O menino de calça curta
Copyright © Flavio de Souza, 2018
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diretora editorial Ceciliany Alves
gerente editorial Isabel Lopes Coelho
editor Estevão Azevedo
preparadora Marta Lúcia Tasso
revisora Elisa Martins
editor de arte Daniel Justi
projeto gráfico e diagramação Flávia Castanheira
diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno
Flavio de Souza é diretor de teatro, roteirista, ilustrador, ator e escritor de diversos livros infantis. Foi criador e roteirista das séries para a TV Mundo da Lua e Castelo Rá-Tim-Bum.
Rafael Sica é ilustrador e quadrinista, e já publicou suas tiras em diversos jornais brasileiros. Ganhou o Troféu HQ Mix, em 2005, na categoria Novo Talento – Desenhista e, em 2009, na categoria Web Quadrinhos.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Souza, Flavio de O menino de calça curta / Flavio de Souza; ilustrações Rafael Sica.
1. ed. – São Paulo: FTD, 2018.
ISBN: 978-85-96-01201-0
1. Literatura infantojuvenil I. Sica, Rafael. II. Título.
17-09409
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infantil 028.5
2. Literatura infantojuvenil 028.5
CDD-028.5
Flavio de Souza
Quando eu era menor, ficava bastante na casa dos meus avós, os pais do meu pai. Meu pai e minha mãe trabalhavam de noite, então minha vó Nena ou meu vô Joca iam me buscar na escola, e eu tomava banho e jantava na casa deles.
Muitas vezes meus pais se atrasavam, ou estavam muito cansados, ou o trânsito estava horrível, ou as três coisas ao mesmo tempo, e eu acabava dormindo lá, no quarto que antes foi do meu pai e do meu tio.
Na casa desses avós eu podia fazer coisas que eu só podia fazer lá. Minha avó deixava eu comer a sobremesa antes porque acreditava quando eu dizia que depois ia comer a comida.
No banheiro tinha banheira e meu avô brincava comigo de batalha-naval e tempestade de neve, e depois eu podia ficar mais dentro da água até ficar enrugado. Lá eu podia desenhar com tinta e pincel todo dia. Eu podia fazer tanta coisa!
Naquela casa parecia que o tempo passava mais devagar.
Avó Nena estava sempre indo ou chegando, entrando ou saindo. Cozinhando ou lavando ou passando. Bordando ou lendo ou falando com uma amiga ao telefone em pé e andando pela casa, catando coisas e pondo ou tirando do lugar. Ela parecia um brinquedo daqueles que só para quando a corda acaba, e a corda dela durava o dia inteiro.
Quando a novela começava, ela já estava entre o mundo daqui e o mundo dos sonhos e ia sonâmbula pro quarto. Falava boa-noite enquanto escovava os dentes, de olhos fechados. O último beijo tinha cheiro de hortelã.
Por isso tudo eu passava mais tempo com o meu avô. Ele trabalhava em casa, então podia fazer coisas que o meu pai não podia. Ele gostava de tomar café da manhã na padaria da esquina. Tomar lanche na padaria. E tomar um cafezinho a qualquer hora na padaria. Ele preferia comprar um jornal diferente todo dia, porque gostava de variar. Ele achava que ler sempre o mesmo jornal era como conversar sempre com a mesma pessoa.
O vô Joca me ensinou uma pilha de jogos de baralho. Eu ensinei ele a jogar videogames. Eu instalei pra ele a maioria dos programas no computador e todos os aplicativos no celular, porque o filho dele, o meu pai, perdia a paciência depois de dois minutos. Não sei por quê, mas parece que neto tem mais paciência com avô, e avô, com neto.
Ele já tinha lido pra mim mil e uma histórias. E contado outras. E até inventou uma em que eu era o herói. Um dia eu vou fazer um desenho animado e meu avô vai ser o herói.
Nesta história eu sou o herói porque descubro um segredo misterioso que depois eu desvendo, participo de uma caça ao tesouro e ainda faço um ogro dar risada. Mas não é conto de fada não, eu sou o herói, mas o ogro não é um monstro peludo, feroz e fedido. O ogro é o meu bisavô Alexandre.
Geralmente a gente nasce com oito bisavós, né? São dois pais, quatro avós, quatro bisavôs e quatro bisavós, né? Então, pra ficar claro de qual bisavô eu estou falando: o ogro desta história é o pai do pai do meu pai.
Esse bisavô era um resbufaclão. Foi a vó Nena que inventou esse apelido, ela achou que o sogro dela resmungava, bufava e reclamava demais. Tem gente que acha que reclamar e resmungar é a mesma coisa. Mas eu não acho, porque tenho uma tia que reclama muito todo dia de quase tudo e cada vez que ela faz uma reclamação, o marido, meu tio, resmunga coisas assim: “Por que essa mulher reclama tanto?”, “O que eu fiz pra merecer isso?”, “Será que isso nunca vai acabar?”.
Esse apelido começou maior: Resmumbufaclamão. Depois de um tempo acabou virando Resbufaclão, que era um apelido secreto, tá? E o único que ele teve. Ninguém nunca teve coragem de chamar o bisavô Alexandre de Alex, Xandre, Alê. Nem os pais dele pensaram em fazer isso, ele já era enfezado desde pequeno.
Me disseram que enfezado vem de fezes, que é como os médicos chamam o cocô, porque quem vai pouco ao banheiro fica… enfezado, com bastante fezes dentro, e isso faz a pessoa ficar irritada. Mas eu não sei se o intestino do meu bisavô funciona bem ou não…
Amaioria das pessoas chamava esse meu bisavô de seu Gonzaga. Ele estava sempre de cara amarrada e só fazia o que sempre fazia do jeito que sempre fazia no horário que sempre fazia no mesmo lugar e com as mesmas pessoas ou então ele com ele mesmo. Se não podia ser do jeito dele, o seu Gonzaga cruzava os braços, endurecia o queixo e olhava pra um lugar onde não tinha ninguém, isso quando não dava as costas pros outros ou se afastava.
Não, ele tinha outro apelido sim, também secreto, só meu. Lembra? Eu já até chamei meu bisavô de ogro. Depois ele ganhou outro, mas esse eu vou contar mais pro fim da história, tá?
Me disseram que ele era assim mal-humorado porque tinha pressão alta e por isso tinha dor de cabeça o tempo todo e nunca tomava remédio, e por isso o mundo tinha que aceitar que ele era daquele jeito e pronto. Já me explicaram o que é pressão alta, mas eu não lembro se tem a ver com a pessoa ser pressionada a fazer coisas que ela não quer ou se a pessoa vê coisas que ela não gosta e fica impressionada… se bem que aí seria impressão alta, mas é melhor eu deixar isso pra lá e continuar a história.
Obisavô Alexandre se aposentou, a bisavó Florinda morreu e aí ele foi ficando mais calado do que já era e mais sério e mais enfiado dentro da casa dele. E o fusca ficou parado anos e anos na garagem, até a filha mais velha dele, a tia-avó Celeste, começar a usar.
Aí ele começou a esquecer quase tudo ou tudo mesmo: palavras, nomes, atividades. Ele esquecia como chamava o cachorro. Esquecia de dar comida pro cachorro. Esquecia de fechar a torneira da pia. Esquecia de almoçar. Esquecia de dormir.
Depois ele começou a esquecer o próprio nome e um dia ele saiu de casa pra comprar alguma coisa que ele não sabia mais o que era em uma loja que ele não lembrava mais qual era e quando tentou voltar não tinha ideia de onde morava.
Então meu bisavô não podia mais ficar sozinho. Como quando a gente é bem pequeno. Porque qualquer lugar do mundo passa a ser um lugar perigoso.
Um dia eu dormi na casa da vó Nena e do vô Joca e quando acordei fui pro quarto da bagunça pra pegar um dos brinquedos antigos do meu pai. Ele não participa muito desta história, mas eu posso contar que ele foi um menino que não deixava tudo jogado e não quebrava os brinquedos dele. Está tudo até hoje lá no quarto da bagunça.
Eu queria ser assim. Um dia, quem sabe, eu vou ser mais como o meu pai.
Onde eu estava? No quarto da bagunça, onde eu achei um cadernão pesado com cheiro forte, com cara de álbum de fotos. Era!
Que álbum esquisito. Pra começar, na capa estava escrito photographias. Que jeito louco de escrever! As fotos não tinham cor. Eu pensei: “Será que desbotaram?”. Preso numa página tinha um envelope cheio de tiras com fotos transparentes e bizarras, e tiras de fotos tão pequenas que não dava pra ver nada direito. Eu pensei: “O que será que são essas tiras?”.
Minha avó tinha saído pra ir à missa, à ginástica chinesa, à feira e a mais alguns lugares. Meu avô gosta de ficar lendo e escrevendo de noite, e de manhã ele dorme. Não tinha ninguém pra responder às minhas perguntas. Liguei pra minha mãe e pro meu pai, mas eles não atenderam.
Eu comecei a olhar as fotos do álbum e fui estranhando porque não reconhecia aquelas pessoas. Aí eu virei uma página e fiquei parado de boca aberta. Tentando entender o que estava vendo. Sem conseguir!