Degustação - O Curupira e outros seres fantásticos do folclore brasileiro

Page 1

e outros seres fantásticos do folclore brasileiro

januária cristina alves ilustrações berje



e outros seres fantásticos do folclore brasileiro


1ª. edição

são paulo – 2017


e outros seres fantásticos do folclore brasileiro januária cristina alves ilustrações berje


Copyright © Januária Cristina Alves ibi, 2017 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-xx-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br

Diretora editorial Ceciliany Alves Gerente editorial Isabel Lopes Coelho Editora Débora Lima Editor assistente Estevão Azevedo Revisora Bruna Perrella Brito Supervisora de arte Karina Mayumi Aoki Projeto gráfico e diagramação Flávia Castanheira Editoração eletrônica Paulo Minuzzo Diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Alves, Januária Cristina O Curupira e outros seres fantásticos do folclore brasileiro / Januária Cristina Alves ; ilustrações Berje. – 1. ed. – São Paulo : FTD, 2017. ISBN 978-85-96-00834-1 1. Contos folclóricos I. Berje. II. Título. 16-09289

CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático:

1. Folclore brasileiro : Literatura infantil 028.5 2. Folclore brasileiro : Literatura infantojuvenil 028.5


7

O caçador que enganou o Curupira

guia dos observadores de seres fantásticos 17

Curupira

23

Cobra-Norato

27

Caipora

34

Boitatá

38

Anhangá

42

glossário

43

posfácio

46

sobre a autora

47

sobre o ilustrador



O CAÇADOR QUE ENGANOU O CURUPIRA Nunca mate um bicho só por matar. Cuidado, caçador! O Curupira pode te pegar!

Numa dessas matas grandes e bonitas do Brasil sem fim vivia um hábil caçador, que amava mais a caça que os bichos. Ele saía de manhã cedinho, quando o dia começava cinzento e parecia frio, e ia caçar. Voltava de noite, cansado, mas sempre com muita caça para alimentar a família e vender na cidade mais próxima. Certo dia, pareceu-lhe que o mato estava diferente. Era como se falasse por sussurros: as folhas estalavam, as pedras se mexiam, parecendo pisadas por algum gato-do-mato. O caçador olhou, olhou e nada viu. Então, seguiu seu destino, abateu muitos bichos e, exausto, lá pelo meio-dia, deitou-se à sombra de uma enorme sapopemba. Dormiu. Acordou sobressaltado, achando que tinha alguém olhando para ele. E tinha! Um anão caolho, de cabelo vermelho, peludo, com os pés virados para trás e dentes verdes arreganhados, sorrindo para ele. O malvado caçador tremeu de medo da cabeça aos pés: o CURUPIRA! Finalmente dava de cara com o ser que todos os caçadores temiam, que trazia azar a quem o encontrasse, mas que protegia os

7


animais e as árvores da sanha assassina do bicho homem. Aquele caçador sabia: o Curupira não perdoava quem caçava por caçar, quem destruía as árvores e a natureza assim, só por querer. O homem olhou para a bolsa cheia de caça e fechou os olhos, esperando para morrer. Um, dois, cinco, sete segundos e nada. Abriu um olho. Depois o outro e... silêncio. O anãozinho continuava ali, parado, sem mexer um só músculo. Mais alguns suspiros do caçador e o Curupira resolveu falar: – Como vai, meu neto? – Muito bem, senhor – respondeu o caçador, suando frio. – O que você está fazendo aqui, meu neto? – Ora, eu me perdi, meu avô. – E que dia você saiu de casa? – Dois dias antes de ontem, de manhã, bem cedinho. – Hã, hã... – resmungou a figura. – Você tem aí alguma coisa de comer, meu neto? – Nadica de nada – respondeu o caçador, mentindo. – Ah, mas eu quero é comer! – ameaçou o bicho dos pés virados para trás. – E eu também, ué! – o petulante caçador finalmente tomou coragem para enfrentar o bicho. – Olhe aqui, moço, eu estou com fome e quero comer! Não brinque comigo que eu te mato! Me dê a sua mão aí! Ande! Corte a sua mão e me dê pra comer, já! – vociferou o anãozinho, com voz de gigante. O caçador, tremendo mais que vara verde, tratou de abrir a bolsa o mais rápido que pôde, pegou um facão e sem dó nem piedade cortou a mão de um macaco que ele tinha acabado de caçar.

8


O bicho verde pegou a carne fresca e rapidamente comeu, se lambuzando. O caçador então, aliviado, foi logo perguntando: – Está satisfeito agora, meu avô? – Satisfeito, eu?! Isso aqui não deu nem pra encher o buraco do meu dente! Com fome eu estava e com fome fiquei! Agora eu quero é comer o seu pé! Passe logo ele aí, meu neto! Para ganhar tempo, o caçador pediu para afiar a faca. Enquanto isso, remexia no embornal à procura do pé do macaco. Era um pé grande, pensou, deveria matar a fome do Curupira! Deu o pé do macaco para o monstrengo comer e ele pareceu satisfeito. Lambeu os beiços e passou a mão na barriga, como se estivesse saciado. Mas... ledo engano! Não é que o dono das matas queria mais? – De carne eu estou cheio, meu neto, mas me deu foi vontade de comer seu coração! Me dê ele aqui e não demore! – Claro, senhor, é pra já! – resmungou o caçador, procurando no embornal um coração para enganar o homenzinho verde e vendo a caça do dia inteiro ir parar em seu bucho. O Curupira comeu tudinho e até arrotou de satisfação! Mas se o caçador pensou que estava livre dele, enganou-se! O protetor das matas não iria deixar alguém que desrespeitava os animais escapar tão facilmente. – Tem um fuminho aí, meu neto? – seguiu pedindo o Curupira. – Tenho! Fumo, pito e fogo! Tome aqui! E agora está bom, né? O senhor pode pegar tudo e me deixar em paz, né não? – respondeu o caçador trapaceiro, se irritando com a situação e esquecendo o perigo que corria. Bem tranquilo, o Curupira falou novamente:

9


– Deixe de pressa, meu neto! Agora é que a coisa está ficando boa pro seu lado! Peça o que você quiser, meu neto, peça aí, que vou lhe arranjar! “Ahá! Agora eu me vingo desse bicho! Ô se me vingo! Prepare-se, seu poderoso Curupira! Agora é que eu quero ver a porca torcer o rabo!”, pensou o arrogante caçador, sorrindo por dentro, já saboreando antecipadamente a sua vingança! Pois não é que ele pediu... – Você, seu Curupira, bem que podia me dar uma coisa que eu quero muito... e faz é tempo! – E pois! Diga, meu neto, o que você quer? – O seu coração, Curupira! Eu quero comer seu coração assado, pois estou com uma fome do tamanho do mundo! – disse o caçador, se enchendo de coragem. – Por isso não, meu neto, está fácil! Me passe seu facão! Sem mais demora, o caçador passou a faca ao Coisa, que não se deu por achado: rasgou o próprio peito com a faca, arrancou o coração e... morreu! Caiu duro ali na mata mesmo! Pronto! O caçador não acreditou no que viu: tinha matado o Curupira! E agora, o que seria dele? Saiu correndo mata adentro, largando a bolsa cheia de caça naquele lugar maldito, gritando



“Ai, ai, ai!” sem parar, com as mãos na cabeça. Matara o senhor das matas, o defensor dos bichos! O que faria? Entrou em casa esbaforido e logo foi contando tudo para a mulher. Ele dava risada, depois chorava desesperadamente, a mulher não estava entendendo nada! – Calma, homem de Deus! Conte essa história direito! – disse a mulher, dando-lhe um safanão que era para ver se ele abaixava o facho! – Então, mulher, eu não estou dizendo? EU MATEI O CURUPIRA! Pronto! Matei! Aliás, ele mesmo se matou: arrancou o próprio coração pra me dar de comer! A mulher arregalou os dois olhos e sentou no chão, sem forças nas pernas. – Ave Maria! Você matou o homenzinho verde! Nunca mais você vai ter sorte na vida! – declarou a mulher, desanimada. O caçador fanfarrão, enchendo o peito de coragem, deu de ombros: – Quero só ver! Matei o Coisa, muita gente vai me agradecer! Bem feito! Eu é que não vou ficar aqui chorando que nem um medroso de meia tigela! Vou é tocar minha vida pra frente! E saiu andando, assobiando, como se nada tivesse acontecido. A mulher, desconsolada, ficou ali no chão, coçando a cabeça... E, assim, o caçador continuou sua vidinha e resolveu esquecer o episódio. Um ano depois, sem querer, se viu próximo ao lugar em que tudo tinha acontecido e lembrou-se do velho Curupira: “A essa altura o homenzinho verde já deve estar puro osso!”, pensou ele. “Vou passar lá, colher seus dentes pra fazer remédio e tirar alguns de seus ossos, que vão virar flechas poderosas!”

12


Pegou seu machado e foi. Quase caiu para trás de surpresa quando viu que o Curupira estava inteirinho, do mesmo jeitinho que ele havia deixado um ano antes! Olhou que olhou... Chegou bem perto do nariz do bicho e viu que respirar ele não respirava! Então, sem perder mais tempo, TCHUM! Meteu o machado nos dentes do anãozinho e imediatamente o Curupira saltou na sua frente! Vivinho da silva! – Ô, meu neto! Você por aqui? Completamente desarvorado, o caçador deu um pulo para trás e apurou a vista, para confirmar o que estava enxergando: – Ô, seu Curupira! O senhor por aqui assim, bonzinho, bonzinho? – Pois é, meu neto! E eu já estou é com muita sede! Ande! Me arrume aí água! Acordei foi com muita sede! E o caçador, já recuperado do susto, logo pensou em aprontar de novo. Fez xixi no chapéu e o ofereceu ao Curupira: – Está na mão, Curupira. Água fresquinha pro senhor. O Coisa Verde bebeu e nem desconfiou. Feliz da vida, foi logo dizendo: – Tenho um presente pra você, meu neto. – É? – Tome esse arco e essa flecha mágica. Pegue essa arma e pode flechar em direção ao cerrado, sem destino, que você vai ver que a flecha vai alcançar a caça facinho, facinho! Mas, atenção: nunca atire em pássaro de bando! Isso eu não permito! – avisou o Curupira. – De jeito nenhum, meu avô! – jurou de pés juntos, o caçador. E assim foi. O homem continuou a caçar, como sempre. Só que agora era diferente: ele soltava a flecha mágica para qualquer lado e ela retornava direitinho, com uma caça de boa qualidade,

13


que alimentava sua família, os moradores da cidade mais próxima, e ainda sobrava. Com esse instrumento incrível em mãos, o caçador desalmado virou o terror dos animais. Os outros caçadores da região começaram a reparar em seus feitos e queriam sair junto com ele para ver se também davam a mesma sorte. Mas o caçador, esperto como ele só, preferia sair sempre sozinho. Mas, como todos sabem, todas as coisas no mundo têm um fim. E com a sorte do caçador não seria diferente! Talvez até fosse esse o plano do Curupira! O caçador acostumou-se tanto a ter caça farta e constante, que acabou se esquecendo da recomendação do monstrengo: “Nunca atire em pássaro de bando!”. E então, um dia, ao ver uma ave chamada aracuã pousada numa árvore, logo se encantou com ela e quis caçá-la. Pressentindo o perigo, a ave – que costuma gritar “ha-ga-gá‑gogok” (“aracuan”) quando se sente ameaçada – pôs-se a gritar, como que pedindo ajuda. Decidido, o caçador mirou na bichinha e atirou a flecha mágica! Num segundo, sem que o caçador se desse conta, o bando da ave baixou inteirinho e o homem foi morto a bicadas! Bem que o Curupira tinha alertado: caçador cruel, mais dia, menos dia, acaba se havendo com ele, o protetor das matas. O desobediente inimigo da natureza teve, assim, o seu fim, e a flecha mágica nunca mais foi vista por ali. Até hoje, naquela região, ninguém mais ouviu falar dela. E nem do Curupira.



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.