Vocábulos de Deus - J. I. Packer

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DEUS

VOCÁBULOS DE

J. I. PACKER


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Packer, J. I. (James Innell) Vocábulos de Deus / J. I. Packer. – 2. ed. – São José dos Campos, SP: Fiel, 2017. 324 p. Tradução de: God's words: studies of key bible themes. ISBN 9788581323992 1. Bíblia – Teologia. 2. Língua hebraica – Palavras e expressões. 3. Língua grega (Bíblia) – Palavras e expressões. I. Título. CDD: 230.044

Catalogação na publicação: Mariana C. de Melo Pedrosa – CRB07/6477

Vocábulos de Deus Traduzido do original em inglês: God’s Words: Studies of Key Bible Themes Copyright © por J. I. Packer

Proibida a reprodução deste livro por quaisquer meios, sem a permissão escrita dos editores, salvo em breves citações, com indicação da fonte.

Copyright © 2002 Editora Fiel Primeira Edição em Português: 2002 Segunda Edição em Português: 2017 Todos os direitos em língua portuguesa reservados por Editora Fiel da Missão Evangélica Literária

Diretor: James Richard Denham III Editor: Tiago J. Santos Filho Coordenação Editorial: Renata do Espírito Santo Tradução: Editora Fiel Revisão: Wellington Ferreira, Anna Barros Capa e Diagramação: Wirley Corrêa - Layout ISBN: 978-85-8132-399-2

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SUMÁRIO INTRODUÇÃO

Palavras e Temas Bíblicos..................................................7 CAPÍTULO 1

Revelação.........................................................................23 CAPÍTULO 2

Escritura..........................................................................41 CAPÍTULO 3

O Senhor..........................................................................61 CAPÍTULO 4

O mundo..........................................................................83 CAPÍTULO 5

Pecado........................................................................... 105 CAPÍTULO 6

O diabo......................................................................... 125


CAPÍTULO 7

Graça............................................................................. 143 CAPÍTULO 8

O Mediador................................................................... 165 CAPÍTULO 9

Reconciliação................................................................ 183 CAPÍTULO 1 0

Fé................................................................................... 193 CAPÍTULO 11

Justificação................................................................... 209 CAPÍTULO 12

Regeneração.................................................................. 223 CAPÍTULO 1 3

Eleição........................................................................... 235 CAPÍTULO 14

Santidade e Santificação.............................................. 255 CAPÍTULO 15

Mortificação................................................................. 271 CAPÍTULO 16

Comunhão.................................................................... 289 CAPÍTULO 17

Morte............................................................................ 303


INTRODUÇÃO

PALAVRAS E TEMAS BÍBLICOS

Chaves abrem portas; palavras-chaves abrem mentes, e, através das mentes, corações. Este livro toma palavras-chaves usadas na Bíblia - termos extraídos, podemos dizer, do próprio vocabulário de Deus - e desdobra de maneira prática alguns dos principais pensamentos ligados a elas. O alvo é o entendimento, a fé e a sabedoria. Visto que as próprias palavras são o nosso ponto de partida, começo pedindo ao leitor que se demore comigo por alguns momentos neste estudo sobre o valor de palavras. "O que está lendo, meu senhor?", indagou Polônio, aquela combinação clássica de asseverações senis com estupidez servil. A resposta de Hamlet foi: "Palavras, palavras, palavras"; resposta essa cujo intuito era ser um insulto sem resposta, um agravo e um fora para um valoroso espécime pertencente ao gênero dos tediosos e velhos tolos. Naturalmente, o que lemos são palavras! Mas fazemo-lo por causa de seu significado, e talvez nunca observamos


como as palavras são usadas para transmitir esse significado. Contudo, a leitura de palavras como palavras, ou seja, os vocábulos específicos que este ou aquele escritor escolheu para exprimir o que queria dizer, pode ser algo fascinante e enriquecedor. Alguns que viajam de trem interessam-se somente por chegar ao seu destino; outros, porém, tal como este escritor, interessam-se também pelos próprios trens, e, por isso, adquirem maior conhecimento acerca de suas viagens e maior prazer delas do que aqueles. Por igual modo, alguns leem uma peça literária somente para captar a mensagem ou a história, ao passo que outros saboreiam, igualmente, o estilo e o vocabulário. Estes últimos, provavelmente, terminarão compreendendo mais adequadamente o que foi escrito do que os primeiros (razão pela qual nas escolas se ensina a apreciação da literatura). Porém, onde isso mais claramente se manifesta é no caso das Sagradas Escrituras.

PALAVRAS QUE SÃO ARMADILHAS Admitimos que existem armadilhas. Para começar, não podemos permitir que as palavras nos hipnotizem, mesmo quando se trata de vocábulos bíblicos. Dizia Hobbes: "As palavras são as calculadoras dos sábios; eles computam por meio delas. Mas elas são cunhadas por tolos''. Presumir que uma coisa pode ser dita apenas com as palavras que inicialmente aprendemos a respeito de um assunto, e que com elas devemos expressar-nos, ou então somente com as palavras usadas na Bíblia, é um equívoco tolo, embora frequente. As palavras não são mágicas. Elas são a matéria-prima da linguagem, são as ferramentas que Deus nos deu para formarmos conceitos 8


INTRODUÇÃO

e nos comunicarmos. As palavras transmitem sentido, revelam mentes, evocam sentimentos e despertam pensamentos. A importância delas repousa na carga que transportam e nas tarefas que realizam. Na verdade, ouvir, ler e proferir palavras familiares exerce sobre nós um efeito reconfortante e sustentador, conforme também sucede a todas as coisas com as quais estamos acostumados. Voltarmos àquilo que nos é familiar é como retornar ao ventre materno. Mas, ficar tão preso a vocábulos particulares, ao ponto de pensar que nenhuma outra palavra pode exprimir o mesmo sentido, é superstição. O fato de focalizarmos palavras não deve permitir que atolemos em superstição. Em segundo lugar, precisamos saber claramente como perceber o que as palavras significam. As palavras significam o que costumam significar nos círculos linguísticos particulares (nações, tribos, famílias, "gangs", grupos de interesses) que as usam. Dessa forma, elas recebem um sentido reconhecido publicamente, que os dicionários registram. Usar palavras com sentidos particulares, sem se esclarecer que assim está sendo feito, é perverter a linguagem, porque desse modo interrompe-se a comunicação. Lewis Carroll faz Humpty Dumpty desdenhar de Alice, por haver ela protestado ao descobrir que ele usava o termo "glória" a fim de indicar "um bom argumento decisivo". Replicou ele zombeteiramente: "Quando uso uma palavra, ela significa apenas aquilo que eu resolvi que significaria - nem mais, nem menos!'' Sorrimos, porque isso é ultrajante. Mas não sorriríamos, se nossos amigos agissem daquela maneira; nem eles sorririam, se o fizéssemos. As boas maneiras na linguística re-

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querem que o ouvinte espere palavras usadas segundo o modo aceitável, e que aquele que fala também as use assim. Isso nos leva a outro ponto. Precisamos perceber, quando interpretamos as palavras de outros, quão perverso é tomarmos as palavras pela sua derivação, ao invés de tomarmos o seu uso como a chave para compreendermos o significado delas mesmas. Assim, por exemplo, saber que a palavra inglesa "dandelion" originalmente era dent de lion ("dente de leão", em francês) não nos prepara para reconhecer a flor amarela conhecida por esse nome. Assim também, saber que ekklésia, o termo do Novo Testamento grego que significa "igreja", tem uma forma etimológica que sugere "chamar para fora de" algum lugar (ek-klesis, de ek-kaleõ) não nos ajuda a compreender o que ela significa no uso comum, que é apenas uma reunião, uma assembleia ou uma congregação. Na Bíblia, tal como na vida diária, as palavras significam aquilo que elas costumavam significar - nem mais, nem menos. Importar da etimologia noções extras que o escritor com certeza não tinha em mente é enganar-se, por achar na declaração dele o que não está ali. Grande parte do estudo de vocábulos, tanto o secular como o sagrado, tem errado neste particular, por supor que a história de uma palavra deve fazer parte do seu significado, cada vez em que ela é usada. Mas, pergunte a si mesmo como você usa palavras como "dente-de-leão", "igreja", "prevenir" (a qual etimologicamente significa "preceder", do latim prae-venio, e é usada com este sentido na versão da Bíblia King James e no Livro de Oração de 1662), e verá que isto não é necessariamente assim. Em terceiro lugar, precisamos lembrar que as palavras (excetuando os termos técnicos publicamente definidos) são re-

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gularmente flexíveis. Elas adquirem o seu sentido exato, cada vez que aparecem, somente quando fazem parte de maiores unidades de significado - sentenças, parágrafos, linhas de argumentação, capítulos, livros. Muitas palavras envolvem um leque de possíveis sentidos e nuances (ver os dicionários), de tal modo que precisamos averiguar o contexto, em cada instância, para percebermos o que significam precisamente. É um grave erro tratar todos os vocábulos de uso diário como se fossem termos técnicos, dotados de um único significado, vocábulos que transmitem diferentes nuances de significado e que podem ser sistematicamente ambíguos (como "manga", que significa tanto uma fruta como uma parte de vestuário; ou a palavra "porco" que alguns usam não só para significar uma fonte de carne e "bacon", mas também para significar um indivíduo imundo). Termos técnicos (por exemplo, computador, subjuntivo, minuendo, acionar, injúria, etc.) têm sentidos universalmente aceitos, dentro de áreas específicas de referência, de tal maneira que a presença deles exerce um efeito definidor sobre as palavras a eles ligados. O sentido exato dessas outras palavras - palavras comuns do dia-a-dia, conforme as chamaríamos - é determinado pelo fluxo verbal do qual elas fazem parte. A variedade de seus possíveis significados pode ser conhecida por nós desde o começo, mas o seu significado específico, em cada instância em que são empregadas, só será discernido com exatidão através do entendimento da sentença e da linha de pensamento às quais elas pertencem. (Para exemplificar o que quero dizer, consideremos as ambíguas palavras: "variedade", "sentença" e "linha", utilizadas no trecho anterior.) Muitos livros que versam sobre palavras, tanto da linguagem secular como da sacra, fracassam por não observa-

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rem como muitas palavras particulares quase chegam a ser usadas tecnicamente, ou quão longe elas estão de ser palavras técnicas. Por exemplo, no vocabulário de Paulo, "justificar" era mais usada como termo técnico do que "liderar"; "santo" mais do que "bom", e assim por diante. Não precisamos demorar-nos no exame dos erros cometidos pelos estudiosos da Bíblia, ao negligenciarem o fato que, nas Sagradas Escrituras, os vocábulos funcionam da mesma forma que o fazem fora delas. Basta dizer que ficar repetindo palavras pertencentes ao vocabulário da Bíblia não serve de índice de profundidade espiritual, e que as declarações que explicam o significado dos vocábulos bíblicos, com base na sua derivação, juntamente com declarações que começam com afirmativas do tipo "nas Escrituras, esta palavra sempre significa...", são na maioria mais erradas do que corretas. Portanto, você está avisado!

LUZ DERIVADA DAS PALAVRAS Tendo dito isto, podemos elogiar o estudo de vocábulos – estudo sobre o uso costumeiro e os significados - como um meio de penetração nas mentes humanas. E isto, no caso dos quarenta diferentes autores da Bíblia, significa penetrar na mente de Deus, o qual falou para eles e por meio deles. Algumas palavras-chaves da Bíblia - termos referentes ao culto, por exemplo - ao que parece, à princípio foram termos semitécnicos (como: aliança, santo, sacrifício, adoração, oração, pecado, sabedoria, redimir). É fascinante observar o sentido de tais termos expandir-se e aprofundar-se, à medida em que a autorrevelação histórica de Deus prossegue, por meio de atos e palavras. 12


INTRODUÇÃO

Outras palavras-chaves parecem ter começado como referência às atividades comuns da humanidade e adquiriram sentido teológico por haverem sido usadas, por um ou outro escritor sagrado, como quadros, modelos e analogias da obra de Deus e de seus frutos (por exemplo: luz, vida, palavra, poder, morte, fé, esperança, sangue, paz, reino, pai, mundo, espírito, povo, juiz). É fascinante acompanhar o processo e refletir sobre por que este ou aquele vocábulo veio a significar tanto, teológica e espiritualmente, para este ou aquele escritor sacro. Enquanto tal estudo assume lugar de servo da exegese, ao invés de um substituto para ela, reveste-se de um interesse todo próprio. Algumas vezes, como se fosse uma senda tortuosa, lado a lado com a estrada principal, esse estudo exibe diante de nós paisagens que aqueles que se atêm à estrada exegética central jamais percebem. Em nossa época, os mestres evangélicos têm tido vívida consciência desse fato, e têm sido publicados excelentes estudos de vocábulos, em uma escala que vai desde o gigantesco trabalho de Kittel, Theological Dictionary of the New Testament - Dicionário Teológico do Novo Testamento (9 volumes, mais de oito mil páginas), passando pelo de Colin Brown, New lnternational Dictionary of New Testament Theology - Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, Ed. Vida Nova, (4 volumes, mais de três mil páginas), até a pequena obra de Julian Charley, intitulado 50 Key Words: The Bible - 50 Palavras-chaves: A Bíblia (69 páginas). Este livro, no entanto, não pertence estritamente a obras dessa categoria. Embora comece examinando palavras, ele é apenas um livro que estuda vocábulos. Tanto quanto possível, ele não é um livro técnico;

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porquanto focaliza a atenção não tanto sobre palavras como tais, mas sobre as realidades para as quais elas apontam. E, ainda que um vocábulo bíblico anuncie o tema de cada capítulo, o tratamento do material é integrado e teológico, antes que analítico e "biblicista". A seleção dos temas reflete o propósito de interpretar o evangelho, que é a mensagem central da Bíblia. Portanto, meu estilo é expositivo e explicativo, ao invés de exegético e histórico. Não obstante, este livro apoia-se sobre obras técnicas de outros autores, sem as quais esta obra dificilmente poderia ter sido escrita.

PALAVRAS BÍBLICAS E TEOLÓGICAS Vale a pena pararmos aqui a fim de notar que o nosso atual vocabulário evangélico contém duas classes de palavras: aquelas que se encontram nas Escrituras e aquelas que foram cunhadas ou emprestadas do vocabulário comum depois do tempo do Novo Testamento. Vocábulos dessa segunda classe, como trindade, encarnação, pessoa, natureza, satisfação, hierarquia, transcendência, onisciência, deveriam ser encarados como termos técnicos, introduzidos para expressar pensamentos bíblicos particulares, e, portanto, definidos com precisão desde o começo. Algumas dessas palavras perderam a sua exatidão nesta nossa época de desvios teológicos, mas todas elas tinham sentidos precisos no passado. É uma boa regra empregá-las somente no seu sentido clássico, e adotá-las somente se pudermos demonstrar que o seu sentido clássico reflete a cristalização do pensamento bíblico. Atualmente, a linguagem teológica tradicional é insegura, e diferentes pessoas inclinam-na em diferentes direções. Não deveríamos contribuir para aumentar a confusão. 14


INTRODUÇÃO

Porventura, não nos ajudaria a pensar mais biblicamente se descartássemos todas as palavras dessa última classe e usássemos somente palavras bíblicas? Infelizmente, a sugestão é enganadora, e as objeções a ela parecem irrefutáveis. Em primeiro lugar, essa proposta é estultificante. Ela nos furtaria a clareza. Nenhuma ciência, ou seja, nenhum ramo do conhecimento já comprovado e digerido, pode dispensar termos técnicos; tais termos são necessários para que haja precisão de pensamento e de expressão. Se não dispusesse de termos técnicos apropriados, a comunicação tornar-se-ia incontrolavelmente desajeitada, e dificilmente seria possível qualquer progresso na cristalização da verdade. Ora, isso é tão verdadeiro na teologia como na astrofísica ou na oftalmologia. Em segundo lugar, essa proposta é empobrecedora. Ela nos furtaria a verdade. Os termos técnicos que já foram bem definidos e testados incorporam e transmitem, de modo conciso, muito conhecimento exato, bem como muitas decisões acertadas sobre questões que inicialmente estiveram em debate. Assim sendo, atuam como suportes contra o erro. O palco da história eclesiástica está juncado de cadáveres daqueles que, tendo abandonado os termos técnicos trindade e encarnação, imediatamente caíram em erros; sendo que aquelas palavras foram definidas exatamente para eliminar tais erros. Seja como for, hoje em dia não podemos usar palavras bíblicas com o sentido exato que elas tinham para os escritores sagrados. Por que não? Porque elas chegaram até nós carregadas com associações de ideias e com nuances de sentimentos, os quais foram adquirindo no decurso dos séculos de cristianismo, e que se apegaram a elas como uma camada de tinta 15


que ninguém consegue arrancar. Isso posto, quando empregamos termos técnicos como predestinação, eleição, justificação, perfeito, pecado, mundo, fé, graça, autoridade, diabo, igreja, etc., as associações em nossas mentes, que moldam os nossos interesses e determinam as nossas indagações, são derivadas do mundo da controvérsia pós-bíblica - o mundo no qual Agostinho combateu Pelágio; os reformadores entraram em conflito com Roma; os calvinistas lutaram contra os arminianos e os conservadores contra os liberais, cada qual debatendo o que a Bíblia, como um todo, realmente nos diz acerca disto ou daquilo. De fato, a única maneira digna de explorarmos os temas designados por vocábulos como esses é relacioná-los às questões e aos interesses de nossos próprios dias, indagando como o pensamento e o ensino bíblico afetam essas questões e interesses e como, em geral, envolvem as vidas de homens e mulheres deste nosso final do século XX . Qualquer coisa aquém disso seria apelar para noções bíblicas meramente antiquadas; seria um jogo solene, mas trivial. O nosso alvo deve ser o pensar biblicamente, não apenas sobre os problemas dos escritores sagrados, mas também sobre os nossos próprios. Nos capítulos que seguem, as palavras bíblicas anunciam os temas, e o material bíblico edificado sobre esses temas. Contudo, os termos técnicos são usados livremente e o ângulo de abordagem é contemporâneo. Procuro meditar sobre esse material à luz das perplexidades de nosso tempo e mostrar que aquilo que os escritores sagrados disseram, em resposta às indagações de seus dias, pode falar às questões dos nossos dias. Os leitores formarão as próprias opiniões sobre o grau de meu sucesso. 16


INTRODUÇÃO

O ESPÍRITO E AS ESCRITURAS Espero que o efeito destes estudos corresponda àquilo que considero ser o duplo propósito do Espírito Santo em relação à Bíblia. Quanto à sua forma, conforme penso que todos reconhecemos, as Escrituras são um testemunho histórico da obra divina da redenção, a qual, no início, alcançou o seu clímax na encarnação, na imolação, na ressurreição e na exaltação do Filho de Deus, Jesus; testemunho esse que chegará ao seu grande final na "eucatástrofe" (usando por empréstimo a obscura, mas feliz, palavra de Tolkien, que significa "boa catástrofe"), que ocorrerá no retorno de Jesus a este mundo, em glória avassaladora, a fim de tornar todas as coisas perfeitamente novas. Vistas sob esse prisma (conforme devemos fazê-lo, pois, de outro modo, haveremos de entendê-las erroneamente) as Escrituras são frequentemente rejeitadas e consideradas como esquisitas e antiquadas, porquanto a sua mensagem não se ajusta com precisão àquilo que o homem moderno pensa que sabe. Porém, em sua natureza essencial, o que, infelizmente, nem todos parecem apreciar, as Escrituras consistem simplesmente em Deus comunicando, Deus falando, Deus ensinando, Deus pregando, Deus contando a você - sim, a você, a mim e a todos os leitores e ouvintes da Bíblia, em todos os lugares - verdades sobre Si mesmo que, neste lugar e neste momento, exigem a nossa fé, a nossa adoração e a nossa obediência; as nossas orações, louvores e práticas; a nossa devoção, abnegação e disciplinamento, a fim de podermos servir ao Senhor. Em suma, a nossa completa conversão e o nosso total comprometimento. 17


Vista desta maneira, a Bíblia é a leitura mais relevante e atualizada que pode chegar às nossas mãos. Três horas atrás, ao ler a epístola aos Hebreus, Deus estava me repetindo qual a suficiência e o caráter final de Cristo, a fim de manter-me numa jubilosa relação com Ele, com os homens, com as circunstâncias e comigo mesmo. E sempre que leio o livro de Eclesiastes (identifico-me muito com este livro), Deus ensinando-me de novo que aceitar a vida como ela se apresenta e praticar o que é meu dever são duas chaves para a felicidade, tanto nesta vida como na futura - sabedoria que, pelo menos para mim, nunca será obsoleta. Assim a experiência continua. Tal é a Bíblia, o livro mais oportuno do mundo, para você, para mim ou para qualquer outra pessoa. E o Espírito Santo, que a inspirou e nos dá entendimento sobre ela, nos conduz por esse caminho, quando Lhe permitimos esclarecê-la e aplicá-la a nós. Por um lado, o organismo das Escrituras (66 livros ao todo - 39 no Antigo Testamento e 27 no Novo), que nos foi dado por Deus, tem um centro, aquilo que Calvino chamou de escopo, isto é, um ponto focal em mira, um alvo e um ponto de referência para tudo o mais. Esse escopo é o próprio Senhor Jesus Cristo, ao qual os profetas proclamaram como o Messias que viria, a quem os apóstolos proclamaram que já viera e virá outra vez. O Espírito Santo nos leva a fixar a atenção em Jesus e na necessidade que temos dEle. Descobrimos que as Escrituras agem como o espelho no qual nos vemos como pecadores culpados, vis e impotentes, que precisam de salvação, e como o holofote que nos mostra o Salvador vivo - o Cristo que está ali, e que está ali por nossa causa; ou, melhor ainda, o Cristo que está aqui, e que está aqui por minha causa. O Espírito dissipa todas as nossas dúvidas relativas à realidade de Jesus

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e nos leva a conhecê-Lo e a confiar nEle como nosso próprio Libertador do pecado, do "eu" e do vazio escuro e doloroso deste e do outro mundo, para o qual o nome apropriado é inferno - Geenna, o lugar ardente. (As Escrituras chamam de fé esse conhecimento confiante.) Deste modo, provamos pessoalmente a verdade contida na declaração de Paulo: "as sagradas letras... podem tornar-te sábio para a salvação pela fé em Cristo Jesus" (2 Tm 3.15). Esse é o primeiro passo envolvido no fato de sermos ensinados por Deus (cf. Jo 6.45). Aprendamos a clamar como Charles Wesley: Jesus, nome estimado pelos pecadores, O nome de quem foi dado por eles, Que dissipa todo o medo da culpa, E transforma em céu ao inferno. Oh, se o mundo pudesse ver e provar das riquezas de sua graça! Os braços amorosos que me envolvem, Envolveriam, também, toda a humanidade. A sua retidão singular eu demonstro, A sua graça salvadora eu proclamo; Todo o meu empenho nesta vida É clamar: contemplai o Cordeiro! Feliz seria, se ao meu último suspiro Apenas balbuciasse o seu nome; Ou se falasse dEle a todos, clamando ao morrer: Contemplai, contemplai o Cordeiro! 19


Nenhum crente pode ter alvo mais elevado ou desejos melhores do que estes. Colocar e conservar em nós estes princípios é um dos aspectos do constante ministério do Espírito em nosso favor, por meio das Escrituras. Todavia, existe um outro lado. Tendo Jesus Cristo como seu centro, a Bíblia assemelha-se a um enorme círculo que abrange a totalidade da vida de cada indivíduo. Aqueles que, usando a figura de linguagem de C. S. Lewis, examinam ao longo da Bíblia, como se estivessem seguindo um raio de sol que brilha no sótão, descobrem que tudo quanto são é pesado e julgado à luz dos ensinamentos, das narrativas e do estado de coisas que as Escrituras expõem diante de nós. O Espírito Santo leva-nos a fazer sobre nossas vidas os mesmos julgamentos que Ele mesmo faz . Ele nos leva a medirmos a nós mesmos através daquilo que a Bíblia nos mostra acerca da maneira certa ou errada de agir como pai, como filho, como político, cidadão, cônjuge, pessoa solteira ou viúva, dona-de-casa, gerente, trabalhador, patrão, vizinho, professor, estudante, inválido, pessoa rica ou qualquer outra coisa. Também pelos preceitos e exemplos bíblicos - Cristo, Abraão, Paulo, Elias e todos os heróis da fé - aprendemos o que está envolvido na piedade autêntica. Geralmente, quando assim nos avaliamos, descobrimos que somos faltosos; e então o Espírito nos guia a mudar nossos caminhos de acordo com o que tínhamos nos avaliado (as Escrituras Sagradas chamam de arrependimento essa esclarecida mudança). Desse modo, provamos pessoalmente a verdade daquela outra afirmativa paulina - que a Escritura inteira, por haver sido inspirada por Deus, é "útil para o ensino, para a repreensão, para

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a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra" (2 Tm 3.16, 17). Esse é o segundo aspecto envolvido no fato de sermos ensinados por Deus. Espero que os esboços de temas bíblicos (os quais não são mais do que isso), que vêm a seguir, sirvam ao duplo propósito do Espírito de Deus: conduzir-nos constantemente a fim de que adoremos e amemos o Cristo das Escrituras, e mudar as nossas vidas à luz de suas verdades. Não tenho qualquer interesse por estudos bíblicos que não busquem esses alvos escriturísticos.

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CAPÍTULO

1 REVELAÇÃO

A palavra portuguesa "revelar" vem do latim revelare, que significa "tirar o véu" ou "descobrir". Essa é precisamente a ideia expressa pelos vocábulos hebraico e grego que são traduzidos na Bíblia por "revelar". "Revelar" é uma palavra ilustrativa (como o são todos os vocábulos teológicos), e o quadro nos mostra Deus desvendando – Deus revelando-nos coisas que antes estavam ocultas para nós; Deus trazendo à luz coisas que antes estavam fora do alcance de nossa visão; Deus nos levando e capacitando a ver aquilo que, até aquele momento, não podíamos ver. Deus compartilha confidencialmente conosco os seus segredos. Deus nos encontra ignorantes e nos confere conhecimento. É isso que significa revelação. O quadro responde a três perguntas fundamentais. Primeira, qual a necessidade da revelação? Resposta: Certas realidades vitais estão escondidas de nós, ocultas aos nossos


olhos, enquanto Deus não as desvenda. Segunda, qual o propósito da revelação? Resposta: Proporcionar-nos o conhecimento dessas realidades; Deus deseja compartilhá-las conosco. Terceira, qual deve ser a nossa atitude face à revelação? Resposta: Devemos atentar respeitosamente e receber com gratidão tudo quanto Deus nos transmite. Quando o Senhor fala, o homem precisa estar disposto a ouvir, a aprender e a responder.

REVELAÇÃO PESSOAL E SOB A FORMA DE PROPOSIÇÕES O que Deus revela? Os teólogos protestantes antigos responderiam: Verdades sobre Si mesmo, as quais, de outra forma, não poderíamos saber. Os teólogos modernos, na maioria, preferem simplesmente dizer: Deus revela a Si mesmo. Essas duas respostas, porém, são complementares e não contrárias. É verdade que a revelação consiste, essencialmente, no autodesvendamento de Deus e que o seu propósito é levar os homens a "conhecerem o Senhor", mediante a comunhão pessoal com um Deus pessoal. Mas, como é que Deus se faz conhecido a nós? Da mesma maneira que o leitor far-se-ia conhecido a mim, ou eu a você: mediante a fala. O ato de falar sempre é uma revelação da parte daquele que fala. Assim, Deus desvenda-se a nós, falando conosco acerca de Si mesmo, bem como falando a nosso respeito, conforme Ele nos vê. Deus nos fala de suas próprias realizações passadas: como criou, julgou, remiu e soergueu os homens para que O servissem e como criou um povo para Si mesmo. Deus fala conosco sobre sua obra presente: como determina e controla todas as coisas, para o cumprimento dos seus propósitos. 24


REVELAÇÃO

Deus nos fala acerca dos seus planos futuros, esboçando para nós, em termos misteriosos mas brilhantes, o clímax vindouro da história e o destino final de seu povo. Ele nos diz o que pensa sobre a vida humana e sobre as diferentes maneiras de viver dos homens. Ele nos fornece orientações, aconselha, faz promessas e adverte. Ele nos ensina a sua escala de valores, detalhando para nós as coisas que Ele aprova e as coisas que odeia. Por conseguinte, é falando que Deus revela a Si mesmo. Ele se desvenda, falando-nos sobre Si mesmo. A sua revelação é pessoal, exatamente porque se processa através de proposições; pois é exatamente fazendo-nos declarações verazes a respeito de Si mesmo, que Deus se faz conhecido a nós. Se Ele não tivesse nos falado assim, jamais poderíamos tê-Lo conhecido. Afirmar, segundo alguns fazem, que o homem pode descobrir e conhecer Deus, sem que Deus lhe fale, realmente é negar que Deus é pessoal. As pessoas não podem ser conhecidas a menos que, de alguma maneira, falem para revelar a si mesmas.

A REVELAÇÃO NO ANTIGO E NO NOVO TESTAMENTOS O cerne da Bíblia Sagrada é a narrativa de Deus falando aos homens. O Antigo Testamento mostra-nos como Deus falou diretamente a Adão e Eva, no jardim do Éden, bem como a Caim, a Noé, a Abraão, a Isaque e a Jacó. Ele também falou diretamente a Moisés e aos profetas. Utilizando-se de Moisés como seu porta-voz, Deus falou a todo o povo de Israel, no deserto, exibindo diante deles os preceitos e as promessas de sua aliança. Por intermédio dos profetas posteriores (pois Moisés, o outorgador da lei, na qualidade de porta-voz de Deus, foi um 25


profeta - Dt 18.15 e 34.10), Deus continuou a falar ao seu povo, reforçando a lei, explicando os seus propósitos de julgamento e de misericórdia, ao longo da história, apelando por arrependimento e exortando a uma vida de fé na sua pessoa. Toda revelação direta da vontade e dos propósitos de Deus, em toda a dispensação da antiga aliança, foi transmitida através dos profetas. Os salmistas e os sábios meditaram com inspirado discernimento sobre a religião e a vida, à luz dessa revelação, conforme a conheciam. Porém, os profetas foram aqueles por meio de quem a própria revelação foi feita em cada estágio. No hebraico há duas palavras para "profeta"; uma significa vidente e a outra, porta-voz. Juntas, elas indicam a natureza da chamada de um profeta. Em primeiro lugar, como vidente, era privilégio de um profeta receber a revelação. Deus, por assim dizer, tornou os profetas seus confidentes e mostrou-lhes os seus planos. Declarou Amós: "Certamente o SENHOR Deus não fará cousa alguma, sem primeiro revelar o seu segredo aos seus servos, os profetas" (Am 3.7). O profeta permanecia no "conselho do SENHOR", a fim de ver e ouvir a sua palavra (Jr 23.18). Em segundo lugar, fazia parte das responsabilidades de um profeta, como porta-voz, proclamar a palavra da revelação que recebera. "Eis que ponho na tua boca as minhas palavras... tudo quanto eu te mandar, falarás'' (Jr 1.9, 7). ''Assim diz o SENHOR Deus... tu lhes dirás as minhas palavras", foi a comissão dada por Deus a Ezequiel (Ez 2.4, 7; cf. 1 Rs 22.14; Nm 22.19, 20, 35, 38). A fórmula "Assim diz o SENHOR", que introduz oráculos proféticos por 359 vezes no Antigo Testamento, serve de testemunha da realidade da revelação - uma testemunha do fato

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que o profeta não criava as suas próprias mensagens, mas falava como porta-voz de Deus, de tal modo que aquilo que dizia precisava ser recebido, não como adivinhações ou especulações humanas, nem como ideias fantasiosas, mas como declarações divinas, sendo, por isso mesmo, verdades infalíveis. Podemos entender o horror que Jeremias sentiu quando, por um lado, certos falsos profetas declararam, em nome do Senhor, mensagens que eles mesmos haviam formulado (Jr 14.14ss.; 23.9-40), e, por outro lado, quando as palavras de profetas autênticos, como ele mesmo, eram desprezadas e desconsideradas (Jr 20.7, 8; 25.3ss.). A mensagem neotestamentária acerca da revelação divina está cristalizada nas palavras que abrem a epístola aos Hebreus: "Havendo Deus, outrora, falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias nos falou pelo Filho..." (Hb 1.1, 2). O Senhor Jesus Cristo cumpriu o ministério de um profeta, visto que só transmitiu aquelas palavras, e somente aquelas, que o Pai Lhe dera para falar (Jo 7.16; 8.28; 12.49, 50; cf. Hb 2.3, 4). Contudo, Jesus Cristo fez mais do que isso. Ele revelou o Pai, não somente através daquilo que disse, mas também pelo que foi e realizou. Pois Ele, como Filho, é a imagem do Pai, e toda a multifacetada plenitude do caráter do Deus invisível tornou-se visível através da vida do Filho de Deus, em carne (Cl 1.15, 19; 2.9; Hb 1.3). Portanto, Cristo pôde dizer: "Quem me vê a mim, vê o Pai" (Jo 14.9). E João pôde escrever: "Ninguém jamais viu a Deus: o Deus unigênito, que está no seio do Pai, é quem o revelou" (literalmente, o explicou, o elucidou - Jo 1.18).

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Isso ainda não é tudo. Cristo prometeu o Espírito Santo aos seus discípulos, a fim de revelar-lhes a plena verdade acerca de Si mesmo e capacitá-los a prestarem testemunho quanto a isso (Jo 14.26; 15.26 e 16.13ss.). Dessa forma, na verdade, Ele os designou para um ministério profético propriamente dito. Após o Pentecoste, encontramo-los cumprindo tal ministério. Por um lado, eles receberam revelações através do Espírito Santo. Paulo muito salientou o "mistério" do plano divino de salvação em Cristo, desde há muito oculto, mas agora ''revelado aos seus santos apóstolos e profetas, no Espírito" (Ef 3.5; cf. vv. 3-11; 1.9ss.; 1 Co 2.7ss.; Rm 16.25, 26). Por outro lado, eles declararam o que lhes havia sido mostrado pelo ensino do Espírito, e de modo autoritativo, como Palavra de Deus (1 Co 2.1ss.; 2.13ss.; 1 Ts 2.13). Eles ministraram e ensinaram como representantes de Cristo, autorizados e equipados por Ele. Assim, o testemunho dos apóstolos faz parte integral do grande complexo de declarações divinas, encerrado dentro da frase: ''Deus... falou pelo Filho''. O ensino de Cristo e dos apóstolos constitui uma unidade, e essa unidade, incorporada em nosso Novo Testamento, é a palavra final de Deus ao homem. Se agora indagarmos acerca do que Deus, de modo resumido, estava revelando durante o período bíblico, diversas coisas precisarão ser ditas. Em primeiro lugar, Deus estava revelando a Si mesmo. Ele estava mostrando o "seu eterno poder e a sua própria divindade" (Rm 1.20), na qualidade de Criador e Senhor de todas as coisas. Juntamente com isso, Deus estava revelando o seu

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caráter e a sua maneira de lidar com os homens (Êx 34.6-7; Dt 5.9, 10; Jr 9.24; 1 Jo 1.5; 4.7-10), a fim de que Ele fosse reconhecido e adorado por tudo quanto é, faz e dá aos homens. Encarada desse ponto de vista, a revelação atingiu o seu ponto culminante na vida encarnada do Filho de Deus. Em segundo lugar, Deus estava revelando o seu reino. Ele estava mostrando a realidade de seu domínio universal (observemos como um profeta após outro recebeu visões do trono de Deus - 1 Rs 22.19; Is 6.1ss.; Ez 1.26; Dn 7.9; Ap 4.2; e como salmista após salmista celebrou o reinado de Deus - Sl 93.1, 2; 96.10; 97.1; cf. 1 Cr 16.31; Is 52.7; Ap 19.6). Deus estava mostrando, igualmente, como Ele faz a história avançar na direção da forma final que o seu reinado assumirá, a saber, o reinado salvador de Jesus, o Messias, o verdadeiro Senhor do mundo atual (cf. Mt 28.18; Hb 1.3, 8, 9, 13), que voltará um dia, em glória, para dar um fim ignominioso a todas as pessoas e a todos os poderes que agora repelem o seu governo (1 Co 15.24ss; Fp 2.9-11). Em terceiro lugar, Deus estava revelando a sua aliança. Isso foi e continua sendo um relacionamento imposto: Deus compromete-se, diante dos homens, a abençoá-los, e eles comprometem-se, diante dEle, a servi-Lo. "Eu serei o vosso Deus, e vós sereis o meu povo": esse é o compromisso do relacionamento que Deus reitera a cada novo estágio das bênçãos da aliança (Gn 17.1-14; Êx 19.4-6; Lv 26.12; Dt 7.6; 14.2; Jr 11.3-4; 30.22; 31.33; Ez 11.20; 36.28; Zc 8.8; 2 Co 6.16; Ap 21.3; etc.); esse é o estribilho que se faz ouvir através da Bíblia. A nova aliança, estabelecida por Jesus, seu mediador, é melhor do que a

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anterior em muitos aspectos (Hb 8 a 10); mas a incumbência divina de abençoar, tanto agora quanto futuramente, que consiste no próprio acordo de Deus com o seu povo, jamais sofreu alteração. A essência da aliança, em todas as formas de sua administração, é que Deus diz "meu povo", e aqueles que são assim tratados respondem-Lhe, dizendo: "meu Deus" ou "nosso Deus". Lutero estava com toda a razão quando descreveu o cristianismo como uma questão de pronomes pessoais. O povo com o qual Deus entrou em relação de aliança - os israelitas fiéis, no Antigo Testamento, e os discípulos de Cristo, espalhados pelo mundo inteiro, no Novo Testamento - são aqueles acerca de quem se pode dizer: "Agora que conheceis a Deus, ou antes, sendo conhecidos por Deus" (Gl 4.9). Para esses cumprem-se as "preciosas e mui grandes promessas" de Deus (2 Pe 1.4). Esse é o relacionamento da aliança que nos foi revelado. Em quarto lugar, Deus estava revelando a sua Lei, isto é, a sua vontade para todos os homens, mas que serve de torah (instruções paternas autoritativas) para o seu próprio povo. "Mostra a sua palavra a Jacó, as suas leis e os seus preceitos a Israel. Não fez assim a nenhuma outra nação" (Sl 147.19, 20). Nos dias do Antigo Testamento, Deus identificou-se como Pai de seu povo, como uma comunidade (Êx 4.22, 23; Ml 1.6). Mas, sob o Novo Testamento, todos quantos recebem o "único e sem par" Filho de Deus (paráfrase usada na versão americana NIV para substituir o termo "unigênito", por implicar afeição) tornam-se irmãos de Jesus mediante a adoção e o novo nascimento (Jo 1.12, 13; 20.17; Gl 4.4-7). E a torah de Deus, em sua dupla forma, de mandamentos e de sabedoria, foi verbalizada

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em ambos os testamentos (por Moisés e os profetas, no Antigo; e por Cristo e seus apóstolos, no Novo) a fim de que os filhos de Deus pudessem aprender a honrar ao seu Pai, mantendo os padrões da família e assim mostrando a semelhança familiar. Em quinto lugar, Deus estava revelando a sua salvação, ou seja, a sua obra de salvar pessoas de qualquer coisa que ameace destruí-las - seja o cativeiro no Egito (Êx 14.13; 15.2); seja o cativeiro babilônico (Is 51.5, 6, 8), sejam adversários nacionais ou tribulações pessoais (nos Salmos encontramos esses fatos muitas vezes), sejam o pecado e Satanás (no Novo Testamento, isso acontece reiteradas vezes). Desse ponto de vista, a revelação atingiu o seu ponto culminante quando Deus nos deu a palavra do evangelho (cf. Gl 1.11, 12), que exibe a obra terminada de Cristo e a contínua operação do Espírito de Cristo (cf. Rm 1.16; Ef 1.13). Juntemos todos esses temas e teremos o âmago do conteúdo da revelação bíblica.

REVELAÇÃO PASSADA E PRESENTE O exame que fizemos sobre a mensagem da Bíblia nos conduz ao ponto seguinte. Conforme já vimos, Deus começou a falar no jardim do Éden e terminou na época dos apóstolos. Portanto, trata-se muito mais de uma questão do passado histórico. Significa isto que por mais de dezenove séculos Deus não dirige a palavra aos homens? Não, não significa. É verdade que desde a era apostólica Deus nada mais disse de novo aos homens, porquanto, de fato, nada mais Ele tem para dizer-nos que não tenha dito antes. Mas, é igualmente verdade que Deus não tem cessado de falar ao homem tudo o que havia dito an31


teriormente. Gladstone não continua falando à nação inglesa o que falou há cem anos porque faleceu. O Deus vivo, porém, continua falando à humanidade o que Ele disse em seu Filho e através dEle, há mais de dezenove séculos. Isso significa que quando lemos, ou ouvimos alguém ler ou expor o registro bíblico daquilo que o Senhor afirmou nas épocas do Antigo e do Novo Testamento, somos verdadeiramente confrontados com uma palavra revelada, dirigida a nós por Deus. E essa palavra exige de nós uma resposta, assim como exigiu da congregação judaica, que ouviu Jeremias, Ezequiel, Pedro, e Cristo, ou das congregações gentílicas, que ouviram os sermões do apóstolo Paulo.

REVELAÇÃO GERAL E ESPECIAL A Bíblia registra as palavras que Deus proferiu no decurso da história, acerca de sua obra redentora, efetuada na própria história. Porém, uma das coisas que a Bíblia mostra é que Deus também se revela à parte das Escrituras, de uma maneira independente da revelação de seu propósito salvador. A revelação deste propósito foi dada mediante uma sequência particular de eventos a pessoas particulares, em lugares particulares; mas, a outra forma de revelação, à parte das Escrituras, é dada a todos os homens por meio da experiência comum de estarem eles vivos no mundo de Deus. Ela nos é dada através de todas as coisas criadas. O Salmo 19.1-4 afirma que os fenômenos celestiais, simplesmente por serem o que são, proclamam a glória e a "voz" inequívoca de seu Criador, até aos confins da terra. Em termos gerais, 32


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Paulo estabelece que as "cousas que foram criadas" por Deus transmitem conhecimento sobre "o seu eterno poder como também a sua própria divindade" - isto é, revelam que Ele é o Deus Todo-Poderoso, que deve ser adorado pelos homens e que os considera indesculpáveis quando deixam de reconhecê-Lo (Rm 1.20-21). A denúncia de Paulo contra o mundo gentílico, em Romanos 1.18-2.16, está baseada nessa verdade. Novamente, essa revelação é outorgada pela providência divina comum, que fornece multiformes provas da bondade de Deus. Em Atos 14.16-17, Paulo afirma que embora Deus tivesse permitido que as apóstatas nações gentílicas "andassem nos seus próprios caminhos", Ele "não se deixou ficar sem testemunho de si mesmo, fazendo o bem, dando-vos do céu chuvas e estações frutíferas, enchendo os vossos corações de fartura e de alegria" (cf. Mt 5.45; Sl 145.9). Assim, Deus demonstra aos homens a sua bondade e a enorme dívida de gratidão que têm para com Ele. Também, essa revelação é realizada mediante a voz da consciência, a qual se manifesta como representante de Deus, mostrando a cada homem pelo menos alguma coisa dos requisitos de sua lei (Rm 2.14, 15) e assegurando, até mesmo aos mais empedernidos, que o julgamento e a condenação virão (Rm 1.32). Visto que essa revelação é transmitida mediante o curso comum da ordem criada, ela é chamada de "natural", em contraste com a revelação "sobrenatural", dada mediante as particulares declarações redentoras de Deus, feitas ao longo da história. Visto que ela tem sido dada de maneira universal,

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é chamada de revelação ''geral'', em contraste com a revelação "especial", registrada na Bíblia, a qual é feita àqueles que leem ou ouvem a Palavra de Deus e que nunca atinge muitas pessoas. Qual é a diferença de conteúdo entre a revelação geral e a revelação especial? Basicamente, trata-se do seguinte: a revelação geral não envolve qualquer mensagem redentora. Atende somente as necessidades do homem antes da queda no pecado. Não revela aos pecadores senão aquilo que foi revelado a Adão, em seu estado de inocência. Não fornece qualquer indício de que Deus, que não tolera o pecado, possa mostrar-se misericordioso para com aqueles que transgridem a sua lei. Assegura os transgressores de sua condenação, mas não lhes oferece a mínima esperança de perdão. Prega a lei, mas não anuncia o evangelho da graça. Somente a revelação especial, dada desde a Queda e que encerra a mensagem de redenção por meio de Jesus Cristo, pode atender as necessidades dos pecadores. A revelação geral pode levar à condenação, se for negada ou negligenciada, mas não pode prover um meio de restauração ao condenado. Se o homem caído acolhesse com seriedade o testemunho da revelação geral, isso o conduziria ao desespero. Mas, de fato, ele não o faz. Os homens "detêm a verdade" (Rm 1.18); eles negam e pervertem a revelação geral, de tal modo que somente alguns lampejos de sua luz conseguem atravessar a barreira. O conhecimento que eles têm de seu Criador assume a forma de negação ou de ignorância voluntária da pessoa dEle, conforme Paulo explica em Romanos 1.19-32 e em Atos 17.22-28. Isso nos leva ao próximo ponto.

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REVELAÇÃO OBJETIVA E SUBJETIVA "Ora, o homem natural não aceita as cousas do Espírito de Deus... não pode entendê-las porque elas se discernem espiritualmente" (1 Co 2.14). "O deus deste século cegou os entendimentos dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evangelho da glória de Cristo" (2 Co 4.4). Não basta que Deus desvende os seus segredos e tome claros os seus mistérios perante os homens caídos, pois eles estão cegos. Os judeus, diz Paulo, não podiam compreender o Velho Testamento (isto é, a revelação objetiva de Deus para eles), porquanto havia um véu sobre as suas mentes (2 Co 3.15). O mesmo acontece quando qualquer porção da verdade de Deus é apresentada a qualquer dos filhos de Adão. O homem, em seu pecado, é incapaz de apreender corretamente a revelação geral ou a revelação especial de Deus, visto que a sua capacidade de discernimento espiritual foi praticamente inutilizada. Se a revelação objetiva tiver de ser acolhida, ou se o homem tiver de responder a ela, Deus terá de retirar o véu do coração do homem, restaurando a visão espiritual. Essa é a operação à qual Paulo se referiu em 2 Coríntios 4.6: "Porque Deus que disse: Das trevas resplandecerá luz – ele mesmo resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo". Foi a operação da revelação subjetiva que Paulo descreveu em seu próprio caso, ao dizer que a Deus "aprouve revelar seu Filho em mim" (Gl 1.15-16) - isto é, mediante um ato iluminador 35


dentro de seu próprio espírito. Foi esta revelação que Cristo reconheceu, quando disse a Pedro que fora o Pai quem lhe revelara que Jesus era o Cristo, o Filho de Deus (Mt 16.17). O processo da manifestação objetiva precisa ser complementado por um ato de iluminação interna, se o homem tem de chegar ao conhecimento de Deus. Dois véus tem de ser retirados: aquele que oculta de nós a mente de Deus e aquele que cobre o nosso coração. Em sua misericórdia, Deus remove ambos. Assim, nosso conhecimento de Deus, do princípio ao fim, é um dom gracioso dEle.

REVELAÇÃO PRESENTE E FUTURA Já vimos que, em certo sentido, a revelação terminou: Deus nada mais tem a dizer ao mundo, nesta nossa era, além do que já disse nas Escrituras, que se completaram quando os escritos do Novo Testamento foram encerrados no primeiro século d.C. Em um outro sentido, porém, a revelação mais clara e completa ainda está por vir. O evento inimaginável, mas certo e seguro, do retorno público de Cristo, quando todo olho O verá, para regozijo ou angústia do homem, fará todo ser humano que já viveu, está vivendo ou ainda viverá - bilhões deles - apresentar-se diante do Senhor para ser pessoalmente julgado. Isso será um desvendamento que ultrapassará qualquer coisa que tenhamos visto de Cristo até o momento. Será precisamente como Pedro diz: "A revelação de Jesus Cristo" (1 Pe 1.7). Para o povo de Deus, isso introduzirá uma eternidade na comunhão com Aquele "a quem, não havendo visto, amais" (1 Pe 1.8); e um dos 36


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aspectos dessa comunhão é retratado assim diante de nós: "Contemplarão a sua face" (Ap 22.4); e: "Havemos de vê-lo como ele é" (1 Jo 3.2). A visão celestial de Deus, da qual faz parte o estar "sempre com o Senhor" (1 Ts 4.17) para contemplar a sua face, sempre foi encarada pela igreja como o supremo bem de todo ser humano (o summum bonum) - e com razão. Paulo contrasta o conhecimento atual e o conhecimento futuro de Deus, afirmando que agora vemos "como em espelho, obscuramente" (1 Co 13.12), ao passo que então O veremos face a face. Na antiguidade, os espelhos eram fabricados de metal batido e polido; não eram de boa qualidade. Assim, Paulo está dizendo que o nosso atual conhecimento indireto é inadequado. Uma versão da Bíblia parafraseia esse trecho, como segue: "Agora vemos apenas um pobre reflexo, então veremos face a face. Agora conheço em parte; então conhecerei plenamente, como sou plenamente conhecido". Neste instante, você não pode ver o escritor deste parágrafo. As minhas palavras são uma espécie de reflexo de meu coração e de minha mente; porém, você não poderá conhecer-me "completamente bem", como costumamos dizer, apenas pela leitura das minhas palavras. Por igual modo, Deus é invisível para você; a sua Palavra revelada verdadeiramente reflete a sua mente e o seu coração, embora não de uma maneira adequada à realidade. Mas, quando Cristo voltar, conheceremos a mente e o coração de Deus tão plena e diretamente como são conhecidos agora nossas mentes e nossos corações. Quando me encontro longe de casa, e minha esposa me escreve ou

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telefona, meus sentimentos tomam-se um misto de prazer, devido ao contato estabelecido, e de saudade, devido à distância. Nessas oportunidades, tenho o desejo de estar em casa, a fim de vê-la e estar com ela. O mesmo sucede aos crentes, quando ouvem o seu Senhor que lhes fala através da Bíblia, a qual Ele esclarece e aplica às suas vidas. Eles anelam por aquela revelação mais plena e mais íntima que ainda está por vir. Estive, certa ocasião, no topo do Ben Nevis, o ponto mais elevado da Inglaterra. Havia névoas cinzentas por toda a parte, de modo que eu não podia ver coisa alguma. Durante toda a subida, foi assim. Porém, quando ergui a cabeça, a névoa acima de mim brilhava tanto que feria meus olhos. Obviamente, havia apenas alguns metros de névoa entre eu e a luz do sol. Era dolorosa a intensidade de meu anseio de que aquela espessa névoa se dissipasse naquele momento (Infelizmente, não foi isso que sucedeu; e terei de escalar novamente o Ben Nevis). Alguns dos quadros bíblicos que refletem a beleza celeste despertam o coração do crente de maneira similar; tal como a névoa brilhante, conferem-nos o senso da proximidade do sol, ao qual não podemos ver (que, nesse caso, é o Filho de Deus), e despertam em nós o desejo de estarmos dentro daquele brilho acima da névoa (que, nesse caso, são os quadros bíblicos). "Os seus servos o servirão, contemplarão a sua face, e nas suas frontes está o nome dele. Então já não haverá noite, nem precisam eles... do sol, porque o Senhor Deus brilhará sobre eles, e reinarão pelos séculos dos séculos" (Ap 22.3-5). No Ben Nevis, eu quis ver o sol; na terra, os cristãos esperam ardentemente pelo dia em que verão o seu Senhor.

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Quando puder o seu rosto mirar, Oh! Há de ser grande glória para mim.

Sim, isso também será revelação.

REVELAÇÃO DADA E RECEBIDA Você quer conhecer a Deus? Então faça conforme se vê em algumas placas de aviso, nos cruzamentos das estradas: Pare, olhe e escute! Pare de procurar Deus, buscando-O em seus pensamentos, fantasias e sentimentos pessoais, ao mesmo tempo em que desconsidera a revelação de Deus. O conhecimento que temos acerca dEle e de sua revelação aos homens são realidades correlatas; ninguém pode ter a primeira sem ter também a segunda. Olhe para aquilo que Deus nos revelou. A Bíblia é a janela por meio da qual você poderá olhar e ver a sua revelação. Também há muitos crentes e muitos livros (este é um deles) que poderão ajudá-lo a entender aquilo que você está examinando e a selecionar o que realmente importa. Da mesma maneira que Londres é o principal lugar da Inglaterra que os turistas de além-mar gostam de visitar, sem importar quais outros lugares da Inglaterra também queiram conhecer, assim também o Senhor Jesus Cristo, que morreu mas está vivo para toda a eternidade, é o centro das Escrituras. Sem importar o que mais lhe chame a atenção na Bíblia, não permita que essas outras coisas o distraiam dEle. Escute o que a Bíblia tem a dizer-lhe sobre Cristo, bem como sobre a necessidade que temos dEle (ou, especificamente, sobre a 39


necessidade que você tem dEle). A Bíblia, na qual você pode contemplar a pessoa de Cristo, é a comunicação de Deus para você acerca do Filho. Aprenda com Deus acerca de seu Filho; reaja favoravelmente a tudo quanto ali lhe for mostrado. Faça isso, e algum dia você estará dizendo juntamente com Paulo e com muitos outros milhões de pessoas salvas: "Deus... resplandeceu em nossos corações, para iluminação do conhecimento da glória de Deus na face de Cristo" (2 Co 4.6). Você estará dizendo as palavras do ex-cego de Jerusalém: "Uma cousa sei: Eu era cego, e agora vejo" (Jo 9.25). Você conhecerá a revelação divina segundo a única maneira que, em última análise, tem proveito - a saber, pelo lado de dentro. E, conhecendo-a dessa maneira, você conhecerá o Senhor Deus.

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