ilustrações de
ANABELLA LÓPEZ
ILUSTRAÇÕES DE
ANABELLA LÓPEZ
TRADUÇÃO DE
SÉRGIO MOLINA 1ª EDIÇÃO
São Paulo — 2021
Copyright ©️ Anabella López, 2021 Copyright ©️ Sérgio Molina, 2021 Reprodução proibida: Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados à EDITORA FTD Rua Rui Barbosa, 156 — Bela Vista — São Paulo — SP CEP 01326-010 — Tel. 0800 772 2300 www.ftd.com.br | central.relacionamento@ftd.com.br Tradução de Cuentos de la selva, Montevidéu: Claudio García & Cia; La Bolsa de los Libros, 1944 (Biblioteca Rodó, vol. 19). diretor-geral Ricardo Tavares de Oliveira diretor adjunto Cayube Galas gerente editorial Isabel Lopes Coelho editor Estevão Azevedo editor assistente Bruno Salerno Rodrigues assistente de relações internacionais Tassia Regiane Silvestre de Oliveira coordenador de produção editorial Leandro Hiroshi Kanno assistente de conteúdo Gabriela de Avila líder de preparação e revisão Aline Araújo preparador José Muniz Jr. revisoras Aline Araújo e Bianca Oliveira editores de arte Camila Catto e Daniel Justi projeto gráfico e diagramação Luísa Zardo diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Quiroga, Horacio, 1878-1937 Contos da selva / Horacio Quiroga ; ilustrações de Anabella López ; tradução de Sérgio Molina. — 1. ed. — São Paulo : FTD, 2021. Título original: Cuentos de la selva ISBN 978-65-5742-253-3 1. Animais silvestres - Literatura infantojuvenil 2. Literatura infantojuvenil I. López, Anabella. II. Título. 21-60071
Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
CDD-028.5
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A
JABUTI
GIGANTE
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AS
MEIAS
DOS
FLAMINGOS
33 O
LOURO
DEPENADO
45
A
GUERRA
DOS
JACARÉS
63 A
CORÇA
CEGA
75
HISTÓRIA DE
DOIS FILHOTES
DE QUATI
E DE DOIS FILHOTES DE GENTE
89
O
PASSO
DO
YABEBIRÍ
107
121
UM LIVRO FEITO DE SELVA
A
ABELHA
FOLGADA
A
JABUTI
GIGANTE
ERA UMA VEZ
um homem que morava
em Buenos Aires e vivia muito feliz, porque era um homem sadio e trabalhador. Mas um dia ele adoeceu, e os médicos lhe disseram que só poderia se curar se fosse viver longe da cidade grande. O homem não queria sair de lá, porque tinha irmãos pequenos para sustentar; só que sua doença foi piorando a cada dia. Até que, um dia, um amigo, que era diretor do Zoológico, lhe disse assim: — Você é meu amigo e é um homem bom e trabalhador. Por isso quero que vá viver na floresta e lá fazer muito exercício ao ar livre para se curar.
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Com sua excelente pontaria de espingarda, você pode caçar bichos e me trazer os couros; eu vou lhe adiantar um bom dinheiro, para que seus irmãozinhos não passem necessidade. O homem doente aceitou a proposta e foi morar na floresta, longe, bem longe de Buenos Aires, para lá da província de Misiones. Nesse lugar fazia muito calor, o que era bom para sua saúde. Ele vivia sozinho na mata e fazia sua própria comida. Eram pássaros e bichos da floresta, que ele caçava de espingarda; de sobremesa, comia frutas. Dormia sob as árvores e, quando o tempo virava, em cinco minutos ele armava uma cabana com folhas de palmeira e ficava lá sentado, fumando, feliz da vida no meio da mata que urrava com o vento e a chuva. Ele foi enrolando o couro dos animais numa trouxa, que carregava ao ombro. Também foi apanhando, vivas, muitas cobras venenosas, que carregava dentro de uma grande cuia, porque lá se encontram cuias do tamanho de uma lata de querosene. O homem estava mais corado, forte e cheio de apetite. E justamente numa manhã em que estava com muita fome, porque fazia dois dias que não caçava nada, ele avistou à beira de uma grande lagoa uma onça enorme que tentava comer um jabuti, virando-o de lado para enfiar uma pata dentro do casco e arrancar a carne com as garras. Ao ver o homem, a onça soltou um rugido medonho e avançou de um salto contra ele. Mas o caçador, que tinha
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CONTOS DA SELVA
excelente pontaria, mirou bem no meio dos olhos da onça e lhe arrebentou a cabeça. Depois retirou seu couro, tão grande que serviria para atapetar um quarto inteiro. — Agora — o homem disse para si — vou comer o jabuti, que é uma carne muito gostosa. Porém, ao se aproximar do bicho, o caçador viu que era uma fêmea e que estava muito ferida, com a cabeça quase separada do corpo, pendurada do pescoço quase que só por dois ou três fiapos de carne. Apesar da fome que sentia, o homem ficou com pena da pobre jabuti e a arrastou com uma corda até sua cabana, e lá lhe enfaixou a cabeça com tiras de tecido que arrancou da própria camisa, porque não tinha outra nem pano algum. Ele tivera que arrastar a jabuti, porque era imensa, da altura de uma cadeira e com o peso de um homem. A jabuti ficou recolhida num canto e ali passou dias e dias sem se mexer. Todo dia, o homem tratava dela e, ao terminar, dava umas palmadinhas sobre seu casco. A jabuti finalmente ficou boa. Mas aí foi o homem que adoeceu, tomado de febre e de dores por todo o corpo. Até que chegou um momento em que não conseguiu mais se levantar. A febre não parava de subir, e sua garganta queimava de sede. O homem entendeu, então, que estava gravemente doente e, apesar de estar sozinho, falou em voz alta por causa da febre.
A JABUTI GIGANTE
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— Vou morrer — disse o homem. — Estou só, não consigo mais me levantar e não tenho ninguém nem para me dar água. Vou morrer aqui, de fome e de sede. E em seguida a febre subiu ainda mais, e ele perdeu os sentidos. Mas a jabuti escutara o caçador e entendeu o que ele disse. E ela então pensou: — Da outra vez, o homem não me matou para me comer, apesar de estar faminto, e ainda cuidou de mim. Agora é minha vez de cuidar dele. Aí ela foi até a lagoa, procurou um casquinho de jabuti e, depois de limpá-lo bem com areia e cinza, recolheu água com a concha da carapaça e deu de beber ao homem, que estava deitado em sua esteira, morrendo de sede. Em seguida, a jabuti saiu à procura de raízes suculentas e brotos macios, que levou para o homem comer. O homem comia sem saber quem lhe dava a comida, porque delirava de febre e não reconhecia ninguém. Toda manhã, a jabuti percorria a mata em busca de raízes cada vez mais suculentas para dar ao homem e lamentava não poder trepar nas árvores para também apanhar frutas. O caçador comeu assim por dias a fio, sem saber quem lhe dava a comida, até que um dia recobrou os sentidos. Olhou em volta e viu que estava só, pois na cabana não havia mais ninguém além dele e da jabuti, que era um animal. E tornou a dizer em voz alta:
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CONTOS DA SELVA
— Estou sozinho na mata, a febre logo deve voltar e eu vou morrer aqui, porque só em Buenos Aires se encontram os remédios que podem me curar. Mas não tem como eu ir até lá, e vou acabar morrendo aqui. E confirmando o que ele disse, a febre voltou naquela mesma tarde, mais forte do que antes, e o homem perdeu os sentidos outra vez. Mas também desta vez a jabuti o escutara e disse para si: — Se o homem ficar na floresta, vai morrer, porque aqui não se encontram os remédios de que ele precisa, portanto eu tenho que levá-lo até Buenos Aires. Tratou logo de cortar trepadeiras finas e fortes, que são como cordéis, deitou com muito cuidado o homem sobre seu casco e o amarrou bem firme com as trepadeiras, para que não caísse. Fez muitas manobras para ajeitar a espingarda, a trouxa dos couros e a cuia com as cobras, até que conseguiu o que queria, sem incomodar o caçador, e iniciou a viagem. Assim carregada, a jabuti caminhou, caminhou e caminhou, dia e noite. Atravessou matas, campos, cruzou a nado rios de uma légua de largura e atravessou brejos onde quase atolou, sempre com o homem moribundo nas costas. Depois de oito ou dez horas de caminhada, ela parava, desatava os nós e deitava o homem com muito cuidado, num lugar onde houvesse relva seca.
A JABUTI GIGANTE
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Ia então procurar água e raízes ainda tenras para dar ao homem doente. Ela também comia, mas estava sempre tão cansada que preferia dormir. Às vezes precisava caminhar sob o sol, e o caçador, como era verão, tinha tanta febre que delirava e morria de sede. De quando em quando, ele se punha a gritar: “água! água!”. E toda vez a jabuti tinha que parar para lhe dar de beber. Assim a jabuti caminhou dias e dias, semana após semana. Estavam cada vez mais perto de Buenos Aires, mas também a cada dia ela ia se debilitando, a cada dia tinha menos forças, embora nunca se queixasse. Às vezes ficava estatelada, sem força alguma, e o homem, recobrando em parte os sentidos, dizia em voz alta: — Vou morrer, estou cada vez mais doente e só em Buenos Aires eu poderia me curar. Mas vou morrer aqui, sozinho na floresta. Ele achava que continuava lá na sua cabana, porque não percebia nada. A jabuti, então, se levantava e retomava a caminhada. Mas chegou um dia, um fim de tarde, em que a pobre jabuti não deu mais conta. Tinha chegado ao limite de suas forças e não podia mais avançar. Fazia uma semana que não comia, para chegar o quanto antes. Não tinha forças para mais nada. Quando a noite caiu por completo, ela avistou uma luz nos longes do horizonte, um brilho que
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CONTOS DA SELVA
iluminava o céu, e não soube o que era. Sentindo-se cada vez mais fraca, a jabuti fechou os olhos para morrer junto com o caçador, pensando com tristeza que não conseguira salvar aquele homem que tinha sido tão bom para ela. Acontece, porém, que a jabuti já estava em Buenos Aires, sem saber disso. Aquela luz que ela via no céu era o brilho da cidade, e ela ia morrer quando já estava chegando ao fim de sua heroica viagem. Mas um camundongo da cidade — possivelmente o ratinho Pérez 1 — encontrou os dois viajantes moribundos. — Que baita jabuti! — disse o camundongo. — Nunca vi um jabuti tão grande. Mas o que é isso que você está levando nas costas? Lenha? — Não — respondeu a jabuti com tristeza. — É um homem. — E aonde você vai com esse homem? — continuou o curioso camundongo. — Eu vou… estava indo… queria ir a Buenos Aires — respondeu a pobre jabuti, numa voz tão baixa que mal se ouvia. — Mas vamos morrer aqui, porque nunca vou chegar lá… 1
Esse camundongo espanhol é um amigo das crianças que costuma deixar um dinheirinho em troca de cada dente de leite que elas perdem. É só a menina ou o menino colocar o dente embaixo do travesseiro, na hora de dormir, que durante a noite o ratinho Pérez vem de mansinho e faz a transação.
A JABUTI GIGANTE
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— Ah, sua boba! — disse o ratinho dando risada. — Nunca vi um jabuti mais bobo! Você já chegou! Aquela luz que você está vendo lá no fundo é Buenos Aires. Ao ouvir isso, a jabuti sentiu uma força imensa dentro dela, porque ainda dava tempo de salvar o caçador, e retomou a caminhada. Ainda era madrugada quando o diretor do Jardim Zoológico viu chegar um jabuti todo enlameado e extremamente magro, que trazia deitado sobre seu casco e amarrado com trepadeiras, para que não caísse, um homem quase morto. O diretor reconheceu o amigo e ele mesmo foi correndo procurar os remédios certos, que curaram o caçador em dois tempos. Quando o caçador ficou sabendo como a jabuti o salvara, como havia viajado trezentas léguas para que ele pudesse tomar seus remédios, nunca mais quis se separar dela. Mas como ele não podia tê-la em sua casa, que era muito pequena, o diretor do Zoológico se comprometeu a tê-la no Jardim e a cuidar dela como se fosse sua própria filha. E assim foi. A jabuti, feliz e contente com o carinho que recebe, vive passeando por todo o Jardim, e é aquele mesmo jabutizão que vemos todo dia no Zoológico, comendo o matinho em volta das jaulas dos macacos. O caçador a visita todas as tardes, e ela reconhece o amigo de longe, pelos passos. Os dois passam
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algumas horas juntos, e ela nunca quer que ele vá embora sem antes lhe dar uma palmadinha de carinho sobre o casco.
A JABUTI GIGANTE
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AS
MEIAS
DOS
FLAMINGOS