FÉ HOJE
N0 39 - Mar/2013 - R$10
pa r a
Comprometida com a Fé que foi entregue aos santos
Criação Ø Queda Redenção Ø Consumação
Faç a a as s inat ura an ual da r e v ista FÊ para H o j e p or ap enas R $ 15,00*
Ligue 12 3919.9999 ou acesse www.editorafiel.com.br/feparahoje * Assinatura anual inclui duas revistas por ano. Se vocĂŞ deseja receber a revista fora do Brasil, entre em contato conosco pelo e-mail: feparahoje@editorafiel.com.br
Amado Leitor, É nosso desejo que, através da leitura dessas páginas, você possa ser desafiado e encorajado a perseverar em seu propósito de crescer no conhecimento e amor do glorioso evangelho de Jesus Cristo. Conquanto as palavras e artigos desta revista tenham o propósito de provocar sua mais séria reflexão e apreender às coisas da mente, sem o amor a Deus, nosso zelo e labor são vãos. É preciso aliar mente e coração na obra de Deus. Primeiro, ame ao Senhor e depois, ame a noiva de Cristo, a igreja. Todos nós, no Ministério Fiel, reconhecemos com gratidão ao Senhor o privilégio que temos em poder servi-lo.
J. Richard Denham III Diretor, Editora Fiel
editor-chefe Tiago J. Santos Filho tradução Francisco Wellington Ferreira revisão
Marilene Paschoal
presidente emérito
diagramação
Rubner Durais
diretor
James Richard Denham III
James Richard Denham Jr. realização Editora Fiel | Março de 2013 | no 39
Sumário Editorial Tiago Santos.......................................... 3
1. A Majestade de Deus na Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9) Hermisten Maia Pereira da Costa........... 5
2. Deus, o Criador Stephen L. Wellum. . .............................. 13
3. A Importância Teológica da Historicidade de Adão Bruce A. Ware....................................... 19
4. O Homem e o Pecado John Piper............................................. 23
5. A Justificação Ainda É Importante? Michael S. Horton................................ 31
6. Vivendo “Já” com Vistas ao “Ainda Não” Heber Carlos de Campos Júnior. . ........... 47
7. Milênio – Breves Considerações Hermenêuticas Gilson Santos....................................... 53
Editorial
Quatro Grandes Realidades da Teologia Tiago Santos
Nesta nova edição da revista Fé para Hoje, lançada na esteira do Curso Fiel de Liderança do ano de 2013, trabalharemos os quatro grande pilares da teologia sistemática: Criação, Queda, Redenção e Consumação. Esses temas sumariam o grande esquema da teologia e têm o propósito de levar o estudioso a compreender o plano e as ações de Deus na história da humanidade, conforme revelado nas Escrituras Sagradas. Nesse esquema, vemos como Deus condescendeu revelar-se ao homem, dando-se a conhecer e descortinando seu projeto para a humanidade. Na criação, vemos o Deus trino todo-poderoso, transcendente, autoexistente, suficiente em si mesmo,
eterno, santo e perfeito em todos os seus atributos, criando todas as coisas que existem, desde as mais remotas e distantes galáxias até a terra e tudo o que nela há. Vemos a criação do homem imago Dei, segundo a imagem do próprio Deus, em estado de inocência e liberdade, debaixo do governo moral de Deus, ordenado a ser responsável e obediente e a governar sobre todas as coisas criadas, para a glória do criador. Na queda, vemos o homem transgredindo a lei de Deus e se afastando dele, caindo de seu estado de inocência e felicidade e legando para a humanidade esta condição de condenação, aprisionando sua liberdade às inclinações do pecado, sendo tanto responsável por ele como vítima de
sua poluição. Vemos o efeito da queda na criação, trazendo maldição para este mundo e resultando na grande tragédia da história do homem. Na redenção, vemos ainda que Deus resolveu oferecer salvação ao homem – e o fez de modo que sua justiça, ofendida pela transgressão da lei causada pelo pecado do homem, fosse satisfeita. Em amor, desde os tempos eternos, Deus o Pai resolveu salvar pecadores em seu Filho, Jesus Cristo, o qual, sendo um com Deus o Pai, entrou na história, assumiu a natureza humana e viveu como homem, obedecendo toda a lei e cumprindo toda a justiça de Deus o Pai, a ponto de oferecer-se a si mesmo como sacrifício e propiciação a Deus em favor dos homens, justificando os pecadores que se achegam a ele, movidos pela ação do Espírito de Deus
que os regenera, em arrependimento e fé, sendo reconciliados com Deus e adotados em sua família. Vemos finalmente a consumação de todas as coisas – como o cristão é preparado nesta vida para a vida porvir; sendo santificado e perseverando em sua peregrinação. Vemos o que acontece após a morte do homem, seja do justo ou do injusto, sobre o céu e o inferno, o julgamento final, a ressurreição do corpo e a redenção final e definitiva da criação: novos céus e nova terra – todas essas coisas operando segundo o propósito e decretos de Deus e para glória dele. Na seleção de artigos desta edição, somos instados a refletir esses grandiosos temas e levados a considerar o grande amor e glória do Deus trino. Que ele possa abençoar sua leitura
A Majestade de Deus na Criação e a Ecologia (Sl 8.1-9) Hermisten Maia Pereira da Costa
A Criação de Deus não tem poder em si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro, toda criação deixaria de existir".
Introdução Um dos conceitos predominantes da filosofia grega clássica se referia ao dualismo entre matéria e espírito. Dentro desta compreensão da superioridade do espiritual, a matéria é má. Este dualismo influenciou até mesmo determinado grupo dentro da história do Cristianismo, denominado de Gnóstico, quanto à sua compreensão da Criação divina e da encarnação de Jesus Cristo. No entanto, a fé cristã sustenta que tudo o que existe tem Deus como autor, que não somente cria algo externo a si mesmo (ele não se confunde com a matéria, nem é a matéria mera extensão sua), como também preserva por meio do seu poder. 6 | Revista f é pa r a h o j e
A preservação é compreendida como aquela contínua operação do poder de Deus, pela qual ele sustenta e mantém todas as coisas contingentes – a Criação – a fim de que esta possa cumprir ordenadamente o propósito para a qual foi criada. Isto significa que a Criação de Deus não tem poder em si mesma para auto-existir; sem a sustentação de Deus o universo inteiro, toda criação deixaria de existir. “Ele, que é o resplendor da glória e a expressão exata do seu ser, sustentando todas as cousas pela palavra do seu poder....” (Hb 1.3). A ideia de “sustentação” no texto, ( = “levar”, “carregar”), além de preservação, é a de fazer com que as coisas sigam o seu rumo, o seu propósito determinado por Deus.
Isto nos conduz à nossa responsabilidade como agentes de Deus no cuidado e preservação do que ele mesmo nos confiou. A natureza tem o seu valor porque foi criada por Deus. Eu não preciso idealizar a natureza, humanizá -la ou divinizá-la; ela tem o seu próprio valor: O Deus sábio, soberano e bondoso a criou. Isto, por si só nos basta.
1. O Mundo Físico O pecado, que consiste na quebra de relacionamento com Deus, trouxe ao ser humano diversas consequências. Entre elas a perda da sensibilidade espiritual. O ser humano perdeu a capacidade de reconhecer a Deus em seus atos manifestos em toda a Criação, na Palavra, e plenamente revelado em Cristo Jesus. A quebra desta comunhão com Deus vai interferir diretamente em todas as demais relações, inclusive em nossa maneira de ver e atuar no mundo. O pecado alienou-nos de Deus, do nosso semelhante e da natureza. Assim, o pecado, de certa forma, desumanizou-nos. A Queda trouxe consequências desastrosas à imagem de Deus refletida no homem. Após a queda, mesmo o homem não regenerado continua sendo imagem e semelhança de Deus (aspecto metafísico): Apesar de o pecado ter sido devastador para o homem, Deus não apagou a sua “imagem”, ainda que a tenha corrompido, alienando-o de Deus. O pecado trouxe como implicação a perda do aspecto ético da imagem de Deus. A
nossa vontade, como agente de nosso intelecto, agora, é oposta à vontade de Deus. A imagem que agora refletimos estampa mais propriamente o caráter de Satanás. No Éden só havia um livro: o livro da natureza; todavia, com o pecado humano, a natureza também sofreu as consequências, ficando obscurecida, perdendo parte da sua eloquência primeva em apontar para o seu Criador (Gn 3.17-19) e, como parte do castigo pelo pecado, o homem perdeu o discernimento espiritual para poder ver a glória de Deus manifesta na Criação (Sl 19.1; Rm 1.18-23). A Revelação Geral que fora adequada para as necessidades do homem no Éden – embora saibamos que ali também se deu a Revelação Especial (Gn 2.15-17,19,22; 3.8ss) – tornou-se, agora, incompleta e ineficiente para conduzir o homem a um relacionamento pessoal e consciente com Deus. Todavia, mesmo a Criação sendo obscurecida pelo pecado humano, continua a revelar aspectos da natureza e do caráter de Deus. A fé cristã fundamenta-se, porque foi por isso que ela se tornou possível, na existência de um Deus transcendente e pessoal que se revela, se comunica conosco. Sem a comunicação divina não haveria teísmo nem ateísmo, simplesmente jamais chegaríamos ao conceito de Deus ou à sua negação. O Salmo 8 exalta a majestade do nome de Deus manifesta na Criação (1). É um hino que por meio do homem dignifica a majestade de Deus. Revista fé pa r a h oje | 7
É possível que Davi tenha composto este Salmo na juventude, quando era apenas um pastor de ovelhas, quando as suas lutas eram bastante complexas na simplicidade de sua vida. Nesta fase de sua vida, certamente passava muitas noites dormindo ao relento, contemplando as estrelas no firmamento e refletindo sobre o poder de Deus. Esta mesma fé amadurecida pelas experiências com o Senhor o acompanhará. Outra ocasião provável é quando, um pouco mais maduro, já ungido rei, é foragido de Saul que queria matá-lo. Neste período teve oportunidade, ainda que com o coração angustiado, de experimentar a mesma sensação de ver e refletir sobre a imensidão do céu diante dos seus olhos (Sl 8.1,3). O salmista contemplando parte da criação exulta demonstrando que em toda a terra o nome de Deus é exaltado. Ele ultrapassa a visão apenas local de Israel, para reconhecer que o testemunho de Deus na Criação se estende a toda a terra (1). O salmista percebe que este reconhecimento da majestade de Deus só se tornou possível pela revelação de Deus na Criação: “Pois expuseste nos céus a tua majestade” (Sl 8.1). No entanto, ele não se detém na criação, antes, vai além, reconhecendo a glória de Deus nela. No Salmo 19, Davi faz uma referência semelhante, de modo mais amplo (Sl 19.1-4). Contudo, os homens, insensíveis à majestade de Deus, corrompidos em seus pecados, entregaram-se à idolatria (Rm 1.20-25). 8 | Revista f é pa r a h o j e
A Criação, portanto, nos fala de Deus, de sua majestade e poder. É necessário que tenhamos nossos olhos abertos para contemplar a Deus por intermédio de suas obras. A confiança do salmista passava pela criação e repousava em Deus (Sl 121.1-3).
2. No Ser Humano Argumentando de forma espacialmente dedutiva, faz uma pergunta retórica: “Que é o homem, que dele te lembres E o filho do homem, que o visites?” (Sl 8.4). A sensação é de pequenez diante do vasto universo, do qual posso contemplar, ainda hoje, uma minúscula parte. O sistema solar é apenas um pequeno ponto no universo que conhecemos limitadamente. Séculos depois, encontramos admiração semelhante entre os gregos. Todavia, a admiração dos gregos ao contemplar o universo, os conduziu em outra direção. Eles diziam que a admiração conduz o homem à filosofia. Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.) estão acordes neste ponto.1 Nestas reflexões surgem as explicações a respeito da origem da vida: a) Tales de Mileto (c. 640-547 a.C.): Por meio do estudo doxográfico, 1 Vejam-se:Platão, Teeteto, 155d: In: Teeteto-Crátilo, 2. ed. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988, p. 20; Aristóteles, Metafísica, São Paulo: Abril Cultural, (Os Pensadores, Vol. IV ), 1973, I.2. p. 214.
sabemos que Tales, considerando a Diferentemente, a admiração de necessidade da água para a sobreviDavi o conduziu a glorificar a Deus e, vência de tudo, afirmava ser a água num ato subsequente, a indagar sobre o a origem de homem nesta vastodas as coisas tidão da criação. (por rarefação A sua pergunta Mesmo a Criação sendo e condensaassume também obscurecida pelo pecado humano, uma conotação ção), e a Terra flutuava como metafísica, não continua a revelar aspectos da um navio sopodendo ser resnatureza e do caráter de Deus. bre as águas2. pondida apenas a partir de um refeOs terremotos rencial material. são explicados O salmista argumenta que na própelo movimento das águas (Dox., pria existência de uma criança sendo 1). Deus criou todas as coisas da ainda amamentada, temos um testeágua (Dox., 9). Plutarco atribuiu munho da majestade de Deus que a geesta concepção aos egípcios. No rou e que produz no seio materno o leique talvez ele tenha razão. te para que ela possa ser alimentada (Sl 8.2). O mesmo ocorre em sua sincera (c. 610-547 a.C.): b) Anaximandro sensibilidade espiritual (Mt 21.15-16). Foi o primeiro a usar a palavra Davi entende que só isso seria suficien“princípio” ( /). (Dox., 1). O te para calar os adversários ateus. princípio ( ) de todas as coiEle reverentemente se admira do sas é o “Ápeiron” ( = “sem fato de Deus se lembrar de nós (Sl 8.4). fim”, “ilimitado”, “indeterminado”, Tendo o sentido de “prestar atenção”, “indefinido”). (Dox., 1,2,6). sustentar, cuidar. Admira-se também de Deus nos visitar. Que pode ter o c) Anaxímenes (c. 585-528/525 a.C.): sentido de passar em revista, observar O Ar é o princípio de todas as coi(Êx 3.16), vir ao encontro. O signifisas (Dox., 1-2); inclusive dos deuses cado no texto é de uma visita abençoae das coisas divinas; sendo o ar um dora e salvadora (Gn 21.1; 50.24-25/ deus (Dox., 3). O homem é ar, bem Êx 13.19; Êx 4.31; Sl 17.3; 65.9; 80.15; como a sua alma; esta nos sustenta e 106.4). governa (Frag., 1; Dox., 5-6). “ Fizeste-o, no entanto, por um poud) Heráclito de Éfeso (c. 540-480 a.C.): co, menor do que Deus ( ) e de glóTodas as coisas provêm do fogo – ria e de honra o coroaste” (Sl 8.5). Mais que é eterno – e para lá retornarão do que a imensidão do universo, o que (Frags., 30,31,90, Dox., 2). realmente conta é o valor e a dignidade atribuída ao homem: Deus o criou 2 Doxografia, 1-4. Revista fé pa r a h oje | 9
à sua imagem. Ele tem características o Senhor; os anjos terão cumprido o seu espirituais, intelectuais e morais sepapel (Hb 1.14). Todas as coisas estarão melhantes às de Deus, apenas em grau sujeitas ao Senhor (1Co 15.26-28). adequado à criatura finita. No entanto, O profeta Jeremias descreve a isto se torna mais difícil de perceber Criação como uma manifestação da devido ao pecado que ainda que não sabedoria e inteligência de Deus ( Jr tenha aniquilado esta imagem, a defor10.12/ Jó 36.22/Sl 139.14). mou gravemente. Se por um lado o homem partilha com os outros animais de uma identiO nome aplicado a Deus ( ) dade de criação (Ec 3.19,20), por oupode referir-se, conforme interpreta tro, estabelece-se biblicamente uma Hebreus, aos seres angelicais (Hb 2.6grande distância entre o homem e o 8). “Por um pouco” (5) parece significar resto da criação porque fomos criados “por pouco tempo”,3 ainda que não ne4 à imagem de Deus, por isso, somos secessariamente. res pessoais como A ideia básica, Deus é, temos então, é que o houma personalimem após a queda Somente a partir de uma visão dade que permite foi colocado numa correta de Deus podemos perceber não nos limitarposição temporamos ao nosso corriamente abaixo a beleza da Criação como uma dos anjos. Contu- manifestação de sua bondade e poder. po, embora este faça parte de nós do, em Jesus Crise não lhe seja algo to temos a verdamau, inferior ou deira restauração desprezível: a alma e o corpo são criade nossa humanidade. Na ressurreição ções de Deus e, ele mesmo pelo seu poteremos novamente a imortalidade (Mt der ressuscitará o nosso corpo na vin22.30); participaremos efetivamente do da gloriosamente triunfante de Jesus juízo final (Mt 12.41-42; 19.28; 1Co 6.2Cristo. A ressurreição do corpo, por si 3; Ap 20.4). Estaremos para sempre com só, é um indicativo relevante acerca da 3 Cf. Derek Kidner, Salmos 1-72: introdução e comentário, (Sl 8.5-6), p. 84. Do mesmo modo: condição não desprezível da matéria. Simon Kistemaker, Hebreus, São Paulo: CulO ser humano como criação secuntura Cristã, 2003, (Hb 2.7-8), p. 94-95; Henry dária (em termos de ordem, não de imM. Morris, Amostra de Salmos, Miami: Editora Vida, 1986, p. 22-23 e Betty Bacon, Estudos na portância), foi formado com maestria Bíblia Hebraica, São Paulo: Vida Nova, 1991, e habilidade de matéria previamente p. 105. Veja-se: W.S. Plumer, Psalms, Carlisle, criada por Deus (Gn 3.19); entretanPennsylvania: The Banner of Truth Trust, © 1867, 1975 (Reprinted), (Sl 8), p. 126-127. to, ele recebeu diretamente de Deus o 4 Veja-se, entre outros: Victor P. Hamilton, fôlego da vida (Gn 2.7), passando ao Ma’at: In: R. Laird Harris, et. al., eds. Diciomesmo tempo a ter uma origem terrenário Internacional de Teologia do Antigo Testana e celestial. mento, São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 862-863. 10 | Revista f é pa r a h o je
Ao ser humano foi conferido o poder de ir além da matéria, podendo raciocinar, estabelecer conexão e visualizar o invisível. Ao homem, portanto, foi concedido o privilégio responsabilizador de raciocinar, escolher livremente o seu caminho de vida, verbalizar os seus pensamentos e emoções, podendo, assim, dialogar com o seu próximo (Gn 3.6) e com Deus (Gn 3.9-13), sendo entendido por ele e entendendo a sua vontade. O ser humano tem autoconsciência: ele não se limita ao seu corpo; ele tem um corpo, mas não é simplesmente o seu corpo, como os animais inferiores o são. Curiosamente, o homem é o único ser que tem consciência da sua nudez. Paralelamente a isso, encontramos o homem no momento do nascimento, com certas desvantagens em relação aos outros animais, os quais já desde bem cedo aprendem a sobreviver sem a intervenção necessária de suas mães... Entretanto, estes animais não evoluem, não transformam, não modificam as suas “culturas”. Somente o ser humano tem a devida consciência da majestade de Deus revelada na Criação.
3. No Compartilhar de Seu Poder “Deste-lhe domínio sobre as obras da tua mão e sob seus pés tudo lhe puseste” (Sl 8.6). Deus compartilha com as suas criaturas o seu poder, ainda que não abrindo mão de sua soberania. O nosso domínio está sob o domínio de Deus.
Desde a criação o homem foi colocado numa posição acima das outras criaturas, cabendo-lhe o domínio sobre os outros seres criados, sendo abençoado por Deus com a capacidade de procriar-se (Gn 1.22). Como indicativo da posição elevada em que o homem foi colocado, o Criador compartilha com ele – abençoando e capacitando-o – do poder de nomear os animais – envolvendo neste processo inteligência e não arbitrariedade – e também de dar nome à sua mulher (Gn 2.19,20,23; 3.20). E mais: Deus delega-lhe poderes para cultivar ( ) (‘abãr) (lavrar, servir) e guardar ( ) (shamãr) (proteger, vigiar) o jardim do Éden (Gn 2.15), demonstrando a sua relação de domínio, não de exploração e destruição, antes, um cuidado consciente, responsável e preservador da natureza (Sl 8.6-8). Todavia, todas estas atividades envolvem o trabalho compartilhado por Deus com o ser humano. O nomear, procriar, dominar, guardar e cultivar refletem a graça providente e capacitante de Deus. É neste particular – domínio – que o homem foi bastante aproximado de Deus pelo poder que lhe foi conferido. No entanto, ainda que isto seja demonstrado, especialmente pelo avanço da ciência, novos e novos desafios surgem. A plenitude deste domínio temos em Cristo Jesus, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Algo admirável neste salmo, é que o salmista em seu hino começa com Deus, glorificando o nome de Jeová ( ) e conclui tornando a ele, testeRevista fé pa r a h oje | 11
munhando com júbilo a magnificência de seu nome em toda a terra (Sl 8.1,9).
Algumas aplicações Somente partindo de Deus poderemos ter uma visão correta da natureza e de nós mesmos. A visão significativa de nossa horizontalidade, depende fundamentalmente de uma compreensão correta de nossa verticalidade. A pergunta sobre o homem começa em Deus e termina em Deus. Somente a partir de uma visão correta de Deus podemos perceber a beleza da Criação como uma manifestação de sua bondade e poder. Deste modo, adquirimos uma ótica correta para enxergar a vida e o dinamismo necessário para agir de modo coerente com a nossa fé. Cultivemos a sensibilidade para com Deus que nos permita enxergar a sua glória nas pequenas e grandes coisas criadas. Não nos detenhamos na natureza; toda natureza é um testemunho sobrenatural da majestade de Deus. Glorifiquemos a Deus tratando com honra e dignidade aquilo que ele nos confiou para guardar. Temos de reconhecer a nossa intimidade e compromisso de obediência a este Deus majestoso: ele é o nosso Senhor (Sl 8.1,9). O modelo do que Deus tem para nós encontra a sua perfeição em Cristo, Aquele que por causa de nosso pecado, motivado por sua graça inefável, se humilhou, assumindo a forma de servo, inferior aos anjos, para que, vencendo a morte, o pecado e satanás, pudesse 12 | Revista f é pa r a h o je
trazer à tona o verdadeiro sentido da genuína humanidade (Hb 2.9). A pergunta a respeito do que é o homem, encontra a resposta plena em Jesus Cristo, o verdadeiro e perfeito modelo de nossa humanidade. Quando usamos adequadamente dos recursos que Deus nos confiou para dominar a terra, estamos cumprindo o papel da criação glorificando a Deus. É necessário, portanto, que glorifiquemos a Deus em nosso trabalho pela forma legítima como o executamos. A natureza como a Criação em geral não pode ser considerada separadamente de Deus, pois deste modo ou ela torna-se o centro de todas as coisas (idolatria) ou, é menosprezada, tornando-se apenas um detalhe cósmico o qual o homem pode usar a seu bel-prazer com objetivos egoístas e, portanto, destruidores. Por isso, partilho do conceito de que é impossível uma genuína ecologia – “o estudo do equilíbrio das coisas vivas na natureza”5 – divorciada da teologia bíblica. A questão “ecológica” é, antes de tudo, uma questão teológica. A natureza tem valor não simplesmente por uma questão pragmática – a nossa sobrevivência –, mas, porque foi criada pelo mesmo Deus que nos criou e nos incumbiu de amar e preservá-la. Não ousemos menosprezar o que Deus criou. A nossa humanidade é também demonstrada na forma como lidamos com a Criação. O valor de toda a realidade é-nos comunicado pelo Deus Criador, o nosso majestoso Senhor 5 Francis A. Schaeffer, Poluição e a Morte do Homem, São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
Deus, o Criador Stephen L. Wellum
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A Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo panteísmo, é fundamental para um ponto de vista cristão sobre o mundo".
É difícil superestimar a importância da doutrina da criação. Nas Escrituras, Deus se identifica, primeiramente, como o soberano Criador e, por isso, o Senhor do universo. Muitos cristãos são naturalmente interessados na doutrina da salvação, mas, sem o Deus de criação e providência, não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Na verdade, as bases teológicas para a doutrina da salvação estão arraigadas no fato de que o Deus que existe – o Senhor pessoal, soberano e trino que existe desde toda a eternidade – em um momento, falou e trouxe este universo à existência, a partir do nada. E, como tal, tudo e todos são completamente dependentes dele e responsáveis a ele. 14 | Revista f é pa r a h o je
A doutrina da criação, juntamente com a providência, deve ser vista como o resultado e a execução do plano e do decreto eterno de Deus. A Escritura mostra com clareza que o plano de Deus é o seu plano eterno pelo qual, antes da criação do mundo, ele preordenou fazer acontecer todas as coisas que chegam a acontecer (ver, por exemplo, Sl 139.16; Is 14.24-27; 37.26; 46.10-11; At 2.23; 4.27-28; 17.26; Rm 8.28-29; 9.1-33; Gl 4.4-5; Ef 1.4, 11-12; 2.10). A criação é a realização desse plano eterno no que diz respeito à origem do universo e de tudo que existe, incluindo os seres angelicais e humanos. A providência, por outro lado, é a realização do eterno plano de Deus, no tempo, em relação ao mundo que ele criou, em
termos de sua preservação e governo de todas as coisas para cumprirem os propósitos a que foram designadas, para a sua própria glória (ver, por exemplo, Sl 103.19; 136.25; 145.15; Dn 4.34-35; At 17.28; Rm 11.36; Ef 1.11; Cl 1.17; Hb 1.3). Deus, ao identificar-se a si mesmo como o Deus soberano de criação e providência, deixa bastante claro que somente ele é Deus e que nenhum outro é Deus, que ele não compartilhará sua glória com nenhuma coisa criada e que merece toda a nossa adoração, louvor e obediência (ver, por exemplo, Is 40-48; Jr 10.1-16; Jo 17.3; 1 Tm 1.17). Além disso, quando afirmamos que Deus é o Criador, estamos enfatizando, pelo menos, três verdades. Primeira, estamos ressaltando o fato de que Deus criou o universo a partir do nada (creatio ex nihilo). As Escrituras começam com a afirmação de que, “no princípio, criou Deus os céus e a terra” (Gn 1.1). Antes de o universo ser criado, nada existia, exceto o Deus trino. Entretanto, em um momento, o Deus eterno falou e trouxe este universo de espaço e tempo à existência, “a partir do nada”, ou seja, sem o uso de quaisquer materiais previamente existentes. É por causa deste fato que a Escritura e a teologia cristã afirmam que a matéria não é eterna, mas apenas uma realidade criada. Em outras palavras, somente Deus é o Deus autoexistente, e tudo mais é dependente dele. Segunda, estamos afirmando que Deus criou o universo espontaneamente. A Escritura não diz, em nenhuma de suas passagens, que Deus teve necessidade de criar todas as coisas motivado por al-
gum tipo de necessidade que havia fora ou dentro dele mesmo. Em vez disso, ele, como o Deus trino, que é autoexistente e autossuficiente, decidiu espontaneamente criar todas as coisas. Neste sentido importante, Deus não teve de criar o universo; pelo contrário, devido à sua soberana e livre escolha e para seu próprio prazer, Deus se propôs a criar. Essa é a razão por que a Escritura afirma que Deus não precisa do mundo, e sim que o mundo e tudo que há nele são total e completamente dependentes de Deus. Terceira, dizer que Deus é o Criador significa que a criação é um ato do Deus trino. A criação é não somente a obra do Pai (Gn 1.1; Sl 19.1-2; 33.6, 9; Is 40.28; At 17.24-25; Ap 4.11), ela é também a obra do Filho ( Jo 1.1-3; 1 Co 8.6: Cl 1.15-17; Hb 1.2) e a atividade do Espírito Santo (Gn 1.2; Jó 33.4; Sl 104.30). E, como um ato do Deus trino, a razão para a existência do universo é, em última análise, a glória de Deus. Assim como é importante afirmar o que queremos dizer positivamente com a doutrina da criação, também é necessário enfatizar o que não queremos dizer. A definição bíblica da criação é contrária tanto às opiniões antigas quanto às contemporâneas sobre as origens. Em específico, a Bíblia rejeita os seguintes pontos de vista falsos referentes à origem do universo e dos seres humanos. • Primeiramente, a Bíblia rejeita todos os pontos de vista naturalistas e evolucionistas quanto às origens. Em seu âmago, o naturalismo tenta ver as origens apenas à luz de processos naturalistas que envolvem a evolução da Revista fé pa r a h oje | 15
matéria, por acaso, durante um período de tempo. É por meio desta ideia que as pessoas tentam explicar toda a complexidade e ordem do universo, incluindo os seres humanos. Neste ponto de vista, a matéria é entendida como eterna ou, pelo menos, geradora de si mesma, independente da soberana vontade de Deus. A Escritura rejeita francamente esta ideia. • Em segundo, a Escritura rejeita todos os pontos de vista panteístas sobre a criação. Neste ponto de vista, não há uma distinção crucial entre o Criador e a criação; Deus e o mundo são, essencialmente, um. Além disso, o mundo é frequentemente explicado como uma emanação ou efusão necessária de toda a realidade – o Único. A Escritura deixa claro que o Deus eterno e transcendente não será reduzido à sua ordem criada e que a distinção entre a criatura e o Criador, negada pelo panteísmo, é fundamental para um ponto de vista cristão sobre o mundo. • Em terceiro, a Escritura rejeita todos os entendimentos dualistas quanto ao universo. No dualismo, há duas substâncias ou princípios distintos e coeternos dos quais tudo mais é derivado e que são frequentemente vistos como duas forças antagonistas – o bem e o mal. Outra vez, a Escritura mostra com clareza que somente Deus é Deus, que ele não tem rivais e não compartilhará a sua glória com ninguém. O que cada um destes três pontos de vista falsos têm em comum é o fato de que tentam negar o glorioso Deus da criação. O apóstolo Paulo refletiu 16 | Revista f é pa r a h o je
sobre esta situação infeliz em Romanos 1.8-32, argumentando que a existência do Deus da criação é manifestada claramente para todas as pessoas, mas, devido à rebeldia do coração humano, a verdade de Deus tem sido voluntariamente suprimida e distorcida por nós. Em vez de glorificarmos a Deus, que nos criou, e dar-lhe graças, temos mudado a glória de Deus pelas realidades criadas. O resultado final é, correta e tristemente, a ira justa, santa e perfeita de Deus que nos sobrevém devido ao nosso pecado e depravação. Nesta situação, a única esperança para nós é a soberania de Deus em graça e redenção.
A Importância Prática e Teológica da D outrina da C riação Qual é a importância prática e teológica da doutrina da criação? Há muitos pontos que poderiam ser desenvolvidos, mas pelo menos três reflexões são apropriadas. Primeira, a doutrina da criação identifica para nós o nosso Deus glorioso. A criação nos lembra que o Deus que criou não é uma deidade pequena e insignificante. Não, ele é o Senhor sobre tudo, a fonte de tudo que existe e aquele que é o único soberano. Além disso, a criação nos lembra que ele não é uma deidade distante. Antes, Deus é o “Senhor da aliança”, aquele que é o Deus vivo e ativo, envolvido intimamente em e com a sua criação, sustentando, mantendo e governando constantemente a sua criação e entrando num relacionamento de aliança com
uma redenção que somente Deus pode seu povo. O nosso Deus é verdadeirarealizar e consumar soberanamente. mente grande, cheio de majestade, glóTerceira, a doutrina da criação nos ria, sabedoria, força e poder, devido ao diz algo sobre o nosso mundo em pelo fato de que ele é o Deus criador. menos duas áreas importantes. A priSegunda, a doutrina da criação nos meira área está relacionada a como dediz algo sobre nós mesmos, como criavemos ver este mundo em termos de vaturas de Deus. É precisamente porque lores. Visto que Deus criou este mundo, somos criaturas de Deus, feitos à sua é importante enfatizar que ele tem valor. imagem, que os seres humanos desfruIsto é evidenciado em Gênesis 1 pelo jultam de um papel singular na criação. gamento de valor “era bom” (vv. 4, 10, 12, Ironicamente, quando as pessoas ten18, 21, 25), da parte de Deus, e pela sua tam viver à parte de Deus e negam seu avaliação conclusiva “era muito bom” (v. Criador tanto em sua vida como em seu 31). Neste contexto, “bom” indica que o pensamento, elas descobrem que não mundo era não somente o que Deus plapodem entender a si mesmas corretanejara e tencionara, mas também que ele mente. Assim, acabam vendo a si mestinha grande valor. mas como menos Deus falou “Sim!” do que são, ou para o que havia seja, como aniA teologia cristã rejeita criado. Uma implimais ou máquinas qualquer noção ou de um cação importante humanas, que têm universo “aberto” ou de um disto para a teolopouca ou nenhuuniverso “fechado”. gia cristã é não elema importância e varmos, em nosso valor. Mas o ponpensamento e em to de vista cristão nossa prática, o “espiritual” acima do “físobre os seres humanos, vinculado à sico”. Isto foi um problema no passado e doutrina da criação, nos diz que Deus produziu vários entendimentos errados nos fez com dignidade e valor e que isto, na igreja. Ao criar este mundo, Deus em última análise, é a única base para valoriza tanto a realidade física como a um entendimento apropriado dos seespiritual. Infelizmente, como resultado res humanos. Além disso, o fato de que da Queda, ambas estão agora corromfomos criados por Deus também serve pidas. Mas, na redenção, Deus fez uma como fundamento para toda a ética, obra em Cristo que salva não somente a para a responsabilidade humana e para nossa alma, mas também o nosso corpo. um entendimento correto de nosso luPor isso, há nas Escrituras a ênfase sobre gar, em sujeição a Deus, na sua criação. a ressurreição de nosso corpo, para viverMas, outra vez, devido à nossa rejeição mos em novos céus e uma nova terra, na intencional de nosso Senhor e Criador, presença de Deus, para sempre (ver 1 Co temos nos posicionado contra ele e, as15; Ap 21-22). sim, somos necessitados de redenção, Revista fé pa r a h oje | 17
A segunda área está relacionada ao entendimento cristão da relação e envolvimento contínuo de Deus com seu universo e das implicações disto para um ponto de vista cristão quanto à ciência. É claro que muito poderia ser dito neste assunto. Entretanto, basta dizer que, uma vez que a ordem criada é o resultado da decisão espontânea do Senhor soberano e pessoal, ela é também planejada, ordenada, estruturada e governada por leis. Mas, em sua estrutura, a criação nunca deve ser vista meramente em termos mecânicos. A teologia cristã rejeita qualquer noção ou de um universo “aberto” ou de um universo “fechado”. Um universo “aberto” é o ponto de vista representado pelo animismo. O animismo não entende o universo como que estando sob o controle soberano de Deus, mas, em vez disso, ele é controlado por forças e espíritos caprichosos. Um ponto de vista de universo “fechado” é aquele representado pela ciência moderna. Neste ponto de vista, o universo é concebido como que estando unicamente sob o controle de leis mecânicas, independentes da vontade e do plano de Deus; e, por isso, este ponto de vista concebe aquilo que é miraculoso como impossível. As Escrituras, porém, rejeitam esses dois pontos de vista. Em vez disso, as Escrituras nos apresentam um universo “controlado”. O ponto de vista bíblico vê este mundo como ordeiro e previsível devido à sua relação com o Deus de criação e providencia. Mas também afirma que este mundo não é independente de Deus e que, se Deus quiser, pode agir neste mundo e realizar seus planos e propósitos de maneiras miracu18 | Revista f é pa r a h o je
losas e extraordinárias. Por conseguinte, o ponto de vista cristão sobre o mundo, unido à nossa doutrina de criação, nos permite ver o mundo em um padrão ordeiro e previsível, possibilitando assim a ciência. Enquanto o problema de milagres não é realmente um problema devido ao fato de que o Deus de criação é também o Deus de providência que sustenta o mundo continuamente e age nele. Com base nesta breve consideração, não é difícil perceber que a doutrina da criação e a afirmação de que Deus é o Criador têm importância crucial para a teologia cristã. Como já disse, sem o Deus de criação e providência não há cristianismo como a Bíblia o descreve. Todas as outras doutrinas, incluindo a doutrina da salvação, estão arraigadas e alicerçadas no fato de que Deus é o criador soberano e Senhor de seu universo. Na verdade, a doutrina da criação é também fundamental à teologia cristã em outro sentido – ela é o começo da história que leva à redenção. Ao insistir no fato de que a criação original de Deus era boa, a Bíblia prepara o cenário para o que sai errado – o pecado, a morte, a destruição – e para o desenvolvimento da linha histórica da Escritura que culmina na vinda de um Redentor para corrigir as coisas. Em última análise, todo o drama da história de redenção prenuncia a restauração – a transformação numa glória ainda maior (Rm 8.1-27) – daquela bondade do universo que se tornou corrompido e chega por fim ao alvorecer de um novo céu e uma nova terra (Ap 21-22), o lar da justiça (2 Pe 3.13)
A Importância Teológica da Historicidade de Adão Bruce A. Ware
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Não somente a nossa identidade biológica remonta ao Adão histórico, mas também o nosso estado como seres criados à imagem de Deus remonta ao primeiro homem".
A historicidade literal de Adão como o primeiro ser humano, criado por Deus, do pó da terra, é teologicamente importante? Ou seja, alguém poderia negar a historicidade de Adão como o primeiro ser humano criado e, ainda assim, sustentar todos os ensinos essenciais da teologia evangélica? As respostas para estas perguntas centralizam-se em (1) se a Bíblia apresenta Adão como o primeiro ser humano histórico e literal, (2) se há uma conexão bíblica entre o Adão histórico, em sua criação e queda, e certas doutrinas associadas normalmente com o Adão histórico, e, (3) se isso é verdade, quais seriam estas doutrinas e qual seria a natureza da conexão. Quero sugerir duas linhas 20 | Revista f é pa r a h o je
de resposta que tencionam abordar estas três perguntas. Primeiramente, a historicidade de Adão como o primeiro ser humano literal é ensinada e admitida em toda a Bíblia. A linguagem e as descrições de Adão em Gênesis 5.3-5 – número de anos que ele viveu depois do nascimento de Sete, o fato de que ele teve outros filhos e o número total de anos que ele viveu – são idênticos à linguagem e as descrições usadas a respeito de outros personagens históricos em Gênesis e em outras partes da Bíblia (cf. o resto de Gn 5; Gn 11.10-26; Gn 25.7-11; 1 Cr 1-9). O cronista inicia a sua extensa genealogia de Israel com “Adão”, que dá início a toda a raça humana. Jó contrasta a sua fraqueza diante de Deus
e impossível de ser explicada sem essa com Adão, que encobriu a suas transhistória. Ou seja, há claramente uma gressões ( Jo 31.33). Oseias compara a conexão bíblica entre o Adão histórico desobediência de Israel com Adão, que e a teologia associada com ele, e a conetransgrediu a aliança com Deus (Os xão é tal que a teologia depende dessa 6.7). Lucas alicerça a genealogia de Jehistória e não existiria sem ela. Ou, disus no primeiro homem, Adão, o filho zendo-o em outras palavras, essa hisde Deus (Lc 3.38). Jesus entendeu Adão tória gera a teologia. Como você não e Eva como pessoas humanas literais, pode ter um filho sem uma mãe, tamcriadas por Deus e, depois, unidas no bém não pode ter esta teologia sem a primeiro casamento de um homem com história que a traz à existência. uma mulher (Mt 19.4-6; Mc 19.6-9). Considere, por exemplo, algumas As referências de Paulo a Adão como áreas cruciais da teologia associadas o primeiro ser humano em Romanos com a historicidade verdadeira e literal 5.12-18, 1 Coríntios 11.7-9. 1 Corínde Adão. Primeira, a criação do homem tios 15.21-22 e 2 Timóteo 2.13-14 são, à imagem de inconfundivelmenDeus envolve a te, a respeito desta criação literal do pessoa histórica A teologia e a história primeiro ser huque foi criada à estão entretecidas de tal modo mano à imagem imagem de Deus que a historicidade de Adão é de Deus, o ser (1 Co 11.7), antes essencial à esta teologia humano que se da mulher, que protorna, por assim cedeu dele (1 Co dizer, a fonte de 11.8; 1 Tm 2.13), e todos os outros seres humanos que são, que pecou, trazendo o pecado e a morigualmente, à imagem de Deus. Gênete para todos os seus descendentes (Rm sis 5.3 faz a notável observação de que 5.12-18; 1 Co 15.21-22). Por último, Adão, aos 130 anos de idade, “gerou um Judas 14 se refere à pessoa histórica de filho à sua semelhança, conforme a sua Enoque, o sétimo depois de Adão, que imagem, e lhe chamou Sete” (Gn 5.3). A também seria entendido como histólinguagem neste versículo é, inconfunrico. Uma leitura atenta destes textos divelmente, a mesma de Gênesis 1.26. apoia a conclusão de que a própria BíEmbora a ordem das palavras “imagem” blia trata, repetidas vezes e sem exceção, e “semelhança” esteja invertida, pareAdão como uma pessoa histórica literal, ce que tudo que se diz antes a respeito o primeiro humano criado por Deus. de o homem ser criado à imagem e seEm segundo lugar, a historicidade melhança de Deus é dito aqui, quando de Adão é teologicamente importanSete é gerado à imagem e à semelhança te? Sim, ela é importante pela simples de Adão (Gn 5.3). O paralelismo desta razão de que a teologia conectada com linguagem nos leva a concluir que Sete Adão é teologia arraigada na história Revista fé pa r a h oje | 21
nasceu à imagem de Deus (o que ele realmente era, cf. Gn 9.6) somente porque nasceu à imagem e à semelhança de Adão. Sem a conexão histórica e literal, de fato, biológica, entre Adão e Sete, o status de imagem de Deus em relação a Sete não existiria. E, se isso era verdade quanto a Sete, é verdade também quanto a nós. Não somente a nossa identidade biológica remonta ao Adão histórico, mas também o nosso estado como seres criados à imagem de Deus remonta ao primeiro homem, o primeiro ser humano histórico, Adão. Segunda, a queda do homem no pecado é um ensino teológico central fundamentado precisamente no que aconteceu na história. Paulo resumiu o argumento nestes termos: “Visto que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos. Porque, assim como em Adão todos morrem, assim também todos serão vivificados em Cristo” (1 Co 15.21-22). Considere quatro observações: (1) Adão trouxe a morte ao mundo (15.21a). (2) Todos os humanos que procedem de Adão estão sujeitos à morte (15.22a). (3) A reversão do pecado e da morte de Adão acontece na realidade histórica do triunfo de Cristo por meio de sua ressurreição dos mortos (15.21a). (4) Todos os humanos unidos a Cristo serão vivificados (15.22b). A realidade histórica da ressurreição de Cristo, pela qual os que estão em Cristo são ressuscitados para viverem para sempre, é correspondente, nesta passagem, à realidade histórica do pecado de Adão, que trouxe pecado e morte para todos 22 | Revista f é pa r a h o je
em Adão. A linha histórica não pode ser cortada sem eliminar a teologia correspondente. O pecado original em Adão e a vida eterna em Cristo estão ligados intrínseca e necessariamente à história. Terceira, nossa teologia de gênero e sexualidade está intrinsecamente ligada à criação do primeiro casal humano e à natureza da união conjugal designada por Deus para eles. Quando Jesus se referiu a Gênesis 2, e quando Paulo aludiu a aspectos de Gênesis 2 e 3, ambos entenderam Adão e Eva como pessoas históricas reais que exemplificavam a união vitalícia, em uma só carne, de macho e fêmea que Deus planejou e trouxe à existência. Por sua queda histórica, Adão e Eva apartaram-se do desígnio de Deus e produziram distorções pecaminosas tanto das relações de gênero como da sexualidade humana. Nossa teologia de gênero e sexualidade não é dissociada da história. Pelo contrário, o desígnio criado por Deus foi exemplificado, inicialmente, no primeiro homem e na primeira mulher originais. E tanto Jesus como Paulo se referiram a este desígnio trazido à existência por Deus e vivenciado realmente no Éden. De modo semelhante, as perversões do bom desígnio de Deus estão arraigadas na rebelião histórica contra Deus e contra seus caminhos que aconteceu na história, registrada para nós em Gênesis 3. Tanto neste como em outros assuntos, a teologia e a história estão entretecidas de tal modo que a historicidade de Adão é essencial à esta teologia. Esta teologia depende dessa história e não existiria sem ela
O Homem e o Pecado
A desobediência fatal de Adão e a obediência triunfante de Cristo John Piper
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A sublime superioridade de Cristo é que ele não é apenas bem-sucedido em obedecer perfeitamente, mas o faz de tal forma que milhões de pessoas são consideradas justas pela sua obediência".
"Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado, a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram. Porque até ao regime da lei havia pecado no mundo, mas o pecado não é levado em conta quando não há lei. Entretanto, reinou a morte desde Adão até Moisés, mesmo sobre aqueles que não pecaram, à semelhança da transgressão de Adão, o qual prefigurava aquele que havia de vir. Todavia, não é assim o dom gratuito como a ofensa, porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos. O dom, entretanto, não é como no caso em que somente um pecou; porque o julgamento derivou 24 | Revista f é pa r a h o je
de uma só ofensa, para a condenação; mas a graça transcorre de muitas ofensas, para a justificação. Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo. Pois assim como, por uma só ofensa, veio o juízo sobre todos os homens para condenação, assim também, por um só ato de justiça, veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como, pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência de um só, muitos se tornarão justos. Sobreveio a lei para que avultasse a ofensa, mas, onde abundou o pecado, superabundou a graça, a fim de que, como o pecado reinou pela morte, as-
sim também reinasse a graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor." (Romanos 5.12–21)
Jesus é supremo Jesus Cristo é a pessoa mais importante no universo — não mais importante que Deus, o Pai, ou Deus, o Espírito. Com eles, Cristo é igual em dignidade, perfeição, sabedoria, justiça, amor e poder. Mas ele é mais importante que todas as outras pessoas — sejam anjos ou demônios; reis ou comandantes; cientistas ou artistas; filósofos ou atletas; músicos ou atores — aqueles que vivem agora ou que sempre viveram ou viverão continuamente. Jesus Cristo é supremo.
Todas as coisas são para Jesus — até mesmo o mal
Tudo o que existe — incluindo o mal — é ordenado por um Deus infinitamente santo e totalmente sábio para fazer a glória de Cristo brilhar com mais esplendor. O texto de Provérbios 16.4 diz: “O Senhor fez todas as coisas para determinados fins, até o perverso para o dia da calamidade”. Deus faz isso a seu próprio modo misterioso que preserva a responsabilidade do perverso e a impecabilidade de seu próprio coração. As coisas foram feitas por meio de Cristo e para Cristo (Colossenses 1.16). E isso inclui, Paulo afirma, os “tronos, soberanias, principados e potestades”, que foram derrotados por Cristo na cruz. Eles foram feitos
“para o dia da calamidade”. E, naquele dia, o poder, a justiça, a ira e o amor de Cristo foram manifestos. Mais cedo ou mais tarde, toda rebelião contra Cristo resulta em ruína.
O Deus que está presente Tenho a convicção de que o cristianismo não é meramente um conjunto de ideias, práticas e sentimentos designados para nosso bem-estar psicológico — seja ele designado por Deus ou pelo homem. Isso não é Cristianismo. Ele começa com a convicção de que Deus é uma realidade objetiva fora de nós mesmos. Não o tornamos o que ele é por pensar de certa forma com respeito a ele. Conforme Francis Schaefer disse: “O Deus Presente”. Não o criamos. Ele é quem nos cria. Não decidimos como ele será. Ele decide que seremos. Deus criou o universo e o universo tem o propósito que Deus concede a ele, não o propósito que nós conferimos a ele. Se lhe dermos um propósito diferente do divino, somos insensatos. E nossas vidas serão trágicas no fim. Cristianismo não é um jogo; não é uma terapia. Todas as suas doutrinas fluem do que Deus é e do que ele faz na história. Elas correspondem aos fatos rigorosos. O cristianismo é mais que fatos. Há a fé, a esperança e o amor. Mas eles não flutuam no ar; crescem como grandes cedros na rocha da verdade de Deus. Estou profundamente convencido pela Bíblia que nossa alegria, força e santidade eternas dependem da soliRevista fé pa r a h oje | 25
dez dessa visão de mundo que é colocar fibra forte na espinha dorsal de sua fé. Tímidas visões de mundo produzem cristãos tímidos. E cristãos tímidos não sobreviverão aos dias à frente. Emocionalismo sem raiz que trata o cristianismo como uma opção terapêutica será eliminado nos Últimos Dias. Aqueles que permanecerão firmes serão os que construíram suas casas sobre a rocha da grande verdade objetiva com Jesus Cristo como a origem, o centro, e o propósito de tudo isso.
A glória de Jesus planejada no pecado de A dão Nosso foco é no pecado extraordinário do primeiro homem, Adão, e como esse pecado preparou o cenário mais extraordinário: a contrainserção de Jesus Cristo. Vamos voltar para Romanos 5.12-21. Quero focar na glória de Cristo como o principal propósito que Deus teve em mente quando planejou e permitiu o pecado de Adão e com ele a queda de toda a humanidade no pecado. A Palavra diz: “Seja o que Deus permitir, ele o faz por uma razão”. E suas razões são sempre infinitamente sábias e propositais. Ele não tinha obrigação de permitir que a Queda ocorresse. Ele poderia tê-la impedido, assim como teria evitado a queda de Satanás. O fato de que Deus não a impediu significa que ele tem uma razão, um propósito para ela. E ele não faz seus planos enquanto acontece alguma atividade. Ele sabe o que é sábio, sempre sabe o que é sábio. 26 | Revista f é pa r a h o je
Portanto, o pecado de Adão e a queda da raça humana com ele no pecado e miséria não encontraram Deus desprevenido e é parte de seu plano abrangente para manifestar a plenitude da glória de Jesus Cristo. Uma das formas mais claras de demonstrar isso na Bíblia — e não vamos entrar em detalhes sobre esse assunto aqui — é examinar aquelas passagens onde o sacrifício de Cristo que vence o pecado é exposto como estando na mente de Deus antes da criação do mundo. Por exemplo, em Apocalipse 13.8, João escreve sobre “aqueles cujos nomes não foram escritos no Livro da Vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo”. Assim, havia um livro antes da fundação do mundo chamado O Livro da Vida do Cordeiro que foi morto. Antes que o mundo fosse criado, Deus já havia planejado que seu Filho seria morto como um cordeiro para salvar todos aqueles que estão escritos no livro. Poderíamos examinar muitos outros textos como estes (Ef 1.4-5; 2Tm 1.9; Tt 1.1-2; 1Pd 1.20) para perceber a visão bíblica de que os sofrimentos e a morte de Cristo pelo pecado não são planejados depois do pecado de Adão, mas antes. Portanto, quando o pecado de Adão acontece, Deus não é surpreendido por ele, mas já o tornou parte de seu plano, o plano de manifestar sua paciência, graça, justiça e ira maravilhosas na história da redenção, e, então, em um clímax, revelar a magnificência de seu Filho como o segundo Adão, superior por todos os modos ao primeiro Adão.
O versículo 14 apresenta o modo como Paulo reflete o restante da passagem. Adão é chamado um “tipo” daquele que viria, isto é, um tipo de Cristo. Note o fato mais óbvio primeiramente: Cristo “viria”. Desde o princípio, Cristo era “aquele que viria”. Paulo mostra que Cristo não é uma ideia tardia. Paulo não diz que Cristo foi concebido como uma cópia de Adão. Ele afirma que Adão foi um tipo de Cristo. Deus tratou Adão de uma maneira que faria dele um tipo da forma que ele planejou para glorificar seu Filho. Um tipo é uma prefiguração de algo que viria mais tarde e seria semelhante ao tipo — somente superior. Por Jesus, “aquele que vem” conseguinte, Deus tratou com Adão de uma maneira que o faria um tipo de Assim, vamos examinar a forma Cristo. como Cristo é referido no versículo Agora, observe com mais rigor, 14 e vamos ler os versículos 12 e 13 exatamente onde, na fluência de seu para o contexto: “ 12 Portanto, assim pensamento, como por um Paulo decide disó homem enzer que Adão é trou o pecado no Não o tornamos o que um tipo de Crismundo, e pelo ele é por pensar de certa forma to. O versículo pecado, a morte, 14: “Entretanto, com respeito a ele. assim também a reinou a morte morte passou a desde Adão até todos os homens, Moisés, mesmo porque todos pesobre aqueles que não pecaram, à secaram. 13 Porque até ao regime da lei melhança da transgressão de Adão, o havia pecado no mundo, mas o pecaqual prefigurava aquele que havia de do não é levado em conta quando não 14 vir”. Ele decide nos dizer que Adão é há lei. Entretanto, reinou a morte um tipo de Cristo no momento após desde Adão até Moisés, mesmo soafirmar que as pessoas que não pecabre aqueles que não pecaram, à seram como Adão o fez ainda sofrem melhança da transgressão de Adão, o a punição que Adão sofreu. Por que qual prefigurava aquele que havia de Paulo, justamente nesse ponto, declavir”. Há a referência a Cristo: “Aquera que Adão foi um tipo de Cristo? le que havia de vir”. Assim, examinamos Romanos 5.1221 desta vez tendo em mente que o pecado extraordinário de Adão não frustrou os propósitos de Deus de exaltar a Cristo, mas, pelo contrário, os serviu. Aqui está o modo como examinaremos esses versículos. Há cinco referências explícitas a Cristo. Uma delas estabelece o modo como Paulo pensa no que se refere a Cristo e Adão. E o restante mostra como Cristo é superior a Adão. Dois desses versículos são tão similares que os uniremos. Significa que examinaremos três aspectos da superioridade de Cristo.
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Jesus, nosso representante O argumento de Paulo demonstra a essência de como Cristo e Adão são semelhantes e diferentes. Eis o paralelo: as pessoas cujas transgressões não foram iguais as de Adão morreram como Adão. Por quê? Porque estavam ligados a Adão. Ele foi o representante da humanidade e seu pecado é considerado deles devido à conexão deles com Adão. Essa é a essência do porquê Adão é chamado um tipo de Cristo — pois nossa obediência não é igual à obediência de Cristo e, contudo, temos vida eterna com Cristo. Por quê? Porque somos unidos a Cristo pela fé. Ele é o representante da nova humanidade e sua justiça é considerada nossa justiça pela nossa união com ele (Confira Romanos 6.5). Há um paralelo inferido em chamar Adão de um tipo de Cristo: Adão > pecado de Adão > humanidade condenada nele > morte eterna Cristo > justiça de Cristo > nova humanidade justificada nele > vida eterna O restante da passagem revela o quanto Cristo e sua obra redentora são superiores a Adão e sua obra destrutiva. Tenha em mente o que disse no princípio. O que vemos aqui é a revelação das realidades que definem o mundo onde toda pessoa neste planeta vive. Todos neste planeta estão 28 | Revista f é pa r a h o je
inclusos no texto porque Adão foi o pai de todos. Portanto, toda pessoa que você encontrar na América ou em qualquer país de qualquer etnia se defronta com o que esse texto fala. Morte em Adão ou vida em Cristo. É um texto universal. Não perca isso de vista. Ele é a realidade definidora para cada pessoa que você sempre encontrará. Tímidas visões de mundo produzem cristãos tímidos. Essa não é uma visão de mundo tímida. Ela se estende por toda a história e por toda a terra. Ela influencia cada pessoa no mundo e a cada manchete na internet.
A celebração da superioridade de J esus Vamos agora examinar três modos como Paulo celebra a superioridade de Cristo e a obra dele sobre Adão e sua obra. Eles podem ser resumidos sob três frases: 1) a abundância da graça, 2) a perfeição da obediência, e 3) o reino da vida. 1) A abundância da graça Primeiro, o versículo 15 e a abundância da graça. “Todavia, não é assim o dom gratuito [a saber, o dom gratuito da justiça v. 17] como a ofensa, porque, se, pela ofensa de um só, morreram muitos, muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos”. O ponto aqui é que a graça de Deus é mais poderosa que a ofensa de Adão. É isso que as palavras “muito mais” significam: “muito mais a graça de Deus… foram abundantes sobre muitos”. Se a ofensa do homem trou-
xe morte, muito mais a graça de Deus trará vida. Mas Paulo é mais específico que isso. A graça de Deus é especificamente “a graça de um só homem, Jesus Cristo”. “Muito mais a graça de Deus e o dom pela graça de um só homem, Jesus Cristo, foram abundantes sobre muitos”. Essas graças não são duas graças diferentes. “A graça de um só homem, Jesus Cristo” é a encarnação da graça de Deus. Essa é a forma com a qual Paulo fala sobre ela, por exemplo em Tito 2.11: “A graça de Deus se manifestou [a saber em Jesus] salvadora...”. E em 2 Timóteo 1.9: “Sua própria... graça, que nos foi dada em Cristo Jesus”. Por conseguinte, a graça que está em Jesus é a graça de Deus. Essa graça é a soberana graça. Ela conquista tudo em seu caminho. Veremos em um momento que ela tem o poder do rei do universo. É a graça imperial. Essa é a primeira celebração da superioridade de Cristo sobre Adão. Quando a ofensa de um só homem, Adão, e a graça de um só homem, Jesus Cristo, se encontram, Adão e a ofensa perdem. Cristo e a graça vencem. São as boas-novas para aqueles que pertencem a Cristo. 2) A perfeição da obediência Segundo, Paulo celebra a forma pela qual a graça de Cristo vence a ofensa de Adão e a morte, a saber, a perfeição da obediência de Cristo. O versículo 19: “Porque, como, pela desobediência [a saber, de Adão] de um só homem, muitos se tornaram pecadores, assim também, por meio da obediência
[isto é, a de Cristo] de um só, muitos se tornarão justos”. Assim, a graça de um só homem, Jesus Cristo, o impede de pecar — ela o mantém obediente até à morte e morte de cruz (Fp 2.8) — de modo que ele oferece uma obediência perfeita e completa ao Pai em nome daqueles que estão unidos com ele pela fé. Adão fracassou em sua obediência. Cristo procedeu perfeitamente. Adão foi a fonte de pecado e morte. Cristo foi a fonte de obediência e vida. Cristo é como Adão, que foi um tipo de Cristo — ambos são representantes de uma velha e uma nova humanidade. Deus imputa o fracasso de Adão à sua humanidade e o sucesso de Cristo à sua humanidade, devido a como essas duas humanidades estão unidas às suas respectivas cabeças. A sublime superioridade de Cristo é que ele não é apenas bem-sucedido em obedecer perfeitamente, mas o faz de tal forma que milhões de pessoas são consideradas justas pela sua obediência. Você está unido somente a Adão? Você está unido à parte da primeira humanidade destinada à morte? Ou você também está unido a Cristo e à parte da nova humanidade destinada à vida eterna? 3) O reino da vida Terceiro, Paulo celebra não apenas a graça abundante de Cristo e a obediência perfeita de Cristo, mas finalmente, o reino da vida. A graça conduz à obediência de Cristo rumo ao triunfo da vida eterna. O versículo 21: “A fim de que, como o pecado reinou pela morte, assim também reinasse a Revista fé pa r a h oje | 29
graça pela justiça para a vida eterna, mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. A graça reina por meio da justiça (isto é, mediante a justiça perfeita de Cristo) para o grande clímax da vida eterna — e tudo isso é “mediante Jesus Cristo, nosso Senhor”. Ou, uma vez mais no versículo 17, a mesma mensagem: “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. O mesmo padrão: graça por meio do dom gratuito de justiça conduz ao triunfo da vida e tudo isso acontece mediante Jesus Cristo. Mencionei anteriormente que a graça de Deus em Cristo, a que Paulo faz alusão nesses versículos, é a soberana graça. Eis o termo onde se percebe esse fato, a saber, na palavra reinar. A morte tem um tipo de soberania sobre o homem e reina sobre tudo. Todos morrem. Mas a graça vence o pecado e a morte. Ela reina em vida mesmo sobre aqueles que outrora estavam mortos. É graça soberana.
A obediência extraordinária de Jesus Esta é a grande glória de Cristo — ele ultrapassa imensamente em excelência o primeiro Adão. O pecado extraordinário de Adão não é tão
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maior quanto a graça e a obediência extraordinárias de Cristo e o dom da vida eterna. De fato, o plano de Deus, desde o princípio, em sua justiça perfeita, foi que Adão, como o representante da humanidade, seria um tipo de Cristo como o representante de uma nova humanidade. Seu plano foi por comparação e contraste que a glória de Cristo brilharia com mais esplendor. O versículo 17 expressa o assunto para você de uma forma muito pessoal e muito urgente. Onde você se situa? “Se, pela ofensa de um e por meio de um só, reinou a morte, muito mais os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Note as palavras muito cuidadosamente e pessoalmente: “Os que recebem a abundância da graça e o dom da justiça”.
Palavras preciosas para pecadores Estas são palavras preciosas para pecadores: a graça é gratuita, o dom é gratuito, a justiça de Cristo é gratuita. Vocês receberão tudo isso como a esperança e o tesouro de suas vidas? Se receberem, vocês “reinarão em vida por meio de um só, a saber, Jesus Cristo”. Recebam isso agora. Testemunhem isso no batismo. E tornem-se uma parte viva do povo de Cristo
A Justificação Ainda É Importante? Michael S. Horton
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A doutrina da justificação foi definida como o 'artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai'”.
Há muito tempo, o nome evangélico identificava aqueles que eram comprometidos não somente com o cristianismo histórico, mas também com a doutrina da justificação somente pela graça por meio da fé somente em Cristo. Em nossos dias, porém, isso pode não ser verdade. Cada vez mais, a erudição evangélica é desafiada por tendências nos estudos bíblicos (em especial, a Nova Perspectiva sobre Paulo) para abandonarem o entendimento da justificação sustentado pela Reforma. Reconciliações recentes (como a Declaração Conjunta de Luteranos e Católicos Romanos e “Evangélicos e Católicos Juntos”) têm revisado e relativizado esta doutrina fundamental.1 1 Ver Michael Horton, “What’s All the Fuss 32 | Revista f é pa r a h o je
Admiravelmente, em um novo livro que contém ensaios sobre a justificação escritos por protestantes de igrejas históricas (luteranos e reformados) e por católicos romanos, os protestantes rejeitam a doutrina da Reforma (por apelarem à Nova Perspectiva sobre Paulo), ao passo que Joseph Fitzmeyer, proeminente erudito católico romano de Novo Testamento, demonstra a exatidão técnica da exegese da Reforma quanto às passagens importantes. Mark Noll, o grande erudito evangélico, em seu livro Is The Reformation Over? (A Reforma Acabou?) parece falar em nome de muitos About?: The Status of the Justification Debate”, Modern Reformation 11, no. 2 (March/ April 2002), pp. 17-21.
protestantes conservadores quando responde sim. O criticismo franco da doutrina da justificação conforme definida em nossas confissões e catecismos reformados se tornou comum até em igrejas conservadoras. Embora as cortes eclesiásticas destas denominações irmãs tenham exibido solidariedade estimulante em sustentar a posição confessional e instaurar processo contra os ministros que se opõem a ela, é trágico que controvérsias sobre esta doutrina cardeal surjam em nossos círculos. A maioria das pessoas nas igrejas não estão familiarizadas com a doutrina da justificação. Frequentemente, ela não é uma parte da dieta de pregação e da vida da igreja, nem um tema predominante na subcultura cristã. Ou com rigor austero, ou com boas sugestões para o viver melhor, “fundamentalistas” e “progressistas” sufocam, igualmente, o evangelho em moralismo, por meio de exortações constantes à transformação social e/ou pessoal que mantém as ovelhas olhando para si mesmas e não para fora de si mesmas, para Cristo. Mesmo em muitas igrejas formalmente comprometidas com o ensino da Reforma, pessoas podem achar a doutrina da justificação na parte de trás de seu hinário (na seção de confissões), mas ela é levada realmente a sério no ensino, na pregação, na adoração e na vida da congregação? Em média, o artigo de destaque mais publicado em revistas ou em best-sellers cristãos diz respeito a “boas obras” – tendências em espiritualidade, ativismo social, crescimento
de igreja e discipulado. No entanto, é muitíssimo claro que a justificação permanece fora de cogitação. Quando a justificação não é abertamente rejeitada, ela é frequentemente ignorada. Talvez o perdão de pecados e a justificação são apropriados para “ser salvo”, mas depois vem a essência do negócio – o viver cristão, como se pudesse haver qualquer santidade de vida genuína que não resulte de uma confiança perpétua em que “agora... nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus” (Rm 8.1). É impossível especificarmos todas as razões para tal atitude em relação a esta doutrina que constitui o âmago do próprio evangelho. No entanto, neste artigo comentarei duas das principais fontes.
Cultura Cristã como Moralismo de Autoajuda Embora os reformadores tenham dito isso de maneiras diferentes, foi o teólogo reformado J. H. Alsted que, no início do século XVII, identificou a doutrina da justificação como o “artigo pelo qual a igreja se mantém de pé ou cai”. Contudo, no século seguinte, denominações protestantes que haviam selado esta confissão com o sangue de mártires foram sujeitando-a, gradualmente, a várias formas de moralismo que predominavam na época do Iluminismo – e, em muitos casos, piores do que as distorções que haviam provocado a Reforma. Até nos círculos pietistas, onde a fé vital em Cristo era Revista fé pa r a h oje | 33
preservada, a balança se inclinou cada vez mais em favor de obediência e piedade subjetivas, e, assim, a justificação foi subordinada à santificação. Quando o arminianismo ganhou forças, um novo legalismo (identificado pelos círculos reformados como “neonomianismo”) entrou nas igrejas comprometido formalmente com a doutrina evangélica e produziu uma suspeita da pregação de eleição e justificação como motivações para o “antinomianismo”. Depois de ler a obra A Serious Call to a Devout and Holy Life (Uma Chamada Solene a uma Vida Piedosa e Santa), de William Law, John Wesley se convenceu de que o calvinismo remanescente na Igreja da Inglaterra impedia um avivamento genuíno da piedade interior e o discipulado comprometido. Embora Wesley viesse, por fim, a abraçar a doutrina da justificação, ele ficou preocupado com que a justificação levaria à licenciosidade, se não fosse subordinada à santificação. Nas colônias americanas, o Grande Despertamento, sob a liderança de Jonathan Edwards e George Whitefield, proclamaram as boas novas da graça justificadora de Deus em Cristo. Entretanto, na época do Segundo Grande Despertamento, uma teologia contrária se tornou a teologia operante de muitos grupos protestantes na nova república. A igreja é uma sociedade de reformadores morais, disse o seu principal evangelista, Charles Finney. Se o calvinismo era verdade, como poderia haver qualquer transformação genuína da sociedade? 34 | Revista f é pa r a h o je
Os críticos de Finney o acusaram de pelagianismo – a antiga heresia que ensinava, em essência, que não nascemos inerentemente pecaminosos e que somos salvos por seguir o exemplo moral de Cristo. Indo além dos erros da Igreja de Roma, a Teologia Sistemática de Finney negava explicitamente o pecado original e insistia em que o poder da regeneração está nas mãos do próprio pecador, rejeitava qualquer noção de uma expiação vicária, em favor da influência moral e de teorias de governo morais, e considerava a doutrina da justificação pela justiça imputada como “impossível e absurda”.2 No que diz respeito ao complexo de doutrinas que ele associava com o calvinismo (incluindo o pecado original, a expiação vicária, a justificação e o caráter sobrenatural do novo nascimento), Finney concluiu: “Nenhuma doutrina é mais perigosa do que esta para a prosperidade da igreja, e nada é mais absurdo”. “Um avivamento não é um milagre”, ele declarou. De fato, “Não há nada na religião que esteja além dos poderes comuns da natureza”.3 Ache os métodos mais proveitosos (“estímulos”, ele os chamou), e haverá conversão. “Um avivamento declinará e cessará”, Finney alertou, “se os cristãos não forem frequentemente reconvertidos”.4 No final de seu ministério, quando Finney considerou a situação de muitos que ha2 Charles G. Finney, Systematic Theology (Minneapolis: Bethany, 1976), p. 320. 3 Charles G. Finney, Revivals of Religion (Old Tappan, NJ: Revell, n. d.), pp. 4-5. 4 Finney, Revivals of Religion, p. 321. Ênfase no original.
viam experimentado seus avivamentos, ele temia que a fome interminável por experiências cada vez maiores pudesse levar à exaustão espiritual.5 De fato, suas preocupações eram justificáveis. A região em que predominaram os avivamentos de Finney é agora referida pelo historiadores como o “distrito queimado”, um canteiro tanto de desilusão como de proliferação de várias seitas.6 Desde então, o evangelicalismo tem se caracterizado por uma sucessão de movimentos entusiastas aclamados como “avivamentos”, que se extinguem tão rapidamente quanto se espalham. Paulo poderia dizer hoje sobre o protestantismo americano o que ele disse sobre os seus irmãos segundo a carne: Porquanto, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não se sujeitaram à que vem de Deus. Porque o fim da lei é Cristo, para justiça de todo aquele que crê (Rm 10.3-4). Há duas religiões, disse Paulo: “a justiça decorrente das obras” e “a justiça decorrente da fé”. Enquanto a primeira segue fervorosamente seus esquemas de autossalvação, como que tentando trazer Cristo para baixo ou levantando -o dentre os mortos, a segunda apenas 5 Ver Keith J. Hardman, Charles Grandison Finney: Revivalist and Reformer (Grand Rapids: baker, 1990) pp. 380, 394. 6 Ver, por exemplo, Whitney R. Cross, The Burned Over District: The Social and Intellectual History of Enthusiastic Religion in Western New York, 1800-1850 (Ithaca, N.Y.: Cornell University Press, 1982).
recebe a palavra de Cristo e descansa somente nela (vv. 5-8). “Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?... E, assim, a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo” (vv. 14, 17). Não parece incorreto considerar as alegações teológicas de Finney como pelagianas. E sua influência permanece conosco hoje, tanto no protestantismo ecumênico como no evangélico. Dietrich Bonhoeffer viu isto claramente em sua visita aos Estados Unidos, ao descrever o cristianismo americano como “protestantismo sem a Reforma”.7 Em vez da influência de um testemunho verdadeiramente evangélico, foi a propagação rápida do avivalismo arminiano, especialmente no próspero Oeste, que se mostrou mais eficaz em produzir “resultados”. A doutrina em geral, e o calvinismo em específico, impediu o surgimento de uma América cristã. “Obras e não credos” têm uma linhagem extensa na história do movimento. Em geral, os americanos são o tipo de pessoas “prospere por seus próprios esforços”. Isto é o que, em parte, justifica a enorme validade dos negócios e da indústria americana. Mas também se tornou uma religião. Aqueles que saíram da miséria para a riqueza difi7 Dietrich Bonhoeffer, “Protestantism without the Reformation, em No Rusty Swords: Letters, Lectures and Notes, 1928-1936, ed. Edwin H. Robertson, trans. Edwin H. Robertson e John Bowden (London: Collins, 1965), pp. 92-118. Revista fé pa r a h oje | 35
cilmente aceitarão o fato de que, pelo menos diante de Deus, eram pecadores desamparados que precisavam ser resgatados. No contexto contemporâneo, o protestantismo americano, da esquerda ou da direita, está comprometido com o legado de Finney, quer saiba, quer não. Isso pode ser reconhecido no “evangelho social” da esquerda e nas lamentações moralistas da direita; no pragmatismo de “como” do movimento de crescimento de igreja e na vasta literatura e pregação de autoajuda que se tornou a dieta da subcultura cristã; e na obsessão terapêutica por espiritualidade interior e ativismo social que pode ser vista no movimento Igreja Emergente. Mesmo quando o evangelho é formalmente afirmado, ele se torna um instrumento para motivar a vida pessoal e pública (salvação por obras), e não um anúncio de que a ira justa de Deus foi satisfeita e de que seu favor imerecido foi dado gratuitamente em Jesus Cristo. Digo tudo isto com profunda tristeza por ter de dizê-lo, porque é a pior coisa que pode ser dita sobre uma igreja. Paulo falou severamente com os coríntios por causa de sua imoralidade, mas nunca questionou se eles eram realmente uma igreja. Mas, quando a igreja da Galácia estava confundindo o evangelho da justificação gratuita de Deus por meio da fé, Paulo os advertiu de que estavam em risco de serem excluídos – excomungados, “anátemas”. E a preocupação que expressei não se limita a alguns poucos calvinistas e 36 | Revista f é pa r a h o je
luteranos petulantes. De acordo com o bispo William Willimon, da Igreja Metodista Unida, “a autossalvação é o alvo de muito da nossa pregação”.8 Willimon percebe que muito da pregação contemporânea presume que a conversão é algo que nós produzimos por meio de nossas próprias palavras e ordenanças. “Neste respeito, somos herdeiros de Charles G. Finney”, o qual pensávamos que a conversão não é um milagre, e sim um “resultado puramente filosófico [ou seja, científico] do uso correto dos meios constituídos”. Esquecemos que houve um tempo em que os evangelistas eram obrigados a defender suas “novas medidas” de avivamentos, que houve um tempo em que os pregadores tinham de defender sua preocupação com a reação dos ouvintes aos seus detratores calvinistas, os quais pensavam que o evangelho era mais importante do que seus ouvintes. Estou aqui argumentando que avivamentos são miraculosos, que o evangelho é tão estranho, tão contrário às nossas inclinações naturais e às enfatuações de nossa cultura, que nada menos do que um milagre é exigido a fim de que haja um verdadeiro ouvir. Minha posição é, portanto, mais próxima da posição do calvinista Jonathan Edwards do que da posição de Finney.9 8 William H. Willimon, The Intrusive Word: Preaching to the Unbaptized (Eugene, Ore.: Wipf & Stock, 2002), p. 53. 9 Willimon, p. 20.
Apesar disso, “o futuro homilético, infelizmente, está com Finney e não com Edwards”, levando ao guru de marketing evangélico George Barna, que escreve:
lística que conheço é um esforço para aprofundar pessoas cada vez mais em sua subjetividade, e não uma tentativa de resgatá-las de tal subjetividade”.11 Nossa verdadeira necessidade, sintamos ou não, é que distorcemos sisteJesus Cristo era um especialista maticamente e ignoramos a verdade. em comunicação. Ele comunicou Esta é a razão por que precisamos de sua mensagem em diversas ma“uma palavra externa”.12 “Portanto, neiras e com resultados que seria em um sentido, não descobrimos o um crédito para as agências moevangelho; ele nos descobre. ‘Não fosdernas de marketing e propagantes vós que me escolhestes a mim; pelo da. Ele promoveu seu produto da contrário, eu vos escolhi a vós outros’ maneira mais eficiente possível: ( Jo 15.16).”13 “A história é euangelion, por comunicá-lo com as “melhores boas novas, porque ela é a respeito da perspectivas”... Ele entendia comgraça. Mas é também novas porque pletamente o não é conheciseu produto, mento comum, desenvolveu não é o que nove A fé e a prática evangélica um incompaentre dez ameriproclamadas nas Escrituras é rável sistema canos já sabem. de distribuiO evangelho não sempre não natural para nós. ção, fomentou vem naturalmenum método de te. Ele vem como promoção que Jesus.”14 penetrou cada continente e ofeA fé e a prática evangélica proclareceu seu produto a um preço que madas nas Escrituras é sempre não está ao alcance de todo consumidor natural para nós. Nascidos em pe(sem tornar o produto tão acessível cado, corrompidos em nós mesmos, 10 a ponto de perder seu valor). supomos instintivamente que somos pessoas boas que poderiam ser melhores, se tivéssemos um bom plano, A pergunta que surge naturalmenambiente e exemplos. Quando visite diante de tais observações é esta: tamos pessoas em seu leito de morte, É possível dizer que Jesus fez alguma ficamos desconcertados quando encoisa nova? “Infelizmente”, diz Willicontramos velhos membros de igrejas mon, “a maioria da pregação evange10 Willimon, p. 21, citando George Barna, Marketing the Church: What They Never Taught You about Church Growth (Colorado Springs, NavPress, 1988), p. 50.
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Willimon, p. 38. Willimon, p. 38. Willimon, p. 43. Willimon, p. 52. Revista fé pa r a h oje | 37
de confissão reformada expressando sua esperança de terem sido suficientemente bons para que Deus os aceite. Nascemos pelagianos, confiando em nós mesmos e não em Deus; e esta é a nossa condição padrão mesmo como cristãos. Essa é a razão por que nunca admitimos o evangelho; ele tem de ser a dieta principal não somente para o começo da peregrinação cristã, mas também para o meio e para o fim. Quando as coisas se deterioram em nossa fé pessoal ou coletiva, a direção é sempre a mesma: caímos de novo na justiça de obras. Períodos de vitalidade e saúde genuínas são sempre a consequência de redescobrirmos o evangelho da graça; épocas de declínio estão sempre associados com o eclipse do evangelho de um resgate totalmente divino, na pessoa e obra de Jesus Cristo. Visto que Satanás perdeu a guerra no Gólgota e no sepulcro, ele tem voltado os seus ataques para a fé dos crentes no evangelho e para o progresso do evangelho até aos confins da terra. Ele conhece o nosso ponto fraco e o explora. Se não pode destruir a igreja por perseguição, Satanás a enfraquecerá por meio de heresia. E o “pelagianismo” – a autossalvação em todas as suas formas – é seu melhor best-seller. Depois de realizar, com sua equipe, inúmeros estudos nos últimos anos, o sociólogo Christian Smith, da Universidade da Carolina do Norte, concluiu que a religião da juventude americana pode ser caracterizada como “deísmo moralista e terapêuti38 | Revista f é pa r a h o je
co”. Quando o entrevistamos recentemente para o ministério White Horse Inn e para a revista Modern Reformation, ele disse que não há nenhuma diferença entre os que não frequentam a igreja e os jovens criados em igrejas evangélicas hoje.
Quem Precisa da Justificação? Deus justifica o ímpio. Isso é muito radical. É mais radical do que a afirmação de que Deus cura o moralmente enfermo e dá graça àqueles que estão dispostos a cooperar para isso ou que ele recompensa aqueles que tentam fazer o seu melhor. Nem precisamos negar abertamente a justificação. Ela é relevante apenas quando paramos de fazer a pergunta mais importante. Você tem problemas no casamento e com os filhos? Com certeza. Não vive de acordo com suas expectativas? Todos não vivem assim também? Não está conseguindo o máximo da vida e precisa de algum conselho legal? Sou todo ouvidos. Mas não nos importamos com o fato de que somos “pecadores nas mãos de um Deus irado”, se nunca nos deparamos com um Deus santo. E, se não sentimos uma grande necessidade, não clamamos por um grande Salvador. Os católicos romanos e os protestantes costumavam debater sobre como os nascidos em pecado original são salvos pela graça. No entanto, essas categorias teológicas estão sendo substituídas, entre os divisores católico/protestante e liberal/evangélico,
por categorias terapêuticas, pragmáticas e consumistas que parecem tornar irrelevante o próprio discurso sobre o evangelho. A pergunta “Como posso ser aceito por um Deus santo?” é substituída por uma busca por autorrealização, autorrespeito, autoestima e esforço próprio. E há abundância de pregadores que fomentarão o nosso narcisismo, tratando de nossa ferida como se não fosse tão grave e dizendonos como podemos ter nossa melhor vida agora mesmo. A justificação se torna um símbolo vazio quando Deus não é mais um problema para a humanidade, e sim um ícone controlável ou de uma transcendência irrelevante ou de uma fonte imanente e proveitosa de bem-estar terapêutico e causas morais. Não sendo mais perdidos, agora somos mais semelhantes a vítimas disfuncionais, mas bem intencionadas, que apenas precisam de “capacitação” e melhores instruções. Nossa experiência é remota daquela dos israelitas reunidos ao pé do monte Sinai, quando ouviram a terrível voz de Deus e imploraram por um mediador. Quando a santidade de Deus é obscurecida, a condição pecaminosa do homem é ajustada, primeiramente, ao nível de pecados – ou seja, a atos ou hábitos específicos que exigem repreensão e melhora. Cansados de intimidações que realmente trivializam a condição pecaminosa, a próxima geração adota uma abordagem mais positiva, oferecendo “dicas para viver” que tornarão a vida mais feliz, mais saudável e
mais realizadora. Por fim, a dimensão vertical é quase perdida. O que torna o pecado pecaminoso é o fato de que ele é, antes de tudo, uma ofensa contra Deus (Sl 51.3-5). Todavia, o resultado dessa mentalidade que obscurece a santidade de Deus, é que não é mais concebível que Deus tenha se tornado carne para sofrer a sua própria ira. O propósito da cruz é levar-nos ao arrependimento por mostrar-nos quanto Deus nos ama (a teoria de influência moral da expiação), para demonstrar a justiça de Deus (a teoria de governo moral) ou para libertar os oprimidos de estruturas sociais injustas (Christus Victor). Mas uma coisa que a cruz não pode ser é o meio pelo qual somos “justificados por seu [de Cristo] sangue”, “somos por ele salvos da ira” (Rm 5.9). De fato, o teólogo luterano George Lindbeck explorou recentemente a relação inseparável entre a justificação e a expiação, concluindo que, mesmo onde aquela é formalmente afirmada, a ampla falta de interesse em nossa rejeição franca da linguagem tradicional da expiação deixa-a sem especificidade suficiente. Pelo menos na prática, a visão de salvação de Abelardo, a salvação por seguir o exemplo de Cristo (e a cruz como a demonstração do amor de Deus que motiva o arrependimento) agora parece ter uma distinção clara em relação à teoria de satisfação de Anselmo sobre a expiação. “A expiação não está no topo das agendas contemporâneas de católicos ou de protestantes”, Lindbeck conjectura. “Mais especificamente, as versões peRevista fé pa r a h oje | 39
nal e vicária da teoria de satisfação de religiosa e, por conseguinte, era mais Anselmo que predominaram entre o ofensiva, seus críticos pensavam, do que povo durante centenas de anos estão a justiça própria basicamente moral dos desaparecendo.15 Isso é tão verdadeiliberais abelardianos. Avançando em nossa história: os liberais cessaram proro para os protestantes evangélicos 16 gressivamente de ser abelardianos.17 quanto para os protestantes liberais. Aqueles que continuaram a usar “Nossa cultura terapêutica de sena linguagem sola fide presumiam estar tir-nos cada vez melhor é contrária à em concordância com os reformadores, pregação da cruz” e nossa “sociedade não importando quanto; mas, sob a consumista” fez da doutrina um pária.18 influência do pietismo e do avivalismo “Uma característica mais desconcernorteado por conversões, eles transfortante deste desenvolvimento, que tem maram a fé que salva em uma boa obra afetado igrejas professamente confesmeritória do livre-arbítrio, uma decisionais, é o silêncio a seu respeito. Tem são voluntária de crer que Cristo sofreu havido poucos protestos audíveis.”19 a punição do pecado na cruz em meu Até teologias mais contemporâneas a favor, em favor de cada pessoa indivirespeito da cruz promovem o padrão dualmente. Embora pareça muito imde Jesus como Modelo, mas a própria provável, devido justificação é raraà metáfora usada mente descrita na Bíblia (e à pasem harmonia com sagem joanina da o padrão da ReDeus justifica o ímpio. qual ela vem), toforma, mesmo Isso é muito radical. dos são, portanto, por evangélicos capazes de “nasconser vadores, cer de novo”, se Lindbeck sugere. apenas tentarem A maioria deles, o máximo que puderem. Assim, com como já indicamos, são conversionistas a perda do entendimento da Reforma apegados a versões arminianas da ordo quanto à fé que justifica como um dom salutis, que estão muito mais distantes do próprio Deus, a teoria de expiação da teologia da Reforma do que esteve sustentada por Anselmo se tornou culo Concílio de Trento.20 “Onde a cruz turalmente associada com uma justiça estava, agora há um vácuo.”21 Hoje, o própria que era tanto moral quanto evangelicalismo parece mais com Erasmo do que com Lutero. 15 George Lindbeck. “Justification and Atonement: An Ecumenical Trajectory”, em Joseph A. Burgess e Marc Kolden, eds., By Faith Alone: Essays on Justification in Honor of Gerhard O. Forde (Grand Rapids: Eerdmans, 2004), p. 205. 16 Lindbeck, pp. 205, 206. 40 | Revista f é pa r a h o je
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Lindbeck, pp. 207. Lindbeck, pp. 207. Lindbeck, pp. 208. Lindbeck, pp. 209. Lindbeck, pp. 211.
A Justificação Promove a Paixão pela Renovação Genuína
santificação, bem como o vínculo entre a fé e a santificação.22
Hoje, um número cada vez maior de teólogos e líderes evangélicos repetem a acusação de Pelágio contra Agostinho, de Roma contra os reformadores e do liberalismo protestante contra o evangelicalismo, ou seja, nas palavras de Albert Schweitzer: “Não há lugar para ética na doutrina da justificação sustentada pela Reforma”. Seguindo teólogos evangélicos como Stanley Grenz, Brian McLaren e outros líderes da “Igreja Emergente” desafiam explicitamente sola fide como um obstáculo ao principal ponto do cristianismo: seguir o exemplo de Jesus. Embora o viver autêntico traga valor ao evangelho, o seguir o exemplo de Jesus está se tornando cada vez mais o evangelho. A observação de G. C. Berkouwer ainda é relevante em nossos próprios dias, quando ele escreveu que “o problema da renovação de vida é atrair a atenção dos moralistas”.
Paulo relaciona tudo, inclusive a santificação, os problemas de ética e harmonia eclesiástica, à cruz e à ressurreição de Cristo. Outro dia, um pastor me contou que alguns de seus colegas expressaram a preocupação de que pregar muito a graça, especialmente a justificação, era perigoso – se não fosse logo acompanhada por advertências à obediência. Conhecendo bem este pastor, fiquei surpreso com o fato de que estivessem apontando para ele esta preocupação. Afinal de contas, ele é correto em sua teologia. Afirma e prega o terceiro uso da lei (como um guia para a obediência cristã). Às vezes, esquecemos que Paulo foi acusado de ser antinomiano – ou seja, de convidar as pessoas a pecar para que a graça fosse mais abundante. Mas, em vez de evitar a doutrina da justificação (Rm 3-5) que ele sabia haveria de provocar essa questão de novo, o apóstolo explicou como o evangelho é a resposta para a tirania do pecado, bem como da sua condenação (Rm 6). O evangelho da justificação gratuita é a fonte de santificação genuína e não seu inimigo. No entanto, isso é contrário ao que o nosso senso comum sugeriria. É a lógica do evangelho e não a lógica de justiça de obras. Como uma cultura nativa, o evangelicalismo americano é ativista. Somos acostumados a ser produtores e
Entre inúmeras forças caóticas e desmoralizantes, está ressoando, como pela última vez, o clamor por ajuda e ensino, pela reorganização de um mundo desordenado. A terapia prescrita talvez varie, a chamada por rearmamento moral e espiritual é uniformemente insistente... Estas são as questões que temos de responder. Pois, implícita nelas, está a intenção de destruir a conexão entre a justificação e a
22 G. C. Berkouwer, Studies in Dogmatics: Faith and Sanctification (Grand Rapids: Eerdmans, 1952), pp. 11-12.
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consumidores, mas não recebedores – pelo menos, pecadores desamparados e ímpios que têm de reconhecer que sua salvação é um dom gratuito, independente de sua decisão e esforço (Rm 9.16). Obcecados com o que acontece conosco, a espiritualidade evangélica tem por muito tempo – pelo menos na prática – obscurecido as boas novas daquilo que aconteceu de uma vez por todas fora de nós. A justificação pode ser relevante para evitar a ira de Deus (pelo menos onde ela ainda é afirmada), mas ela é realmente tão importante para a vida cristã? Não seria mais proveitoso e prático aprender passos que conduzem à vitória sobre o pecado em nossa vida e nossa cultura? No livro Revisioning Evangelical Theology (Revisando a Teologia Evangélica), Stanley Grenz argumenta que o evangelicalismo é mais uma “espiritualidade” do que uma “teologia”, mais interessado na piedade individual do que em credos, confissões e liturgias.23 A experiência dá origem a – na verdade, ele diz, “determina” – doutrina, e não vice-versa.24 O principal ponto da Bíblia é como as histórias podem ser usadas no viver diário – por isso, a ênfase em devoções diárias. “Embora alguns evangélicos pertençam a tradições eclesiásticas que entendem, em algum sentido, a igreja como um despenseiro de graça, em geral vemos nossas con23 Stanley Grenz, Revisioning Evangelical Theology: A Fresh Agenda for the 21st Century (Downers Grove, Ill.: InterVarsity Press, 1993), pp. 17, 31 e em todo o volume. 24 Grenz, pp. 30, 34. 42 | Revista f é pa r a h o je
gregações principalmente como uma comunhão crentes.”25 Compartilhamos nossas jornadas (nosso “testemunho”) de transformação pessoal.26 Portanto, “uma mudança fundamental de autoconsciência pode estar em andamento” no evangelicalismo, “uma mudança de identidade baseada em credo para uma identidade baseada em espiritualidade” que é mais semelhante ao misticismo medieval do que à ortodoxia protestante.27 Consequentemente, a espiritualidade é interior e quietista”,28 preocupada com combater “a natureza inferior e o mundo”,29 por meio de “um compromisso pessoal que se torna o foco crucial das afeições do crente”.30 Portanto, a origem da fé não é atribuída a um evangelho externo, mas surge de uma experiência interior. “Visto que a espiritualidade é gerada a partir do interior do indivíduo, motivação interior é crucial” – mais importante, de fato, do que “grandes afirmações teológicas”.31 A vida espiritual é, antes de tudo, a imitação de Cristo... Em geral, evitamos rituais religiosos. Rejeitamos a aderência servil a ritos, mas o fazer o que Jesus faria é o nosso conceito de verdadeiro discipulado. Consequentemente, a maioria dos evangélicos não aceitam o sacramentalismo de muitas igre25 26 27 28 29 30 31
Grenz, p. 32. Grenz, p. 33. Grenz, pp. 38, 41. Grenz, pp. 41-42. Grenz, p. 44. Grenz, p. 45. Grenz, p. 46.
jas tradicionais, nem se unem aos quacres que eliminam completamente os sacramentos. Praticamos o batismo e a Ceia do Senhor, mas entendemos o significado destes ritos de maneira prudente.32 Ele diz que estes ritos são praticados como estímulos para a experiência pessoal e não por obediência à ordem divina.33 Prossiga no dever; coloque sua vida em ordem, para que, pela uso dos meios de ajuda, você cresça e veja se não amadurece espiritualmente”, nós exortamos. De fato, se um crente chega ao ponto em que sente que a estagnação se estabeleceu, o conselho evangélico é redobrar os seus esforços no dever de praticar as disciplinas. “Examine a si mesmo”, o conselheiro espiritual evangélico admoesta.34 Vamos à igreja, ele diz, mas não para recebermos “os meios de graça”, e sim para que tenhamos comunhão, recebamos “instrução e encorajamento”.35 A ênfase no crente individual é evidente, ele diz, na expectativa de “achar um ministério” na comunhão local.36 Tudo isso é contrário a uma ênfase em doutrina e, Grenz acrescenta, uma ênfase em “um princípio material 32 33 34 35 36
Grenz, p. 48. Grenz, p. 48. Grenz, p. 52. Grenz, p. 54. Grenz, p. 55.
e formal” – em outras palavras, solo Christo e solo Scriptura.37 Quando a transformação pessoal e social se torna o principal ponto de fé e prática, não devemos admirar que a linha distintiva entre catolicismo romano e evangelicalismo se obscurece. Para Roma, é claro, a justificação é simplesmente santificação: a transformação moral do crente. A graça é oferecida, mas temos de cooperar com ela, se temos finalmente de ser aceitos e renovados. De fato, com sua história mais longa e mais sofisticada de influência cultural, a superioridade de Roma na arena de transformação do mundo é aparente. De fato, uma vez que nosso interesse em melhorarmos a nós mesmos e ao mundo tenha tornado irrelevante (ou mesmo problemática) a justificação somente pela fé, por que os mórmons e os evangélicos devem continuar divididos? Não mais divididos por doutrina, a “cultura de protestantismo” da América ameaça submergir totalmente o evangelicalismo, como o fez nas principais denominações ecumênicas. As únicas denominações que ficarão com alguma identidade serão, talvez, os partidos Republicano e Democrata. De acordo com o que já consideramos, a justificação não é o primeiro estágio da vida cristã, e sim a fonte permanente de santificação e boas obras. Lutero resume: “‘Porque você crê em mim’, diz Deus, ‘e sua fé se apropria de Cristo, que eu lhe dei gratuitamente como Justificador e Salvador, portanto, seja justo’. Assim, Deus aceita você e o 37 Grenz, p. 62.
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considera justo tão somente por causa de Cristo, em quem você crê”.38 Não importando qualquer outra boa nova (concernente ao novo nascimento, à vitória de Cristo sobre a tirania do pecado e à promessa de nos renovar durante toda a nossa vida, à ressurreição de nosso corpo e ao livramento da presença do pecado) ou quaisquer exortações úteis que possamos oferecer, o anúncio que Lutero resume nestas palavras cria sozinho e sustenta a fé que não somente justifica, mas também santifica. As boas obras podem ser realizadas agora livremente para Deus e o nosso próximo sem qualquer temor de punição ou de agonia quanto aos motivos confusos de cada ato. Por causa da justificação em Cristo, até as nossas boas obras podem ser “salvas”, para aprimorar não a parte de Deus, nem mesmo a nossa, e sim a do nosso próximo. Como Calvino explica, Mas se, libertos desta exigência severa da lei ou, melhor, de todo o rigor da lei, eles ouvem a si mesmos sendo chamados com cordialidade paternal por Deus, eles responderão com alegria e grande ardor e seguirão esta orientação. Resumindo: aqueles que estão presos ao jugo da lei são, igualmente, servos que recebem certas tarefas de seus senhores, cada dia. Estes servos pensam que não fizeram nada e não ousam comparecer diante de seus senhores, se 38 Martin Luther, Lectures on Galatians 1535, vol. 26, Luther’s Works, eds. Jaroslav Pelikan e Walter A. Hansen (St. Louis: Concordia Publishing House, 1963), p. 132. 44 | Revista f é pa r a h o je
não cumprirem a medida exata de seus deveres. Mas filhos, que são tratados mais generosa e brandamente por seus pais, não hesitam em oferecer-lhes obras incompletas, feitas pela metade e até deficientes, crendo que sua obediência e prontidão de mente será aceita por seus pais, embora não tenham realizado o que seus pais tencionavam. Devemos ser esse tipo de filho, crendo firmemente que nossos serviços serão aprovados por nosso Pai muitíssimo misericordioso, ainda que esses serviços sejam insignificantes, rudes e imperfeitos... E precisamos desta segurança em grau profundo, pois, sem ela, tentaremos fazer tudo em vão.39 “Por causa da justificação”, acrescenta Ames, “a corrupção das boas obras não impede que elas sejam aceitas e recompensadas por Deus”.40 Este ponto de vista não somente fundamenta as boas obras na fé, mas também liberta os crentes para amarem e servirem seu próximo sem o motivo de obterem alguma coisa ou o temor de perderem o favor divino. Ele nos libera para um ativismo que abrange o mundo e é profundamente consciente de que, embora nosso amor e serviço nada contribuam para Deus e sua avaliação de nossa pessoa, eles são, apesar de realizados com fragilidade, 39 John Calvin, Institutes of Christian Religion, 3.19.5. 40 William Ames, Marrow of Theology (Grand Rapids: Baker Academic, 1997), p. 171.
indiferença e imperfeição, meios pelos quais Deus cuida da criação. Mesmo com a terminologia medieval, a teologia reformada pode manter o seguinte:
É o começo que tem sua base unicamente na justificação pela fé... Não é verdade que a santificação apenas sucede a justificação. O Dia do Senhor, pergunta 31, que discute as chaves do reino, ensina que o reino é aberto e fechado pela proA renovação não é um mero supleclamação “aos crentes, um e todos, mento, um acréscimo, à salvação de que, quando eles recebem a prodado na justificação. O âmago da messa do evangelho por meio da fé santificação é a vida que se desenverdadeira, todos os seus pecados volve da justificação. Não há conlhes são realmente perdoados”. traste entre a justificação como o Este “quando” ilustra a relevância ato de Deus e a santificação como permanente da o ato do hocorrelação entre a mem. O fato fé e a justificação... de que Cristo é Nossa cultura terapêutica de O propósito da a nossa santifisentir-nos cada vez melhor é pregação dos Dez cação não é exMandamentos clusivo, e sim contrária à pregação da cruz. é que os crentes inclusivo, de possam “tornaruma fé que se se mais fervorosos apega tão soem buscar a remissão dos pecados e mente a ele em toda a vida. A fé é o a justiça em Cristo” [Catecismo de eixo sobre o qual tudo gira. Embora Heidelberg, Pergunta 115]... Por a própria fé não crie a santificação, conseguinte, nunca há progresso ela nos preserva de autossantificano caminho da salvação onde a jusção e de moralismo.41 tificação é tirada de vista.42 A questão real, disse Berkouwer, é se a justificação é suficiente para “A santificação genuína – seja repefundamentar toda as bênçãos comutido – permanece firme ou decai com nicadas em nossa união com Cristo. esta orientação permanente direcio“O mesmo catecismo [Heidelberg, Dia nada para a justificação e a remissão do Senhor, pergunta 24] que nos nega dos pecados.”43 Quando falamos sobre até uma justiça parcial de nós mesmos santificação, não deixamos a justificamenciona o propósito solene com o ção para trás. “Não estamos aqui preoqual os crentes começam a viver” de cupados com a transição da teoria para acordo com todos os mandamentos. a prática; como se devêssemos proceder 41 Berkouwer, p. 93.
42 Berkouwer, p. 77. 43 Berkouwer, p. 78. Revista fé pa r a h oje | 45
de uma fé na justificação para as realidades da santificação, porque podemos, da mesma maneira, falar sobre a realidade da justificação e da nossa fé na santificação.”44 Paulo ensina que os crentes são “santificados em Cristo Jesus” (1 Co 1.2, 30; 6.11; 6.11; 1 Ts 5.23; cf. At 20.32; 26.18). Como Bavinck o diz: “Muitos reconhecem, de fato, que somos justificados pela justiça de Cristo, mas parecem pensar que – pelo menos, agem como se pensassem – têm de ser santificados por uma santidade que eles mesmos adquiriram”.45 “O apóstolo Paulo”, Berkouwer escreve, “prega santidade com repetido fervor, mas de maneira nenhuma ele compromete sua declaração inequívoca: ‘Porque decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado’ (1 Co 2.2)”. Nem por um momento ele afrontaria as implicações dessa confissão. Por conseguinte, em cada exortação ele devia estar relacionando seu ensino à cruz de Cristo. Deste centro, todos os raios brilham em direção ao exterior – atingindo a vida de cidades e vilas, de homens e mulheres, de judeus e gentios; atingindo famílias, jovens e idosos, conflitos e desafetos, imoralidade e bebedeira. Se queremos manter em perspectiva este centro, bem como os raios mais suaves e mais intensos que fluem dele, temos de ser plenamen44 Berkouwer, p. 20. 45 Citado em Berkouwer, p. 22. 46 | Revista f é pa r a h o je
te cientes de que, em mudarmos da justificação para a santificação, não estamos nos retirando da esfera da fé. Não estamos aqui preocupados com a transição da teoria para a prática; como se devêssemos proceder de uma fé na justificação para as realidades da santificação, porque podemos, da mesma maneira, falar sobre a realidade da justificação e da nossa fé na santificação.46 Isso significa que Berkouwer achava “incompreensível” que o ponto de vista da Reforma tenha sido criticado como algo que não exercia qualquer influência na santificação ou na vida de santidade. Ela tem tudo a ver com a santificação, porque ela leva tudo de volta à fé em Cristo.47 Portanto, a santificação não é um projeto humano que suplementa o projeto divino de justificação, nem um processo de negociar as relações causais entre o livre-arbítrio e a graça infundida; é, antes, o impacto da Palavra justificadora de Deus em cada aspecto da vida humana. É tempo de colocarmos os bois na frente do carro novamente, para que, primeiramente, a igreja seja, outra vez, um lugar onde a obra salvadora de Deus será conhecida e experimentada e, também, para que aquela genuína renovação pessoal e coletiva possa surgir a partir da contínua maravilha do evangelho: a justificação gratuita de Deus para os ímpios – até mesmos cristãos 46 Berkouwer, p. 20. 47 Berkouwer, p. 20.
Vivendo “Já” com Vistas ao “Ainda Não” Heber Carlos de Campos Júnior
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Viver à luz da redenção envolve a noção de uma redenção tão abrangente que afeta pessoas não só em sua espiritualidade, mas em todas as áreas de sua vida, inclusive o seu habitat".
O cenário brasileiro tem experimentado um influxo impressionante de livros que abordam o tema da cosmovisão. Simplificando um assunto bastante complexo, cosmovisão diz respeito a pressuposições que todo o ser humano possui (esteja ele consciente ou não) que residem em nosso mais interior (coração) formando assim uma orientação de vida, um comprometimento com verdades pelas quais você vive e morre. Trata-se de um conjunto de motivações, crenças, certezas, valores e ideais que formam o instrumento interpretativo da realidade, além de ser a base de nossas ações e decisões. Devido à tradição reformada refletir sobre esse assunto há mais tempo do 48 | Revista f é pa r a h o je
que qualquer outro segmento da cristandade (com nomes como James Orr, Abraham Kuyper, Herman Dooyeweerd, Francis Schaeffer, etc.), os autores modernos tratam de certos marcos históricos do cristianismo como fundamentos da cosmovisão reformada: criação, queda e redenção. Esse tripé tem sido uma das características mais comuns entre os livros que tratam de cosmovisão. Não que outros cristãos não afirmem tais acontecimentos na história da humanidade, mas são os reformados que costumam enfatizar com maior frequência a importância de considerar a praticidade desses eventos para o nosso dia a dia. Esses pilares históricos não devem ser vistos como meros conceitos
ou categorias intelectuais. Não se tratam de proposições atemporais. A cosmovisão é uma história, a história da humanidade, a nossa história. Esse elemento existencial não pode ser esquecido no estudo de cosmovisões. Sendo assim, é quando encarnamos as verdades dessa história, e vivemos conscientes dessa história, que nossa cosmovisão se coaduna com a revelação bíblica. Viver à luz da criação significa, por exemplo, relacionar-se com as pessoas mais complicadas à luz do fato de ainda serem imagem e semelhança de Deus. Viver à luz da queda implica em não nutrir sonhos utópicos resultantes do esforço humano para construir uma sociedade melhor. Viver à luz da redenção envolve a noção de uma redenção tão abrangente que afeta pessoas não só em sua espiritualidade, mas em todas as áreas de sua vida, inclusive o seu habitat. Na área da redenção é que calvinistas têm o perigo de comunicar uma mensagem indevida. Se por um lado, atacam corretamente o pessimismo do mundo evangélico em não integrar a fé às várias áreas de nossa atuação secular, por outro lado, correm o risco de criarem uma falsa expectativa de nossa atuação no reino de Deus. Desde a célebre obra de H. Richard Niebuhr, Cristo e Cultura, os calvinistas têm sido descritos como possuindo uma visão transformacionista da cultura. De acordo com Niebuhr, os calvinistas não são essencialmente contra a cultura, nem a recebem indiscriminadamente, não colocam a fé em um
patamar acima da vida comum, nem mantém a fé e a vida comum em constante tensão. Eles se colocam como agentes transformadores da cultura. Autores modernos têm perpetuado essa leitura de Niebuhr e falado da importância de uma fé holítisca no engajamento cultural. Os proponentes dessa visão falam de ir além de envolvimento cultural.1 Os cristãos devem trazer os efeitos da obra redentora de Cristo para as várias esferas da vida. Precisamos de cautela para não sermos nem pessimistas demais, nem otimistas demais. Aos cristãos cabe o redirecionamento da cultura numa direção redentiva que a restaure, o máximo possível, dos efeitos do pecado. Isto não significa que nossa postura é de “transformação”, uma palavra otimista demais. Nossa atitude é de Reforma, participando dos movimentos de Deus em restaurar certas áreas da sociedade inclinada ao mal. Podemos ser instrumentos de Deus para frear a derrocada moral e espiritual como foram os reis de Judá que operaram Reforma após períodos de grande incredulidade e vileza (Ex: Asa, Ezequias, Josias). A Reforma Protestante do século 16, o Grande Despertamento na América colonial e Inglaterra do século 18, fo-
1 “De vez em quando os cristãos dizem que nosso alvo principal é mudar o indivíduo, não o sistema. O dualismo persiste: de algum modo nossa vida espiritual pode ser separada de nossa vida cultural, e isso significa que podemos trabalhar no sistema aceito.” Walsh e Middleton, A Visão Transformadora, p. 89. Essa forma de colocar o problema demonstra o espírito revolucionário de subverter o sistema, o qual é próprio dos autores. Revista fé pa r a h oje | 49
ram movimentos em que Deus freou a decadência de um povo e permitiu que certas áreas da sociedade fossem reformuladas segundo o padrão bíblico. A linguagem de Reforma impede que sejamos pessimistas quanto ao que Deus pode fazer neste mundo antes da segunda vinda de Jesus. Todavia, para que não sejamos otimistas demais, faz-se necessário acrescentar ao tripé reformado um quarto pilar: o da consumação. Tal
vida (como é o anseio de muitos seres humanos). David VanDrunnen faz uma ressalva à visão transformacionista de representantes modernos como Henry R. Van Til (O Conceito Calvinista de Cultura), Cornelius Plantinga (O Crente no Mundo de Deus) e Albert M. Wolters (A Criação Restaurada). Ele chama atenção para um elemento preocupante da escatologia dos transformacionistas:
Cristo não irá só completar o que começou. Ele irá mudar tudo radicalmente. inclusão ajuda-nos a separar o “já” e o “ainda-não” da história da redenção. Isto é, a consumação é o completar da redenção, mas não é para esta vida e não é operada pela igreja. Se, por um lado, somos e devemos ser “sal da terra” (Mt 5.13) no sentido de contribuir para o retardamento da putrefação de nossa sociedade – esse aspecto está de acordo com a visão transformacionista –, por outro lado, a parábola do joio (Mt 13.24-30, 36-43) é uma demonstração de que a construção de uma sociedade com a consequente retirada do mal no mundo será uma realização de Deus por intermédio dos seus anjos (isto é, sem a participação do ser humano) e não ocorrerá nesta 50 | Revista f é pa r a h o je
“Os autores transformacionistas tendem a colocar muita ênfase no caráter já manifesto do reino escatológico. Embora eles obviamente reconheçam que Cristo está voltando e que somente então é que todas as coisas serão perfeitamente restauradas, é curioso que a sua comum divisão tripartida da história em criação, queda, e redenção não inclua a quarta categoria de consumação. Lendo nas entrelinhas, eu sugiro que o relacionamento muito solto entre a transformação da cultura agora e a transformação final a ser realizada no retorno de Cristo contribua substancialmente para a ausência dessa quarta ca-
tegoria... [Para eles] A obra de trazer a realização perfeita do reino escatológico na presente terra começa já nos esforços culturais do cristão aqui e agora. Consumação parece ser o clímax de um processo de redenção que já está a caminho ao invés de um evento único e radical na história.”2 VanDrunnen acertadamente nos lembra do aspecto radical e único da consumação. Cristo não irá só completar o que começou. Ele irá mudar tudo radicalmente. Após o amor esfriar, a apostasia se alastrar, e este mundo ser permeado por um governo maligno, Deus irá eliminar todo o mal com fogo (2 Pe 3.10-13) e para o fogo (Ap 21.10) a fim de criar Novo Céu e Nova Terra. A ênfase no envolvimento com a cultura, por parte dos transformacionistas, é positiva. Afinal, não fomos remidos para vivermos em um gueto cristão, nos relacionando somente com crentes, realizando tarefas eclesiásticas, criando uma cultura separatista. Porém, nós não fomos chamados para remir a cultura que, de acordo com a Escritura, tende a piorar devido à apostasia. Somos instrumentos para remir pessoas, isso sim. A mensagem de Paulo no Areópago não transformou a cultura de Atenas, mas alcançou pessoas. Só Deus, e isto na consumação, é que promoverá a ex2 David Vandrunnen. “The Two Kindgoms: A Reassessment of the Transformationist Calvin”, Calvin Theological Journal 40, no. 2 (nov 2005), p. 252.
tinção das culturas pecaminosas e a santificação dos costumes e do conhecimento humano. Só Deus conseguirá plena redenção da cultura. Kevin DeYoung, avaliando a perspectiva missiológica da igreja moderna, afirma que o que “está faltando na maioria das conversas sobre o reino é alguma doutrina de conversão ou regeneração. O reino de Deus não é essencialmente uma nova ordem da sociedade. Isso era o que pensavam os judeus nos dias de Jesus... Creio que entendo o que as pessoas querem dizer quando falam sobre redimir a cultura ou ser parceiras de Deus na redenção do mundo, mas o fato é que precisamos encontrar outra palavra. A redenção já foi realizada na cruz. Não somos parceiros na redenção de nada. Somos chamados a servir, dar testemunho, proclamar, amar, fazer o bem a todos e embelezar o evangelho com boas obras, mas não somos parceiros de Deus na obra da redenção. De modo similar, não há um texto nas Escrituras que fale que os cristãos constroem o reino. Ao falar sobre o reino, o Novo Testamento usa verbos como entrar, buscar, anunciar, ver, receber, olhar e herdar... no Novo Testamento nunca somos aqueles que trazem o reino.”3 3 Kevin DeYoung e Tedd Kluck, Por que amamos a igreja (São Paulo: Mundo Cristão, 2010), p. 50, 51. Revista fé pa r a h oje | 51
Essa observação é muito perspicaz. O problema fundamental dessa tendência, de acordo com DeYoung, é que eles “estão repletos de ‘já’ e carentes de ‘ainda não’ em sua escatologia.”4 Creio que o equilíbrio foi estabelecido pelo nosso Salvador nas parábolas do reino em Mateus 13. Se por um lado a parábola do joio nos apresenta uma redenção completada pelo Salvador sem a nossa participação, por outro lado temos as parábolas do grão de mostarda e do fermento (Mt 4 DeYoung e Kluck, Por que amamos a igreja, p. 40.
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13.31-33) que falam do crescimento e da influência dos princípios do reino na sociedade. Não podemos ser extremados em nosso entendimento escatológico. Toda escatologia que enfatiza só o que Deus já fez, e está fazendo, produz uma cosmovisão ufanista demais. Toda escatologia que destaca o que Deus irá fazer na segunda vinda de seu Filho, sem levar em conta a redenção que se iniciou na primeira vinda, gera uma visão pessimista do crente no mundo. Precisamos de equilíbrio em nossa cosmovisão. Precisamos viver o “já” com vistas ao “ainda não”
Milênio – Breves Considerações Hermenêuticas Gilson Santos
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Para o estudo proveitoso das Escrituras necessita-se, ao menos da prudência de saber iniciar a leitura pelo mais simples e prosseguir para o mais difícil".
“E vi descer do céu um anjo, que tinha a chave do abismo, e uma grande cadeia na sua mão. Ele prendeu o dragão, a antiga serpente, que é o Diabo e Satanás, e o amarrou por mil anos. E lançou-o no abismo, e ali o encerrou, e pôs selo sobre ele, para que não mais engane nações, até que os mil anos se acabem. E depois importa que seja solto por um pouco de tempo. E vi tronos; e assentaram-se sobre eles, e foi-lhes dado o poder de julgar; e vi as almas daqueles que foram degolados pelo testemunho de Jesus, e pela palavra de Deus, e que não adoraram a besta, nem a sua imagem, e não receberam o sinal em suas testas nem em suas mãos; e viveram, e reinaram com Cristo durante mil anos. 54 | Revista f é pa r a h o je
Mas os outros mortos não reviveram, até que os mil anos se acabaram. Esta é a primeira ressurreição. Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre estes não tem poder a segunda morte; mas serão sacerdotes de Deus e de Cristo, e reinarão com ele mil anos. E, acabando-se os mil anos, Satanás será solto da sua prisão, e sairá a enganar as nações que estão sobre os quatro cantos da terra, Gogue e Magogue, cujo número é como a areia do mar, para as ajuntar em batalha. E subiram sobre a largura da terra, e cercaram o arraial dos santos e a cidade amada; e desceu fogo, do céu, e os devorou. E o diabo, que os enganava, foi lançado no lago de fogo e enxofre,
onde está a besta e o falso profeta; e de dia e de noite serão atormentados para todo o sempre”. (Ap 20.1-10) Este é o trecho mais debatido do Apocalipse de João. É, de fato, um dos mais disputados de toda a Bíblia. A palavra millennium vem do latim mille e annus que significa mil anos. O termo grego usado na Bíblia é chiliasm (quiliasmo). Agostinho, e muitos outros ao longo da história da Igreja, têm entendido que este “milênio” é de natureza espiritual, tendo relação com o intervalo entre a primeira vinda de Cristo até o fim do mundo, quando Ele virá outra vez. Todavia, muitos têm rejeitado esta interpretação, entendendo estas palavras como descrevendo um milênio terreno, literal, físico e visível. Estes, por esta razão, encontram nesta passagem uma prova para um reinado milenar de Cristo na terra, após sua segunda vinda. Sugerimos a todo aquele que se propuser a examinar esta passagem mais profundamente que considere alguns princípios fundamentais para uma boa interpretação.
1. A Bíblia tem autoridade Alguém já disse que o cristianismo é peculiarmente religião de um só livro. Desconsidere a Bíblia, e você terá desconsiderado o meio pelo qual Deus decidiu apresentar sua revelação ao homem através de sucessivas eras. Segue-se, pois, que o conhecimento da Bíblia é requisito fundamental para o
conhecimento de Deus. O nosso anseio e obrigação, como cristãos, deve ser o de encaixar-se no propósito pleno de Deus para nós. "Ele não ficará satisfeito com nada menos do que isto; nós também não devemos nos satisfazer com algo que esteja aquém disto. Todos nós que dizemos seguir a Cristo devemos buscar uma compreensão mais clara do propósito de Deus para o seu povo”.1 Este propósito de Deus nós devemos descobrir na Bíblia. A vontade de Deus para as pessoas está na Palavra dele. Nela devemos tomar conhecimento da vontade divina, e não preferencialmente da experiência particular dos indivíduos ou grupos, por mais reais e válidas que estas experiências possam ser. Um pilar que baseou a Reforma foi Sola Scriptura. O cristão fiel considera a Bíblia como o seu supremo tribunal de recursos, sua única regra de fé e prática.
2. A verdade é objetiva Vivemos em um tempo quando são usados critérios completamente subjetivos para se determinar o que é autêntico. A Escritura tem somente um sentido. Em princípio, nenhuma afirmação da Escritura deve ser considerada como tendo mais de um sentido. Os cristãos evangélicos estão convictos de que Deus falou histórica e 1 John R. W. Stott. Batismo e Plenitude do Espírito Santo. 2a. edição, Edições Vida Nova, 1986, SP, p. 12. Revista fé pa r a h oje | 55
objetivamente, que sua Palavra culminou em Cristo e no testemunho apostólico a respeito dele, e que a Escritura é exatamente a Palavra de Deus escrita para nosso aprendizado. Portanto, todas as nossas tradições, todas as nossas opiniões e todas as nossas experiências precisam ser submetidas ao exame independente e objetivo da verdade bíblica. Permaneça fiel às suas convicções, mas assegure-se de que são verdadeiras. No fim, quem vai triunfar é a verdade. A verdade é sempre forte, não importa quão fraca pareça, e a falsidade é sempre fraca, não importa quão forte pareça. As interpretações de quem quer que seja têm autoridade divina somente enquanto estão em harmonia com os ensinos da Bíblia como um todo. Cada indivíduo, conquanto deva reconhecer o valor da interpretação partilhada comunitariamente, tem também o direito de julgá-las por si mesmo. Sacrifiquem-se, pois, as preocupações, as opiniões preconcebidas e ideias favoritas e empreenda-se o estudo no espírito de dócil discípulo e tome-se por Mestre a Cristo. Sempre deve ter-se presente que a obscuridade e aparente contradição que se possam encontrar não residem no Mestre, nem em seu infalível livro de texto, mas no pouco alcance do discípulo.2 2 E. Lund. Hermenêutica: Regras de Interpretação das Sagradas Escrituras. 2 a. edição, Editora Vida, 1981, Miami (EUA), 56 | Revista f é pa r a h o je
3. A Bíblia é seu intérprete: a E scritura explica melhor a Escritura Este é um princípio fundamental para a correta interpretação bíblica. A Escritura explicada pela Escritura, ou seja, a Bíblia é sua própria intérprete. O perigo de um falso método é mais real do que a particular questão relacionada ao milênio. É muito perigoso isolar um texto ou uma ideia e construir um sistema em torno dessa ideia ou desse texto. Agir assim é tomar um atalho perigoso. Por outro lado, a melhor maneira de se lidar com textos mais difíceis é comparar a Escritura com a Escritura. Enfatizamos que este princípio não é só conveniente e muito factível, mas absolutamente necessário e indispensável. A história nos adverte que muitos erros e heresias resultaram de uma interpretação particular e atomizada das Escrituras. Erros funestos teriam sido evitados se houvesse a sensatez de permitir à Bíblia que se explicasse a si mesma. Por exemplo: Sob a luz deste princípio, é bom examinar a expressão “mil anos” que aparece nos primeiros versos de Apocalipse capítulo 20. Ela aparece apenas nove vezes na Bíblia; destas nove ocorrências, seis se encontram neste capítulo 20 de Apocalipse. Nunca aparece na Bíblia a expressão mil semanas, nem mil meses. O numeral mil ou seus múltiplos aparecem num sentido figurado, denotando um grande espaço de tempo. (Cf. Sl 90.4; Ec 6.6; 2 Pe 3.8; cf. também Sl 84.10; Dt 7.9; 1 Cr 16.15; Sl 105.8). pp. 14,15.
Quando se procede a uma análise das ocorrências do numeral mil em muitos outros textos da Bíblia, mesmo quando não se refere a tempo, constata-se que a ideia não é definir ou especificar uma quantidade rigorosamente delimitada, mas transmitir enfaticamente a ideia de um grande número.
no tempo em que estas visões foram vistas e registradas.3
O Apocalipse culmina os muitos pensamentos e ideias do Antigo Testamento. Wescott e Hort “apresentam aproximadamente quatrocentas referências ou alusões ao Antigo Testamento, e um estudo intensivo de qualquer capítulo do Apocalipse logo 4. O simbolismo do Apocalipse revelará que esta lista de quatrocentas deve ser interpretado à luz de seus referências ainda está incompleta.” 4 antecedentes bíblicos É sobre a base das Escrituras Sagradas que devemos interpretar o William Hendriksen propôs assim Apocalipse. Este livro é, no Novo este princípio: Testamento, o mais difícil de ser interpretado, basicamente por causa do uso Devemos interpretar este livro à luz elaborado e extensivo de simbolismo. de seus antecedentes (....). O ApoO último livro da Bíblia integra um gêcalipse está firmemente arraigado nero de literatura neste subsolo. bíblica que faz uso Referimo-nos de símbolos, utiliàs Sagradas Alguém já disse que o zado para consoEscrituras! A lação aos ouvintes mente do procristianismo é peculiarmente imediatos e tamfeta estava, por religião de um só livro. bém posteriores, assim dizer, e nutrir-lhes esimersa nestas perança escatoEscrituras. Ele lógica. Um bom as conhecia princípio hermenêutico é interpretar a fundo. Ele as vivia. Elas estavam literalmente aquilo que é literal, e simplenificadas no âmago de seu corabolicamente aquilo que é simbólico. Se ção. Sustentamos, pois, que o Apopor um lado o intérprete das Escritucalipse tem suas raízes não somente ras deverá acautelar-se da tendência no solo superficial de eventos contemporâneos, mas também, e espe3 William Hendriksen. Mais Que Vencedores; cialmente, no subsolo das Sagradas interpretação do livro de Apocalipse. São Paulo, Casa Ed. Presbiteriana, 1987, p. 62. Escrituras (...). Devemos explicar 4 B. F. Westcott & F. J. A. Hort - The este livro à luz (...) também de toda a New Testament in the Original Greek (O herança religiosa, considerada com Novo Testamento no Grego Original) apud reverência pelos crentes que viviam Hendriksen, Op. cit. pp. 64-65. Revista fé pa r a h oje | 57
alegorizante da escola alexandrina (influenciada pela tradição platônica), por outro, e especificamente no que diz respeito às interpretações quiliastas, o Novo Testamento não favorece a literalismos extravagantes e absurdos.
5. É necessário considerar o livro de Apocalipse no seu todo
tentemente simbólico de muito do seu conteúdo.
6. Na análise do contexto, deve-se
buscar o tema central e distinguir ,
no simbolismo , entre o principal e o detalhe
Ao lermos o texto devemos nos perguntar: Qual é o significado deste símbolo como um todo? Que lição O objetivo ou desígnio de um livro central ensina? Ao encararmos os símou passagem se adquire, sobretudo, bolos do Apocalipse não devemos enlendo-o e estudando-o com atenção fatizar com demasia os detalhes. “Não e repetidas vezes, tendo em conta em devemos dissecar o símbolo e perder a que ocasião e a que pessoas originalsua unidade.”5 Os detalhes pertencem mente foi escrito. Isto oferece auxílio admirável para a ao quadro todo. explicação de ponDeve-se perguntos obscuros, para tar primeiro: O Este é um princípio a aclaração de texque significa o fundamental para a correta tos que parecem quadro como um interpretação bíblica. A Escritura contraditórios e todo? Os detalhes explicada pela Escritura. para conseguir que pertencem um conhecimento ao quadro devem mais profundo de ser interpretados passagens em si claras. em harmonia com o seu pensamento O livro de Apocalipse é essencialcentral. Formulamos duas perguntas: mente simbólico e está repleto de núQual é o quadro inteiro? E: Qual é a meros simbólicos. E, naturalmente, sua ideia predominante? nenhuma análise deve prescindir de Como regra, os detalhes pertenconsiderá-los. Por exemplo, em todo cem ao quadro, ao símbolo. Não deo livro o vocábulo mil aparece vinte e vemos tentar dar uma interpretação sete vezes, incluindo as seis ocorrên“mais profunda” dos detalhes, senão cias em Apocalipse 20, o texto em pauaté onde a interpretação deles seja neta. É recomendável analisar as demais cessária para que se descubra o pleno vinte e uma ocorrências. Nos demais significado da idéia central do símbotextos onde o vocábulo mil (ou múltilo (...). O que queremos é a impressão plos) aparece no livro de Apocalipse, as total, a ideia central de cada símbolo tentativas de uma interpretação literal completo. Como nas parábolas, tamsoçobram no rochedo do caráter pa5 Ibid. p. 55 58 | Revista f é pa r a h o je
bém aqui: o contexto nos ajuda a entender o significado do quadro. Um estudo criterioso de todos os detalhes é também necessário para poder determinar qual é o pensamento central.6 Uma leitura e análise de Apocalipse 20.1-10, inclusive com consulta ao texto original, sugere que o contexto imediato abrange também os versos de 11 a 15. O contexto mais amplo inclui também os capítulos 21 e 22. Assim, uma leitura cuidadosa do contexto deve ser empreendida. O que o Apocalipse apresenta é o grande drama do conflito entre Cristo e o seu povo de um lado, e Satanás e seus seguidores do outro. Compreende o desenrolar de toda a história do reino de Cristo do princípio da era cristã ao grandioso clímax da segunda vinda. E se o livro for interpretado como consistindo de sete seções que se desenrolam paralelamente entre si, cada uma delas retratando a Igreja e o mundo desde a época da primeira vinda de Cristo até o tempo de sua segunda vinda7, esta 6 Ibidem. 7 Este sistema é denominado de paralelismo progressivo. A divisão do Apocalipse em sete seções é favorecida por muitos autores, não havendo, contudo, unanimidade acerca das delimitações de cada seção. Entre os comentaristas que adotam sistemas de divisões em sete seções serão encontrados L. Berkhof, H. B. Swete, P. Mauro, W. Milligan, S. L. Morris, M. F. Sadler, C. F. Wishart, B. B. Warfield e W. Hendriksen. Veja-se Hendriksen, Op. cit. ; e Anthony A. Hoekema - A Bíblia e o Futuro. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1989, 461 pp. Hendriksen é do ponto de vista que estas sete seções descrevem, sob aspectos diferentes e complementares, este período entre a primeira e a segunda
seção compreendida pelos dois últimos capítulos será, então, a sétima.
7. A prudência de passar do didático para o descritivo , do explicado para o simbólico , do mais claro para o mais obscuro e do simples para o difícil
Este é um princípio hermenêutico que recomenda a prudência. Para o estudo proveitoso das Escrituras necessita-se, ao menos da prudência de saber iniciar a leitura pelo mais simples e prosseguir para o mais difícil. O contrário parece ser a tendência da imaturidade, e alguns têm feito justamente isso. Esta prudência revelou-se de forma característica nos discípulos de Jesus nos momentos em que não compreenderam suas palavras: Perguntaram-lhe pelo significado, pediram explicação. E lemos: “Tudo, porém, explicava em particular aos seus próprios discípulos” (Mc 4.34). “Toda Escritura é inspirada por Deus e útil” (2 Tm 3.16). Todavia, o descritivo tem valor somente até o ponto em que é interpretado pelo que é didático. É certo que alguns textos simbólicos e algumas narrativas bíblicas que descrevem acontecimentos interpretam a si mesmas, porque incluem um conteúdo explicativo. No entanto, outras já não vinda de Cristo, cada seção avançando em profundidade ou intensidade do conflito espiritual, revelando um certo progresso gradual em ênfase escatológica. A última seção, por exemplo, nos leva mais longe, no futuro, do que as outras seções. Revista fé pa r a h oje | 59
base para o ápice, do terreno para o cepodem ser interpretadas isoladamente, leste, do material para o espiritual, da mas somente à luz do ensino doutrinásombra para a realidade. É assim que rio ou ético oferecido em outras passanós lidamos com os nossos filhos. Este gens. Por exemplo, podemos aprender é o processo do amadurecimento. Pasda história de Ananias e Safira em Atos sa-se da simplicidade da infância, da 5 que mentir desagrada muito a Deus, estreiteza e particularidade da meniniporque Pedro o diz. Mas não podemos ce, da descoberta da juventude, para a concluir que todos os mentirosos caiamplitude e abrangência da maturidarão mortos ao chão como eles. de. Deus parece lidar da mesma forma No que diz respeito ao texto de com o homem ao longo da história. Apocalipse 20.1-10 este princípio é O Novo Testamento indica que frequentemente abandonado. Tem Cristo e os apóstolos são os intérprehavido quem interprete muito do contes autorizados do teúdo aparenteAntigo Testamenmente difícil dos to. O livro de HeEvangelhos e das O livro de Apocalipse é breus dá a chave Epístolas à luz essencialmente simbólico e está deste princípio da do simbolismo revelação: “Haapocalíptico. E repleto de números simbólicos. vendo Deus, outronão apenas isso. ra, falado muitas Criam a partir vezes, e de muitas disso toda uma fimaneiras, aos pais, pelos profetas, nestes losofia da História, e todo um crivo últimos dias nos falou pelo filho” (Hb 1.1). rigoroso de interpretação bíblica. Isto Salientamos a necessidade de que a Bíé avesso à prudência. O caminho deve blia seja interpretada como um todo, ser ao contrário. Leia-se o conteúdo e que o Antigo e o Novo Testamento didático dos sermões de Jesus, bem constituem uma unidade. Salientamos como do ensino apostólico às igrejas, ainda que o conteúdo do Novo Testae submeta-se o simbolismo do Apocamento é o fruto de longo e prévio desenlipse aos mesmos. Esta é a regra. volvimento. O conhecimento do AntiUma leitura histórica dos atos de go Testamento é pré-requisito essencial Deus em toda Bíblia revela que o Separa a correta interpretação do Novo. nhor da História, num plano perfeiEntretanto, as realidades espirituais que to e que se revelou gradualmente, fez o Antigo Testamento introduz, o Novo da pessoa de Cristo como que a parte as apresenta à perfeita luz. Um contém mais estreita de um funil. E a partir de tipos; o outro, antítipos. Um contém Cristo, o seu plano é revelado de forma profecia; o outro, cumprimento. A mais final e abrangente. É preciso, portanperfeita revelação do Novo Testamento to, que se esteja fundamentado numa ilumina as páginas do Antigo. filosofia cristã da História que parta da 60 | Revista f é pa r a h o je
8. Uma compreensão bíblico - teológica acerca das
salvo pela redenção de Cristo. Assim, as profecias do Antigo Testamento que não foram cumpridas no passado bíblidispensações da aliança co, se cumprirão somente na nova realidade que é a Igreja, também conhecida As grandes doutrinas e princípios como o “Israel de Deus” e “Raça Eleita” do cristianismo estão expostos com e “Sacerdócio Real” e “Nação Santa” e clareza nas Escrituras. E estas só são bí“Povo Adquirido”. A barreira da sepablicas e exatas quando expressam tudo ração foi quebrada, e hoje, quer judeus, quanto dizem as Escrituras em relação quer gentios, são um em Cristo. a elas. Para a aclaração e correta interOs elementos condicionais e transipretação de determinadas passagens, os tórios da antiga dispensação da aliança paralelos de palavras e ideias são fundaforam alterados. Na nova dispensação mentais. Todavia, é preciso recorrer ao os favores outorteor geral, ou seja, gados são preeaos ensinos gerais minentemente das Escrituras. É, de fato, importan- As grandes doutrinas e princípios espirituais e, além do cristianismo estão expostos disso, são concedite consultar o teor dos de acordo com ou doutrina geral com clareza nas Escrituras. a graça de Deus, da Escritura que não presumindo trata do assunto. privilégios fundaSe a interpretação mentados em relacionamentos físicos contraria por inteiro o espírito ou desígou étnicos. A bênção virá aos judeus nio do Evangelho, observa-se que essa apenas por uma forma: através da fé em interpretação está equivocada. É um Cristo (Rm 11.23). Eles só poderão ser erro chegar a conclusões a respeito de salvos por meio do evangelho da gradeterminada doutrina antes de estudar ça soberana (Rm 11.32; At 4.12). Não tudo que a Bíblia diz sobre o assunto. É existe esperança alguma para um judeu aqui onde um estudo tópico da Bíblia se simplesmente por ser judeu. Ele precisa, mostra útil. E isto inclui tópicos sobre como o pecador gentio, se arrepender e as grandes doutrinas da Bíblia. Os estuser convertido, para que seus pecados dos doutrinários constituem a espinha possam ser apagados (At 3.19). Não dorsal das convicções espirituais, e, por há distinção entre judeu e grego (Rm sua vez, só se pode chegar a estas estu10-12). Ambos têm de ser salvos pelo dando tudo o que a Bíblia diz sobre um sacrifício expiatório de Cristo. Também determinado assunto. os filhos dos judeus e dos cristãos são A teologia reformada vê na aliança a iguais neste aspecto: precisam ser salvos chave hermenêutica da Bíblia. As promediante arrependimento e fé. Não há messas outorgadas aos filhos raciais de outro evangelho do reino (Gl 1.8). Abraão passaram a ser herança do povo Revista fé pa r a h oje | 61
Já mesmo o profeta Ezequiel libertou-nos deste medo: “Veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Que tendes vós, vós que, acerca da terra de Israel, proferis este provérbio, dizendo: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos é que embotaram? Tão certo como eu vivo, diz o Senhor Deus, jamais direis este provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como a alma do pai, também a alma do filho é minha; a alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.1-4). Assim, a alma do filho, no terreno de religião, é propriedade divina, não patrimônio do pai, ou da pátria, ou da família, ou da casta sacerdotal, ou da sociedade humana em qualquer aspecto. Deus reserva para si todos os direitos na alma imortal de cada uma de suas criaturas. Esta foi uma das notas mais elevadas a que chegou a mente profética até os dias de João Batista. Nenhuma alma está presa a uma religião falsa por conta de casta, família, estado, hereditariedade ou sistema sacerdotal ou eclesiástico. A nova aliança declara com clareza que o povo de Deus é, assim, um povo sobrenaturalmente constituído, de corações iluminados e transformados, de
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conhecimento pessoal no seu Redentor, um povo regenerado e perdoado. Graça divina não é hereditária, nem se subordina a sacerdotes, clérigos, pais ou governos. O apóstolo Paulo, que “bem poderia confiar na carne... circuncidado ao oitavo dia, da linhagem de Israel... hebreu de hebreus” (Fp 3.4-11), expressou isto em termos bem claros em suas epístolas (Rm 2.28- 29; Fp 3.3; Gl 6.15-16; Rm 9.6-8). Este é um tempo de graça tanto para judeus e gentios. É tempo da oportunidade para ação missionária da igreja em todo o mundo. “Porquanto a Escritura diz: Todo aquele que nele crê não será confundido. Pois não há distinção entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam. Porque: Todo aquele que invocar o nome do Senhor será salvo. Como, porém, invocarão aquele em quem não creram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue? E como pregarão, se não forem enviados? Como está escrito: Quão formosos são os pés dos que anunciam cousas boas!” (Rm 10.11-15)
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