Majori Claro
I MAGINE o campo dourado de um milharal extenso, o sol quente banhando espigas, hastes tremulando ao vento, aquecendo cada fruto e grão, maturando o que será colhido por abençoada mão.
A MÁLIA nasceu
a espantalha a espantalha
sob essa luz dourada, boneca menina espantalha, com a missão de espantar tantos pássaros famintos que vinham ao milharal para se alimentar.
P OR QUE , então, afugentá-los,
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se com eles poderia ganhar o mundo, sentir a vida, e descobrir, na natureza e na poesia, a razão maior de ter nascido naquele tempo e lugar?
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a espantalha
3a. edição
São Paulo – 2014
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Copyright © Majori Claro, 2014 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-XX-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br
Diretora editorial Ceciliany Alves Editora executiva Valéria de Freitas Pereira Editora Cecilia Bassarani Editora assistente Agueda C. Guijarro del Pozo Preparadora Elvira Rocha Revisora Bruna Perrella Brito Editora de arte Andréia Crema Projeto gráfico e diagramação Paulo Minuzzo Diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno
Majori Claro nasceu na cidade de São Paulo, em 1968. É psicóloga, escritora e ilustradora. É mestre em Literatura e Crítica Literária pela PUC-SP (2012), com pesquisa na área de literatura oral e infantojuvenil. Participa de grupos de pesquisa em Crítica Literária e coordena cursos e oficinas criativas para crianças e adultos, buscando unir Psicologia e Arte.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Claro, Majori Amália, a espantalha / Majori Claro. -3. ed. -- São Paulo : FTD, 2014. ISBN 978-85-20-00088-5 1. Literatura infantojuvenil I. Título. 14-13201
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Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantil 028.5 2. Literatura infantojuvenil 028.5
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Dedico este livro a todas as criancs as e a todos os poetas‚ por me convidarem a sempre olhar o mundo como se fosse a primeira vez.
O nascimento de Amália 6 Alma de espantar 14 Fantasmas 26
O lado negro das coisas 34 Dias de tormenta 42
Renascimento 48 Revolta 56 Juramentos solenes 61 Encontros 68
O dom de Amália 81
O nascimento de Amália
F
oi no Sítio do Espigão, lá pelos lados de Minas Ge-
rais, que Amália nasceu. Eu vou contar tudo sobre este grande acontecimento, tim-tim por tim-tim, sem uma virgulinha a mais, nem um travessão a menos. E nem precisa ficar temeroso de que o meu relato tenha sangue, cordão umbilical e placenta, essas coisas estranhas que saem das mães na hora do parto, porque desse nascimento aqui só saiu mesmo foi palha. Muita palha. E sabe por quê? Porque Amália não era gente, era uma espantalha! Espantalha não existe, você pode me dizer, está aí uma coisa que sempre nasce homem. É verdade. Espantalho quase sempre é homem, porque, em geral, homem mete mais medo do que mulher e, você sabe, os espantalhos foram feitos para amedrontar os pássaros e os roedores que ameaçam
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destruir a plantação. Eu não concordo muito com essa ideia, não. Acho machista demais. É certo que homem, quando tem cara de malvado, mete mais medo na gente, mas mulher costuma ser mais brava, mesmo quando a cara engana. A mãe da Amália, por exemplo, é uma mulher bem inofensiva, mas quando pega no pé de alguém é duro de largar. O nome dela é Grimalda, mas, por causa daquele corpanzil, todos a chamam de dona. Dona Grimalda. Ela é viúva, tem apenas 48 anos, mas parece ter bem uns 60 ou mais: cabelos castanhos, curtos e cacheados, boca pequena e nariz pontudo, tudo isso equilibrado num corpo rechonchudo e sem pescoço. E é cheia de manias: mania de limpeza, mania de xeretar a vida alheia, mania de colecionar chinelos. Disso, ela tem de tudo um pouco: chinelo de pompom, de salto alto, chinelo das mil e uma noites, de bobo da corte, até chinelo de chinês. Mas sua pior mania, com certeza, é ser apaixonada por... milho! Café da manhã? Broa de milho. Almoço? Cuscuz salgado. Sobremesa? Curau com muita canela. E, no chá da tarde, uma panela cheinha de canjica não dá nem para começar. À noite, tem milho cozido, polenta frita, angu com frango, bolo de milho para acompanhar o cafezinho e pamonha para se deliciar. Outra mania sua é ver novelas, ela simplesmente adora assistir às novelas que passam na televisão. Para isso, a mãe de Amália prepara uma tigela cheia de pipoca amanteigada e espera Filomena chegar.
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Filomena, também conhecida por Filó, é comadre de Grimalda e outra aficionada por novelas de televisão. Basta o relógio dar seis horas para ela aparecer na janela de Grimalda, toda pintada com ruge, sombra e batom. Para falar a verdade, eu nem sei como essas duas podem ser amigas, pois enquanto Grimalda parece velha, metida em xales e chinelos, Filomena é vaidosa como um pavão. Alta, magra, bronzeada e toda moderna, ela adora minissaia, esquiar na neve e dançar forró. No fundo, não está nem aí para as novelas, o que ela gosta mesmo é de ficar observando as atrizes para imitá-las depois. Ser uma estrela de cinema: eis o seu maior sonho e sua grande frustração. Também, logo mocinha, Filomena deu à luz três filhos e ainda bem cedo perdeu o marido, ficando viúva como Grimalda, fato que as uniu ainda mais. Mas a amizade já vinha de antes, prova disso é que Grimalda batizou Joana, a filha mais velha de Filó. E a amizade, assim como o amor, é coisa que não se entende com a cabeça, mas com o coração. Portanto, não nos apeguemos às diferenças entre as duas, o fato é que as amigas adoravam ficar juntinhas, fofocando e assistindo à televisão. Agora que você já conhece a dupla, voltemos à Amália, nossa heroína espantalha, e ao ponto onde tudo começou. Tudo começou no... milharal! Pois é, Grimalda não era exatamente o que costumamos chamar de uma pessoa “criativa”. Na verdade, era teimosa como uma galinácea, sempre bicando no mesmo lugar. Depois que o marido morreu,
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a mulher viu que precisava garantir seu sustento e decidiu investir naquilo que conhecia melhor. Sendo assim, não se entregou a invencionices: cultivou um bonito milharal e aproveitou a casa velha do sítio para instalar uma pequena fábrica de pipocas. Como ficou sozinha e é um pouco lenta para o trabalho braçal, Grimalda conta com a ajuda de Feliciano, um senhorzinho muito do simpático por quem, com certeza, você irá se apaixonar. Ele é jardineiro, mas se você quiser imaginá-lo um anjo ou um saquinho de risadas, está valendo, ninguém vai corrigir você. Pois ele é tudo isso e um pouco mais, é dessas pessoas que a gente diz que teve a sorte de conhecer. Seu Feliciano tem poesia plantada no coração! Certo dia, dona Grimalda acordou mais cedo e foi dar um passeio pela plantação. Na casa não havia mais ninguém, graças a Deus, porque se houvesse teria morrido de susto com o grito estridente que ela deu. É que os corvos simplesmente tinham destruído todo o milharal. Parecia até que todos os pássaros do mundo haviam se reunido ali para discutir a fome do planeta, pois comeram tudinho, não sobrou meio grãozinho para contar história. Depois de desmaiar e espernear, a dona do sítio mandou chamar o jardineiro e exigiu que ele construísse um grande espantalho. Enorme, terrível e carrancudo, que botasse os corvos para voar lá para os lados do Japão.
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E foi o que Feliciano fez: juntou dois enormes talos de madeira e os uniu em forma de cruz, que era para parecer um homem de braços abertos. Apanhou um saco de estopa e o encheu de palha, imitando um peito estufado e forte. Depois, fez a cabeça com a maior abóbora que encontrou, mas a patroa praguejou dizendo que corvo nenhum iria ser burro de acreditar que gente tem cara cor de abóbora, então ela revestiu a cabeça com tecido e nele pregou dois botões de madrepérola, para fazer olhos vigilantes. Bem, a estrutura já estava pronta, só faltava mesmo colocar roupa e chapéu. Dona Grimalda dirigiu-se ao baú onde guardava as roupas do marido falecido, mas levou um susto ao verificar que as traças haviam comido tudo, as roupas agora eram um esburacado só. Com pressa, exigiu: – Corre em casa, seu Feliciano! Corre apanhar uma roupa velha do senhor. Se tiver uma capa preta, tanto melhor. Corre homem, não temos tempo a perder! Mas Feliciano continuava estático. – Ora, ora... – esbravejou a mulher. – Pode deixar que eu pago pela roupa como se fosse novinha... Questão resolvida. Está esperando o quê? Vendo-o paralisado, prosseguiu nervosa: – E agora, qual é o problema? – O problema, patroa, é que eu não queria ver roupa minha em espantalho, não... – ele respondeu. – Ah! E eu posso saber por quê?
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– É que isso há de me trazer má sorte no amor... – Ora, seu Feliciano, não me venha com superstições! – Não se trata de superstição... Mas que mulher haveria de se interessar por um velho que tem um espantalho que é a cara dele, espetado no meio de um milharal? Desculpe, porém não empresto as minhas roupas de jeito nenhum! – Ai, ai, ai! A gente tem de ouvir cada coisa... Tá bem, me ajude aqui, então! – ordenou a mulher, dirigindo-se ao quarto. Já vou logo adiantando um segredo e faça o favor de não sair por aí dando com a língua nos dentes. É que Feliciano era apaixonado por Grimalda! Amava-a profundamente, apesar de só receber dela muitas ordens e sermões. Mas, como dizem, a esperança é a última que morre; e fazer-se notar pelo ridículo é que ele não iria, não. Sendo assim, Grimalda não teve outra opção, a não ser apanhar dentro do armário uma roupa de mulher. E foi logo avisando: – O espantalho vai ter de mudar de sexo. Mas que seja uma dona tinindo de feia, faça-me o favor! A mulher escolheu um vestido velho, que usara em uma festa junina. Era amarelo, todo estampado com flores e frutinhas vermelhas, além de ter umas rendas e sianinhas, porque roupa para festa junina pode ter excessos e um amontoado de remendos. Por cima, havia um avental vermelho com o peito cerzido em forma de coração – ela
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trabalhara no correio elegante e o avental servia para sua identificação. Grimalda aproveitou o ensejo para tirar da caixa o chapéu de palha, que tinha duas tranças ruivas pregadas nas laterais. Arrematou: – Está ficando muito enfeitada essa espantalha, mas fazer o quê, se outros trajes não tenho, e o senhor se nega a me emprestar os seus? Toma, vai esse mesmo... No fim de tarde daquele mesmo dia, Feliciano e Grimalda fincaram na terra a boneca que fizeram juntos. Apesar da tentativa, não ficou tão feia como a viúva desejava. Ficou, sim, grandalhona e desengonçada, mas com visual bastante caprichado para uma espanta-corvos. Dona Grimalda enxugou a testa suada, sacudiu os chinelos e exclamou: – Serviço feito! Agora tenho de correr, porque a novela das seis deve estar começando! – Espere... – pediu o jardineiro, apontando para o longe. – Olhe só a belezura que está o céu! O sol já começava a se esconder no poente, mas parecia estar com preguiça, pois estendeu seu último raio dourado, lentamente, até que este atingisse em cheio a boneca de palha. Eu não estava lá e não posso dar testemunho, mas o senhor Feliciano jura que o acontecimento foi tão bonito que fez os olhos da boneca cintilarem e a terra estremecer de leve. Foi então que ele disse: – Nasceu, dona Grimalda! Nossa filha nasceu!
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Ao que ela retrucou: – Você está doido? Que nascimento? Que filha, que nada! Velho caduco... E saiu emburrada, dando as costas ao homem. Ele nem ligou. Achava que ela era linda daquele jeito: ranzinza e insensível, feito galinha que não enxerga um pé à frente do nariz. Do bico, quero dizer. E, rindo-se todo, pôs-se a cantar:
Nasceu nossa filha! Olhe só, está tão linda! De pano e de palha, Pelo sol, abençoada. Que tenha vida longa Coração puro, sabedoria, e Espalhe amor pelo mundo Como semente em ventania. Seu nome será Amália. Amália, filha querida, Amada seja por todos Nossa amável espantalha!
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