, Phil não se esqueceu somente de sua família, mas de sua fé também. O que está acontecendo com Phil? Porque ele se perdeu tão completamente? Não é incomum que as lutas da meia-idade sejam despertadas por algo como a perda de um emprego ou a inabilidade de encontrar um emprego à altura. Mas há mais coisas acontecendo aqui. Sim, é muito difícil ter o seu tapete profissional puxado de debaixo de você. É difícil ver o impacto que isso tem na sua vida e de sua família. No entanto, está claro que o que ele experimentou em sequência não foi o resultado da perda de seu emprego, mas o coração que que ele trouxe à situação. Dean sempre foi fisicamente atraente. Ele amava esportes e aventuras. Amava o fato de que podia compartilhar esses interesses com seus três filhos. Criado em uma família católica nominal, Dean e sua esposa conheceram o Senhor logo depois que se casaram e experimentaram uma mudança radical em suas vidas. O relacionamento deles com Deus, as verdades de sua Palavra e a obra do seu reino se tornaram o foco central deles. Fosse para o seu casamento, sua atividade como pais ou o trabalho de Dean, ele e Emma olha49


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vam para cada área do cotidiano da perspectiva de sua identidade como filhos de Deus. Dean também era muito agradecido por seu trabalho. Foi promovido a uma posição de diretoria e viu nisso uma oportunidade de ouro para ser sal e luz em um ambiente onde havia muita corrupção e trevas. Ele tinha oportunidades regulares de defender o que é correto e de compartilhar o evangelho no trabalho. Era frequente Dean estar discipulando alguém que ele mesmo havia trazido à fé. Quando estava com quarenta e seis, Dean reparou em três coisas que o preocuparam, embora não tivesse dito a Emma no começo. Ele começou a sentir um cansaço incomum, dores, dores incômodas e algo que parecia ser uma perda de coordenação motora no lado direito de seu corpo. Dean achou-se derrubando coisas e tropeçando. Quando finalmente foi ao médico e fez uma bateria de exames, descobriu, chocado, que havia tido uma série de derrames e estava correndo o risco de ter outros. Isso é o tipo de coisa que você ouve e sua vida inteira passa diante dos seus olhos. Ele começou a se preocupar em como em pouco tempo estaria completamente incapacitado ou mesmo morreria. Quando passou o choque inicial, Dean começou a fazer algumas pesquisas e descobriu que não havia recebido uma sentença de morte. Dean descobriu que ficaria melhor com uma combinação de terapia física e medicações fortes. Ele realmente melhorou e conseguiu voltar para o trabalho, mas não sem dificuldades. Infelizmente, mesmo com todos os remédios, ele teve outro derrame pequeno e sua condição piorou, ficando claro para Dean que ele teria de ficar nessa situação de permanente deficiência. Dean era um homem muito ativo e não levantar cedo para trabalhar e prover para a sua família era algo enorme para ele. Ele não mais seria capaz de pescar ou brincar com os meninos. Os dias 50


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de longos passeios de bicicleta com a família estavam no passado. Ele pensava em como voltaria a servir ao Senhor se agora gastava a maior parte de seu tempo trancado dentro de casa. Dean ficou muito desencorajado por ficar inválido sendo tão jovem. Ele perdera as suas capacidades físicas tão cedo em sua vida que não podia imaginar o que os anos seguintes lhe trariam. No começo era difícil para Dean ver a família dos seus amigos saudáveis. Ele odiava ficar sentado nas calçadas em piqueniques e passeios da família. Ele se sentia culpado por ter se aposentado cedo e ficou tentado a concluir que havia se desviado da vontade do Senhor. Mas Dean ficou firme em sua fé de que Deus é bom e foi humilde o suficiente para reconhecer que não merecia nada que havia sido dado a ele. Também entendeu que todos os dias ele ainda estava recebendo das mãos do Senhor tudo que precisava para fazer o que Deus lhe chamou a fazer. Dean começou a ver a deficiência como uma oportunidade, e o fato de que ele ainda tinha muitos anos à frente de si como um verdadeiro benefício. Ele podia fazer coisas que muitas pessoas desejaram, mas nunca conseguiram. Dean conseguiu deixar o seu trabalho de lado bem cedo e voltar seu foco totalmente para o ministério ativo do reino. Ele entendeu que havia muitos ministérios locais que poderiam se beneficiar grandemente de sua experiência e dons. Dean se recusou a se entregar ao desencorajamento que sentiu de maneira tão poderosa e às dúvidas que tinha em seu coração com a força de uma marreta. Ele começou a abraçar a verdade de que a graça de Deus é mais poderosa em nossos momentos de maior fraqueza. No meio da fraqueza e temor, ele experimentou a alegria do trabalho no reino de Deus. Embora a vida com uma doença crônica fosse muito difícil, Dean vivia cada dia com alegria e expectativa, ocupado com o trabalho que Deus lhe deu. 51


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O que aconteceu com Dean? Como ele conseguiu encarar essa doença devastadora e ter sua vida totalmente virada de cabeça para baixo sem se perder? Qual é a diferença entre Phil e Dean? Porque é que Dean parecia mais bem preparado do que Phil para encarar aquilo que é não desejado nem esperado? Consideremos a história de mais uma pessoa. Sally sempre foi muito esforçada. Ela foi muito bem na escola e foi contemplada com bolsa completa em uma universidade de ponta. Na faculdade ela fez um curso impecável, graduou com honras e teve montes de ofertas de emprego das maiores multinacionais. Não muito depois de conseguir uma ótima posição de trabalho, encontrou uma igreja e comprou um apartamento em um centro que estava expandindo muito. A igreja que ela encontrou tinha um ministério maravilhoso para solteiros do qual Sally participava com frequência e entusiasmo. Foi lá que ela encontrou um círculo de amigas que se tornou a sua fonte primária de amizade e comunhão. O trabalho de Sally era criativo, exigente e frenético – o que ela, como alguém de alta performance, amava. Havia muito espaço para desenvolvimento e Sally, rapidamente, avançava. Parecia que sempre estavam vindo em sua direção mais responsabilidade, mais autoridade e mais dinheiro. Os anos passaram voando sem que Sally percebesse. Enquanto isso, Sally estava realmente ligada ao seu círculo de amigas cristãs. Ela amava seus jantares chineses e o grupo de estudo bíblico às terças. Elas compartilhavam essa poderosa comunhão de fé, unida a uma capacidade de falar honestamente sobre quase qualquer coisa. Elas até mesmo fizeram várias viagens juntas, sempre assistindo vídeos antigos e rindo até tarde da noite Quando começou em seu trabalho e se mudou para seu apartamento, Sally secretamente esperava conhecer um homem com quem 52


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ela pudesse compartilhar a vida, mas isso não era uma necessidade premente. Ela tinha uma vida muito ocupada e cheia no trabalho e com as atividades da igreja e amizades, sua agenda estava bem cheia. Em certo momento, concluiu que seu relacionamento com seu gato, Franco, era tudo o que ela podia dar conta. Ela até namorava com certa frequência, mas nenhum de seus relacionamentos foi a lugar algum, e era difícil conseguir uma amizade com um homem, visto que as demandas de trabalho sempre pareciam atrapalhar de alguma forma. Ao longo dos anos ela foi a tantos casamentos que temia quando receberia um novo convite. Fez chuva de arroz em muitas de suas amigas e participou de muitos chás de panela. Ainda assim, a vida dela estava cheia. Uma quinta à noite, Sally chegou em casa depois de um dia muito cansativo. Colocou sua pasta perto da porta, jogou seu casaco no sofá e chamou o Franco. Ela achou estranho que ele não tivesse vindo encontrá-la no hall de entrada e pulado no banco, como fizera por anos. Sally o encontrou deitado na cama dela. Ela parou na porta, olhou para ele e pensou, “Esse é o Angorá mais bonito que Deus já fez”. Ele parecia um rei deitado ali. Sally entrou no quarto e estendeu a mão para fazer carinho nele, ficando chocada quando tocou em seu corpo frio. Ela rompeu em lágrimas e chorou frequentemente ao longo dos dias seguintes. Foi na segunda-feira da semana seguinte quando tudo veio trovejando sobre ela. Sally abriu a porta depois de um dia longo e desafiador, mas não havia felino no banco para recebê-la. Ela colocou algumas coisas no quarto e foi para o banheiro. De frente para o espelho, foi como um soco se lembrar que já tinha trinta e nove anos! A pessoa que ela viu parecia velha demais para ser ela. Onde é que o tempo se foi? Porque ela não prestou mais atenção? Será que a vida passou diante dela e ela estava ocupada demais para ver? 53


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Naquela noite o apartamento de Sally parecia incrivelmente vazio e claustrofóbico, tanto assim que Sally saiu. Ela gastou grande parte daquela noite andando pelas ruas do centro. Se sentia velha e sozinha. Seu grupo de terças já havia acabado há algum tempo. A maioria dos seus membros havia se mudado ou se casado. O seu trabalho estava mais exigente do que nunca e frequentemente Sally sentia que estavam exigindo demais dela. Ela ainda amava os cultos dominicais de sua igreja, mas não aguentava mais o grupo de solteiros de sua igreja. Sentia que não tinha mais nada em comum com aquelas pessoas. À medida em que os dias se passavam, Sally ficava cada vez mais introspectiva. Sua vida consistia de trabalho e o culto do domingo de manhã. Ela gastava horas em seu apartamento sozinha, enrolada em cobertas no sofá e enfeitiçando o seu coração com o controle remoto. Todas as noites a TV era simplesmente barulho ambiente, uma companhia eletrônica que fazia o apartamento vazio um pouco mais suportável. Todas as noites, Sally repassava o vídeo de sua vida, cena após cena, decisão após decisão. Cada vez que fazia isso se enchia de mais remorso e arrependimento. Porque deixou que se trabalho a controlasse tanto? Porque não dedicou mais tempo a outras coisas? Como é que viu tantas amigas se casarem e ela não “entrou nessa”? Porque Deus dizia que a amava e ainda assim a deixara tão completamente sozinha? Ela se sentia cansada, mas era o tipo de exaustão que era mais do que física. Às segundas, Sally achava crescentemente difícil encontrar motivação interna para ir trabalhar. Houve muitos dias em que ela ensaiou o seu pedido de demissão à medida em que caminhava para o trabalho, nunca o fazendo quando chegava. Ela gostava cada vez menos dos cultos de domingo que antes a deleitavam e fazia muito tempo desde a última vez em que ela fez a sua devocional pessoal. 54


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Achava crescentemente difícil se dedicar a qualquer coisa (igreja, trabalho, sua aparência, seu apartamento) porque nada disso parecia fazer diferença. Ela não tinha vida e parecia que nada podia mudar essa situação. O que dizer a Sally? Como você poderia ajudá-la a se desprender dessa teia de cinismo e desencorajamento? O que há de errado com ela? Como ela deveria lidar com as coisas que está enfrentando agora?

RECONHECENDO OS TEMAS Para compreender Phil, Dean e Sally de forma apropriada, você tem de ver os temas que perpassam a experiência de cada um deles. Esses temas poderosos, transformadores, podem criar uma luta tão perturbadora que nossa sociedade cunhou o termo de “crise da meia-idade” para expressá-la. Se formos trazer a impressionante sabedoria das Escrituras para esse tema perturbador, é importante entender a dinâmica do que está realmente acontecendo e identificar esses temas universais. 1. Um evento inesperado. Há um sentido em que não somos nós que vivemos a vida, mas é a vida que nos vive. Nós somente vamos junto com os seus lugares, relacionamentos, situações, responsabilidades, oportunidades e atividades, sem parar muito para olhar, ouvir e considerar. Grandes pedaços de tempo passam virtualmente sem ser percebidos. Claramente foi isso o que aconteceu com Phil, Dean e Sally. Então, cada um deles foi atropelado pelo mesmo evento. Todos eles experimentaram algum evento inesperado que, de repente, abriu os seus olhos. Pessoas que estudam essas coisas os chamam de eventos desencadeadores. Para Phil foi a perda do seu emprego, para Dean foi a doença física e para Sally foi a morte do seu gato, Franco. Para cada um deles, o evento proveu uma janela para a vida pela qual eles não haviam olhado antes. 55


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2. Uma nova consciência. Visto que o evento desencadeador lhes abriu os olhos, Phil, Dean e Sally começaram a ver e sentir coisas que provavelmente já estavam lá, mas que na correria da vida passaram desapercebidas. Eles de repente entenderam quanto tempo havia se passado e quanto deixaram de fazer. Se tornaram conscientes de sua saúde física e das realidades do envelhecimento. Reconheceram quantas decisões importantes ao longo do caminho mudaram o curso de suas vidas. Eles perceberam as grandes diferenças entre suas vidas e a vida de outros ao seu redor. 3. Interpretações pessoais poderosas. A crise da meia-idade diz respeito a mais do que um evento inesperado seguido por uma nova conscientização poderosa. A crise está realmente enraizada na maneira como as pessoas interpretam as coisas que veem. Na verdade, é mais poderoso do que isso. Suas interpretações realmente determinam o que elas veem e como veem. Como pecadores, o problema com as nossas interpretações é que elas tendem a ser estreitas e seletivas. Lembre-se, o pecado não afeta somente o que fazemos, ele também afeta o que pensamos e como vemos. Em maneiras que normalmente não percebemos, o pecado reduz todos nós ao papel de tolos. O caminho que nos parece correto pode levar à morte e o caminho que não nos faz sentido é frequentemente o caminho da sabedoria. Esse é o motivo pelo qual todos nós precisamos das perspectivas sábias da Palavra de Deus. A crise da meia-idade é poderosamente teológica. Tudo diz respeito aos caminhos fundamentais pelos quais interpretamos a vida. Tudo diz respeito a como nosso sistema funcional de crenças dão forma à maneira de respondemos a qualquer coisa que Deus coloque diante de nós. Isso explica o porquê Dean responde ao seu diagnóstico de maneira tão diferente do que Phil à sua perda de emprego e Sally à morte de Franco. 56


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4. Desejos Governantes Expostos. As lutas da meia-idade revelam o coração com precisão. As interpretações que uma pessoa dá aos eventos e à nova conscientização da meia-idade não são o resultado de uma teologia abstrata objetivamente sustentada. Não, a teologia funcional que dá forma à maneira de uma pessoa responder durante esse período é enraizada em valores, tesouros e desejos do coração. A crise da meia-idade, em sua forma mais básica, não é uma crise eventual, uma crise de conscientização ou uma crise da idade. Ela é uma crise do coração. A meia-idade expõe o que uma pessoa realmente estava vivendo e onde tentou encontrar significado e propósito. Ela tem o poder de revelar o buraco significante entre a teologia confessional e a teologia funcional da pessoa. Aquilo que declaramos no domingo como a razão da nossa vida, pode não ser, de fato, a coisa que realmente governa o nosso coração diariamente. E quando essas coisas que nos governam são tiradas de nossas mãos, tendemos a nos tornar iracundos, temerosos, amargos ou desencorajados. Experimentaremos uma perda de identidade e uma diminuição de significado e propósito. Olharemos para essa área de forma bem mais detalhada nos próximos capítulos, mas é importante entender que a crise da meia-idade é uma crise de desejo. 5. Respostas reflexivas. É aqui que a pessoa na meia-idade se põe em apuros. Respostas de reflexo podem parecer lógicas, mas elas são somente a lógica inversa do desejo. A pessoa está, na verdade, presa do redemoinho de seus pensamentos e motivos do coração. Suas respostas a essa nova consciência somente mudarão na medida em que se resolverem as questões subjacentes do coração. As ações lamentáveis de Phil são motivadas por pensamentos distorcidos e desejos desordenados do seu coração. Sally termina como uma reclusa depressiva não como resultado da morte de Franco, mas por causa dos pensamentos e motivos que ela trouxe a isso. 57


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Dean encara coisas devastadoras, mas ele não joga a sua vida fora porque ele trouxe um coração diferente para esse momento amedrontador e doloroso de sua vida. Como Phil e Sally, os verdadeiros tesouros do coração de Dean são revelados nesse momento e, como eles, suas ações não são forçadas pelas circunstâncias, mas formadas pelos pensamentos e motivos do seu coração. Esses cinco temas tendem a correr como fios no tecido da crise típica da meia-idade. Eles precisam ser desenvolvidos e compreendidos biblicamente. Ao fazê-lo, não somente conheceremos melhor a nós mesmos, mas também conheceremos nosso Senhor mais completamente. Somente em momentos de autoexame humilde e honesto, somos capazes de entender quão amplo, profundo, cheio e completo é o amor de Deus por nós. É aqui que vamos realmente começar a entender que a Escritura não somente coloca diante de nós uma promessa maravilhosa de eternidade, mas ela também entende as questões mais profundas que experimentamos antes de chegarmos lá. Na narrativa da Palavra de Deus, encontramos sabedoria eloquente e prática, que fala diretamente às nossas questões mais prementes. Dessa forma, precisamos ter dois compromissos constantes conosco onde quer que formos. Primeiro, temos de nos comprometer a sermos persistentes e ensináveis estudantes da Palavra de Deus. Nunca nos foi ordenado que entendêssemos a vida sozinhos. Somente à medida em que nos submetermos à sabedoria do Maravilhoso Conselheiro, é que escaparemos de nossa própria tolice. Segundo, precisamos nos comprometer com o hábito de autoexame constante. Você e eu precisamos nos acostumar a nos colocarmos diante do espelho da Palavra de Deus, de forma que possamos ver a nós mesmos como realmente somos. Cristianismo saudável é encontrado no cruzamento entre autoconhecimento acurado e verdadeiro conhecimento de Deus. 58


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E você? Talvez você esteja lendo esse livro porque se perdeu no caminho. Ou talvez você o esteja lendo porque está em um relacionamento, ou ministrando a alguém que está lidando com alguma luta da meia-idade. Ou talvez você está simplesmente interessado em como o evangelho é aplicado de forma prática a questões diárias da vida humana. Qualquer que seja a sua razão para pegar esse livro, eu o convido a examinar o seu próprio coração, de forma que você também não se perca no caminho. O que te mantém funcionando? O que torna a sua vida digna? Quais são os sonhos que você tende a capturar em seu coração? Exatamente agora, como você entende a sua vida? O que você se convenceu de que não consegue viver sem? Onde você procura encontrar a sua identidade? Porque você chama um dia de bom e outro de ruim? O que na vida você mais deseja? Seja honesto – porque você realmente faz as coisas que faz? À medida que você faz escolhas e decisões, o que você espera conseguir com elas? Que Deus exponha nosso coração de forma que, realmente vendo a nós mesmos, tenhamos uma fome mais profunda por ele!

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