Auto da Barca do Inferno - Gil Vicente

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Gil Vicente

Auto da Barca do Inferno


TÍTULO ORIGINAL

O Auto da Barca do Inferno

TRILOGIA DAS BARCAS

Auto da Barca do Inferno Auto da Barca do Purgatório Auto da Barca da Glória

PRODUÇÃO EDITORIAL

Beatriz Franco Camilla Amoedo Stefany Borba

2013 - Editora Fomentar


“A arte dramática é a capacidade de representar a vida do espírito humano, em público e em forma artística.” — Constantin Stanislavski



Nota ao leitor

C aro leitor, você está prestes a viajar pelo mundo do teatro com a obra o “Auto da barca do Inferno”, de Gil Vicente. Trata-se de um

texto de 1517 que retrata a sociedade de Lisboa da época, porém, as críticas e o tema trazidos por ele continuam referentes até a atualidade. Não se deixe intimidar pela linguagem da obra que, a princípio, pode parecer confusa e difícil. Depois de algumas páginas lidas você estará familiarizado com o universo linguístico e não encontrará mais grandes problemas. Essa edição trata-se de uma adaptação, onde visamos facilitar o entendimento do texto e a compreensão da linguagem da época, pretendendo auxiliá-lo com essas possíveis dificuldades. Ressaltamos alguns esclarecimentos sobre a edição:


SOBRE O TEXTO •

Manteve-se aqui a estrofação do texto, assim como está presente na obra original. Portanto, o espaçamento entre as linhas não ocorre dividindo as falas de personagens diferentes, como geralmente acontece no teatro, e sim dividindo as estrofes. Todo o teatro de Gil Vicente é composto de versos rimados e são utilizados redondilhos e, às vezes, versos mais longos conhecidos por “de arte maior”. Porém fizemos pequenas altera- ções em algumas palavras da obra, cuja grafia e significado se aproximavam do que é utilizado atualmente. Devido a isso, ocasionalmente, as rimas e a métrica do verso se perderam, porém preferemos prezar por facilitar o entendimento da obra. Durante o texto, encontram-se algumas frases com recuo no início, elas não fazem parte das estrofes da peça e apenas indicam ações dos personagens. Dá-se também a importância da leitura do prefácio para maior compreensão do contexto da obra, sabendo mais sobre vida do autor, época em que vivia, obra e ideologia.

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SOBRE AS NOTAS •

Visando uma leitura mais limpa, adicionamos as notas explicativas em uma segunda coluna cinza ao lado do texto. Dessa forma o leitor pode ater-se à leitura da peça com mais clareza e recorrer às notas apenas quando necessário. As notas foram postas ao lado do verso a que se referem, sendo as palavras que elas explicam destacadas no texto por itálico. Caso a palavra volte a ser citada, a nota pode repetir-se caso já tenha passado algumas páginas da ocorrência anterior. Quando duas palavras numa mesma estrofe necessitam de explicação, as notas à que se referem são separadas por hífen.

• • •

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Auto da Barca do Inferno


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4

2

3

5

1- recuo 2- fala da personagem 3- separação da estrofe

Auto da Barca do Inferno

4- notas laterais 5- notas separadas por hĂ­fen

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Gil Vicente o pai do teatro

G il Vicente foi um grande dramaturgo e poeta, nascido em Portugal no ano de 1465. Tornou-se um dos autores mais importantes do

período do Renascimento, sendo um crítico dos costumes de sua época. Escreveu autos (do latim: actu = ação, ato) e em sua maioria possue elementos cômicos e intenção moralizadora; também se aventurou no mundo dos poemas, ao estilo das cantigas dos trovadores medievais. Sua primeira obra famosa foi o “Auto da Visitação”, onde se inspirou na adoração dos reis magos e que ficou conhecida depois de ter sido apresentada à rainha D. Maria em 1502. Suas obras podem ser classificadas em duas categorias: Autos e mistérios (de caráter sagrado) e as comédias e farsas (de caráter profano). Podemos, em uma análise, encontrar em obras como a “Trilogia das Barcas” (“Auto da Barca do Inferno”, “Auto da Barca do Purgatório” e “Auto da Barca da Glória”), elementos que se intercalam


entre essas classificações. Gil Vicente viveu durante um período crucial da história de Portugal, testemunhando a descoberta do Brasil e da costa africana, a chegada de Vasco da Gama à Índia e, consequentemente, a transformação de Lisboa no principal ponto mercantil de especiarias, e a crise no reinado de D. João III, que levou à Inquisição, à Companhia de Jesus e ao ambiente austero e hipócrita que ele personificava em suas obras. Toda a agitação dessa época se reflete de maneira humorística e crítica do teatro vicentino. Gil Vicente tem seu foco é voltado para a decadência moral que já começava a se formar na época, e suas crenças voltadas para a antiga sociedade medieval, que imaginava estável, cujos valores sociais e morais ele defendia como contraposição à corrupção e decadência de seu tempo. Gil Viscente mantinha-se fiel ás formas do fim da Idade Média, usando os redondilhos e compondo no modelo teatral de autos, ao invés de aderir ao novo tipo de verso oriundo do Renascimento Italiano. O teatro vicentino é, em sua maioria, alegórico, ou seja, por meio de uma personagem pode ser representado um grupo, uma classe social ou uma entidade espiritual. Com um humor refinado e um toque de sátira, são representadas todas as camadas da sociedade, inclusive o clero e a nobreza, em críticas de caráter moralista. As personagens de Gil Vicente falam diversas variantes do português, desde o vulgar ao erudito, e usam expressões que eram comuns nos dialetos e linguagens populares da época. Era também frequente o uso do espanhol (língua internacional da época) e o latim de uso eclesiástico e jurídico. Ressalta-se também que o autor utiliza um lirismo nato e que cada personagem usa linguagens próprias de seu contexto social. A peça “Auto da Barca do inferno”, possui um único espaço físico e duas personagens permanentes, o diabo e o anjo, que são os julgadores dos outros personagens, que por sua vez, serão guiados para a barca do inferno ou para a barca da glória.

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Auto da Barca do Inferno




Auto da Barca do Inferno A uto de moralidade composto por Gil Vicente por contemplação da sereníssima e muito católica rainha Lianor, nossa senhora, e repre-

sentado por seu mandado ao poderoso príncipe e mui alto rei Manuel, primeiro de Portugal deste nome. Começa a declaração e argumento da obra. Primeiramente, no presente auto, se fegura que, no ponto que acabamos de expirar, chegamos subitamente a um rio, o qual por força havemos de passar em um de dois batéis que naquele porto estão, scilicet1, um deles passa para o paraíso e o outro para o inferno; os quais batéis tem cada um seu arrais na proa: o do Paraíso um Anjo, e o do Inferno um Arrais infernal e um Companheiro. 1. (latim:) isto é; saber.


O primeiro interlocutor é um Fidalgo que chega com um Paje, que lhe leva um rabo mui comprido e uma cadeira de espaldas. E começa o Arrais do Inferno ante que o Fidalgo venha. Diabo: À barca, à barca, houlá! que temos gentil maré! — Ora venha o caro à ré! Companheiro: Feito, feito! Diabo: Bem está! Vai tu muitieramá, e atesa aquele palanco e despeja aquele banco, pera a gente que virá. À barca, à barca, hu-u! Asinha, que se quer ir! Oh, que tempo de partir, louvores a Berzebu! — Ora, sus!, que fazes tu? Despeja todo esse leito! Companheiro: Em boa hora! Feito, feito! Diabo: Abaixa aramá esse cu! Faze aquela poja lesta e alija aquela driça. Companheiro: Oh-oh, caça! Oh-oh, iça, iça! Diabo: Oh, que caravela esta! Põe bandeiras, que é festa. Verga alta! Âncora a pique! — Ó poderoso dom Anrique, cá vindes vós?... Que coisa é esta?...

rapaz a serviço de um nobre cauda da capa encosto (de cadeira)

parte inferior da verga do barco em muita má hora estica - corda da vela desocupa

depressa Belzebul, o Diabo desocupa trabalha com cuidado corda que viar a vela - frouxa alivia - corda para içar a vela estica (a vela)

Henrique

Vem o Fidalgo e, chegando ao batel infernal, diz:

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Auto da Barca do Inferno


Fidalgo: Esta barca onde vai ora, que assim está apercebida? Diabo: Vai pera a ilha perdida, e há de partir logo essa hora. Fidalgo: Pera lá vai a senhora? Diabo: Senhor, a vosso serviço. Fidalgo: Parece-me isso cortiço... Diabo: Porque a vedes lá de fora. Fidalgo: Porém, a que terra passais? Diabo: Pera o inferno, senhor. Fidalgo: Terra é bem sem-sabor. Diabo: Quê?... E também cá zombais? Fidalgo: E passageiros achais pera tal habitação? Diabo: Vejo-vos eu em feição pera ir ao nosso cais... Fidalgo: Parece-te a ti assi!... Diabo: Em que esperas ter guarida? Fidalgo: Que deixo na outra vida quem reze sempre por mim. Diabo: Quem reze sempre por ti?... Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!... E tu viveste a teu prazer, cuidando cá guarecer por que rezam lá por ti?... Embarcai! Hou! Embarcai! que haveis de ir à derradeira! Mandai meter a cadeira, que assim passou vosso pai. Fidalgo: Quê? Quê? Quê? Assim lhe vai?! Diabo: Vai ou vem! Embarcai prestes!

Auto da Barca do Inferno

aparelhada (o F. refere-se ao D. por mulher) (o D. corrige F.)

sem graça

com o jeito adequado essa é a sua opinião proteção

salvar-se

pôr no barco essa é a situação dele rápido

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