Filosofia berlendis

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FilosofiA temas e percursos VOLUME ÚNICO ENSINO MÉDIO Componente curricular: Filosofia

MANUAL DO PROFESSOR

Vinicius de Figueiredo (Organizador e autor) Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

Luiz Repa Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento

João Vergílio Cuter Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo

Roberto Bolzani Filho Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade de São Paulo

Marco Valentim Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

Paulo Vieira Neto Doutor em Filosofia pela Universidade de São Paulo Professor de Filosofia na Universidade Federal do Paraná

Berlendis & Vertecchia Editores 2ª edição, São Paulo: 2016.

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Copyright do livro e textos não assinados: © 2013 berlendis editores ltda. Copyright dos textos: © 2013 os Autores. Direitos reservados com exclusividade a Berlendis Editores Ltda. Rua Moacir Piza, 63 - 01421-030 São Paulo, SP Tel: (11) 3085.9583 Fax: (11) 3085.2344 editora@berlendis.com www.berlendis.com Proibida toda xerocópia, mesmo de uma página, e toda reprodução, física ou digital, de qualquer trecho, de textos e imagens deste livro sem a prévia autorização expressa e por escrito dos detentores dos direitos correspondentes. Toda cópia não autorizada infringe a legislação nacional e as convenções internacionais de direitos autorais. Os editores declaram ter feito o máximo esforço em localizar os detentores dos direitos de textos e imagens utilizados neste livro. No caso de alguma involuntária omissão ou incorreção de nossa parte, pedimos gentilmente entrar em contato com a equipe editorial.

Coordenação editorial: Bruno Berlendis de Carvalho Organização: Vinicius de Figueiredo Consultoria pedagógica: Jairo Marçal Jeosafá Gonçalves Revisão: Caio da Costa Pereira, Letícia França Projeto gráfico: Claudia Intatilo Foto da capa: Marco Giannotti, “Bernini” Diagramação: Claudia Intatilo Colaboradoras: Cláudia Carminati, Najla Bunduki Pesquisa iconográfica: Andrea Bolanho

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Filosofia : temas e percursos / organização de Vinicius de Figueiredo -- 2. ed. -- São Paulo : Berlendis & Vertecchia, 2016. Vários autores. ISBN 978-85-7723-079-2 (aluno) ISBN 978-85-7723-080-8 (professor) 1. Filosofia (Ensino Médio) I. Figueiredo, Vinicius de. II. Título

16-01276 (aluno) 16-01277 (professor)

CDD-107.12

Índices para catálogo sistemático: 1. Filosofia : Ensino médio 107.12

São Paulo, 2ª edição 2016

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sumário

apresentação ........................................................................................................6 Nota ao leitor........................................................................................................ 8 Filosofia, o pensamento e o livro: quinze perguntas e respostas................ 10 Modo de usar ...................................................................................................... 14 Sobre os autores ................................................................................................ 17

unidades .............................................................................................................. 18 unidade 1 • natureza e cultura ......................................................................... 20 O limite entre dois universos ........................................................................... 21 O naufrágio de Robinson Crusoé ..................................................................... 24 A diversidade das culturas ................................................................................ 28 A ideia de “natureza humana” ......................................................................... 31 Montaigne e os canibais.................................................................................... 33 “Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas” ....................................... 39

unidade 2 • razão e paixão ..........................................................................44 Uma espécie que se diz racional ...................................................................... 45 Virtude e paixão ................................................................................................. 53 A rejeição das paixões ....................................................................................... 59 A razão a serviço das paixões ........................................................................... 63 História, razão e paixões ................................................................................... 69

unidade 3 • lógica e argumentação .................................................................. 76 Racionalidade e emoção .................................................................................. 77 A arte de persuadir ............................................................................................ 82 Premissas e conclusões ..................................................................................... 86 Falácia e argumento .......................................................................................... 97

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unidade 4 • dúvida e certeza ........................................................................... 110 Vivemos cercados de dúvidas ........................................................................ 111 A dúvida, base da investigação ..................................................................... 117 Duvidando para atingir a certeza ................................................................. 124 Limites da dúvida ao garantir a certeza........................................................ 135

unidade 5 • realidade e aparência .................................................................. 144 As aparências enganam? ................................................................................ 145 A revolução filosófica e científica moderna ................................................. 150 Ser e parecer justo ........................................................................................... 155 A realidade da aparência ................................................................................ 164

unidade 6 • espírito e letra .............................................................................. 172 Interpretar as regras do jogo ......................................................................... 173 Mudar a “letra” para manter o “espírito” ...................................................... 177 Traduzir e interpretar ...................................................................................... 182 Questões de interpretação ............................................................................. 188

unidade 7 • eu e o outro .................................................................................. 196 O enigma do Eu e do Outro ............................................................................ 197 O “Eu penso”: Descartes .................................................................................. 204 O Eu com o Outro ............................................................................................. 207 Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento ................................................. 212 A defesa da tolerância ..................................................................................... 218

unidade 8 • liberdade e necessidade ............................................................. 224 A tragédia de Édipo .......................................................................................... 225 Estoicismo e a necessidade do universo ....................................................... 227 A origem da ideia de necessidade ................................................................ 235 Necessidade natural e liberdade humana.................................................... 238

unidade 9 • ordem e caos ............................................................................... 250 A bagunça do meu quarto .............................................................................. 251 A origem do mundo ......................................................................................... 256 A ordem política ............................................................................................. 259 Da ordem do irracional ................................................................................... 267

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unidade 10 • continuidade e ruptura .............................................................. 278 Como e quando algo muda? ........................................................................... 279 O “movimento” segundo Aristóteles ............................................................. 288 “Perfectibilidade” e “desenvolvimento” ....................................................... 293 As revoluções científicas ................................................................................. 302

unidade 11 • princípio e temporalidade ......................................................... 308 A diferença entre fundamento e início ......................................................... 309 Platão e o tempo .............................................................................................. 317 O tempo em Agostinho ................................................................................... 321 Elogio de Kant a Platão ................................................................................... 329 Regularidade da experiência .......................................................................... 333 A noção de progresso científico ..................................................................... 336

unidade 12 • finito e infinito ........................................................................... 342 A biblioteca de Borges ..................................................................................... 343 Filosofia grega e infinito .................................................................................. 347 O infinito divino................................................................................................ 352 Quem é finito não pode conceber o sem-fim ............................................... 357 O infinito atual nas matemáticas................................................................... 361

apêndices .......................................................................................................... 371 Quadro sinótico: grandes áreas da Filosofia ................................................ 372 Conteúdos e referências ................................................................................. 374 Índice de boxes bio-filosóficos ....................................................................... 399

manual do professor ....................................................................................... 402 Palavra do Professor........................................................................................ 402 Suplementos às Unidades .............................................................................. 409 Indicações bibliográficas ............................................................................... 499

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“Read the book”

Tim Maia (1942-1998)

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Apresentação

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nota ao leitor

A

s palavras que seguem são importantes. Seu intuito é esclarecer inicialmente alguns aspectos do livro que você tem em mãos. Este texto não é bem um manual de instruções, mas uma espécie de tutorial que irá ajudá-lo a tirar todo proveito do livro. Por isso, é uma boa ideia lê-lo com atenção. Primeiro, uma palavra sobre a estrutura geral do livro. Ao todo, ele possui doze Unidades, que se subdividem em módulos. Cada Unidade está organizada a partir de um par de noções complementares, como: Liberdade e necessidade, Finito e infinito, Dúvida e certeza etc. Essa noções, como ficará claro ao se iniciar a leitura do livro, correspondem a conceitos fundamentais da filosofia. Cada par de noções funciona como uma chave de leitura para a abordagem dos principais problemas filosóficos, questões que ocuparam muitos pensadores ao longo de mais de dois mil anos de reflexão. Mais de dois mil anos? Não se assuste com isso. O teorema de Pitágoras, que você conhece da matemática, também tem essa idade. E permanece tão atual e importante quanto o foi a partir do momento em que Pitágoras o formulou. Arquimedes (287212 a.C.), outro grego genial, enunciou a lei do empuxo e a lei da alavanca, válidas de lá para cá. Hipócrates (460-370 a.C.) foi o pai da medicina grega, e até hoje os médicos que se formam prestam o juramento que leva o seu nome, de zelar pela vida e saúde de seus pacientes. Esses são apenas alguns exemplos de inúmeras contribuições matemáticas, físicas e científicas que remontam

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a um passado distante, esperando por nossa curiosidade e vontade de saber. No caso da filosofia, as coisas se passam de maneira semelhante. Seu estudo é inseparável do contato com os autores que fizeram a história do pensamento. Isso não significa que o estudo filosófico seja uma decoreba das opiniões de cada um desses filósofos, muito pelo contrário. Essa via é desinteressante e pouco pedagógica. Afinal, que ganho há em decorar que Platão pensou assim, Descartes, assado e assim por diante? O essencial é despertar a atenção para saber por que e como os filósofos de todos os tempos pensaram o que pensaram. Nosso compromisso é o de apresentar algumas questões de forma que você se interesse pelas respostas que foram suscitadas por elas, como também pela maneira peculiar de formular aquelas perguntas. É preciso despertar sua curiosidade, o que não deixará de trazer recompensas. Ou melhor: trata-se de auxiliar sua curiosidade a vir à superfície. Pois você logo perceberá que questões filosóficas estão por toda parte. Não é um acaso se, da Antiguidade grega até os dias de hoje, grandes pensadores tenham se ocupado da filosofia. A razão é simples: problemas filosóficos brotam espontaneamente em nossa reflexão, desde que o mundo é mundo. A curiosidade é o primeiro passo para se fazer filosofia. Por isso, o que um livro de Filosofia deve procurar fazer é acolher nosso espanto e nossa admiração diante dos mistérios e dos problemas trabalhados pelos filósofos, mistérios e problemas 6/30/17 9:18 AM


que também são nossos. Isso, pode ter certeza, promete ser uma aventura inesquecível. Não ganhamos muito decorando as opiniões que os filósofos ao longo da história têm a nos transmitir. Bem melhor que isso é buscar compreender o que os levou a pensar o que pensaram, dizer o que disseram. Se isso ocorrer, você já estará filosofando. Nossa escolha por organizar o livro em módulos no interior de Unidades temáticas foi concebida com esse objetivo. Cada uma das Unidades inicia-se com uma introdução ao par de noções que lhe dá o título. Em seguida, explora-as sob vários aspectos diferentes. Cada abordagem do tema equivale a uma etapa da Unidade (um módulo), que vai se aprofundando e assim promovendo a variação de nosso olhar sobre os problemas apresentados de partida. Ao longo de cada Unidade, como você verá, as diferentes maneiras de se aproximar do assunto vão lhe dando maior complexidade. Mas a estrutura também permite que se leiam os módulos separadamente, ou numa ordem diferente daquela aqui sugerida. Você pode, digamos, fazer um estudo sobre diferentes aspectos da teoria do conhecimento. Para tanto, confira dois importantes grupos de tabelas ao final do volume. O primeiro grupo traz as referências abordadas em cada Unidade: autores, temas, interdisciplinaridade etc. Além disso, você encontra um quadro sinótico (isto é: de “visão geral”) da distribuição, ao longo do livro, das grandes áres da Filosofia: filosofia política, moral, estética etc. Filo2018-abre-09-posparecer.indd 9

O percurso de uma determinada Unidade não chega a uma resposta definitiva e inquestionável para os problemas discutidos nela. Um dos pioneiros da reflexão filosófica, Platão, escreveu diálogos em que Sócrates, seu mestre, indagava a seus interlocutores: “o que é a beleza?”, “o que é a coragem?”, “o que é o conhecimento?”, “o que é a justiça?”. Muitos desses diálogos investigam tais noções sem chegar a um resultado definitivo. No entanto, ninguém que já teve a chance de travar contato com tais textos negou que houvesse neles muita filosofia. A filosofia está menos nas respostas definitivas que nas questões bem formuladas. Mas não vá pensar que ali onde não há respostas definitivas não possa haver aprendizado. Aprende-se muito quando se verifica que existe mais de uma resposta, especialmente quando estamos falando de interrogações essenciais para nós. Examiná-las será parte importante de um processo ao longo do qual você irá formular seu próprio ponto de vista sobre o mundo que o cerca. Consequentemente, para você se questionar e se posicionar quanto a assuntos os mais diversos: das ciências à ordem política, passando pela sociedade, a finitude humana, a natureza, a arte... tudo isso é matéria de reflexão filosófica. Esse livro foi concebido como uma introdução à grande aventura do pensamento. Nosso desejo é que você aproveite a paisagem que se descortina nas páginas a seguir!

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Filosofia, o pensamento e o livro: quinze perguntas e respostas 1. O que ĂŠ filosofia? A palavra “filosofiaâ€? tem origem no termo grego “philosophĂ­aâ€?, que reĂşne duas palavras: philĂ­a (= amor; amizade) e sophĂ­a (= sabedoria). Assim, “filosofiaâ€?, no seu sentido mais amplo, ĂŠ o amor Ă sabedoria. Tudo leva a crer que PitĂĄgoras (570-495 a.C.), um importante sĂĄbio da GrĂŠcia antiga, tenha sido o primeiro a utilizar o termo com esse sentido. Ele teria chamado sua atividade de reflexĂŁo como a prĂĄtica da filosofia. 2. Qualquer pessoa que levanta perguntas sobre o sentido das coisas e dos seres ĂŠ filĂłsofo? No sentido mais amplo de “filosofiaâ€?, sim. Por isso a filosofia ĂŠ uma disciplina fundamental na formação intelectual de todos nĂłs. Esse ĂŠ o motivo pelo qual a filosofia ĂŠ uma disciplina escolar. Afinal, ela trata de problemas que interessam a todas as disciplinas e a todos os indivĂ­duos que refletem sobre o mundo que nos cerca. 3. Existe entĂŁo uma filosofia oriental e outra africana, ao lado da filosofia inventada pelos gregos da Antiguidade? Se nos ativermos ao sentido amplo de filosofia, segundo o qual a filosofia ĂŠ a atividade da reflexĂŁo em geral, todo indivĂ­duo que refletiu sobre as questĂľes mais essenciais aos seres humanos praticou filosofia. Nesse sentido, ela jamais foi privilĂŠgio de uma cultura particular. Entretanto, em seu sentido mais especializado, a filosofia teve origem entre os gregos antigos, e no seu desenvolvimento nunca deixou de remeter a essa origem. Foi a partir dos gregos antigos que a filosofia começou a fixar um conjunto de textos repetidamente lidos e interpretados, e foi assim que, ainda na Antiguidade, essa atividade do pensar se expandiu para fora da GrĂŠcia. 4. Onde encontrar a filosofia nesse sentido mais especĂ­fico? Nos textos que nos deixaram os filĂłsofos, ao longo de um percurso histĂłrico. Essa histĂłria ĂŠ longa e sinuosa. Ampliou-se com o tempo, sofreu influĂŞncias ĂĄrabes e orientais, e hoje ĂŠ estudada em todas as partes do mundo. Mas ela nĂŁo ĂŠ nada parecida com um simples acĂşmulo de opiniĂľes (gregas, romanas, ĂĄrabes, medievais, modernas...). Cada nova grande formulação filosĂłfica recoloca as questĂľes trabalhadas por filĂłsofos anteriores. Estudar filosofia ĂŠ familiarizar-se com grandes questĂľes que foram levantadas no âmbito das ciĂŞncias, da literatura e da arte, da polĂ­tica, da ĂŠtica etc. 5. Como estĂĄ organizado o presente livro? Em diversos mĂłdulos, dispostos em 12 Unidades. Cada Unidade aborda um par de noçþes complementares entre si. Essas noçþes sĂŁo referĂŞncias temĂĄticas e representam questĂľes que possuem dois aspectos: sĂŁo muito familiares a nossa reflexĂŁo cotidiana e ao mesmo tempo sĂŁo essenciais Ă reflexĂŁo filosĂłfica.

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6. O que significa a ideia de percurso no interior das Unidades? Cada Unidade introduz grandes ideias em torno de um par de temas. Em seguida,

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sĂŁo apresentados desenvolvimentos que esses temas receberam por mais de um filĂłsofo. Ă€ medida que se avança na Unidade, os temas que lhe dĂŁo tĂ­tulo sĂŁo aprofundados em um nĂ­vel maior de complexidade. Boxes informativos situam o contexto histĂłrico, literĂĄrio, cientĂ­fico, social e polĂ­tico em que foram enunciadas as teses examinadas no percurso. Eventuais remissĂľes de uma Unidade a outra tambĂŠm sĂŁo sugeridas ao longo de cada um dos caminhos que vocĂŞ ĂŠ convidado a percorrer. AlĂŠm disso, em cada Unidade vocĂŞ encontrarĂĄ Situaçþes de aprendizagem que incentivam uma reflexĂŁo qualificada sobre os temas examinados. Assim, cada Unidade propĂľe um percurso reflexivo que fornece uma ampla compreensĂŁo acerca das variaçþes admitidas pelos temas essenciais da filosofia. VocĂŞ poderĂĄ identificar, desse modo, as alteraçþes que os temas discutidos foram sofrendo ao longo da histĂłria, da Antiguidade atĂŠ os dias de hoje. Esse aspecto ĂŠ muito importante, pois mostra que os conceitos de que nos servimos para conhecer e agir no mundo tĂŞm uma histĂłria e nem sempre foram compreendidos como pensamos. AlĂŠm disso, houve tambĂŠm ĂŠpocas em que as mesmas questĂľes promoveram desenvolvimentos diversos por parte de grandes pensadores. 7. Existe relação entre as doze Unidades do livro? QuestĂľes filosĂłficas exibem inĂşmeras relaçþes entre si. NĂŁo por acaso, ĂŠ muito difĂ­cil restringir a contribuição dos grandes autores do pensamento em um Ăşnico domĂ­nio da filosofia. Geralmente, o que foi pensado por eles diz respeito a mais de um âmbito da reflexĂŁo, envolvendo consequĂŞncias semelhantes para a ĂŠtica, a epistemologia, a estĂŠtica etc. Uma vez que o livro que vocĂŞ tem em mĂŁos nĂŁo ĂŠ organizado por apresentaçþes consecutivas das ideias de um filĂłsofo, depois outro e assim por diante, mas segundo os principais temas da filosofia, vocĂŞ pode se deparar mais de uma vez com um mesmo filĂłsofo em diferentes mĂłdulos e Unidades. Em cada uma delas, o filĂłsofo irĂĄ revelar uma faceta de seu pensamento, sua contribuição para o tema em anĂĄlise. Descartes, por exemplo, aparece em diversos mĂłdulos sob perspectivas diferentes. Seu aspecto varia conforme o percurso que estĂĄ sendo proposto nesta ou naquela Unidade. E isso constitui uma primeira forma de interação entre os doze grandes eixos deste livro. A outra se deve ao fato de que os temas que dĂŁo nome Ă s Unidades sĂŁo muito amplos e, por isso, possuem relaçþes entre si. Mas nĂŁo se preocupe, a apresentação de cada um deles foi pensada de modo a tornar essas relaçþes palpĂĄveis a vocĂŞ. Cuidamos de assinalar pontos de passagem entre as partes do livro. Assim, Ă medida que vocĂŞ for lendo-o, descobrirĂĄ atalhos surpreendentes entre os caminhos da reflexĂŁo filosĂłfica. 8. NĂŁo hĂĄ um ponto fixo a partir do qual este livro tem inĂ­cio? NĂŁo. Cada Unidade possui uma ordem interna, pensada como um percurso reflexivo por meio do qual vocĂŞ serĂĄ apresentado a diversas perspectivas sobre os temas abordados. Mas isso nĂŁo ĂŠ tudo, pois os mĂłdulos que compĂľem cada Unidade foram concebidos para permitir tambĂŠm uma leitura independente. Entre uma e outra Unidade, como dissemos hĂĄ pouco, hĂĄ pontos de passagem de uma problemĂĄtica para outra, que assinalamos no corpo do texto. NĂŁo hĂĄ necessidade de se começar a leitura por uma Unidade determinada. Claro que se pode adotar a ordem proposta aqui, começando pela Unidade que abre o livro e seguindo linearmente atĂŠ a que o fecha. Mas isso nĂŁo ĂŠ necessĂĄrio, pois essa ordem nĂŁo ĂŠ a Ăşnica possĂ­vel e nem pretende ser “a melhorâ€?. Cabe Ă orientação pedagĂłgica – ou a vocĂŞ, se o estiver lendo de maneira autĂ´noma – decidir qual sequĂŞncia de estudo pode

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ser mais interessante. Este livro ĂŠ como um carrossel em movimento: vocĂŞ escolhe um ponto de entrada qualquer e, em seguida, jĂĄ dentro dele, vai se deslocando entre os mĂłdulos e as Unidades. 9. Este livro segue uma ordem cronolĂłgica, que se inicia pelo estudo dos filĂłsofos da Antiguidade e termina com a abordagem de contribuiçþes contemporâneas sobre os temas discutidos? NĂŁo exatamente. Cada um dos percursos apresentados nas Unidades representa uma aventura atravĂŠs da histĂłria do pensamento filosĂłfico, exibindo as principais variaçþes que seus temas sofreram ao longo do tempo. O estudo da filosofia, nessa medida, ĂŠ o estudo da histĂłria da filosofia. Por isso, as Unidades buscam apresentar os temas sob a forma como foram abordados na Antiguidade, na Idade MĂŠdia, na Idade Moderna, atĂŠ nossos dias. Mas isso nĂŁo ĂŠ a mesma coisa que contar a histĂłria das opiniĂľes dos diferentes filĂłsofos, um depois do outro, conforme seu lugar na cronologia do pensamento. Afinal, nenhuma questĂŁo filosĂłfica estĂĄ isolada em um passado remoto, de maneira que sĂł tivesse interesse histĂłrico. A histĂłria da filosofia ĂŠ marcada por retomadas de pontos de vista formulados previamente, o que torna as noçþes de passado, presente e futuro relativas. Nossa reflexĂŁo filosĂłfica se apropria da linha da histĂłria a seu modo, ligando pontas, desfazendo nĂłs e criando uma temporalidade prĂłpria, para a qual nenhuma contribuição ĂŠ ultrapassada. 10. Como, exatamente, a filosofia “atualizaâ€? o passado? Isso ocorre essencialmente porque, em filosofia, o clĂĄssico ĂŠ atual. Retomar e estudar autores e textos da GrĂŠcia antiga, do pensamento medieval ou do Renascimento tem muito a nos ensinar, a começar porque somos herdeiros, do ponto de vista de nossos valores e concepçþes de mundo, da tradição cultural do Ocidente, que ĂŠ sedimentada na filosofia. AlĂŠm disso, nada do que consideramos atual consiste em uma atualidade pura, mas sempre traz consigo uma memĂłria, uma sedimentação de significados – e ĂŠ muito Ăştil escavar a profundidade dos conceitos e ideias de que nos servimos no dia a dia para fazer ver seu brilho. 11. Diante de duas visĂľes filosĂłficas diferentes sobre uma mesma questĂŁo, onde encontrar a verdade? A filosofia ĂŠ mais a reflexĂŁo qualificada sobre as questĂľes do que as respostas individuais que damos a elas. A reflexĂŁo sobre valores, princĂ­pios e condutas, sejam eles ligados Ă ciĂŞncia, Ă moral, Ă polĂ­tica ou Ă arte, ĂŠ condição prĂŠvia para tomarmos posiçþes a respeito do mundo em que nos inserimos. A reflexĂŁo filosĂłfica ĂŠ indispensĂĄvel a duas etapas da abordagem a qualquer questĂŁo. Em primeiro lugar, porque ela nos ajuda muito a compreender e avaliar os aspectos envolvidos no assunto em discussĂŁo. Em segundo lugar, porque ela ĂŠ auxĂ­lio indispensĂĄvel para elaborarmos as razĂľes que sustentam nossos pontos de vista sobre ele.

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12. Existe uma tĂŠcnica para entender as diferentes formas do “filosofarâ€?? Sim, e ela consiste, basicamente, na leitura e na interpretação de textos. Esse ĂŠ um excelente meio para compreender as maneiras sob as quais uma questĂŁo admite ser problematizada. Isso nada tem que ver com decorar o que escreveu esse ou aquele filĂłsofo. O importante, ao lermos um trecho de determinado texto filosĂłfico, ĂŠ observar o pensamento em ação, nĂŁo para aderir a ele irrefletidamente,

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mas para flagrar a razĂŁo em sua atividade discursiva, argumentativa, retĂłrica. E, tendo em vista os problemas e soluçþes apresentados pelos filĂłsofos, enriquecermos nossos prĂłprios pontos de vista sobre as matĂŠrias discutidas. 13. Qual a utilidade prĂĄtica disso? VocĂŞ jĂĄ viu alguĂŠm que sabe argumentar bem discutindo com alguĂŠm que vacila nas respostas, que ĂŠ muito teimoso, que nĂŁo tem clareza no raciocĂ­nio, que desenvolve mal suas ideias? Pensar de forma qualificada ĂŠ sempre Ăştil. Mesmo que seja para nĂŁo fazer nada de imediato. Pelo menos relativizamos nossas certezas, qualificamos nossas crenças, passamos a conceber o mundo de forma diferente da maneira usual. AlĂŠm disso, a filosofia investiga as escolhas metodolĂłgicas, as alternativas ĂŠticas, os aspectos polĂ­ticos, psicolĂłgicos e estĂŠticos presentes nos outros saberes, tais como a matemĂĄtica, a fĂ­sica, a quĂ­mica, a literatura, a biologia, as artes, a histĂłria, a geografia e a sociologia. E essa investigação ĂŠ muito Ăştil para a compreensĂŁo das premissas e pressupostos que estĂŁo na base dessas disciplinas. Logo, o estudo da filosofia possui grande utilidade para a formação pedagĂłgica, humanĂ­stica e cientĂ­fica de modo geral. 14. Quer dizer que hĂĄ uma relação entre a reflexĂŁo filosĂłfica e as outras disciplinas do saber? Sem dĂşvida! Para inĂ­cio de conversa, muitos autores da histĂłria da filosofia se consideravam nĂŁo simplesmente filĂłsofos, mas tambĂŠm (Ă s vezes, em primeiro lugar) cientistas, pensadores polĂ­ticos, teĂłlogos ou psicĂłlogos. Os temas que dĂŁo tĂ­tulo Ă s Unidades do livro comprovam essa afirmação. Reflita um pouco sobre eles. A noção de infinito, por exemplo, possui implicaçþes teolĂłgicas, cientĂ­ficas e matemĂĄticas. A noção de cultura tem um alcance ĂŠtico, estĂŠtico e cientĂ­fico. JĂĄ a noção de certeza exige nossa abertura para as condiçþes do conhecimento da natureza, assim como para a psicologia e a ĂŠtica. Todos os temas escolhidos para encabeçar as doze Unidades dĂŁo ocasiĂŁo para desenvolvimentos interdisciplinares, que sĂŁo explorados ao longo dos caminhos apresentados no livro que vocĂŞ tem em mĂŁos. 15. Qual a contribuição ĂŠtica e polĂ­tica da filosofia nos dias de hoje? Com a proliferação das mĂ­dias, com a velocidade da informação – e sua volatilidade –, hoje somos expostos a uma massa de opiniĂľes, preconceitos, dogmas e discursos sobre os quais muitas vezes nem temos oportunidade de refletir. A ampla circulação de informaçþes e ideias resulta em benefĂ­cios importantes, que sĂŁo inegĂĄveis. Por outro lado, isso requer nossa atenção, porque todo esse acĂşmulo pode tanto nos ajudar quanto nos desorientar. AlĂŠm disso, hĂĄ no mundo contemporâneo uma tendĂŞncia de as prĂĄticas e as formas de pensar tornarem-se parecidas ou atĂŠ mesmo uniformes: ĂŠ o que se convencionou chamar de “pensamento Ăşnicoâ€?. DaĂ­ a importância de uma formação que incorpore, como um de seus princĂ­pios, a capacidade individual de pensar de modo diverso do costumeiro, pensar com base em sua prĂłpria razĂŁo e a partir de sua experiĂŞncia particular. O estudo da filosofia contribui para isso, a começar porque nos pĂľe em contato com grandes pensadores que conceberam o mundo de modo original. Pensar com eles nos ajuda a refletir melhor sobre aquilo em que acreditamos e, consequentemente, modificar nosso modo de pensar, ampliĂĄ-lo, tornĂĄ-lo mais refinado e mais rico.

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Central Press/Getty Images

modo de usar O lĂ­der dos direitos civis Martin Luther King (1929-1968) discursa na Marcha sobre Washington (28/08/1963), no Lincoln Memorial.

unidade 3

lógica e argumentação

A

rgumentos estĂŁo por toda a parte. Quando queremos convencer alguĂŠm de alguma coisa, quase sempre lançamos mĂŁo de um argumento. Acontece nos negĂłcios, nas relaçþes familiares, no trabalho, na polĂ­tica, nos tribunais, nos livros, nos cultos religiosos â€“ onde houver seres humanos reunidos, certamente haverĂĄ discordância, debate, argumentação. Mas o que vem a ser um argumento? Falando de maneira geral, poderĂ­amos dizer que um argumento ĂŠ um tipo de discurso cuja finalidade ĂŠ dar razĂľes capazes de convencer alguĂŠm a respeito de algo. No entanto, apesar de ser uma boa aproximação, essa definição talvez seja excessivamente ampla. Ela coloca num mesmo grupo coisas que talvez devĂŞssemos distinguir.

Racionalidade e emoção ................. 77 A arte de persuadir.................

82

Premissas e conclusĂľes ..............

86

FalĂĄcia e argumento ..............

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ExpressĂľes lĂłgicas no nosso cotidiano

Pesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não estå mesmo interessado no grande artista paraibano Jackson

Quando fazemos pesquisas na internet

do Pandeiro (nome artĂ­stico de JosĂŠ Gomes

ou em outros bancos de dados, muitas vezes usamos expressĂľes lĂłgicas. Digamos

Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de restringir ainda mais os resultados de sua bus-

que vocĂŞ queira lembrar o nome de uma

ca, por meio da expressĂŁo:

canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiroâ€?, ou conhecer grava-

pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson) ou pandeiro +melodia -Jackson

Se, num site de buscas ou banco de dados, vocĂŞ digitar pandeiro OR(melodia)

• No exemplo acima, que operadores lĂłgicos foram utilizados? Tente “traduzi-loâ€? para a linguagem lĂłgica formal, utilizando

encontrarĂĄ milhares de resultados que nĂŁo lhe interessam. Isso porque o mo-

os operadores e sĂ­mbolos explicados no box sobre conectivos lĂłgicos. (Um aviso:

tor de busca utilizou a disjunção, o operador “ouâ€? (â‹ ), e trarĂĄ resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro

motores de busca da internet nĂŁo costumam reconhecer esses sĂ­mbolos; o objetivo ĂŠ somente compreender quais sĂŁo esses

ou melodia. VocĂŞ pode direcionar melhor sua pesquisa, por exemplo digitando no campo de

conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prĂĄtica.) • Em seguida, construa outras expressĂľes

busca:

de busca, mais complexas. Por exemplo: vocĂŞ estĂĄ interessado em resultados que tenham a ver com “mangueiraâ€?, que podem

pandeiro AND(melodia)

ou

pandeiro +melodia O que significa essa expressĂŁo? Que estamos interessados em todos resulta-

ser ou nĂŁo referentes Ă escola de samba carioca, mas que nĂŁo tenham a ver diretamente com a ĂĄrvore frutĂ­fera do gĂŞnero Mangife-

dos que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. NĂŁo queremos registros que tragam apenas um deles, sĂł “pandeiroâ€?

ra. Como deverĂ­amos formular a expressĂŁo de busca? HĂĄ mais de um modo de fazĂŞ-lo? Experimente formular, por escrito, duas ou-

sem “melodia�, nem apenas “melodia� sem “pandeiro�.

tras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

FalĂĄcia e argumento De acordo com a noção mais geral de “argumentoâ€?, toda pessoa que argumenta estĂĄ sempre tentando persuadir um determinado “auditĂłrioâ€?. Esse auditĂłrio pode ter dimensĂľes muito diferentes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

Aristóteles Obras de Aristóteles e sua edição crítica Para a localização precisa de textos de Aris-

rante algum tempo, responsåvel pela educação do

tĂłteles, a comunidade de pesquisadores con-

jovem Alexandre, filho do rei Filipe da MacedĂ´nia,

vencionou tomar como referência a edição de

que iniciou um domĂ­nio sobre os Gregos que seu

August Immanuel Bekker das obras do filĂłsofo.

filho iria expandir, obtendo o mais vasto impĂŠrio atĂŠ

O motivo ĂŠ simples: o filĂłlogo alemĂŁo Bekker

então conhecido, que alcançou a �ndia.

(1785-1871) foi o primeiro a realizar uma edição crítica dessas obras, a qual serviu de base para as posteriores.

escola fundada por PlatĂŁo (428-348 a.C.). Nela per-

O que significa “edição crĂ­ticaâ€?? Basicamente,

maneceu por vinte anos, deixando-a apenas apĂłs a

que numa edição dessas são confrontadas e anota-

morte do mestre. Depois de retirar-se de Atenas por

das todas (ou as principais) fontes documentais de

alguns anos, retorna e funda sua prĂłpria escola, o

que dispomos de determinado texto. Como vocĂŞ

Liceu, no qual ensina atĂŠ o fim de sua vida.

pode imaginar, pode ser bastante trabalhoso o

A filosofia de AristĂłteles consiste numa tentati-

processo de confrontar essas fontes, para localizar

va de pensar questĂľes e problemas filosĂłficos her-

diferenças de um documento a outro (chamadas

dados do platonismo, mas por vias e por meio de

variantes: acrÊscimos, supressþes, discrepâncias e

soluçþes que frequentemente se

variaçþes de ortografia e gramåti-

distanciam desse mesmo plato-

ca etc.). Feito isso, o editor crĂ­tico

nismo. Assim como seu mestre,

terĂĄ de decidir, com base em uma

AristĂłteles foi um autĂŞntico fun-

pesquisa mais abrangente, quais

dador de temas filosĂłficos, nĂŁo

dessas variantes o texto principal

somente em ĂĄreas que ainda

deve seguir no corpo da pĂĄgina;

hoje consideramos como tipica-

as outras variantes sĂŁo anotadas

mente filosĂłficas, como metafĂ­-

em pÊ de pågina. Voltando à edição de Bekker

sica, lĂłgica, ĂŠtica, como tambĂŠm em assuntos que posteriormente

para as obras de AristĂłteles: a

ganharam autonomia cientĂ­fica,

numeração ali utilizada, e que

como a fĂ­sica ou a biologia. Al-

depois virou padrĂŁo nas referĂŞn-

guns de seu principais escritos

cias Ă s obras do filĂłsofo, com-

são: Metafísica, Ética a Nicômaco, Primeiros analíticos,

pĂľe-se de trĂŞs elementos: o nĂşmero da pĂĄgina,

Segundos analĂ­ticos, Partes dos animais, FĂ­sica.

a coluna (a ou b) e a linha. Assim, para o seguinte

A influĂŞncia exercida por AristĂłteles na Anti-

trecho (citado no corpo desta Unidade): “[...] ĂŠ proi-

guidade tardia, na Idade MĂŠdia (especialmente a

bido falar de coisas que nĂŁo sejam essenciais Ă dis-

partir da recuperação de importantes livros seus,

cussĂŁo do caso em pauta. Esse ĂŠ um costume muito

Ă ĂŠpoca desconhecidos no Ocidente, conservados

sadio. NĂŁo ĂŠ correto atrapalhar o discernimento de

por pensadores ĂĄrabes) e no inĂ­cio da Modernidade

quem julga provocando raiva, inveja ou compaixão�,

foi extraordinĂĄria, provavelmente inigualada. Sua

a referĂŞncia ĂŠ 1354a 14-18.

metafĂ­sica e seu pensamento moral forneceram

“1354â€?: essa pĂĄgina pertence ao livro da RetĂłri-

elementos analĂ­ticos e conceituais para a teologia

ca (aliås, Ê a primeira, uma vez que, na edição de

cristĂŁ durante a Idade MĂŠdia, e os principais pensa-

Bekker, o livro vai dessa pĂĄgina Ă pĂĄgina 1419);

dores da Modernidade nele tiveram seu grande adversårio, no intuito de propor uma nova concepção de ciência. Sua Êtica ainda Ê vivamente debatida por pensadores contemporâneos.

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Cabeça de Aristóteles em mårmore . Kunsthistorisches Museum, Viena/The Bridgeman Art Library/Keystone

Antes disso, com cerca de dezoito anos, AristĂłteles viajou a Atenas e logo entrou para a Academia,

lógica e argumentação

Nasceu na cidade de EstĂĄgira, na MacedĂ´nia, em 384 a.C., e morreu em Atenas em 322 a.C. Foi, du-

“aâ€? indica que o texto referido estĂĄ na primeira coluna da pĂĄgina. “14-18â€? indica as linhas da coluna em que se encontra o trecho citado.

apenas uma pessoa â€“ tome como exemplo um vendedor que tenta convencer vocĂŞ a comprar um determinado produto numa loja. O auditĂłrio de quem argumenta pode tambĂŠm ser composto por um pequeno grupo de pessoas â€“ ĂŠ o que acontece quando o professor de matemĂĄtica

cionados na segunda premissa (o que nĂŁo ĂŠ de modo algum necessĂĄrio). Mesmo assim, um crĂ­tico que nĂŁo tivesse ido Ă estreia poderia ter ido ao ensaio geral da peça, ou entĂŁo a uma outra apresentação qualquer, no segundo ou no terceiro dia. Poderia tambĂŠm ter formado sua opiniĂŁo conversando com colegas seus, nos quais confia, que foram Ă peça e estavam em condiçþes de lhe dar uma descrição detalhada do desempenho de cada um dos atores. Para que vocĂŞ perceba melhor a situação envolvida, compare o argumento que acabamos de analisar com este outro: “Somente os que foram Ă estreia da companhia de teatro puderam formar uma opiniĂŁo bem fundamentada a respeito do desempenho dos atores. Alguns crĂ­ticos nĂŁo foram Ă estreia. A opiniĂŁo de alguns crĂ­ticos, portanto, nĂŁo estĂĄ bem fundamentada.â€? Repare que a Ăşnica diferença em relação ao argumento anterior ĂŠ o uso da palavra “somenteâ€? ao invĂŠs da palavra “todosâ€?. A diferença pode parecer pequena, mas, neste caso, ĂŠ decisiva. Suponha que a primeira premissa seja verdadeira: que apenas (apenas, veja bem!) as pessoas que foram Ă estreia estavam em condiçþes de formar uma opiniĂŁo fundamentada sobre o desempenho dos atores. Ora, se isso for verdade, e se tambĂŠm for verdade que alguns crĂ­ticos nĂŁo foram Ă estreia, a conclusĂŁo inevitĂĄvel ĂŠ que esses crĂ­ticos nĂŁo estavam em condiçþes de dar opiniĂľes fundamentadas a respeito do desempenho dos atores. Aqui, nĂŁo hĂĄ escapatĂłria. O argumento ĂŠ bom. Se suas premissas forem verdadeiras, a conclusĂŁo tambĂŠm serĂĄ verdadeira. Existe, portanto, uma certa relação entre as premissas e a conclusĂŁo, no caso do primeiro argumento, que nĂŁo existe no caso do segundo. No segundo caso, as premissas dĂŁo apoio Ă conclusĂŁo, podem ser citadas como evidĂŞncias em favor dela, como razĂľes para aceitĂĄ-la. No primeiro caso, nĂŁo. As premissas nĂŁo fornecem apoio para acei-

tarmos a conclusĂŁo. Se a aceitamos, ĂŠ por outras razĂľes, que nĂŁo aquelas apresentadas nas premissas. Como vocĂŞ reparou, porĂŠm, os dois argumentos sĂŁo muito parecidos. Eles sĂł diferem no detalhe â€“ neste caso, pela substituição da palavra “todosâ€? pela palavra “somenteâ€?. Isso faz com que o primeiro argumento nos engane. Ele parece ser bom, embora na verdade nĂŁo o seja. Argumentos assim, que parecem ser bons, mas nĂŁo sĂŁo, nĂłs chamaremos de falĂĄcias. É fundamental que vocĂŞ aprenda a reconhecer uma falĂĄcia. É por meio das falĂĄcias que somos enganados – Ă s vezes atĂŠ por nĂłs mesmos. Em todos os contextos em que sĂŁo utilizados argumentos, quem argumenta pode muito bem lançar mĂŁo de falĂĄcias, fazendo-nos tirar conclusĂľes equivocadas que poderĂ­amos perfeitamente evitar. É por isso que o estudo das falĂĄcias ĂŠ tĂŁo importante. Conhecendo-as, seremos capazes de identificar um mau argumento e contestĂĄ-lo (se ele nos for apresentado por outra pessoa), ou simplesmente nĂŁo usĂĄ-lo (caso nĂłs mesmos o estejamos querendo apresentar). FalĂĄcia formal A falĂĄcia encontrada no argumento que apresentamos acima envolve uma forma argumentativa que ĂŠ falaciosa. Isso quer dizer que ela pertence a um grupo de argumentos caracterizado por uma determinada estrutura. Essa estrutura pode ser melhor observada se empregarmos variĂĄveis. Considere o seguinte esquema: Todo(a) A ĂŠ B. Algum(a) C nĂŁo ĂŠ A.

lógica e argumentação

çþes dela.

lógica e argumentação

As partes que constituem o livro Este Ê um livro escrito a muitas mãos. Embora os diferentes módulos tenham sido confiados a especialistas em suas respectivas åreas (filosofia antiga, lógica etc.), a discussão entre todos os autores foi um passo importante para chegarmos ao resultado que você tem em mãos. Não fazia tanto sentido indicar que autores escreveram essa ou aquela parte, uma vez que todas foram profundamente redimensionadas a partir desse diålogo interno. Cada Unidade Ê composta de diferentes módulos; cada módulo pode ser dividido em tópicos menores, às vezes contendo ainda subdivisþes segundo ítens específicos. De forma que o conteúdo estå sempre disposto dentro de uma hierarquia, o que facilita seja o controle do tempo dedicado a cada assunto, seja as possíveis leituras ortogonais, isto Ê, que não seguem o livro linearmente. Eis um exemplo dessa estrutura: Unidade: Lógica e argumentação; módulo: Falåcia e argumento; tópico: Falåcia formal.

Portanto, algum(a) C nĂŁo ĂŠ B.

Neste esquema, a letra “Aâ€? estĂĄ no lugar da expressĂŁo “pessoa que foi Ă estreia da companhia de teatroâ€?; a letra B, no lugar de “pessoa que podia formar uma opiniĂŁo bem fundamentada a respeito do desempenho dos atoresâ€?; e a letra “Câ€?, no lugar de “crĂ­ticoâ€?. Nenhum argumento que tenha

Boxes sobre os autores Esses boxes trazem informaçþes sobre a vida e a obra dos autores discutidos nas Unidades. Auxiliam a compreensão do contexto cultural, social e político no qual eles se inscrevem. Os boxes sobre autores tambÊm assinalam influências e afinidades de determinado filósofo e eventuais repercussþes de sua filosofia nas obras de outros pensadores. Hå tambÊm a preocupação de informar as principais obras traduzidas para a lingua portuguesa em ediçþes de qualidade e, sempre que possível, recentes. Note que, como alguns autores são examinados em mais de uma Unidade, você deve localizar em qual delas se encontra o boxe sobre o autor em pauta. Digamos que você esteja lendo a Unidade Razão e paixão, que remete a Aristóteles[+]. O sinal [+] ao lado do nome indica que existe, no nosso livro, um boxe sobre esse autor: basta então buscå-lo na lista de boxes biogråficos, ao final do volume, para localizå-lo.

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Situaçþes de aprendizagem As situaçþes de aprendizagem possuem duas funçþes. Elas são o momento para elaboração de uma reflexão mais detida de sua parte sobre os conteúdos abordados nas Unidades e tambÊm constituem a ocasião para um processo avaliativo. A especificiade da filosofia admite e possibilita formas de avaliação diferentes do esquema tradicional de perguntas/respostas. Por isso, as situaçþes de aprendizagem propþem atividades tais como: debate dirigido sobre os temas apresentados, seminårios e, especialmente, desenvolvimentos dissertativos individuais, nos quais você Ê convidado a formular, em breves redaçþes, os pontos do debate e o seu posicionamento diante deles.

[1] [2] [3] [4] [5]

[6] [7] [8] [9]

[10]

Trecho citado da obra. Sempre entre aspas. Autor da obra Título da obra Organizador da obra (nem sempre hå um organizador). Em que volume da obra se encontra o trecho citado. Essa informação só Ê necessåria quando a obra possui mais de um volume. Cidade em que se encontra a sede da editora que publicou a obra. Nome da editora. Ano de edição da obra. Capítulo em que se situa o trecho citado. Essa informação pode ser muito útil, quando hå ediçþes diversas da mesma obra, com paginaçþes diferentes. Mas ela não Ê obrigatória em citaçþes. Número da pågina ou das påginas em que o trecho citado se encontra.

ExpressĂľes lĂłgicas no nosso cotidiano Pesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

do Pandeiro (nome artĂ­stico de JosĂŠ Gomes

ou em outros bancos de dados, muitas vezes usamos expressĂľes lĂłgicas. Digamos

Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de restringir ainda mais os resultados de sua bus-

que vocĂŞ queira lembrar o nome de uma

ca, por meio da expressĂŁo:

canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiroâ€?, ou conhecer grava-

pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson) ou pandeiro +melodia -Jackson

Se, num site de buscas ou banco de dados, vocĂŞ digitar pandeiro OR(melodia)

• No exemplo acima, que operadores lĂłgicos foram utilizados? Tente “traduzi-loâ€? para a linguagem lĂłgica formal, utilizando

encontrarĂĄ milhares de resultados que nĂŁo lhe interessam. Isso porque o mo-

os operadores e sĂ­mbolos explicados no box sobre conectivos lĂłgicos. (Um aviso:

tor de busca utilizou a disjunção, o operador “ouâ€? (â‹ ), e trarĂĄ resultados que

motores de busca da internet nĂŁo costumam reconhecer esses sĂ­mbolos; o objetivo

tenham qualquer dos dois, ou pandeiro

ĂŠ somente compreender quais sĂŁo esses

ou melodia.

conectivos e como podem ser utilizados em

VocĂŞ pode direcionar melhor sua pesquisa, por exemplo digitando no campo de

uma situação prĂĄtica.) • Em seguida, construa outras expressĂľes

busca:

de busca, mais complexas. Por exemplo: vocĂŞ estĂĄ interessado em resultados que

pandeiro AND(melodia) ou

tenham a ver com “mangueira�, que podem

pandeiro +melodia O que significa essa expressĂŁo? Que

ser ou nĂŁo referentes Ă escola de samba carioca, mas que nĂŁo tenham a ver diretamen-

estamos interessados em todos resulta-

te com a ĂĄrvore frutĂ­fera do gĂŞnero Mangife-

dos que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. NĂŁo queremos registros que

ra. Como deverĂ­amos formular a expressĂŁo de busca? HĂĄ mais de um modo de fazĂŞ-lo?

tragam apenas um deles, sĂł “pandeiroâ€?

Experimente formular, por escrito, duas ou-

sem “melodia�, nem apenas “melodia� sem “pandeiro�.

tras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

lógica e argumentação

çþes dela.

FalĂĄcia e argumento De acordo com a noção mais geral de “argumentoâ€?, toda pessoa que argumenta estĂĄ sempre tentando persuadir um determinado “auditĂłrioâ€?. Esse auditĂłrio pode ter dimensĂľes muito diferentes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

apenas uma pessoa â€“ tome como exemplo um vendedor que tenta convencer vocĂŞ a comprar um determinado produto numa loja. O auditĂłrio de quem argumenta pode tambĂŠm ser composto por um pequeno grupo de pessoas â€“ ĂŠ o que acontece quando o professor de matemĂĄtica

Citaçþes e traduçþes Parte essencial dos percursos reflexivos propostos em cada mĂłdulo consiste na anĂĄlise e discussĂŁo de trechos de textos filosĂłficos que tĂŞm o que dizer sobre os temas abordados. É Ăştil vocĂŞ desde jĂĄ familiarizar-se com algumas convençþes. Ei-las abaixo: [1] “A razĂŁo disto era acabar de cismar, e escolher uma resolução que fosse adequada ao momento. O carro andaria mais depressa que as pernas; estas iriam pausadas ou nĂŁo, podiam afrouxar o passo, parar, arrepiar caminho, e deixar que a cabeça cismasse Ă vontade. Fui andando e cismando... Cuidei de recompor-lhe os olhos, a posição em que a vi, o ajuntamento de pessoas que devia naturalmente impor-lhe a dissimulação, se houvesse algo que dissimular. O que vai por ordem lĂłgica e dedutiva, tinha sido antes uma barafunda de ideias e sensaçþes, graças aos solavancos do carro e Ă s interrupçþes de JosĂŠ Dias. ConcluĂ­ de mim para mim que era a antiga paixĂŁo que me ofuscava ainda e me fazia desvairar como sempre.â€? ([2] M. de Assis, [3] Obra completa, [4] org. A. Coutinho, [5]

vol. 1. [6] Rio de Janeiro: [7] Nova Aguilar, [8] 1994, [9] Cap. CXXVI, [10] pp. 928-929)

Hå um elemento suplementar nas indicaçþes de um trecho citado. Trata-se do nome do tradutor da obra. No caso acima, não hå tradutor algum, jå que Machado de Assis escreveu em nossa língua. Mas na maior parte das citaçþes a obra citada Ê uma tradução. E, embora nem sempre isso ocorra, Ê muito importante indicar ao leitor o nome do tradutor ou tradutora. Afinal, trata-se de um trabalho importantíssimo que tem de ser reconhecido. Veja um exemplo, tirado da Unidade Natureza e cultura, de um trecho de obra traduzida:

“Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso sĂŠculo, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França AntĂĄrtida.â€? (Montaigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. AbĂ­lio. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, p. 303)

A principal conclusĂŁo que Montaige extrai do relato do viajante acerca dos costumes e hĂĄbitos dos nativos brasileiros pode ser considerada como uma crĂ­tica severa Ă atitude que hoje chamarĂ­amos de “etnocĂŞntricaâ€?, isto ĂŠ, a afirmação de uma cultura como superior Ă s demais (o termo “etnocentrismoâ€? nĂŁo foi utilizado por Montaigne, mas por antropĂłlogos do sĂŠculo XX). Veja sĂł:

(Montaigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. Abílio. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 303)

natureza e cultura

“Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso sĂŠculo, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França AntĂĄrtida.â€?

de bĂĄrbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a nĂŁo ser porque cada qual chama de barbĂĄrie aquilo que nĂŁo ĂŠ de seu costume; como verdadeiramente parece que nĂŁo temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razĂŁo a nĂŁo ser o exemplo e o modelo das opiniĂľes e usos do paĂ­s em que estamos. Nele sempre estĂĄ a religiĂŁo perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e cabal de todas as coisas. Eles sĂŁo selvagens, assim como chamamos de selvagens os frutos que a natureza, por si mesma e por sua marcha habitual, produziu; sendo que, em verdade, antes deverĂ­amos chamar de selvagens aqueles [frutos] que com nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum. Naqueles outros estĂŁo vivas e vigorosas as verdadeiras e mais Ăşteis e naturais virtudes e propriedades, as quais abastardamos nestes, e simplesmente as adaptamos ao prazer

Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

“Mas, para retomar meu assunto, acho que nĂŁo hĂĄ nessa nação nada

Victor Meirelles (1832-1903), A primeira missa (Ăłleo sb/ tela, 1861). A missa, que simbo-

liza o encontro desigual de duas civilizaçþes, foi celebrada pelo padre Henrique de Coimbra em 26 de abril de 1500.

Esforçamo-nos para trazer sempre traduçþes de qualidade reconhecida. Em alguns casos, nós mesmos (os autores, o organizador e o editor) traduzimos os

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Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não estå mesmo interessado no grande artista paraibano Jackson

Quando fazemos pesquisas na internet

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textos. Na quase totalidade dos casos, essa Por vezes, nos trechos citados, vocĂŞ irĂĄ detradução foi feita a partir da lĂ­ngua em que os parar-se com colchetes. Veja esse caso: textos foram originalmente escritos (grego, “[...] posso agora dar um grande nĂşmero latim, alemĂŁo, francĂŞs etc.). Isso nĂŁo significa de provas, cada uma das quais ĂŠ uma prova que, toda vez que vocĂŞ encontrar trechos com a perfeitamente rigorosa [12] [...] Posso provar indicação: “Tradução nossaâ€?, nĂŁo haja uma ouagora, por exemplo, que existem duas mĂŁos tra boa tradução publicada em nosso idioma. humanas. Como? Levantando minhas duas Quando nĂŁo se tratava de obras inĂŠditas em mĂŁos e dizendo, enquanto faço determinado portuguĂŞs, motivos diferentes levaram a essa gesto com a mĂŁo direita, ‘Aqui estĂĄ uma mĂŁo’, decisĂŁo. Em primeiro lugar, porque tivemos e acrescentando, enquanto faço determinado o privilĂŠgio de contar, em nossa equipe, com gesto com a esquerda, ‘e aqui estĂĄ outra’. E se, professores que sĂŁo tambĂŠm reconhecidos traao fazĂŞ-lo, eu provei ipso facto [13] [i.e., pela dutores profissionais. Em segundo lugar, porprĂłpria evidĂŞncia do fato] a existĂŞncia de que diversas boas traduçþes foram editadas hĂĄ coisas exteriores, vocĂŞs verĂŁo que posso fazĂŞmuito tempo, e assim o leitor seria remetido -lo, entĂŁo, de muitas outras maneiras: nĂŁo a publicaçþes que hoje, na prĂĄtica, sĂŁo bem hĂĄ necessidade de multiplicar os exemplos.â€? difĂ­ceis de encontrar. Por fim, em alguns ca(G. E. Moore, “Prova de um mundo exteriorâ€?. sos, a nossa tradução possibilitou aproximar o Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: “Proof texto filosĂłfico de leitores nĂŁo especializados, of an external worldâ€?, in: Philotornando-o, na medida do possophical papers. Allen & Unwin, sĂ­vel, mais compreensĂ­vel – mas [11] Op. cit. ĂŠ a abreviatura de 1963, 2ÂŞ ed., p. 146) opus citatum (“obra citasempre com o cuidado de nĂŁo disdaâ€?). Indica que a presente Os colchetes ou parĂŞnteses tanciar a tradução do texto origicitação pertence Ă mesma edição citada anteriormenpossuem duas funçþes. A prinal. É o que poderĂ­amos chamar te, o que mudou foi apenas meira ĂŠ a de indicar que o trecho de tradução dirigida (neste caso, a pĂĄgina. [12] Colchetes de omissĂŁo. Com nĂŁo ĂŠ uma citação integral da dirigida ao pĂşblico nĂŁo especiaeles, indica-se que hĂĄ palapassagem da obra citada. Logo, lizado, em particular no contexvras ou mesmo sentenças no eles assinalam que ali foram to do Ensino MĂŠdio). Assim, se texto original que nĂŁo foram transcritas na citação. omitidas palavras ou oraçþes do optamos por deixar o texto mais [13] Colchetes explicativos. Aqui, texto original. Essas omissĂľes fluido e acessĂ­vel, isto nĂŁo envolas palavras enunciadas nĂŁo justificam-se na medida em veu perda de fidelidade da tradusĂŁo do autor citado, G. E. Moore, mas nossas, e visam que pode ocorrer que, para os ção com relação ao original. esclarecer melhor o argupropĂłsitos da nossa argumenmento em questĂŁo. Imagine agora que vocĂŞ estĂĄ tação, nĂŁo seja necessĂĄrio citar redigindo um trabalho disserintegralmente o trecho original. tativo e deve citar duas vezes a Trata-se de um princĂ­pio de economia, legĂ­timesma obra – por exemplo, essa antes menmo e muito utilizado mundo afora – basta que cionada, os Ensaios de Michel de Montaigcuidemos de indicĂĄ-lo, toda vez que fizermos ne. A primeira citação de um determinado recurso a ele. trecho ĂŠ tal e qual a do exemplo que demos. A segunda função dos colchetes ou parĂŞnteMas a segunda faz referĂŞncia a uma passases ĂŠ a de explicar algo que possa soar estranho gem, digamos, da pĂĄgina 305. Nesse caso, ou difĂ­cil ao leitor que nĂŁo estĂĄ com a obra citapara nĂŁo ter de repetir todas as informaçþes da em mĂŁos. Por vezes, o autor citado jĂĄ intro(autor, nome da obra, parte da obra, capĂ­tuduziu, numa passagem antecedente ao trecho lo, tradução, cidade da editora, nome da edicitado, uma ideia ou explicação do que aparece tora, ano de publicação e paginação), basta no trecho citado. Os colchetes explicativos servocĂŞ escrever: vem para auxiliar a compreensĂŁo adequada dos conteĂşdos do trecho citado. Montaigne, Ensaios, op. cit. [11] , p. 305.

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os autores JoĂŁo VergĂ­lio Gallerani Cuter formou-se em filosofia pela Universidade de SĂŁo Paulo (USP). Defendeu uma tese de doutoramento (1993) a respeito das relaçþes entre a teoria dos tipos de Russell e a teoria da figuração do Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein. Desde 1995, ĂŠ professor do Departamento de Filosofia da USP. Publicou diversos artigos em revistas nacionais e internacionais e ĂŠ autor do livro Misticismo e lĂłgica (SĂŁo Paulo: Annablume, 2013). Atualmente, desenvolve pesquisa a respeito dos manuscritos produzidos por Wittgenstein no perĂ­odo que vai de 1929 atĂŠ 1933 â€“ o assim chamado “perĂ­odo intermediĂĄrioâ€? de sua filosofia.

Luiz Repa Ê professor de teoria das ciências humanas no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) e pesquisador do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Anålise e Planejamento (NDD/CEBRAP). Possui graduação (1995), mestrado (2000) e doutorado (2004) em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Fez estudo complementar na Goethe-Universität de Frankfurt am Main (2001). Publicou o livro A transformação da filosofia em Jßrgen Habermas: os papÊis de reconstrução, interpretação e crítica (São Paulo: Esfera Pública, 2008), e coorganizou o livro Tensþes e passagens: filosofia crítica e modernidade (São Paulo: Esfera Pública, 2008), e Habermas e a reconstrução: sobre a categoria central da teoria crítica habermasiana (Campinas: Papirus, 2012).

Roberto Bolzani Filho ĂŠ bacharel e licenciado em Filosofia pela Universidade de SĂŁo Paulo (USP), onde defendeu mestrado sobre o ceticismo pirrĂ´nico grego (1992) e doutorado a respeito da filosofia cĂŠtica na Academia platĂ´nica (2003). Desde 1988, leciona histĂłria da filosofia antiga na mesma instituição, desenvolvendo pesquisas nessa ĂĄrea. É autor de AcadĂŞmicos versus pirrĂ´nicos (SĂŁo Paulo: Alameda, 2013) e de artigos publicados em revistas especializadas.

Marco Antonio Valentim formou-se em filosofia pela Universidade Federal do ParanĂĄ (UFPR), em 2000. Cursou mestrado em filosofia, com dissertação sobre PlatĂŁo (2002), e doutorado em filosofia, com tese sobre Heidegger e Descartes (2007), ambos na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Desde 2006, leciona no Departamento de Filosofia da UFPR. É autor de diversos artigos de histĂłria da filosofia publicados em livros e revistas acadĂŞmicas.

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Paulo Vieira Neto formou-se em filosofia pela Universidade de SĂŁo Paulo (USP), onde defendeu seu mestrado sobre Kant (1994) e doutorado sobre Espinosa (2003). Leciona no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do ParanĂĄ (UFPR) desde 1994.

Vinicius de Figueiredo formou-se em filosofia pela Universidade de SĂŁo Paulo (USP), onde defendeu seu mestrado (1993) e doutorado (1999) sobre Kant. Foi bolsista do programa de formação de quadros e assistente de pesquisa do Centro Brasileiro de AnĂĄlise e Planejamento (CEBRAP) entre 1990 e 1993. Leciona no Departamento de Filosofia da Universidade Federal do ParanĂĄ (UFPR) desde 1993. Foi presidente da Associação Nacional de PĂłs-Graduação em Filosofia (ANPOF) entre 2011 e 2012. É autor de Quatro figuras da aparĂŞncia (Londrina: Lido, 1995) e Kant & CrĂ­tica da razĂŁo pura (Rio de Janeiro: Zahar, 2005) e organizador da coleção FilĂłsofos na sala de aula (SĂŁo Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006-2009, 3 vols.).

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In memoriam

Tom Figueiredo (1938-2013)

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Unidades

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©Foto: Lions Gate/ Everett Collection/Keystone ©Foto:

Cena do filme O homem urso, de Werner Herzog

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unidade

1

O limite entre dois universos...................

21

O naufrágio de Robinson Crusoé ......

24

A diversidade das culturas .....................

28

A ideia de “natureza humana” ...................

31

Montaigne e os canibais .............

33

“Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas” ......... 39

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V

amos propor a você um simples experimento: lembre-se do que você fez no dia de hoje, desde a hora em que acordou. Inevitavelmente, você utilizou uma série de objetos criados pelo ser humano, que não existiam na natureza (sua cama; sua escova de dentes; o livro que você tem em mãos). Essa é uma maneira fácil de constatarmos que nossa vida é permeada de cultura. Mas a cultura está muito além dos objetos que inventa – está também na base da própria maneira como organizamos nosso pensamento. Assim, ao viver em sociedade, nos distanciamos do mundo natural: somos algo mais do que meros “seres naturais”. Por outro lado, o ser humano, o homo sapiens sapiens, não é uma espécie que pertence ao reino animal? Até que ponto nossas diferentes culturas são capazes de nos afastar dessa realidade?

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O limite entre dois universos Thimothy acompanhava ano após ano. Outro filme, de Sean Penn, também reconstitui uma história verídica que termina tragicamente no Alasca. Na natureza selvagem (EUA: 2007) conta a vida de Christopher McCandless, um jovem norte-americano nascido em uma família rica, que decide alterar os planos traçados para seu futuro. Abandona os estudos, cruza o país e, depois de dois anos de estrada, decide embrenhar-se no Alasca, em uma região inóspita e despovoada. Vive por meses em um ônibus abandonado na floresta, separado de tudo e de todos pelo inverno rigoroso, até que, por causa da ingestão de sementes tóxicas de uma planta silvestre, adoece e, sem reunir forças para voltar à civilização, acaba morrendo. Além do Alasca, essas duas histórias têm em comum o fato de que seus protagonistas quiseram cruzar uma fronteira. Ou melhor, aproximaram-se muito dela, experimentaram de forma radical e prolongada o limite que separa a natureza da cultura. A experiência infelizmente custou-lhes a vida.

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©Foto: AKPE/Julio Fiadi

Há um filme documentário de Werner Herzog, O homem urso (EUA: 2005), que conta uma história terrível. É a história verídica de Timothy Treadwell, ecologista norte-americano que decidiu ir viver entre os ursos do Alasca. Por treze verões seguidos, Timothy tomou a direção do norte em um pequeno hidroavião, cujo piloto retornava seis meses após tê-lo deixado na região que ele escolhera para viver isolado. Timothy registrava com a filmadora sua aproximação dos ursos selvagens. Pretendia ser reconhecido por eles como membro do grupo. O material registrado por Thimothy foi incorporado por Herzog a seu filme, que intercala às cenas no Alasca depoimentos de seus parentes e amigos. Em sua última viagem, Thimothy levou consigo sua namorada, Amie Huguenard. Quando, em outubro de 2003, aterriza no local combinado para trazê-los de volta, o piloto encontra apenas seus restos mortais na barraca, inteiramente destruída. Eles foram atacados e devorados por um urso. Não se sabe se o urso agressor pertencia ou não ao grupo que

Amyr Klink (1955 - ) tornou-se mundialmente conhecido quando atravessou o Oceano Atlântico em um barco a remo (1984). Dali em diante, fez várias navegações pelo mundo.

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LITERATURA DE AVENTURA: ALGUMAS DICAS Todo mundo sabe que Saint-Exupéry escreveu O pequeno príncipe (1943). O que nem todos sabem é que ele também publicou outros livros, bem menos conhecidos, porém mais interessantes que a obra que o imortalizou. Aí vai a lista deles: L’aviateur (O aviador), 1926 Courrier sud (Correio do Sul), 1929 Vol de nuit (Voo noturno), 1931 Terre des hommes (Terra dos homens), 1939 Pilote de guerre (Piloto de guerra), 1942 Lettre à un otage (Carta a um refém), 1943/1944 A obra de Jack London já é mais extensa. Listamos abaixo apenas alguns títulos, os mais conhecidos, disponíveis em tradução para o português: A estrada (Boitempo, 2008) Antes de Adão (L&PM, 1999) A praga escarlate (Conrad, 2003) Caninos brancos (L&PM, 2004) Chamado selvagem (Hemus, 2008) O povo do abismo (Ed. Perseu Abramo, 2004) Tacão de ferro (Hemus, 2008) De Amyr Klink, destacamos três livros: Cem dias entre céu e mar (Cia. das Letras, 2005) Linha d’água (Cia. das Letras, 2006)

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Mar sem fim (Cia. das Letras, 2000)

Você poderá dizer: mas há tantas histórias assim... Os romances de Jack London (1876-1816), que narram as desventuras dos baleeiros singrando os mares por meses a fio; os relatos de Saint-Exupéry (1900-1944), que foi aviador no início do século XX e que sobrevoava os Andes sem instrumentos, em meio a tempestades... E nem é preciso restringir-se ao passado mais remoto. Mais recentemente, em 1984, Amyr Klink, velejador brasileiro, cruzou o Atlântico Sul a remo, em um barco de oito metros de comprimento, numa aventura fabulosa que imortalizou em seu livro Cem dias entre céu e mar. Como se isso não bastasse, construiu outro barco (um pouco maior, desta vez) e partiu em

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direção à Antártida. De lá, cruzou o globo terrestre, até chegar ao extremo norte, no qual permaneceu por dois meses, inteiramente sozinho, com o barco cercado de gelo e neve. No degelo, voltou ao Brasil. Poderíamos buscar outros exemplos para engrossar esta lista de feitos extraordinários. Só que nosso intuito, aqui, é outro. Queremos instituir diferenças. Compare os casos mencionados acima, veja o que eles têm em comum uns com os outros, e no que diferem. Jack London e Saint-Exupéry, cada qual a seu modo, nos contam aventuras de homens que participaram de dois grandes empreendimentos econômicos: a pesca baleeira do fim do século XIX e o início da aviação na primeira metade do século XX. Claro que isso não diminui em nada as façanhas que retratam em seus textos. São acontecimentos extraordinários, sem dúvida. A diferença em relação aos dois homens que perderam a vida no Alasca está em que os heróis de Jack London e Saint-Exupéry integram empreendimentos que afirmam o poder dos seres humanos sobre a natureza. Esse também é o caso dos feitos de Amyr Klink. Basta abrir um de seus livros para constatar seu minucioso cuidado em antecipar os imprevistos, planejar alternativas, programar suas travessias, de modo a voltar vivo para poder contar sua história e lembrá-la entre nós. Amyr Klink tem algo do Ulisses da Odisseia, de Homero, que se amarrou ao mastro de seu navio para resistir ao canto enfeitiçado das sereias e, assim, retornar a Ítaca, sua cidade natal. Amyr Klink, ao modo de Saint-Exupéry, Jack London e tantos outros, prova que a espécie humana é capaz de um extraordinário vigor diante das forças da natureza. Já Timothy Treadwell e Christopher McCandless, com cujos exemplos começamos este módulo, parecem ter atendido outra vocação. Não que quisessem perder suas vidas; mas talvez a tenham perdido por terem pouco a pouco esticado a corda até romper o

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Rio Koyukuk, no Alasca .Foto:Bill Raften, U.S. Fish & Wildlife

A solidĂŁo do Alasca AnĂĄlise de texto ou filme e apresentação de seminĂĄrio • Assista em equipe ao filme Na natureza selvagem, de Sean Penn, que narra a histĂłria de Christopher McCandless, ou leia o livro em que o filme foi baseado, escrito por John Krakauer, Na natureza selvagem (Tradução: Pedro M. Soares. SĂŁo Paulo: Companhia das Letras, 1998). Em seguida, busque identificar com seus colegas de equipe os momentos da histĂłria que podem ser reportados ao problema discutido aqui – a saber, o da relação de Christopher McCandless com sua cultura e seu meio, sua rebeldia, seu desejo de abandonar

o modo de vida de sua famĂ­lia. Exponham, entĂŁo, na forma de seminĂĄrio para os demais colegas, o que significou para Christopher McCandless a solidĂŁo que ele encontrou no Alasca.

SOZINHO NO MAR Klink relata sua travessia do Atlântico Sul em

gar ao Brasil. E, ainda que fosse distante ou extremamente difícil, sabia que poderia alcançå-lo.

um barco a remo. Note como ele dispĂľe de

Situação privilegiada, pensei. Durante tanto

um objetivo muito claro: atravessar o oceano

tempo antes de partir, tudo o que sonhei, tudo

e retornar à civilização:

em que pensei foi estar remando no meio do

“Aos poucos percebi que entrava em equilĂ­brio com o mundo Ă minha volta. Um cenĂĄrio eterno e dinâmico a um sĂł tempo, exatamente o mesmo que viram os navegadores do passado. Talvez com igual intensidade e emoção, medo ou alegria. E a noção de tempo tĂŁo exata a ponto de conhecer os dĂŠcimos de segundo de cada hora, ou tĂŁo vaga no espaço que sĂŠculos nada significariam em transformaçþes.

Atlântico. E era, naquele momento, precisamente o que estava fazendo. NĂŁo podia reclamar. Estava realizando um velho e encardido sonho. SĂł restava ter paciĂŞncia. Por outro lado, tinha consciĂŞncia de que vivia momentos importantes, pois poucas vezes na vida tem-se um Ăşnico objetivo e a firme certeza de que, a cada dia que passa, a cada hora, a cada remada, se estĂĄ mais prĂłximo dele.â€?

Não me encontrava em uma situação indefi-

(ExtraĂ­do de Amyr Klink, Cem dias entre o cĂŠu

nida ou permanente, e talvez por isso me sentisse

e o mar. SĂŁo Paulo: Cia. das Letras [Cia. de Bolso],

bem. Tinha um objetivo na mente, e um sĂł: che-

2012, Cap. 9, p. 76)

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natureza e cultura

Leia o texto a seguir, do livro em que Amyr

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liame que os ligava à cultura, à humanidade. Ambos, cada um a seu modo, não pretendiam afirmar-se sobre a natureza, mas diluir-se nela, como se buscassem extinguir a própria oposição entre o mundo natural e a cultura. A pergunta que sugerem os dois filmes, o de Werner Herzog e

o de Sean Penn, é a mesma: será possível atravessar essa fronteira, a não ser sob o custo da própria vida? No seu último momento, Christopher McCandless parece ter-se dado conta disso, pois em seu diário anotou o seguinte: “a vida não é para ser sozinha”.

natureza e cultura

O naufrágio de Robinson Crusoé

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seguida se acalma e procura reintroduzir a ordem de sua vida antiga na situação em que agora se encontra, contra sua vontade. A primeira coisa que faz, nesse sentido, é talhar em uma árvore os dias que vão se sucedendo uns aos outros, de modo a fixar, por meio do calendário, uma ordem humana na temporalidade indiferente da natureza. Uma filósofa francesa comenta bem esse ponto: “Substituindo a preguiçosa fluidez dos dias e a indiferenciação do passado pela inscrição regular do tempo,

John Clark e John Pine. Londres: W. Taylor, 1719

Para pensarmos sobre o que significa, para o homem, sair da sociedade e viver isolado, é muito oportuno mencionar um livro que marcou época e até hoje é lido em todo mundo. Daniel Defoe publicou A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé, marinheiro, de York em 1719. O que nem todos sabem é que, para contar as aventuras de Crusoé, Defoe se inspirou em uma história real, a de um marinheiro escocês, Alexander Selkirk, que, após desentender-se com seu capitão, desembarcou por livre escolha em uma ilha do arquipélago Juan Fernandez, a 600 quilômetros da costa chilena, onde viveu entre 1704 e 1709. Há um aspecto importante na história de Selkirk que devemos reter, em vista da nossa classificação entre os casos de afirmação do homem sobre a natureza e os daqueles que buscam isolar-se do restante dos homens por sua livre escolha, como se procurassem dissolver a fronteira entre a natureza e a humanidade. No último momento, Selkirk arrependeu-se e acenou para voltar ao navio, mas o capitão se recusou a embarcá-lo. O navegador que o encontrou e o levou de volta ao Reino Unido em 1709 relata o que lhe contou o próprio Selkirk: nos primeiros meses, ele “quase sucumbiu à melancolia e ao terror de ser abandonado em um sítio tão desolado”. Robinson Crusoé, a criação literária de Daniel Defoe inspirada em Selkirk, é vítima do mesmo terror, tão logo se dá conta de que é o único sobrevivente do naufrágio e de que está em uma ilha deserta. Mas em

Gravura do frontispício da 1ª edição de A vida e as estranhas e surpreendentes aventuras de Robinson Crusoé.

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Robinson restitui o mundo à humanidade” dáveis, sendo o primeiro som de uma (Bernardette Delamarre, Autrui. Tradução voz humana que eu escutara por mais nossa. Paris: Notions, 2005, p. 5). de vinte e cinco anos.” (Daniel Defoe, De fato, o meio encontrado por Crusoé A vida e as estranhas e surpreendentes para não sucumbir à sua desventura é poaventuras de Robinson Crusoé. Tradução voar sua solidão com traços de humanidanossa. Edição de referência: D. Defoe, de, o que ele faz, primeiro, fabricando um The life and strange surprizing adventucalendário e, depois, mediante o trabalho. res of Robinson Crusoe. Londres: Taylor, Você poderá se indagar qual, afinal de con1719 [1ª parte publicada], p. 241) tas, a importância de construir uma casa, decorá-la com algum mobiliário; qual é a Esse acontecimento é decisivo. Percebeutilidade de cultivar uma horta, fazer um se, na narrativa de Defoe, como o retorno de cercado, organizar um rebanho, acumuCrusoé à humanidade, de que falava Bernalar provisões, quando, no final das condette Delamarre ao assinalar a importância tas, Crusoé bem poderia do calendário, complepassar sem isso, sobreta-se apenas no instanvivendo modestamente te em que ele passa a se Somente após Crusoé das dádivas asseguradas comunicar novamente pelo clima e pela vegetacom outro ser humano. encontrar Sexta-Feira ção da ilha em que se viu De início, Sexta-Feie lhe ensinar seu lançado. Mas o ponto é ra e Crusoé mal conseidioma, o enunciado exatamente este: a vida, guem se entender: coao menos tal como ele a municam-se por sinais de que aquela era entendia, não se resume e por interjeições. Não “sua ilha” deixou de à simples sobrevivência. importa. Pela reação ser um pensamento O cultivo da terra já é ir de Crusoé, percebemos além da mera sobrevivênque a humanidade, preprivado. cia, é ultrapassá-la pela parada pelo calendário e cultura. pelo trabalho, realiza-se Mas essas duas coisas para valer apenas com o – um calendário, o trabalho – serão sufiexercício da linguagem, no horizonte da cocientes para habitarmos o mundo da cultumunicação entre os humanos. ra? Crusoé fez seu calendário, ordenou um Não que, de sua chegada à ilha até este espaço humano e começou a chamar a ilha momento, Crusoé tivesse desaprendido a de “sua ilha”. Contudo, passaram-se mais falar, nem que estivesse privado de pende duas décadas até que ele encontrasse samentos, que correspondem a signos outro rosto humano... Assim prossegue o linguísticos de sua língua materna, o inglês. romance: um nativo de uma ilha vizinha, Antes de encontrar Sexta-Feira, Crusoé pofugindo de uma tribo inimiga da sua, é saldia repetir a si mesmo, por exemplo, que vo por Crusoé de seus perseguidores. Ele o estava em “sua ilha”. acolhe, o batiza de “Sexta-Feira”, o dia da Mas somente após encontrar Sextasemana em que ocorre o encontro. O silênFeira e lhe ensinar seu idioma, o enuncio solitário em que vivera até ali é finalciado de que aquela era “sua ilha” deixou mente rompido: de ser um pensamento privado. E, ao se tornar intersubjetivo (isto é, algo que se “[...] ele me disse algumas palavras, passa entre dois ou mais sujeitos), esse as quais, porém, eu não pude entender; enunciado se articula com uma forma ainda assim, foram-me muito agrade vida determinada, com uma maneira

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Peter Rubens (1577-1640), Prometeu carregando o fogo. Óleo sb/ tela, s/d. Museu do Prado, Madri

particular da existência dos homens. No caso de nosso romance, essa existência é marcada pelo afeto que os une em sua desventura, e também pela hierarquia entre Crusoé e Sexta-Feira, o nativo que admite sem questionamentos que a ilha é de seu “patrão”. O romance de Robinson Crusoé ilustra bem o fato de que, para haver cultura, não é suficiente a existência solitária de um homem. Partindo do nosso romance em direção a um enunciado mais geral, podemos afirmar que apenas há cultura ali onde há trabalho e comunicação entre pessoas – ou seja, ali onde a natureza é apropriada e modificada tendo em vista fins humanos. E isso nos leva a outra consequência: se é mesmo assim, então também toda comunidade humana é produtora de cultura, pois o que torna um conjunto de homens uma comunidade, por mais sim-

De acordo com o mito grego, ao roubar o fogo dos deuses e presenteá-lo aos humanos,

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o titã Prometeu tornou possível a passagem da natureza à cultura.

ples que seja, é a troca simbólica que os indivíduos pertencentes a ela estabelecem entre si, os valores que partilham, a maneira como interagem com o meio etc. Para Robinson Crusoé, sua vida na ilha ganha definitivamente a forma da cultura apenas quando ele, ao encontrar Sexta-Feira, reproduz os valores de seu modo de vida anterior, na Inglaterra. Observemos, porém, que Sexta-Feira dispunha de uma cultura precedente, que compartilhava com seu povo. Ao se deparar com Crusoé, ele abandona docilmente seu modo de vida anterior e se submete aos ritos da cultura de que seu “senhor” é portador. Sexta-Feira, por assim dizer, troca um modo de afirmação sobre a natureza por outro, que corresponde ao de Crusoé. Vamos agora extrair conclusões do percurso feito até aqui. Vimos, primeiro, que a cultura representa uma afirmação dos seres humanos sobre a natureza. Onde há cultura, a natureza é modificada e apropriada pelos indivíduos conforme fins de ordem simbólica, não apenas biológica. Mas o fato de que haja cultura não significa que a natureza desapareça. Os seres humanos, embora sejam vetores da cultura, nem por isso deixam de pertencer ao reino natural. De modo que toda cultura, como afirmação humana sobre a natureza, também corresponde, em certa medida, a uma afirmação dos seres humanos sobre o que neles mesmos é natureza. Assim, a cultura, além de modificar o meio natural em que se encontram os seres humanos, também corresponde a uma intervenção simbólica permanente dos seres humanos sobre si mesmos. Muitas questões atuais se agrupam sob essa perspectiva. Por exemplo, a ecologia dá origem a um discurso muito presente nos dias de hoje e procura nos advertir sobre o fato de que nossa forma de civilização pode ameaçar o equilíbrio biológico do planeta. Muitos ecologistas afirmam que corremos sérios riscos de produzir catástrofes que poderiam ser

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Os desafios da ecologia Desenvolvimento individual por escrito • Por meio de consulta à imprensa, apresente, em um pequeno texto de aproximadamente uma página, um caso em que a afirmação da humanidade sobre a natureza representa um risco de dano ou mesmo de extinção da natureza. Em seguida, em um parágrafo separado, exponha o que seria, do seu ponto de vista, uma afirmação da humanidade sobre a natureza capaz de modificá-la, sem, todavia, destruí-la. Como conclusão, compare o ponto de vista elaborado por você com o conceito de “desenvolvimento sustentável”, cujo significado você poderá pesquisar em livros, revistas e na internet.

natureza e cultura

The Asahi Shimbun/Getty Images

evitadas se os fins buscados por nossa civilização fossem reconsiderados à luz do que se designa um “desenvolvimento sustentável”. Muito antes deles, mais de um filósofo assinalou que, a depender de como é exercida, a afirmação do ser humano sobre a natureza pode ser prejudicial à natureza de que também é feito o próprio ser humano. As conclusões acima dizem respeito a um primeiro grupo de reflexões levantado pelo nosso tema. Mas examinamos um segundo ponto importante. Vimos também que há maneiras diferentes de os agrupamentos humanos se afirmarem sobre a natureza. O romance de Daniel Defoe nos dá um exemplo disso: Crusoé e Sexta-Feira são portadores de culturas muito diversas entre si. Ocorre que Sexta-Feira se adapta completamente ao modo de vida de Crusoé. Mas lembremos que se trata de um romance, cuja narrativa corresponde ao relato pessoal de Crusoé. O romancista decidiu não dar voz própria a Sexta-Feira.

Nesta imagem aérea, vê-se a cerca para conter o vazamento de asfalto ocorrido na refinaria localizada em Ichihara, Chiba, no Japão, em junho de 2012.

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Isso nos leva a outra conclusão, relativa não mais à oposição geral entre natureza e cultura. Trata-se, agora, da questão representada pelo contato e embate entre as diferentes culturas. Você verá que, ao tomar Sexta-Feira como um indivíduo destituído de civilização própria, a ser “civilizado”,

Crusoé opera com uma noção etnocêntrica de cultura. Tal noção só reconhece como válida a sua própria forma de se afirmar sobre a natureza. Ora, por que um modo de afirmação do homem sobre a natureza tem de se impor às demais culturas, como se fosse a “verdadeira” cultura?

É fácil constatar que o homem se coloca face à natureza em função de sua cultura. No entanto, o universo da cultura é diversificado e multifacetado. Não há uma única cultura, mas um conjunto delas. Dito de outro modo, os homens de diferentes culturas (por exemplo, o europeu moderno e o ameríndio) se afirmam frente à natureza segundo diferentes formas de vida. É a situação exemplificada pelo romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Vivendo sozinho em uma ilha, o protagonista do livro termina encontrando um nativo, ao qual dá o nome de “Sexta-Feira”. Crusoé logo se dá a tarefa de “civilizar” Sexta-Feira. No romance, tudo se passa como se Sexta-Feira não pertencesse a nenhuma cultura, nem integrasse universo algum de simbolização antes de se deparar com Crusoé. Sexta-Feira aparece no livro como o representante de uma natureza em estado bruto, que Crusoé moldará conforme seus próprios valores. Como se Crusoé representasse o polo da cultura e Sexta-Feira, o da natureza. Ocorre que, como informa o próprio romance, Sexta-Feira também pertencia a um agrupamento social do qual se desgarrou antes de se deparar com Crusoé. O encontro entre eles, portanto, equivale ao confronto entre duas culturas diversas e não entre a cultura, de um lado, e a natureza, de outro. Isso nos leva diretamente ao ponto que nos interessa examinar agora. Esse ponto é, primeiro, a diversidade das culturas. Mas é também nossa atitude em

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relação a esse mesmo fenômeno. Como lidamos com o fato de que outros agrupamentos humanos possam se pautar por valores tão diversos dos nossos? O romance de Defoe, por exemplo, revela que a diversidade cultural muitas vezes não foi admitida pelos integrantes de uma cultura, especialmente quando esta pretende ser a única civilização autêntica, verdadeira. Crusoé está tão preso a essa convicção que chega a crer que, sem seu auxílio, Sexta-Feira não desenvolve-

O saque de Roma pelos visigodos em

Joseph-Noël Sylvestre (1847-1926), óleo sb/ tela, 1890. Museu Paul Valéry, Sète. Foto: Jdsteakley

natureza e cultura

A diversidade das culturas

410 d.C. foi visto como um golpe no centro da civilização clássica.

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ria as capacidades de se comunicar e de adquirir conhecimento. A crer no que pensa Crusoé, Sexta-Feira seria incapaz de desenvolver de modo completamente adequado a linguagem, se o europeu não lhe ensinasse seu próprio idioma. Diversidade e afirmação O “etnocentrismo” é o tema de um texto publicado pelo antropólogo Clau-

de Lévi-Strauss pela primeira vez em 1952 e depois inserido em uma obra de referência nos estudos de antropologia. O texto original se intitula “Raça e história” e inicia advertindo-nos de que repudiar o que nos parece estranho é uma atitude muito antiga na história humana. Formas culturais diversas das nossas são classificadas como “selvagens”, “inadequadas”, “imorais”. Segundo Lévi-

Um filósofo-antropólogo no Brasil Joel Robine/AFP

Claude Lévi-Strauss (1908-2009), um dos maiores antropólogos do século XX, discorre sobre a atitude de uma cultura que quer se impor sobre as outras, chamando-a pelo nome de etnocentrismo – a convicção de que os “nossos” costumes correspondam ao centro irradiador e exclusivo de toda civilização. De fato, a tendência a considerar quem é diferente de nós como “selvagem”, “bárbaro” etc. é antiga e não se limita aos preconceitos que europeus manifestavam em relação a nativos de terras desconhecidas. Lévi-Strauss, nascido em Bruxelas, formou-se em direito e filosofia em Paris. Sua tese de doutoramento, As estruturas elemenuma extensa pesquisa, que se iniciou quando

intelectual francês do século XX. Em O pensa-

Lévi-Strauss aceitou participar da missão

mento selvagem (1962) Lévi-Strauss polemizou

francesa na Universidade de São Paulo (USP),

fortemente com Jean-Paul Sartre (1905-1980),

entre 1935 e 1939. Foi nesse período que

abrindo terreno para a difusão do estrutura-

Lévi-Strauss descobriu sua vocação de antro-

lismo na cultura francesa da década de 1960.

pólogo, como ele mesmo narra em Tristes

Leituras recomendadas:

trópicos (1955), obra na qual documenta sua

C. Lévi-Strauss e Didier Eribon, De perto

estadia entre nós. Lévi-Strauss travou contato

e de longe. Tradução: L. Mello e J. Leite. Rio

com os bororo e com os nambiquaras, em

de Janeiro: Nova Fronteira, 1990 (Trata-se

Mato Grosso, em uma experiência que foi

de uma longa entrevista concedida por Lévi-

decisiva para sua elaboração teórica.

-Strauss a D. Eribon, muito oportuna como

Em seu retorno à França, Lévi-Strauss se consagrou como autor de uma obra de referência internacional, além de ter sido um dos principais pensadores ligados ao estrutura-

introdução aos problemas e questões abordados pelo famoso antropólogo). C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem. Campinas: Papirus, 2005.

lismo. Foi muito próximo de Merleau-Ponty

C. Lévi-Strauss, Tristes trópicos. Tradução:

(1908-1961) e de Jacques Lacan (1901-1981),

Rosa F. D’Aguiar. São Paulo: Companhia das

entre outras personalidades do universo

Letras, 1996.

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natureza e cultura

tares do parentesco (1949), é o resultado de

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A filosofia e a antropologia Desenvolvimento individual por escrito A antropologia apresenta-nos estudos de culturas e modos de vida muito diversos do nosso. As relaçþes entre a antropologia e a filosofia, por isso, são inúmeras. Vårios estudos antropológicos possuem interesse filosófico. A história da antropologia estå cheia de estudos de casos muito interessantes, exatamente porque nos colocam diante de modos de vida pautados por håbitos e costumes radical-

-Strauss, esse tipo de reação exprime uma completa incompreensĂŁo em relação a modos de vida, de crença ou pensamento que nos sejam estranhos. O que chama a atenção ĂŠ o fato de que isso nĂŁo ĂŠ de hoje. Na Antiguidade, recorda-nos LĂŠvi-Strauss, tudo o que nĂŁo era grego era designado pejorativamente pelos gregos como “bĂĄrbaroâ€?. Do ponto de vista etimolĂłgico, “bĂĄrbaroâ€? provavelmente se refere ao canto dos pĂĄssaros – mas nĂŁo no sentido de enaltecer sua beleza. Antes, “bĂĄrbaroâ€? originariamente se

mente diferentes daqueles que nos habituamos a considerar “naturaisâ€?. Recorrendo Ă biblioteca e Ă internet, identifique dois exemplos de estudo antropolĂłgico. Em seguida, escolha um deles e desenvolva um texto de aproximadamente uma pĂĄgina, apresentando as caracterĂ­sticas principais da cultura que foi objeto da investigação antropolĂłgica (localização geogrĂĄfica, população, tipo de organização social, forma de relação com o meio, religiĂŁo, instituiçþes, etc.)

referia ao fato de que os pĂĄssaros emitem sons desarticulados, confusos, por oposição ao “valor significante da linguagem humanaâ€?. Como acrescenta LĂŠvi-Strauss,

Leitura recomendada Claude LĂŠvi-Strauss, “Raça e histĂłriaâ€?, in: Antropologia estrutural – Volume 2. Tradução: Beatriz Perrone-MoisĂŠs. SĂŁo Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 357-399.

natureza e cultura

OS SENTIDOS DA PALAVRA “BĂ RBAROâ€?

“BĂĄrbaroâ€? ĂŠ uma palavra de origem grega,

dos indivĂ­duos que nĂŁo pertencem a ela.

por meio da qual os gregos da Antiguidade

O termo “barbarismo� designa o uso deli-

designavam aqueles que nĂŁo eram gregos,

berado de palavras estrangeiras. Quando,

isto ĂŠ, os estrangeiros. Ao mesmo tempo, a

por exemplo, digo que vou pegar minha

palavra “barbĂĄrieâ€? costuma ser utilizada em

“bike�, isso caracteriza um barbarismo ou

oposição Ă â€œcivilizaçãoâ€?. Juntando as duas

estrangeirismo. Discute-se muito se a pro-

coisas, serĂ­amos conduzidos Ă conclusĂŁo de

liferação de barbarismos (isto Ê, de pala-

que o “estrangeiroâ€? ĂŠ o “nĂŁo-civilizadoâ€?.

vras estrangeiras) ĂŠ ou nĂŁo prejudicial Ă

Toda questão recai, como se vê, sobre a relação que uma cultura assume diante

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lĂ­ngua nacional. O que vocĂŞ pensa a respeito?

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“selvagemâ€? vai na mesma direção, pois evoca “selvaâ€?, referindo-se Ă vida animal, em contraste com a cultura dos humanos. Nos dois casos, conclui LĂŠvi-Strauss, ĂŠ recusada a diversidade cultural. Joga-se para fora do âmbito da cultura, empurra-se para o âmbito natural tudo aquilo que nĂŁo ĂŠ considerado “normalâ€?. Graças Ă s contribuiçþes da antropologia e da etnografia ao longo do sĂŠculo XX (muitas das quais devemos Ă obra de LĂŠvi-Strauss), as ciĂŞncias humanas tĂŞm se mostrado muito crĂ­ticas diante de mentalidades e comportamentos etnocĂŞntricos. Hoje em dia, a ideia de que povos ou simplesmente grupos humanos que se orientam por valores diferentes dos nossos sejam “primitivosâ€? ou “bĂĄrbarosâ€? pode atĂŠ vir Ă tona na retĂłrica de extremistas e xenĂłfobos, mas, de maneira geral, discursos dessa ordem jĂĄ nĂŁo sĂŁo respaldados, como foram outrora, por teorias ditas “cientĂ­ficasâ€?.

Barbaridades, bĂĄrbaros e barbarismos Desenvolvimento individual por escrito • Desenvolva um pequeno texto, de aproximadamente uma pĂĄgina, fornecendo exemplos de barbarismo idiomĂĄtico e expondo seu ponto de vista sobre esse assunto. NĂŁo perca de vista que, por trĂĄs dessa discussĂŁo, o que estĂĄ em jogo ĂŠ a relação entre culturas diversas.

O fato ĂŠ que uma questĂŁo tĂŁo complexa e instigante como a da diversidade das culturas sempre traz desafios para a reflexĂŁo filosĂłfica.

A ideia de “natureza humana�

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O tema dos direitos do homem ou direitos humanos surgiu na cena da polĂ­tica mundial ao longo do sĂŠculo XVIII, no movimento de ideias chamado “Iluminismoâ€?, “Esclarecimentoâ€? ou “Filosofia das Luzesâ€?. Foram pensadores iluministas que deram origem ao tipo de discurso polĂ­tico e Ă base filosĂłfico-jurĂ­dica para a Revolução Francesa, de 1789. Veja vocĂŞ mesmo o texto de apresentação e os dois primeiros artigos da Declaração dos direitos do homem, proclamada pela Assembleia nacional francesa, em 1789, no contexto da revolução que derrubou o Antigo Regime: “Os representantes do povo francĂŞs, constituĂ­dos como Assembleia nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem sĂŁo as Ăşnicas causas das desgraças pĂşblicas e da corrupção

natureza e cultura

Diferentes sociedades humanas instituem modos diversos de se relacionar com a natureza. Dizemos entĂŁo que pertencem a culturas diferentes. HĂĄ, de outro lado, valores considerados universais, como os direitos humanos, que nĂŁo estariam restritos a essa ou aquela cultura. Os direitos humanos supĂľem como vĂĄlida a premissa de que, sob certos aspectos, todos nĂłs – mulheres, homens, sul-americanos, asiĂĄticos, europeus, hindus, tupis, guaranis, protestantes, muçulmanos, catĂłlicos, umbandistas etc. – sejamos iguais ao menos sob um aspecto. A argumentação em prol dos direitos humanos afirma que, apesar de todas as diferenças culturais que pesem sobre os indivĂ­duos, somos todos igualmente sujeitos possuindo certos direitos inalienĂĄveis, que dizem respeito Ă condição humana indistintamente, isto ĂŠ, sem distinção de raça, sexo, cultura ou classe social.

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(Declaração dos direitos do homem e do cidadĂŁo, de 26 de agosto de 1789. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents. Paris: Larousse, 1989, pp. 75-76)

Podemos, com base no que foi dito, formar uma noção do que estå em jogo. Vamos considerar três pontos. Primeiramente, podemos dizer que a cultura Ê a expressão de uma afirmação do homem sobre a natureza. Mas hå inúmeros modos de fazê-lo, vale dizer: o ser humano se caracteriza pela diversidade de culturas. Mas como a existência de diversas culturas se articula com o

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M. L. Joseph, L’AssemblÊe lÊgislative. Museu Carnavalet, Paris

dos governos, decidiram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienĂĄveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente apresentada a todos os membros do corpo social, lhes recorde incessantemente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo instante comparados com o objetivo de toda instituição polĂ­tica, sejam a ele mais conformes; a fim de que as reclamaçþes dos cidadĂŁos, fundadas doravante sobre princĂ­pios simples e incontestĂĄveis, se direcionem sempre para a conservação da Constituição e da felicidade de todos. Em consequĂŞncia, a Assembleia nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspĂ­cios do Ser supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadĂŁo. Artigo 1Âş: Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direito. As distinçþes sociais sĂł podem se fundar sobre a utilidade comum. Art. 2Âş: O objetivo de toda associação polĂ­tica ĂŠ a conservação dos direitos naturais e imprescritĂ­veis [isto ĂŠ, que nĂŁo prescrevem, permanentemente vĂĄlidos] do homem. Esses direitos sĂŁo a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistĂŞncia Ă opressĂŁo.â€?

Sala do picadeiro, na qual se reuniu a Assembleia Constituinte francesa a partir de novembro de 1789.

conceito de humanidade, do qual depende a questĂŁo dos direitos humanos? VocĂŞ jĂĄ deve ter se dado conta do seguinte: a argumentação que defende a ideia dos direitos humanos supĂľe que a humanidade possua uma realidade em si, independente das diferenças entre as culturas. SupĂľe-se que hĂĄ uma “natureza humanaâ€? que atravessa todas as culturas, abrigando sob si os indivĂ­duos de todos os povos e naçþes da Terra. Segundo esse ponto de vista, embora diferentes em seus costumes e hĂĄbitos, sob um aspecto decisivo os seres humanos pertencem todos a uma mesma categoria, designada pelo termo abstrato “humanidadeâ€?. O resultado disso, podemos resumi-lo assim: em seu significado mais geral, a natureza se opĂľe Ă cultura; no entanto, como que em resposta Ă s diferenças entre os indivĂ­duos e Ă diversidade de culturas, postulou-se como vĂĄlido um outro significado para “naturezaâ€?, a saber, o de uma natureza humana, que abarca todos os seres humanos, independentemente da cultura a que pertencem, do credo que professam ou da condição social em que se encontram.

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Dirigindo nossa atenção para a histĂłria das ideias, constatamos que o postulado universalista na base da convicção de que a humanidade abarca todos os seres humanos ĂŠ quase tĂŁo antigo quanto as doutrinas que buscaram separar os indivĂ­duos entre “homensâ€? e “bĂĄrbarosâ€?. Se, por um lado, a civilização greco-romana destituĂ­a da plena condição de humanidade uma parte considerĂĄvel dos seres humanos (escravos, mulheres, estrangeiros, crianças), de outro lado, concepçþes ligadas a grandes religiĂľes, como o budismo, o cristianismo e o islamismo, por exemplo, jĂĄ professavam, bem antes dos tempos modernos, que todos os seres humanos se encontram sob uma mesma idĂŞntica condição. Essas duas tendĂŞncias opostas coexistiram de forma mais ou menos conflituosa. Desde seus primĂłrdios, por exemplo, o pensamento ligado ao cristianismo buscou definir como sua comunidade todas as pessoas que tivessem sido batizadas. Ao contrĂĄrio de certas concepçþes mais tradicionalistas do judaĂ­smo, que apregoam uma linhagem genealĂłgica para seus membros, todo e qualquer homem ou mulher que aceitasse os seus preceitos podia se tornar um membro da comunidade cristĂŁ. AliĂĄs, o termo “catĂłlicoâ€? vem do grego katholikĂłs, que quer dizer “geralâ€?, “universalâ€?, “que vale para todosâ€?. No entanto, durante a Idade MĂŠdia europeia, muitos judeus, embora tivessem suas vidas poupadas, foram destituĂ­dos dos direitos de que gozavam os cristĂŁos. Assim tambĂŠm, nas cruzadas dos sĂŠcu-

los XI a XIII, os Estados e a Igreja catĂłlica postularam a retomada de JerusalĂŠm das mĂŁos daqueles a quem chamavam de “infiĂŠisâ€?, dessa forma “demonizadosâ€? pelos europeus que os foram combater. Com a expansĂŁo marĂ­tima e o contato dos europeus com os povos amerĂ­ndios, a partir do sĂŠculo XVI, a questĂŁo foi recolocada. Diante das civilizaçþes prĂŠ-colombianas ou das naçþes indĂ­genas da AmĂŠrica e da Oceania, cuja organização, religiĂŁo e mentalidade eram tĂŁo diferentes das concepçþes dos colonizadores, as questĂľes em torno desse tema ganharam um novo impulso. Como reporta o antropĂłlogo Claude LĂŠvi-Strauss[+], as incertezas e perplexidades trazidas pelo contato de culturas tĂŁo diversas eram percebidas de um lado e de outro. No sĂŠculo XVI, por exemplo, os espanhĂłis formaram comissĂľes para determinar se os povos que habitavam as Antilhas tinham ou nĂŁo alma. Por sua vez, e na mesma ĂŠpoca, indĂ­genas imergiam brancos capturados por longo perĂ­odo, a fim de descobrir se seus corpos se putrefaziam ou nĂŁo. Era mesmo de se esperar que a ĂŠpoca dos “grandes descobrimentosâ€? instigasse muitos a examinar o significado e a extensĂŁo do conceito de humanidade. Mas talvez fosse menos previsĂ­vel outro desdobramento desse mesmo fenĂ´meno. Os “descobrimentosâ€? conduziram pensadores europeus a relativizarem e questionarem o conceito de “civilizaçãoâ€? forjado na prĂłpria Europa – realizando, desse modo, uma espĂŠcie de autocrĂ­tica.

Nos tempos que se seguiram aos grandes “descobrimentosâ€?, surge na Europa uma reflexĂŁo autocrĂ­tica que relativiza a noção de que os europeus fossem, afinal, tĂŁo “civilizadosâ€? como hĂĄ tanto era comum afirmar-se. Exemplo disso encontramos em um ensaio de Michel de Mon-

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taigne (1533-1592), que traz o sugestivo tĂ­tulo “Dos canibaisâ€?. HĂĄ uma curiosidade em torno deste ensaio. Montaigne discorre sobre os nativos trazidos do sul do Brasil para a França, numa expedição comandada por Nicolas D. de Villegagnon em 1557. O ensaĂ­sta

natureza e cultura

Montaigne e os canibais

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Montaigne teve oportunidade de conhecĂŞ-los e conversar com eles com a ajuda de um intĂŠrprete. O texto oferece uma excelente ocasiĂŁo para refletirmos sobre a diversidade de culturas. A base para o retrato traçado por Montaigne reside, como ele nos adverte, em relatos orais: “Tive comigo durante longo tempo um homem que permanecera dez ou doze anos nesse outro mundo que foi descoberto em nosso sĂŠculo, no lugar onde Villegagnon desembarcou, e a que deu o nome de França AntĂĄrtida.â€? (Montaigne, Ensaios. Tradução de Rosemary C. AbĂ­lio. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, p. 303)

“Mas, para retomar meu assunto, acho que nĂŁo hĂĄ nessa nação nada de bĂĄrbaro e de selvagem, pelo que me contaram, a nĂŁo ser porque cada qual chama de barbĂĄrie aquilo que nĂŁo ĂŠ de seu costume; como verdadeiramente parece que nĂŁo temos outro ponto de vista sobre a verdade e a razĂŁo a nĂŁo ser o exemplo e o modelo das opiniĂľes e usos do paĂ­s em que estamos. Nele sempre estĂĄ a religiĂŁo perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e cabal de todas as coisas. Eles sĂŁo selvagens, assim como chamamos de selvagens os frutos que a natureza, por si mesma e por sua marcha habitual, produziu; sendo que, em verdade, antes deverĂ­amos

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Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro

A principal conclusĂŁo que Montaige extrai do relato do viajante acerca dos costumes e hĂĄbitos dos nativos brasileiros pode ser considerada como uma crĂ­tica severa Ă atitude que hoje chamarĂ­amos de

“etnocĂŞntricaâ€?, isto ĂŠ, a afirmação de uma cultura como superior Ă s demais (o termo “etnocentrismoâ€? nĂŁo foi utilizado por Montaigne, mas por antropĂłlogos do sĂŠculo XX). Veja sĂł:

Victor Meirelles (1832-1903), A primeira missa (Ăłleo sb/ tela, 1861). A missa, que sim-

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boliza o encontro desigual de duas civilizaçþes, foi celebrada pelo padre Henrique de Coimbra em 26 de abril de 1500.

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taigne, Ensaios, op. cit., pp. 307-308)

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Representação de ritual tupinambå, de ThÊodore de Bry (1528-1598) a partir dos relatos do viajante Hans Staden (1525-1579).

cabal de todas as coisasâ€?. Em outras palavras, sempre acreditamos estar corretos quanto Ă religiĂŁo, Ă polĂ­tica e aos demais assuntos. E, por conta dessa convicção, qualificamos como selvagens os outros, isto ĂŠ, todos os que nĂŁo praticam nossos costumes. O Ăşltimo segmento do trecho citado dĂĄ uma orientação inovadora para a argumentação desenvolvida atĂŠ aqui. Releia o trecho que inicia por: “[...] sendo que, em verdade, antes deverĂ­amos chamar de selvagens [...]â€?. Nele, Montaigne expĂľe seu juĂ­zo, o qual promove uma verdadeira inversĂŁo da perspectiva usual, ao dizer que “selvagensâ€? deveriam chamar-se os frutos que, por serem modificados por nĂłs, sĂŁo desviados “da ordem comumâ€?. Dito de outro modo, o “selvagemâ€?, em seu sentido pejorativo, ĂŠ o que resulta da “arteâ€?, e nĂŁo o que ĂŠ natural. No desfecho de seu texto, Montaigne dirige uma crĂ­tica severa aos costumes dos seus semelhantes. A civilização europeia, da qual o prĂłprio autor faz parte, adapta a natureza “ao prazer de nosso paladar corrompidoâ€?. Proximidade e distância da natureza Como se vĂŞ, o problema da diversidade de culturas, que fora renovado no perĂ­odo das grandes descobertas, dĂĄ ocasiĂŁo, no ensaio de Montaigne, a uma autocrĂ­tica da civilização europeia. Essa

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Vamos analisar essa passagem. O trecho selecionado inicia questionando a visĂŁo, comum naquela ĂŠpoca, de que os nativos da AmĂŠrica seriam bĂĄrbaros, enquanto os europeus, civilizados. Montaigne, como ĂŠ fĂĄcil perceber, vai muito alĂŠm do relato do viajante que lhe serviu de fonte, pois interpreta, raciocina e tira conclusĂľes desse mesmo relato. Ele fornece uma explicação para o fato de os nativos amerĂ­ndios serem considerados selvagens. A chave que explica isso ĂŠ simples: “cada qual chama de barbĂĄrie aquilo que nĂŁo ĂŠ de seu costumeâ€?. Ou seja, ĂŠ designado e considerado “bĂĄrbaroâ€? todo aquele que nĂŁo se comporta como nĂłs. Procure agora atentar para como Montaigne desenvolve essa primeira conclusĂŁo. Note como ele acrescenta novos elementos a seu argumento, conferindo ao trecho aqui citado um alcance crĂ­tico radical. Ele afirma que nĂŁo dispomos de “outro ponto de vista sobre a verdade e a razĂŁoâ€? a nĂŁo ser o de nosso paĂ­s. Ora, isso equivale a dizer que tanto a verdade quanto a razĂŁo admitem mais de um ponto de vista, mais de uma abordagem. E que, portanto, o que ĂŠ verdadeiro e razoĂĄvel para fulano, que nasceu e foi educado em tal lugar, pode ser falso e absurdo para um estrangeiro de terras distantes. Tudo dependerĂĄ da perspectiva a partir da qual consideramos as coisas. E essa perspectiva ĂŠ variada, depende dos costumes e hĂĄbitos do lugar em que os indivĂ­duos se encontram. Em seguida, Montaigne recorre a uma ironia: no paĂ­s em que estamos, prossegue o texto, “sempre estĂĄ a religiĂŁo perfeita, a forma de governo perfeita, o uso perfeito e

Service Historique de la Marine, Vincennes

chamar de selvagens aqueles [frutos] que com nossa arte alteramos e desviamos da ordem comum. Naqueles outros estão vivas e vigorosas as verdadeiras e mais úteis e naturais virtudes e propriedades, as quais abastardamos nestes, e simplesmente as adaptamos ao prazer de nosso paladar corrompido.� (Mon-

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Museo delle Terme, Roma ŠFoto: The Bridgeman Art Library/Keystone

Alto relevo do sarcĂłfago de Ludovico, representando os romanos em luta com os bĂĄrbaros (AnĂ´nimo, mĂĄrmore, c. 250260 d.C.).

mesma civilização aparece no discurso de Montaigne como uma sofisticação inĂştil, que, sem que percebamos, nos afasta da “naturezaâ€?. É isto o que revela a continuação do texto de Montaigne, Ă mesma pĂĄgina jĂĄ citada anteriormente: “Portanto esses povos me parecem assim bĂĄrbaros por terem recebido bem pouca preparação do espĂ­rito humano e estarem ainda muito prĂłximos de sua naturalidade original. Ainda os governam as suas leis naturais, pouco abastardadas pelas nossas.â€? (Montaigne, Ensaios, op. cit., p. 308)

natureza e cultura

Repare na adjetivação: “bĂĄrbarosâ€? sĂŁo aqueles indivĂ­duos ou povos que permaneceram prĂłximos da natureza, que sĂŁo governados por “leis naturaisâ€? e que nĂŁo foram “abastardadasâ€? pelas leis da civilização. Mas o que devemos entender por essa proximidade com a natureza? É digno de nota que Montaigne descreva os nativos amerĂ­ndios recorrendo ao contraste com o modo de vida europeu. Trata-se de um povo, diz ele em seguida:

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“[...] no qual nĂŁo hĂĄ nenhuma espĂŠcie de comĂŠrcio; nenhum conhecimento das letras; nenhuma ciĂŞncia dos nĂşme-

ros; nenhum tĂ­tulo de magistrado nem de autoridade polĂ­tica; nenhum uso de servidĂŁo, de riqueza ou de pobreza; nem contratos; nem sucessĂľes; nem partilhas; nem ocupaçþes, exceto as ociosas; nem consideração de parentesco exceto o comum; nem vestimentas; nem agricultura; nem metal; nem uso de vinho ou de trigo. Mesmo as palavras que designam a mentira, a traição, a dissimulação, a avareza, a inveja, a maledicĂŞncia, o perdĂŁo sĂŁo inauditas.â€? (Montaigne, Ensaios, op. cit., p. 309)

Todo esse passo do texto enaltece os povos “primitivosâ€? recorrendo a uma comparação: eles sĂŁo elogiados por aquilo que nĂŁo sĂŁo. HĂĄ, sem dĂşvida, certo grau de idealização dos amerĂ­ndios por parte de Montaigne. Voltaremos a isso logo adiante. Note, agora, como o raciocĂ­nio de Montaigne revela todo seu alcance moral, quando ele diz que, na lĂ­ngua dos “primitivosâ€?, inexistem termos para a mentira, a traição, a avareza etc. Ora, presume-se que, se nĂŁo encontramos tais termos, ĂŠ porque as açþes ou sentimentos que eles designam tampouco existem nesse estado em que os seres humanos ainda vivem (como diz uma frase anterior) “muito prĂłximos de sua naturalidade originalâ€?.

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Natureza, barbĂĄrie e civilização Resta, contudo, esclarecer uma questĂŁo importante, a que nos referimos hĂĄ pouco, ao falarmos da idealização dos amerĂ­ndios no texto em debate. O que, afinal, devemos entender pelo significado que Montaigne atribui Ă â€œnaturezaâ€?, no ensaio analisado aqui? Uma espĂŠcie de jardim do Éden, de paraĂ­so terrestre – em suma, de uma idealização filosĂłfica e literĂĄria, sem

Leituras recomendadas A fim de aprofundar o exame desse tipo de consideração no sÊculo XVIII, você pode tomar duas obras muito significativas do Iluminismo francês: As cartas persas (1721) de Charles L. de Montesquieu (1689-1755) e o Discurso sobre as ciências e as artes (1750), de Jean-Jacques Rousseau[+] (1712-1778). Ambos os textos contam com mais de uma edição em português. Listamos abaixo duas ediçþes a título de sugestão, por trazerem excelentes traduçþes: Charles

L.

de

Montesquieu,

Cartas

persas. Tradução: Renato Janine Ribeiro. SĂŁo Paulo: Nova Alexandria, 2005. Jean-Jacques Rousseau, “Discurso sobre as ciĂŞncias e as artesâ€?, in: Rousseau – Coleção Os Pensadores. Tradução: Lourdes S. Machado. SĂŁo Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 321-428.

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qualquer correspondĂŞncia no mundo real? Tentaremos elucidar essa Ăşltima questĂŁo pela leitura de mais um trecho do ensaio sobre os canibais. Trata-se, a propĂłsito, do passo em que Montaigne comenta o rito de alimentar-se de seus semelhantes, tĂŁo assustador a nossos olhos. ApĂłs descrever como os amerĂ­ndios matam e, em seguida, assam e comem seus inimigos, Montaigne conclui o seguinte: “NĂŁo me aborrece que salientemos o horror barbaresco que hĂĄ em tal ação, mas sim que, julgando com acerto sobre as faltas deles [dos amerĂ­ndios], sejamos tĂŁo cegos para as nossas. Penso que hĂĄ mais barbĂĄrie em comer um homem vivo do que em comĂŞ-lo morto, em dilacerar por tormentos e por torturas um corpo ainda cheio de sensibilidade, assĂĄ-lo aos poucos, fazĂŞ-lo ser mordido e rasgado por cĂŁes e por porcos (como nĂŁo apenas lemos mas vimos de recente memĂłria, nĂŁo entre inimigos antigos mas entre vizinhos e concidadĂŁos, e, o que ĂŠ pior, sob pretexto de piedade e de religiĂŁo), do que assĂĄ-lo e comĂŞ-lo depois que ele morreu.â€? (Montaigne, Ensaios, op. cit., p. 313)

Conforme diz esse parĂĄgrafo, e como era de se esperar, Montaigne nĂŁo ĂŠ favorĂĄvel ao canibalismo. Ele, aliĂĄs, nĂŁo contesta que deploremos esse ou mesmo outros ritos e prĂĄticas contrĂĄrias a nossas convicçþes. O que ele questiona ĂŠ que sejamos complacentes com prĂĄticas e costumes que, embora nos sejam habituais, sĂŁo tĂŁo ou mais atrozes quanto aqueles que rejeitamos nos “bĂĄrbarosâ€? ou “primitivosâ€?. Admita por um momento a provocação e a ironia de Montaigne e responda vocĂŞ mesmo o que lhe parece pior: devorar um semelhante depois de tĂŞ-lo matado e assado ou, como era corrente na Europa dos tempos de Montaigne, torturĂĄ-lo ou queimĂĄ-lo vivo atĂŠ matĂĄ-lo?

natureza e cultura

NĂŁo ĂŠ difĂ­cil enxergar o que Montaigne quer apontar a seu leitor. Estar prĂłximo da naturalidade original asseguraria certa pureza dos costumes, que os supostos avanços do mundo civilizado fariam desaparecer. Desse modo, Montaigne demonstra que os males que afligem a sociedade da qual faz parte – a sociedade europeia que se afirmava como a civilização por excelĂŞncia – tĂŞm origem no distanciamento de seus costumes, prĂĄticas e instituiçþes em relação Ă â€œnaturezaâ€?.

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Š Daderot [CC0], via Wikimedia Commons

Arte... “primitivaâ€?? Figura antropozoomorfa Malagan, coleção Papua, Nova GuinĂŠ (Museu de Etnografia, Estocolmo,

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SuĂŠcia).

Em vista disso, o fato de que Montaigne enalteça o “naturalâ€? e o “primitivoâ€? adquire outro sentido. Seu intuito parece ser menos o de idealizar a “naturezaâ€? – como quem propusesse abandonar a civilização para retornar Ă quela natureza ideal – do que o de advertir seus semelhantes para a observação de que, na verdade, a “civilizaçãoâ€? ĂŠ atravessada por inĂşmeras barbĂĄries. Pois, como nos diz Montaigne no fim do ensaio, ĂŠ no mundo dito “civilizadoâ€? que prevalece a avareza, a inveja; ĂŠ nele que se pratica a tortura e se queimam vivos em praça pĂşblica, todos aqueles que forem considerados hereges, “bruxasâ€?, “anormaisâ€?. Ao recordar prĂĄticas tĂŁo atrozes e ao mesmo tempo tĂŁo familiares a seus semelhantes europeus, Montaigne sugere-lhes que ĂŠ preciso rever e alterar seus princĂ­pios. A referĂŞncia aos canibais do

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Novo Mundo tem por objetivo despertar a consciĂŞncia crĂ­tica nĂŁo dos amerĂ­ndios, mas dos prĂłprios europeus, contemporâneos de Montaigne. Afinal de contas, ele escreve e destina seus ensaios para leitores com os quais partilha lĂ­ngua, valores, prĂĄticas e princĂ­pios. Logo, a referĂŞncia a outras culturas como a dos povos amerĂ­ndios, com seus costumes e prĂĄticas tĂŁo “exĂłticosâ€? Ă primeira vista, tem por propĂłsito relativizar as “verdadesâ€? e “certezasâ€? de sua prĂłpria cultura. A filosofia se investe, desse modo, de alcance questionador e crĂ­tico. Montaigne propĂ´s sua reflexĂŁo filosĂłfica como um instrumento para auxiliar a compreender melhor a cultura a que pertencia. Tendo em mente o ensaio de Montaigne sobre os canibais, podemos concluir que a referĂŞncia ao Outro (no caso, a outra cultura, diversa da nossa) pode ser um instrumento valioso para medir, criticar e transformar nossas prĂłprias certezas e “verdadesâ€?. Nessa direção, ĂŠ interessante ressaltar o uso dialĂŠtico que Montaigne faz do par “natureza Ă— culturaâ€?. Afinal, como mostrou nossa anĂĄlise de texto, Montaigne recorre a um significado de “naturezaâ€? para criticar a cultura a que ele mesmo pertence. Desse modo, ele inaugura (ao menos nos tempos modernos) um tipo de crĂ­tica da cultura que terĂĄ desdobramentos significativos em pelo menos dois momentos do pensamento filosĂłfico moderno. O primeiro ĂŠ o Iluminismo do sĂŠculo XVIII. O segundo, na assim chamada “Escola de Frankfurtâ€?, do sĂŠculo XX, a linha de pensamento crĂ­tico em que se inscreve o livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer, A dialĂŠtica do esclarecimento, publicado originalmente em 1947 (tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985). O ensaio de Montaigne antecipa elementos decisivos da crĂ­tica ao “etnocentrismoâ€?, como, por exemplo, o do europeu Robinson CrusoĂŠ que busca “civilizarâ€? o nativo Sexta-Feira no romance de Daniel Defoe.

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No pensamento filosĂłfico moderno, o acreditaram, com razĂŁo, ser preciso par natureza/cultura ĂŠ utilizado como honrar certas condiçþes e associar a instrumento de crĂ­tica da civilização. O elas determinados respeitos. SĂŁo desensaĂ­sta Michel de Montaigne, no sĂŠculo se gĂŞnero os tĂ­tulos e a nobreza. Num XVI, faz referĂŞncia Ă diversidade de culpaĂ­s, honram-se os nobres; noutro, os turas a fim de chamar a plebeus; neste aqui, os atenção de seus pares euanciĂŁos; naquele ouropeus sobre os valores e tro, os jovens. E isso costumes de sua prĂłpria por quĂŞ? Porque assim cultura. Ele chega a afirquiseram os homens. “Se o senhor fosse mar que, por estarem A coisa era indiferente duque sem ser mais prĂłximos da natuantes da convenção: homem honesto, [...] reza, os “selvagensâ€? posdepois dela, ela se torsuem hĂĄbitos e costumes na justa, porque ĂŠ ineu nĂŁo deixaria de mais puros do que aquejusto transtornĂĄ-la. nutrir pelo senhor les da cultura ocidental. As grandezas natuo desprezo interior Montaigne nĂŁo foi o rais sĂŁo aquelas indeĂşnico a empregar o par pendentes da fantasia devido Ă sua baixeza conceitual natureza/culdos homens, porque de espĂ­rito.â€? tura com intuitos crĂ­ticos. consistem em qualiEncontramos um exemdades reais ou efetivas plo semelhante na obra da alma ou do corpo, de Blaise Pascal (1623que tornam este e 1662), filĂłsofo francĂŞs muito importante aquela mais dignos de estima, como as do sĂŠculo XVII. Vamos, abaixo, nos deter ciĂŞncias, a luz do espĂ­rito, a virtude, a sobre um discurso de Pascal, intitulado saĂşde, a força. “Segundo discurso aos poderososâ€?, publicaDevemos algo a uma e a outra desdo pela primeira vez em 1662. Nele, Pascal sas grandezas; mas, como elas sĂŁo de retoma o par natureza e cultura sob a dinatureza diferente, assim tambĂŠm ferença entre “grandezas naturaisâ€? e “granlhes devemos respeitos diferentes. dezas estabelecidasâ€?. Essa conceituação de Ă€s grandezas estabelecidas, nĂłs Pascal proporciona Ă oposição natureza/ devemos respeitos de estabelecicultura um alcance polĂ­tico. Eis o texto: mento, ou seja, determinadas cerimĂ´nias exteriores que, entretanto, â€œĂ‰ bom que saiba, senhor, o que lhe devem ser acompanhadas, de acordo ĂŠ devido, de modo que nĂŁo queira exicom a razĂŁo, de um reconhecimento gir dos homens aquilo que nĂŁo lhe ĂŠ de interior de que essa ordem ĂŠ justa, direito; pois isto ĂŠ uma evidente injussem que nos levem a conceber altiça: e no entanto ela ĂŠ muito comum guma qualidade real naqueles que nos homens da sua condição, porque honramos dessa maneira. Aos reis, ĂŠ eles ignoram sua prĂłpria natureza. preciso falar de joelhos; nos aposenHĂĄ no mundo dois tipos de grandetos dos prĂ­ncipes, ĂŠ preciso manter za: grandezas estabelecidas e grandezas a postura ereta. Rejeitar-lhes esses naturais. As grandezas estabelecidas deveres ĂŠ uma estupidez e uma baidependem da vontade dos homens, que xeza de espĂ­rito.

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“Grandezas naturais� e “grandezas estabelecidas�

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Juiz britânico no século XX. ©Foto: Hulton Archive/Getty Images

gundo Discurso sobre a condição dos poderosos”. Tradução nossa. Edição de referência: “Discours sur la condition des grands”, in: Oeuvres complètes [ed. J. Mesnard] vol. IV, 1992)

De acordo com Pascal, não acreditaríamos na justiça se os juízes

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não usassem paramentos.

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Contudo, quanto aos respeitos naturais que consistem na estima, nós não os devemos senão às grandezas naturais; ao contrário, devemos desprezo e aversão às qualidades opostas a essas grandezas naturais. Não é necessário que eu o estime por ser o senhor um duque; mas é necessário que eu o reverencie. Se o senhor é duque e homem honesto, eu demonstrarei o que é devido a uma e a outra dessas qualidades. Eu não negaria por nada, ao senhor, as cerimônias devidas à vossa condição de duque, nem a estima merecida pela de homem honesto. Mas se o senhor fosse duque sem ser homem honesto, ainda assim eu lhe renderia justiça; pois, ao lhe prestar os deveres exteriores que a ordem dos homens ligou à sua nascença, eu não deixaria de nutrir pelo senhor o desprezo interior devido à sua baixeza de espírito.” (Pascal, “Se-

Vamos analisar e discutir esse texto passo por passo. O intuito do “Segundo Discurso”, conforme se pode averiguar logo de início, é prevenir seu destinatário – o nobre ao qual Pascal se dirige – de não cometer uma injustiça. Qual? Aquela de exigir mais dos homens do que é justo fazê-lo. Pascal quer mostrar ao seu destinatário, um homem poderoso – e mostrar à nobreza de que ele faz parte – que o respeito devido a ele não é ilimitado. É muito comum, diz Pascal, os nobres exigirem mais dos homens a seu redor do que é justo fazê-lo. A razão disso é simples: a nobreza ignora que, do ponto de vista da “natureza”, somos todos iguais, independentemente da condição à qual pertencemos. A fim de demonstrar esse ponto, Pascal expõe a divisão entre dois tipos ou espécies de grandezas – as estabelecidas e as naturais. Não é difícil adivinhar, se prestarmos atenção à escolha dos termos utilizados por Pascal, o que está em questão aqui. De um lado, há “grandezas” artificiais, isto é, estabelecidas pelos humanos; de outro, há grandezas naturais, que, nessa medida, não dependem de nossos valores. Pascal nos diz que as “grandezas estabelecidas” não são naturais. Elas são, como fica claro pela continuação do trecho, arbitrárias e convencionais, pois “dependem da vontade dos homens”. Daí os exemplos: “Num país, honram-se os nobres; noutro, os plebeus; neste aqui, os anciãos; naquele outro, os jovens” e assim por diante. Há uma grande variedade de valores, porque há uma grande variedade de costumes. Mas nem por isso valores instituídos pelos homens – as assim chamadas “gran-

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dezas estabelecidas” – são menos reais. rece residir nisto: como compreender a A base sobre a qual se fundam as granrealidade de algo que não é natural – isto dezas estabelecidas não é natural, mas é, que possui uma realidade artificial? humana. “E isso por quê? Porque assim Os exemplos de grandeza natural talvez quiseram os homens.” possam nos ajudar aqui: “as ciências, a luz Entretanto, uma vez que os homens tedo espírito, a virtude, a saúde, a força”, eis nham estabelecido algo, “aquilo se torna o que, conforme Pascal, constitui as “qualijusto”. Esse ponto é importante. Ele nos dades reais ou efetivas da alma ou do correvela que Pascal retoma a questão da dipo”. Não é difícil imaginar o que Pascal quer versidade de culturas. Aquilo que é justo dizer com isso: qualidades como essas não em um país pode não ser justo em outro. seriam convencionadas, nem estabelecidas. Mas o reconhecimento de que as culElas exprimem diferenças existentes entre turas são diversas não os homens que não deconduz Pascal a concluir pendem dos costumes, que os valores de uma mas da natureza. cultura determinada não A diferenciação en“As ciências, a luz do devam ser respeitados, tre esses dois tipos de espírito, a virtude, pois, uma vez que uma grandeza é efetuada a saúde, a força”, lei ou costume tenha se por Pascal não para reestabelecido, passa a exiduzir a importância de são exemplos de gir nosso respeito e obeuma delas e enaltecer grandeza natural, diência: “torna-se justo”, a da outra. Seu objeque constituem as como diz o texto. tivo é apenas mostrar Logo em seguida, Pasque cada um desses “qualidades reais ou cal explica o que devemos tipos de grandeza reefetivas da alma ou entender por “grandezas quer uma atitude esdo corpo”. naturais”. Ele começa pecífica. Grandezas contrapondo as grandeestabelecidas merecem zas naturais àquelas que um tipo de considerase fundam na “fantasia ção; grandezas naturais, dos homens”. Isso nos leva a concluir que outro. Que tipo de respeito cada forma de as grandezas estabelecidas, que se contragrandeza pode esperar? põem às naturais, se fundam nas convenEm que consistem os “respeitos de esções, quer dizer, na imaginação ou fantatabelecimento”, devidos às “grandezas sia dos homens. Já as grandezas naturais estabelecidas”? Em “cerimônias exteriores” “consistem em qualidades reais ou efetique, embora não sejam falsas nem vazias, vas da alma ou do corpo”. não devem ser tomadas como o reconheNote bem: qualidades “reais ou efeticimento de qualquer qualidade real nos vas”... Se as grandezas naturais são reais, indivíduos assim homenageados. O exemnão deveríamos interpretar as grandeplo é muito claro e contundente: diante zas estabelecidas, que se opõem a elas, de alguém “superior”, como um rei ou um como grandezas irreais, superficiais, príncipe, temos de ser humildes e respeitoirrelevantes? Mas já observamos que as sos. Mas isso – Pascal insiste sobre o ponto grandezas estabelecidas também são, – não significa que esse rei ou esse príncipe a seu modo, “reais”; elas se fundam em seja naturalmente superior a nós. Afinal de convenções humanas, mas nem por isso contas, ser rei ou ser príncipe não é uma deixam de possuir realidade, de serem condição natural, mas estabelecida pelos efetivas. Toda a dificuldade do texto paseres humanos, com base em convenções

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François Quesnel, o Jovem, Blaise Pascal (óleo sb/ tela, c.1691). Château de Versailles, França

Blaise Pascal (1623-1662) afirmava que as grandezas naturais nada têm que ver com a fantasia dos homens. São naturais, porque não dependem dos costumes.

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que Pascal afirma serem arbitrárias. Logo, uma grandeza estabelecida merece apenas “respeitos de estabelecimento”. Seria tolo recusar tal respeito. Mas seria errado confundir essa grandeza convencionada com uma grandeza natural. Sendo assim, pode bem acontecer que nos deparemos com alguém que respeitemos devido a seu cargo ou função, mesmo sem o mínimo respeito quanto a suas qualidades naturais. Por exemplo, um duque tem de ser respeitado por ser duque; mas, se não for um homem honesto, não merecerá ser respeitado segundo o critério das grandezas naturais. No entanto, se porventura, além de duque, for um homem honesto, nesse caso deveremos honrar-lhe tanto suas grandezas estabelecidas quanto as naturais.

A política, uma realidade de convenção Há muitas lições a extrair dessas linhas de Pascal. Comecemos por uma noção que à primeira vista pode até parecer estranha, mas que é muito in-

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teressante e rica, isto é, a ideia de que há uma realidade naquilo que não é natural. Assinalamos a ocorrência dessa ideia no trecho que acabamos de discutir. Essa realidade corresponde às instituições e práticas culturais. Os costumes, ritos, instituições culturais são tão reais quanto os fatos e acontecimentos naturais. Mas são dois tipos de realidade ou, se se preferir: “natureza” e “cultura” correspondem a ordens de realidade diversas entre si. Um segundo ponto a ser observado é a relação do texto de Pascal com uma postura autocrítica de pensadores modernos, para quem a “civilização” traz consigo males inexistentes em sociedades mais próximas da natureza (ver, nesta Unidade, o módulo “Montaigne e os canibais”). Pascal confere um alcance mais político à diferença entre natureza e cultura. Ele se ocupa de assinalar que há uma diferença entre a moral e a política. A moral corresponde, grosso modo, às “grandezas naturais”, como a virtude – que devem ser estimadas e respeitadas por si mesmas. A política, por sua vez, corresponde às “grandezas estabelecidas”, que variam conforme os costumes locais. Embora Pascal afirme que devemos respeito à autoridade política, ligada às “grandezas estabelecidas”, ele também deixa claro que a autoridade política vale pelo que ela é – uma convenção que, de resto, admite muitas formas, variando de lugar para lugar. Já a autoridade moral, ligada às “grandezas naturais”, é válida por si mesma, independentemente da condição ocupada pelo indivíduo no corpo social. Essa conclusão é decisiva para compreendermos a novidade da posição de Pascal. Com base na utilização do par natureza/cultura, Pascal propõe uma diferenciação entre moral e política, de grande importância na reflexão moderna. As diferenças morais entre os indivíduos, na visão de Pascal, independem das diver-

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sas condiçþes sociais e políticas e culturais que cada um deles exerce. São diferenças que permanecem mesmo quando a cultura e a forma de organização política se modificam. AlÊm disso, Pascal afirma que não devemos confundir esses dois planos, o da moral e o da política. Pascal viveu em meados do sÊculo XVII. Não demoraria muito para que os iluministas, no sÊculo seguinte, aprofundassem as intuiçþes de Pascal, proclamando que o poder político só Ê

legítimo quando zela por direitos universais, isto Ê, direitos extensíveis a todos os cidadãos de um Estado, independentemente de sua condição social, de seu credo, gênero ou raça. Pascal havia separado o núcleo Êtico da humanidade das formas que sua organização social e política admitem. Os iluministas, especialmente os revolucionårios franceses do fim do sÊculo XVIII, tomaram essa distinção e proclamaram que a política só Ê legítima quando se subordina à moral.

Direitos humanos no concerto das naçþes

No mundo contemporâneo, assistimos a vĂĄrios tipos de conflito entre povos e culturas diferentes. É comum nos depararmos com a eclosĂŁo de guerras ou intervençþes militares em paĂ­ses distantes sob a alegação de que seus governantes violam os direitos humanos. A objeção a este tipo de conduta e de retĂłrica consiste muitas vezes em recordar que a doutrina dos direitos humanos pertence a uma cultura determinada, na qual surgiu e frutificou. Foi especialmente no sĂŠculo XVIII que pela primeira vez foram formuladas, na Europa e no Ocidente, as declaraçþes dos direitos humanos universais. DaĂ­ a questĂŁo: serĂĄ que esta doutrina nĂŁo ĂŠ particular a uma cultura? E, neste caso, ela nĂŁo seria vĂĄlida apenas em seu interior? Como, entĂŁo, pretender estender e aplicar os direitos humanos a todas as regiĂľes do globo terrestre? Dito de outra forma, a afirmação incondicional da doutrina dos

direitos humanos nĂŁo pode ameaçar a diversidade das culturas, a começar por aquelas nas quais esses direitos nĂŁo sĂŁo admitidos? • Com base nessas questĂľes e consultando a imprensa, desenvolva uma redação de aproximadamente duas pĂĄginas. Inicie descrevendo um episĂłdio que possua as caracterĂ­sticas mencionadas acima, quando, em nome da supressĂŁo dos direitos humanos, forças armadas de uma nação ou das Naçþes Unidas entram em conflito com um Estado ou regiĂŁo do planeta. (Alguns exemplos possĂ­veis: o conflito na ex-IugoslĂĄvia, na dĂŠcada de 1990; a ação humanitĂĄria da ONU na SomĂĄlia, em 1991; a guerra do Golfo, em 1991.) ApĂłs a descrição, redija um ou mais parĂĄgrafos expondo sua prĂłpria posição: vocĂŞ defende ou nĂŁo a universalidade irrestrita dos direitos humanos? Sendo positiva ou negativa a sua resposta, procure justificĂĄ-la com base em argumentos que possam convencer seus colegas.

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Desenvolvimento individual por escrito

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©Foto: Rodin. Abram Shterenberg/RIA Novosti/Keystone

©Foto:

Auguste Rodin, O pensador (1902)

unidade 2 Uma espécie que se diz racional...........

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Virtude e paixão ........ 53 A rejeição das paixões ......................

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A razão a serviço das paixões ...............

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História, razão e paixões ........

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“S

ó o homem, entre todos os animais, possui razão.” Esta frase foi escrita por Aristóteles (384-322 a.C.), filósofo que, como você já deve saber, viveu na Grécia Antiga. Vem dessa frase e outras semelhantes de Aristóteles a mais famosa e mais repetida definição do ser humano: um “animal racional”. Tal definição inclui o ser humano entre os animais, mas, ao mesmo tempo, o diferencia deles por causa de sua racionalidade.

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Uma espécie que se diz racional

(Carlos Reis, Diálogos com José Saramago. Lisboa: Editorial Caminho, 1998, p. 111)

O autor dessas reflexões é o escritor português José Saramago. Há muitas ideias nessa citação, mas somente uma nos

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José Saramago (1922-2010)

interessa discutir aqui. É a ideia de que o ser humano, embora seja dotado de razão, não se comporta inteiramente de acordo com sua razão, porque é cruel, é indiferente em relação ao outro ou despreza os outros seres humanos. Vamos começar a refletir sobre essa ideia: o ser humano é racional, mas se comporta de maneira irracional. É claro que podemos discutir se é sempre assim, se é com frequência ou se só algumas vezes, ou ainda se isso se passa com todos, com a maioria ou só com alguns dos seres humanos. Mas há uma noção que está na base de todas essas possibilidades: a de que a razão, sendo uma característica do ser humano, possa não ser efetiva nele, possa não ser exercida. Essa é uma questão interessante e já aponta para um dos significados mais fundamentais desse conceito de “razão”. Pois, se o ser humano é racional, mas se comporta de maneira irracional, então a racionalidade, essa característica de ser “racional”, não é uma característica como ser alto ou baixo, ter olhos castanhos ou verdes etc. Quer dizer, não é uma característica que é dada de uma vez por todas. O

razão e paixão

“Eu digo muitas vezes que o instinto serve melhor os animais do que a razão a nossa espécie. E o instinto serve melhor os animais porque é conservador, defende a vida. Se um animal come outro, come-o porque tem de comer, porque tem de viver; mas quando assistimos a cenas de lutas terríveis entre animais, o leão que persegue a gazela e que a morde e que a mata e que a devora, parece que o nosso coração sensível dirá ‘que coisa tão cruel’. Não: quem se comporta com crueldade é o homem, não é o animal, aquilo não é crueldade; o animal não tortura, é o homem que tortura. Então o que eu critico é o comportamento do ser humano, um ser dotado de razão, razão disciplinadora, organizadora, mantenedora da vida, que deveria sê-lo e que não o é; o que eu critico é a facilidade com que o ser humano se corrompe, com que se torna maligno. [...] E é essa indiferença em relação ao outro, essa espécie de desprezo do outro, que eu me pergunto se tem algum sentido numa situação ou no quadro de existência de uma espécie que se diz racional. Isso, de fato, não posso entender, é uma das minhas grandes angústias.”

Ulf Andersen | Getty Images

Se o ser humano destaca-se de outras espécies por ser racional, você já pode perceber que a razão é de enorme importância. Ela define o que é essencial do ser humano, enquanto, de modo geral, suas demais características podem ser encontradas também em outras espécies animais. Por outro lado, é bem provável que você também já tenha ouvido ponderações semelhantes a estas:

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razĂŁo e paixĂŁo

É possĂ­vel controlar as paixĂľes? Isso significa, entĂŁo, que toda vez que agimos de maneira mĂĄ deixamos de utilizar nossa razĂŁo? Essa pergunta pode ser substituĂ­da por outra: a racionalidade significa apenas isso: agir de maneira boa? E, de novo, por que alguĂŠm deixaria de agir de maneira boa? Vamos tentar responder essa Ăşltima questĂŁo a partir de um exemplo. Trata-se de uma tragĂŠdia, de uma peça de teatro cujo desenrolar da ação termina em atos capazes de despertar, no espectador, sentimentos de piedade e, ao mesmo tempo, terror. Na GrĂŠcia antiga, as tragĂŠdias eram bastante apreciadas pelo pĂşblico, a ponto de haver concursos para escolher a melhor peça. Entre as diversas peças trĂĄgicas conservadas com o passar dos sĂŠculos, Medeia, escrita por EurĂ­pedes (480-406 a.C.), tem a ver diretamente com nossas questĂľes. A peça Medeia pĂľe em cena a reação da personagem-tĂ­tulo quando vem a saber que seu marido, JasĂŁo, casou-se mais uma vez, tomando por esposa a princesa do reino de Corinto, onde eles residem. Medeia nĂŁo apenas envenena mortalmen-

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Museu de HistĂłria da Arte, Viena

ser humano pode se comportar de maneira racional ou irracional. Isso significa que a racionalidade ĂŠ no ser humano uma faculdade, isto ĂŠ, uma capacidade, e como toda capacidade, ela pode ser exercida ou nĂŁo, como alguĂŠm que ĂŠ capaz de fazer uma coisa, mas, por diversos motivos, nĂŁo a faz. E o que caracterizaria essa capacidade chamada “razĂŁoâ€?? O que poderia impedir que o comportamento humano fosse racional? Para Saramago, o comportamento humano nĂŁo ĂŠ racional porque o ser humano comete açþes cruĂŠis, como a tortura. Essa ĂŠ uma maneira muito frequente de entender a irracionalidade. A irracionalidade se encontraria em atos considerados maus. Se for assim, podemos entender que a racionalidade se encontra em atos considerados bons, como ajudar quem precisa de ajuda, ser justo com os outros, respeitar os outros etc. Andrea Mantegna (1431-1506), SĂŁo SebastiĂŁo (c. 1459. TĂŞmpera sb/ painel). O martĂ­rio dos santos ĂŠ um caso evidente da “paixĂŁoâ€? no sentido do padecimento.

te a nova esposa de JasĂŁo, como tambĂŠm mata os prĂłprios filhos, frutos da uniĂŁo que teve com ele. O plano de Medeia ĂŠ castigar JasĂŁo ao mĂĄximo e depois fugir para outras terras. O trecho a seguir ĂŠ a cena em que Medeia, abraçada aos filhos, cogita sua decisĂŁo de matĂĄ-los: “Ai de mim! Ai de mim! Por que voltais os olhos tĂŁo expressivamente para mim, meus filhos? Por que estais sorrindo para mim agora com este derradeiro olhar? Ai! Que farei? Sinto faltar-me o ânimo, mulheres, vendo a face radiante deles... NĂŁo! NĂŁo posso! Adeus, meus desĂ­gnios de hĂĄ pouco! Levarei meus filhos para fora do paĂ­s comigo. SerĂĄ que apenas para amargurar o pai vou desgraçå-los, duplicando a minha dor? Isso nĂŁo vou fazer! Adeus, meus planos... NĂŁo! Mas que sentimentos

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(Eurípedes, Medeia. Trad. Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2001, pp. 62-64)

Medeia se atormenta por causa do conflito entre sentimentos que, nessas circunstâncias, estão em oposição: o amor materno e o desejo de vingança. Para castigar Jasão, ela quer matar os próprios filhos (que são também filhos dele, lembre-se). Porém, tal castigo também será terrível para ela mesma. Por isso hesita em executar seu plano. Ora Medeia cogita levá-los consigo, mas isso significaria deixar de castigar ao

Paixão Em sua origem, a palavra “paixão” designava um estado de passividade, o estado de alguém passivo, que apenas sofre uma ação cometida por outrem ou por alguma coisa.

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Museu Hermitage, São Petersburgo

J.-A. Watteau, Uma proposta constrangedora (1715-16). O quadro, em estilo rococó, retrata uma cena amorosa típica do início do século XVIII.

máximo Jasão, em seu amor de pai. Ora Medeia cogita deixá-los naquela terra, mas isso significaria expô-los à vingança do rei, cuja filha ela envenenou. Porém, como mostra a última parte do trecho citado, Medeia decide matá-los, a fim de castigar seu marido. Ela sabe que cometerá um crime hediondo, mas expressa que a paixão é mais forte que suas reflexões. Ela se refere à paixão do ódio e da vingança. “Paixão do ódio”? É mais comum ouvirmos ou lermos essa palavra “paixão” relacionada ao sentimento de amor intenso entre duas pessoas, quando elas têm um grande prazer de estar juntas e são capazes de tudo para ficar juntas. É provável, no entanto, que você já tenha ouvido falar também da “Paixão de Cristo”, que designa os sofrimentos pelos quais Jesus passou até ser crucificado. A paixão é, nesse caso, sinônimo de sofrimento, dor. Amor intenso de um lado, sofrimento intenso de outro. Como uma mesma palavra pode significar coisas tão díspares? A explicação disso se encontra na origem da palavra “paixão”, que designava um estado de passividade, o estado de alguém passivo, que apenas sofre uma ação cometida por outrem ou por alguma coisa. Nesse sentido, paixão se opõe a atividade.

razão e paixão

são estes? Vou tornar-me alvo de escárnio, deixando meus inimigos impunes? Não! Tenho de ousar! A covardia abre-me a alma a pensamentos vacilantes. Ide para dentro de casa, filhos meus! Quem não quiser presenciar o sacrifício, mova-se! As minhas mãos terão bastante força! Ai! Ai! Nunca, meu coração! Não faças isso! Deves deixá-los, infeliz! Poupa as crianças! Mesmo distantes serão a tua alegria. Não, pelos deuses da vingança nos infernos! Jamais dirão de mim que eu entreguei meus filhos à sanha de inimigos! Seja como for, perecerão! Ora, se a morte é inevitável, eu mesma, que lhes dei a vida, os matarei! [...] Faltam-me forças para contemplar meus filhos. Sucumbo à minha desventura. Sim, lamento o crime que vou praticar, porém, maior do que minha vontade é o poder do ódio, causa de enormes males para nós, mortais.”

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Medeia não diz que uma de suas paixões é mais forte do que a outra: a paixão da vingança e a paixão do amor materno. Mas sim que a paixão da vingança é mais forte que suas reflexões, mais forte do que aquilo que ela delibera racionalmente como o mais correto a fazer. O conflito entre razão e paixão se dá, no caso de Medeia, no momento da passagem da paixão para a ação, quando resultará da paixão um determinado ato – manter em vida os filhos ou não. Porém o conflito já começa no embate entre sentimentos opostos. Aqui, a razão não exclui os sentimentos, ela se apresenta como uma determinada maneira de lidar com os sentimentos, escolhendo aqueles cujas ações correspondentes são aceitáveis. Mas isso significa justamente buscar o controle sobre a paixão da vingança, que é mais imperiosa, no caso de Medeia, que o sentimento do amor materno. O conflito de Medeia, o conflito entre paixão e razão explica por que muitas vezes o ser humano deixa de exercitar ou seguir sua razão. Ele deixa de fazer o que é racionalmente correto e aceitável, e a paixão leva a melhor. A própria Medeia sabe que seu ato é irracional, que vai contra o que ela mesma considera certo fa-

razão e paixão

Warner Bros/Everett Collection/Keystone

A “Paixão de Cristo” expressa justamente essa passividade de Jesus, que teve de suportar sem reação sofrimentos horríveis, culminando em sua crucificação. Os sentimentos e as emoções não podem ser escolhidos pelo ser humano a seu bel-prazer. Não podemos simplesmente escolher sentir medo ou coragem, alegria ou tristeza. Por isso, os sentimentos e emoções foram e são vistos como fenômenos psicológicos diante dos quais a alma humana seria passiva. Daí todos os sentimentos e emoções poderem ser chamados de paixões. Com maior frequência, porém, o termo designa aqueles sentimentos e emoções que se apresentam de forma incontrolável, nos dominam por inteiro ou que temos dificuldade em refrear. Por isso é comum dizer que a ira é uma paixão, mas também o medo, o ciúme, o desejo, em geral todos os sentimentos que, por sua intensidade, afetam de algum modo o exercício da razão. Conforme esse raciocínio, se a paixão tende a nos dominar, a razão pode, por outro lado, ser mobilizada para controlar a paixão. É o caso, quando ocorre na alma um conflito entre paixão e razão, um conflito entre o que se deseja e o que se considera certo fazer. É o caso de Medeia.

Michael Douglas em Um dia de fúria (Direção de J. Schumacker. EUA: 1993). O filme narra

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a história de um desempregado que perde a cabeça e dá vazão à sua raiva diante de todos que cruzam seu caminho.

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“Art. 65 - São circunstâncias que sempre atenuam a pena: [...] III – ter o agente: [...] c) cometido o crime sob coação a que podia resistir, ou em cumprimento

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Infelizmente, a violência contra a mulher permanece sendo um fenômeno recorrente em nossa sociedade. No entanto, tornou-se bem menos comum nos depararmos com decisões judiciais que eximem de responsabilidade os indivíduos que as praticam sob a Cartaz português de alegação de que agicampanha contra a ram em “defesa da violência da mulher. honra”. Houve uma Você nota algo estramudança tanto nos nho nessa imagem? costumes, quanto na interpretação dos fatos por parte do poder judiciário, levando à convicção de que o bem estar, a segurança e a vida são direitos que estão muito acima da “defesa da honra”. A Lei Maria da Penha, aprovada pelo Congresso Nacional em 2006, exprime essas mudanças. Na Unidade Espírito e letra, módulo “Mudar a ‘letra’ para manter o ‘espírito’”, discute-se um exemplo de nova interpretação jurídica em face de mudanças nos costumes: o estatuto da união estável.

de ordem de autoridade superior, ou sob a influência de violenta emoção, provocada por ato injusto da vítima.” (Código Penal Brasileiro <http://www. planalto.gov.br/ccivil_03/DecretoLei/Del2848.htm>, acesso em 18 de feveiro de 2016. A redação do item 3 do Artigo 65 é dada pela Lei 7.209 de 11/7/1984. Grifo nosso)

Por muito tempo, esse artigo do Código Penal foi utilizado nos tribunais para atenuar a pena para os chamados “crimes passionais”, crimes que a defesa dos réus

razão e paixão

“Perder a razão” Outra maneira de pensar a relação entre paixão e razão é supor que, dada uma paixão extrema, a razão simplesmente se apaga, como nas expressões “perder a cabeça” ou “perder a razão”. Mas, se a razão se apaga, como se tivesse sido “desligada”, como é possível responsabilizar alguém por seus atos “apaixonados”, os que são cometidos por paixão? Somos responsáveis pela paixão, mesmo quando não há razão? O código penal brasileiro, assim como o de muitos outros países, considera que a paixão não exime de culpa o criminoso. Se um crime foi cometido por causa de uma paixão, ainda assim quem o cometeu deve responder por ele. “Responder por seu crime”, do ponto de vista da lei, significa receber uma pena, que varia conforme a gravidade do ato cometido. Por outro lado, o mesmo Código Penal Brasileiro diz o seguinte:

A LEI E OS COSTUMES Associação Portuguesa de Apoio à Vítima / JWT

zer. Ela sabe que o que está em jogo é um crime terrível para os valores humanos, o assassinato dos próprios filhos. Medeia está consciente de que cometerá um crime. A paixão não a impede de perceber o significado de seu ato, e mesmo assim ela o executa. Nesse aspecto, não se pode dizer que a paixão a fez “perder a razão”, como quando se diz que muita raiva nos faz “perder a cabeça”. Assim, a relação entre paixão e razão, na tragédia de Eurípedes, não é uma relação de exclusão total, do tipo: onde há uma, não há outra. A razão simplesmente cede à paixão por uma questão de força. Ninguém pode dizer que Medeia não estava consciente do significado de seus atos. No entanto, sua racionalidade não se exerceu por conta da potência da paixão.

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razão e paixão

©Foto: Hulton Archive/Corbis/Latinstock

alegava terem sido cometidos sob fortes paixões. Isso ocorreu, em especial, em casos nos quais homens, alegando terem sido feridos em sua “honra”, cometeram crimes contra suas esposas ou companheiras. Graças à mobilização da sociedade civil, sobretudo do movimento feminista, mostrou-se que esse tipo de interpretação dos fatos acobertava uma violência injustificável contra os direitos da mulher. Entre os juristas, ainda há muita discussão sobre o que significa exatamente “violenta emoção” e “ato injusto da vítima”. Interessa-nos, sobretudo, o fato de que a “violenta emoção” é um elemento que atenua a pena, reduzindo-a. A explicação para isso é que o agente não estaria em condições de medir seus atos, não estaria em condições de exercer sua racionalidade e, por isso, não estaria inteiramente consciente de seus atos. Nesse caso – ao contrário de Medeia, em que a razão cede à paixão –, a razão como que teria sido eliminada diante da paixão, da emoção violenta. Medeia, a mulher traída, provavelmente não aceitaria tal ar-

O escritor e cineasta Pier Paolo Pasolini (19221975) foi encontrado morto numa praia perto de Roma. A imprensa e a sociedade italianas viveram um intenso debate: seria um crime passional? Anos

depois, considerou-se que essa hipótese visava encobrir um crime com motivações políticas.

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gumento, pois, mesmo tomada por uma paixão violenta, foi bem capaz de discernir a qualidade de seu ato. São duas maneiras diferentes de ver a relação conflituosa entre a paixão e a razão. No decorrer desta Unidade, você poderá observar que essas maneiras de entender a relação entre a paixão e a razão não são nem um pouco estranhas à filosofia. Ao contrário, elas são tratadas de maneira qualificada pelos filósofos. Para alguns, sofrer a influência de paixões é algo natural do ser humano, e isso implica uma ação da razão sobre as paixões, para que fiquem sob controle. Para outros filósofos, ao contrário, as paixões são como elementos estranhos presentes na alma humana e que, portanto, devem ser enfraquecidas ao máximo ou mesmo extirpadas dela. Nesse caso, as paixões são vistas quase como uma doença. É sobre essa última concepção que se apoiam muitos advogados no processo de julgamento de atos passionais violentos por parte de seus clientes, pleiteando a redução das penas. Pois – argumentam eles – se a paixão é quase uma doença, como alguém poderia ser inteiramente responsabilizado pelos atos provocados por ela? Paixão, virtude e loucura Mesmo admitindo-se que a paixão seja uma espécie de patologia, de loucura – apenas isso bastaria para condená-la completamente? Essa pergunta tem endereço certo. Você provavelmente já ouviu falar de Dom Quixote, o personagem criado por Miguel de Cervantes (1547-1616). Quixote é apaixonado por livros de cavalaria a tal ponto, que passa a interpretar o mundo em que vive como se fosse um romance de cavalaria. Assim, sua paixão tem por consequência a perda do juízo. Contudo, a despeito de sua loucura, Quixote revela possuir um excelente caráter. Você dirá: sim, um louco pode ser um ótimo sujeito. Mas a coisa é mais complicada. Lendo

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triste figura”, e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, são célebres criações de Miguel de Cervantes (1547-1616).

o romance de Cervantes, logo nos damos conta de que, a rigor, não há como separar a nobreza de caráter de Quixote de sua loucura, de sua paixão pelos ideais de cavalaria e, por fim, pelo seu desejo de agir como se fosse um cavaleiro. Também no caso de Medeia, embora de modo indireto, a paixão se vincula ao prazer, o prazer de se vingar de Jasão. Antes disso, sua paixão de ódio é marcada pelo desprazer, pelo sofrimento de se ver traída. Dom Quixote, por sua vez, apesar de passar por dezenas de sofrimentos físicos, vive em constante prazer. Tal é seu prazer, que a imaginação sempre é guiada para ele: tudo se torna ocasião para ser um nobre cavaleiro, todos os motivos da realidade, tal como ela é, são transfigurados para que o ideal persista. Nesse sentido, o mundo ideal de Dom Quixote também tem uma lógica interna, uma lógica da ilusão. No entanto, independentemente do ponto a que chega Dom Quixote, sua paixão se vincula ao prazer como qualquer paixão. Pelo menos, essa é uma caracte-

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razão e paixão

Estátua Don Quixote Plaza. Plaza de Espana, Madrid | James Mc Quarrie/123RF

Dom Quixote, chamado “o cavaleiro da

rística muito frequentemente associada ao conceito de paixão. Para muitos filósofos, não é possível pensar a paixão sem os sentimentos de prazer e desprazer. Talvez seja este o motivo por que a razão, como capacidade de conhecer a verdade e de agir de maneira boa, tem dificuldades diante das paixões. Associadas com sofrimento ou com prazer, elas se impõem a toda força, pois a dor perturba e o prazer produz bem-estar. Vamos agora fixar alguns resultados dessas considerações sobre razão e paixão. Vimos que a razão é há muito tempo classificada como uma das características que definem o ser humano. Porém, dado que o ser humano pode agir e pensar de maneira irracional, essa característica significa, antes de tudo, uma certa faculdade, uma certa capacidade de agir e pensar, que nem sempre está em completa atividade. Enquanto capacidade, a razão às vezes não se exerce. Vimos então que as paixões humanas podem ser um dos principais motivos para isso, já que suas exigências podem não estar de acordo com a racionalidade e que são suficientemente fortes para superar a razão. As paixões podem afetar a razão em pelo menos dois sentidos: impedindo que ela se exerça na escolha da ação mais correta, considerada boa, ou impedindo que ela exerça sua capacidade de conhecer as coisas como são, fazendo com que o ser humano crie ilusões a respeito do mundo e de si mesmo. Dessa maneira, a razão agrupa faculdades que podem se exercitar de maneira divergente: é possível que um indivíduo aja de maneira correta e seja, no entanto, incapaz de conhecer a realidade; como, inversamente, é possível que ele conheça a realidade ao redor de si mesmo, mas aja de maneira incorreta. Por fim, vimos que a paixão está ligada a sentimentos de prazer e desprazer, e talvez tire daí sua força sobre a razão.

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Medeia versus Antígona Debate em sala de aula e apresentação de seminário

razão e paixão

Formem uma equipe contendo de três a cinco membros. Discutam em aula a relação entre razão e paixão, com atenção especial ao caso de Medeia, na tragédia de Eurípedes. Para tornar essa discussão mais qualificada, comparem a conduta de Medeia com a conduta da protagonista de outra obra muito significativa do teatro grego: Antígona, de Sófocles (496-406 a.C.). É uma tragédia que traz a história de outra mulher, cujo nome dá título também à peça. Antígona se recusa a acatar a ordem do rei de Tebas, seu tio Creonte, que não fosse enterrado o corpo de Polinices, irmão dela. Morto em combate, Polinices havia lutado ao lado dos inimigos de Tebas. Por isso, quem desacatasse a ordem, cuidando dos funerais de Polinices, seria punido com a morte. Era uma forma horrível de desonra, pelos costumes da época, não ser sepultado e acabar devorado pelos abutres. Antígona desobedece à ordem de Creonte e é descoberta. O trecho a seguir apresenta o encontro de Antígona e Creonte, depois de ela ser capturada por um dos guardas do reino.

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“Creonte: E você aí, deixando pender a cabeça para o chão, diga: não nega ter cometido isso? Antígona: Decerto não desminto e o afirmo. Creonte: [...] Você sabia do decreto que proibia fazê-lo? Antígona: Sabia. Como não havia de saber? Estava claro para todos.

Creonte: E ainda assim teve a audácia de violar as leis? Antígona: Por mim, ora, com certeza não foi Zeus quem determinou isso – nem foi a Justiça, próxima dos deuses subterrâneos, quem ordenou essas leis para os homens. Não vejo como o decreto de um mortal como você teria força para escapar às leis imutáveis, não escritas dos deuses. Ora, não é de hoje nem de ontem que elas vigoram, mas sempre, e ninguém sabe quando surgiram. Decerto eu é que não seria condenada perante os deuses, por temer as intenções de algum mortal. Bem sabia que eu havia de morrer, com ou sem o seu decreto. Mas se vou tombar antes da minha hora, disso só tiro proveito. Pois, para alguém como eu que vive cercada de tantos males, como a morte não haveria de ser um benefício? E daí, dor nenhuma. De outro lado, se eu tivesse deixado jazer insepulto o corpo que proveio de minha mãe, isso é que seria doloroso. A você, eu devo parecer uma louca. Mais louco, porém, é quem louca me considera.” (Sófocles, Antígona, versos 441-470. Tradução nossa. Edição de referência: Antigone. Mark Griffith [ed.]. Cambridge: Cambridge University Press, 1999)

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A obra teatral de Eurípedes ganhou inúmeras adaptações e ainda hoje é encenada nos palcos do mundo. (Medeia. Companhia NBP Produções, 13/05/2010. Teatro Guaíra, Curitiba, PR).

• Conduzam a discussão em aula a partir de duas questões: 1) Vocês diriam que a conduta de Antígona é mais razoável do que a de Medeia? Se sim, com base no que defenderiam essa afirmação? Definam o que seria “conduta razoável”: aquela apoiada em argumentos? Se sim, identifiquem, no texto de Sófocles, os elementos que atestam que Antígona justifica seus atos. 2) Vocês classificariam a conduta de Medeia como sendo completamente irracional? Caso tomem esta direção, vocês terão de solucionar um problema. Medeia planeja sua vingança. Isso significa que ela calcula seus atos. E calcular é sinônimo de raciocinar, de utilizar a razão. Logo, Medeia parece fazer um uso da razão, ainda que se trate (por mais estranho que isso possa parecer) de um uso irracional da razão! Identifiquem, na literatura ou na vida real, outros exemplos de condutas como essa. Então procurem caracterizar o que esses casos possuem em comum, em contraste com o caso de Antígona. • Após o debate em equipe, exponham os resultados de forma sucinta aos demais colegas, em forma de seminário.

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É muito comum que uma ação boa, um comportamento bom seja chamado de “racional”, e que o inverso disso, uma ação má, um comportamento mau seja chamado de “irracional”. Esses valores, “bom” e “mau”, e seus comportamentos correspondentes, são um assunto importante da filosofia moral. Um comportamento bom, digno de ser louvado, é tradicionalmente chamado de “virtude”, e um comportamento sistematicamente mau é chamado, por sua vez, de “vício”. Assim, é muito comum dizer que uma pessoa virtuosa é uma pessoa racional, pois sua razão a faria agir e se comportar de maneira boa. A seguir, você lerá a passagem do livro Ética a Nicômaco, de Aristóteles[+] (384322 a.C.), em que se discute o que vem a ser, para esse filósofo, a virtude, e qual seria a relação desta com as paixões na alma humana. Antes de iniciar a leitura, saiba que “alma”, no vocabulário de Aristóteles, corresponde ao termo grego “psykhé” e significa algo muito mais próximo do que compreendemos por “mente” do que por “espírito”. “Consideremos então o que é a virtude. Uma vez que na alma se situam três tipos de coisas – paixões, faculdades e disposições de caráter – a virtude deve pertencer a uma delas. Entendo como sendo paixões os sentimentos que habitualmente são acompanhados de prazer ou dor: os apetites, a cólera, o medo, a audácia, a inveja, a alegria, a amizade, o ódio, o desejo, a rivalidade, a compaixão. Considero como sendo faculdades aquilo graças a que se diz que somos capazes de sentir tudo isso, a capacidade de nos irarmos, de magoar-nos ou compadecer-nos. E considero disposições de caráter as coisas graças às quais a atitude

razão e paixão

Gilson Camargo

Virtude e paixão

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razão e paixão

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que assumimos diante das paixões é boa ou má. Por exemplo, diante da cólera, nossa atitude é má, se a sentimos de forma violenta ou excessivamente fraca. Boa, porém, se a sentimos de forma moderada. E assim também no que concerne às demais paixões. Nem as virtudes, nem os vícios são paixões, já que ninguém afirma que somos bons ou maus por causa de nossas paixões, mas por causa de virtudes ou vícios. Ninguém é louvado ou censurado devido às paixões que possui [...], mas pelas suas virtudes e vícios recebe louvores e censuras efetivas. Em contrapartida, não está em nossa escolha sentir cólera ou medo. Já as virtudes são tipos de escolha, ou envolvem escolha. Acrescente-se que com relação às paixões se diz que somos movidos, já com relação às virtudes e aos vícios não se diz que somos movidos, mas que possuímos tal ou tal disposição. Por isso também, virtudes não são faculdades, já que ninguém é considerado bom ou mau, nem louvado ou censurado apenas por ser capaz de sentir paixões. Dispomos das facul-

Museu Nacional Arqueológico, Atenas. Album/Dea Picture Library/Latinstock

Estudiosos reconhecem na formação (paideía) o valor de base dos gregos antigos.

dades que temos por natureza. Entretanto, ninguém se torna bom ou mau por natureza [...]. Logo, uma vez que as virtudes não são nem paixões, nem faculdades, só resta uma possibilidade: que sejam disposições de caráter” (Aristóteles, Ética a Nicômaco. Livro II, cap. 5 [1105b]. Tradução nossa)

As paixões nos seres humanos Vejamos em que esse trecho de Ética a Nicômaco nos esclarece sobre a posição de Aristóteles a respeito do par “razão” e “paixão”. Note que Aristóteles busca dar uma primeira definição do que é virtude, aquilo que torna um ser humano bom e digno de ser elogiado em algum aspecto. Como você pode perceber, ele conclui que a virtude, assim como seu oposto, o vício, é antes de tudo uma disposição de caráter. Para chegar a essa conclusão, ele faz uma enumeração das coisas que se apresentam no interior da alma, e em seguida busca eliminar aquelas que não podem ser chamadas de virtude. As três coisas que se encontram na alma são as paixões, as faculdades, ou ca-

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pacidades de sentir as paixões, e as disdades, das capacidades de sentir paixões. posições de caráter. Aristóteles elimina Essa diferença parece um pouco estranha as paixões e as faculdades, restando apeà primeira vista. Por que sentir paixões é nas as disposições de caráter. Vejamos, diferente de ser capaz de sentir paixões? agora, as razões por que ele elimina as Certamente, não sentiríamos ódio ou paixões e as faculdades. alegria se não houvesse algo em nós caPrimeiramente, em relação às paixões, paz de os sentir. Porém, o fato de termos elas são definidas, de modo geral, como tal capacidade não significa que devemos sentimentos acompanhados de prazer e sentir sempre essa ou aquela paixão. dor. A alegria é um sentimento que nos É possível imaginar uma pessoa dá prazer, o medo, por sua vez, geralque nunca tenha sentido ódio ou inmente é sentido com sofrimento. Quem veja, mas é muito difícil imaginar uma sente medo sente pessoa que não seja também a apreensão capaz de sentir ódio de que poderá ser maou inveja. Entre a cachucado ou destruído. pacidade de sentir e Para Aristóteles, A dor ou o sofrimento o próprio sentimenpode, por outro lado, to, há uma diferença. basta que o ser apenas o incômoÉ essa diferença que sentimento produza do, a insatisfação, a distingue as paixões e na mente alguma perturbação, a infelia faculdade de sentir cidade, causados, por paixões, conforme o sensação de prazer exemplo, pela inveja texto de Aristóteles. ou de dor para ou pelo ódio. IgualDada a definição que seja chamado mente, o prazer pode de paixões como senser apenas um sentitimentos acompanhapaixão. mento de satisfação. dos de prazer e dor, Você pode notar, Aristóteles argumenta desde já, que Aristóque as virtudes e seus teles entende por paiopostos, os vícios, não xões um amplo conjunto de sentimentos: podem ser confundidos com as paixões. E todos aqueles que geram prazer e dor. por que não? Ele nos oferece três razões: Não se trata, porém, de prazer e dor imediatamente ligados ao corpo, como aque1. Ninguém pode ser chamado bom la dor causada por um corte no dedo ou o ou mau, ser louvado ou censurado, prazer causado por um prato suculento. por causa das paixões que sente. Além disso, sua concepção de paixão Ao contrário, alguém é chamado não corresponde à ideia, bastante comum bom ou mau devido às suas virtuentre nós, de que as paixões são apenas des ou vícios. os sentimentos avassaladores, que arras2. Ninguém sente paixões por escolha, tam as pessoas de lá para cá, como é code maneira deliberada, enquanto as mum encontrar em filmes, telenovelas e virtudes (e também os vícios) enletras de música. Para Aristóteles, basta volvem escolha deliberada. que o sentimento produza na mente alguma sensação de prazer ou de dor, para 3. Pode-se dizer que as paixões motique seja chamado paixão. vam os seres humanos, mas não se Por outro lado, Aristóteles sustenta pode dizer que as virtudes e os vícios que as paixões são diferentes das faculo façam; as paixões nos afetam, mas

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Scuola Grande di San Rocco, Veneza.

Tintoretto (1518-1594) foi um dos mais conhecidos pintores do estilo maneirista (Alegoria da felicidade, Ăłleo sb/ tela, c. 1564) .

nĂŁo somos afetados pelas virtudes; estas fazem com que tenhamos uma disposição, uma certa atitude. Quanto Ă diferença entre “virtudeâ€? e “faculdade de sentir paixĂŁoâ€?, AristĂłteles repete a primeira explicação relacionada Ă diferença entre virtude e paixĂŁo, mas acrescenta uma outra, que ĂŠ importante:

roz gera medo na mente. Ora, sĂł podemos chamar “bomâ€? e “mauâ€? aquilo que envolve uma certa escolha. As paixĂľes, que nĂŁo podem ser escolhidas pela simples vontade do ser humano, nĂŁo devem ser chamadas boas e mĂĄs, e nem o ser humano pode ser chamado bom e mau porque as sente. Se as paixĂľes nĂŁo sĂŁo frutos da escolha, entĂŁo ĂŠ preciso dizer que elas nĂŁo sĂŁo provocadas pela mente ou alma humana. SĂŁo as paixĂľes que provocam um determinado movimento de alma (o prazer, a dor), somos movidos em nossa alma pelas paixĂľes. Dessa maneira, as paixĂľes indicam uma passividade da mente ou da alma, uma vez que elas nĂŁo sĂŁo provocadas por nĂłs mesmos; nĂłs nos limitamos a senti-las, nĂŁo as criamos. A Ăşltima observação (4) estabelece a diferença entre sentir a paixĂŁo, de um lado, e ter virtude, de outro. PaixĂľes sĂŁo naturais, assim como as faculdades em nosso poder que nos levam a sentir paixĂľes. Mas, embora sejam naturais, as paixĂľes nĂŁo estĂŁo desde sempre presentes na natureza humana, como ĂŠ o caso das faculdades.

Essas quatro razĂľes estĂŁo relacionadas entre si e, juntas, nos dĂŁo uma imagem mais ampla do que AristĂłteles entende por “paixĂŁoâ€?, e, com isso, por “virtudeâ€?. Em primeiro lugar, trata-se de evitar que apliquemos, para as paixĂľes, as qualidades de “bomâ€? e “mauâ€?. NinguĂŠm ĂŠ bom ou mau porque sente essa ou aquela paixĂŁo. Isso significa que as paixĂľes nĂŁo sĂŁo boas nem mĂĄs nelas mesmas. E por que nĂŁo? A segunda razĂŁo explica de certa forma a primeira: porque ninguĂŠm pode escolher ter essa ou aquela paixĂŁo. NinguĂŠm pode intencionalmente querer ter essa ou aquela paixĂŁo. Ela simplesmente se apresenta na mente humana sob determinadas circunstâncias. A presença de um animal fe-

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Ă–sterreischische Galerie, Viena Album/Akg/Latinstock

razĂŁo e paixĂŁo

4. As faculdades sĂŁo dadas por natureza, mas ninguĂŠm se torna bom ou mau por natureza.

Segundo AristĂłteles, em nossa alma, sĂł as paixĂľes nos movem (Franz Xaver Messerschmidt [1736-1783], O arquivilĂŁo, bronze, 1770).

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razão e paixão

As paixões dependem das circunstâncovardia por excesso de medo. Se, por oucias. Se não há motivo (real ou imaginário) tro lado, alguém, em vez de sentir medo, para ter medo, ninguém sente medo. Mas resolve enfrentar tudo e qualquer coisa, a capacidade de sentir medo está inscrita incorre no vício contrário: é um temerána natureza humana, e assim o próprio rio, é audacioso demais. Tem o vício da temedo é um fenômeno natural. Porém, se meridade por escassez de medo. A virtude as paixões são naturais, se não são escolhida coragem reside no meio termo desses das, se não são causadas por nós mesmos, dois extremos. Ser corajoso exclui a covarnão se pode dizer que elas sejam boas ou dia, mas também exclui a temeridade. É a más. Ninguém se torna bom ou mau por maneira equilibrada de lidar com o medo. natureza. Dessa maneira, se as virtudes e os vícios A educação, o hábito e a virtude são tudo aquilo que pode ser chamado bom Porém, você pode estar se pergune mau, e se as paixões e as faculdades de tando: se as virtudes e vícios são bons e senti-las não podem ser assim chamadas, maus, e se ninguém é naturalmente bom então só resta dizer que as virtudes e os ou mau, como elas, enquanto disposições vícios são disposições de de caráter, aparecem caráter. Mas o que signa nossa alma? Como nifica essa expressão: nos tornamos virtuo“disposição de caráter”? sos? O termo “dispoNinguém pode ser Justamente aquilo que sição” significa uma louvado ou censurado nos faz ter uma detercerta propensão a lidar por causa das minada atitude em relacom as paixões de uma ção às paixões sentidas. maneira ou de outra, paixões que sente. O exemplo de Aristótede tal modo que ela se Ao contrário, alguém les é claro: é mau sentir torne uma caracterísé chamado bom ou cólera de maneira viotica de nossa maneira lenta ou muito fraca, e de ser. Essa propenmau devido às suas bom senti-la de maneisão, mais ou menos virtudes ra moderada. Não escoestável, deve ser criada ou vícios. lhemos ter as paixões, e exercitada por nós mas podemos, isto mesmos, de modo que, sim, escolher o modo diante de uma paixão, de senti-las. Esse modo tendamos a lidar com pode ser muito intenso, pouco intenso, ou elas dessa ou daquela maneira. Assim, moderadamente intenso. conforme Aristóteles, é sobretudo o hábiLogo, as disposições de caráter são to que vai permitir criar uma disposição aquilo que nos permite lidar de maneira de caráter e, portanto, uma determinada boa ou má com as paixões. As virtudes e virtude ou vício. os vícios são justamente essa maneira de Esse hábito, por sua vez, é desenvolvilidar com as paixões. A consequência é do pela educação e pela disciplina. Uma evidente: as virtudes são o modo modeboa educação nos leva a querer ser corajorado, o ponto de equilíbrio entre um exsos e enfrentar os perigos de maneira prucesso e uma falta, enquanto os vícios são dente, e com isso criamos em nós mesmos os modos excessivos ou deficientes. Por a virtude da coragem, o que por sua vez exemplo, considera-se covarde alguém nos leva de novo a lidar com o medo de que sente medo e foge de tudo. Aristótemaneira equilibrada. O hábito cria a virtules diria ser alguém que possui o vício da de, a virtude fortalece o hábito.

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No entanto, nada disso acontece se não houver escolhas, e as escolhas ligadas às virtudes são escolhas baseadas em pensamentos e reflexões. Dito de outro modo, são baseadas na razão humana. Dessa maneira, as virtudes estão intimamente relacionadas com a racionalidade. Um homem virtuoso é um homem racional: um homem que escuta sua razão. A racionalidade do homem virtuoso se

apresenta, por outro lado, na maneira como ele lida com as paixões. Ele não busca evitá-las. Isso seria impossível, diria Aristóteles. Ele busca moderá-las, agindo de maneira equilibrada. Assim, a atitude ética racional – a virtude – não se opõe à paixão. Antes, ela é fruto da educação da mente ou alma para lidar de maneira equilibrada com as paixões.

Schopenhauer, crítico de Aristóteles

razão e paixão

Desenvolvimento individual por escrito

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Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um importante filósofo alemão, que rivalizava com Georg W. F. Hegel (1770-1831) e exerceu influência sobre autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). Em sua obra mais importante, O mundo como vontade e como representação (Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005), Schopenhauer tece considerações significativas sobre a ética, que podem servir como elemento de comparação com a posição de Aristóteles. Segundo Schopenhauer, a ética dos gregos, com exceção de Platão, é uma ética que busca uma vida feliz, ao passo que a ética dos cristãos e a ética dos hindus são em geral éticas que buscam a renúncia aos desejos, exercitando até mesmo, em algumas práticas ascéticas, a renúncia à vontade de querer viver. Schopenhauer prefere as duas últimas àquela dos gregos, em que se destaca a aristotélica. Para Schopenhauer, a satisfação, a felicidade, é sempre algo negativo, equivalendo à ausência de sofrimento. A realização dos desejos é, no fundo, a supressão momentânea do sofrimento que causou esses desejos. Ora, se é assim, então não podemos nos dei-

xar enganar pelas alegrias e pelos prazeres. Em vez de buscar essas alegrias, é preciso renunciar à vontade de viver que está na base de todo sofrimento. Por isso, Schopenhauer valoriza as técnicas hinduístas e cristãs de ascese, isto é, de negação dos prazeres. Ao contrário da ética aristotélica, Schopenhauer não defende uma moderação das paixões e dos desejos. Antes, ele propõe agirmos de tal modo que possamos nos tornar indiferentes às alegrias (sempre falsas) que a realização dos desejos proporciona. O homem virtuoso, afirma Schopenhauer, “cessa de querer algo, evita atar a sua vontade a alguma coisa, procura estabelecer em si a grande indiferença por tudo” (A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, pp. 482-483). • Tendo em vista esses dois pontos de vista tão distintos sobre a ética, elabore uma redação de aproximadamente uma ou duas páginas, procurando desenvolver seu próprio ponto de vista sobre o assunto: a vida feliz reside em saber ordenar as paixões pela razão (Aristóteles) ou em suprimir as paixões (Schopenhauer)? Ou nem uma, nem outra dessas opções? Ou ambas, se é que podem ser conciliadas?

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Arthur Schopenhauer (1788-

após sua morte, para dois

1860) possui uma biografia com

pensadores atuantes no

algumas curiosidades. Quando

fim do século XIX e início

tinha dezoito anos, perdeu o pai

do século XX, de extraor-

e acompanhou sua mãe em Wei-

dinária relevância no pen-

mar, cidade em que viveu du-

samento contemporâneo:

rante muitos anos J. W. Goethe

Nietzsche

(1749-1832), o grande poeta do

Freud (1856-1939).

(1844-1900)

Lebrecht / Keystone Brasil

Schopenhauer

e

classicismo alemão, que passou

Dispomos de boas tra-

a frequentar a casa de sua famí-

duções das obras princi-

lia. Schopenhauer faz seus estu-

pais de Schopenhauer no

dos de literatura clássica e filosofia em Berlim.

Brasil. Além da edição citada de O mundo como

Em 1819, publica sua obra mais importante,

vontade e como representação (Unesp, 2005),

O mundo como vontade e como representação,

você pode consultar:

na qual polemiza com a filosofia de Immanuel

A. Schopenhauer, Fragmentos para a his-

Kant (1724-1804). Passa a lecionar na Universi-

tória da filosofia. Tradução: Maria L. Caciolla.

dade de Berlim, tornando-se colega de Georg

São Paulo: Iluminuras, 2003.

W. F. Hegel (1770-1831), que atraía nessa época

A. Schopenhauer, A arte de se fazer respei-

todas as atenções. Schopenhauer marca suas

tar. Tradução: Maria L. Caciolla. São Paulo:

aulas nos mesmos horários das aulas de Hegel,

Martins Fontes, 2003.

para tirar-lhe os estudantes, mas é inútil: sua

A. Schopenhauer, Sobre o fundamento da

sala fica vazia, a de Hegel permanece cheia. A

moral. Tradução: Maria L. Caciolla. São Paulo:

obra de A. Schopenhauer tornou-se decisiva

Martins Fontes, 1995.

Há muitas maneiras de se pensar a relação entre a razão e a paixão. Para Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), autor do texto a seguir, a paixão está ligada intimamente aos vícios humanos. Desse modo, ela se opõe à virtude e à razão. “Em meu entender, o que se verifica no homem de bem não é uma atenuação dos defeitos, mas sim a sua completa ausência; os seus defeitos não devem ser diminutos, devem ser nulos, pois se possuir alguns, eles não tardarão a aumentar e mesmo a tomar conta dele. O mesmo sucede com a catarata: quando já completamente desenvolvida ocasiona a cegueira, mas mesmo ainda no início já basta para dificultar a visão. [...] Seria preferível a situação de um

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homem que tivesse um único vício bem declarado do que a de quem os tem todos, embora atenuados. De resto, são irrelevantes as proporções de uma paixão: por pequena que seja, recusa-se à obediência aos ditames da razão. Tal como nenhum animal é capaz de obedecer à razão – seja animal selvagem, seja doméstico e manso (já que por natureza os animais são surdos aos conselhos) – assim também as paixões não acatam nem escutam avisos, por mais reduzidas que sejam. Os tigres e leões nunca perdem a sua ferocidade, apenas ocasionalmente a atenuam, e quando menos se espera a sua violência domada pode exasperar-se de novo. Os vícios não se dominam com boas maneiras. Aliás, com o auxílio da razão, as paixões nem

razão e paixão

A rejeição das paixões

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Museu Nacional do Prado, Madri

Francisco Goya (1746-1828), O sono da razĂŁo produz monstros (gravura, 1787/98. SĂŠrie “Caprichosâ€?).

sequer despertam; e se despertam contrariando a razĂŁo, persistirĂŁo nas mesmas condiçþes. É bem mais fĂĄcil impedir que elas se originem do que dominar depois os seus ardores! Consequentemente, essa atenuação dos vĂ­cios ĂŠ nĂŁo sĂł falsa como inĂştil; devemos considerĂĄ-la do mesmo

modo como se nos dissessem que se deve ter moderação na loucura ou na doença. A virtude deve ocupar toda a alma, pois os defeitos da alma nĂŁo sĂŁo susceptĂ­veis de moderação; ĂŠ mais fĂĄcil erradicĂĄ-los do que controlĂĄ-los. Podemos duvidar de que aqueles vĂ­cios da mente humana mais enraizados e fortes a que chamamos ‘doenças do espĂ­rito’ – tais como a avareza, a crueldade, a falta de autocontrole – sejam imoderados? Logo imoderadas sĂŁo tambĂŠm as paixĂľes, jĂĄ que se parte sempre destas para chegar Ă queles. [...] Se nĂŁo estiver na nossa mĂŁo a possibilidade de as paixĂľes existirem ou nĂŁo, igualmente nĂŁo estarĂĄ o seu grau de intensidade; se permitirmos o seu aparecimento, elas crescerĂŁo em proporção com as suas causas, e tornar-se-ĂŁo tĂŁo intensas quanto puderem. Acrescenta-se ainda que todos os defeitos, por diminutos que sejam, tĂŞm tendĂŞncia a aumentar; tudo quanto ĂŠ nocivo ignora a justa medida; embora leves a princĂ­pio, as forças da doença vĂŁo-se insinuando em nĂłs, atĂŠ que um ligeiro acrĂŠscimo do mal abate os nossos corpos minados.â€? (LĂşcio Aneu SĂŞneca, Cartas a LucĂ­lio. EpĂ­stola 85.

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SĂŞneca, ao lado de CĂ­cero

conhecimento de nosso lugar

(106-43 a.C.) e Marco AurĂŠlio

na ordem universal das coisas

(121-180 d.C.), destaca-se como

– que ele designa o “cosmos�.

filĂłsofo e polĂ­tico dos mais pre-

Dentre suas obras mais conhe-

eminentes no ImpĂŠrio romano.

cidas, vocĂŞ pode consultar:

SĂŞneca foi leitor do estoicismo

Sobre a brevidade da vida.

grego, que aprofundou e divul-

Tradução: Gabriel N. Macedo.

gou na lĂ­ngua latina, tornando-se

Porto Alegre: L&PM, 2006.

uma das principais fontes dessa

Da vida feliz. Tradução: João

vertente muito tempo depois,

C. Cabral Mendonça. São Paulo:

na ĂŠpoca do Renascimento. Em

Martins Fontes, 2009.

seus escritos, SĂŞneca propĂľe como modelo de

Da tranquilidade da alma. Tradução:

virtude o indivĂ­duo capaz de atingir a “ataraxiaâ€?,

LĂşcia Rebello e Itanajara Neves. Porto Ale-

isto ĂŠ, a paz da alma ou da mente, por meio do

gre: L&PM, 2009.

De Agostini Picture Library / Glow Images

razĂŁo e paixĂŁo

SĂŞneca e o estoicismo antigo

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SĂŞneca, crĂ­tico de AristĂłteles Ao ler a passagem de SĂŞneca, vocĂŞ deve ter notado que o autor se contrapĂľe Ă ideia de que devemos moderar ou atenuar as paixĂľes. Portanto, ele critica o conceito de virtude de AristĂłteles[+] e dos seus seguidores, que eram chamados de peripatĂŠticos. Em vez desse conceito de virtude, ele nos propĂľe um outro bem diferente: o homem de bem, o homem virtuoso, ĂŠ aquele que nĂŁo tem nenhum defeito, isso significa dizer que ele nĂŁo deve ter nenhuma paixĂŁo, pois a paixĂŁo estĂĄ na origem dos vĂ­cios, e os vĂ­cios, por sua vez, sĂŁo doenças da alma. Essa crĂ­tica se baseia em uma visĂŁo bem diferente daquela de AristĂłteles a respeito das paixĂľes. Para AristĂłteles, as paixĂľes seriam naturais do ser humano, e nĂŁo coincidem nem com as virtudes nem com os vĂ­cios. Elas nem mesmo poderiam estar na origem dos vĂ­cios, jĂĄ que estes sĂŁo disposiçþes de carĂĄter que envolvem escolhas do ser humano. Assim, se em AristĂłteles a virtude e o vĂ­cio sĂŁo definidos pela maneira como nos relacionamos com as paixĂľes, em SĂŞneca hĂĄ uma total separação entre virtude e paixĂŁo. Para este Ăşltimo, “virtudeâ€? implica a exclusĂŁo de toda paixĂŁo, porque toda paixĂŁo ĂŠ o começo do vĂ­cio. A oposição entre virtude e vĂ­cio, existente em AristĂłteles, ĂŠ substituĂ­da, em SĂŞneca, por uma oposição entre virtude e paixĂŁo. VocĂŞ pode perceber, no texto citado, que SĂŞneca nos oferece quatro argumentos segundo os quais nĂŁo seria possĂ­vel nem desejĂĄvel tentar moderar as paixĂľes. Vamos examinĂĄ-los um a um: 1. Se aceitamos que as paixĂľes possam ser fracas ou fortes, nem por isso elas sĂŁo obedientes Ă razĂŁo. Elas se com-

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A escola peripatĂŠtica Como AristĂłteles costumava lecionar caminhando, seus discĂ­pulos ficaram conhecidos como “peripatĂŠticosâ€?: em grego, “itinerantesâ€?, “caminhantesâ€?. É por isso que, no curso posterior da histĂłria da filosofia, se tornou comum encontrarmos referĂŞncias Ă filosofia aristotĂŠlica como “peripatĂŠticaâ€?.

param aos animais, que por natureza nĂŁo sĂŁo dotados de razĂŁo ou sĂŁo incapazes de ouvir conselhos racionais. Essa comparação entre as paixĂľes e as feras nĂŁo se dĂĄ por acaso. Segundo SĂŞneca, as paixĂľes sĂŁo irracionais, nĂŁo fazem parte da razĂŁo humana e, portanto, sĂŁo de natureza contrĂĄria Ă natureza da razĂŁo. Sendo assim, seria impossĂ­vel para a razĂŁo moderar verdadeiramente as paixĂľes. Quando menos se espera, elas atacam e dominam a alma humana. PorĂŠm, trata-se ainda de uma comparação, uma analogia com os animais. Para provar que as paixĂľes nĂŁo podem ser moderadas, ele lança mĂŁo de um segundo argumento: 2. Os vĂ­cios mais fortes, chamados de “doenças do espĂ­ritoâ€?, como a avareza e a crueldade, sĂŁo imoderados. Ora, as paixĂľes estĂŁo na origem desses vĂ­cios. Logo, elas devem ser tĂŁo imoderadas quanto os vĂ­cios aos quais chegaram. Elas nĂŁo poderiam ter se tornado vĂ­cios imoderados se jĂĄ nĂŁo fossem elas mesmas imoderadas.

razĂŁo e paixĂŁo

Tradução de JosÊ António Segurado e Campos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, pp. 644-646)

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No entanto, Ê possível pensar que não dominamos as causas das paixþes, causas que estão fora de nós e que, portanto, são independentes da nossa vontade. Essa Ê uma suposição que estaria bem próxima daquela concepção de paixão defendida por Aristóteles. Sêneca a aceita, mas isso lhe permite levantar um terceiro argumento contra a tentativa de moderar as paixþes: 3. Se não podemos evitar a existência das paixþes, então não podemos controlar seu grau de intensidade. Em outras palavras, se a causa da paixão não estå sob nosso controle, então temos ainda menos controle sobre a intensidade que ela adquire. Ela pode se intensificar por conta própria, unicamente conforme sua causa. Por fim, Sêneca acrescenta um último argumento:

razĂŁo e paixĂŁo

Roma, Piazza del Campidoglio. Foto: Jean-Pol Grandmont. CC-sa-3.0

4. Tudo que ĂŠ nocivo nĂŁo pode ter uma justa medida, uma medida equilibrada. Logo, por mais fracas

CĂłpia em bronze de estĂĄtua de Marco

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AurĂŠlio (121-180), imperador romano que foi adepto do estoicismo.

que sejam de inĂ­cio, as forças da doença acabam se desenvolvendo. Este Ăşltimo argumento estĂĄ intimamente ligado ao segundo. As paixĂľes sĂŁo tomadas como “forças da doençaâ€? pois elas estĂŁo na origem das “doenças do espĂ­ritoâ€?. PorĂŠm, ĂŠ mais fĂĄcil combater a doença no seu começo do que depois de desenvolvida. Assim, para combater os vĂ­cios, ĂŠ preciso combater sua origem, as paixĂľes. É preciso eliminar as paixĂľes logo quando aparecem, porque, depois, jĂĄ ĂŠ tarde demais. E ĂŠ tarde demais quando se pretende “atenuĂĄ-lasâ€?. Uma vez instaladas na alma, dificilmente se poderĂĄ moderĂĄ-las. É possĂ­vel que vocĂŞ se pergunte: como refrear e eliminar as paixĂľes, mesmo em estado inicial, se suas causas nĂŁo estĂŁo sob o nosso controle? A resposta de SĂŞneca, como a de muitos outros que defendiam essa compreensĂŁo de virtude e de paixĂŁo (os pensadores chamados estoicos) consiste justamente no desprezo pelas causas exteriores das paixĂľes. Segundo essa linha de pensamento, seria preciso desprezar aquilo que suscita as paixĂľes, como os bens materiais em relação Ă ambição, e os perigos em relação ao medo. Se nĂŁo dermos nenhum valor a essas coisas fora de nĂłs, elas jĂĄ nĂŁo poderĂŁo suscitar as paixĂľes. Esse desprezo pelas coisas exteriores deve ser incondicional, do contrĂĄrio elas podem tornar mais frequentes as paixĂľes, as quais se convertem em vĂ­cios. Por sua vez, os vĂ­cios tendem a exagerar o valor atribuĂ­do Ă causa exterior, dificultando mais e mais o desprezo por ela. É dessa maneira que o vĂ­cio atua como doença: faz atribuir um grande valor a coisas de pouco ou nenhum valor, levando o indivĂ­duo a persistir no erro. Sendo incondicional logo de inĂ­cio, o desprezo pela causa exterior da paixĂŁo faz dissipar a prĂłpria paixĂŁo, e a alma se livra de uma doença.

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A razão a serviço das paixþes

Combate entre razĂŁo e paixĂŁo? Iniciemos pela leitura de um trecho do Tratado, de Hume: “Nada ĂŠ mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixĂŁo e a razĂŁo, dar preferĂŞncia Ă razĂŁo e afirmar que os homens sĂł sĂŁo virtuosos quando

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se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional ĂŠ obrigada a regular suas açþes pela razĂŁo; e se qualquer outro motivo ou princĂ­pio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele atĂŠ subjugĂĄ-lo por completo ou, ao menos, atĂŠ tornĂĄ-lo conforme Ă quele princĂ­pio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E nĂŁo hĂĄ campo mais vasto, tanto para argumentos metafĂ­sicos como para declamaçþes populares, que essa suposta primazia da razĂŁo sobre a paixĂŁo. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razĂŁo tĂŞm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o carĂĄter enganoso da paixĂŁo foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falĂĄcia de toda essa filosofia, procurarei provar, primeiramente, que a razĂŁo, sozinha, nĂŁo pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca poderia se opor Ă paixĂŁo na direção da vontade.â€? (Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: Daniela Danowski. SĂŁo Paulo: Editora da Unesp, 2009, pp. 448-449)

Você pode notar, jå no primeiro parågrafo desse texto de David Hume, que ele tem dois objetivos, que concernem diretamente ao tema desta Unidade. Ele quer mostrar que não faz sentido falar em um combate entre razão e paixão e, por isso, que não faz sentido falar que a razão deve ser superior à paixão, nem que a paixão deve obedecer à razão. Com isso, Hume vai contra boa parte da filosofia moral, que trata das questþes sobre as virtudes humanas, sobre o bem e o mal. Para alcançar seu duplo objetivo, Hume adverte seu leitor de que irå

razĂŁo e paixĂŁo

As noçþes de razĂŁo e paixĂŁo, que foram problematizadas no pensamento filosĂłfico antigo, atravessaram a Idade MĂŠdia e animaram a reflexĂŁo ĂŠtica moderna. Como jĂĄ ocorrera na GrĂŠcia, tambĂŠm na modernidade muitas vezes este par conceitual surgiu sob a forma de uma alternativa: razĂŁo versus paixĂľes. Uma contribuição decisiva para esse debate foi fornecida por David Hume[+] (1711-1776), cĂŠlebre filĂłsofo escocĂŞs, cuja obra se tornou muito debatida na segunda metade do sĂŠculo XVIII. Hume tornou-se conhecido por seus ensaios, foi historiador e manteve laços profundos com os intelectuais franceses que participaram da filosofia das Luzes (tambĂŠm designada como “Iluminismoâ€? ou “Esclarecimentoâ€?). Hume tambĂŠm ĂŠ discutido em outras Unidades do livro que vocĂŞ tem em mĂŁos, como DĂşvida e certeza (mĂłdulo “Os limites da dĂşvida ao garantir a certezaâ€?) e PrincĂ­pio e temporalidade (mĂłdulo “A regularidade da experiĂŞnciaâ€?). Aqui vamos nos ater a um aspecto do pensamento de Hume: a abordagem que ele propĂľe ao tema “razĂŁo versus paixĂŁoâ€?. A posição de Hume ĂŠ muito inovadora em relação a autores da Antiguidade, como AristĂłteles[+] ou SĂŞneca[+]. A novidade ĂŠ que, para Hume, a razĂŁo estĂĄ a serviço das paixĂľes. Vejamos, por partes, alguns trechos do Tratado da natureza humana (1739-1740), em que Hume expĂľe suas principais ideias filosĂłficas.

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Biblioteca Nacional da França

mostrar que a razão não pode influenciar a vontade e que a razão não pode se opor à paixão na direção da vontade. Passemos, então, à continuação do texto de Hume. A razão, instrumento das paixþes

razĂŁo e paixĂŁo

â€œĂ‰ evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto, sentimos, em consequĂŞncia disso, uma emoção de aversĂŁo ou de propensĂŁo, e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionarĂĄ esse desprazer ou essa satisfação. TambĂŠm ĂŠ evidente que tal emoção nĂŁo se limita a isso; ao contrĂĄrio, faz que olhemos para todos os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efeito. É aqui, portanto, que o raciocĂ­nio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocĂ­nios variam, nossas açþes sofrem uma variação subsequente. Mas ĂŠ claro que, neste caso, o impulso nĂŁo decorre da razĂŁo, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer que gera a aversĂŁo ou propensĂŁo ao objeto. E essas emoçþes se estendem Ă quilo que a razĂŁo e a experiĂŞncia nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto. Nunca terĂ­amos o menor interesse em saber que tais objetos sĂŁo causas e tais outros sĂŁo efeitos, se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferentes. Quando os prĂłprios objetos nĂŁo nos afetam, sua conexĂŁo jamais pode lhes dar uma influĂŞncia; e ĂŠ claro que, como a razĂŁo nĂŁo ĂŠ senĂŁo a descoberta dessa conexĂŁo, nĂŁo pode ser por meio dela que os objetos sĂŁo capazes de nos afetar.â€? (Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: D. Danowski, op. cit., p. 450)

Vamos contrapor essa postura de Hume a dois autores antigos. Para Aris-

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Aqui, a razĂŁo detĂŠm e controla a fĂşria, representada pelo leĂŁo. Para Hume, o que se passa ĂŠ bem o contrĂĄrio (Jean-Baptiste Chapuy [1760-1802], A razĂŁo. Gravura, 1793).

tóteles, a virtude era um modo de controlar, de moderar as paixþes. Para Sêneca, a virtude excluía todas as paixþes. Em ambos os casos, a virtude estå ligada à razão, embora de modos diferentes. Com seu objetivo duplo, a posição de Hume Ê claramente diferente daquela de Aristóteles e de Sêneca. Afinal, se, como defende Hume, a razão não pode exercer nenhuma influência sobre a vontade, nem pode se opor às paixþes, então ela não poderia nem moderar as paixþes, nem impedir que as paixþes apareçam e direcionem a vontade. Hume tambÊm dispþe de um conceito bem diferente de razão, em comparação com Aristóteles e Sêneca. O que restaria, então, à razão em relação às paixþes, segundo Hume? Ela Ê, e deve ser, uma escrava das paixþes. Para Hume, um escravo não deve ser contrårio ao senhor. Ele deve, em vez disso, servi-lo, ajudå-lo. E como a razão ajuda as paixþes? Quando ela mostra as condiçþes e os meios adequados para satisfazê-las. Vamos examinar agora como ele prova que a razão não pode influenciar a vontade, ser o motivo de a vontade querer algo e agir. Hume tambÊm apresenta

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1. Paixþes são, basicamente, as emoçþes de aversão e de propensão que sentimos quando temos perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto. Sentimos repulsa por alguma coisa porque achamos que ela vai causar dor, e sentimos propensão ou atração por alguma coisa porque achamos que ela vai nos causar prazer.

mos indiferentes aos objetos, isto ĂŠ, se nĂŁo tivermos interesse por eles. Se eles nĂŁo nos afetam, nĂŁo buscamos saber o que ĂŠ causa e o que ĂŠ efeito. Ora, os objetos nos afetam, temos interesse por eles porque acreditamos que possam gerar dor ou prazer. Raciocinamos porque os objetos nos afetam, e nĂŁo o contrĂĄrio (eles nos afetam porque raciocinamos). Mas por que raciocinamos quando alguma coisa nos afeta? Porque precisamos saber quais sĂŁo os meios que permitem ter a coisa ou repeli-la. Esses meios nos sĂŁo informados pela razĂŁo, jĂĄ que ela ĂŠ capaz de estabelecer o que ĂŠ a causa provĂĄvel e o que ĂŠ o efeito provĂĄvel de alguma coisa.

2. RazĂŁo ĂŠ capacidade de descobrir a conexĂŁo entre causa e efeito. A partir dessa descoberta, ela ĂŠ tambĂŠm capaz de raciocinar: dado um objeto qualquer, inferimos que ele ĂŠ causa A força das paixĂľes de um outro, que seria seu efeito, Sigamos ainda um instante o raciocĂ­ou, ao contrĂĄrio, que ele ĂŠ efeito de nio de Hume, a fim de descortinar por um outro, que seria sua causa. que, ao seu ver, cabe Ă Voltemos agora ao razĂŁo somente obedeque Hume quer procer Ă s paixĂľes: var. Se a razĂŁo ĂŠ uma “Nada pode se faculdade de descoPara Hume, a razĂŁo opor ao impulso da brir relaçþes causais ĂŠ, e deve ser, uma paixĂŁo, ou retardĂĄe de raciocinar, como escrava das paixĂľes. -lo, senĂŁo um impulso ela poderia ser o mocontrĂĄrio; e para que tivo para agir? NĂłs Um escravo nĂŁo esse impulso contrĂĄagimos porque raciodeve ser contrĂĄrio rio pudesse alguma cinamos ou raciocinaao senhor. Ele deve, vez resultar da razĂŁo, mos porque agimos? esta Ăşltima faculdade Se nĂłs agimos porque em vez disso, servi-lo, teria de exercer uma raciocinamos, isso ajudĂĄ-lo. influĂŞncia original significa que a razĂŁo sobre a vontade e criou em nĂłs o impulser capaz de causar, so para agir. A razĂŁo bem como de impecriaria, nesse caso, dir, qualquer ato da vontade. Mas se algo prĂłximo da paixĂŁo ou igual Ă paixĂŁo: a razĂŁo nĂŁo possui uma influĂŞncia uma aversĂŁo ou uma atração. Ao conoriginal, ĂŠ impossĂ­vel que possa fazer trĂĄrio, se raciocinamos porque agimos, frente a um princĂ­pio com essa efientĂŁo o impulso para agir ĂŠ anterior Ă cĂĄcia, ou que possa manter a mente razĂŁo. A resposta de Hume estĂĄ na parte em suspenso por um instante sequer. final do parĂĄgrafo: Vemos, portanto, que o princĂ­pio que se opĂľe a nossa paixĂŁo nĂŁo pode ser 3. NĂŁo temos interesse em saber qual o mesmo que a razĂŁo, sendo assim objeto ĂŠ causa e qual ĂŠ efeito se for-

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razĂŁo e paixĂŁo

o que ele entende por paixĂľes e o que ele entende por razĂŁo:

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Galleria Borghese, Roma.

denominado apenas em um sentido impróprio. Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa. A razão Ê, e deve ser, apenas a escrava das paixþes, e não pode aspirar a outra função alÊm de servir e obedecer a elas [...]. A princípio, o que se pode pensar sobre esse ponto Ê que, uma vez que nada pode ser contrårio à verdade ou à razão exceto o que se refira a ela de alguma maneira, e, uma vez que somente os juízos de nosso entendimento o fazem, deve-se seguir que as paixþes só podem ser contrårias à razão enquanto estiveram acompanhadas de algum juízo ou opinião. De acordo com esse princípio, que Ê tão evidente e natural, um afeto só pode ser dito contrårio à razão em dois sentidos. Primeiro, quando uma paixão, como

razĂŁo e paixĂŁo

natureza humana. Tradução: D. Danowski. op. cit., pp. 450-452)

O que pode a razĂŁo diante da paixĂŁo do amor? (Giorgione [1470-

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a esperança ou o medo, a tristeza ou a alegria, o desespero ou a confiança, estĂĄ fundada na suposição da existĂŞncia de objetos que nĂŁo existem realmente. Segundo, quando, ao agirmos movidos por uma paixĂŁo, escolhemos meios insuficientes para o fim pretendido, e nos enganamos em nossos juĂ­zos de causas e efeitos. Quando uma paixĂŁo nĂŁo estĂĄ fundada em falsas suposiçþes, nem escolhe meios insuficientes para sua finalidade, o entendimento nĂŁo pode nem justificĂĄ-la, nem condenĂĄ-la. NĂŁo ĂŠ contrĂĄrio Ă razĂŁo eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhĂŁo em meu dedo. NĂŁo ĂŠ contrĂĄrio Ă razĂŁo que eu escolha minha total destruição sĂł para evitar o menor desconforto de um Ă­ndio ou de uma pessoa que me ĂŠ inteiramente desconhecida. Tampouco ĂŠ contrĂĄrio Ă razĂŁo eu preferir aquilo que reconheço ser para mim um bem menor a um bem maior, ou sentir uma afeição mais forte pelo primeiro que pelo segundo. Um bem trivial pode, graças a certas circunstâncias, produzir um desejo superior ao que resulta do prazer mais intenso e valioso.â€? (Hume, Tratado da

1510], O cantor apaixonado. Ă“leo sb/ tela, c. 1510)

Agora você deve estar se perguntando, e com muita sensatez, se essa crença de que algo pode gerar dor ou prazer se baseia em uma relação de causa e efeito, e portanto em um raciocínio. Por exemplo, diante de uma fogueira, sabemos por experiência que o fogo pode causar dor, raciocinamos assim e nos afastamos. Não foi a razão que criou a aversão ao fogo, porque ela nos ensina que o fogo pode ser a causa da dor? Mas Hume poderia responder a isso com uma pergunta: você nunca viu gente que adora o fogo, que gosta atÊ mesmo de passar a mão sobre ele constantemente? Expectativas de dor e prazer são muito relativas, cada indivíduo tem as suas,

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Hume mostra que a razĂŁo tampouco pode se opor Ă s paixĂľes. Seu argumento estĂĄ ligado ao primeiro. Se a razĂŁo nĂŁo pode influenciar a vontade, ela nĂŁo pode criar um impulso nela que seja contrĂĄrio a alguma paixĂŁo. Ela nĂŁo pode nem mesmo suspender ou retardar a mente para agir conforme uma paixĂŁo. A Ăşnica maneira seria combater a paixĂŁo com outra paixĂŁo, mas, como vimos, a razĂŁo ĂŠ incapaz de criar algo idĂŞntico ou similar a uma paixĂŁo. Se nĂŁo hĂĄ como se opor Ă s paixĂľes por meio da razĂŁo, nĂŁo faz sentido falar em um combate entre

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Segundo Hume, a razĂŁo nĂŁo decide aquilo que nos dĂĄ prazer ou desprazer. Ela sĂł pode nos auxiliar a conseguir obter aquilo que buscamos por nossas paixĂľes.

razĂŁo e paixĂľes. Ela nĂŁo influencia a vontade, a nĂŁo ser de um modo. Como a razĂŁo serve Ă s paixĂľes

No restante do texto citado, Hume quer mostrar fundamentalmente que a razão pode ser útil às paixþes justamente quando mostra para a vontade quais são os meios suficientes para alcançar os objetos delas. Nesse ponto, ela pode ser contråria não às paixþes, mas às opiniþes, aos julgamentos errados que acompanham as paixþes. Note que não se trata de nenhuma rebeldia da razão. Ela apenas informa à vontade que, se for o caso, aquilo que ela quer por causa de uma paixão não existe, e que, portanto, a paixão não pode ser satisfeita. Ou ela informa que os meios para atingir as finalidades da paixão não são suficientes e que, portanto, a paixão tampouco pode ser satisfeita. Por exemplo, alguÊm crê que um elefante com asas existe e deseja vê-lo de perto. Cabe à razão mostrar que essa crença, essa opinião, Ê inteiramente falsa. Que nunca se viu e que não se tem notícia da existência de elefantes alados. Ou alguÊm quer comprar um carro vendendo sua bicicleta. A razão mostra que hå uma desproporção entre a finalidade, o carro, e o

razĂŁo e paixĂŁo

A razĂŁo nĂŁo pode se opor Ă s paixĂľes

Yuri Arcurs/Dreamstime

elas não se explicam. Simplesmente temos essa crença de que algo vai produzir dor ou prazer. Diante de um mesmo objeto ou pessoa, alguns dentre nós podem se sentir atraídos, porque acham que vão ter algum prazer com esse objeto ou pessoa, enquanto outros podem sentir aversão, porque acham que vão ter algum desprazer. Trata-se muitas vezes de preferências que não podemos nem explicar, nem justificar. Hå pessoas que se apaixonam por outras que nem conhecem de perto, que não sabem como são e por quem vivem suspirando. Para Hume, portanto, somente as paixþes podem impulsionar a vontade de agir desta ou daquela maneira. A razão pode ajudar, pode informar, com base em raciocínios, o que nos aproxima ou afasta do objeto. A razão nos diz como fazer fogo, para quem gosta de fogo, e como apagar o fogo, para quem não gosta de fogo. Mas ela mesma não pode criar nem aversão nem atração pelo fogo. Note que, no texto citado hå pouco, são as paixþes que nos levam a olhar para todos os lados a fim de descobrir o que pode estar ligado ao objeto, por relaçþes de causa e efeito. Em suma, são elas que nos levam a raciocinar, porque nos levam a agir, e não o inverso. Isso significa que a razão não pode criar motivos para impelir a vontade nessa ou naquela direção. Somente as paixþes são esses motivos.

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meio, a venda da bicicleta. Esses exemplos são exagerados, mas o que importa aqui Ê o papel da razão. Ela não contraria as paixþes, mas apenas suas suposiçþes e seus cålculos. Nenhuma preferência pode ser racionalmente justificada

O último passo da argumentação Ê somente uma explicitação do que vinha antes. Você pode notar que Hume usa exemplos dråsticos: não Ê contrårio à razão que eu prefira a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo, e assim por diante. Posso atÊ mesmo escolher algo que sei ser menos proveitoso para mim do que algo muito mais proveitoso. Com esses exemplos, Hume quer

enfatizar o que estava em jogo desde quando mostrou a incapacidade da razĂŁo em influenciar a vontade. PreferĂŞncia ĂŠ preferĂŞncia, e nĂŁo pode ser justificada racionalmente. A Ăşnica coisa que resta Ă razĂŁo ĂŠ mostrar que algumas preferĂŞncias sĂŁo irrealizĂĄveis. A razĂŁo nada decide

Vejamos, para terminar, a conclusĂŁo de Hume: “As consequĂŞncias disso sĂŁo evidentes. Como uma paixĂŁo nĂŁo pode nunca, em nenhum sentido, ser dita contrĂĄria Ă razĂŁo, a nĂŁo ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou

razĂŁo e paixĂŁo

Ullstein Bild | Getty Images

Eclipse da razĂŁo, de Horkheimer

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AnĂĄlise de texto e desenvolvimento individual por escrito Pode-se concluir, do exame de Hume, que ele sustenta que a razĂŁo ĂŠ um instrumento para as paixĂľes: cabe-lhe calcular os meios exigidos para a realização de fins que ela nĂŁo escolhe. Essa concepção, que foi recusada por muitos autores, tambĂŠm foi interpretada como um sinal dos tempos, como se ela expressasse determinada visĂŁo sobre como nos situamos no universo – uma concepção que, como dirĂŁo alguns filĂłsofos, privilegia os aspectos instrumentais da razĂŁo. É este, por exemplo, o ponto de vista de Max Horkheimer (1895-1973). Em Eclipse da razĂŁo (1947), uma de suas obras mais conhecidas, Horkheimer compara dois tipos de razĂŁo. Uma, subjetiva, outra, objetiva. A razĂŁo subjetiva ĂŠ a faculdade de conhecimento e de raciocĂ­nio lĂłgico. A objetiva

ĂŠ uma racionalidade corporificada nas relaçþes entre os seres humanos, no mundo social e mesmo na natureza. Para Horkheimer, a primeira ĂŠ essencialmente uma razĂŁo instrumental, que lida apenas com os meios mais eficazes para alcançar fins dados, nĂŁo importando quais fins sejam esses. JĂĄ para a razĂŁo objetiva, importa antes de tudo fundamentar os fins. Ainda segundo Horkheimer, a razĂŁo subjetiva e instrumental se impĂ´s na ĂŠpoca moderna como a racionalidade predominante. Com isso, os seres humanos acabaram se tornando objetos, coisas, para si e para os outros, jĂĄ que sua razĂŁo se limita a calcular e encontrar meios para fins que ela mesma nĂŁo define. • Articule, elaborando um texto de no mĂĄximo duas pĂĄginas, os pontos de vista de Hume e de Horkheimer. Um caminho natural ĂŠ seguir esse roteiro: (1): caracterizar a posição de Hume; (2): expor a objeção de Horkheimer; (3): exprimir sua prĂłpria posição a respeito dos problemas levantados nos pontos (1) e (2).

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que escolha meios insuficientes para o fim pretendido, ĂŠ impossĂ­vel que razĂŁo e paixĂŁo possam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das açþes.â€? (D. Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: D. Danowski, op. cit., p. 452)

Como você pode perceber, Hume reitera que, no combate entre as paixþes, a razão nada decide. Uma paixão Ê simplesmente mais forte do que a outra e se impþe em determinadas circunstâncias. Mas serå que somos realmente tão caprichosos ou formidåveis, a ponto de preferirmos uma coisa de pouco valor a outra de muito valor, ou mesmo a própria destruição? O próprio Hume não

pensa assim. A questão, ele alega, Ê que confundimos a razão com algumas paixþes que estão tão arraigadas em nós, que são tão sólidas e calmas, que mal as notamos no seu caråter de paixþes. Por exemplo, o amor à vida. Ele Ê uma paixão tão firmemente enraizada em nós, que não o consideramos como o que Ê, uma paixão, mas sim como algo próprio da razão. E por isso dizemos que Ê irracional desejar a própria destruição, como se isso estivesse fundado na razão, e não na paixão. Mas Ê um modo equivocado de falar, segundo Hume, porque não Ê a razão que estå sendo prejudicada, mas uma outra paixão bem enraizada em nossa natureza humana: nosso amor pela vida.

HistĂłria, razĂŁo e paixĂľes

A consciĂŞncia dividida da Modernidade Vamos discutir essas questĂľes tomando como ponto de partida dois versos de um poema escrito no fim do sĂŠculo XVIII:

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“entre prazer dos sentidos e paz de alma sĂł resta ao homem a angustiante escolhaâ€? (Friedrich Schiller, “O ideal e a vidaâ€? , versos 7-8. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Sämtliche Werke. Munique: Hauser, 1962, vol. 1, p. 201)

O autor destas linhas ĂŠ o famoso poeta, dramaturgo e filĂłsofo alemĂŁo Friedrich Schiller (1759-1805), que refletiu profundamente sobre as questĂľes morais levantadas pelo par “razĂŁo e paixĂľesâ€?. Nos versos citados acima, os dois conceitos, como jĂĄ advertimos, sĂŁo confrontados entre si. O homem, diz o poema, vĂŞ-se muitas vezes diante da escolha entre o prazer sensual (os sentidos, as paixĂľes) e a paz da alma. Esta Ăşltima evoca a serenidade que o estoicismo antigo converteu em ideal de sabedoria, que equivale ao domĂ­nio da razĂŁo sobre as paixĂľes. Qual dos dois lados vocĂŞ negligenciaria: a razĂŁo ou os sentidos? E qual caminho toma nosso poeta-filĂłsofo: o da razĂŁo ou o da sensualidade das paixĂľes? Ou serĂĄ que

razĂŁo e paixĂŁo

As paixþes humanas não são imutåveis. Elas estão inscritas em um percurso histórico. Podemos dizer que a história da humanidade Ê tambÊm a história das nossas paixþes. Elas, assim como a razão, evoluem no decorrer dos tempos. Por isso, a relação entre a razão e as paixþes Ê dinâmica, ela se altera no tempo. Em um momento, pode haver certo equilíbrio entre elas. Em outro, esse equilíbrio pode ser rompido, para depois, talvez, ser recomposto. Se as paixþes possuem historicidade (isto Ê: se elas se alteram conforme o contexto histórico da sociedade em questão), como, então, elas se apresentam nos tempos modernos? Haverå diferenças importantes entre a Antiguidade e a Modernidade? Podemos explicar essas diferenças com base nas maneiras como cada etapa da história humana articula paixþes e razão?

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razão e paixão

Schiller, contrariando nossa curiosidade e recuando diante de nossa pressa por encontrar respostas, achou melhor não tomar partido nessa disputa? Note que esta última interpretação é perfeitamente cabível e coerente com a letra dos versos citados. Pode bem ser que Schiller, ao invés de querer nos levar a aderir a um dos partidos, esteja pondo a ênfase sobre a “assustadora” ou “angustiante escolha” que a humanidade se vê pressionada a fazer entre os sentidos e a razão. Schiller talvez esteja lamentando o fato de que, em sua época, razão e prazeres se situem em campos opostos. Não seria possível, quem sabe em outro tempo, encontrá-los alinhados sob as mesmas fileiras? Se isso se confirmasse, nesse caso a humanidade não estaria irremediavelmente condenada a escolher um dos dois lados momentaneamente em conflito. Essa interpretação é reforçada por uma observação que nós podemos tirar de nosso dia a dia. Ter de fazer uma “angustiante escolha” significa ter de tomar uma decisão em um contexto de constrangimento e pressão. Qualquer um que já tenha passado por isso sabe que, em geral, decisões tomadas no calor da hora, de modo precipitado, costumam produzir resultados indesejados. Ora, talvez seja exatamente isso o que Schiller queira nos mostrar com esses dois versos. Talvez ele esteja chamando atenção para o fato de que, enquanto tiver de optar pela razão ou pelos prazeres, a humanidade estará em apuros. Segundo essa leitura, os versos não querem nos fazer decidir entre razão ou paixões, mas sim enfatizam a situação embaraçosa que nos obriga a escolher um desses lados. Será que tal situação é incontornável e a escolha, necessária? Ou ela depende de circunstâncias específicas, que, uma vez bem compreendidas e enfrentadas, poderiam ser superadas? Você pode ser da opinião, por exemplo, que a razão e as paixões sempre es-

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tão em conflito, independentemente das circunstâncias em que nos encontramos, da época em que vivemos, da cultura em que nos inserimos. É essa, ao que tudo indica, a avaliação dos filósofos estoicos antigos. Paixões – diz o filósofo romano Sêneca[+] – são como doenças da alma. E, como tais, têm de ser extirpadas, hoje, ontem, sempre. Mas você não é obrigado a seguir o raciocínio de Sêneca e, menos ainda, a se tornar um estoico. E, se a ideia for rebater Sêneca, um bom começo para isso é assinalar exatamente o caráter histórico das paixões... Vamos levar a comparação adiante. Ora, sabe-se que há inúmeras doenças associadas aos hábitos sedentários da sociedade contemporânea. Algumas enfermidades do passado desapareceram, outras surgiram e outras tantas se modificaram ao longo do tempo. O mesmo vale para nossos gostos, e também no campo dos costumes e das opiniões. Pode ocorrer, por exemplo, que algo que era chique há pouco tempo tenha hoje se tornado completamente fora de moda. Se as doenças, os gostos e as tendências se modificam no curso do tempo, por que seria diferente com as paixões? A história de nossos sentimentos Admitamos, por um instante, que as paixões e os sentimentos possuem uma história, que sofrem variações conforme o momento e o lugar – enfim, que mudem segundo o contexto em que estão inseridas. Nesse caso, já não será difícil imaginar que a oposição entre razão e paixão seja datada, momentânea e – por que não? – modificável, dinâmica. Se for mesmo assim, o constrangimento a que se vê submetida a humanidade, ao ter de obrigatoriamente optar pela razão ou pelas paixões, poderá ser passageiro. A “angustiante escolha” do verso de Schiller pode ser o sintoma

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Friedrich Schiller (1759-1805) teve como pai

se importando com

um militar de Würtemberg, na Alemanha. Em-

a razão. A posição

bora tenha tido uma infância modesta, contou

final

com o apoio do Duque de Würtemberg para se-

sobre esse assunto

guir em seus estudos. Forma-se em medicina e

é um pouco mais

passa a exercer a profissão, ao mesmo tempo

complicada do que

em que escreve peças de teatro e poesia. Co-

a simples opção por

nhece Johann W. Goethe (1749-1832) em 1788,

um dos partidos em

ano em que obtém um cargo de professor de

disputa (a razão, de

história da filosofia na Universidade de Iena.

um lado, e as pai-

Por causa de uma doença pulmonar, morre em

xões, de outro).

Schiller

Para as obras

Schiller ocupa um lugar decisivo na história

de Schiller em por-

da literatura e da dramaturgia modernas. Ao

tuguês, dispomos

lado de J. W. Goethe, Schiller protagonizou o

de excelentes traduções:

movimento “Tempestade e Ímpeto”, que está

F. Schiller, Poesia ingênua e sentimental. Tra-

na origem do Romantismo alemão. São carac-

dução M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.

terísticas centrais dessa corrente, que incluiu

F. Schiller, A educação estética do homem.

artistas, poetas, escritores e dramaturgos, a re-

Tradução R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo:

beldia contra a ordem e a defesa da fantasia e

Iluminuras, 1990.

do gênio como impulsos da atividade poética. Informar-se sobre o contexto no qual foram escritos os versos citados no início deste

F. Schiller, Do sublime ao trágico. Tradução P. Süssekind e V. Vieira. Belo Horizonte: Autêntica, 2011.

módulo é útil para examinarmos mais de perto

Para uma boa edição de uma tragédia de

o que o poeta quis dizer com eles. Sabemos

Schiller, do período de “Tempestade e Ímpe-

que Schiller foi romântico, quando jovem. Em-

to”, veja:

bora já tivesse questionado o Romantismo ao redigir esses versos, seria difícil imaginar que, diante da alternativa, Schiller optasse pela razão e descartasse as paixões.

F. Schiller, Intriga e amor. Tradução de M. L. Frungillo. Editora da UFPR: 2005. Para a troca de cartas entre Schiller e Goethe, veja:

Por outro lado, engana-se quem pensa que

J. W. Goethe, Goethe e Schiller – Compa-

Schiller tenha sido um ferrenho defensor das

nheiros de viagem. Tradução: C. Cavalcanti.

paixões e, de modo geral, dos sentidos, pouco

São Paulo: Nova Alexandria, 1993.

de uma época determinada, não de todas elas. Em outro tempo (passado ou futuro), marcado por outras paixões e sentimentos, caracterizado por outra forma de vida, a humanidade talvez não tenha se visto (nem precise se ver) obrigada a escolher entre os sentidos e a razão, um excluindo o outro. Comecemos pela Antiguidade greco-romana. Schiller, assim como outros

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pensadores do século XVIII, elogiava a civilização da antiga Grécia exatamente por isso. Conforme Schiller, os gregos da Antiguidade viviam sob um regime no qual razão e paixões constituíam um todo harmonioso. Entre os gregos, no entender de Schiller, natureza e cultura, sensibilidade e racionalidade estavam em harmonia. É o que ele afirma neste outro escrito seu:

razão e paixão

Weimar, com 45 anos de idade.

de

Biblioteca de Artes Decorativas, Paris

Schiller e “Tempestade e Ímpeto” (o pré-romantismo)

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razão e paixão

Poesia ingênua e sentimental. Tradução de Marcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991, pp. 54-55)

Antes de mais nada, saiba que Schiller utiliza o termo “sentimental” em um sentido distinto do comum. “Sentimental”, para Schiller, significa “reflexivo” e, em alguma medida, “melancólico”. O indivíduo sentimental, nesse caso, é aquele que possui consciência de que perdeu algo decisivo: sua relação direta com a natureza. É dessa relação direta e imediata com a natureza que, conforme Schiller, os gregos da Antiguidade dão testemunho. Por isso, para Schiller, os gregos antigos caracterizam-se por uma atitude “ingênua”. Com isso, ele não quer dizer que os gregos fossem tolos, mas apenas que eles estariam muito mais próximos da “natureza simples” do que nós, modernos. O “modo de sentir” deles – o que inclui seus sentimentos e paixões – era mais espontâneo. A Modernidade, ao ver de Schiller, complicou as coisas... A tal ponto que é muito comum sentirmos um “interesse sentimental” pela natureza, coisa que os gregos praticamente desconheciam. O motivo disso é que os gregos usufruíam a natureza, viviam em harmonia com ela. Sua arte, seu sentir e seu repre-

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Biblioteca Nacional da França

“Quando se recorda a bela natureza que envolvia os gregos antigos; quando se reflete sobre quão intimamente esse povo podia viver com a natureza livre sob seu céu feliz; quão mais próximos estavam da natureza simples seu modo de representar, sua maneira de sentir, seus costumes, e que reprodução fiel dela são suas obras poéticas, é de estranhar a constatação de que nesse povo se encontrem tão poucos vestígios do interesse sentimental com que nós outros modernos podemos apegar-nos a cenas e caracteres naturais.” (Schiller,

“– Bela dama, aceitaria meu braço? – Sua paixão é sutil demais para que eu possa crer nela!” (Honoré Daumier [1808-1879], litografia, 1851)

sentar convergiam com o natural. Já nós, modernos, não; abriu-se uma grande distância entre nosso modo de compreender, sentir as coisas e, de outro lado, a natureza. O interesse sentimental que temos pela natureza demonstra isso: nós agimos sentimentalmente porque sabemos que há uma grande distância a nos separar da natureza. É por isso que Schiller afirma, na mesma obra, que “nosso sentimento pela natureza assemelha-se à sensação do doente em relação à saúde” (Schiller, Poesia ingênua e sentimental, op. cit., p. 56). Desejamos a natureza porque nos tornamos pouco naturais e até mesmo artificiais. Já os gregos, não; eles eram espontâneos, joviais ou, como diz Schiller: os gregos eram “ingênuos”. A divisão do ser humano moderno É bem possível que o retrato que Schiller traçou dos gregos seja o resultado de alguma idealização. Mas não é nis-

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razão e paixão

so que estamos interessados aqui. Mais dos gregos, na Antiguidade, era ingênua, importante é o fato de que, por meio da com isso querendo dizer: espontânea, referência à Grécia antiga, Schiller aponharmoniosa, direta. Por outro lado, nós, ta para as características contraditórias modernos, somos todos “sentimentais”, e conflituosas de seu próprio tempo, na medida em que temos consciência de do qual a nossa época é uma extensão. que a civilização e a cultura, por terem se Esse tema é importante para a filosofia: desenvolvido muito, nos tornaram, em quais são, afinal, as singularidades dos certa medida, artificiais. tempos modernos em relação às épocas O raciocínio de Schiller soa plausíantigas e medievais? vel em nossos dias. Pode-se considerar Uma questão tão ampla quanto essa aceitável que passemos horas na frenpossui muitos aspectos, dos quais discute da televisão ou do computador, por tiremos apenas um. exemplo, ou que concebamos projetos Vimos que, para Schiller, a Grécia anespaciais ou busquemos petróleo nas catiga representa uma prova de que a “anmadas profundas do oceano. Mas numa gustiante escolha” que a humanidade coisa Schiller parece ter razão: dificiltem de fazer entre sensimente alguém diria que bilidade e razão não vale isso é “natural”... para todas as épocas da Não faltam exemplos história ou para todas para ilustrar que o proConforme Schiller, as sociedades. Na Grécia gresso da cultura – ou, se os gregos da antiga, ele argumenta, a preferirmos, das ciências Antiguidade viviam humanidade não se dee das artes – modificou parava com a tarefa de profundamente nosso sob um regime no escolher pela razão ou modo de vida. Por um qual razão e paixões pela sensibilidade, pois lado, algumas dessas constituíam um era capaz de incorporar mudanças vieram para ambas em uma única melhor. Pense na destodo harmonioso. forma de vida. coberta da vacina ou da Em contrapartida, a anestesia, na invenção época moderna é probleda imprensa, dentre tanmática. Nela, a humanidade se separou de tas outras coisas. De outro lado, também si mesma; o ser humano se dissociou de é verdade que o progresso trouxe junto sua essência, deixou de ser o que era natuconsigo hábitos e costumes que muiralmente. Ter de escolher entre dois partos pensadores julgaram questionáveis. tidos (as paixões ou a razão) é uma tarefa Mais importante que isso, o desenvolque se impôs para nós, modernos. E isso, vimento técnico e científico, ao lado da porque foi na Modernidade que a relação complexidade cada vez maior da vida entre sensibilidade e razão, anteriormensocial contemporânea, parece ter modite harmônica, se tornou conflituosa. ficado profundamente nossas paixões, O que fazer, então? A primeira atiassim como nossa própria razão. tude a tomar, de acordo com Schiller, é Nesta mudança reside o problema leter consciência de nossa condição. Não vantado por Schiller. Haveria como recuadianta querer ser ingênuo nos tempos perar, no presente, a articulação harmomodernos, por exemplo. E você já sabe niosa entre paixões e razão, característica que este adjetivo, “ingênuo”, possui signida Antiguidade? Como reconciliar a huficado filosófico para Schiller. “Ingênuo” manidade consigo mesma, em uma époé o oposto de “sentimental”. A atitude ca em que nos vemos tendo de escolher

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razão e paixão

Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid.

por um dos lados que constituem nosso ser – a sensibilidade ou a razão? De acordo com Schiller, contornar essa alternativa entre razão ou sensibilidade é o grande desafio da filosofia. A tarefa filosófica por excelência reside, conforme Schiller, em superar a alienação que pesa sobre a condição humana moderna. Nos dicionários, “alienação” significa: (i) “cessão de bens, venda”; (ii) “perturbação mental”; (iii) “indiferença em relação ao que se passa em volta; alheamento” (Dicionário Unesp do português contemporâneo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004). Alienar-se significa também tornar-se estranho a si mesmo. É neste sentido que o termo “alienação” tem a ver com as questões discutidas aqui por Schiller. O ser humano, na Modernidade, alienou-se, tornou-se estranho a si próprio. Já sabemos o porquê:

Degas, um dos expoentes do impressionismo, retratou a dança em inúmeros

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quadros e esculturas (Edgar Degas [18341917], Bailarinas em verde, 1877-79).

o desenvolvimento das ciências e das artes, os avanços tecnológicos, a sofisticação da vida, a divisão do trabalho – todos esses fenômenos romperam a unidade, existente na Grécia antiga, entre razão e sensibilidade. A consciência moderna é uma consciência dividida, cindida, entre os dois opostos que a constituem. A arte: ponte entre sensibilidade e razão Que solução dar para a alienação moderna? Em uma obra publicada em 1795, Schiller formula explicitamente esse problema, ao indagar-se o seguinte: “como reconstituiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originária e fundamental?” (Schiller, Cartas sobre a educação estética do homem. Tradução de R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 71). Para isso, é preciso levar em conta que o ser humano não é apenas razão e tampouco apenas paixão. Contentar-se com uma ou outra dessas duas características da humanidade corresponderia, diz Schiller, a uma visão parcial do ser humano. Ao contrário, é preciso considerar as duas exigências que pesam sobre o ser humano: a da sensibilidade e a da razão. A única maneira de lidar com essa dupla exigência é promover a reaproximação entre os sentidos e a razão, o que pode ocorrer pelo cultivo de sentimentos nobres. “O caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração”, diz Schiller (Cartas, VIII). Somente desse modo paixões e razão podem se ver novamente reunidas e em harmonia. A solução para o problema da alienação moderna, conclui Schiller, está em cultivar os sentimentos estéticos. É mediante eles que os seres humanos, a meio caminho entre o ser e o dever ser, entre a natureza e a razão, poderão se tornar tudo aquilo que podem e até devem ser idealmente. Só assim poderão reaver a unidade entre na-

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tureza e razão e, desse modo, atingir uma condição equivalente ao ideal que Schiller enxergou na cultura da Grécia antiga. Mas note: uma equivalência não é uma igualdade. Não se trata, na solução de Schiller, de adotar costumes e formas de vida dos gregos do passado. Isso seria impossível. Trata-se, isso sim, de reaver a unidade entre os elementos que compõem a

humanidade, porém conferindo a essa unidade uma nova forma, adequada aos tempos em que vivemos. Como nos diz Schiller: “Pela beleza, o homem sensível é conduzido à forma e ao pensamento; pela beleza, o homem espiritual é reconduzido à matéria e entregue de volta ao mundo sensível” (Schiller, Cartas sobre a educação estética da humanidade, op. cit., p. 95).

Debate em sala de aula e apresentação de seminário Agora que você já conhece a tese de Schiller, procure examiná-la por sua conta, no debate com seus colegas. Vamos admitir um instante, com esse pensador, que o indivíduo moderno se veja dividido entre sua razão e suas paixões. Você concordaria com a convicção de Schiller de que o belo e a arte podem fazer a ponte entre sensibilidade e razão, reunificando, desse modo, os dois elementos que, juntos, compõem nossa humanidade? Para desenvolver essa questão, certifique-se, de partida, de que a arte pode realmente alterar nossas paixões. Pense no que você já sentiu, por exemplo, diante de um filme que o impressionou, ou de uma música que evoca sentimentos nítidos, como a tristeza ou a alegria, tão logo você a escute. Esses são indícios claros de que a arte é capaz de alterar nossos sentimentos ou mesmo suscitar em nós novas emoções e paixões. • Com base nisso e trabalhando em uma equipe com mais dois colegas, procure levantar os aspectos morais que uma obra de arte (um filme, um quadro, uma peça de teatro ou uma música) é ca-

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paz de despertar. Como “aspectos morais” queremos designar os aspectos relativos à nossa disposição em face dos indivíduos que nos cercam. Já ocorreu a você de se sentir pertencendo em maior grau a uma comunidade, a um grupo de pessoas, por intermédio de uma canção, por exemplo? Se sim, isso não atesta o poder da arte em transformar a maneira como compreendemos nossa inserção na sociedade? Uma questão interessante, que servirá como fio condutor da discussão em classe e depois para a apresentação aos demais em forma de seminário, é a seguinte: será que o poder da arte em relação às paixões está sempre voltado para o objetivo de nos tornar moralmente melhores? Pense em determinados filmes que, conforme opinião difundida hoje em dia, suscitam em nós impulsos agressivos e estimulam a violência. Com base no exame que fizemos das ideias de Schiller, qual posição vocês podem formular acerca de casos como esses, em que a arte parece despertar em nós paixões que a razão reprovaria? Ou você diria que esses não são exemplos de obras de arte? Lembre-se de respaldar suas conclusões em razões que possam ser expostas aos demais colegas na aula.

razão e paixão

O belo pode nos tornar melhores?

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Central Press/Getty Images

O líder dos direitos civis Martin Luther King Jr. (1929-1968) discursa na Marcha sobre Washington (28/08/1963), no Lincoln Memorial.

unidade 3 Racionalidade e emoção ................. 77 A arte de persuadir.................

82

Premissas e conclusões ..............

86

Falácia e argumento ..............

97

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lógica e argumentação

A

rgumentos estão por toda a parte. Quando queremos convencer alguém de alguma coisa, quase sempre lançamos mão de um argumento. Acontece nos negócios, nas relações familiares, no trabalho, na política, nos tribunais, nos livros, nos cultos religiosos – onde houver seres humanos reunidos, certamente haverá discordância, debate, argumentação. Mas o que vem a ser um argumento? Falando de maneira geral, poderíamos dizer que um argumento é um tipo de discurso cuja finalidade é dar razões capazes de convencer alguém a respeito de algo. No entanto, apesar de ser uma boa aproximação, essa definição talvez seja excessivamente ampla. Ela coloca num mesmo grupo coisas que talvez devêssemos distinguir.

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Racionalidade e emoção

Weimer Pursell, 1943. World War II Poster Collection Database. Northwestern University

O que diferencia, por exemplo, um argumento bom de um argumento ruim? Será correto dizer que um argumento é bom quando ele é convincente? Ou será que existem argumentos que, apesar de convincentes, não são bons? Um argumento bom é sempre convincente? Ou será que existem argumentos que, apesar de serem bons, falham na hora de nos convencer? Vamos pensar um pouco a respeito da mensagem veiculada neste cartaz confeccionado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial:

tível. Foram criados, então, os “clubes de caroneiros” ou “clubes de carona solidária”. Esses clubes, patrocinados pelo governo norte-americano, reuniam pessoas que não se conheciam, mas moravam no mesmo bairro e trabalhavam na mesma região. A ideia era que os membros dos clubes se comprometessem a dar carona uns aos outros, economizando gasolina. Cartazes como esse tinham o objetivo de incentivar as pessoas a ingressarem nesses clubes. O que nos interessa, aqui, é o fato de que há um argumento implicitamente contido nesse cartaz. Você seria capaz de explicitá-lo? Há diversas maneiras de identificar esse argumento. Eis aqui uma possibilidade:

SOZINHO, Quando você dirige r! você dirige com Hitle clube Junte-se HOJE a um de caroneiros! Como você pode ver, trata-se de um discurso que tem o objetivo de convencer o leitor de uma determinada tese, dando-lhe certas razões para tanto. Em 1943, os EUA estavam em guerra contra a Alemanha nazista, e era preciso economizar combus-

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Como se disse anteriormente, esta é apenas uma das maneiras possíveis de explicitar o argumento contido naquele cartaz de propaganda. Ela nos servirá, porém, para estabelecer algumas distinções e conceitos importantes. Observe em primeiro lugar a ocorrência da palavra “portanto” nas sentenças 3 e 5. Ela é, talvez, a palavra mais importante num argumento. É ela que marca o momento em que uma determinada conclusão é tirada a partir de determinadas premissas. A sentença 3 é apresentada como uma consequência das sentenças 1 e 2.

lógica e argumentação

1) Se faltar combustível nos EUA, Hitler será favorecido. 2) Se as pessoas dirigirem sozinhas, haverá falta de combustível nos EUA. 3) Portanto, quem dirige sozinho está fazendo um favor a Hitler. 4) Quem não se associa a um clube de carona solidária dirige sozinho. 5) Portanto, quem não faz favores a Hitler associa-se a um clube de carona solidária.

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lógica e argumentação

Isso quer dizer uma coisa muito simples. Uma pessoa que aceite a verdade das premissas deveria, em princípio, ser levada a aceitar a verdade da conclusão. Se alguém aceita que Hitler é favorecido pela falta de combustível nos EUA (primeira premissa), e também aceita que haverá falta de combustível caso as pessoas dirijam sozinhas (segunda premissa), esse alguém terá boas razões para acusar aqueles que dirigem sozinhos de estarem colaborando indiretamente com o inimigo (conclusão). Mas a história não para aí. Como vimos, a conclusão desse primeiro argumento é, por sua vez, utilizada como premissa de um outro argumento, que vem logo abaixo. Com efeito, a conclusão tirada na sentença 5 se baseia nas sentenças 3 e 4, sendo que, como acabamos de ver, a sentença 3 já é a conclusão de um argumento anterior. Temos, portanto, dois argumentos articulados entre si. Tratemos de analisá-los. A primeira coisa que devemos compreender é que argumentos não são nem verdadeiros nem falsos. Isto é fundamental. O que pode ser verdadeira ou falsa é uma sentença tomada isoladamente. As premissas de um argumento são sentenças. A conclusão é uma sentença. Elas podem ser verdadeiras ou falsas. A quarta premissa, por exemplo, afirma que toda pessoa que não se associa a um clube de carona dirige sozinha. Isso pode ser verdadeiro, mas pode também ser falso. Pode acontecer, por exemplo, de muitas pessoas não se associarem a nenhum clube e, no entanto, darem e pegarem carona todos os dias, ou de simplesmente dirigirem acompanhando parentes ou amigos. Tome-se, ainda, o caso da conclusão: “Quem não faz favores a Hitler associa-se a um clube de carona.” Podemos imaginar a existência de pessoas que não colaboraram nem direta nem indiretamente com Hitler e que, no entanto, não se associaram a nenhum clube. Neste caso, a conclusão seria falsa.

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Não faz sentido, porém, dizer que um argumento é “verdadeiro”, ou que ele é “falso”. Argumentos não são nem verdadeiros nem falsos. Eles podem ser bons ou ruins. Quando um argumento é bom, dizemos que ele é válido. Quando é ruim, dizemos que é inválido. Mas, o que caracteriza um argumento válido? Embora possa parecer estranho, o que torna um argumento válido não é o fato de que sua conclusão é verdadeira, ou o fato de o argumento possuir premissas verdadeiras. Um argumento pode ser válido e, mesmo assim, ter tanto as premissas quanto a conclusão falsas. Considere o seguinte exemplo: Quem gosta de comer pipoca também gosta de ouvir música clássica. Quem não toma banhos demorados gosta de comer pipoca. Portanto, quem não gosta de ouvir música clássica toma banhos demorados.

Pode parecer estranho, mas este argumento está perfeitamente ordenado. É um argumento válido. Para ver isso, basta examinar o seguinte gráfico:

A área vermelha representa aqui as pessoas que gostam de música clássica. Toda a área cinzenta do retângulo, exterior à área vermelha, representa as pessoas que não gostam de música clássica. A área laranja representa as pessoas que gostam de comer pipoca. A inclusão da elipse laranja dentro da vermelha serve,

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É fácil verificar que a área cinzenta do retângulo está toda ela incluída nessa figura com um buraco no meio, em forma de losango. Como a área cinzenta representa exatamente as pessoas que não gostam de música clássica, é fácil verificar que, nesse mundo que estamos imaginando, todas as pessoas que não gostam de música clássica tomam banhos demorados. E é exatamente isso o que diz a conclusão de nosso argumento. O que isso mostra? Mostra que, se vivêssemos num mundo no qual pessoas que gostassem de pipoca fossem todos aficionados por música clássica, e no qual pessoas que não tomassem banhos demorados adorassem pipoca, então, nesse mundo, todos os que não gostassem de música clássica tomariam banhos demo-

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rados. Ou seja, se aquilo que está dito nas premissas fosse verdadeiro, aquilo que está dito na conclusão seria verdadeiro também. É por isso que esse argumento é bom. Suas premissas são obviamente falsas. Sua conclusão também é falsa. Mas se as premissas fossem verdadeiras, a conclusão também seria. Agora, veja que interessante. Há uma correspondência perfeita entre esse argumento envolvendo pipoca, música clássica e banhos demorados, e aquele outro que vimos há pouco, envolvendo Hitler, motoristas solitários e clubes de carona. Vamos dispor os dois argumentos lado a lado para que você perceba isso: Quem dirige sozinho está fazendo um favor a Hitler.

Quem gosta de comer pipoca gosta de ouvir música clássica.

Quem não entra para um clube de carona dirige sozinho.

Quem não toma banhos demorados gosta de comer pipoca.

Quem NÃO faz favores a Hitler ENTRA para um clube de carona.

Quem NÃO gosta de ouvir música clássica TOMA banhos demorados.

Como você pode ver, os dois argumentos possuem exatamente a mesma estrutura. Para obter o segundo a partir do primeiro, basta substituir “dirigir sozinho” por “gostar de comer pipoca”, “não entrar (ou entrar) para um clube de carona” por “não tomar (ou tomar) banhos demorados”, e “estar (ou não estar) fazendo favores a Hitler” por “gostar (ou não gostar) de ouvir música clássica”. O mesmo gráfico que usamos para demonstrar que o segundo argumento é válido poderia ser usado para mostrar que o primeiro também é. Ou seja, nada nos garante que as premissas do primeiro argumento sejam verdadeiras, mas, se elas forem verdadeiras, a conclusão também será.

lógica e argumentação

neste caso, para simbolizar a primeira premissa: todos que gostam de comer pipoca gostam de ouvir música clássica. Finalmente, o losango verde representa as pessoas que não gostam de tomar banhos demorados. Sua inclusão no interior da área laranja representa, portanto, a segunda premissa: pessoas que não gostam de banhos demorados gostam de comer pipoca. Agora, repare numa coisa. Toda a área externa ao losango verde representa pessoas que gostam de tomar banhos demorados. Se você recortasse o retângulo verde do centro da figura, tudo o que sobrasse representaria o conjunto dessas pessoas que gostam de ficar horas embaixo do chuveiro:

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apelos emocionais. É o que fazem os políticos, os publicitários, os jornalistas, e até mesmo você, quando quer convencer alguém de alguma coisa. Examinemos mais uma vez nosso cartaz reproduzido à pág.77. Repare, em primeiro lugar, que as duas sentenças inscritas nele terminam com pontos de exclamação. Quem lê o cartaz deve imaginar uma voz falando alto, em tom exaltado, de comando, como se fosse um militar falando a seus subordinados. Para reforçar esse efeito, as letras foram escritas em tons altamente contrastantes. A sentença de cima, em preto, contra um fundo ocre. A de baixo, em ocre, contra um fundo preto. Isso reforça ainda mais o “tom” impositivo da sentença. Além disso, há duas palavras em destaque, escritas com letras maiúsculas: “sozinho” (“ALONE”) e “hoje” (“TODAY”). A palavra “sozinho” nos remete à situação que se deseja combater: motoristas dirigindo seus carros sozinhos, gastando um combustível precioso em época de guerra. A palavra “hoje” nos remete àquilo que o cartaz deseja provocar: uma adesão imediata aos clubes de carona. Tudo isso envolve o argumento implícito nas

lógica e argumentação

William Gottlieb/Corbis/Latinstock:

Apelos emocionais É isso o que dá força racional a um argumento. Se as pessoas que escutam meu argumento têm a tendência a considerar verdadeiras as premissas de que eu parto, e se, além disso, reconhecem como válidos os argumentos que eu uso, elas serão levadas a aceitar como verdadeiras as conclusões que eu tiro. Isso faz com que os argumentos possam ser usados como instrumentos de persuasão. Quem argumenta deve levar em conta determinadas crenças que são compartilhadas por seu “auditório”, isto é, pelas pessoas que ele deseja convencer de algo. Ele constrói, então, um argumento que toma algumas dessas crenças como premissas e procura mostrar que essas premissas obrigam quem as assume a tirar determinadas conclusões. É esse o mecanismo racional que está embutido no cartaz de propaganda que estamos analisando. Será só isso, porém? Será que argumentos só envolvem mecanismos racionais de convencimento? De maneira alguma. Quem domina a arte de argumentar sabe fazer uso de expedientes racionais, mas deve saber utilizar também uma série de

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O “american way of life”: a foto, tirada em Nova York em 1952, capta os ideiais da classe média norte-americana nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.

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sem esses outros elementos a argumentação seria ineficaz. Imagine o que aconteceria se, em vez de usar esse cartaz, o governo norte-americano tivesse utilizado este outro:

S EUA PEDE

O GOVERNO DO

DADÃOS I C S O S O D O T A EREM QUE CONSID GUMENTO R A E T IN U G E S O

Arte: Najla Bunduki

. rá favorecido s EUA ,Hitler se no el ív st bu falta Se faltar com zinhas, haverá s dirigirem so quem e qu í Se as pessoa da . Segue-se A EU s no el ív tler. de combust um favor a Hi está fazendo a um a ci so dirige sozinho as não se o de fato, quem o. nh zi so Como questã rige na solidária di e clube de caro toda pessoa qu e qu , to an rt po ir, lu nc sociar Devemos co tler deve se as r favores a Hi . ia não quer faze carona solidár a um clube de

COM A CONTAMOS E TODOS ÃO D COLABORAÇ O que você acha? A campanha teria alguma chance de sucesso? É claro que, em muitas situações, o apelo emocional é reduzido ao mínimo. Isso acontece, por exemplo, no contexto científico. Examine, digamos, o seguinte argumento: Ninguém tem mais de 5 milhões de fios de cabelo. O Rio de Janeiro tem 6 milhões de habitantes.

lógica e argumentação

duas sentenças num clima altamente emocional, dando a ele uma força redobrada. O principal elemento emocional desse cartaz, no entanto, não está inscrito nessas duas sentenças, mas sim na imagem que a acompanha. Reparem na figura do homem dirigindo. Ele tem um carro grande, espaçoso, confortável. Os espaços vazios nos bancos ressaltam o desperdício de gasolina decorrente daquela situação. Podemos imaginar outras três pessoas confortavelmente acomodadas nesse carro, o que faria outros três veículos não circularem naquele dia. Reparem na fisionomia do motorista. Ele dirige completamente despreocupado, tranquilo, alheio a qualquer coisa à sua volta. Numa época em que milhões de cidadãos norte-americanos estavam nos campos de batalha, lutando por seu país, essa passividade e despreocupação certamente assumiam um aspecto um pouco revoltante. O pensamento que se procura despertar em quem vê o cartaz é mais ou menos o seguinte: “Nossos jovens estão morrendo na Europa, e esse sujeito não se preocupa em fazer algo tão simples quanto evitar desperdício de combustível!”. Acima de tudo, porém, é a figura de Hitler, esboçada ao lado do motorista, que traz o apelo emocional mais forte. A mensagem subliminar passada ao público é mais ou menos a seguinte: “Quando se recusa a aderir à campanha em prol da carona solidária, o que você faz é dar uma carona a Adolf Hitler. Você o ajuda a atingir seus objetivos, fazendo-lhe um importante favor”. Isso tem por efeito estigmatizar o motorista que não aderia à campanha. Quem o visse desfilando sozinho com seu carro pela cidade era levado a vê-lo como uma espécie de traidor da pátria. Nada disso é dito. Isso é mostrado pelo cartaz, e é perfeitamente entendido por quem o vê. Os contornos emocionais dessa mensagem é que dão a ela grande parte de sua eficácia. A argumentação racional subjacente certamente tem um papel no convencimento do cidadão, mas

Pelo menos 2 habitantes do Rio de Janeiro têm exatamente o mesmo número de fios de cabelo.

Este é claramente um argumento válido. Suponha que você fosse o criador do mundo, e quisesse a todo custo evitar que dois habitantes do Rio de Janeiro tivessem o mesmo número de fios de cabelo.

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Você cria o primeiro habitante careca; cria o segundo com apenas um fio de cabelo; o terceiro, com apenas dois fios; o quarto, com três; e assim por diante. Quando chegar aos 5 milhões de habitantes, fará um ser humano com 4.999.999 fios de cabelo. O seguinte terá 5 milhões de fios, que é o número máximo de fios de cabelo. Portanto, quando criar o habitante seguinte, terá de necessariamente criá-lo com um número de fios de cabelo idêntico ao de alguém que você já criou antes. Não tem jeito, portanto. Se as premissas desse argumento forem verdadeiras, a conclusão também será. O argumento, portanto, é válido. A enunciação desse argumento, no entanto, não lançou mão de nenhum apelo emocional. Só a conexão racional entre as premissas e a conclusão foi levada em conta. E essa conexão, em determinados contextos, é suficiente. Não é o que acontece, porém, na maior parte das situações de nossa vida. Um artigo de jornal, por exemplo, mesmo apelando fortemente para a nossa razão, será quase sempre escrito de modo a conquistar a nossa simpatia, ressaltando determinados aspectos da questão e pondo outros na penumbra. A mesma coisa irá acontecer com um advogado defendendo seu cliente diante de um juiz.

Pense a respeito daquilo que acontece com você mesmo, em seu cotidiano. Suponha que você, no fim de semana, esteja querendo sair à noite, mas seus pais não estejam gostando dessa ideia. Você terá de argumentar com eles. Irá procurar convencê-los. Você diria que essa argumentação é puramente racional? Ou será que ela vem envolta numa boa dose de emotividade, e busca não apenas convencer racionalmente, mas também seduzir?

Faça uma campanha você mesmo Atividade em equipe e debate em sala de aula Em dupla com um colega, bolem uma peça publicitária (cartaz, painel, anúncio em revista, ou o conjunto desses elementos) com o objetivo de estimular os motoristas de automóvel a respeitar a faixa de pedestres. Em seguida, apresentem a “campanha” para os demais colegas de classe.

lógica e argumentação

A arte de persuadir

Em muitos tipos de discursos argumentativos, encontramos elementos de apelo emocional ao lado de elementos racionais. O caso extremo é aquele em que a emotividade toma conta de todo o discurso, não deixando lugar para ponderações racionais. Pense no caso de alguém se afogando e pedindo socorro. Ou, então, numa paquera. Nessas situações, buscamos atingir o outro emocionalmente, sem que nenhum tipo de argumento intervenha no processo. A pessoa que está se afogando procura expressar seu desespero, na esperança de provocar compaixão naquele que o está ouvindo.

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Numa paquera, buscamos atrair a pessoa que nos interessa, usando para isso diversos tipos de recursos: vamos bem vestidos a um local em que sabemos que a outra pessoa estará nos vendo, procuramos passar uma boa imagem de nós mesmos, procuramos falar aquilo que achamos que a outra pessoa está querendo ouvir, e assim por diante. É comum que peças publicitárias ou de propaganda misturem a argumentação racional com o apelo emocional. Considere este cartaz a seguir, confeccionado durante a Segunda Guerra Mundial:

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Duke University Libraries - Digital Collection

The Hartman Center for Sales, Advertising & Marketing History /

AGORA

AJUDE-OS A GOLPEAR OS NAZISTAS Das Praias para Berlim

5º EMPRÉSTIMO DE GUERRA

Vamos analisar o cartaz. Você não encontrará nenhum tipo de argumento implícito. O apelo, aqui, é muito mais direto. É como se o cartaz gritasse o seguinte às pessoas: “Por favor, doem dinheiro! Mais um pouco, e a guerra estará ganha. Nossos soldados precisam mais do que nunca de sua ajuda!”. Repare na cena retratada graficamente. Um soldado vai atirar uma granada numa casa tipicamente europeia, cheia de soldados inimigos. Numa das janelas, vemos o cano de um fuzil, pronto para atirar. O soldado tem que se arriscar, expondo-se a levar um tiro a qualquer momento. Ele precisa de ajuda. No entanto, os inimigos estão visivelmente acuados dentro da casa. Apesar do risco, vencê-los é uma questão de tempo. As janelas da casa estão quebradas. Se o soldado conseguir acertar a granada numa delas, a casa será tomada. Note que o apelo é totalmente emocional. Nem por isso deixa de ser eficaz e de convencer. Muitas pessoas compraram os bônus de guerra motivados por cartazes como esse.

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Democracia e retórica As relações entre argumento e emoção foram estudadas pelos filósofos desde a Antiguidade. O primeiro texto a se demorar longamente nesse assunto foi a Retórica de Aristóteles (384-322 a.C.). Em Atenas, cidade em que ele viveu grande parte da vida, as principais decisões eram tomadas por assembleias. Um cidadão, para defender seus pontos de vista, deveria ser capaz de persuadir os membros da assembleia. A retórica serve exatamente para isso: ela é a arte de persuadir. Devido à utilidade dessa arte na vida do cidadão, havia muitos professores de retórica em Atenas. No começo do seu livro, Aristóteles faz uma crítica dos métodos recomendados por muitos desses professores. Leia este trecho, e tente determinar que críticas são essas: “Os estudiosos que compilaram os atuais manuais de retórica nos apresentaram apenas de uma pequena parte dessa arte. Pois os meios de persuasão racional são os únicos elementos genuínos da retórica. Tudo o

lógica e argumentação

COMPRE MAIS BÔNUS DE GUERRA

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mais é meramente acessório. Apesar disso, esses estudiosos nada dizem a respeito dos argumentos, que são o corpo da persuasão racional; eles se ocupam muito mais de coisas que não dizem respeito ao assunto. Apelar para os preconceitos, para a compaixão, para o ódio e emoções desse tipo nada tem a ver com aquilo que é essencial à retórica. Provocar essas emoções é só um meio de manipular a pessoa que irá decidir uma questão. Daí que muitos professores e livros de retórica já não teriam mais nenhuma utilidade, se fossem sempre aplicadas as regras a esse respeito que existem em certas cidades, especialmente nas bem governadas. No fundo, todos acham que essas regras deveriam existir. Mas ocorre que apenas em alguns lugares essas regras são seguidas, como acontece no Areópago, onde não é permitido falar de coisas que não sejam essenciais à discussão do caso em pauta. Esse é um decreto e um costume muito sadio. Não é correto atrapalhar o discernimento de quem julga provocando raiva, inveja ou compaixão. Fa-

zer isso é como entortar a régua que será usada pelo carpinteiro.” (Aristóteles, Retórica, 1354a. Nossa versão indireta a partir da tradução inglesa de J. H. Freese. Cambridge; Londres: Harvard University Press; Heinemann, 1926)

Você é capaz de convencer um júri?

lógica e argumentação

Foto: CC-BY-SA-3.0 Joanbanjo

Análise de texto e debate em sala de aula

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O Aerópago era um conselho existente na Atenas antiga, formado por aristocratas que desempenhavam funções políticas. A retórica tinha papel crucial nos debates.

• Analise o trecho da Retórica aqui citado. Conduza sua análise procurando responder a essas questões: – Qual a opinião de Aristóteles a respeito do ensino da retórica em sua época? – Que críticas ele dirige aos autores de livros de retórica? – Quais são, segundo Aristóteles, os elementos essenciais da retórica? – De outro lado, quais são os elementos que não são essenciais a ela? • Em seguida, formando um par com um(a) colega, discutam juntos a seguinte situação: imaginem que vocês vivem em Atenas à época da democracia antiga, em que as audiências eram realizadas no Tribunal, ao ar livre, congregando muitos cidadãos. Suponham que um homem está sendo acusado de roubo e vocês estão tentando condená-lo. Vocês não têm provas de que ele é culpado, mas irão apelar para coisas que nada têm a ver com o roubo em si, de modo a fazer os jurados sentirem raiva desse homem. Como vocês poderiam fazer isso? Suponham então que, inversamente, vocês estão tentando absolver esse homem, mas todas as provas parecem incriminá-lo. O que vocês podem fazer para que os jurados sintam compaixão desse homem, e acabem por absolvê-lo ou ao menos atenuem a sua pena? • Apresentem aos demais colegas de classe os seus resultados.

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Aristóteles Obras de Aristóteles e sua edição crítica

384 a.C., e morreu em Atenas em 322 a.C. Foi, du-

Para a localização precisa de textos de Aris-

rante algum tempo, responsável pela educação do

tóteles, a comunidade de pesquisadores con-

jovem Alexandre, filho do rei Filipe da Macedônia,

vencionou tomar como referência a edição de

que iniciou um domínio sobre os Gregos que seu

August Immanuel Bekker das obras do filósofo.

filho iria expandir, obtendo o mais vasto império até

O motivo é simples: o filólogo alemão Bekker

então conhecido, que alcançou a Índia.

(1785-1871) foi o primeiro a realizar uma edição

teles viajou a Atenas e logo entrou para a Academia,

crítica dessas obras, a qual serviu de base para as posteriores.

escola fundada por Platão (428-348 a.C.). Nela per-

O que significa “edição crítica”? Basicamente,

maneceu por vinte anos, deixando-a apenas após a

que numa edição dessas são confrontadas e anota-

morte do mestre. Depois de retirar-se de Atenas por

das todas (ou as principais) fontes documentais de

alguns anos, retorna e funda sua própria escola, o

que dispomos de determinado texto. Como você

Liceu, no qual ensina até o fim de sua vida.

pode imaginar, pode ser bastante trabalhoso o

A filosofia de Aristóteles consiste numa tentati-

processo de confrontar essas fontes, para localizar

va de pensar questões e problemas filosóficos her-

diferenças de um documento a outro (chamadas

dados do platonismo, mas por vias e por meio de

variantes: acréscimos, supressões, discrepâncias e

soluções que frequentemente se

variações de ortografia e gramáti-

distanciam desse mesmo plato-

ca etc.). Feito isso, o editor crítico

nismo. Assim como seu mestre,

terá de decidir, com base em uma

Aristóteles foi um autêntico fun-

pesquisa mais abrangente, quais

dador de temas filosóficos, não

dessas variantes o texto principal

somente em áreas que ainda

deve seguir no corpo da página;

hoje consideramos como tipica-

as outras variantes são anotadas

mente filosóficas, como metafí-

em pé de página.

sica, lógica, ética, como também

Voltando à edição de Bekker

em assuntos que posteriormente

para as obras de Aristóteles: a

ganharam autonomia científica,

numeração ali utilizada, e que

como a física ou a biologia. Al-

depois virou padrão nas referên-

guns de seu principais escritos

cias às obras do filósofo, com-

são: Metafísica, Ética a Nicômaco, Primeiros analíticos,

põe-se de três elementos: o número da página,

Segundos analíticos, Partes dos animais, Física.

a coluna (a ou b) e a linha. Assim, para o seguin-

A influência exercida por Aristóteles na Anti-

te trecho (citado no corpo desta Unidade): “[...] é

guidade tardia, na Idade Média (especialmente a

proibido falar de coisas que não sejam essenciais à

partir da recuperação de importantes livros seus,

discussão do caso em pauta. Esse é um costume e

à época desconhecidos no Ocidente, conservados

um decreto muito sadio. Não é correto atrapalhar

por pensadores árabes) e no início da Modernidade

o discernimento de quem julga provocando raiva,

foi extraordinária, provavelmente inigualada. Sua

inveja ou compaixão”, a referência é 1354a 14-18.

metafísica e seu pensamento moral forneceram

“1354”: essa página pertence ao livro da Retóri-

elementos analíticos e conceituais para a teologia

ca (aliás, é a primeira, uma vez que, na edição de

cristã durante a Idade Média, e os principais pensa-

Bekker, o livro vai dessa página à página 1419);

dores da Modernidade nele tiveram seu grande adversário, no intuito de propor uma nova concepção de ciência. Sua ética ainda é vivamente debatida por pensadores contemporâneos.

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lógica e argumentação

Antes disso, com cerca de dezoito anos, Aristó-

Cabeça de Aristóteles em mármore . Kunsthistorisches Museum, Viena/The Bridgeman Art Library/Keystone

Nasceu na cidade de Estágira, na Macedônia, em

“a” indica que o texto referido está na primeira coluna da página. “14-18” indica as linhas da coluna em que se encontra o trecho citado.

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DOZE HOMENS E UMA SENTENÇA Há um filme norte-americano que estreou Everett Collection/Grupo Keystone

em 1957 e que se tornou muito conhecido na segunda metade do século XX, intitulado Doze homens e uma sentença. (O título original, em inglês, é um pouco diferente: Twelve angry men, que pode ser traduzido mais ou menos assim: “Doze homens irritados”.) O ator principal é Henry Fonda (1905-1982), o diretor, Sidney Lumet (1924-2011). A história é a seguinte: doze jurados examinam a acusação de homicídio feita a um réu. Inicial-

convence de que não há provas cabais de

mente, todos estão convencidos de que ele é

que ele seja realmente culpado. Entretanto,

culpado. Entretanto, um dos jurados, repre-

enfrenta dificuldades tremendas para con-

sentado por Henry Fonda, decide reexaminar

vencer os demais jurados de que estão rea-

os argumentos levantados pela promotoria a

lizando um julgamento precipitado sobre o

fim de condenar o réu e, pouco a pouco, se

caso. O desfecho é surpreendente.

lógica e argumentação

Premissas e conclusões

Existe uma distinção fundamental entre verdade e validade. Apenas sentenças podem ser verdadeiras ou falsas. Argumentos podem ser válidos ou não. Essa distinção é tão fundamental que merece ser aprofundada. As sentenças de uma língua podem ser classificadas de diversas maneiras. Um dos critérios que podemos utilizar para produzir uma classificação é a função desempenhada pelas sentenças em nossas vidas. Algumas servem para fazer perguntas – “Que horas são?”. Outras servem para dar ordens ou fazer pedidos – “Passe-me o pão, por favor”. Há sentenças que servem para pedir socorro, fazer elogios, insultar, rezar ou simplesmente brincar. Mas há um tipo especial de sentença, que merece uma consideração à parte, pela importância que tem para a vida humana em geral. São as chamadas sentenças declarativas. Uma sentença é declarativa, como o próprio nome indica, caso ela declare alguma coisa a respeito de algum assunto – caso faça aquilo que chamamos de “afirmação”.

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Por fazer uma afirmação, a sentença declarativa possui uma propriedade muito importante: ela pode ser avaliada do ponto de vista de sua verdade ou falsidade. Compare isto com o que acontece no caso dos pedidos ou das perguntas. Não faz sentido perguntar se a sentença “Que horas são?” é verdadeira ou falsa. Temos aqui uma pergunta, e perguntas não são (nem podem ser) verdadeiras ou falsas. Questões podem ser avaliadas, sim, mas não quanto à sua verdade ou falsidade. Elas podem ser convenientes ou inconvenientes, precisas ou confusas, fáceis ou complicadas, mas não podem ser verdadeiras ou falsas. O mesmo pode ser dito dos pedidos, das preces etc. Só sentenças declarativas podem ser avaliadas dessa forma. Por exemplo, a sentença: “Há 15 livros espalhados sobre a minha mesa”

pode ser avaliada do ponto de vista de sua verdade ou falsidade (basta verificar se existem livros espalhados sobre a

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Há 15 livros sobre a mesa. Há pelo menos 50 livros na estante. Portanto, há menos livros sobre a mesa do que na estante.

Não se pode subestimar a importância que tem a palavra “portanto” nestes contextos. Ela marca a passagem das premissas de um argumento à sua conclusão. As premissas são as afirmações de que partimos. A conclusão é a afirmação a que chegamos. A palavra “portanto” marca explicitamente essa relação. Ela não é, aliás, a única expressão capaz de fazer isso. Em vez de “portanto”, poderíamos usar uma série de outras expressões: Segue-se daí que... Podemos concluir daí que...

... há menos livros sobre a mesa do que na estante

Em consequência disso, ...

Essa articulação entre as premissas e a conclusão pode inclusive vir marcada de um modo mais sutil. Poderíamos expressar o mesmo argumento que acabamos

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de examinar enunciando a conclusão antes das premissas: Há menos livros sobre a mesa do que na estante, pois sobre a mesa há 15 livros e na estante há mais de 50.

Neste caso, a palavra “pois” indica que, depois dela, serão dadas as razões que eu tenho para afirmar que há menos livros sobre a mesa do que na estante. Essas razões não são outra coisa senão as premissas que me permitiram tirar a conclusão que tirei. E a lista não para aqui. Outras construções poderiam ser usadas, todas elas sinalizando essa mesma articulação entre sentenças que é característica de um argumento: a relação entre as premissas de que eu parto e a conclusão a que eu chego. É essa relação que é avaliada, quando avaliamos um argumento. O que perguntamos basicamente é se as premissas dão ou não suporte à conclusão – se elas permitem que eu conclua o que concluí. No caso que examinamos, isso claramente acontece: se é verdade que há 15 livros sobre a mesa, e se é verdade que há mais de 50 livros na estante, então tem de ser verdade que há mais livros na estante do que sobre a mesa. É impossível que essas premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Se estou disposto a afirmar as premissas, tenho de estar disposto a afirmar a conclusão. Por isso dizemos que esse argumento é válido. Nesse caso, a validade do argumento dependia completamente do uso que fazemos dos números naturais (como 15 e 50) e também de palavras como “mais” e “menos”. Se há 15 objetos de tipo A (“livros sobre a mesa”) e mais de 50 objetos de tipo B (“livros na estante”), então há menos objetos de tipo A do que objetos de tipo B: isso vale para quaisquer objetos que estejamos contando. A relação entre as premissas e a conclusão será sempre boa: se supusermos que as premissas são verdadeiras, seremos obrigados a supor que a conclusão também é.

lógica e argumentação

minha mesa, e contá-los). Por isso mesmo, é chamada de sentença declarativa. Para começo de conversa, um argumento não é uma sentença, mas uma articulação de sentenças declarativas. Com isso, queremos dizer duas coisas. Em primeiro lugar, que um argumento sempre envolve mais de uma sentença declarativa. Uma sentença sozinha, isolada, que não envolva nenhuma outra sentença, jamais será um argumento. Além disso, porém, queremos dizer algo ainda mais importante. Um argumento não é um amontoado de sentenças. Um argumento deve apresentar sentenças articuladas entre si, relacionadas de um determinado modo. De que modo? Neste ponto, é melhor recorrermos a um exemplo típico de argumento:

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Sentenças universais, particulares e singulares Em muitas ocasiões, porém, não utilizamos números para nos referirmos a objetos de um certo tipo. Veja o que acontece neste argumento: Todo contador tem uma boa memória. Há pelo menos um atleta que não tem uma boa memória. Há pelo menos um atleta que não é contador.

lógica e argumentação

Ele é tão válido quando o argumento dos livros sobre a mesa, que vimos mais acima. A situação descrita nessas duas premissas pode ser representada graficamente do seguinte modo:

A inclusão do círculo vermelho no círculo verde representa aqui a sentença “Todo contador tem boa memória”, e o “X” posto na área cinzenta representa um atleta que não tem boa memória. Ora, se esse X é um atleta que não tem boa memória, então fica evidente que ele também não é um contador: se existem atletas fora do círculo das pessoas de boa memória (como diz a segunda premissa), esses atletas têm de estar fora do círculo dos contadores (como diz a conclusão), já que (como diz a primeira premissa) todo contador tem boa memória. Como você percebe, aqui não temos números organizando o nosso argumento. Em seu lugar, temos expressões como “todo”, “pelo menos um” e “não”. As premissas não dizem quantos contadores existem, ou quantas são as pessoas de boa memória. Diz apenas que (sejam elas quantas forem) todas as pessoas pertencentes ao primeiro grupo pertencem também ao segundo.

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Sentenças que se referem a todos os elementos de um determinado grupo são chamadas de universais. Sentenças que se referem a apenas alguns desses elementos são chamadas de particulares. Finalmente, temos sentenças que poderíamos chamar de individuais ou singulares, pois se referem a um indivíduo especificamente. Por exemplo: Ludovico é contador.

Não estamos falando aqui simplesmente que “alguém” é contador, sem especificar quem. Estamos nos referindo a uma pessoa específica, a um indivíduo. Existe um número enorme de argumentos envolvendo sentenças universais, particulares e singulares, tanto afirmativas quanto negativas. Esta seção é dedicada ao estudo desses argumentos e do funcionamento do vocabulário lógico associado a eles. A primeira coisa a ser notada é que existem inúmeras maneiras de expressar sentenças universais e particulares. Em vez de dizer: Todo contador tem boa memória.

podemos dizer: Todos os contadores têm boa memória. Contadores têm boa memória. Não há contador que não tenha boa memória. Os contadores têm boa memória.

E assim por diante. É bem verdade que essa equivalência não é perfeita. Cada uma dessas variantes possui conotações específicas, que variam de um contexto para outro. Assim, é bastante comum usarmos uma sentença como a segunda e a última de nossa lista para dizer que, em geral, em sua maioria, os contadores têm boa memória. Outras vezes, a pessoa está querendo se referir a todos, sem exceção: Tubarões são carnívoros. Os tubarões são carnívoros.

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Alguns atletas não têm boa memória. Há atletas que não têm boa memória. Algum atleta não tem boa memória. Existe pelo menos um atleta que não tem boa memória.

Novamente, existem diferenças sutis entre esses enunciados. Note que a última sentença menciona “pelo menos um atleta”, ao passo que as outras duas primeiras falam em “atletas” e “alguns atletas”, no plural. Em determinados contextos, o uso do plural nesse tipo de sentença deve ser levado em conta; noutros, ele não tem maior importância. Se digo que alguns alunos serão selecionados para ganhar uma bolsa de estudo, e só um aluno for selecionado, haverá dúvidas a respeito da natureza de minha promessa. Dizendo aquilo, eu havia prometido que pelo menos dois alunos seriam selecionados; ou o uso do plural, nesse caso, não deve ser levado ao pé da letra? Novamente, só o contexto poderá dizer o que está acontecendo em cada caso. No que diz respeito à lógica, porém, essas coisas têm de estar muito bem determinadas, pois dizer “pelo menos um” é muito diferente de dizer “pelo menos dois” ou “pelo menos três”. Quem tem pelo menos dois amigos, tem pelo menos um; mas é possível ter pelo menos um sem que se tenha pelo menos dois. É preciso distinguir cuidadosamente esses pequenos detalhes. Para isso, vamos fazer uma convenção. Além dos casos em que estamos falando de um único indivíduo, estudaremos, nesta seção, casos em que nos referimos a todos os membros de um certo grupo, sem

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exceção, e casos em que nos referimos a pelo menos um membro de um certo grupo. Se estamos falando de pelo menos um membro de certo grupo, há duas possibilidades. Podemos afirmar alguma coisa desse indivíduo, ou negar alguma coisa a respeito dele. Essa diferença pode ser facilmente expressa, em português, mediante o uso da palavra “não”. Compare: Algum contador tem boa memória. Algum contador não tem boa memória.

Da mesma forma, podemos afirmar ou negar algo a respeito de todos os membros de um grupo. No primeiro caso, usaremos a palavra “todo”: Todo contador tem boa memória.

No segundo caso, se usarmos a palavra “todo” obteremos uma construção que não soa muito bem em português: Todo contador não tem boa memória.

Embora não esteja errado nos expressarmos dessa maneira, é muito mais simples e mais usual recorrermos, nesse caso, à palavra “nenhum”: Nenhum contador tem boa memória.

A sentença tem exatamente o sentido que pretendíamos que ela tivesse. Estamos falando a respeito de todos os contadores, e estamos dizendo que todos eles, sem exceção, são desprovidos de boa memória. Negação de sentenças Agora, veja que coisa interessante. Normalmente, a palavra “não” é utilizada para construir a negação de uma certa sentença:

lógica e argumentação

Ninguém imaginaria, nesse caso, que a pessoa esteja admitindo a hipótese de que alguns tubarões sejam vegetarianos. O que se está querendo dizer, claramente, é que todos são carnívoros. Da mesma forma, os enunciados particulares podem ser expressos de muitas formas:

Fui à feira. / Não fui à feira. Está chovendo. / Não está chovendo. Ludovico é contador. / Ludovico não é contador.

Uma sentença é a negação de uma outra se a verdade de uma implica a falsidade da outra e vice-versa. Se é verdade que fui à feira, é falso dizer que não fui. Se é verdade

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que não fui, é falso dizer que fui. Se é verdade que exatamente esse pedaço do chão está molhado, é falso dizer que não está. Se é verdade que não está molhado, é falso dizer que está. Uma sentença e sua negação sempre devem ter valores de verdade opostos. Não é isso o que acontece, porém, com as sentenças: Algum contador tem boa memória.

vá criar o mundo novamente. Você quer criar um mundo no qual seja falso que algum contador tenha boa memória. Nesse mundo, nenhum contador poderia ter boa memória. Por outro lado, num mundo no qual é verdadeiro que existe pelo menos um contador dotado de boa memória, é falso que nenhum contador tenha memória boa. Isso nos mostra que a negação de: Algum contador tem boa memória

Algum contador não tem boa memória.

Note que estas sentenças podem perfeitamente ser verdadeiras ao mesmo tempo. Como questão de fato, aliás, é bem provável que haja contadores dos dois tipos: os que têm boa memória e os que não têm. Se é assim, então devemos concluir que a segunda sentença não é a negação da primeira. Nesse caso, não basta acrescentar um “não” à sentença para obtermos a sua negação. Temos que recorrer a algum outro meio. Para descobrir qual é a negação das duas sentenças acima, vamos imaginar que você

lógica e argumentação

Exercício individual em sala de aula

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Veja se consegue determinar qual é a negação das seguintes sentenças: 1) Todo cantor que está iniciando sua carreira gosta de ser aplaudido. 2) Algum dos convidados não estava presente. 3) Há pelo menos um jogador que não irá receber a medalha. 4) Ninguém gosta de ser traído. 5) Alguém não trouxe os documentos que pedi. 6) Carlos chegará da Inglaterra amanhã ao meio-dia. 7) Todos estão ansiosos com as provas. 8) Nem tudo que reluz é ouro. 9) Quem desdenha quer comprar. 10) Há males que vêm para o bem.

não é Algum contador não tem boa memória

mas sim Nenhum contador tem boa memória

Da mesma forma, a negação de Algum contador não tem boa memória

é Todo contador tem boa memória;

pois a única forma de criar um mundo no qual seja falso que exista um contador com boa memória é criar um mundo no qual todos tenham. Temos, portanto, quatro tipos de sentenças a considerar. Elas se opõem duas a duas: Todo contador tem boa memória.

Algum contador tem boa memória.

x

Nenhum contador tem boa memória.

Algum contador não tem boa memória.

A cruz no meio desse diagrama indica as proposições que se contradizem, isto é, que são a negação uma da outra. Utilizando a terminologia que acabamos de adotar, chegaremos ao seguinte gráfico:

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PARTICULAR AFIRMATIVA

x

UNIVERSAL NEGATIVA

PARTICULAR NEGATIVA

A negação de uma sentença universal afirmativa é sempre a sentença particular negativa correspondente; e a negação de uma sentença universal negativa é sempre a sentença particular afirmativa correspondente. Esse esquema com os quatro tipos principais de sentenças foi proposto pela primeira vez por Aristóteles[+], em seu Tratado da interpretação. Ele ficou conhecido com o nome de “quadrado da oposição”, pois nele estão representadas as principais oposições existentes entre proposições desse tipo. Nas diagonais, temos sentenças contraditórias entre si, isto é, sentenças que se negam umas às outras. À esquerda, temos proposições afirmativas; à direita, proposições negativas. Acima, temos proposições universais; abaixo, proposições particulares. Como argumentos funcionam Toda essa discussão teve início com o estudo de argumentos que estão baseados no uso de palavras como “algum”, “todo”, “nenhum” e “não”. Agora que estudamos em detalhe o funcionamento de sentenças nas quais essas palavras aparecem, estamos em condições de compreender melhor como é que aqueles argumentos funcionam. Para isso, precisaremos de um modo uniforme de se representar as sentenças do quadrado da oposição. Usaremos diagramas semelhantes ao que usamos no começo deste módulo, mas que se aplicam a um número muito maior de casos.

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Aqui, a área cinzenta representa a inexistência de qualquer coisa nessa região do círculo S que está fora do círculo P. Representa o fato, portanto, de que não existe nenhum S que não seja P, ou, como costumamos dizer, o fato de que todo S é P. Sentenças universais negativas, do tipo “Nenhum S é P”, serão simbolizadas assim:

A região cinzenta, agora, está posta na intersecção entre S e P, mostrando que não existe nenhum elemento comum às duas regiões. Em palavras, é isso que expressaríamos dizendo: “Nenhum S é P”. Para simbolizar as sentenças particulares, utilizaremos um “x” posto dentro de uma certa região do círculo para indicar que, ali, existe pelo menos um indivíduo. Por exemplo, para dizermos que “Algum S é P”, utilizaremos o diagrama:

lógica e argumentação

UNIVERSAL AFIRMATIVA

Sentenças universais afirmativas, da forma “Todo S é P”, serão representadas do seguinte modo:

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Finalmente, para dizer que “Algum S não é P”, poremos o “x” na região de S que é exterior a P, indicando que existe pelo menos um elemento que está incluído em S, mas não em P:

mos, então, de uma figura na qual existem três círculos entrelaçados: A

C

M

Usando esses diagramas, podemos testar um grande número de argumentos que estão baseados no uso das palavras “todo”, “algum”, “nenhum” e “não”. Vamos voltar ao argumento que estudamos no início deste módulo e ver como ele poderia ser simbolizado com o auxílio de nossos diagramas. O argumento era o seguinte: Todo contador tem uma boa memória. Há pelo menos um atleta que não tem uma boa memória. Portanto, há pelo menos um atleta que não é contador.

Utilizando as letras “C”, “M” e “A” para representar respectivamente as expressões “contador”, “pessoa com boa memória” e “atleta”, teríamos um argumento com a seguinte forma:

Agora, devemos representar as premissas do argumento nesse diagrama. Por onde começar? Pela primeira premissa ou pela segunda? Normalmente, tanto faz. No entanto, como existe aqui uma premissa particular e uma universal, é sempre melhor (e causa menos problemas) começar pela representação da universal. Representemos, então, a primeira premissa, afirmando que todo contador (C) tem boa memória (M). Os círculos que nos interessam são apenas os círculos de C e de M. Para dizer que todo C é M, devemos pintar de cinza toda a região de C que está fora de M. O resultado será este: A

C

Todo C é M. Algum A não é M.

lógica e argumentação

Portanto, algum A não é C.

Sabemos como representar a primeira premissa. Sabemos como representar a segunda premissa. E também sabemos como representar a conclusão. Cada uma dessas sentenças corresponde a um dos diagramas que acabamos de examinar. Como poderíamos, porém, representar as duas premissas ao mesmo tempo? Elas não envolvem dois círculos apenas. Envolvem três: o círculo dos contadores (C), o círculo das pessoas com boa memória (M), e o círculo dos atletas (A). Partire-

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M

Agora, vamos representar a segunda premissa – uma sentença particular negativa – nesse mesmo diagrama. Ela diz que existe pelo menos um atleta (A) que não tem boa memória (M). Tudo o que temos a fazer é ir até o círculo dos atletas e pôr uma letra “x” na região que está fora do círculo das pessoas que têm boa memória.

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Portanto, há pelo menos um atleta que é contador.

O diagrama ficará assim: A

C

(Repare que só retiramos a palavra “não” da segunda premissa e da conclusão.) Será que esse argumento é válido? Vamos primeiro esquematizá-lo, usando as mesmas letras que usamos antes: Todo C é M. Algum A é M.

Pronto. Aí estão as duas premissas representadas. Como saber se o argumento é válido? Vamos lembrar o que é necessário para que um argumento seja válido. Se um argumento é válido, deve ser impossível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. Quando um argumento é válido, se imaginarmos as premissas verdadeiras, somos obrigados a imaginar que a conclusão é verdadeira também. Estamos diante de uma “figura” daquilo que as duas primeiras premissas afirmam que acontece: todos os contadores terem boa memória e existir pelo menos um atleta que não tenha boa memória. Vejamos se é possível imaginar que a conclusão do argumento é falsa. Ela afirma que existe pelo menos um atleta que não é contador. Ora, é fácil ver que o diagrama das premissas me obriga a aceitar essa conclusão como verdadeira. O mesmo “x” que usamos para representar a existência de um atleta que não tem boa memória está ali representando a existência de um atleta que não é contador. É impossível, portanto, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. O argumento é válido. Considere, agora, um outro argumento muito semelhante a esse primeiro:

Portanto, algum A é C.

Notem que o diagrama para a primeira premissa não muda. Só teremos que mudar a simbolização da segunda premissa. Ao invés de pormos o “x” na região de A exterior a M, devemos pôr o “x” na região comum aos atletas e aos homens que têm boa memória. No entanto, existem aqui duas possibilidades. Reparem que essa região comum tem duas sub-regiões: A

C

M

E agora? Onde posicionar o nosso “x”? Na região vermelha, ou na região azul? A segunda premissa não me diz nada a respeito. Ela só me diz que existe um atleta que tem boa memória. Não me diz se esse atleta de boa memória está fora do círculo dos contadores... A

lógica e argumentação

M

C

Todo contador tem uma boa memória. Há pelo menos um atleta que tem uma boa memória.

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M

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... ou dentro dele: A

C

Argumentos válidos? Desenvolvimento individual por escrito.

M

Como a premissa não diz nada, devemos adotar uma solução neutra: poremos o nosso “x” em cima da linha, indicando que não sabemos se ele está dentro ou fora do círculo dos contadores: A

C

M

lógica e argumentação

Pronto. Agora, temos uma boa representação de nossas duas premissas. A pergunta que devemos fazer é a seguinte: se isso que o gráfico representa fosse verdadeiro, seria possível que a conclusão fosse falsa? A resposta é claramente “sim”. A conclusão afirma que existe pelo menos um contador que tem boa memória. Nosso gráfico está afirmando isso? É claro que não. Nosso gráfico nos mostra exatamente o contrário: estamos em dúvida a respeito disso. As premissas não nos obrigam a posicionar o “x” no interior do círculo dos contadores. O “x” pode tanto estar dentro daquela região, quanto fora dela. Portanto, é perfeitamente possível que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão seja falsa. O argumento não é válido.

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Vamos agora testar a validade dos seguintes argumentos: 1) Não há médico competente que não seja estudioso. Nenhum médico que trabalha nesse hospital é competente. Portanto, nenhum médico que trabalha nesse hospital é estudioso. 2) Não há médico estudioso que não seja competente. Nenhum médico que trabalha nesse hospital é competente. Portanto, nenhum médico que trabalha nesse hospital é estudioso. 3) Todos os rios desta região estão poluídos, embora nem todos sejam perigosos. Pode-se concluir daí que nenhum rio poluído desta região é perigoso. 4) Não há rio que seja seguro, embora alguns sejam fascinantes. Isso mostra que nem tudo que é fascinante é também seguro. 5) Todos os policiais que faziam a ronda da cidade a cavalo despertavam o orgulho de seus familiares. Todo aspirante que se classificava entre os dez melhores alunos do curso passava a fazer a ronda da cidade a cavalo. Pode-se concluir daí que todo policial que despertava o orgulho de seus familiares havia se classificado entre os dez melhores alunos do curso. 6) Nem tudo que reluz é de ouro, e nem tudo que é de ouro nos traz felicidade. Portanto, nem tudo que reluz nos traz felicidade.

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ALGUNS PRINCÍPIOS DE LÓGICA FORMAL A lógica contemporânea desenvolveu-se a

Uma característica dessas linguagens artifi-

partir dos trabalhos de autores como Gottlob

ciais é possuir símbolos especiais corresponden-

Frege (1848-1925) e Bertrand Russell (1872-1970),

tes a palavras e expressões da linguagem coti-

que criaram linguagens artificiais para codificar os

diana que são fundamentais para entendermos

processos de inferência. Sentenças da linguagem

os processos de inferência. Abaixo estão algu-

cotidiana podem ser reescritas nessas linguagens

mas das principais palavras desse tipo e alguns

artificiais – adquirindo um aspecto um pouco es-

dos símbolos usados nas linguagens artificiais

tranho para não especialistas, mas muito útil para

da lógica para representá-las. Vejamos como

se testar se uma inferência é válida ou não.

funciona cada um desses símbolos.

Nome formal

Símbolo

Negação Conjunção

¬ ⋀

Interpretação na linguagem comum “não” “e”

Disjunção

“ou”

Condicional

“se... então”

Bicondicional

“se e somente se”

Negação (“não”)

Conjunção (“e”)

É a operação que inverte o valor de verdade de

A a palavra “e” também é importante para a lógica.

uma proposição. Se p for uma proposição qualquer,

Uma proposição na qual duas outras proposições

então, se p for verdadeira, ¬p será uma proposição

estão unidas pela palavra “e” é chamada na lógica de

falsa; se p for falsa, ¬p será verdadeira. Podemos

“conjunção”. Uma conjunção só é verdadeira caso

representar o funcionamento desse símbolo lógico

as duas proposições conectadas pela palavra “e”

por meio de uma tabela de verdade:

forem verdadeiras. Um dos símbolos comumente usados pelos lógicos para simbolizar a conjunção é

⋀. Eis a tabela de verdade de uma conjunção:

p

¬p

V

F

p

q

F

V

p⋀q

V

V

V

V

F

F

A tabela nos mostra o funcionamento do

F

V

F

símbolo ¬, que como vimos corresponde à pa-

F

F

F

lavra “não” da linguagem cotidiana. Na coluna da esquerda, listamos os dois valores de ver-

Como se vê, a conjunção “p ⋀ q” só é verda-

dade que a proposição p pode possuir: ou ela

deira na primeira linha, quando tanto p quanto

é verdadeira (V), ou é falsa (F). Na coluna da

q são verdadeiras. Em todas as outras linhas, a

direita, você vê o valor que a negação assume

conjunção é falsa.

em cada caso: falsa quando p é verdadeira, e verdadeira quando p é falsa.

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Vamos imaginar que no lugar da letra “p” tenhamos a proposição “5 é um número primo”

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ALGUNS PRINCÍPIOS DE LÓGICA FORMAL e que no lugar da letra “q” tenhamos a proposição “9 é múltiplo de 2”. A conjunção p ⋀ q corresponderia à sentença: “5 é um número primo ⋀ 9 é múltiplo de 2”

Recorrendo mais uma vez a nosso exemplo, obteremos a proposição: “5 é um número primo ⟶ 9 é múltiplo de 2” Esta é uma proposição falsa, pois “5 é um nú-

que é falsa, pois a proposição correspondente à

mero primo” (o antecedente) é uma proposição

letra “q” é falsa. Temos, portanto, o caso corres-

verdadeira e “9 é múltiplo de 2” (o consequente)

pondente à segunda linha da tabela.

é uma proposição falsa. Se invertermos a posição do antecedente e do consequente, porém, tudo

Disjunção (“ou”) Para que uma disjunção seja verdadeira, basta que apenas um dos elementos conectados seja verdadeiro.

muda. A proposição: “9 é múltiplo de 2 ⟶ 5 é um número primo” é verdadeira, pois tem antecedente falso e consequente verdadeiro, o que corresponde à terceira linha de nossa tabela.

p

q

p⋁q

V

V

V

falsas, o condicional será verdadeiro, como se

V

F

V

pode ver consultando a última linha da tabela.

F

V

V

F

F

F

Note que, se tivermos duas proposições

Assim, muito embora isso pareça estranho, a proposição: “A Lua é de queijo ⟶ 2+3=77” é uma proposição verdadeira, pois tem antece-

Colocando as mesmas proposições no lugar

dente falso e consequente falso.

das letras “p” e “q”, obteríamos agora a proposição “5 é um número primo ⋁ 9 é múltiplo de 2” que é uma proposição verdadeira, conforme se pode verificar na segunda linha da tabela.

Bicondicional (“se e somente se”) Um bicondicional só será verdadeiro se o valor das duas sentenças conectadas for o mesmo.

Condicional (“se... então”) Um enunciado condicional tem a forma “se p, então q”, e é simbolizado nas linguagens artifi-

x

y

x⟷y

V

V

V

mada de “antecedente”; a que é posta depois é

V

F

F

chamada de “consequente”. Um condicional só

F

V

F

é falso caso seu antecedente seja verdadeiro e

F

F

V

ciais da lógica por meio do símbolo

⟶. A pro-

posição que é posta antes desse símbolo é cha-

seu consequente seja falso. Em todos os outros casos, o condicional é verdadeiro. Vejamos isso numa tabela de verdade: Note que a proposição

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p

q

p⟶q

V

V

V

V

F

F

F

V

V

F

F

V

“5 é um número primo

⟷ 9 é múltiplo de 2”

é falsa, pois a primeira proposição é verdadeira e a segunda é falsa. Já a proposição “A Lua é de queijo ⟷ 2+3=77” é verdadeira, pois as duas proposições têm o mesmo valor de verdade (ambas são falsas).

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Expressões lógicas no nosso cotidiano

Quando fazemos pesquisas na internet ou em outros bancos de dados, muitas vezes usamos expressões lógicas. Digamos que você queira lembrar o nome de uma canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiro”, ou conhecer gravações dela. Se, num site de buscas ou banco de dados, você digitar pandeiro OR(melodia) encontrará milhares de resultados que não lhe interessam. Isso porque o motor de busca utilizou a disjunção, o operador “ou” (⋁), e trará resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro ou melodia. Você pode direcionar melhor sua pesquisa, por exemplo digitando no campo de busca: pandeiro AND(melodia) ou pandeiro +melodia O que significa essa expressão? Que estamos interessados em todos resultados que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. Não queremos registros que tragam apenas um deles, só “pandeiro” sem “melodia”, nem apenas “melodia” sem “pandeiro”.

Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não está mesmo interessado no grande artista paraibano Jackson do Pandeiro (nome artístico de José Gomes Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de restringir ainda mais os resultados de sua busca, por meio da expressão: pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson) ou pandeiro +melodia -Jackson • No exemplo acima, que operadores lógicos foram utilizados? Tente “traduzi-lo” para a linguagem lógica formal, utilizando os operadores e símbolos explicados no box sobre conectivos lógicos. (Um aviso: motores de busca da internet não costumam reconhecer esses símbolos; o objetivo é somente compreender quais são esses conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prática.) • Em seguida, construa outras expressões de busca, mais complexas. Por exemplo: você está interessado em resultados que tenham a ver com “mangueira”, que podem ser ou não referentes à escola de samba carioca, mas que não tenham a ver diretamente com a árvore frutífera do gênero Mangifera. Como deveríamos formular a expressão de busca? Há mais de um modo de fazê-lo? Experimente formular, por escrito, duas outras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

lógica e argumentação

Pesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Falácia e argumento De acordo com a noção mais geral de “argumento”, toda pessoa que argumenta está sempre tentando persuadir um determinado “auditório”. Esse auditório pode ter dimensões muito diferentes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

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apenas uma pessoa – tome como exemplo um vendedor que tenta convencer você a comprar um determinado produto numa loja. O auditório de quem argumenta pode também ser composto por um pequeno grupo de pessoas – é o que acontece quando o professor de matemática

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lógica e argumentação

demonstra um teorema na lousa. E pode Portanto, se o que as premissas dizem é também ser composto por milhões e miverdadeiro, o que a conclusão diz deve lhões de pessoas – pense, por exemplo, ser verdadeiro também – o saldo de Antôem campanhas políticas ou publicitárias. nio deve ser superior ao de Vicente. Em todos esses casos, temos uma pesCompare esse argumento que acabasoa (ou um grupo de pessoas) tentando mos de examinar com este outro: “Todos convencer seus ouvintes (ou leitores) a os que foram à estreia da companhia de respeito de alguma coisa, e via de regra teatro puderam formar uma opinião bem quem procura convencer lançará mão de fundamentada a respeito do desempeargumentos: tentará levar seu auditório a nho dos atores. Alguns críticos não foram aceitar uma determinada conclusão tendo à estreia. A opinião de alguns críticos, como base determinadas premissas. portanto, não está bem fundamentada.” As premissas são as sentenças de que O que você acha? Este argumento é tanto eu quanto o meu bom? É fácil mostrar auditório partimos. A que não. conclusão é a sentenSuponhamos que seça a que pretendo fazer ja mesmo verdade que Nem todo argumento meu auditório chegar. A todos os que foram à que parece bom questão, porém, é que estreia puderam formar realmente é. Muitas nem todo argumento é uma opinião bem funbom, e nem todo bom damentada a respeito vezes pensamos argumento tem a mesma do desempenho dos atopoder chegar a força. Um argumento é res. É claro que isto não certa conclusão bom caso suas premisprecisa ser verdadeiro. sas efetivamente levem à Alguém pode ir à estreia pelas premissas, conclusão desejada. e dormir durante todo o mas na verdade não O problema é que nem espetáculo, ou pode ter podemos. todo argumento que pareuma ligação afetiva tão ce bom é realmente bom. forte com um dos atores Há argumentos que nos que se mostre incapaz enganam. Muitas vezes, de formar uma opinião somos levados a pensar que estamos autominimamente isenta. Suponhamos, enrizados pelas premissas a chegar a uma certretanto, que a premissa seja verdadeita conclusão, mas na verdade não estamos. ra – suponhamos que todas as pessoas Vejamos como isso acontece. que foram à estreia saíram do teatro em Considere, em primeiro lugar, o secondições de formar uma opinião funguinte argumento: “O saldo bancário de damentada a respeito do desempenho Carlos, embora positivo, é metade do dos atores. Suponhamos que a segunda premissa saldo de Antônio. O saldo de Vicente é também seja verdadeira e que alguns crí1/3 superior ao de Carlos. É óbvio, porticos teatrais não tenham ido à estreia da tanto, que o saldo de Antônio é superior peça em questão. Novamente, é claro que ao de Vicente.” isto pode ser falso. Supondo, no entanto, O argumento é irretocável. Se é verdaque as duas premissas sejam verdadeiras, de que o saldo de Carlos, embora positiserá que a conclusão tem que ser verdavo, é metade do saldo de Antônio, então deira também? É claro que não. Supoo saldo de Vicente teria de ser o dobro do nhamos que os críticos a que se refere a saldo de Carlos para alcançar o de Antôconclusão sejam idênticos àqueles mennio. Como é só 1/3 superior, não alcança.

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tarmos a conclusão. Se a aceitamos, é por outras razões, que não aquelas apresentadas nas premissas. Como você reparou, porém, os dois argumentos são muito parecidos. Eles só diferem no detalhe – neste caso, pela substituição da palavra “todos” pela palavra “somente”. Isso faz com que o primeiro argumento nos engane. Ele parece ser bom, embora na verdade não o seja. Argumentos assim, que parecem ser bons, mas não são, nós chamaremos de falácias. É fundamental que você aprenda a reconhecer uma falácia. É por meio das falácias que somos enganados – às vezes até por nós mesmos. Em todos os contextos em que são utilizados argumentos, quem argumenta pode muito bem lançar mão de falácias, fazendo-nos tirar conclusões equivocadas que poderíamos perfeitamente evitar. É por isso que o estudo das falácias é tão importante. Conhecendo-as, seremos capazes de identificar um mau argumento e contestá-lo (se ele nos for apresentado por outra pessoa), ou simplesmente não usá-lo (caso nós mesmos o estejamos querendo apresentar). Falácia formal A falácia encontrada no argumento que apresentamos acima envolve uma forma argumentativa que é falaciosa. Isso quer dizer que ela pertence a um grupo de argumentos caracterizado por uma determinada estrutura. Essa estrutura pode ser melhor observada se empregarmos variáveis. Considere o seguinte esquema: Todo(a) A é B. Algum(a) C não é A.

lógica e argumentação

cionados na segunda premissa (o que não é de modo algum necessário). Mesmo assim, um crítico que não tivesse ido à estreia poderia ter ido ao ensaio geral da peça, ou então a uma outra apresentação qualquer, no segundo ou no terceiro dia. Poderia também ter formado sua opinião conversando com colegas seus, nos quais confia, que foram à peça e estavam em condições de lhe dar uma descrição detalhada do desempenho de cada um dos atores. Para que você perceba melhor a situação envolvida, compare o argumento que acabamos de analisar com este outro: “Somente os que foram à estreia da companhia de teatro puderam formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desempenho dos atores. Alguns críticos não foram à estreia. A opinião de alguns críticos, portanto, não está bem fundamentada.” Repare que a única diferença em relação ao argumento anterior é o uso da palavra “somente” ao invés da palavra “todos”. A diferença pode parecer pequena, mas, neste caso, é decisiva. Suponha que a primeira premissa seja verdadeira: que apenas (apenas, veja bem!) as pessoas que foram à estreia estavam em condições de formar uma opinião fundamentada sobre o desempenho dos atores. Ora, se isso for verdade, e se também for verdade que alguns críticos não foram à estreia, a conclusão inevitável é que esses críticos não estavam em condições de dar opiniões fundamentadas a respeito do desempenho dos atores. Aqui, não há escapatória. O argumento é bom. Se suas premissas forem verdadeiras, a conclusão também será verdadeira. Existe, portanto, uma certa relação entre as premissas e a conclusão, no caso do primeiro argumento, que não existe no caso do segundo. No segundo caso, as premissas dão apoio à conclusão, podem ser citadas como evidências em favor dela, como razões para aceitá-la. No primeiro caso, não. As premissas não fornecem apoio para acei-

Portanto, algum(a) C não é B.

Neste esquema, a letra “A” está no lugar da expressão “pessoa que foi à estreia da companhia de teatro”; a letra B, no lugar de “pessoa que podia formar uma opinião bem fundamentada a respeito do desempenho dos atores”; e a letra “C”, no lugar de “crítico”. Nenhum argumento que tenha

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essa forma é válido. Todos eles são falaciosos, o que você pode constatar facilmente fazendo um diagrama. Simbolizemos primeiramente a premissa universal, afirmando que todo A é B: A

B

C

Agora, simbolizemos a segunda premissa, afirmando que algum C não é A. Para isso, faremos um “X” na região do círculo C que está fora do círculo A. Ora, se você observar bem, verá que há duas regiões em que esse “X” poderia ser posto: dentro da parte que é comum a C e a B, ou então dentro da parte que pertence exclusivamente ao círculo C. Ora, nossa premissa não me permite decidir entre uma região e a outra: ela me diz que algum C não é A, mas não me diz se esse C que não está incluso em A pertence a B ou não. A premissa não toma nenhuma decisão a esse respeito e, por isso, nós também não devemos tomar. Vamos posicionar o “X” em cima da linha divisória, para mostrar que não temos como saber se esse X pertence a B ou não:

lógica e argumentação

A

B

C

Pronto. Esse diagrama é o “retrato” das duas premissas de qualquer argumento que tenha a mesma forma da falácia apresentada acima. Nele, podemos ver

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claramente que a conclusão não está representada. A conclusão afirmava que algum C não é B, e o diagrama mostra que as premissas simplesmente não me permitem decidir se isso é verdade ou não. Todo e qualquer argumento que tenha essa forma, portanto, é falacioso, e é por isso que chamamos esse tipo de falácia de “falácia formal”. Sentenças com termos equívocos Nem toda falácia, no entanto, é formal. As mais importantes e frequentes, aliás, não o são. Um exemplo simples de falácia não formal é aquela que envolve o uso de termos equívocos, ou seja, com mais de um significado. Considere a seguinte sentença: Todos os bancos desta praça estão quebrados.

A palavra “banco”, você sabe, pode se referir a uma instituição financeira, e também a um objeto: um assento feito de madeira, pedra ou outro material. Tanto a instituição financeira quanto o assento podem estar “quebrados”, mas em sentidos diferentes. A instituição financeira “quebra” quando suas dívidas são irreversivelmente maiores que seus haveres. O assento está quebrado quando está materialmente partido. Contudo, convém lembrar que a palavra “praça” também é equívoca. Ela pode significar uma “área pública aberta dentro de uma cidade”, como a Praça do Rosário, em Caruaru; mas pode também significar a “comunidade comercial e financeira de uma cidade”, isto é, o conjunto dos estabelecimentos de comércio e serviços de uma cidade (definições baseadas no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Rio de Janeiro: Objetiva, 2009). Neste último sentido, podemos dizer que Fulano “não tem crédito na praça”, ou seja, não consegue fazer compras a prestação nas lojas, nem tomar empréstimo nos bancos de uma cidade. Portanto, a sentença que demos acima tem dois sentidos

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Todos os bancos desta praça estão quebrados. Nenhum banco estrangeiro está quebrado. Nenhum banco desta praça é estrangeiro.

Em princípio, o argumento parece bom. Usemos as seguintes abreviações: A: banco (instituição financeira) desta praça (localidade comercial e financeira) B: banco que está quebrado C: banco estrangeiro

Podemos simbolizar aquilo que está dito nas duas primeiras premissas por meio do seguinte diagrama: A

B

C

É fácil ver que, ao simbolizar as duas premissas, a conclusão já fica simbolizada. Com efeito, a conclusão de nosso argumento (“Nenhum banco desta praça é estrangeiro”) seria abreviada pelo esquema “Nenhum A é C”, e o diagrama exibe toda a região comum aos círculos A e C preenchida de vermelho e de verde, indicando que aí não existe nenhum elemento. Formalmente, portanto, o argumento é correto. No entanto, como os termos “banco” “praça” e “quebrado” são equívocos, alguém poderia ser levado a querer, por meio desse argumento, concluir algo a

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respeito do sistema financeiro a partir de uma premissa afirmando que todos os assentos de uma praça pública estão danificados. E isso é obviamente ilegítimo. Para que o argumento seja válido, é preciso que os termos mantenham o mesmo significado nas premissas e na conclusão. Apelando para convencer Um outro tipo de falácia decorre de uma característica muito importante associada aos contextos argumentativos. Os contextos em que os argumentos aparecem em nossa vida cotidiana envolvem uma mistura de elementos racionais e emocionais. Quando argumentam, as pessoas não buscam simplesmente convencer um auditório por meio de expedientes racionais. A emoção é frequentemente utilizada. Buscamos comover, enternecer, enraivecer, divertir, seduzir nosso auditório ao mesmo tempo em que buscamos convencê-lo. Pense em como se comporta um vendedor, por exemplo. Ele irá usar argumentos para persuadi-lo a comprar uma mercadoria, mas ao mesmo tentará estabelecer uma relação emocional positiva entre você e ele, ou entre você e a mercadoria que está sendo vendida. Esse apelo às emoções é em grande medida inevitável. O bom argumentador sabe eleger o tom adequado a uma determinada circunstância. Não vai usar um palavreado erudito se estiver se dirigindo a pessoas muito simples. O bom argumentador também deve ajustar seus argumentos às crenças de quem irá ouvi-lo. É inútil usar premissas de caráter religioso quando argumentamos com um ateu. A escolha do tom e das premissas adequadas só pode ser feita quando refletimos com cuidado a respeito do contexto em que estamos inseridos. Quem são as pessoas que estamos querendo convencer? No que elas acreditam? Quais são suas inclinações e preferências estéticas?

lógica e argumentação

completamente diversos. Ela pode querer dizer que todos os assentos de uma praça estão partidos, e também pode querer dizer que todas as instituições financeiras de uma cidade estão insolventes. Considere agora o seguinte argumento:

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Mike Segar/Reuters/ Latinstock

Debate eleitoral entre o candidato democrata Barack Obama e o candidato republicano Mitt Romney em outubro de 2012, na disputa eleitoral pela presidência dos Estados Unidos da América.

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Que formação anterior elas possuem? E assim por diante. São exatamente essas perguntas que um bom publicitário faz antes de dar início a uma campanha, e que um político experiente também faz antes de participar de um comício ou de um debate. Não há nada de errado nisso. Como já dissemos, em grande medida isto é parte integrante da arte de argumentar. O problema surge quando pretendemos usar as emoções para fazer nosso auditório tomar como bom um argumento que é ruim. Desde a Grécia antiga os filósofos ocuparam-se do estudo desse tipo de situação e procuraram chegar a uma classificação geral das principais falácias cometidas (intencionalmente ou não) pelas pessoas. Durante a Idade Média, esse estudo teve continuidade. As falácias, então, passaram a ser conhecidas por nomes latinos que são usados até hoje.

Argumento ad hominem A mais importante delas é conhecida como argumento ad hominem, ou argumento “dirigido a um homem”. Como

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o próprio nome está dizendo, esse tipo de falácia procura atingir a pessoa que argumenta, e não os argumentos apresentados por ela. É muito comum ver esse tipo de expediente ser utilizado por políticos durante campanhas eleitorais. Imaginemos uma situação desse tipo. O candidato A sugere uma certa mudança na legislação ambiental. O candidato B, então, diz o seguinte: “Aqui está um documento provando que o senhor está sendo processado por desmatar suas fazendas. O senhor não é uma pessoa confiável para propor qualquer mudança na legislação ambiental. As mudanças que o senhor propõe devem ser rejeitadas”. Esse tipo de alegação costuma ter um efeito muito forte sobre os eleitores. Se não encontrar uma boa resposta, o candidato A ficará desmoralizado. Vamos refletir um pouco sobre a relevância desse tipo de argumento. Em princípio, poderíamos pensar que ele é completamente irrelevante. De fato, importa considerar os argumentos apresentados pelo candidato A em favor de sua proposta. Se ele tem problemas na Justiça, isso é outra história. É perfeitamente possível que ele esteja sendo processado e que, por outro lado, suas propostas para a área ambiental sejam realmente boas. Se é assim, porém, por que esse tipo de argumento é levado em consideração e costuma mesmo ser decisivo em determinadas circunstâncias, como acontece num debate eleitoral? Basicamente, porque os eleitores não têm informações suficientes para avaliar com precisão os argumentos apresentados num debate. Os candidatos apresentam dados. Serão esses dados verdadeiros? Serão os únicos? Não haverá uma série de fatores que estão sendo propositalmente deixados de lado? O eleitor só pode aceitar as conclusões a que os candidatos chegam caso confie nesses candidatos. Ou seja, caso não tenha motivos para achar que está sendo

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Conforme se pode notar, não há regras fixas. Não existe um “diagrama” que possamos fazer para saber se o argumento ad hominem é relevante ou não é. Só um exame minucioso de cada caso nos permitirá separar o joio do trigo. É possível, porém, tirar algumas lições gerais do caso que estamos estudando. Examinemos mais uma vez o argumento apresentado pelo candidato B. Ele poderia ser reescrito da seguinte maneira: 1.

2.

3.

O senhor está sendo processado por desmatar suas fazendas. Portanto, o senhor não é uma pessoa confiável para propor mudanças na legislação ambiental. Portanto, as mudanças que o senhor propõe devem ser rejeitadas.

Já vimos que nem sempre podemos concluir 2 a partir de 1. Pode acontecer, no entanto, que, ao examinar o caso com cuidado, cheguemos à conclusão de que o processo movido contra o candidato A seja um bom motivo para desconfiarmos

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de suas intenções ao propor uma mudança na legislação. Pode ser que verifiquemos, por exemplo, que ele está querendo apenas se beneficiar com a mudança na lei. O candidato B, portanto, teria razão quando diz que o candidato A não é uma pessoa confiável. Será possível, no entanto, concluir a partir daí que as mudanças propostas devem ser rejeitadas? A resposta, aqui, parece ser “não”. É perfeitamente possível que, apesar de não ser uma pessoa confiável, o candidato A esteja apresentando uma boa proposta. O fato de ele não ser uma pessoa confiável não significa que tudo o que ele diz a respeito da legislação ambiental seja falso. Significa apenas que devemos ficar com um pé atrás, e buscar informações de outras fontes. Como, no entanto, a acusação do candidato B provocou em nós uma aversão pelo candidato A, nós temos a tendência de transferir essa aversão do candidato para a proposta que ele fez. “Se veio dele, boa coisa não deve ser”, pensamos. A rigor, no entanto, a rejeição da proposta não encontra apoio nas acusações que um candidato fez ao outro. Argumento ad verecundiam Um outro tipo muito comum de argumento, e que também é estudado desde a Antiguidade, é o chamado argumento ad verecundiam. Em latim, a palavra verecundia (com acento tônico na terceira sílaba) pode ser usada para significar o mesmo que “respeito” ou “reverência”. Podemos ter “verecundia” pelas leis, pelos pais, pelas autoridades e assim por diante. O argumento ad verecundiam é aquele que faz apelo ao respeito que nosso auditório sente por uma autoridade num determinado assunto. Para provar que o que dizemos é verdadeiro, citamos essa autoridade. Novamente, como ocorria no caso do argumento ad hominem, há muitos usos legítimos do argumento ad verecundiam.

lógica e argumentação

enganado. Diante de uma acusação grave, ele pode ser levado a reavaliar a confiança que deposita numa certa pessoa. É por isso que o argumento ad hominem funciona tão bem nessas circunstâncias. É preciso, entretanto, tomar cuidado. O fato de alguém estar sendo processado por desmatar a própria fazenda não significa necessariamente que essa pessoa seja pouco confiável quando argumenta em favor de uma mudança na legislação ambiental. É possível, por exemplo, que ela seja inocente e o processo tenha sido instaurado mesmo assim. Como também é possível que, ao ser processada, ela tenha sentido na pele um aspecto inadequado da legislação atual e agora tenha, portanto, excelentes motivos para propor alterações na lei.

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Figura 1

Figura 2

c2=a2+b2

h=√2

c a

2

a

22

2

c b

12

1

h 1

d2 12

Nem sempre que citamos uma autoridade estamos querendo enganar alguém ou levá-lo a uma conclusão errônea. Quando citamos um autor consagrado num texto, estamos fazendo um uso perfeitamente legítimo desse tipo de argumento. Veja nas figuras acima um exemplo elaborado por nós mesmos:

lógica e argumentação

“Conforme está demonstrado nos Elementos, de Euclides, a área de um quadrado construído sobre a hipotenusa de um triângulo retângulo é igual à soma das áreas construídas sobre cada um dos catetos. (Figura 1) Ora, se o lado de um quadrado mede 1m, sua área mede 1m2. Portanto, se temos um triângulo retângulo isósceles com catetos medindo, cada um deles, 1m, a área do quadrado construído sobre a hipotenusa deve ter 2m2 e a hipotenusa deve medir 2m (Figura 2).”

Não há nada de errado aqui no uso do argumento ad verecundiam. Em vez de demonstrar o teorema de Pitágoras, podemos mencionar a demonstração

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desse teorema existente no livro Os elementos, escrito por um matemático grego chamado Euclides por volta do ano 300 a.C. Como Euclides é uma autoridade consagrada em geometria, o leitor tem excelentes razões para aceitar o apelo à autoridade feito nesse raciocínio. Não há nada de errado nisso. É claro que a eficácia do argumento ad verecundiam depende em grande parte de meu auditório reconhecer autoridade no autor que está sendo citado. De nada adiantaria citar uma autoridade desconhecida do público ou, pior, uma que o público em pauta não respeitasse. Mais uma vez, é essencial sabermos de antemão quem é o nosso auditório, quais são suas crenças e seu modo de vida para escolhermos corretamente o argumento mais adequado em cada situação. Muitas vezes, não encontramos no argumento ad verecundiam um autor específico sendo citado. Basta citar, por exemplo, toda uma categoria profissional. Veja este exemplo: “Qualquer engenheiro irá lhe dizer que essa coluna está mal posicionada.

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Portanto, é recomendável que o senhor construa uma nova, para reforçar a estrutura. Podemos incluir esse serviço no orçamento?”

“O elixir do amor”, de Gaetano Donizetti, em abril de 2007, no Metropolitan Opera House (Nova Iorque, EUA).

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lógica e argumentação

@Foto: Hiroyuki Ito/Getty Images

Quem argumenta assim não está citando um livro ou uma pessoa específica. Está falando dos engenheiros “em geral” e apelando para a autoridade desses “engenheiros” para dizer que a coluna está fora do lugar. Este apelo é legítimo? Pode ser e pode não ser. Quem fala isso pode ser um pedreiro experiente, que já trabalhou com muitos engenheiros e aprendeu a avaliar se uma coluna está bem ou mal posicionada. Mas também pode ser um espertalhão, querendo vender um serviço desnecessário. Como lidar com essa situação? Não há receitas prontas. Só podemos nos valer de certos dados contextuais: a idoneidade da pessoa com quem estamos falando, a experiência que ela tem (ou que imaginamos que ela tenha), as informações de uma segunda opinião – eventualmente, a de um engenheiro.

Esse apelo genérico à autoridade de uma categoria profissional está muito bem representada na ópera cômica O elixir do amor, do compositor italiano Gaetano Donizetti (1797-1848). A ópera conta a história de Nemorino, um camponês ingênuo que se apaixona por Adina, rica fazendeira que não lhe dá a menor atenção. Desesperado, Nemorino recorre a um charlatão, Dr. Enciclopédia, que está de passagem pela cidade vendendo um elixir que teria o poder de curar qualquer doença e solucionar qualquer problema. O falso médico assegura a Nemorino que, se ele tomar a poção, irá conquistar o amor de Adina. Pede apenas que espere um dia para que a poção faça o seu efeito (e ele tenha tempo de fugir). Nemorino acredita na autoridade do Dr. Enciclopédia: toma a garrafa toda e fica bêbado – o tal “elixir” não passava de uma bebida alcoólica barata. Como sabe que tem que esperar um dia, quando se encontra com Adina, ele finge que não a vê. Tem medo de abordá-la antes de o elixir fazer efeito. Adina

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lógica e argumentação

toma aquilo por desprezo, fica com o orgulho ferido e, pela primeira vez, olha Nemorino com outros olhos. Após uma série de episódios engraçados, Adina finalmente se apaixona pelo camponês, que acaba recebendo uma herança e se casa com sua amada. No final da ópera, todos festejam os poderes do elixir do amor fabricado pelo Dr. Enciclopédia. Esta ópera de Donizetti ilustra duas coisas muito importantes. Em primeiro lugar, é um excelente exemplo do uso falacioso do argumento da autoridade. O Dr. Enciclopédia não é médico, em primeiro lugar. Investe-se, portanto, de uma autoridade que ele não tem. Sabe perfeitamente, além disso, que a poção não é capaz de produzir os efeitos prometidos. Há uma outra coisa a ser notada aí, no entanto. O charlatão afirma que, se Nemorino tomar a poção, irá conquistar Adina – e isso realmente acontece. Não por causa da poção, é claro, mas por uma série de acasos. O argumento não se torna menos falacioso por conta de aquilo que estava previsto em sua “conclusão” (o amor de Adina) acontecer. É daí exatamente que o enredo da ópera extrai seu caráter humorístico. Todos os personagens (com exceção do médico) passam a acreditar no engodo porque não se preocupam em verificar aquilo que seria essencial nesse caso: se o Dr. Enciclopédia é de fato uma autoridade (ele não é), e se o elixir produz mesmo os efeitos prometidos (ele não produz).

Vamos analisar agora um anúncio de publicidade (reproduzido na página ao lado) no qual se faz um uso mais sutil do argumento ad verecundiam. Essa campanha foi feita na década de 1950. E durante alguns anos foi muito eficiente. Grande parte das pessoas passava o dia fora de casa e escovava os dentes apenas uma, no máximo duas vezes por dia. A estratégia de comunicação da

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Gleem resolveu explorar isso. Anunciou que a pasta continha um novo componente, chamado “GL70”, que protegia os dentes ao longo de todo o dia. Nasceu assim o slogan: “Gleem... o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após cada refeição”. Anúncios foram veiculados em revistas e na televisão explorando essa ideia. A natureza desse componente misterioso – o GL70 – não era conhecida. Não havia evidência de que a pasta cumprisse o prometido. Mas o anúncio tenta dar um ar “científico” às coisas que são ditas sobre esse creme dental. O nome dado à substância misteriosa sugere que ela pertence a toda uma família de compostos químicos que foram exaustivamente testados, um a um, na busca dos melhores resultados. O leitor é levado a pensar que, antes do GL70, foram testados o GL69, o GL68, o GL67 e assim por diante. Só no setuagésimo composto os cientistas envolvidos na pesquisa teriam ficado satisfeitos e incorporado o produto à pasta de dentes. Repare nas duas imagens das bactérias vistas sob a lente de um microscópio. O leitor pensa que está diante de resultados de laboratório, comprovando a eficácia do GL70. Nada disso. As figuras foram escolhidas para impressionar o leitor e fazê-lo confiar nas palavras ditas no texto. Tudo isso só funciona porque a maioria dos leitores não tem formação científica, e por isso têm respeito, verecundia (como se dizia em latim) por cientistas que sabem lidar com microscópios e utilizam nomes técnicos obscuros como “GL70”. Muitas vezes, aliás, não é preciso nem mesmo referir-se indiretamente à ciência. Basta citar uma frase numa língua desconhecida pelo auditório para impor respeito e obter o convencimento. Vejam o que diz o filósofo alemão Arthur Schopenhauer[+] (1788-1860) a respeito disso:

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Revista Life, ed. 23, 04/06/1956. Coleção particular

Aqui está por que tantas pessoas usam SOMENTE GLEEM... o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após cada refeição. APENAS UMA ESCOVAÇÃO destrói as bactérias causadoras do mau hálito e da cárie.

PROVA As bactérias da boca, principal causa da cárie, desenvolvemse durante a noite deste modo.

“Eu não posso escovar os dentes após cada refeição e por isso EU CONFIO EM GLEEM.”

SOMENTE GLEEM tem GL70 para combater as cáries.

“Os incultos têm um respeito todo seu diante de floreios gregos e latinos. Também se pode, se necessário, não apenas deturpar as autoridades, mas até falseá-las de uma vez, ou mesmo citar outras que são com-

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Se você pudesse escovar os dentes após cada refeição, qualquer bom creme dental serviria... Mas se, apesar de ser preferível sempre escovar os dentes, você não puder fazer isso, então você deve usar Gleem. Uma escovação com Gleem destrói a maioria das bactérias... oferece resistência adicional contra as cáries. Além disso, o sabor de Gleem é tão maravilhoso que mesmo as crianças gostam de usá-lo regularmente! E, para as crianças, uma escovação regular após as refeições é um modo comprovado de reduzir as cáries. Lembre-se de que existe somente um Gleem – o creme dental para as pessoas que não podem escovar os dentes após todas as refeições.

pletamente inventadas para a ocasião: na maior parte das vezes, ele [o oponente] não tem o livro à mão e nem saberia manejá-lo. O melhor exemplo disso quem dá é o vigário francês que, para não pavimentar a

lógica e argumentação

O mau hálito foi evitado o dia todo com uma escovação usando Gleem. Testes científicos comprovam que uma escovação com Gleem antes do café da manhã dá à maioria das pessoas proteção durante todo o dia contra o mau hálito. Comece o seu dia com Gleem.

Após uma escovação com Gleem, até 90% dessas bactérias estão destruídas.

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cipais.” (Schopenhauer, “A arte de sus-

rua diante de sua casa como tinham de fazer todos os demais cidadãos, citou um provérbio bíblico: paveant illi, ego non pavebo [i.e., “eles temem, eu não temerei”]. Isto bastou para persuadir as autoridades muni-

tentar a razão”. Tradução nossa. Edição de referência: Der handschriftliche Nachlass [O espólio manuscrito], Manuscritos de Berlim, 1818-1830. Frankfurt: Kramer, 1970, p. 689)

Uma outra lógica: Newton da Costa Um dos princípios lógicos mais impor-

p ⋀ ¬p

tantes é o princípio de não-contradição. Ele diz que nenhuma proposição pode ser ao

você estará simplesmente expressando

mesmo tempo verdadeira e falsa. De acordo

esse dilema, e dizendo algo que lhe parece

com ele, se tomarmos uma proposição e sua

ser correto naquela circunstância e (mais

negação, jamais pode acontecer de ambas

importante ainda) que poderia mesmo ser

serem verdadeiras. A validade desse princí-

correto. Pode haver obrigações morais que

pio pode ser exibida numa tabela de verda-

são contrditórias, de tal modo que deva-

de. Dizer que tanto uma proposição quanto

mos fazer duas coisas que não se conciliam

sua negação são verdadeiras corresponderia

entre si.

a afirmar a conjunção

p ⋀ ¬p Traduzindo: que uma sentença e sua negação, sejam juntas verdadeiras. Isso contraria o princípio de não-contradição que, mesmo sem o uso das tabelas de verdade, foi aceito desde a Antiguidade. No entanto, há determinadas situações que parecem oferecer contraexemplos a ele. Suponha que você esteja numa guerra, e um general lhe dê a ordem para bombardear uma cidade. Suponha que p seja a proposição “Eu devo obedecer às ordens do general” Nesse caso, ¬p será a proposição “Eu não devo obedecer às ordens do general”

lógica e argumentação

Pode acontecer de, numa situação como

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O professor Newton da Costa, nascido em 1929, é um brasileiro que criou sistemas de lógica nos quais as contradições são permitidas, ou seja, sistemas nos quais as tabelas de verdade são muito diferentes daquelas apresentadas em nosso boxe sobre conectivos. Essas lógicas, chamadas de “lógicas paraconsistentes”, permitem lidar com situações como a que descrevemos acima, estudando que tipo de consequência essas “contradições” trariam para as teorias nas quais elas fossem admitidas. Se utilizamos uma lógica “clássica”, na qual vale o princípio de não-contradição, os dilemas morais têm de ser “negados” de algum modo. Se utilizamos uma lógica paraconsistente, é possível admiti-los e lidar com eles no interior de uma teoria sem maiores problemas.

essa, você ficar diante do que chamamos

O professor Newton da Costa publicou

de um “dilema moral”. Você não sabe o que

diversos livros e artigos a respeito de suas

deve fazer. Por um lado, você reconhece que

lógicas paraconsistentes e tornou-se inter-

deve obedecer às ordens de um superior;

nacionalmente reconhecido por esse traba-

por outro, não lhe parece correto destruir

lho. Quem desejar conhecer algo da sua pro-

vidas de civis ao bombardear aquela cidade.

dução, pode consultar o livro Ensaio sobre os

Nessa situação, é possível argumentar que,

fundamentos da Lógica (São Paulo: Hucitec,

se você disser a proposição

1994), de sua autoria.

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Identificação de falácias

• Forme par com um colega e analisem a argumentação implícita na peça publicitária fictícia abaixo. Em seguida, apresente os resultados para os de mais alunos da classe, em forma de seminário.

lógica e argumentação

Para “ganhar traquejo”, como se diz, discuta em equipe os seguintes argumentos, procurando dizer quais são falaciosos, e por quê. 1) Esse cachorro é seu. Esse cachorro é pai. Portanto, esse cachorro é seu pai. 2) O presidente da companhia abriu a reunião dizendo: “Precisamos fazer alguma coisa”. Um de seus funcionários apontou para o plano que ele próprio havia elaborado e emendou: “Isto é alguma coisa. Portanto, precisamos fazer isso”. 3) “É público e notório que essa mulher nunca foi fiel no casamento. Se ela não merece a confiança do próprio marido, como pode pretender ter a sua confiança, caro eleitor?” Reflita sobre esse argumento: ele procede racionalmente? Se mudarmos os gêneros de seus termos (“mulher” para “homem”; “marido” para “esposa”), ele permanece soando idêntico aos ouvidos do auditório? Por quê? Fundamente a sua resposta e discuta com os colegas. 4) “Quem é você para me dizer que refrigerante faz mal à saúde? Você também toma um montão...” 5) “Quem é você para me dizer que refrigerante faz mal à saúde? Você não é médico nem nutricionista...”

6) “Especialistas disseram a este telejornal que a única maneira de o Brasil crescer a taxas elevadas é baixando os impostos para favorecer o investimento privado.” 7) Minha professora de Geografia disse que o rio Indo tem a maior parte de sua extensão em território indiano.

Ilustração: Najla Bunduki com imagem de Anderm/Can Stock

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

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Shutterstock ©Foto:

A encruzilhada representa uma dúvida e uma decisão: que rumo tomar?

unidade 4

E

dúvida e certeza

m nossas vidas, nas ações e acontecimentos mais comuns, todos nós, em muitos momentos, temos dúvidas. Essas dúvidas são de vários tiVivemos cercados m nossas vidas, nas ações e acontecimenposdee de importância bem diferente. dúvidas .....................111 maisdecomuns, todos anós, em muitos Às vezes, por exemplo,tos saímos casa e começa momentos, temos dúvidas. Essas dúvidas são A dúvida, base chover. E nos perguntamos: “Será que fechei a jade vários tipos e de simples, importância do quarto?”. Essa é uma dúvida ba- bem diferente. da investigação nela ..... 117 Às vezes, exemplo, saímos nal, que só surgiu por causa por da chuva, e que talvezde casa e começa Duvidando a chover. E nos perguntamos: “Será que fechei a se dissipe quando parar de chover, mas que por alpara atingir janela Essa é uma dúvida simples, guns instantes toma contadodequarto?”. nossos pensamentos a certeza.................. 124 banal, queresolvê-la só surgiurecordando por causa da chuva, e que e preocupações. Tentaremos talvez antes se dissipe quando as ações que executamos de sair. Talvezparar con- de chover, mas Limites da dúvida quefechamos por alguns instantes toma conta de nosao garantir a sigamos lembrar que a janela e diremos 135 certeza ..................... soslembro-me pensamentos e preocupações. Tentaremos a nós mesmos: “Sim, agora, depois que resolvê-la as de ações coloquei os sapatos, fechei arecordando janela, antes sairque executamos do quarto”, ou algoantes assim.de sair. Talvez consigamos lembrar que fechamos a janela e diremos a nós mesmos: “Sim, lembro-me agora, depois que coloquei os sapatos, fechei a janela, antes de sair do quarto”, ou algo assim.

E

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Insley Pacheco. Coleção particular

Há dúvidas que podemos solucionar se lembrarmos o que fizemos, como: “Fechei a janela do quarto?”. Mas há outras que não conseguimos resolver recorrendo à nossa memória. Uma dúvida dessa poderá ter efeitos diferentes em cada um de nós. Alguns, mesmo sem concluir se fecharam ou não a janela, deixarão a dúvida de lado, ainda que saibam que a chuva poderá molhar o quarto, e levarão seus pensamentos para assuntos mais importantes. Outros, porém, poderão passar o dia pensando nisso, enquanto estudam, trabalham ou se divertem, ansiosos para voltar para casa e descobrir. Outros ainda, se não estiverem muito longe de casa, chegarão a dar meia volta, entrar em casa de novo e verificar se fecharam ou não a janela (descobrindo, muitas vezes, que a tinham fechado).

Machado de Assis (1839-1908), considerado um dos maiores escritores brasileiros, é autor de romances como Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

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Vários outros exemplos poderiam ser dados além desse para ilustrar casos comuns e banais de dúvidas que nos ocorrem. Há também, digamos assim, dúvidas mais sérias e importantes, que nos acompanham durante muito tempo, às vezes durante anos, porque estão relacionadas ao nosso futuro e à nossa felicidade. Por exemplo, é muito natural que um estudante que está terminando o Ensino Médio se pergunte: “Que profissão devo seguir? Aquela que meus pais gostariam que eu seguisse ou aquela de que gosto?”. Ou então: “Será que conseguirei passar no vestibular sem fazer cursinho?”. Ou mesmo uma dúvida ainda mais geral: “Será que terei uma vida feliz?”. Também nesses casos, as pessoas reagem de modos diferentes a essas dúvidas, de acordo com suas próprias personalidades. Para certas pessoas, a dúvida é um estímulo para encarar novos desafios; para outras, pode ter um efeito paralisante, até que novas circunstâncias permitam ultrapassá-la. Essas reações mostram que estamos agora diante de casos mais importantes de dúvidas. Nossas decisões sobre como enfrentá-las terão profundo impacto em nosso futuro. E não podemos solucioná-las tão fácil e rapidamente como no caso da janela do quarto. Na verdade, muitas vezes passamos nossas vidas convivendo com elas. Mas há também outro tipo de dúvida, talvez mais complicada, que muitos de nós podemos ter. Certamente não são todas as pessoas que formulam esse tipo de dúvida, e mesmo os que o fazem, não o fazem com frequência. Mas alguns podem dar muita importância a elas. Alguns exemplos: “Deus existe?” – “O universo terá fim?” – “Qual foi sua origem?” – “Por que devemos respeitar regras morais e leis?”... Essas dúvidas podem ser chamadas de “filosóficas”.

dúvida e certeza

Vivemos cercados de dúvidas

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Anônimo, séc. XVIII. Coleção particular

Um jovem diante da difícil decisão entre a vida monástica e a vida mundana

dúvida e certeza

(Anônimo, A difícil escolha. Óleo sb/ madeira, século XVIII).

São elas, e outras semelhantes a elas, que os filósofos vêm elaborando e tentando solucionar durante séculos. Questões filosóficas, então, envolvem dúvidas e interrogações – veja que as dúvidas foram sempre apresentadas como pensamentos sob a forma da interrogação. Mas existiria uma forma particular de expressar essas dúvidas filosóficas? Em certo sentido, a maneira como um filósofo enfrenta suas dúvidas e questões é semelhante àquela que adotamos em nossas dúvidas corriqueiras. Quando tento me lembrar das ações que executei antes de sair de casa, para descobrir se fechei a janela, ou mesmo voltando para casa a fim de observar se o fiz, estou adotando uma espécie de “método”, que escolhi antes de agir. Devo fazer uma “investigação” e preciso definir um procedimento para fazê-la. E isso também será necessário se eu quiser descobrir se existe um Deus, se o universo terá fim etc. Vamos examinar um caso célebre envolvendo uma dúvida e uma investigação que tenta solucioná-la. Dom Casmurro, um dos mais famosos romances de Machado de Assis, conta a história de Bentinho e Capi-

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tu, namorados de infância que se casam e têm um filho, Ezequiel, e que são amigos próximos do casal Sancha e Escobar. Mas o casamento se desfaz porque Bentinho chegou à conclusão de que sua esposa e seu amigo o teriam traído e que o menino seria, na verdade, filho do outro. O próprio Bentinho é o narrador em primeira pessoa, já um homem idoso, nunca plenamente recuperado dos acontecimentos, transformado numa pessoa fechada, o “casmurro” do título. “Casmurro” significa “teimoso”, “implicante”, mas também “triste”, “calado”, “ensimesmado”, e é nestes últimos significados que o termo é empregado. O fato de ser todo o romance uma narrativa de alguém “ensimesmado”, isto é, “voltado para si mesmo”, é relevante aqui: todo o tempo Bentinho oferece ao leitor uma sucessão de experiências pessoais, de emoções e pensamentos próprios resultantes de seu contato com a realidade. É sempre nesse registro de intimidade e “interioridade” que vemos surgir e crescer nele uma dúvida, uma suspeita sobre sua esposa e seu amigo, que certos acontecimentos transformarão, para ele, numa absoluta certeza.

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dúvida, e para isso ele desce da carruagem em que se encontrava, para pensar melhor enquanto caminha. Observe-se a oposição entre “ordem lógica e dedutiva”, presente nesta série de pensamentos de Bentinho, e a “barafunda de ideias e sensações” de que era tomado há pouco, na carruagem (barafunda: confusão, balbúrdia, baderna). Agora, ele acha que pode compreender melhor os acontecimentos. Essa análise detida e ponderada que Bentinho acredita fazer durante a caminhada leva-o a concluir que a clareza de seu pensamento se vira atrapalhada pela “antiga paixão”. Por algum tem“A razão disto era acabar de cismar, po, ele conclui que não tem razão para due escolher uma resolução que fosse adevidar de Capitu. Mesmo assim, o resultado quada ao momento. O carro andaria é incerto, ou pelo menos hesitante, pois as dúvidas continuarão a mais depressa que as incomodá-lo. pernas; estas iriam É bem importante pausadas ou não, poessa distinção entre um diam afrouxar o pasQuando queremos esforço de pensamenso, parar, arrepiar caresolver uma dúvida, to “dedutivo”, “lógico” minho, e deixar que também tentamos – pelo qual Bentinho, a cabeça cismasse à pensando consigo mesvontade. Fui andanpensar de forma mo (“concluí de mim do e cismando... Cui“lógica” e “dedutiva” para mim”), julga ser dei de recompor-lhe – procuramos pensar capaz de analisar de os olhos, a posição forma isenta os aconteem que a vi, o ajuntano assunto de forma cimentos antes de chemento de pessoas que objetiva, clara, devia naturalmente gar a uma conclusão – e sem “paixão”. impor-lhe a dissimua “paixão” que estava lação, se houvesse prejudicando suas divaalgo que dissimular. gações anteriores sobre O que vai por ordem o assunto. lógica e dedutiva, tinha sido antes uma Quando queremos resolver a dúvida barafunda de ideias e sensações, grasobre se fechamos a janela do quarto, tamças aos solavancos do carro e às interbém tentamos pensar de forma “lógica” e rupções de José Dias. Concluí de mim “dedutiva”, isto é, procuramos pensar no para mim que era a antiga paixão que assunto de forma objetiva, clara, sem “paime ofuscava ainda e me fazia desvairar xão”. Se queremos descobrir se fechamos como sempre.” (M. Assis, Dom Casmurou não a janela, não devemos pensar nisro, in: Obra completa. org. A. Coutinho, so levando em conta o fato de que desejavol. I. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, mos ter fechado a janela. Esse desejo não 1994, cap. CXXVI, pp. 928-929) nos ajuda em nada em nossa investigação. No caso de Bentinho, parece que ele julga “Cismar” é a palavra que nessa passagem possível chegar a uma certeza sobre o seu expressa a reflexão de Bentinho sobre sua problema, ele acredita que tal certeza será

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Em dado momento do romance, quando Escobar morre afogado, Bentinho narra ter visto Capitu olhar para o defunto de maneira apaixonada. Esse é o momento em que surge para ele a dúvida: teria sua Capitu o traído com seu melhor amigo? Observe que é uma dúvida totalmente inesperada e, certamente, indesejada. Agora, contra sua própria vontade, Bentinho tem de chegar a uma resposta que solucione sua dúvida, tem de descobrir a verdade, pois não pode mais viver sem ela. Leia agora a seguinte passagem:

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Vejamos agora outra passagem: “Palavra que estive a pique de crer que era vĂ­tima de uma grande ilusĂŁo, uma fantasmagoria de alucinado; mas a entrada repentina de Ezequiel, gritando: ‘MamĂŁe! MamĂŁe! ĂŠ hora da missa!’ restituiu-me Ă consciĂŞncia da realidade. Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um para o outro. Desta vez a confusĂŁo dela fez-se confissĂŁo pura. Este era aquele; havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno Ezequiel. De boca, porĂŠm, nĂŁo confessou nada; repetiu as Ăşltimas palavras, puxou do filho e saĂ­ram para a missa.â€? (M. Assis, “Dom Casmurroâ€?, op. cit., cap. CXXXIX, p. 938)

Aqui, a conclusão Ê definitiva. Se atÊ então as dúvidas de Bentinho, embora fortes, não eram ainda suficientemente intensas e fundamentadas para o levarem à certeza da traição, agora se apresenta um fato que

dĂşvida e certeza

Stefanie Mohr Photography/Shutterstock

obtida sem que suas emoçþes se misturem e atrapalhem sua investigação. Ele se julga capaz de deixar de lado seus prĂłprios sentimentos – o ciĂşme, o Ăłdio, a decepção – para avaliar os fatos com isenção. Ao mesmo tempo, ĂŠ toda a sua felicidade que estĂĄ em jogo nessa investigação, e seu resultado lhe mostrarĂĄ se ainda poderĂĄ ser feliz como antes. No decorrer da narrativa, Bentinho julga descobrir mais indĂ­cios de que foi traĂ­do. Conforme Ezequiel vai crescendo, ele vĂŞ no menino mais semelhança com Escobar, e isso vai dando força Ă suspeita de que o menino ĂŠ filho do falecido amigo, o que o deixa furioso. Para ele, essa semelhança se torna uma forte evidĂŞncia da traição. Sua dĂşvida se dissipa progressivamente, porque os fatos vĂŁo lhe mostrando qual seria a verdade. Isso faz com que passe a sentir repulsa pela criança, embora em alguns momentos ainda sinta ternura por ela. Seus sentimentos sĂŁo conflitantes. Mas ele julga que suas conclusĂľes sĂŁo absolutamente corretas e objetivas.

Bem me quer, mal me quer... HĂĄ quem despetale uma margarida para saber se a

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pessoa amada corresponde ou nĂŁo a esse amor. A dĂşvida, nesse caso, se resolve pelo recurso ao que foge de nosso alcance: a sorte.

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(direção: A. Lyne, EUA: 1987). O filme narra a história de um advogado bem sucedido, casado, que se envolve com outra mulher. O caso torna-se um inferno para ambos.

certeza incontestável, porque encontrou fatos e razões que lhe garantem essa certeza. Sua dúvida foi investigada e o levou a essa convicção. A dúvida, assim, é ponto de partida para a chegada a uma certeza. Onde ainda há dúvida, não há certeza; onde há certeza, não há mais dúvida. Contudo, podemos nos perguntar: Bentinho interpretou adequadamente os fatos ou se deixou levar por suas paixões? Está realmente provado que Capitu o traiu com Escobar? É perfeitamente possível que a certeza de Bentinho não corresponda à verdade dos fatos. Pode ser que Capitu não o tenha traído, ela sempre o negou. Estamos convencidos dessa traição? Muitos leitores do romance diriam que sim, muitos outros diriam que não. Posso ter uma certeza sobre algo, certeza que considero bem fundamentada, que, no entanto, se revele falsa. E isso vale até mesmo para a janela de meu quarto. Pode ser que eu a tenha fechado, mas que logo depois a tenha aberto por alguma razão, e que, quando me lembrei dos fatos, recordei-me apenas do primeiro, não do segundo. Nesse caso, ao retornar para casa, trarei comigo a certeza de ter fechado a janela, mas a encontrarei aberta. Assim, minha certeza pode ser falsa e não é necessariamente garantia da

dúvida e certeza

Paramount Pictures/Album/Latinstock

julga decisivo e que desfaz para ele a possibilidade de que fosse vítima de “ilusão” e “fantasmagoria”. Não há mais lugar para dúvida, a certeza se impõe como incontestável: ele foi traído por Capitu e Escobar. Passa então a recordar-se de acontecimentos e agora vê neles novas evidências do romance dos dois: “episódios vagos e remotos, palavras, encontros e incidentes, tudo em que a minha cegueira não pôs malícia, e a que faltou meu velho ciúme. Uma vez em que os fui achar sozinhos e calados, um segredo que me fez rir, uma palavra dela sonhando, todas essas reminiscências vieram vindo agora, em tal atropelo que me atordoaram” (M. Assis, Dom Casmurro, op. cit., cap. CXL, p. 939). Se antes não conseguia saber da verdade, agora ele a conhece e é capaz de descobrila em muitos fatos diversos. Machado parece ter deliberadamente deixado incerta a solução do enigma: Capitu realmente traiu Bentinho, ou este foi vítima de seu próprio ciúme? Não há uma resposta evidente e óbvia a essa pergunta. Há bons motivos para defender as duas posições, e parece ter sido essa a intenção do escritor. De qualquer modo, com isso se pode também destacar um aspecto importante relacionado ao tema. Certo ou errado, Bentinho julga ter chegado a uma

Glenn Close em cena de Atração fatal

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O ator David Garrick no papel de Hamlet (séc. XVIII). James McArdell / Library of Congress

A dúvida de Hamlet Desenvolvimento individual por escrito

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Você provavelmente já escutou esta frase: “Ser ou não ser, eis a questão”. Ela é enunciada por Hamlet, o protagonista daquela que talvez seja a tragédia mais conhecida da história do teatro mundial: A trágica história de Hamlet, príncipe da Dinamarca, publicada em 1603. Seu autor, William Shakespeare (1564-1616), fez de Hamlet, seu personagem mais famoso, um indivíduo assolado pela dúvida. Muitos estudiosos apontaram nisto uma característica do herói moderno, marcado pela reflexão, pela melancolia, pela incerteza e dúvida em relação ao papel que devemos exercer na sociedade e no mundo. A ideia desses estudiosos é que Hamlet é moderno porque extrai da dúvida a matéria de sua virtude. Eis duas questões que merecem nossa atenção: 1) O que motiva a dúvida de Hamlet no ato III, cena 1 da obra? 2) Quais consequências essa dúvida produz sobre Hamlet e sobre os acontecimentos da peça? Para responder às duas questões, você terá de se familiarizar com a tragédia de Shakespeare. Há duas maneiras de fazê-lo (e elas são complementares): ler a obra em questão ou assistir a uma das versões cinematográficas que dela foram realizadas. Eis algumas referências.

verdade dos fatos. “Certeza” não é sinônimo de “verdade”. A primeira é um estado individual, subjetivo, íntimo – lembre-se de que Bentinho está sempre falando de si próprio, de seus pensamentos –, a segunda é algo relacionado à realidade, aos fatos. A primeira é subjetiva, a segunda é objetiva. Bentinho está

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O livro, em tradução brasileira: William Shakespeare, Hamlet. Tradução: Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM Editores, 1997. Há outras traduções em português, sendo que uma delas merece menção especial. Referimo-nos à tradução de Péricles Eugênio da Silva Ramos (São Paulo: Abril, 1976). A tradução de Millôr Fernandes, em todo caso, também é excelente e tem a vantagem de ser de fácil acesso. Versões cinematográficas: Hamlet. Direção de Laurence Olivier. Reino Unido: 1948. Hamlet. Direção de Kenneth Branagh. EUA: 1996. • Após ler a tragédia ou assistir a uma das versões cinematográficas, redija um texto curto, de aproximadamente duas páginas, procurando responder às questões sugeridas acima.

tentando o tempo todo se convencer de que essa sua certeza subjetiva é também objetiva, de que sua desconfiança é real, não apenas produto de seu ciúme. Por isso está em busca de evidências para essa certeza. Imagine que aquelas dúvidas chamadas de “filosóficas”, apesar das grandes

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diferenças entre seus conteúdos, tenham tudo isso em comum com as dúvidas de Bentinho e com aquelas sobre a janela. Também elas têm que lidar

com os mesmos tipos de dificuldades, e o modo como as abordamos podem possuir consequências significativas em nossas vidas.

A primeira coisa a levar em conta, quando abandonamos as dúvidas mais comuns, aquelas que surgem diariamente, e passamos para o âmbito da filosofia, reside no fato de que, com isso, a dúvida adquire novo significado e valor. Por um motivo simples: em filosofia, a dúvida também pode revelar-se um importante instrumento da investigação. Há um texto que põe essa novidade bem diante de nossos olhos. Trata-se de uma passagem de um dos diálogos mais importantes de Platão[+] (427-347 a.C.), denominado Teeteto. Nesse diálogo, Platão coloca em cena o filósofo Sócrates e seu interlocutor, Teeteto, ambos em busca do significado do conhecimento. De início, porém, ao invés de fixarem sua atenção sobre o significado de conhecimento, desviam-se dele para investigar o que é a falsidade. Logo esse desvio revela-se uma má escolha. Pois como seria possível conhecer o que é a falsidade, antes de sabermos exatamente no que consiste... “o conhecer”? Como poderíamos conhecer algo sem previamente ter definido o que é conhecimento? Vejamos a passagem: “Sócrates: Então, meu jovem, nosso argumento com razão nos censura e mostra que investigamos erroneamente, quando abandonamos o conhecimento para investigar antes a opinião falsa? Ora, é impossível que alguém a conheça antes de compreender suficientemente o que é o conhecimento. Teeteto: Sócrates, agora é mesmo preciso pensar como você diz. S.: Então, para começar tudo de novo, o que alguém dirá ser o conhe-

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cimento? Não vamos desistir ainda, não é? T.: Absolutamente, a não ser que seja você quem desista. S.: Diga então, o que diremos dele, sem que entremos nós próprios em contradição? T.: Aquilo mesmo que tentamos há pouco, Sócrates, pois eu não sei dizer mais nada. S.: O quê? T.: Que a opinião verdadeira é conhecimento. Ao menos é sem erro dar opinião verdadeira, e tudo o que surge disso vem a ser belo e bom. S.: Teeteto, diz o condutor do rio que o próprio rio mostra o caminho. Se investigarmos seguindo em frente, talvez aquilo que investigamos se manifeste diante de nós, mas, se permanecermos parados, nada se manifestará. T.: Você está certo. Vamos em frente, ao exame. S.: Certamente é caso de um exame breve, já que uma arte inteira mostra a você que o conhecimento não é aquilo. T.: Como, e qual é essa arte? S.: Aquela dos maiores em matéria de sabedoria, que são chamados de oradores e advogados. Por meio de sua arte própria persuadem, não pelo ensino, mas fazendo os outros opinarem como eles desejam. Ou você acha que existem professores tão hábeis que consigam ensinar satisfatoriamente a verdade dos fatos, no pouco tempo que possuem, a quem não testemunhou um roubo ou outra violência?

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A dúvida, base da investigação

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Metropolitan Museum of Art, Nova York

meado –, enquanto aquilo que possui justificação é objeto de conhecimento. [...] S.: Então, se alguém, sem uma justificação, adquire uma opinião verdadeira sobre algo, sua alma tem a verdade sobre isso, mas não a conhece. Pois quem não pode dar e receber uma justificação sobre algo, não tem conhecimento sobre isso. Mas se adquiriu uma justificação, possui um conhecimento perfeito.” (Platão, Teeteto, 200c-202c. Tradução nossa) Antes de morrer, Sócrates pediu a um amigo que saldasse uma dívida sua, um galo que devia a Asclépio (J.-L. David

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[1748-1825], A morte de Sócrates. Óleo sb/ tela, 1787).

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T.: Acho que não ensinam, acho que persuadem. S.: Então você afirma que persuadir é fazer outra pessoa opinar? T.: Sem dúvida. S.: Nesse caso, quando os juízes foram persuadidos de maneira justa sobre fatos que só quem viu pode conhecer, e não de outra maneira, tomando então sua decisão depois de ouvir os relatos e de posse de uma opinião verdadeira, decidiram sem conhecimento, ainda que, se foram bem instruídos, tenham sido persuadidos em favor do certo? T.: Certamente. S.: Meu caro, se num tribunal opinião verdadeira e conhecimento fossem a mesma coisa, um juiz competente não teria opiniões corretas sem conhecimento, mas agora uma e outra parecem coisas diferentes. T.: Sócrates, algo que ouvi dizer e havia esquecido me vem à mente agora: opinião verdadeira acompanhada de justificação é conhecimento, opinião verdadeira sem justificação está fora do conhecimento, e aquilo de que não se tem justificação não é objeto de conhecimento – é assim que foi no-

Antes de mais nada, é importante observar que Sócrates e seu jovem interlocutor Teeteto estão tentando encontrar o que em filosofia se costuma chamar de definição, e que essa definição deverá nos fornecer uma resposta à pergunta: “o que é...” Em nosso caso, como se pode constatar na fala inicial de Sócrates, busca-se a definição daquilo que é chamado pela maioria das traduções de “conhecimento” (o termo grego usado por Platão é epistéme; daí “epistemologia” – o estudo das condições do conhecimento em geral). O filósofo se refere à necessidade de terem uma adequada apreensão sobre “o que é o conhecimento”, e é isso que, segundo ele, os motiva e conduz a “investigar”. Temos, portanto, uma investigação, atividade típica das diversas correntes da filosofia, a respeito de uma palavra, de um conceito, de uma ideia sobre a qual paira uma dúvida: afinal, o que queremos dizer quando afirmamos que temos conhecimento de algo? Mas repare também que, ao tentar responder à pergunta “O que é o conhecimento?”, buscando então uma definição do termo, Sócrates e Teeteto precisam produzir conhecimento a respeito do próprio conhecimento. Para esclarecer o que isso quer dizer, observe a seguinte comparação. Quando me pergunto: “Deixei a janela aberta?”, ou “Que dia do mês é hoje, mesmo?”, o conteúdo de minhas dúvidas são fatos obje-

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tivos, acontecimentos que podem ou não Nessa mesma passagem, Sócrates ter ocorrido. Estou, nesse caso, em busca menciona também algo muito imporde um conhecimento sobre a realidade, tante: é preciso manter-se atento, para sobre fatos. O mesmo se passa quando me evitar “investigar erroneamente”, o que pergunto: “Existe um deus?”, ou “Qual a implica admitir que existe um modo origem do universo?”. Também nesses correto de investigar (e outro não). O casos, as respostas que obterei me darão que, segundo ele, significaria investigar conhecimentos objetivos, sobre os contecorretamente? Note que, pelo que diz a údos da realidade em que estou inserido. Teeteto, Sócrates não está se referindo Ora, quando me pergunto “O que é ao resultado da investigação, mas a seu conhecimento?”, não estou em busca de procedimento, ao modo como se conduz uma verdade sobre o mundo em que me essa investigação: “investigamos erroneencontro, mas sim à procura de uma resamente, quando abandonamos o conheposta para uma dúvida sobre o próprio cimento para investigar antes a opinião ato de conhecer. falsa. Ora, é impossível Se é verdade que, que alguém a conheça, nos exemplos anterioantes de compreender res, as respostas me suficientemente o que É comum prestarmos darão conhecimentos é o conhecimento”. atenção às respostas sobre Deus, o uniEntão, o erro que que temos para as verso, a ação de uma Sócrates e Teeteto copessoa ou a janela, meteram em sua invesnossas interrogações, no outro caso podetigação sobre o conhemas nos esquecemos -se dizer que a resposcimento consiste em de nos perguntar: ta me dará conhecitentar responder a uma mento sobre o próprio pergunta que, para ser “Por que essa dúvida conhecimento – sobre bem respondida, exige que tenho deve ser o que está presente no que uma outra pergunrespondida?” ato de conhecer, quais ta tenha sido formulasão as condições neda e respondida antes. cessárias para que eu Há então certa ordem diga que conheço uma de questões que deve coisa, qualquer coisa. ser seguida por quem quer investigar bem Nesse caso, o objeto de definição e e corretamente. Esse é um procedimento de conhecimento é o próprio conhemetodológico importante. cimento. E o conhecimento não é um Frequentemente, prestamos a máxifato, uma realidade externa, é antes um ma atenção às respostas que temos para fenômeno que não faz parte da realias nossas dúvidas e interrogações, mas dade, mas que está presente no indivínos esquecemos de nos perguntar: “Por duo que conhece algo. Isso terá imporque essa dúvida que tenho deve ser restantes consequências, como veremos, pondida? Qual sua importância? Para mas já se pode aqui destacar o seguinte: respondê-la bem, há alguma outra peré um importante tema e preocupação da gunta que deva ser respondida antes?”. filosofia saber como se pode conhecer o Eis o problema para o qual, ao utilizar a mundo, ao mesmo tempo ou até mesmo forma do diálogo, Platão consegue chaantes de conhecê-lo. E isso faz com que mar nossa atenção. haja uma “dúvida” e uma “investigação” Mas por que é preciso antes investisobre esse assunto. gar o que é o conhecimento, para depois

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poder compreender como é possível a opinião? Pelo que vimos, não parece ser muito difícil de compreender, mas vamos tentar formular mais claramente. Se, segundo a hipótese investigada, conhecimento é opinião verdadeira, para compreender como se dá a opinião falsa é necessário já saber o que é opinião verdadeira. Sem essa explicação – que nos dá a definição do verdadeiro e do que significa para uma opinião ser especificamente verdadeira – não teríamos como compreender o falso. Isso porque o falso é justamente a ausência do verdadeiro e só pode ser compreendido com referência a ele. Para definir o que é a falsidade e, portanto, explicar justificadamente como pode surgir em nós uma opinião falsa, sendo ela a falta da verdade, é necessário antes saber o que é a verdade, o que caracteriza uma opinião como verdadeira.

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Wallace Collection, Londres

Argumento e necessidade Assim, quando Sócrates diz a Teeteto que a investigação está seguindo um rumo

François Lemoyne (1688-1737) foi expoente da pintura rococó, apreciada na primeira metade do século XVIII (O tempo salvando a verdade da falsidade

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e da inveja. Óleo sb/ tela, 1737).

incorreto, ele não o diz simplesmente porque é seu desejo pessoal investigar uma questão antes da outra. Ele o faz porque reconhece que há uma necessidade presente na relação entre as duas questões, necessidade que o leva a adotar aquela ordem de investigação. Note que isto marca uma diferença importante em relação a quem desconfie que sua mulher o traiu, como o Bentinho do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis. Bentinho se viu obcecado pela sua investigação não porque achasse que essa era uma questão “filosófica” indispensável para qualquer investigação posterior, mas, sim, porque sua felicidade pessoal estava em jogo. Sócrates, por sua vez, mostra a Teeteto que é necessário, independente de nossas preferências pessoais, investigar primeiro uma questão, para então poder investigar outra, pois sem isso não se pode obter sucesso. Para entender essa necessidade, voltemos à fala inicial de Sócrates. Observe como ele expressa a Teeteto o erro da investigação: “nosso argumento com razão nos censura e mostra que investigamos erroneamente...”. A expressão importante, agora, é “nosso argumento”. “Argumento” traduz um dos termos mais importantes da filosofia platônica e de toda a filosofia grega clássica: lógos. A palavra tem um significado bastante amplo (está associado ao verbo légo, que significa “dizer”) e seu emprego pode variar, conforme o contexto em que aparece. Mas podemos ter uma boa ideia de seu significado mais básico, observando palavras das línguas modernas que derivam dela. A começar por lógica, que é o estudo das formas de pensamento e dos tipos de enunciados que as comunicam. A lógica busca compreender de maneira sistemática e rigorosa os mecanismos fundamentais desses esquemas de pensamento. A lógica, entre outras coisas, analisa e sistematiza formas de argumentos, e, como vimos, Sócrates se

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refere à investigação que ele e Teeteto estão fazendo como “nosso argumento”. Isso significa que a investigação de Sócrates e Teeteto a respeito do saber e do conhecimento deve procurar, digamos assim, obedecer ao lógos, ser racional. E esse lógos, diz Sócrates, deve impor-se às nossas vontades pessoais. Não escolhemos, diz Sócrates a Teeteto, investigar primeiro o que é conhecer, para só então responder à pergunta sobre a opinião falsa. A anterioridade da primeira questão em relação à segunda é inevitável em virtude de seus próprios conteúdos, porque ela é uma anterioridade “lógica”. Platão tem uma maneira bem interessante de comunicar a seu leitor a força dessa necessidade: ele personifica o lógos, como vimos na fala de Sócrates. É como se o lógos, na condição de uma personagem, dirigisse uma “censura” aos dialogantes, resultando na dificuldade em que ambos se encontram. Essa personificação é a forma encontrada pelo filósofo para expressar a inevitabilidade do lógos e de suas regras. E também, para quem se dispõe a investigar a verdade e encontrar definições, o quão superior ele é, se comparado a vontades individuais e interesses próprios daqueles que investigam.

A palavra lógos indica um tipo de pensamento e de linguagem que aspira a ser “lógica”. Também podemos dizer, usando outro termo muito empregado para traduzi-la, que a palavra aponta para o esforço de elaboração de um discurso racional sobre determinado tema ou assunto. Lógos se traduz, muitas vezes, por razão, porque expressa o esforço de dizer as coisas segundo regras de pensamento sistemáticas e plenamente inteligíveis. Isso explica também sua presença em quase todas as palavras que indicam propostas de compreensão sistemática e científica de diferentes objetos e temas: “psicologia” (um lógos sobre a alma, ou psiquê), “sociologia” (um lógos sobre a sociedade), “biologia” (um lógos sobre a vida), “antropologia” (um lógos sobre o homem) etc.

Razão, justiça e conhecimento A mesma forma de conceber o poder do lógos se apresenta em alguns momentos daquele que provavelmente é o mais importante e influente diálogo escrito por Platão: A república. Nele, Sócrates e seus interlocutores investigam e tentam responder à pergunta “o que é a justiça”, e a investigação os levará a tentar compreender o que são um Estado justo e um indivíduo justo. Diante de manifestações de seus jovens interlocutores, que se reconhecem em dificuldade para levar adiante uma investigação tão difícil e importante, o experiente filósofo lembra-lhes de um procedimento metodológico importante, em pelo menos dois trechos do diálogo, que

vale a pena registrar: “Mas não deve ser assim, como nosso argumento (lógos) nos indicava há pouco, e devemos obedecê-lo, até que alguém nos convença com outro, melhor” (Platão, República, 388e, tradução nossa); e “Não sei ainda, mas por onde o argumento (lógos) nos conduzir, como o vento, para lá deveremos ir” (Platão, República, 394d, tradução nossa). Não se engane: o fato de que o argumento nos conduz “como o vento” não significa que vamos para qualquer lugar, porque o vento sopraria de maneira sempre imprevista, resultando daí que a

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dúvida e certeza

A palavra lógos

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Raimondi (c. 1480-1534), A eloquência, a filosofia e a ciência – Será que essas três figuras sempre

dúvida e certeza

se entendem?

investigação não teria rumo certo. Tratase de uma metáfora que indica que nós, os investigadores, somos conduzidos por caminhos que não escolhemos, definidos pela necessidade interna à argumentação. Voltemos agora ao trecho citado do diálogo Teeteto. Sócrates e Teeteto constatam o equívoco que haviam cometido. Tentaram descobrir o que pode ser opinião falsa, sem antes saber o que é conhecimento. O motivo: passaram a investigar o que é opinião falsa, porque foi afirmado que o conhecimento se define como opinião verdadeira; para saber o que é opinião verdadeira, a investigação julgou necessário investigar também o que seria opinião falsa. Mas como saber o que é opinião falsa, se não se sabe ainda o que seria o conhecimento? A investigação parece andar em círculo – está, portanto, condenada ao erro. Eis por que, diz Sócrates, é preciso “começar de novo”. Observe a metáfora do rio para expressar a ideia de que quem nos conduz, de fato, é o caminho traçado pelo próprio rio, e não um caminho que nós vamos criar. Assim como no caso do vento na passagem de A república, aqui seremos conduzidos pela força da correnteza do rio – pela força da correnteza do lógos. Sem saber o que mais dizer, Teeteto insiste na resposta anterior: “conheci-

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Gravura. Biblioteca Nacional, Paris

Marcantonio

mento” é “opinião verdadeira”. Sócrates então vai mostrar-lhe que essa definição não é satisfatória. Sobre método e definições Segundo Sócrates, a arte da oratória, empregada nos tribunais, mostra que a definição de Teeteto não é boa. Por quê? Antes de tentarmos compreender como isso se dá, é necessário ter em mente algumas ideias que parecem pressupostas em todo esse raciocínio, que dizem respeito ao modo como Platão, neste diálogo e em alguns outros, parece compreender o que está em jogo quando nos propomos a dar uma definição de algo. Se respondo à pergunta: “o que é conhecimento?”, afirmando que “conhecimento” é “opinião verdadeira” (em outras palavras, dando uma definição de “conhecimento”), então estou afirmando que “opinião verdadeira” contém algo sem o que “conhecimento” não seria “conhecimento”. Mas será correto concluir que (1) sempre que houver “conhecimento”, haverá “opinião verdadeira”, e (2) sempre que houver “opinião verdadeira”, haverá “conhecimento”? A estratégia de Sócrates, com o exemplo dos oradores e advogados, consistirá em mostrar que a exigência (2) não é satisfeita: há casos em que se adquire “opinião verdadeira” sem com isso adquirir “conhecimento”, o que mostra que “conhecimento” e “opinião verdadeira” não são a mesma coisa – e era isso que estava por trás da ideia de uma definição. Assim, se Sócrates puder mostrar que é verdade que se pode adquirir “opinião verdadeira” sem adquirir “conhecimento”, “opinião verdadeira” não será mais uma definição adequada para “conhecimento”, por não satisfazer a exigência (2). Eis então como Sócrates argumenta: 1. No tribunal, um orador ou advogado precisa, em pouco tempo, produzir nos juízes uma opinião favorável ao que ele defende.

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4. 5.

Estabelecido esse ponto, Teeteto propõe uma nova definição possível de conhecimento: “opinião verdadeira acompanhada de justificação”. Duas observações devem ser feitas sobre essa nova tentativa de definição. Em primeiro lugar, veja que a nova proposta de definição não abandona a anterior, mas a enriquece e aprofunda. Ela mantém que conhecimento é “opinião verdadeira”, acrescentando agora: “acompanhada de justificação”. Afirma em seguida a importância desse acréscimo: “opinião verdadeira sem justificação está fora do conhecimento, e aquilo de que não se tem justificação não é objeto de conhecimento”. Podemos expressar essa importância, em termos filosóficos mais precisos, dizendo que “opinião verdadeira”, mantendo-se na definição, é uma condição necessária para a posse de conhecimento. No entanto, se pode existir, como vimos, opinião verdadeira sem conhecimento, esta não é uma

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Até que ponto um bom advogado faz a principal diferença em um julgamento? (John Morgan [18221885], Cavalheiros do júri. Óleo sobre tela, 1861)

condição suficiente para possuí-lo. Algo mais deve estar presente quando temos conhecimento, sem o qual ele não existirá. Esse “algo a mais” é chamado de “justificação” e é apresentado como aquilo sem o que “conhecimento” não seria “conhecimento”. Pode-se dizer, então, que a definição que Sócrates e Teeteto estão procurando em sua investigação deve conter duas características importantes. Uma, mais genérica, está presente também em outras coisas que não são o objeto da definição – em nosso caso, “opinião verdadeira” é algo presente em “conhecimento”, mas também no que não é “conhecimento” (as opiniões verdadeiras dos juízes nos tribunais). Mas há ao lado disso outra característica específica de “conhecimento”, que o distingue de outros tipos possíveis de opinião verdadeira: “justificação”. É fundamental saber que a palavra aqui empregada, “justificação”, também traduz aquela palavra já nossa conhecida: lógos. Então, o conhecimento se dá quando, além de possuirmos uma opinião verdadeira sobre algo, somos capazes de fornecer justificação para isso. Em outros termos, diremos que o conhecimento consiste em ser capaz de fornecer argumentos. Esses argumentos dão as razões que nos

dúvida e certeza

3.

John Morgan. Bucks County Museum, Londres

2.

Deve, segundo o termo empregado por Sócrates, persuadir. Persuadir é produzir em alguém uma opinião que deverá parecer verdadeira – no caso, aos juízes. Nessas condições, o advogado precisa produzir tal opinião sem que os juízes tenham conhecimento do que ocorreu, porque eles não testemunharam os fatos. Por isso, os juízes julgam com base apenas no que dirão esse e outros advogados e testemunhas. Portanto, se ele conseguir produzir nos juízes uma opinião verdadeira, e se esses mesmos juízes admitem não ter conhecimento dos fatos, então ficará claro que é possível que alguém tenha opinião verdadeira sem conhecimento. Ora, os advogados conseguem fazer isso. Portanto, existe opinião verdadeira sem conhecimento.

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permitem afirmar por que nossa opiniĂŁo verdadeira ĂŠ verdadeira. Ora, o fato de que o mesmo lĂłgos norteia a investigação de SĂłcrates e Teeteto, e ĂŠ uma exigĂŞncia indispensĂĄvel para o conhecimento, sugere que a prĂłpria investigação ĂŠ uma tentativa de encontrar uma “opiniĂŁo verdadeira, acompanhada de justificaçãoâ€?. Como vimos, trata-se de tentar conhecer o que ĂŠ conhecer. Portanto, a investigação esteve, todo o tempo, servindo-se de um procedimento que agora se apresenta claramente. O objetivo de afastar a dĂşvida, em favor da posse de uma certeza, ĂŠ, afinal, a tentativa de encontrar boas razĂľes para aceitar que algo ĂŠ verdadeiro. A investigação do filĂłsofo serĂĄ, por isso, inevitavelmente um procedimento argumentativo, uma procura por razĂľes e justificaçþes. NĂŁo basta “ter opiniĂľes verdadeirasâ€?, ĂŠ preciso saber justificĂĄ-las. Eis o que tentam fazer SĂłcrates e Teeteto. A posse de uma justificação permite, segundo o texto, dar o passo fundamental e estabelecer uma diferença importante, entre estar de posse da verdade e conhecĂŞ-la como verdadeira. Eis-nos de volta Ă distinção entre certeza e verdade. O que nosso texto considera como “posse da verdade pela almaâ€? equivale a uma certeza subjetiva. Somente a presença de uma justificação poderĂĄ conferir a essa “verdadeâ€? o sentido forte de conhecimento.

A experiĂŞncia do diĂĄlogo Atividade em equipe e debate em sala de aula 1. Em dupla com um(a) colega, escolha uma questĂŁo qualquer extraĂ­da do noticiĂĄrio cotidiano, como um acontecimento polĂ­tico ou cultural, ou um fato que diga respeito a seu dia a dia, como, por exemplo, o comportamento de motoristas e pedestres nos centros urbanos brasileiros, ou a discussĂŁo sobre o tema da segurança pĂşblica. Em seguida, procurem montar um breve diĂĄlogo que contenha uma investigação, inspirada no exemplo do diĂĄlogo Teeteto, apresentando-a em sala de aula. 2. Em dois diĂĄlogos diferentes, PlatĂŁo afirma que o pensamento consiste num “diĂĄlogo silencioso da alma consigo mesmaâ€? (cf. Teeteto, 189e; Sofista, 263e). Partindo disso, procure apresentar uma espĂŠcie de diĂĄlogo interior, no qual vocĂŞ pode pensar sobre uma questĂŁo e construir um conjunto de perguntas e respostas, tambĂŠm inspirados nos diĂĄlogos platĂ´nicos estudados. Apresente os resultados em dupla, para os demais colegas da classe.

dĂşvida e certeza

Duvidando para atingir a certeza

HĂĄ situaçþes de investigação em que se busca responder a uma questĂŁo, como “o que ĂŠ conhecimento?â€?. Pode-se dizer, nesse caso, que havia uma dĂşvida no inĂ­cio da investigação, que motivava essa investigação e sem a qual a investigação nĂŁo aconteceria. Toda busca de certeza consiste numa forma de eliminar uma dĂşvida. A dĂşvida, entĂŁo, pode ser vista como um obstĂĄculo a ser transposto, como algo

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negativo e indesejado. À primeira vista, ninguÊm quer ter dúvidas e, quando as temos, todos nós queremos resolvê-las. Contudo, Ê possível tambÊm considerar a dúvida como um caminho para a certeza, fazendo da dúvida um mÊtodo para encontrar a verdade. Pode parecer estranho, mas, desse ponto de vista, trata-se de procurar a dúvida, de escolher duvidar, exercitando a dúvida deliberadamente.

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René Descartes (1596-1650)

E será mesmo muito útil rejeitar como falsas todas aquelas coisas nas quais pudermos imaginar a menor dúvida, de modo que, se descobrirmos algumas que, apesar dessa precaução, parecerem-nos manifestamente verdadeiras, consideremos então que são muito certas e as mais fáceis de conhecer.” (Descartes, Princípios da filosofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 107108. Tradução nossa)

Descartes é considerado uma espécie de fundador da filosofia moderna, e uma das razões que justificam essa atribuição está justamente na nova maneira de conceber o papel da dúvida na filosofia. A passagem que lemos nos dá boas indicações dessa nova concepção. Inicialmente, o texto afirma uma característica de nossa condição: desde a infância, estamos habituados a levar em conta privilegiadamente o que percebemos pelos nossos sentidos. Como, nessa época da vida, estamos pouco habituados ao uso de uma razão ainda em formação, naturalmente adquirimos certas convicções que se alojam em nós com muita força, mas que são, na verdade, “juízos formados com precipitação”.

dúvida e certeza

“Porque fomos crianças antes de termos nos tornado adultos, e porque julgamos ora bem, ora mal acerca de coisas que se apresentaram a nossos sentidos em uma época na qual não dispúnhamos ainda do inteiro uso de nossa razão, aconteceu que muitos juízos, formados com precipitação, impedem-nos de chegar ao conhecimento da verdade. E o fazem de modo que não há aparência de que possamos nos libertar, salvo no caso de nos dedicarmos a duvidar uma vez em nossas vidas de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza. [...]

Frans Hals. Museu do Louvre, Paris

Nesse caso, ela passa a ser um momento indispensável na descoberta da verdade. Aqui, estamos bem longe das situações de dúvida e investigação de nossa vida cotidiana. Quando me pergunto, no meio da rua e debaixo de chuva, se fechei ou não a janela do meu quarto antes de sair de casa, não escolhi essa dúvida, ela se impôs a mim. Do mesmo modo, quando alguém se põe a investigar se foi ou não traído por sua esposa, ele tampouco escolheu essa dúvida. Muito pelo contrário, a pessoa daria tudo para não vivenciar essa experiência. No caso da filosofia, entretanto, as coisas se passam diversamente. Como você logo irá verificar, houve filósofos que sustentaram que a dúvida seria o procedimento que nos garantiria estarmos de posse de verdades incontestáveis. Nesses casos, a dúvida é desenvolvida como um caminho ou método que escolhemos para alcançar a verdade. O filósofo que elevou o papel da dúvida a essa condição de instrumento filosófico indispensável na busca da certeza foi René Descartes (1596-1650). Para compreender como Descartes considerou a relação entre dúvida e certeza, vejamos algumas passagens de sua obra:

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Descartes, fundador da filosofia moderna René Descartes (1596-1650) viveu na passa-

No Discurso do método, que o torna conhe-

gem de uma época para outra, uma transição

cido entre os doutos, Descartes defende um

para a qual ele mesmo contribuiu muito. A Fran-

novo estilo de pensamento, inspirado na cla-

ça em que cresceu se tornou, ao longo do sécu-

reza, na evidência e na ordem das matemáti-

lo XVII, a principal monarquia católica europeia,

cas. Em 1641, publica as Meditações metafísicas,

superando de vez a Espanha e rivalizando com

em que demonstra, baseado nesse método, a

o Reino Unido na disputa política mundial.

imortalidade da alma e a existência de Deus. Os

Acompanhando o processo de afirmação da

Princípios da filosofia são de 1644, e As paixões

cultura nacional, Descartes foi um dos primei-

da alma, em que expõe sua filosofia moral, de

ros pensadores a publicar textos não apenas

1649. Descartes encontra-se naquele momento

em latim, mas também em francês, dirigindo-se

em Estocolmo, na Suécia, a convite da rainha

a um público mais amplo que aquele formado

Cristina. Obrigado a se levantar às 5h da manhã

pelos teólogos e professores ligados às univer-

todos os dias para instruir a rainha, contrai uma

sidades (em especial, a da Sorbonne, em Paris).

doença pulmonar e falece.

Inovou nas ciências (aderiu às teses de Ga-

As principais obras de Descartes estão

lileu Galilei) e nas matemáticas (foi o criador da

traduzidas para o português. Citamos apenas

geometria analítica e do sistema de coordena-

algumas delas a seguir, para consulta:

das... cartesiano, que você deve conhecer). Mas

R. Descartes, Obras escolhidas. Tradução: J.

foi sobretudo no âmbito da filosofia que a contri-

Guinsburg, B. Prado Jr., N. Cunha e G. Guins-

buição de Descartes para o surgimento da filoso-

burg. São Paulo: Perspectiva, 2010. (Esse volu-

fia moderna foi decisiva. Ele é o autor do “penso,

me contém Discurso do método, Meditações me-

logo existo”, o famoso cogito, que representou

tafísicas, Paixões da alma e a Geometria, entre

uma façanha em relação ao pensamento de sua

outros textos.)

época, ainda preso, sob muitos aspectos, ao le-

R. Descartes, O mundo ou Tratado da luz (Tra-

gado de Aristóteles e de Tomás de Aquino. Com

dução: C. A. Battisti). O Homem (Tradução: M.

o cogito, a filosofia se torna de vez reflexiva e

Donatelli). Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

subjetiva – o sujeito do pensamento ganha uma

Para estudo introdutório, ver:

relevância extraordinária, que iria marcar pro-

Franklin L. e Silva, Descartes – A metafísica

dúvida e certeza

fundamente os rumos posteriores da filosofia. A biografia de Descartes possui grande inte-

(Há, em DVD, uma aula de Franklin L. e Silva

resse. Estudou em uma escola jesuíta, o Colégio

que aborda de modo muito claro as contribui-

La Flèche. Em seu Discurso do método (1637), ele

ções filosóficas de Descartes e Kant como mar-

nega ter aprendido ali qualquer matéria que

cos do pensamento moderno: “Uma reflexão

fosse relevante para a vida. A fim de aprender

sobre o pensamento moderno”. São Paulo:

com o mundo, pôs o pé na estrada e viajou inten-

Editora Abril e Fundação Padre Anchieta, 2002.)

samente pela Europa. Em 1618, alista-se nas tro-

J. Cottingham, Dicionário Descartes (Tradu-

pas de Maurício de Nassau (1567-1625), quase

ção: H. Martins). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

vindo combater por nossas terras, por conta da

Editor, 1995.

ocupação holandesa no Nordeste brasileiro.

da modernidade. São Paulo: Moderna, 2005.

Há um excelente estudo sobre a filosofia

Mas, na noite de 10 de novembro de 1619,

moral cartesiana, escrito nos anos 1950 por

Descartes tem um sonho que, segundo rela-

um dos primeiros professores brasileiros a

tou depois, iluminou-lhe a ideia de uma nova

adotar um método rigoroso e instigante de lei-

ciência. Renuncia à carreira militar por volta de

tura de textos clássicos:

1620. Munido de uma herança materna, passa a dedicar-se aos estudos científicos e filosóficos.

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Lívio Teixeira, Ensaio sobre a moral de Descartes. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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dúvida e certeza

Ora, essas convicções se tornam muiA dúvida metódica de Descartes to intensas e temos muita dificuldade É costume dizer que em Descartes há para perceber que podem ser obstáculos uma “dúvida metódica”. “Metódica” porna tentativa de “chegar ao conhecimento que é praticada sistematicamente, com da verdade”. método, voluntariamente e por iniciaAqui se mostra um aspecto importantiva própria, como um meio de pôr à te do pensamento cartesiano e de várias prova nossas convicções e opiniões. Ela outras filosofias: quando adotamos uma não tem como objetivo tentar solucionar atitude filosófica, colocando-nos em busum problema que surge inesperadamenca da verdade, deparamos com certas te em nosso caminho, como a dúvida so“verdades” que adquirimos desde cedo em bre ter ou não fechado a janela ao sair de nossas vidas, que nos são transmitidas casa ou a do marido desconfiado quanto também pela educação e pelos hábitos, e à fidelidade de sua esposa: o filósofo, ao que tendemos a considerar como absolucontrário, cria ele próprio dúvidas, pertamente óbvias e evidentes. guntando-se se e como elas podem ser É essa atitude natural que deve ser resolucionadas. jeitada, pois, se estivermos em busca do Esse modo de encarar a dúvida está preconhecimento, essas presumidas “versente nas Meditações metafísicas de Descardades” devem ser vistas tes, o mais importante de com cautela e tornar-se seus tratados filosóficos. objeto de nosso quesA primeira de suas seis tionamento. Sendo a fiMeditações reúne um conO filósofo cria ele losofia, para Descartes, junto de argumentos que próprio dúvidas, aquilo que nos permite põem em dúvida todas as perguntando-se se a libertação dos juízos opiniões estabelecidas, apressados, da falsidade para, na sequência, dese como podem ser e da incerteza, é preciso cobrir verdades que persolucionadas. que nosso conhecimento mitirão a construção de seja baseado em verum sistema sólido e rídades dotadas de uma gido de conhecimentos. certeza absoluta. E isso Observe, então, como o não pode ser alcançado se não encontrarfilósofo inicia esse texto fundamental, e mos um meio de basear nossos conhecomo nesse início encontramos aquela aticimentos em alguma verdade que seja tude metodológica: comprovadamente irrefutável. E como Descartes acredita poder so“Já há algum tempo me dei conlucionar o problema? Sua resposta, como ta de que, desde os meus primeiros vimos, consiste em adotar uma atitude anos, eu havia recebido muitas faldiante da dúvida: “nos dedicarmos a dusas opiniões como verdadeiras, e que vidar uma vez em nossas vidas de todas aquilo que eu a partir daí fundei soas coisas nas quais encontrarmos a mebre princípios tão mal fundados não nor suspeita de incerteza.” Observe que podia ser senão muito duvidoso e duvidar, agora, é uma atividade delibeincerto; de maneira que era preciso rada: para bem filosofar, é preciso tenque eu resolvesse a sério, uma vez na tar colocar todas as verdades aceitas em vida, desfazer-me de todas as opisuspenso, considerando as razões que teniões que eu havia acolhido até enmos para questioná-las e verificando se, tão em minha crença e começar tudo de fato, resistem à dúvida. de novo, desde os fundamentos, se

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Bildergalerie, Potsdam

eu desejava estabelecer alguma coisa firme e constante nas ciências.”

dúvida e certeza

(R. Descartes. Meditações metafísicas, Tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. IX-1, p. 13)

Ao colocar a dúvida metódica e sistemática no início do trajeto filosófico, Descartes dá significado importante à relação entre dúvida e certeza. Se é verdade que onde há dúvida não há certeza, agora, com Descartes, a certeza só será absoluta se resistir à dúvida. Só poderei aceitar como verdade absolutamente certa algo que a dúvida não puder alcançar. Continuemos a examinar a ideia da dúvida metódica e, para isso, voltemos a uma frase citada há pouco, que afirma que o filósofo deve tomar a iniciativa de “duvidar, uma vez em nossas vidas, de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza”. Já sabemos por que é preciso tomar a iniciativa de duvidar, mas reflitamos um pouco mais sobre essa ideia. Como estamos habituados a ver na dúvida algo negativo, que pode mesmo gerar em nós angústias e apreensão, não percebemos facilmente o que isso significa. Na verdade, Descartes está aqui nos apresentando uma justificativa para uma atitude tipicamente filosófica: interrogar e levantar questões a respeito de tudo. É comum ouvir dizer, de alguém que gosta de fazer perguntas e duvidar mais do que de hábito, que é um “filósofo”, e nesse caso o termo admite uma conotação meio jocosa, como uma espécie de ironia. Mas não deixa de ser verdade que a filosofia se transformou, sobretudo a partir de Descartes, numa atividade de investigação e reflexão que precisa começar com perguntas ou dúvidas – como já fazia Sócrates na Grécia antiga. Por mais estranho que possa soar a ouvidos pouco habituados a conceitos filosóficos,

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Caravaggio (1571-1610), A incredulidade de Tomé (óleo sb/ tela, 1599. Bildergalerie, Potsdam). Este episódio da vida de Jesus é descrito no Evangelho de João (24:24).

é preciso, em certo sentido, adquirir gosto por duvidar, aprender a duvidar e não evitar a dúvida. Diferentemente de nossa atitude mais corriqueira, Descartes e outros pensadores entendem que, sem duvidar seriamente de tudo, nunca saberemos com certeza onde se encontra a verdade. Nossa frase diz também que é preciso tomar a iniciativa de duvidar “uma vez na vida”. É claro, portanto, que Descartes não acha que passaremos a vida inteira a duvidar de tudo. Isso está em total concordância com o fato de que sua dúvida é “deliberada” e “metódica”. Nesse caso, a atitude de duvidar consiste numa escolha estratégica daquele que quer encontrar verdades incontestáveis e julga que só o conseguirá se puser tudo à prova. Quando botarmos essa estratégia em ação e isso nos permitir descobrir as verdades, deixaremos de duvidar. Isso mostra que essa dúvida não implica fazer referência a nosso estado psicológico, a nossas inseguranças e hesitações individuais. Aqui a dúvida não envolve, por exemplo, o desespero de um ciumento desconfiado, como o Bentinho de Machado de Assis, que

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Para compreender realmente o que isso quer dizer, nada melhor do que conhecer algumas dúvidas apresentadas na primeira das Meditações metafísicas. Descartes duvida se está, naquele momento, diante de sua lareira, vestido com seu robe de chambre, porque talvez esteja, naquele momento, apenas sonhando – e por que não? Muitas vezes sonhamos com acontecimentos que parecem reais. Para Descartes, pode ser que eu não esteja agora fazendo o que julgo fazer, porque posso estar sonhando, ou até mesmo pode ser que tudo o que me passa pela cabeça não seja mais do que uma ilusão enganosa, produzida por um deus enganador ou um gênio maligno! Parece então que podemos e devemos duvidar até mesmo da verdade das sensações ou representações mais evidentes, como a de que estou neste momento em frente a um computador escrevendo este texto. Assim colocada a questão, parece que podemos e devemos duvidar de tudo, contanto que exista “a menor suspeita de incerteza”. Ora, como isso é possível, como podemos aceitar que uma dúvida dessas seja razoável?

dúvida e certeza

Warner Brothers/Everett Collection/Keystone

vê ameaçada toda a sua felicidade por conta da suspeita de que foi traído por sua esposa Capitu. Se conseguirmos encontrar verdades absolutamente certas e irrefutáveis, elas permanecerão assim para sempre, independentemente de quem as pense e investigue. O resultado da investigação não depende das vontades subjetivas dos investigadores. Essa necessidade presente nas descobertas da investigação tem algo a ver com o lógos – argumento, lógica, razão – encontrado nos diálogos de Platão[+]. Também Descartes pretende que seu método de duvidar de tudo lhe dará em troca a descoberta de verdades necessariamente certas, obtidas por um procedimento rigoroso de dúvida e investigação. Outra característica incomum da dúvida metódica de Descartes é que ela se dirige a toda e qualquer suposta verdade que puder ser questionada, inclusive, como vimos, aquelas que recebemos desde a infância (“de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza”, diz o texto dos Princípios da filosofia).

Cena de Matrix, filme dirigido pelos irmãos Wachowski (EUA/Austrália: 1999). Uma rede de computadores criou o mundo aparente por meio de software, para explorar os humanos. Alguns deles descobrem que nada é o que parece ser.

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dúvida e certeza

Duvidoso ou incontestável nos fortes. Eu digo que neste momento A resposta para essas questões enconolho pela janela e “não tenho nenhuma tra-se na sequência da passagem citada. dúvida” de que não está chovendo. Digo Ela nos dá importantes informações sotambém que tenho dúvidas sempre que bre o sentido dessa dúvida, informações preciso escolher um prato nos cardápios que poderão nos auxiliar a compreender de restaurantes. E digo ainda que tenho tudo o que está em jogo com esse médúvidas se viverei até os oitenta anos. todo: “E será mesmo muito útil rejeitar No primeiro caso, estou convicto. No como falsas todas aquelas coisas nas segundo, minha dúvida se dissipará rapiquais pudermos imaginar a menor dúdamente, basta que eu escolha um prato. vida”. O início é curioso: propõe que eu No terceiro, só saberei na hora, se é que devo considerar falso aquilo de que dusaberei... São situações completamente vido, o que à primeira vista não parece distintas para mim, que expressam estafazer muito sentido. dos psicológicos inconfundíveis entre si. Quando saio de casa Mas Descartes está e começa a chover, e à procura de uma forme vem a dúvida se ma de encontrar verfechei mesmo a janela: dades absolutamente Para Descartes, se chego a duvidar que verdadeiras e não pode a tenha fechado, não é separar dessa maneira não devemos aceitar por isso que vou conseus estados de dúvicomo verdadeiro o cluir que é falso que da. Por isso, ele decide, que for duvidoso: eu a tenha fechado. Se por um ato de sua vontenho dúvidas a restade, tratar como falso, o conhecimento peito, é porque não sei mesmo sem saber se é deve partir se minha impressão realmente falso, tudo de certezas de que a fechei é verque for minimamente dadeira ou é falsa. É duvidoso. incontestáveis. só isso que então está Observe ainda que sob suspeita: fechei Descartes diz que vaou não a janela? Ora, mos imaginar essa o que nos recomenda “menor dúvida”. Esta Descartes é outra coisa. Ele nos propõe palavra, “imaginar”, é importante e peque consideremos tudo o que seja minirigosa: importante porque nos ajuda a mamente duvidoso como se fosse absocompreender que essa dúvida não é uma lutamente falso. convicção pessoal do filósofo, algo em Descartes quer que não aceitemos que ele realmente necessite acreditar. Ele como verdadeiro o que for duvidoso – deve apenas ser capaz de imaginá-la. Pequer que nosso conhecimento seja basearigosa porque sempre que usamos esse do em certezas incontestáveis. Se algo se verbo, “imaginar”, pensamos que se tramostrar impossível de se colocar em susta de algo fantasioso e irracional, e isso peita – algo de que não possamos “imapode parecer completamente incompaginar a menor dúvida” – isto terá que ser tível com a ideia de “razão”, que, como considerado como verdadeiro, porque vimos, Descartes emprega aqui. Veja, terá escapado da dúvida. aliás, que ele não hesitou em usar outra Preste atenção na expressão: “a menor expressão que pode nos soar estranha, dúvida”. Pense como, em nossas vidas, para comentar seu procedimento metodos nós temos dúvidas mais ou metodológico de duvidar: “Decidi fazer de

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Anibale Carracci. Museu Nacional de Capodimonte, Nápoles

A mulher da direita representa o prazer; a da esquerda, a difícil via da virtude (Annibale Caracci [1560-1609], A escolha de Hércules,

conta que todas as coisas que tinham até esse momento entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos” (Descartes, Discurso do método, tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 32). “Fazer de conta” é outra expressão que requer muito cuidado. Estamos acostumados a associá-la a fantasias literárias, romances, contos de fadas, nunca a investigações filosóficas. Mas o que ela quer dizer aqui? Retomemos as dúvidas mencionadas. O fato de que às vezes eu tenha sonhos que me pareçam absolutamente reais me leva a “fazer de conta” que neste momento esteja sonhando – e, de fato, posso estar sonhando o tempo todo. Não importa se creio ou não nisso, o que importa é que consigo “imaginar” essa possibilidade como uma possibilidade razoável. Há uma razão para ela – muitas vezes, sonhamos com fatos reais –, e essa razão é suficiente para que eu, metódica e deliberadamente, “faça de conta” que estou sonhando o tempo todo. Há uma

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razão de duvidar, fundamentando esse “imaginar”, esse “fazer de conta”. Assim, a investigação de Descartes vai ampliar o máximo possível essa dúvida, procurando, diante de tudo, uma razão para duvidar, de modo a fazer de conta que tudo o que é duvidoso é também falso. A expressão “fazer de conta”, afinal, indica apenas que essa dúvida não é a expressão de uma situação realmente vivida pelo indivíduo René Descartes em seu cotidiano. Trata-se, isso sim, de apenas uma estratégia de descoberta de uma ou mais verdades indubitáveis, de modo a obter um conjunto sólido e inatacável de conhecimentos. Mas isso não retira dessa dúvida sua força e importância: ao baseá-la em razões, Descartes está justamente dissociando a dúvida de motivações individuais, que digam respeito apenas a si mesmo. Todos nós temos que reconhecer que há uma “dúvida mínima”, uma possibilidade ínfima de que possamos estar agora sonhando. A dúvida é, então, razoável, e isso basta para os propósitos da investigação filosófica.

dúvida e certeza

óleo sb/ tela, 1596.

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O CONTRAPONTO DE PASCAL AO “SONHO” DE DESCARTES O pensador francês Blaise Pascal (16231662) desenvolveu, de maneira esparsa,

Mas porque os sonhos são todos diferentes

-argumentações ao procedimento de dúvi-

e porque mesmo um se diversifica, aquilo que

da metódica sugerido, em Descartes, pela

lá vemos afeta-nos bem menos do que o que

indistinção inicial entre sonho e vigília. Leia

vemos acordados, por causa da continuidade

atentamente o seguinte trecho de Pascal:

que, contudo, não é tão contínua e uniforme a

“Se, todas as noites, nós sonhássemos a

ponto de não mudar ela também, mas menos

mesma coisa, ela nos afetaria tanto quanto

bruscamente, a não ser raramente, como quan-

os objetos que vemos todos os dias. E se um

do viajamos e então dizemos: parece-me estar

artesão estiver seguro de sonhar todas as

sonhando; pois a vida é um sonho um pouco

noites durante doze horas que é rei, acredito

menos inconstante. (Pascal, Pensamentos,

que ele seria quase tão feliz quanto um rei

§803. Edição de referência: Pascal, Pensées

que sonhasse todas as noites durante doze

[edição de Lafuma]. Tradução nossa.)

dúvida e certeza

Você há de notar que, entre os trechos

Se, todas as noites, nós sonhássemos que

citados de Pascal e de Descartes, há alguns

estamos sendo perseguidos por inimigos e

pontos em comum, mas seus desenvolvimen-

perturbados por esses fantasmas angustian-

tos são bastante diferentes. A rigor, Pascal

tes, e que transcorremos todos os dias em

não está preocupado em definir se estamos

meio a diferentes ocupações, como quan-

ou não sonhando, nem em descobrir um cri-

do viajamos, nós sofreríamos quase tanto

tério que possibilite diferenciar com certeza o

quanto se isso fosse verdade, e estimaríamos

sonho da vigília. Para Pascal, a vigília se dife-

o dormir como nós estimamos o acordar,

rencia dos sonhos porque costuma ser mais

quando, com efeito, tememos ingressar em

constante que eles. E isso lhe basta para con-

tais desgraças. E, com efeito, isso nos causa-

tornar a dificuldade levantada por Descartes.

A certeza filosófica Nosso trajeto em torno das relações entre “dúvida” e “certeza” nos mostrou que a interrogação, expressão de uma dúvida, deve ser respondida de modo a nos dar uma “certeza” que aspira a ser uma “verdade” ou um “conhecimento”. Os filósofos, ainda que empregando vocabulário variado, frequentemente querem que certezas individuais, isto é, crenças particulares que não estão fundadas em boas razões, sejam superadas e nos conduzam a verdades incontestavelmente provadas. Platão, no diálogo Teeteto, propunha que esse ideal só pode ser alcançado quando opiniões que se pretendem “verdadeiras” estejam realmente baseadas em “razões” e “justificações”. Só

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realidade.

aquilo que poderíamos chamar de contra-

horas que é artesão.

ria mais ou menos os mesmos males que a

dessa forma essas opiniões verdadeiras adquirem a qualidade de serem aceitas por todos, merecendo assim a denominação de “conhecimento”. Com Descartes, continua valendo esse tipo de distinção entre verdades apenas subjetivas e individuais e verdades demonstradas como irrefutáveis para todos. Porém, a forma como ele lida com essa distinção é profundamente original em comparação com seus antecessores. Vejamos por quê. Ao duvidar de tudo que é possível, Descartes conclui que a própria existência do mundo externo pode ser apenas uma ilusão. É o ponto culminante do processo deliberado de considerar falso tudo aquilo que é minimamente duvido-

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so. Assim termina a primeira de suas Meditações. Ao iniciar a segunda, ele constata o seguinte: se duvido, então sou algo enquanto duvido. Só posso duvidar porque existo. Então, está fora de dúvida que eu sou, eu existo. Essa é a primeira verdade que a investigação obtém. Por que é fora de dúvida que existo? Porque se eu não existisse, não poderia duvidar. A dúvida não pode questionar essa verdade, porque minha existência é exigida para que eu duvide. Como duvidar é pensar, concluo: penso, logo existo. Dessa primeira verdade, a investigação partirá para a descoberta de novas verdades, que, aos poucos, permitirão a Descartes colocar fora de dúvida muitas crenças básicas que haviam sido objeto de suspeita, como, por exemplo, que não estou sonhando, que existe um Deus veraz e bondoso, que existe o mundo exterior. Descartes acreditava nisto antes de iniciar o processo dubitativo. Mas se viu obrigado, por decisão própria, a duvidar de tudo isso. Com a obtenção da primeira certeza (o cogito) e, com base nela, a descoberta de outras verdades, Descartes pode

reaver aquelas crenças iniciais, acrescidas porém desta vantagem: agora, a certeza obtida a respeito dessas verdades é outra, é filosófica e científica... Você já sabe no que reside a diferença: a certeza, agora, extrai sua garantia de algo que se encontrava presente naquela primeira verdade: “eu sou, eu existo”. Para compreender o que isso quer dizer, vejamos mais uma passagem cartesiana, agora do Discurso do método: “Considerei em geral o que é exigido para que uma proposição seja verdadeira e certa. Pois, visto ter acabado de encontrar uma que sabia ser assim, pensei que devia também saber em que consiste essa certeza. E tendo observado nada haver em tudo isto – eu penso, eu existo – que me assegure que eu diga a verdade, a não ser que eu vejo com muita clareza que, para pensar, é preciso existir, julguei que poderia erigir como regra geral que as coisas que concebemos com muita clareza e distinção são todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar quais são aquelas

Atividade em equipe e desenvolvimento individual por escrito Faça, como exercício momentâneo de reflexão, a seguinte experiência. Adote a perspectiva cartesiana e procure boas razões para colocar em dúvida suas convicções mais fortes. Você não precisa comprometer-se com o conteúdo dessas dúvidas, e sim imaginar razões para duvidar, e essas razões devem ser aceitáveis a qualquer um e não apenas a você.

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• Organizando-se em equipes dispondo de três a cinco participantes cada uma, busque então responder à seguinte questão: até onde somos capazes de duvidar de nossas certezas? Sistematize os resultados em forma de redação, apresentando as razões favoráveis e contrárias, em primeiro lugar, à ampliação da dúvida e, em segundo lugar, à afirmação de certezas que porventura consigam se mostrar resistentes a ela.

dúvida e certeza

Até que ponto você é capaz de resistir à dúvida?

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que concebemos distintamente.� (R.

dĂşvida e certeza

Descartes. Discurso do mÊtodo, IV parte, Tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 33)

A expressĂŁo fundamental aqui ĂŠ regra geral. Da Ăşnica verdade conhecida, isto ĂŠ, da Ăşnica certeza absoluta, Descartes extrai uma regra geral que vai permitir saber, de agora em diante, “o que ĂŠ exigido para que uma proposição seja verdadeira e certaâ€?. E a regra geral ĂŠ: “as coisas que concebemos com muita clareza e distinção sĂŁo todas verdadeiras.â€? Essa serĂĄ a regra geral nĂŁo porque o filĂłsofo quis assim, mas porque encontrou essas caracterĂ­sticas – clareza e distinção de concepção – na Ăşnica verdade que possui: eu penso, logo existo. “Clareza e distinçãoâ€? sĂŁo, portanto, critĂŠrio de verdade. Quais pensamentos seus satisfazem esse quesito? É atravĂŠs dessa questĂŁo que Descartes irĂĄ prosseguir em sua investigação. Ao examinar a ideia de Deus, ser infinito, Descartes conclui que ele mesmo seria incapaz de pensĂĄ-la, caso ela nĂŁo fosse produzida por algo fora de sua consciĂŞncia. Afinal, como ĂŠ que um ser finito poderia dispor, sozinho, da ideia do infinito? Por essa via, Descartes obtĂŠm a certeza da existĂŞncia de Deus, uma conclusĂŁo que tambĂŠm satisfaz o critĂŠrio de verdade e que se torna, com isso, uma verdade demonstrada e irrefutĂĄvel. Na sequĂŞncia da investigação, o filĂłsofo deve sempre se perguntar se estĂĄ diante de uma concepção clara e distinta de algo; em caso afirmativo, terĂĄ obtido mais uma verdade. Assim se vai recuperar, agora como um conjunto sistemĂĄtico, o conjunto das verdades fundamentais. Por que, entĂŁo, ĂŠ tĂŁo frequente ouvir-se afirmar que o pensamento de Descartes inaugura a filosofia moderna? Porque agora uma verdade “subjetivaâ€? – eu penso, logo existo – se torna ponto de partida para a descoberta

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de verdades realmente objetivas, que tĂŞm valor de conhecimento em sentido forte. DaĂ­ se dizer com frequĂŞncia que, com Descartes, a filosofia se torna uma reflexĂŁo sobre o sujeito do conhecimento, antes de mais nada, e que tal investigação sobre o sujeito do conhecimento traz ganhos para conhecer o prĂłprio mundo, alĂŠm de nos permitir descobrir atĂŠ onde esse conhecimento pode chegar. Vale a pena registrar que, conforme Descartes, a atitude de duvidar de tudo serve a uma finalidade teĂłrica, cognitiva, de “contemplação da verdadeâ€?. Logo, ela nĂŁo deve ser aplicada aos negĂłcios e problemas de nossa vida diĂĄria. Veja o que Descartes diz neste passo dos PrincĂ­pios da filosofia: “Entretanto, ĂŠ preciso observar que nĂŁo penso que devamos nos servir de uma maneira tĂŁo geral de duvidar, a nĂŁo ser quando nos aplicarmos Ă contemplação da verdade. Pois ĂŠ certo que, no que concerne Ă conduta de nossa vida, somos obrigados a seguir muito frequentemente as opiniĂľes apenas verossĂ­meis, visto que a ocasiĂŁo para agir em nossos negĂłcios se perderia quase sempre, antes que conseguĂ­ssemos nos livrar de todas as nossas dĂşvidas. E, se toda vez que nos deparamos com diversas dessas ocasiĂľes concernindo a um mesmo assunto, acontece nĂŁo percebermos, talvez, mais verossimilhança numa delas que nas demais, se a ação nĂŁo admite demora, a razĂŁo exige que escolhamos uma e que, apĂłs tĂŞ-la escolhido, que a sigamos constantemente, como se a tivĂŠssemos julgado muito certa.â€? (Descartes, PrincĂ­pios da filosofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 108-109. Tradução nossa.)

Observe que Descartes nĂŁo propĂľe que essa “maneira tĂŁo geral de duvidarâ€?

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Instituto Collectie, Holanda

Descartes alistou-se nas tropas de Mauricio de Nassau e quase veio ao Brasil (H, Ambrosius Packx [1603-c. 1658] Príncipe Maurício de Orange na batalha de Niewpoort. Óleo sb/ tela, 1623).

deva interferir em nossa vida diária, mas, sim, que ela serve ao propósito de nos proporcionar a adequada “contemplação da verdade”, isto é, o verdadeiro conhecimento da realidade. Com isso, ele coloca em discussão também uma

questão que interessará a outros pensadores, a do papel da dúvida filosófica na vida comum. Eis um tema filosófico de grande interesse, do qual pensadores posteriores a Descartes também irão se ocupar.

Qual será a relação entre nossas dúvidas filosóficas e a nossa vida comum? Há dúvidas completamente corriqueiras em nossas vidas: “fechei a janela ao sair de casa?”, e há dúvidas deliberadamente criadas, com o objetivo de descobrir verdades fundamentais: “estou sonhando neste momento?”, como fez, com grandes consequências, René Descartes[+] (1596-1650). Vejamos como alguns dos filósofos que o sucederam lidaram com esse assunto. Nosso primeiro caso é o de David Hume[+] (1711-1776), filósofo escocês do século XVIII, um crítico da filosofia cartesiana que, contudo, deve muito a

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um estilo de filosofar de seu antecessor francês. A começar porque, embora chegue a conclusões bem diferentes de Descartes, Hume também concentra seu esforço filosófico sobre a mente ou razão humana. Basta atentar para o título de uma de suas principais obras para dar-se conta disso: Investigação sobre o entendimento humano (1748). Note-se já um enfoque tipicamente cartesiano do sujeito do conhecimento, revelado pelo fato de que se trata, aqui também, de “nosso entendimento”. A questão posta pelo filósofo é, em resumo, a seguinte: em minhas inferências

dúvida e certeza

Limites da dúvida ao garantir a certeza

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Worcester Art Museum, Worcester

Segundo Hume, nem mesmo o padeiro pode prever quando nos alimentamos de pão. (Job Adriaensz [1630-1693], O

dúvida e certeza

padeiro. Óleo sb/ tela, 1681).

mais comuns, como funciona minha mente, quando faz uma previsão sobre um fato? Tomemos o exemplo do próprio Hume: quando, durante meu café da manhã, pego um pão e o como, fui levado a isso porque previ que aquele pão me alimentaria. Trata-se de um acontecimento banalíssimo em nossas vidas, mas, pergunta o filósofo, o que aconteceu em minha mente que me levou a dar esse passo, a fazer essa inferência, isto é, a supor que o pão iria me alimentar? Parte da resposta é dada, naturalmente, se afirmamos que me baseio na experiência passada: os muitos pães que já comi me levam a esperar, com toda evidência, que esse pão que está diante de mim vai me alimentar. Contudo, diz Hume, isso não basta como resposta: minha experiência passada não me diz diretamente que esse pão diante de mim, que nunca comi, me alimentará, diz apenas que os pães que comi me alimentaram. Então, minha mente faz uma inferência que lhe permite, comparando as semelhanças entre os pães que comi e o que

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está em cima da mesa, esperar que o mesmo efeito nutritivo e sabor agradável dos pães que comi até hoje se encontrarão no pão que tenho diante de meus olhos agora. O que é esse passo, pergunta Hume, sem o qual eu não poderia comer o pão tranquilamente? As análises de Hume o levarão a concluir – e nisso ele já não tem nada de cartesiano – que não é nenhum processo lógico que acontece em minha mente, mas apenas a ação do hábito, e que em todos os meus pensamentos sobre fatos que consistem em previsões sobre o futuro, previsões sem as quais eu seria incapaz de tomar decisões práticas, é apenas o hábito que está presente. Observemos como Hume, em seu texto, responde a uma possível objeção, quando está ainda apresentando sua dúvida e formulando o problema: “Poder-se-ia dizer que nossa prática refuta nossas dúvidas, mas isso é interpretar mal o significado de minha questão. Como agente, estou plenamente convencido sobre esse ponto, mas, como filósofo que tem sua parcela de curiosidade, não direi de ceticismo, quero compreender o fundamento dessa inferência.” (Hume, Investigações sobre o entendimento humano, IV, 2. Tradução: José O. de A. Marques. São Paulo: Editora da Unesp, 2004, p. 69)

Como se pode ver, se alguém apresentar ao filósofo a objeção de que sua prática – o fato de que ele come pães todos os dias sem precisar saber por que – refuta suas dúvidas sobre o motivo de fazê-lo, ouvirá como resposta que não entendeu o sentido da dúvida filosófica. Hume não está propondo que enquanto não descobrirmos por que comemos pães devemos deixar de comê-los: está afirmando que, como filósofos, como indivíduos dotados de curiosidade filosófica, temos todo o direito de querer saber o que acontece

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A prova do mundo exterior Atentemos agora para mais uma questão, formulada por outro filósofo britânico, George E. Moore (1873-1958). Aqui está um enfoque um tanto distinto dos de Descartes e de Hume, porque Moore parece defender a tese de que certo tipo de dúvida jamais teria lugar em nossa reflexão filosófica. Observe como esse filósofo lida com uma dúvida elaborada por Descartes e de grande repercussão: a dúvida sobre a existência do mundo exterior. Eis como, num instigante artigo denominado “Prova de um mundo exterior” (publicado postumamente em 1958), Moore trata dessa questão:

Biblioteca Trinity College, Dublin

“[...] posso agora dar um grande número de provas, cada uma das quais é uma prova perfeitamente rigorosa

G.E. Moore (1873-1958)

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[...] Posso provar agora, por exemplo, que existem duas mãos humanas. Como? Levantando minhas duas mãos e dizendo, enquanto faço determinado gesto com a mão direita, ‘Aqui está uma mão’, e acrescentando, enquanto faço determinado gesto com a esquerda, ‘e aqui está outra’. E se, ao fazê-lo, eu provei ipso facto [i.e., pela própria evidência do fato] a existência de coisas exteriores, vocês verão que posso fazê-lo, então, de muitas outras maneiras: não há necessidade de multiplicar os exemplos.” (G. E. Moore, “Prova de um mundo exterior”. Tradução nossa. Edição de referência: “Proof of an external world”, in: Philosophical papers. Londres: Allen & Unwin, 1963, 2ª ed., p. 146)

Para Moore, essa é, como ele mesmo disse, uma “prova rigorosa”, porque satisfaz às três exigências que devemos fazer a qualquer tentativa de prova: 1. A conclusão – “existem neste momento duas mãos” ou “existem objetos externos” – diz algo diferente da premissa – “aqui está uma mão e aqui está outra”. 2. O conteúdo da premissa é objeto de conhecimento seguro. 3. A conclusão realmente se segue da premissa. A seguir, Moore mostra por que e como as três exigências foram satisfeitas. Contudo, segundo ele, muitos filósofos não aceitariam que ele conseguiu provar a existência de objetos externos porque ele não teria provado a premissa “aqui está uma mão e aqui está outra”. Moore reconhece que não a provou e acrescenta que não pretendeu prová-la. Segundo ele, no momento em que fez gestos com as mãos e proferiu sua premissa, ele sabia, e não simplesmente tinha uma crença subjetiva, que ali estavam duas mãos. Portanto, segundo ele, a premissa não

dúvida e certeza

em nosso intelecto que nos leva a comer pães, esperando que o futuro será como o passado. À sua maneira, que não é exatamente a mesma que a cartesiana, Hume entende que dúvidas filosóficas estão suficientemente desvinculadas de efeitos na prática, o que torna legítimo que as levantemos sem que elas interfiram em nossa vida cotidiana.

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“Posso saber de coisas as quais não posso provar; e, dentre as coisas que eu seguramente sabia, mesmo se (como penso) não podia prová-las, estavam as premissas de minhas duas provas. Eu diria, portanto, que quem estiver insatisfeito com aquelas provas, se é que alguém está, alegando meramente que eu não conhecia suas premissas, não tem uma boa razão para sua insatisfação.” (G.

dúvida e certeza

E. Moore, “Prova de um mundo exterior”. Tradução nossa, op. cit., p. 150)

Observe, antes de mais nada, que o verbo “conhecer” é empregado nesse momento no sentido rigoroso, querendo dizer que muitos diriam que ele não tinha “conhecimento”, mas apenas uma crença subjetiva. Note também que Moore está se colocando frontalmente contra certa concepção da investigação e da dúvida filosóficas, segundo a qual podemos levar a dúvida às suas últimas consequências, indistintamente. Para ele, isso não é verdade, e seu comentário a esse respeito é interessante, justamente porque nos mostra que sua crítica diz respeito àquela atitude filosófica presente no cartesianismo. Segundo Moore, não há como provar que estamos diante de duas mãos. Fazê-lo exigiria provar, antes de mais nada, que não estamos sonhando. Ora, é evidente que estou acordado. Mas possuir essa evidência, estar certo desse fato, é uma coisa. Ou-

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BackyardProduct/Can Stock Photo

necessita ser provada. Ele não pôde provar que ali estavam duas mãos, mas considera absurdo duvidar disso, porque isso é evidente. Para aqueles que acham que, por causa disso, sua prova não é de fato uma prova – noutros termos, que não estabelece um conhecimento em sentido forte –, mas apenas uma crença, Moore simplesmente afirma, como conclusão: Posso provar agora, por exemplo, que existem duas mãos humanas. Como? Levantando minhas duas mãos e dizendo ‘Aqui está uma mão e aqui está outra’.

tra, bem diferente, é sermos capazes de prová-lo. Para Moore, em resumo, nem tudo pode ser provado, mas isso não é um problema. Há certezas que estão acima da necessidade de prova, porque sobre elas há “razões conclusivas”, “evidências conclusivas”. Se assim for, então a reflexão filosófica não mais será uma investigação que, para chegar a certezas absolutas, necessita colocar tudo em dúvida, porque haveria certezas que estão fora do alcance da dúvida filosófica. E talvez seja preciso, seguindo a lição de Moore, concluir que mesmo em filosofia as dúvidas não são tão diferentes daquela que me levaria a voltar para casa num dia de chuva para verificar se fechei ou não a janela. O mesmo valeria talvez para nossas certezas. A filosofia e a visão comum do mundo É comum ouvirmos que a filosofia é uma prática de questionamento de nossas certezas habituais. Entretanto, até que ponto, afinal, podemos ampliar a dúvida sobre nossas crenças? Essa questão, que vimos formulada por G. E. Moore, foi aprofundada por um filósofo brasileiro, Oswaldo Porchat

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Até onde vamos com a filosofia?

Como você já se deu conta, na história da filosofia há inúmeras “provas” – ou “demonstrações” – sobre objetos em relação aos quais a maioria das pessoas não exige prova ou demonstração. Dito de outro modo, filósofos, ou parte deles, parecem convencidos da necessidade de demonstrar, por argumentos tirados da razão, pontos que são acolhidos sem hesitação por quase todos nós. Um exemplo nos oferece a prova da realidade do mundo exterior, ou a prova de que, agora, não estamos sonhando. • Forme um par com um(a) colega e, antes de mais nada, reflitam sobre outros exemplos de prova ou demonstração filosófica de temas e objetos que não despertam nenhuma sombra de dúvida para o senso comum. Em seguida, discutam a seguinte questão: vocês diriam que demonstrações desse tipo são necessárias? Ao discutirem esse ponto, não deixem de recordar que algo pode

Pereira (1933 - ) em um ensaio importante publicado em 1981. Nesse texto, Porchat defende que a filosofia nos incita a desconfiar de certezas das quais nem mesmo o filósofo, na condição de indivíduo inscrito no mundo, poderia seriamente duvidar. Dito de outro modo, Porchat, assumindo como válido o argumento de Moore sobre o caráter indubitável de certas crenças naturais, afirma que a dúvida filosófica se torna artificial toda vez que se aplica às evidências do senso comum. “Artifício” possui, aqui, um significado negativo,

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ser necessário sob um aspecto e não sob outros. Por exemplo: segundo Hume, há investigações filosóficas das quais podemos prescindir em nosso cotidiano. Nesta linha, sugere Hume, podemos até mesmo pôr em dúvida, por exemplo, a existência do mundo exterior – mas seria artificial e forçado supor que levemos essa dúvida a sério, quando estamos indo para casa ou voltando da escola ou ocupados no trabalho. • Discutam, inspirados pela argumentação de Hume (o que não significa que precisem concordar com ele), se há exemplos de questões sobre as quais se pode levantar dúvidas apenas do ponto de vista filosófico, não do ponto de vista prático. Quer a conclusão de vocês seja afirmativa, quer negativa, procurem fundá-la sobre argumentos, que deverão ser apresentados em sala para os demais colegas. Não deixem de considerar que essa discussão sobre até onde vai a filosofia ao duvidar das coisas talvez já constitua um aprofundamento filosófico que defende nossas convicções cotidianas.

designando tudo aquilo que não é necessário nem decisivo. Porchat sustenta que nem mesmo os filósofos podem levar suas dúvidas mais radicais a sério, como, por exemplo, a de que estamos em vigília ou de que a maioria dos seres humanos tem duas mãos. Conforme Porchat, assim, a dúvida filosófica, quando se torna generalizada, exprime uma atitude arbitrária dos filósofos, o exercício gratuito de sua desconfiança em relação ao mundo no qual se encontram. Os filósofos – especialmente aqueles pertencentes à tradição do

dúvida e certeza

Atividade em equipe e debate em sala de aula

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“Em tais filosofias, na melhor das hipĂłteses, o Mundo ĂŠ apenas o ponto de partida que se vai deixando para trĂĄs, ou o porto de embarque que se perde logo de vista, na medida em que o discurso filosĂłfico vai tomando forma e a viagem filosĂłfica se processa. Procuram-se formas de expressĂŁo, mĂŠtodos, critĂŠrios; buscam-se certezas, verdades, intuiçþes; tudo se empreende, menos recorrer ao que lĂĄ atrĂĄs se deixou e se desqualifica. Se se utilizam as verdades comuns, ĂŠ a contragosto e sempre como se fora provisĂłrio. Qual verdades em trânsito, sem direitos a um visa de permanĂŞncia no discurso da filosofia. Verdades cujos prĂŠstimos se tolera aproveitar como que acidentalmente, mas a que se recusa conferir a cidadania filosĂłfica.â€? (Porchat

dĂşvida e certeza

Pereira, “A filosofia e a visĂŁo comum do mundoâ€?, in: Rumo ao ceticismo, SĂŁo Paulo: Editora da Unesp, 2007, p. 60)

Como se vĂŞ, Porchat identifica uma postura negligente de muitas filosofias em face do mundo. O mundo, para essas filosofias, nĂŁo passa de um ponto de embarque, uma porta de entrada para uma investigação que, logo em seguida, lhe dĂĄ as costas. Mesmo quando se utiliza das “verdades comunsâ€?, o discurso filosĂłfico nĂŁo reconhece nelas nenhuma dignidade prĂłpria: elas dispĂľem de um estatuto apenas provisĂłrio. De seu lado, Porchat assume a defesa da visĂŁo comum do mundo, recusando

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Š Robson Mereu

“idealismoâ€?, acrescenta Porchat – fazem pouco do mundo, menosprezam as evidĂŞncias e crenças mundanas, trocando o senso comum por uma atitude presumidamente sofisticada. Leiamos um parĂĄgrafo do ensaio em questĂŁo, no qual Porchat desfere sua crĂ­tica a esse comportamento especulativo presente em muitas correntes da filosofia:

Oswaldo Porchat Pereira (1933- )

como arbitrĂĄrio e artificial o incessante questionamento que muitas filosofias exercem sobre ele. O que equivale a dizer que Porchat eleva a visĂŁo comum do mundo ao nĂ­vel de um saber filosĂłfico. Ao fazĂŞ-lo, Porchat defende um ponto de vista baseado nas certezas mundanas, certezas que situa em um âmbito inalcançåvel pela dĂşvida filosĂłfica: “O mundo reconhecido, que nĂŁo ĂŠ um problema, serĂĄ o referencial permanente para a formulação de problemas e a proposição de soluçþes. Alfa e Ă´mega da filosofia, origem e fim nĂŁo questionĂĄveis dos questionamentos filosĂłficos. E a filosofia remeterĂĄ constantemente ao Mundo para orientar, aperfeiçoar ou mesmo corrigir suas formulaçþes. O caminhar da filosofia tem agora parâmetros bem fixos que o balizam.â€? (Porchat Pereira, “A filosofia e a visĂŁo comum do mundoâ€?, op. cit., p. 67)

Para concluir nosso percurso, vale lembrar que Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos filósofos mais importantes do sÊculo XX, formulou reflexþes de grande importância a partir das teses de G. E. Moore sobre o ca-

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O NEOPIRRONISMO DE OSWALDO PORCHAT É interessante observar que Porchat, nos

suspensão de juízo retira suas perturbaçþes,

anos seguintes à publicação de seu ensaio

diferente dos filĂłsofos ditos dogmĂĄticos, que

“A filosofia e a visĂŁo comum do mundoâ€?,

julgam ter encontrado verdades incontes-

modificou sua posição filosófica, assumindo

tĂĄveis, o filĂłsofo cĂŠtico passa a argumentar

o que designou como o “neopirrosnismo�.

com esses filĂłsofos, sempre apresentando

Com isso, Porchat propĂľe a retomada do

teses conflitantes Ă s deles, para que, como

“pirronismoâ€?, ou “ceticismo pirrĂ´nicoâ€?, surgi-

ele, tambĂŠm suspendam seus juĂ­zos e se

do na Antiguidade. Seu iniciador foi Pirro de

tornem cĂŠticos. Ao mesmo tempo, conduz

Élis (sÊc. IV a. C.) e pouco se sabe de seus de-

sua vida cotidiana apenas seguindo os “fe-

senvolvimentos posteriores. FilĂłsofos pouco

nômenos�, o que lhe aparece do mundo, tal

conhecidos, como Enesidemo e Agripa, sĂŁo

como aparece, sem afirmar sua verdade ou

citados por alguns escritores antigos. Co-

falsidade.

nhecemos os princĂ­pios do pirronismo por

Observe que os cĂŠticos, afinal, dizem-nos

meio dos textos do filĂłsofo e mĂŠdico Sexto

que nĂŁo temos meios estritamente racionais

EmpĂ­rico (sĂŠc. II ou III d. C.), que escreveu

de garantir que nossas certezas pessoais

uma obra intitulada Esboços pirrônicos, alÊm

e subjetivas possam ser aceitas por todos

de outros tratados.

como verdades absolutas.

O conceito fundamental do ceticismo pir-

Ao assumir o neopirronismo, Porchat re-

rĂ´nico ĂŠ o de suspensĂŁo de juĂ­zo: perturbado

lativizou a defesa da visĂŁo comum do mundo,

pelas questĂľes e dĂşvidas resultantes de sua

sem, entretanto, abandonĂĄ-la completamen-

experiĂŞncia, o filĂłsofo, inicialmente, preten-

te. Ele apenas concluiu que, para defender a

de resolvĂŞ-las encontrando a verdade. Con-

visĂŁo comum do mundo, nĂŁo ĂŠ preciso afir-

tudo, constata que, sobre qualquer questĂŁo

mar que ela seja rigorosamente verdadeira.

ou tema, sempre hå afirmaçþes conflitantes,

As “verdadesâ€? da visĂŁo comum do mundo

dotadas de um poder de persuasĂŁo seme-

permanecem sendo valorizadas pelo novo

lhante, o que o leva a “suspender seu juĂ­zoâ€?

posicionamento de Porchat, sem que, con-

sobre elas, ou seja, a reconhecer sua incapa-

tudo, este procure conferir-lhes um estatuto

cidade, mediante recursos argumentativos e

filosĂłfico privilegiado. Elas valem pelo que

racionais, de optar por qualquer tese como

são: crenças com base nas quais agimos no

verdadeira. Observando que tal estado de

mundo e nos compreendemos nele.

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ção de Moore, conforme a qual nĂŁo hĂĄ meio de pĂ´r em dĂşvida que a Terra existia antes de nosso aparecimento nela: “Pode-se no entanto perguntar: ‘Pode alguĂŠm possuir um fundamento plausĂ­vel para crer que a Terra exista sĂł hĂĄ pouco, digamos, sĂł a partir de seu nascimento?’ – Admitindo-se que isto sempre lhe teria sido dito – teria ele um bom fundamento para duvidar disso? Houve homens que acreditaram poder fazer chover; por que

dĂşvida e certeza

råter indubitåvel de algumas certezas, o que concerne diretamente aos conceitos de dúvida e certeza abordados nesta Unidade. Estas reflexþes, embora tendo sido interrompidas pela morte de Wittgenstein, foram compiladas por dois de seus discípulos mais próximos, G. E. M. Anscombe e G. H. Von Wright, e publicadas originalmente em 1969 em um volume intitulado Sobre a certeza. Abaixo, citamos uma dessas reflexþes, nas quais Wittgenstein se debruça sobre a afirma-

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Pinacoteca Antiga, Munique

Pirro teria apontado como modelo de indiferença o porco que se alimentava tranquilamente em meio ao caos (Petrarca-Meister, ativo no início do sÊculo XVI, O filósofo Pirro no mar tempestuoso, entre 1500 e 1515).

dĂşvida e certeza

nĂŁo se poderia criar um rei na crença de que o mundo teria começado com ele? E entĂŁo, se Moore e esse rei se encontrassem e discutissem, poderia Moore efetivamente provar que sua crença ĂŠ a correta? NĂŁo digo que Moore nĂŁo seja capaz de converter o rei para a sua concepção, mas esta seria uma conversĂŁo excepcional: o rei seria levado a ver o mundo de outra maneira. Observe-se que Ă s vezes uma concepção convence mediante sua simplicidade ou simetria, isto ĂŠ: leva a que se adote esta concepção. EntĂŁo diz-se simplesmente: ‘Precisa ser assim’. (Wittgenstein, Sobre a certeza. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Anscombe & Wright [eds], Ăœber Gewissheit/ On certainty. Nova York: Harper Torchbooks, p. 14)

Como poderĂ­amos situar estas reflexĂľes de Wittgenstein em comparação com o posicionamento de Moore e, em determinado momento de sua trajetĂłria, de Porchat, tal como os expusemos aqui? Note que a objeção de Wittgenstein a Moore reside, essencialmente, em argumentar que toda evidĂŞncia em relação a um aspecto pontual da realidade se insere em um quadro de compreensĂŁo global da realidade, fruto de prĂĄticas, hĂĄbitos, costumes e educação. O que para alguĂŠm parece ser de evidĂŞncia inquestionĂĄvel pode ser muito duvidoso para outra pessoa, inscrita em outra “forma de vidaâ€?. Isso nĂŁo significa que nossas crenças nĂŁo possam ser revistas, mas que, quando isso ocorre, encaramos o mundo de forma diferente.

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Wi genstein Ludwig Wittgenstein (1889-1951) nasceu Akg/Newscom /Glow Images

em Viena, na Ă ustria, mas passou boa parte de sua vida adulta na Inglaterra, onde foi professor na Universidade de Cambridge. Apesar de ser um dos filĂłsofos mais influentes do sĂŠculo XX, Wittgenstein publicou apenas um livro durante toda a sua vida â€“ o Tractatus logico-philosophicus, editado em 1921, que marca a primeira fase de seu itinerĂĄrio intelectual. Deixou, no entanto, uma quantidade imensa de escritos inĂŠditos, que foram sendo publicados apĂłs a sua morte. O conjunto mais influente deles provavelmente sĂŁo as Investigaçþes filosĂłficas, publicadas em 1953, obra em que ele faz uma crĂ­tica frontal Ă filosofia que ele mesmo expusera no Tractatus. Tanto no Tractatus quanto nas Investigaçþes e a natureza do sentido proposicional. No Trac-

As duas obras principais de L. Wittgenstein estĂŁo traduzidas para o portuguĂŞs:

tatus, ele considerava que todas as linguagens

L. Wittgenstein, Tratactus logico-philoso-

possĂ­veis tĂŞm que compartilhar uma mesma

phicus. Tradução: Luiz H. L. dos Santos. São

estrutura bĂĄsica, e que essa estrutura coincide

Paulo: Edusp, 1993 (Esta edição traz uma

com a estrutura do prĂłprio mundo. Essa ideia

“Apresentaçãoâ€? excelente do tradutor e es-

ĂŠ completamente abandonada na fase madura,

pecialista na obra de Wittgenstein).

quando Wittgenstein passa a considerar cada

L. Wittgenstein, Investigaçþes filosóficas.

uma das linguagens criadas pelo ser humano

Coleção: Os Pensadores. Tradução: J. C.

como uma teia aberta de jogos linguĂ­sticos em

Bruni. SĂŁo Paulo: Abril Cultural, 1979.

constante modificação e cumprindo as mais di-

Para introdução ao Tractatus, veja:

versas finalidades em nossas vidas.

JoĂŁo V. Cutter, “VocĂŞ entendeu esse tĂ­tu-

Tanto a primeira quanto a segunda filoso-

lo?�, in: V. Figueiredo (org.). Filósofos na sala

fia de Wittgenstein exerceram uma enorme

de aula – Vol. 3. São Paulo: Berlendis & Ver-

influĂŞncia sobre diversos filĂłsofos do sĂŠculo

tecchia, 2009, pp. 158-201.

XX. O Tractatus marcou os trabalhos dos posi-

Edgar Marques, Wittgestein & o Tractatus.

tivistas lógicos ligados ao Círculo de Viena – R.

Coleção Passo-a-Passo, Rio de Janeiro: Zahar

Carnap (1891-1970), M. Schlick (1882-1936), F.

Editores, 2005.

Waismann (1896-1959), etc. –, enquanto as Investigaçþes filosĂłficas influenciaram os traba-

Para uma introdução à segunda fase do pensamento de Wittgenstein, veja:

lhos de autores como G. Ryle (1900-1976), P.

A. Moreno, Wittgenstein e os labirintos da

F. Strawson (1919-2006) e, mais recentemen-

linguagem. Campinas: Editora da Unicamp,

te, John McDowell (1942- ).

2000.

dĂşvida e certeza

o principal tema de Wittgenstein foi a linguagem

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Arcimboldo. Museo Civico Ala Ponzone, Cremona

Esse rosto é humano – ou apenas parece sê-lo? (Giuseppe Arcimboldo [1527-1599]. O jardineiro vegetal. Óleo sb/ painel, c.1590)

unidade 5 As aparências enganam? ................145 A revolução filosófica e científica moderna..150 Ser e parecer justo ..........................155 A realidade da aparência ............164

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realidade e aparência

“R

ealidade e aparência”: eis uma dupla de conceitos que dá o que pensar... Como você buscaria defini-los? Nossa primeira tendência talvez seja afirmar: “É simples, o real se diferencia da aparência porque possui realidade, enquanto a aparência, não”. Mas reflita um pouco mais. Você perceberá que as coisas não são tão simples assim. Se a aparência não é real, por que falamos tanto dela? Isso já leva a crer que, embora seja considerada muitas vezes o oposto da realidade, a aparência também deve ter alguma forma de existência. Mas de que maneira ela existe? Possuiria uma existência “menos real” do que as outras coisas?

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Shutterstock

As aparĂŞncias enganam? Todos conhecemos aquele ditado: “As aparĂŞncias enganamâ€?... Ele existe em diversas lĂ­nguas, o que dĂĄ a entender que tal opiniĂŁo ĂŠ muito comum e circula hĂĄ muito tempo em nossa cultura. Veja abaixo formulaçþes do ditado conforme o qual devemos desconfiar das aparĂŞncias em cinco lĂ­nguas e procure identificar os idiomas correspondentes:

O que ĂŠ que tiramos disso? Note que esse provĂŠrbio nos faz uma advertĂŞncia. A ideia ĂŠ a seguinte: as aparĂŞncias enganam, porque nos iludem sobre o que seja a verdadeira realidade. Logo, a aparĂŞncia ĂŠ como a ilusĂŁo, possui o mesmo tipo de existĂŞncia que ela. Nem por isso, claro, a discussĂŁo estĂĄ encerrada. Falta-nos ainda explicar o que se deve compreender pela existĂŞncia ou realidade de uma ilusĂŁo. Antes, porĂŠm, vejamos os motivos pelos quais se afirma que as aparĂŞncias enganam. Um deles, muito repetido, ĂŠ a convicção de que as aparĂŞncias nos apresentam somente o aspecto superficial das coisas, deixando ocultas suas caracterĂ­sticas essenciais. As aparĂŞncias permanecem na “superfĂ­cieâ€? das coisas, o que explica o engano promovido por elas, mesmo quando ninguĂŠm quer enganar ninguĂŠm. As coisas aparecem para nĂłs de um jeito; sĂł que, no “fundoâ€?, sĂŁo de outro. Captar a realidade, desse modo, exige uma investigação que faça abstração das aparĂŞncias, jĂĄ que elas nos fazem crer em coisas que, se melhor examinadas, se revelam diversas do que parecem ser de inĂ­cio. HĂĄ um exemplo clĂĄssico da histĂłria da filosofia que ilustra esse tipo de engano. O pedaço de pau submerso na ĂĄgua aparenta possuir um ângulo, ali onde toca a super-

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O horizonte de Chicago: o que ĂŠ cĂŠu, o que ĂŠ ĂĄgua?

fĂ­cie. Na realidade, nĂłs o vemos assim por causa do fenĂ´meno Ăłptico da refração. Ou seja, os sentidos nos enganam sobre a realidade, na medida em que nos fornecem aparĂŞncias que nĂŁo correspondem aos fatos. É fĂĄcil estender essa conclusĂŁo sobre a ilusĂŁo visual para os demais sentidos: o gosto, o olfato, o tato, a audição. Quando estamos doentes, o doce parece amargo; se nos encontramos indispostos, os odores se acentuam e incomodam. Essas variaçþes jĂĄ indicam que os sentidos nĂŁo constituem uma base totalmente segura para descobrirmos quais sĂŁo as qualidades reais das coisas “por trĂĄsâ€? ou “abaixoâ€? da superfĂ­cie das aparĂŞncias. Isto ĂŠ, os sentidos exprimem qualidades subjetivas, que nem sempre correspondem Ă s qualidades objetivas das coisas. E isso pode ser constatado nĂŁo apenas quando adoecemos, mas tambĂŠm em circunstâncias normais, quando estamos bem dispostos e saudĂĄveis. Deslizo a mĂŁo sobre a mesa, ela aparenta ser lisa. PorĂŠm, sua superfĂ­cie, quando examinada microscopicamente, ĂŠ irregular, porosa e cheia de vincos. A impressĂŁo tĂĄctil, conclui-se daĂ­, me engana sobre a realidade da superfĂ­cie da mesa. Os sentidos fornecem apenas uma aparĂŞncia que nĂŁo corresponde Ă estrutura real da natureza.

realidade e aparĂŞncia

“Fallitur visusâ€? “Las apariencias engaĂąanâ€? “Der Schein trĂźgtâ€? “Appearances are deceptiveâ€? “L’apparenza ingannaâ€?

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realidade e aparência

A investigação da realidade por trás em termos quantitativos. Nem por isso, das aparências entretanto, os corpos naturais deixam Essa convicção é muito comum. Pense de aparecer para nós como entidades dona orientação principal das disciplinas tadas de qualidade: possuem cor, textucientíficas atuais. As ciências da natura, por vezes exalam cheiros ou emitem reza não nos ensinam que devemos dessons que nos agradam ou desagradam confiar das aparências fornecidas pelos etc. Mas a ciência nos instrui que as coisentidos? sas tais como nos aparecem podem não De fato, o saber científico que nos é corresponder às coisas tais como são. transmitido hoje em dia possui duas caracAprendemos que, a fim de compreender terísticas centrais: é abstrato e também, em a estrutura real das coisas, precisamos grande parte, se expressa fazer abstração daquimatematicamente. Você lo que nossos sentidos alguma vez já se indagou nos apresentam. DeveSe a ciência da por que há tanta matemámos abstrair das apatica na física? rências sensíveis. física requer o A palavra “física” vem Essa é uma orientaconhecimento da do termo “phýsis”, palação muito importante matemática, isso se vra grega que significa para a maioria dos cien“natureza”. Conforme tistas atuais, sobretudo deve à convicção de nos ensina a ciência hoje os físicos. É isso o que que a matemática em dia, a “phýsis” ou “naem grande parte aprendescreve boa parte tureza” possui elementos demos nos bancos escocujas relações são fundalares. O que talvez você da estrutura real da mentalmente quantificánão saiba é que essa natureza. veis. Isso equivale a dizer concepção acerca da naque, a crer numa correntureza já havia sido dete dominante da Física, fendida na época dos as relações entre os entes primórdios da filosofia, naturais “no fundo” se expressam como na Antiguidade grega, em um período anuma ordem matemática. Logo, se a ciência terior a Sócrates, Platão[+] e Aristóteles[+]. da física requer o conhecimento da mateO “cosmos” de Pitágoras mática, isso se deve à convicção de que a Pitágoras (c.580-495 a.C.), nascido na matemática descreve boa parte da estruilha de Samos, foi um importante filósotura real da natureza. fo e matemático. Sua contribuição mais Há muitos exemplos à mão para atesconhecida para a história da filosofia está tar que, de fato, fenômenos da natuem ter formulado uma doutrina conforreza podem ser expressos por meio de me a qual a verdadeira realidade das relações matemáticas. Conceitos como coisas são os números. Para Pitágoras, “massa”, “força”, “movimento”, assim o princípio e a essência da realidade não como a lei geral da queda dos corpos ou residem nem no fogo, nem na água, nem a definição do “peso” de um corpo etc., no éter, como pretendiam alguns de seus ilustram bem isso. Sua compreensão antecessores. Essa essência, diz Pitágonão passa pelo conhecimento sobre as ras, reside nos números. Em que isso tem qualidades sensíveis dos corpos. Para a a ver com nosso assunto, é fácil inferir. formulação de leis, os físicos trabalham Números exprimem relações abstratas com conceitos tais como massa, força, entre as coisas. Afirmar que a realidade é energia, que devem poder ser expressos

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Os discos e duas luas de Saturno: para Pitágoras, o “cosmos” designa o universo, belo e ordenado.

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o universo dispõe de ordem e que esta última pode ser apreendida pela razão humana. Dito de outro modo, Pitágoras defendia que o universo não é disforme, nem caótico; ao contrário, ele forma um “cosmos”, no sentido básico deste termo. Um grande estudioso norte-americano de filosofia antiga nos ajuda a compreender o que estava aqui em jogo. Conforme assinala Francis. M. Cornford (1874-1943), “cosmos”, em grego, significa “beleza” e “ordem”. Reflita sobre as palavras: “cosmético”, por exemplo, designa produtos ligados ao embelezamento, ao ornamento, às aparências. Sua origem etimológica é a palavra grega “cosmos”, que, à época de Pitágoras, estava associada a estética. Pitágoras, diz Cornford, teria sido o primeiro a empregar o termo “cosmos” para designar o universo. O interesse dos pitagóricos pela música tem tudo a ver com isso. Pois a música reúne sons muito diferentes em harmonias que obedecem à ordem e à medida – uma harmonia, assim, que é estética e matemática. Pitágoras tomou esse modelo para compreender a ordem das coisas na natureza, por trás do aparente caos sob o qual elas se manifestam a nós. Como diz Cornford, isso explica a doutrina pitagórica da física, conforme a qual não é na matéria e no ilimitado que reside o princípio das coisas, mas antes no princípio da forma e da medida. E assim Pitágoras pode compreender a diversidade das manifestações naturais como sendo pautada pela proporção e pelo número. Visto que o número é mensurável, então a natureza, assimilada por Pitágoras ao número, revela ter medida e, assim, pode ser conhecida. A abstração que caracteriza a ciência atual, como se vê, é uma tendência que possui origem nos primórdios da filosofia grega. E isso diz respeito não somente à física, mas abarca também outra disciplina que integra nosso currículo escolar, a química.

realidade e aparência

©Foto: NASA/JPL/Space Science Institute

constituída de números equivale a dizer que a realidade está além das aparências, além do que nos apresentam imediatamente nossos sentidos. Vale destacar a novidade de Pitágoras no quadro dos primórdios do pensamento filosófico. Filósofos como Tales de Mileto (624-548 a.C) ou Anaxímenes (588-524 a.C) afirmavam que o princípio e essência das coisas residia na água ou no vapor, isto é, postulavam que a essência do ser era sensível. Pitágoras, sustentando que a realidade última das coisas reside em algo incorpóreo (os números), promove diante de seus contemporâneos uma inovação radical, que será retomada no período moderno por muitos cientistas e filósofos. Na história do pensamento, Pitágoras representa o primeiro passo rumo à ideia de que a realidade das coisas não corresponde ao modo sob o qual elas se apresentam a nossos sentidos. Por isso, quando a física atual nos ensina que as leis do movimento se expressam na forma de enunciados matemáticos, ela aprofunda as intuições e o pensamento de Pitágoras. É interessante observar que, ao defender essa noção sobre a “phýsis”, Pitágoras também tinha em conta questões estéticas. Seu ponto principal era sustentar que

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O LEGADO PITAGÓRICO NA MÚSICA Os discípulos de Pitágoras se dedicaram ao estudo das proporções em música, notadamente a afinação das notas musicais, cujas relações expressaram numericamente. Tal escola teria estabelecido o método que, com alguns ajustes, ainda hoje usamos para calcular a afinação das notas da escala natural, um dos mais básicos fundamentos da música (e da construção de instrumentos musicais). Tome-se um corpo vibratório, por exemplo, um bloco chato ou uma barra de madeira. Digamos que, ao percuti-la, ela soa a nota dó:

Ora, fazendo outra barra com o mesmo material, a mesma espessura e largura, mas com metade do comprimento da primeira, ao percuti-la, também teremos um dó, porém o dó acima (mais agudo em uma “oitava” em relação ao primeiro):

Os pitagóricos estabeleceram, para todas as notas da escala natural, essas relações de proporção: 1/2

2/3

3/4

4/5

3/5

8/15

8/9

oitava justa

quinta justa

quarta justa

terça maior

sexta maior

sétima maior

segunda maior

Observação: metade de comprimento do corpo vibratório ou coluna de ar equivale ao dobro da frequência; 2/3 de comprimento, a 3/2 da frequência, e assim por diante (isto é: são inversamente proporcionais). Em notação musical, e na ordem em que costumamos tocar escalas, teríamos:

1

8/9

4/5

3/4

2/3

3/5

8/15

1/2

tônica

segunda

terça

quarta

quinta

sexta

sétima

oitava

(O mesmo fenômeno pode ser experimentado com uma corda, digamos de violão, ou com a coluna de ar de um instrumento de sopro: 1/2 corda ou coluna de ar equivale a

realidade e aparência

uma oitava; 2/3, a uma quinta justa etc.) Esse sistema musical foi tão bem-sucedido que, no Ocidente, foi o sistema vigente durante um extenso período. Ainda Jean-Phillipe Rameau (1683-1764), o grande teórico musical francês, fundamentava os princípios de sua teoria musical e harmônica nesse cálculo. Ele só foi fundamentalmente revisto com o advento da escala temperada – que, a partir de suas formulações iniciais no séc. XVI até a completa realização no XIX, permitiu aos instrumentos tocar 12 notas no intervalo de uma oitava, e não apenas as 7 da escala natural. Mesmo assim, ainda hoje usamos proporções numéricas para

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calcular a altura das notas na escala temperada, embora estas não estejam mais baseadas na escala pitagórica.

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FILÓSOFOS OU CIENTISTAS? Quando mencionamos pensadores gregos como Leucipo (primeira metade do século V a.C) e Demócrito (460-370 a.C.) – considerados os defensores do atomismo – é comum referi-los como filósofos

pré-socráticos.

Ou seria mais adequado chamá-los de cientistas? Hoje em dia, costumamos distinguir esses dois ramos de investigação: de um lado, as ciências; de outro, a filosofia. Mas nem sempre foi assim. Na Grécia antiga, antes mesmo do período em que viveu Sócrates (470399 a.C.), mestre de Platão, homens dedicaram suas vidas ao pensamento sobre a natureza, o universo e a sociedade. Na sua visão, tratar de temas tão amplos exigia possuir, em grande medida, afinco e curiosidade, espanto e sabedoria. Não lhes passava pela cabeça, entretanto, definir suas pesquisas conforme a alternativa entre filosofia ou ciência, que se tornou habitual muito depois. Entendiam fazer as duas coisas de uma só vez, porque compreendiam o estudo da natureza

Gravura de Demócrito. Coleção particular

como investigação pertencente ao âmbito da filosofia. Assim, a explicação da estrutura da natureza era orientada pela especulação filosófica sobre a origem e o princípio da realidade.

to, a hipótese de que a estrutura da matéria é atômica, hipótese que terminou sendo confirmada por esses aparelhos, pôde ser estabelecida sem tal tecnologia, apenas com base na especulação filosófica sobre a natureza que nos cerca. Com efeito, Leucipo e Demócrito, filósofos gregos que viveram depois de Pitágoras e antes de Sócrates, se tornaram conhecidos na história da filosofia e das ciências como “atomistas”, isto é, como defensores da ideia de que tudo são átomos. Através dos tempos, e nem sempre por linhas retas, essa doutrina chegou à modernidade.

realidade e aparência

Ao se debruçar sobre a estrutura da matéria, o químico sabe que ela é constituída de elementos atômicos tais como o hidrogênio, o zinco, o carbono etc. – nenhum deles podendo ser percebido pelo olhar humano. Árdua tarefa, a do professor de química: seu ensino passa por nos mostrar de início que... a natureza da matéria não é como vemos, como imaginamos! Por isso, quem ensina química solicita que deixemos de lado as imagens, que abandonemos as percepções imediatas fornecidas pelos sentidos, já que, se permanecermos atrelados a elas, não seremos capazes de atingir a real estrutura da matéria que nos cerca e da qual também somos feitos. Assim como os físicos de hoje em dia, os químicos contemporâneos também refizeram os passos de um caminho já trilhado por pensadores gregos, que, na linha de Pitágoras, insistiram em afirmar que os sentidos enganam sobre a natureza da realidade. Conforme esse argumento, os sentidos nos revelam apenas aparências. A verdadeira realidade das coisas (ou sua “realidade última”, como também se diz em filosofia) escapa aos sentidos e só pode ser apreendida pela razão. Logo, a fim de atingir o conhecimento da realidade, é preciso fazer abstração do que ensinam os sentidos. Graças a microscópios eletrônicos, hoje sabemos que essa antiga convicção estava certa. A tecnologia de que dispomos nos dias de hoje possibilita verificar, por exemplo, que a matéria realmente possui uma estrutura atômica. Mas a primeira formulação da teoria de que a realidade da matéria é constituída de átomos data de uma época na qual não havia nada de semelhante ao mais rudimentar microscópio. Filósofos da Grécia antiga, na linha aberta por Pitágoras, já haviam elaborado a teoria do átomo sem qualquer recurso a instrumentos desse tipo. Claro que a invenção desses aparelhos representou um acontecimento decisivo no âmbito das ciências. Entretan-

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Tomohiro Ohsumi/Bloomberg/Getty Images

Algas unicelulares vistas atravĂŠs de microscĂłpio na Universidade de TĂłquio (JapĂŁo), em maio de 2013. Imagine se os atomistas gregos tivessem instrumentos assim!

Atualmente, na comunidade cientĂ­fica, hĂĄ consenso quanto Ă matĂŠria ser estruturada em molĂŠculas, ĂĄtomos e suas partĂ­culas. Essa histĂłria nos ensina algo sobre a relação entre saber e tecnologia. É frequente que descobertas e inventos tecnolĂłgicos promovam o progresso cientĂ­fico, tornando-nos capazes de “verâ€? o microcosmos, assim como galĂĄxias distantes, na imensidĂŁo do espaço. SĂł que, nĂŁo fosse a orientação filosĂłfica de buscar compreender a realidade por trĂĄs das aparĂŞncias – uma orientação que, sabemos agora, ĂŠ muito antiga –, dificilmente

os homens teriam se empenhado em inventar aparelhos capazes de apreender o que escapa ao olhar humano. Dito de outro modo, foi a convicção prÊvia de que a realidade última da natureza se diferencia do que aparece sob nossos sentidos o que motivou, no curso da história, a invenção de aparelhos científicos capazes de apreender o que escapa ao olhar humano, como, por exemplo, telescópios e microscópios. Esses instrumentos confirmaram uma orientação geral presente na história de nosso saber, caracterizada por situar a questão da verdade fora do plano das aparências.

realidade e aparĂŞncia

A revolução filosófica e científica moderna

As disciplinas cientĂ­ficas atuais parecem concordar com o dito popular: “as aparĂŞncias enganam.â€? A tal ponto, que chegam a sugerir que a natureza escapa aos nossos sentidos. A fĂ­sica diz que as relaçþes no mundo natural podem ser expressas matematica-

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mente; a quĂ­mica, que a estrutura essencial da matĂŠria ĂŠ feita de elementos imperceptĂ­veis ao olhar humano. JĂĄ a cosmologia descobre novas realidades que sĂł podemos atingir pelo pensamento, mas que, nem por isso, consideramos serem menos existentes do que os objetos que estĂŁo ao nosso redor.

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analogamente como, muito antes deles, jå havia feito Pitågoras. A explicação para isso estå no fato de que o legado de Pitågoras não foi vitorioso em comparação com as ideias que outros filósofos e cientistas da Antiguidade formaram sobre a natureza. Embora tenha gozado de prestígio entre muitos de seus contemporâneos, Pitågoras ficou em segundo plano durante um longo período da história da ciência. A causa disso reside no enorme prestígio obtido pela filosofia e pela física de Aristóteles[+] (384322 a.C.), que seguiu uma direção diversa daquela de Pitågoras. Vamos reconstruir essa história em seus momentos decisivos. Sabe-se que a compreensão matemåtica da natureza inaugurada por Pitågoras influenciou profundamente Platão, no sÊculo IV a.C. Essa influência se reflete em trechos da obra platônica que conferem grande importância ao estudo da matemåtica para a compreensão da natureza e do universo. Ocorre que o ensino platônico foi objeto de uma profunda reinterpretação por parte de Aristóteles. Após ingressar na Academia platônica e estudar com Platão, Aristóteles elaborou sua própria filosofia, que, sob muitos aspectos decisivos, representou uma objeção ao platonismo e uma ruptura com ele.

Galileu disse ter passado em PĂĄdua

realidade e aparĂŞncia

Museu Nacional, Cidade do MĂŠxico

Pensadores gregos da Antiguidade, como Pitågoras, Demócrito e Leucipo, mesmo sem os recursos tecnológicos de que dispomos hoje em dia, jå haviam enveredado por esse caminho. Seria engano, porÊm, concluir daí que a ciência atual Ê uma simples continuação da concepção de natureza elaborada por Pitågoras e pelos atomistas gregos. A história do pensamento científico não Ê como uma estrada que corta em linha reta um terreno sem acidentes. Ela se assemelha mais a um percurso cheio de curvas, voltas, rupturas e retomadas. No lugar de uma linearidade, o desenvolvimento científico Ê marcado por revoluçþes, como, aliås, defende um importante filósofo da ciência do sÊculo XX, Thomas Kuhn[+]. Uma verdadeira revolução na história da ciência aconteceu entre os sÊculos XVI e XVII. Confrontando o ensino da Êpoca, pensadores como Johannes Kepler (15711630), Galileu Galilei (1564-1642) e RenÊ Descartes[+] (1596-1650) estabeleceram os alicerces do grande edifício que se tornou a ciência moderna. O interessante nessa história Ê que esses homens tiveram de enfrentar o ensino difundido em sua Êpoca para matematizar a física e, juntamente com ela, o universo,

os anos mais felizes de sua vida (Felix Parra [1845-1919], Galilei na Escola de PĂĄdua. Ă“leo sb/ tela, 1873).

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realidade e aparĂŞncia

“A precisĂŁo das matemĂĄticas nĂŁo deve ser exigida em todos os casos, mas apenas no caso de coisas que nĂŁo possuem matĂŠria. Assim, o mĂŠtodo das matemĂĄticas nĂŁo coincide com o mĂŠtodo da ciĂŞncia natural; pois presumivelmente o conjunto da natureza possui matĂŠria. Logo, temos primeiramente de pergun-

O filĂłsofo e escritor Giordano Bruno (1548-1600) ĂŠ um caso cĂŠlebre de pensador que, por nĂŁo se retratar frente Ă s autoridades, terminou pagando pela heterodoxia de suas ideias com a prĂłpria vida.

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tar o que a natureza ĂŠ, pois assim tambĂŠm veremos do que trata a ciĂŞncia da natureza (e se pertence a uma ou mais ciĂŞncias investigar as causas e os princĂ­pios das coisas).â€? (AristĂłteles, MetafĂ­sica, Livro II, 995a. Tradução nossa)

Quem, entretanto, venceu esta disputa? Ao longo da Idade MÊdia, a concepção pitagórico-platônica foi muito influente por um longo período, atÊ meados do sÊculo XII. Conheciam-se poucas obras de Aristóteles, às quais, naquele contexto, não era dado grande relevo. Foi então que universidades europeias, como a de Bolonha e a de Paris, tomaram contato com os pensadores årabes, que haviam redescoberto e preservado os textos de Aristóteles. Influenciados pelos matemåticos e cientistas årabes, os doutores das universidades europeias quase abandonaram o platonismo em troca do aristotelismo recÊm redescoberto. No sÊculo XIII, Tomås de Aquino (1225-1274) reuniu, no âmbito da especulação metafísica, a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Essa concepção se tornou dominante na Europa atÊ o momento em que pensadores como Nicolau CopÊrnico (14731543), Johannes Kepler, Galileu Galilei e RenÊ Descartes elaboraram novamente hipóteses matemåticas sobre a phýsis e o universo. Só então, no sÊculo XVII, a natureza foi outra vez concebida como sendo essencialmente matemåtica. Por Ettore Ferrari (1845-1929), O julgamento de G. Bruno. Relevo em bronze. Campo dei Fiori, Roma Foto: Marie-Lan Nguyen.

A concepção que AristĂłteles elaborou acerca da natureza – isto ĂŠ, da phĂ˝sis –, em especial, nĂŁo dĂĄ Ă matemĂĄtica a importância que ela possuĂ­a aos olhos de PitĂĄgoras e de PlatĂŁo. Isso nĂŁo significa que AristĂłteles ignorasse o valor das matemĂĄticas. Mas, do seu ponto de vista, as matemĂĄticas constituem uma ciĂŞncia Ă parte, cuja aplicação ao universo natural ĂŠ inadequada, porque a natureza que nos cerca nĂŁo admite a precisĂŁo e a certeza dos nĂşmeros. A natureza, diz AristĂłteles, ĂŠ constituĂ­da pela “matĂŠriaâ€?, e esta Ăşltima nĂŁo obedece aos parâmetros exatos que caracterizam o saber matemĂĄtico. Por isso, segundo AristĂłteles, buscar aplicar as matemĂĄticas Ă natureza ĂŠ cometer um equĂ­voco sobre o objeto investigado, ĂŠ ignorar sua verdadeira caracterĂ­stica. A fĂ­sica dos corpos terrestres, segundo AristĂłteles, nĂŁo pode ser matemĂĄtica. Querer matematizĂĄ-la equivale a impor Ă fĂ­sica um modelo que nĂŁo corresponde Ă sua realidade. Veja como AristĂłteles assume uma posição oposta Ă queles que, na linha iniciada por PitĂĄgoras, procuraram matematizar a phĂ˝sis:

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“A filosofia ĂŠ escrita neste enorme livro que temos continuamente aberto diante de nossos olhos (quero dizer, o universo), mas nĂŁo ĂŠ possĂ­vel compreendĂŞ-lo, se primeiro nĂŁo se compreende sua lĂ­ngua e os caracteres nos quais estĂĄ escrito. Ele estĂĄ escrito em lĂ­ngua matemĂĄtica, e os caracteres sĂŁo triângulos, cĂ­rculos, e outras figuras geomĂŠtricas, sem recurso Ă s quais ĂŠ impossĂ­vel compreender dela uma palavra; sem isso, perdemo-nos inutilmente em um obscuro labirinto.â€? (Galileu Galilei, O ensaiador. 1ÂŞ edição: 1623. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Il saggiatore. Coleção Ricciardi [org. F. Flora] 1953, Cap. VI, pp. 16-17)

As metamorfoses do pedaço de cera Leia agora esta passagem escrita por RenĂŠ Descartes, que compartilhou de muitas convicçþes de Galileu Galilei em sua filosofia: “Consideremos, de partida, as coisas mais comuns, que acreditamos compreender de modo mais distinto – os corpos que tocamos e vemos. NĂŁo quero falar dos corpos em geral, jĂĄ que noçþes gerais desse tipo sĂŁo habitualmente mais confusas, quero falar de alguns deles em particular. Tome-se

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como exemplo esse pedaço de cera, que acaba de vir da colmeia. Ele nem perdeu ainda a doçura do mel que continha, retĂŠm ainda alguma coisa do aroma das flores de que foi recolhido. Sua cor, figura e grandeza sĂŁo aparentes, pois ĂŠ duro, frio, quando tocado, e, caso bater nele, emitirĂĄ algum som. Em suma, encontram-se nele todas as coisas que tornam possĂ­vel conhecer de modo distinto um corpo. SĂł que, enquanto falo, ele ĂŠ aproximado ao fogo. Exala-se o que nele ainda havia de sabor, o aroma desaparece, a cor muda, a figura some, a grandeza aumenta, ele se torna lĂ­quido, se aquece, jĂĄ ĂŠ difĂ­cil tocĂĄ-lo. E, ainda que se bata nele, jĂĄ nĂŁo emitirĂĄ som algum. Permanece o mesmo apĂłs essa mudança? É preciso admitir que permanece, ninguĂŠm pode negĂĄ-lo. Mas o que, entĂŁo, tanto se conhecia de forma distinta nesse pedaço de cera? Certamente, nada de tudo o que nele notei por meio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que caĂ­am sob o paladar, ou o olfato, ou a visĂŁo, ou o tato, foram alteradas, embora a mesma cera permaneça. Talvez fosse o que penso agora: a cera nĂŁo era nem a doçura do mel, nem o aprazĂ­vel aroma das flores, nem a brancura, nem a figura, nem o som – mas apenas um corpo que, atĂŠ hĂĄ pouco, me aparecia sob essas formas, e que agora se mostra de outra maneira. Mas o que exatamente imagino, quando a concebo desse modo? Consideremos isso mais cuidadosamente e, deixando de lado todas as coisas que nĂŁo pertecem Ă cera, examinemos o que sobra. Certamente, nĂŁo permanece nada que nĂŁo seja algo de extenso, flexĂ­vel e mutĂĄvel. Mas o que ĂŠ isso – flexĂ­vel e mutĂĄvel? SerĂĄ que imagino que essa cera, redonda que ĂŠ, pode tornar-se quadrada e passar do quadrado para uma figura triangular? NĂŁo, certamente nĂŁo ĂŠ isso, pois

realidade e aparĂŞncia

isso, a ciência moderna representou uma verdadeira revolução diante do saber tradicional, uma revolução no modo de pensar a natureza que custou muitos esforços e mesmo a vida de alguns homens, que atÊ o fim afirmaram suas convicçþes científicas contra as concepçþes correntes sobre a natureza e o universo. Esta breve remissão à história do pensamento científico nos ajuda a formar ideia da novidade das linhas citadas abaixo, em que Galileu Galilei, um dos principais responsåveis pelo advento da moderna ciência da natureza, afirma que o universo Ê um livro escrito em símbolos matemåticos:

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a concebo como capaz de receber uma infinidade de mudanças semelhantes, e nĂŁo poderia, contudo, seguir essa infinidade com minha imaginação, e, portanto, essa concepção que possuo da cera nĂŁo ĂŠ produzida pela faculdade de imaginar.â€? (Descartes, Meditaçþes metafĂ­sicas, II. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin, 1982, vol. IX-1, pp. 23-24)

Se fizermos uma leitura conjunta do trecho de Galileu e do trecho de Descartes, observaremos que eles sĂŁo complementares. Descartes nos diz o que a natureza corpĂłrea nĂŁo ĂŠ; Galileu, aquilo que a natureza ĂŠ. Mas ambos estĂŁo de acordo sobre o sentido geral do que seja a “naturezaâ€?. O exemplo escolhido por Descartes para realizar sua demonstração de que os sentidos enganam ĂŠ o pedaço de cera. Ora ele parece ser uma coisa, ora outra. Inicialmente, ĂŠ sĂłlido e exala um odor. Mas, se o aproximamos do fogo, derrete e esquenta. DaĂ­ a pergunta: ĂŠ o mesmo ou ĂŠ outro? Ao menos uma coisa, avança Descartes, pode-se concluir desse caso: o pedaço de cera “nĂŁo pode ser absolutamente nada de tudo aquilo que nele observei por intermĂŠdio dos sentidosâ€?... Eis-nos, desse modo, jĂĄ posicionados no caminho de volta a PitĂĄgoras, o primeiro a sustentar que os sentidos nos apresentam apenas aparĂŞncias. A realidade Ăşltima das coisas, aponta Descartes na linha

realidade e aparĂŞncia

Leitura recomendada RenÊ Descartes, Obras escolhidas. Tradução: J. Guinsburg, B. Prado Jr., N. Cunha e G. Guinsburg. São Paulo: Perspectiva, 2010. RenÊ Descartes, Meditaçþes metafísicas. 1ª edição: 1641. Tradução: Homero San-

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tiago. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 2005.

A ciĂŞncia contemporânea Ê‌ pitagĂłrica? Debate em sala de aula e apresentação de seminĂĄrio HĂĄ inĂşmeros exemplos de aplicação desta concepção abstrata da natureza no ensino atual da FĂ­sica. Pense, por exemplo, a lei geral da queda dos corpos (formulada pela primeira vez, aliĂĄs, por Galileu). Sua aplicação requer que façamos abstração da resistĂŞncia que o ar oferece aos corpos em queda. Como vocĂŞ pode imaginar, AristĂłteles teria sĂŠrias objeçþes a esse tipo de recurso... Outro exemplo nos ĂŠ dado pelo princĂ­pio da inĂŠrcia (1ÂŞ lei de Newton): parece contrĂĄrio Ă nossa percepção corriqueira que um corpo, uma vez em movimento, nĂŁo vĂĄ parar senĂŁo por ação de alguma outra força. Para que possamos compreender isso, somos obrigados a abstrair o atrito, ou seja, o fato de que nenhuma superfĂ­cie real ĂŠ perfeitamente lisa e de que essas imperfeiçþes terminam por “frearâ€? os objetos que deslizam sobre ela. • Forme uma equipe com dois ou trĂŞs colegas para discutir, em sala, essas questĂľes. Notem que o que estĂĄ em discussĂŁo, nesses casos, ĂŠ o recurso a modelos abstratos que, aplicados Ă experiĂŞncia, servem para explicar fenĂ´menos naturais. Listem, utilizando como apoio o livro de FĂ­sica, outros exemplos de casos nos quais o recurso Ă abstração ĂŠ essencial para a explicação de fenĂ´menos naturais. Em seguida, apresentem em forma de seminĂĄrio os casos levantados por vocĂŞs para o restante da sala.

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de PitĂĄgoras, nĂŁo pode ser captada pelos sentidos, mas apenas pelo intelecto. NĂŁo ĂŠ exatamente isso o que ensina o trecho de Galileu citado acima? Afirmase ali que a realidade do universo pode ser facilmente apreendida por nĂłs. Basta que estejamos familiarizados com a lin-

guagem matemĂĄtica. Pois, diz Galileu, o universo “estĂĄ escrito em lĂ­ngua matemĂĄticaâ€?. Em oposição ao que defendia AristĂłteles, Galileu afirma que temos o direito e mesmo o dever de aplicar a matemĂĄtica Ă natureza, caso desejemos compreender o universo.

Museu Nacional do Bargello. Florença/ DeAgostini/Getty Images

A desconfiança em relação às aparências percorreu a história das concepçþes sobre a ciência e a filosofia da natureza, desde a GrÊcia antiga atÊ os dias de hoje. Mas as consequências desse par de noçþes não se resumem ao campo da investigação da natureza. Vamos explorar um aspecto da oposição entre realidade e aparência relacionado ao universo das nossas açþes e condutas. TambÊm aqui, Ê comum depararmos com a afirmação de que as aparências enganam. Mas, neste caso, a ilusão não se deve ao fato de elas ocultarem a profundidade das coisas e dos seres, mas ao fato de simularem algo diverso do que são as coisas e os seres. No primeiro caso, o das ciên-

No âmbito da Êtica, a aparência Ê às vezes tomada como falsidade (Vincenzo Danti [1530-1576], A honra derrota a falsidade. Mårmore, 1561).

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cias, o argumento ĂŠ o de que as aparĂŞncias sĂŁo superficiais, enquanto a realidade ĂŠ profunda. No caso das condutas humanas ĂŠ diferente. As aparĂŞncias sĂŁo frequentemente tomadas como sendo um artifĂ­cio produzido com o intuito de esconder a realidade. É isso o que se verifica quando abandonamos o âmbito do conhecimento cientĂ­fico e adentramos o âmbito da moral, da pedagogia e da polĂ­tica. Podemos ver exemplos disso no dia a dia das relaçþes humanas. Dizemos que fulano ou beltrano nĂŁo ĂŠ como parece, que disfarça o que sente, dissimula o que pensa, apresenta de si mesmo uma imagem diversa do que realmente ĂŠ. Nesse caso, o carĂĄter ilusĂłrio da aparĂŞncia se deve ao carĂĄter artificial com o qual podemos revestir a realidade. De fato, muitas vezes os artifĂ­cios servem para esconder algo. Por isso, afirma-se que por meio deles dissimulamos nossa “essĂŞnciaâ€?, o que somos de verdade. Mas pense bem: o que, exatamente, seria essa essĂŞncia? Como ela se manifesta, a nĂŁo ser de um modo que inevitavelmente traz consigo uma imagem ou uma impressĂŁo e, portanto, sob uma forma que sempre ĂŠ aparĂŞncia de algo? SerĂĄ que haveria dois tipos de aparĂŞncia, uma fiel, outra infiel ao original? Sob influĂŞncia de PitĂĄgoras, PlatĂŁo aprofundou a tese de que a essĂŞncia da realidade se localiza para alĂŠm das aparĂŞncias. PlatĂŁo fez isso tanto no que concerne ao saber cientĂ­fico, quanto ao que concerne Ă moral. A alegoria da caverna,

realidade e aparĂŞncia

Ser e parecer justo

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apresentada no Livro VII de A repĂşblica e de que tratamos na Unidade PrincĂ­pio e temporalidade ĂŠ um exemplo disso. NĂŁo por acaso, em outra passagem de A repĂşblica, anterior ao Livro VII, PlatĂŁo utiliza o par “realidadeâ€? versus “aparĂŞnciaâ€? a fim de abordar questĂľes de ordem moral.

Recordemos por um instante o contexto do diĂĄlogo escrito por PlatĂŁo. A RepĂşblica se inicia com o relato de uma visita que SĂłcrates e Glauco fizeram, no dia anterior, ao Pireu, a cidade portuĂĄria prĂłxima de Atenas. Como na maior parte de suas obras, o principal personagem

PlatĂŁo PlatĂŁo nasceu em Atenas, em 428 ou 427

próprio Platão – Ê o único capaz de governar e

a.C., e morreu nessa mesma cidade, em 348

legislar com justiça, garantindo à cidade e seus

ou 347 a.C. Filho de famĂ­lia importante, es-

cidadĂŁos uma vida realmente feliz.

tava destinado, como tantos outros jovens

AlĂŠm de escrever diĂĄlogos, PlatĂŁo fundou

filhos de famĂ­lias como a sua, a se tornar um

a primeira escola filosĂłfica conhecida, a Aca-

influente cidadĂŁo e polĂ­tico, numa cidade que

demia, onde ensinava e debatia seu pensa-

criara e celebrava o regime democrĂĄtico e o

mento com seus discĂ­pulos.

nas assembleias. Ocorreu,

mentais para o pensamento do Ocidente. Os

que o jovem PlatĂŁo co-

principais são: República – talvez o mais rele-

nheceu SĂłcrates (470-

vante –, FÊdon, Banquete, Fedro, Teeteto, Sofis-

399 a. C.) e se tornou

ta, Timeu, Leis. Em lĂ­ngua portuguesa, hĂĄ uma

seu seguidor. O ensino

tradução completa dos diålogos, publicada

do velho filĂłsofo o trans-

pela Editora da Universidade Federal do ParĂĄ,

formou

profundamen-

com tradução de Carlos Alberto Nunes e en-

te. Numa carta prova-

saios introdutĂłrios de Benedito Nunes, alĂŠm

velmente escrita jĂĄ em

de vårias outras publicaçþes por diferentes

sua velhice, lamentarĂĄ a

editoras e tradutores.

SĂłcrates, o “mais justo

Em particular sobre A república, podem-se mencionar duas outras traduçþes:

homem de seu tempo�,

Platão, A República. Tradução Maria He-

nelas vendo um grave sintoma dos proble-

lena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Ca-

mas por que passava a democracia atenien-

louste Gulbenkian, 1993.

se, sobretudo em virtude da derrota contra os

Platão, A república. Tradução Anna Lia

espartanos na chamada Guerra do Pelopone-

Amaral de Almeida Prado. SĂŁo Paulo: Martins

so, que levara a uma profunda e preocupante

Fontes, 2006.

crise moral e polĂ­tica.

realidade e aparĂŞncia

volvem pela primeira vez vĂĄrios temas funda-

contudo,

condenação e morte de

Por tudo isso, conclui PlatĂŁo que somente a “Filosofiaâ€? poderia salvar a cidade de seus problemas morais e polĂ­ticos. Sua obra, escrita em diĂĄlogos, consistiu afinal em um grande esforço de retomar o estilo socrĂĄtico de reflexĂŁo

Os diĂĄlogos de PlatĂŁo formulam e desen-

Como leitura introdutĂłria ao conjunto dos diĂĄlogos, pode-se ler: JosĂŠ Trindade Santos: Para ler PlatĂŁo (3 vols.). SĂŁo Paulo: Loyola, 2008-9. Particularmente sobre A repĂşblica, tambĂŠm como texto introdutĂłrio:

moral, de modo a transformĂĄ-lo numa doutri-

R. Bolzani Filho: “PlatĂŁo: verdade e justiça

na capaz de reformar a vida da cidade. A tese

na Cidade�, in: V. Figueiredo (org.), Seis filóso-

central dessa obra parece ser, por isso, que o

fos na sala de aula, SĂŁo Paulo: Berlendis & Ver-

filósofo – tal como o compreende e define o

tecchia, 2006.

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Museu Capitolino, Roma/The Bridgeman Art Library/Keystone

uso pĂşblico da palavra

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posto em cena por Platão Ê Sócrates, de quem Platão foi discípulo, quando jovem. Platão escreveu a maior parte de seus diålogos após a condenação à morte e a execução de Sócrates em Atenas, em 399 a.C. E prestou-lhe homenagem ao fazer de Sócrates seu principal personagem. Muitas

vezes, Platão expþe suas próprias ideias por meio da personagem de Sócrates, sendo impossível separar o que pertence a Platão do que pertence ao Sócrates platônico. É o que ocorre em A república. Platão Ê o primeiro filósofo a explorar a forma do diålogo, atravÊs da qual

NĂŁo ĂŠ sempre que o texto filosĂłfico se apre-

ferentes pontos de vista. Por isso, muitas vezes

senta como uma exposição de molde disser-

essa ĂŠ a forma adotada para se redigir uma

tativo, com uma forma, por assim dizer, aber-

abordagem crĂ­tica a respeito de um assunto ou

tamente “nĂŁo ficcionalâ€?. A tradição filosĂłfica

de uma obra. TambĂŠm ĂŠ comum que o ensaio

contou, desde a Antiguidade, com uma diver-

se apresente como expressĂŁo de uma sĂŠrie de

sidade de soluçþes no modo de formular suas

vivĂŞncias do autor (hipotĂŠticas ou concretas).

questþes e argumentaçþes. A forma diålogo Ê

Seja no assunto tratado, seja no seu desen-

caracterĂ­stica dos textos de PlatĂŁo, que fundou

volvimento, espera-se que o ensaio exiba uma

uma tradição. O diålogo filosófico Ê a forma

unidade razoavelmente clara.

adotada, por exemplo, por Denis Diderot (1713-

Um estilo mais livre de redação Ê o de afo-

1784) para tratar de questĂľes morais e estĂŠticas

rismos, em que cada pensamento filosĂłfico ĂŠ

em seu texto O sobrinho de Rameau. O esquema

apresentado na forma de um pequeno texto au-

segue grosso modo o modelo platĂ´nico: alguns

tĂ´nomo, podendo Ă s vezes ser um pouco mais

interlocutores (no caso, dois) debatem ideias de-

extenso. Em obras organizadas dessa maneira,

fendendo pontos de vista diferentes, podendo

com frequĂŞncia cada aforismo, embora consista

ou nĂŁo chegar a um consenso a respeito delas.

numa unidade autĂ´noma, dialoga com os de-

Antes de PlatĂŁo, o prĂŠ-socrĂĄtico ParmĂŞni-

mais. Exemplos desse tipo de redação filosófica

des de Eleia (sĂŠc. V a.C.) havia formulado sua

são encontrados nas Consideraçþes para mim

filosofia na forma de um poema, do qual pos-

mesmo, do filĂłsofo estoico (e imperador roma-

suĂ­mos fragmentos. Outro poema filosĂłfico

no) Marco AurĂŠlio (121-180 d.C.) e, mais recente-

muito influente no Ocidente ĂŠ Da natureza das

mente, em diversos livros de Friedrich Nietzsche

coisas (De rerum natura) do filĂłsofo epicurista

(1844-1900). Eis o exemplo de um curto aforis-

romano LucrĂŠcio (sĂŠc. I a.C.).

mo nietzschiano que, de tĂŁo sintĂŠtico, ĂŠ quase

Uma forma bastante prezada no mundo

uma mĂĄxima: “A maldade ĂŠ rara – A maioria dos

antigo ĂŠ a epĂ­stola. Nela, o autor se dirige a

homens estĂĄ ocupada demais consigo mesma

um amigo como se escrevesse uma carta,

para ser må.� (Humano, demasiado humano, I, nº

mas nela desenvolve um argumento filosĂłfi-

85, tradução nossa).

co endereçado ao seu interlocutor, que pode

Por fim, mencionemos o simpĂłsio, uma

ser real ou imaginĂĄrio. Um exemplo bastante

forma muito característica da filosofia romântica

lembrado sĂŁo as EpĂ­stolas morais a LucĂ­lio, do

alemĂŁ, grupo que compreende Novalis (1772-

filĂłsofo, escritor e polĂ­tico romano LĂşcio Aneu

1801), Friedrich Schlegel (1772-1829) e outros.

SĂŞneca (sĂŠc. I d.C.).

Ela se originou a partir de encontros de jovens

Pode-se dizer que Michel de Montaigne

pensadores e escritores alemĂŁes, notadamente

(1533-1592) foi o criador de um gĂŞnero filosĂł-

na cidade de Iena. Esta forma se diferencia do

fico e humanista de grande repercussĂŁo: o en-

diĂĄlogo na medida em que o saber se produz

saio. Nele, uma questĂŁo central ĂŠ desenvolvida

nĂŁo tanto pelo confronto de um interlocutor com

em estĂĄgios, num percurso que contempla di-

outro, mas por uma conversa a muitas vozes.

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realidade e aparĂŞncia

AS DIVERSAS FORMAS DOS TEXTOS FILOSĂ“FICOS

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apresenta seu pensamento. A leitura dos diĂĄlogos platĂ´nicos mostra que nem sempre a atividade filosĂłfica se resume a apresentar teses, demonstrĂĄ-las ou abandonĂĄ-las. Por vezes, a filosofia reside em pĂ´r em cena um debate entre interlocutores – e tambĂŠm ocorre que esse debate nĂŁo atinja um termo, uma conclusĂŁo satisfatĂłria, uma verdade definitiva. A escolha de PlatĂŁo pela forma do diĂĄlogo, por isso, jĂĄ define uma posição filosĂłfica do autor. Por meio das personagens pos-

tas em cena e do debate que protagonizam, o leitor Ê apresentado a questþes que mobilizam divergências e pontos de vista antagônicos. Seu interesse estå menos na solução do problema que na exposição de seus diferentes aspectos. Como a opção de Platão pela forma dialógica se exprime em A república? Nessa obra, Sócrates conduz a investigação sobre a natureza da justiça. Ele refuta seus interlocutores e, diferentemente de diålogos que hesitam em apontar

Praticando as diferentes formas do filosofar

realidade e aparĂŞncia

Atividade em equipe, elaboração conjunta de texto e desenvolvimento individual por escrito

A seguinte situação de aprendizagem, a ser desenvolvida em trĂŞs etapas, tem antes o intuito de fomentar a atenção para a forma da argumentação do que para o tema desta Unidade. Para começar, divida-se a classe em quatro grupos. Fase 1 – Cada grupo produzirĂĄ um texto de pequena extensĂŁo (de 1 a 2 pĂĄginas no mĂĄximo), desenvolvendo um tipo especĂ­fico de argumentação a partir de um assunto dado pelo(a) professor(a). Cada grupo tem como ponto de partida um tema diferente. a. O grupo 1 o farĂĄ na forma diĂĄlogo (dois interlocutores, um rebatendo o outro); b. o grupo 2, um parĂĄgrafo como de um pequeno ensaio; c. o grupo 3, um aforismo ou um pequeno conjunto de aforismos (cada um contendo de 1 a 5 frases); d. o grupo 4, como simpĂłsio (4 a 5 interlocutores com posiçþes diferentes e complementares). Cada grupo se reĂşne e discute suas ideias; em seguida, as pĂľe por escrito. Ao

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final dessa fase, cada grupo lĂŞ o resultado de sua produção textual para o restante da classe. Note: escolher uma forma mais sintĂŠtica, como a do aforismo, nĂŁo ĂŠ necessariamente vantajoso – pois ĂŠ muito difĂ­cil expressar ideias sofisticadas numa simples frase! Fase 2 – Cada grupo retĂŠm o seu tema, mas muda de forma, e redige um pequeno texto sobre o mesmo assunto anteriormente proposto, mas agora explorando outro gĂŞnero textual: quem começou pelo ensaio, agora farĂĄ aforismo ou diĂĄlogo, assim por diante. Fase 3 â€“ Atividade individual. Cada estudante desenvolve, por escrito: a. um breve diĂĄlogo a partir de um aforismo; b. um parĂĄgrafo ensaĂ­stico a partir de um trecho de diĂĄlogo filosĂłfico; c. um aforismo a partir de um parĂĄgrafo de ensaio. Dica: especialmente nos casos do diĂĄlogo e do simpĂłsio (mas tambĂŠm, defensavelmente, no do ensaio), vocĂŞ pode lançar mĂŁo de elementos fictĂ­cios – sempre que pertinentes ao assunto –, de forma a ajudĂĄ-lo a desenvolver a forma textual.

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1. aquelas que gostaríamos de obter pelo que possuem de bom em si mesmas (a alegria, os prazeres inocentes); 2. aquelas que são boas em si mesmas e nos resultados que produzem (a inteligência, a vista, a saúde); 3. aquelas que, embora sejam em si mesmas desagradåveis, são benÊficas (o tratamento das doenças, os meios de se obter dinheiro). A questão em jogo Ê clara, mesmo que a resposta seja difícil: em qual dessas classes incluir a justiça? Eis a pergunta que Glauco faz a Sócrates. Sócrates defende a tese de que a justiça se situa entre as coisas do grupo (2), que são as coisas que proporcionam a verdadeira felicidade. Glauco, de seu lado, defenderå que a justiça se encontra, na verdade, entre as coisas do grupo (3), que são desagradåveis em si mesmas, mas úteis para nós. Segundo Glauco, se pudÊssemos dispensar a justiça, não hesitaríamos em

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dar as costas para ela. Esta ĂŠ uma posição de consequĂŞncias importantes. Caso a aceitemos, aceitaremos tambĂŠm que a conduta justa ĂŠ exercida nĂŁo por seu valor intrĂ­nseco, mas para atender a um ou mais interesses. Assim como ingerimos um remĂŠdio amargo com o intuito de restabelecer a saĂşde, assim tambĂŠm, conforme o argumento de Glauco, agimos com justiça apenas porque desejamos viver em paz com os demais. Se nĂŁo fosse por isso, serĂ­amos injustos. A justiça: um mal necessĂĄrio? Vamos reconstruir, agora, uma passagem do texto de PlatĂŁo, a fim de discutir a argumentação de Glauco mais detalhadamente. O primeiro momento dessa argumentação corresponde ao trecho citado a seguir: (Glauco:) “Pelo que se diz, por natureza, fazer injustiça ĂŠ um bem e sofrĂŞ-la, um mal. Mas sofrĂŞ-la aparece mais, pois o mal que hĂĄ em sofrĂŞ-la supera o bem que hĂĄ em fazĂŞ-la. Desse modo, quando os homens, nas relaçþes que mantĂŞm, fazem injustiças e dela sĂŁo vĂ­timas, sentem o gosto de uma e outra; e, caso nĂŁo sejam capazes de evitar uma e realizar a outra, parece-lhes Ăştil fazer um contrato que os proĂ­ba a todos de fazer injustiça e sofrĂŞ-la. E foi a partir desse momento que os homens passaram a instituir suas leis e convençþes e chamar legal e justo o que fosse prescrito pela lei. Eis a origem e essĂŞncia da justiça, situada entre o Ăłtimo, que ĂŠ fazer injustiça e nĂŁo ser punido, e o pĂŠssimo, que ĂŠ ser vĂ­tima da injustiça e nĂŁo poder vingar-se. A justiça estĂĄ entre esses dois extremos e ĂŠ estimada nĂŁo como um bem, mas como algo que ĂŠ reconhecido por falta de ânimo de fazer injustiça, pois quem o pudesse fazer e fosse realmente um homem nĂŁo firmaria com ninguĂŠm convenção alguma que o proibisse

realidade e aparĂŞncia

uma conclusão, defende uma posição bem rigorosa sobre o assunto em pauta. Mas não Ê disso que trataremos. Queremos, aqui, chamar a atenção para o início do debate, no segundo dos dez livros que compþem o diålogo, ali onde Glauco e Adimanto fazem uso da palavra, e Sócrates se contenta em responder. O tema da discussão, como dissemos, Ê a natureza da justiça, e, como você irå perceber, Ê nesta discussão que surge a oposição entre realidade e aparência. O passo Ê muito importante, porque grande parte de A república reside na resposta que Sócrates fornecerå às questþes levantadas aqui. Quais são as questþes levantadas por Glauco no Livro II de A república? Trata-se de um argumento muito elaborado. A breve fala de Glauco contÊm uma tese de fôlego, difícil de refutar. Ele inicia sua argumentação distinguindo três classes de coisas boas (República, 357b-358a):

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de fazer injustiça e de sofrê-la. Isso seria loucura. Pois bem, Sócrates, eis a natureza da justiça e sua origem, pelo que se diz.” (Platão, República, II, 358e-359b. Tradução nossa.)

realidade e aparência

Como se vê, logo de início Glauco evoca o que diz ser a opinião geral sobre a natureza e a origem da justiça. É comum, afirma Glauco, definir a justiça como o meio termo entre dois extremos: de um lado, o bem máximo, que reside em praticar impunemente a injustiça; de outro, o pior dos males, que equivale a sofrer injustiças sem poder fazer nada. Se Glauco estiver correto, então a justiça é fruto de um cálculo. Entre o que desejo fazer (a injustiça) e o que posso sofrer (novamente, a injustiça), é melhor ser prudente e adotar... um meio termo. O raciocínio é, essencialmente, o seguinte: não exercerei de modo absoluto minha vontade e com isso, em troca, não correrei o risco de ser exposto aos mandos e desmandos dos outros. Assim, Glauco também aponta qual seria o fundamento da ordem social: cada um de nós, que vivemos juntos num Estado, calcularia os prós e contras e concluiria ser mais vantajoso abrir mão de obter o bem máximo (= praticar impunemente a injustiça), a fim de não se expor ao pior dos males (= sofrer injustiças sem nada poder fazer).

O anel de Giges Logo após expor desse modo a tese de que a justiça seria apenas um mal necessário, não um bem em si mesmo, Glauco recorre à fábula, a fim de corroborar, com ela, seu argumento. Trata-se da história de Giges, um pastor que servia ao então governante da Lídia. Descendo por uma fenda que fora aberta por um terremoto, Giges encontra um cavalo de bronze, oco por dentro. Através de uma porta, enxerga, em seu interior, um cadáver, que possuía um anel de ouro. Leva consigo o anel e pouco depois descobre, sem querer, seus poderes: ao girar o

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A justiça – um bem? Atividade em equipe e debate em sala de aula • Em dupla com um colega, reflitam sobre o argumento de Glauco e procurem elementos que corroborem ou refutem sua tese – conforme a qual, se cada um de nós se atém à justiça, não é porque a consideramos um “bem em si mesmo”, mas apenas devido à impossibilidade de cometer a injustiça impunemente. Pense sobre as consequências sociais e políticas dessa tese. Caso ela seja verdadeira, o que se pode concluir a partir dela sobre nossa vida em sociedade? Estamos pensando no seguinte: se Glauco estiver correto, por que respeitamos regras sociais, ao invés de simplesmente fazer o que bem entendermos? Glauco tem uma resposta para isso. Procurem compreendê-la, desenvolvendo por conta própria o argumento proposto por ele.

anel para um lado, torna-se invisível; ao voltá-lo para sua posição inicial, visível. Daí em diante, a vida de Giges muda completamente. Invisível, Giges entra no palácio, mata o rei, casa-se com a rainha, torna-se o governante. Eis a conclusão de Glauco: “Se existissem dois anéis como esse, e o homem justo colocasse em seu dedo um deles, o injusto o outro, não haveria quem fosse tão resoluto a ponto de perseverar na justiça e tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e deles não se apropriasse, estando livre para, sem temor algum, pegar no comércio o que quisesse, adentrar nas casas e aí conviver com quem entendesse, matar e libertar quem quisesse e fazer

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Biblioteca da Abadia de Monserrate

tudo o mais. Pois, entre os homens, seria como um deus.” (Platão, República II, 360b-c, tradução nossa.)

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Alegoria da Justiça – Sócrates indaga, no Livro II da República: Seria ela apenas um remédio?

acrescenta ainda um terceiro elemento em favor da tese de que a justiça é apenas um mal necessário. Ele propõe a Sócrates uma comparação entre dois tipos opostos entre si: o homem perfeitamente justo e o homem perfeitamente injusto. Este último, o “injusto perfeito”, é tão bom em sua injustiça, que a executa sem que pareça ser injusto: ele é capaz de dissimular suas ações. Aparenta agir com justiça, embora cometa injustiças o tempo todo. Já o seu oposto, o homem perfeitamente justo, “é um homem simples e generoso que [...] não quer parecer justo, mas sê-lo” (República, II, 361b, tradução nossa). É assim, aliás, que Glauco nos propõe imaginá-lo: como alguém que é justo, mas que possui a reputação de injusto, pois apenas desse modo poderemos determinar se ele age unicamente movido pela justiça, ou por aquilo que a reputação da justiça lhe assegura. “Que ele, sem praticar injustiça, possua a reputação de completa injustiça, para que, não se deixando abater pela má fama e suas consequências, fique confirmada a autenticidade de sua justiça” (Republica, II, 361c-d, tradução nossa).

realidade e aparência

A história de Giges evocada por Glauco tem por fim comprovar a conclusão exposta no primeiro momento de sua argumentação. O que caracteriza a figura de Giges? Tornando-se invisível, ele pode fazer o que bem entender. Graças ao anel mágico, Giges se torna impune: nenhuma censura o alcança, nenhuma reprimenda ou condenação pode atingi-lo. Conforme as premissas de Glauco, ele já não precisa temer a prática da injustiça. E, tão logo o cálculo do qual se obtém normalmente a justiça se torna dispensável para Giges, ater-se a ela se torna inútil. Giges se torna injusto porque não precisa mais ser justo. Estamos, com isso, no coração da controvérsia entre Glauco e Sócrates. Transporte-se para o diálogo e responda por si mesmo: se você pudesse ser injusto tendo a certeza de estar isento de toda censura ou punição, abriria mão desse poder? Se pudesse agir “como um deus”, o que faria? Responda a isso sem perder de vista o texto. A lição a tirar da alegoria do anel de Giges é clara: a justiça seria um simples instrumento, necessário para todos aqueles que não podem fazer o que bem entendem. Isso implica uma conclusão radical: se as coisas se passam como diz Glauco, então a justiça revela uma fraqueza dos homens, visto ser-lhes útil apenas na medida em que cada um, nas relações que mantém com os demais, não pode fazer o que bem entende. A justiça, sob esse aspecto, aparece como um remédio contra nossa fraqueza de não poder fazer tudo o que desejamos. É por isso que Glauco a situa entre as coisas boas da terceira classe (os remédios, a ginástica etc.), conforme a classificação com que inicia seu argumento e que examinamos anteriormente. Para terminar sua ofensiva argumentativa, Glauco, após narrar a fábula de Giges,

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realidade e aparência

Após a caracterização desses dois tipos, Glauco lança-nos a questão decisiva: qual deles você diria ser o mais feliz – o injusto que aparenta ser justo, ou o justo que aparenta ser injusto? Não é difícil notar que essa questão e a argumentação que a prepara constituem uma variante da narrativa do anel de Giges, apresentada por Glauco pouco antes. Só que, em lugar da fábula de Giges descobrindo o anel mágico que o torna invisível, Glauco agora nos propõe imaginarmos uma oposição de tipos cujas características são definidas sem recurso à fabulação e ao mito. Você bem pode indagar se, na vida real, existe alguém que seja tão perfeitamente injusto que pareça a todos o mais justo dos homens. Mas o essencial, aqui, é a caracterização de um tipo, o do homem injusto que sabe fazer com que suas ações tenham a aparência enganosa da virtude. Note que a apresentação desse tipo possui uma função conceitual. É pensando no fato de que os exageros podem auxiliar na abordagem e compreensão de um problema que Glauco, personagem de Platão em A república, lança mão desses dois homens fictícios: o perfeitamente justo e o perfeitamente injusto.

A crítica da aparência por Sócrates Vimos a questão levantada por Glauco no Livro II de República: quem é mais feliz, o justo que parece injusto, ou o injusto que parece justo? Na verdade, essa é uma pergunta retórica, pois Glauco já direciona a resposta conforme a maneira que formulou a questão. Bastará imaginar o destino reservado a ambos para responder que o injusto será mais feliz que o justo. Como acrescenta o próprio Glauco, aquele que aparenta ser virtuoso será recoberto de glória e admiração, embora, na verdade, seja injusto; o verdadeiramente justo, ao contrário, sofrerá “açoites e torturas”, e só ao fim da vida “compreenderá que não importa ser jus-

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Os tipos e seu exagero característico Debate em sala de aula e apresentação de seminário A literatura, o cinema e o teatro estão cheios de tipos, de personagens que encarnam de maneira exagerada determinadas características. E o que dizer, então, das telenovelas? Você certamente já viu, na tevê, tipos semelhantes ao homem injusto que parece ser justo, apresentado dialeticamente por Glauco. A personagem de Flora, representada por Patrícia Pillar em A favorita (2008-2009), telenovela criada por João Emanuel Carneiro, é apenas um exemplo dentre tantos outros. • Em uma equipe de três a quatro integrantes, pesquisem, em sala de aula ou em casa, exemplos de tipos como aquele proposto por Glauco. Após sua caracterização, examinem se personagens assim são de fato possíveis na vida real. Caso a resposta seja positiva, apresentem exemplos que comprovem suas conclusões. Caso seja negativa, examinem esta última questão: por que, então, as novelas, os romances, o cinema e o teatro sempre recorrem a essas caracterizações exacerbadas?

to, mas apenas aparentar sê-lo” (A república, II, 361e -362a, tradução nossa). Essa última conclusão de Glauco confirma a lição que ele havia extraído da história do anel de Giges. Trata-se de um elemento complementar, coerente com a argumentação sustentada por Glauco, e que podemos resumir assim: caso possamos ser injustos sem parecê-lo, seremos felizes. Ou seja, só somos justos, porque

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não conseguimos todo o tempo ser injustos aparentando ser justos. Podemos concluir da fala de Glauco que só é feliz... aquele que parece ser justo. O que poderá retrucar Sócrates diante disso? Como você pode imaginar, Sócrates discorda completamente da posição apresentada por Glauco. Segundo Sócrates, seu amigo e interlocutor se equivoca ao dar prioridade à reputação pública de que gozam os cidadãos na cidade-Estado. Se formos nos ater à reputação, vá lá, nesse caso, Glauco até teria certa razão. Mas por que deveríamos nos ater a coisas tais como “fama”, “reputação”, etc.? Será esse tipo de critério para ser feliz que Sócrates irá desqualificar, propondo

em seu lugar outra medida para conceber a distinção entre realidade e aparência. No entender de Sócrates, a aparência corresponde a uma realidade inferior, derivada da realidade propriamente dita. A realidade, argumentará Sócrates, se situa no mundo transcendente das Formas ou Ideias, no qual o simulacro, as aparências, não têm lugar. Na refutação dos argumentos de Glauco, Sócrates lança mão do que se tornou conhecido como a doutrina das Ideias, também apresentada na Unidade Princípio e temporalidade (módulo “Platão e o tempo”), ao comentar a alegoria da caverna. Só vale a pena ser injusto e parecer justo em um contexto em que prevalece o simulacro, o engano, a

Foi instaurado um proces-

líder romano Caio Júlio César

so judiciário para deliberar

(100-44 a.C.) deu origem a uma

sobre o sacrilégio que pertur-

máxima muito repetida quan-

bara a festividade. Durante

do se trata de julgar e valorizar

esse processo, os juízes per-

as aparências.

guntam a César por que ele

Em 62 a.C., César ocupava,

não denunciara Clódio. César

havia aproximadamente um

declara nada ter contra ele. In-

ano, o cargo de máxima auto-

terrogado então por que repu-

ridade religiosa de Roma (pon-

diara Pompeia, ele argumenta

tifex maximus). No calendário

que nem sequer uma suspeita

sagrado romano, um festejo

poderia pairar sobre a esposa

de grande importância era o

de um pontífice. Daí se origi-

dedicado à Bona Dea (“a boa

nou a máxima: “Não basta à

deusa”), que sempre devia ser realizado na re-

mulher de César ser honesta; ela também tem

sidência do pontífice, sendo proibida a presen-

de parecer honesta”.

ça de todo e qualquer homem, inclusive a do senhor da casa.

O dito realça o papel da fama (ou das aparências) na vida prática, especialmente na vida

Naquele ano, porém, deu-se um escândalo:

política. (Na realidade, César tinha outras mo-

durante a festa ritual, um homem foi descober-

tivações para fazê-lo. Estava defendendo seus

to na casa do pontífice, travestido de mulher.

próprios interesses políticos: não queria se

Uma criada teria arranjado um encontro amo-

pronunciar pública e oficialmente contra Cló-

roso entre esse homem, Clódio, e a então espo-

dio, que era muito prestigiado pelas camadas

sa de César, Pompeia (filha de outro grande po-

populares; além disso, César se aproveitou da

lítico romano). César imediatamente repudiou

ocasião para selar um novo acordo político

a esposa (isto é: separou-se legalmente dela).

mediante outro matrimônio.)

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realidade e aparência

Um episódio da vida do

Busto em mármore de César, Séc. I. Houston Museum of Natural Science. Foto: Ed Uthman. CC-as-2.5

“NÃO BASTA SER HONESTO, É PRECISO APARENTAR SÊ-LO”

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ilusão. E esse contexto é caracterizado por Sócrates como a caverna de que fala a alegoria do Livro VII de A república. Em seu interior, prevalecem a ilusão e as aparências. Mas o indivíduo que sair da caverna descobrirá esse engano, enxergará as coisas como elas são, à luz do sol. E quem tiver feito isso já não poderá

se contentar com uma vida afastada da verdade, como, a crer no Sócrates platônico, ocorre com o filósofo. Vê-se em que medida a condenação e execução do Sócrates histórico foi importante para a solução apresentada em A república, por meio da personagem de Sócrates elaborada por Platão.

A realidade da aparência

realidade e aparência

Julenochek/Shutterstock

Se a realidade nem sempre é aparente, mas pode estar oculta, devemos permanecer atentos para não sermos enganados pelas ilusões criadas pelas aparências? Não é preciso sempre tomar as coisas por esse lado. Há quem defenda que somente as aparências revelam a verdade. Como dizia o escritor Oscar Wilde (1854-1900), “apenas os superficiais não julgam pelas aparências”. De fato, pode-se conceber a natureza e o estatuto da aparência sem condená-la por completo e de uma vez por todas. Arriscaríamos até dizer que a atenção que

Você é do tipo que dispensa um bom tempo cuidando de sua aparência ou,

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ao contrário, simplesmente não liga para isso?

a maioria de nós dedica às aparências é um reconhecimento de que elas são parte importante de nossas vidas. Pode até ser que as aparências enganem, como quer o ditado. Mas então também é verdade que passamos bastante tempo ocupados enganando aos outros e a nós mesmos. Vamos seguir essa pista um momento. Comecemos examinando um hábito diário e generalizado. Arrumar-se para sair é cuidar da própria aparência. E não é incomum descobrir que quem é contra a maquiagem e critica quem se pinta se preocupa em parecer natural. Às vezes, desarrumar os cabelos e assumir um estilo casual exige passar mais tempo na frente do espelho do que quem só passa uma maquiagem básica. E isso sugere que, exceções à parte, em alguma medida todos nós nos preocupamos em parecer ser alguma coisa. Zelar por nossa imagem diante dos outros é valorizar o modo como aparecemos para eles. Valorizar, portanto, nossa aparência. Aproximamo-nos, assim, da questão da beleza e do ornamento, o que já requer examinarmos nossa questão sob outro enfoque. O cuidado de si e com a própria imagem está presente em todas as culturas e, em muitas delas, se associa à prática de embelezar-se. Cuidamos da “aparência”, e isso não é, em si, negativo. O hábito de se ornamentar faz com que a questão da aparência ganhe um

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realidade e aparĂŞncia

sentido novo, diferente daquele que jĂĄ guĂŠm que nĂŁo diz o que pensa em todas examinamos quando consideramos que as circunstâncias. Imagine que desastre, muitos filĂłsofos buscaram a realidade se sempre falĂĄssemos o que nos vem Ă por trĂĄs das aparĂŞncias. Se, no caso do cabeça... Um jesuĂ­ta italiano que andou ornamento ou do embelezamento, a pelo Brasil no sĂŠculo XVIII, Gabriel Ma“aparĂŞnciaâ€? sequer se opĂľe Ă â€œrealidadeâ€?, lagrida (1689-1761), dizia que “ao hopor que deverĂ­amos considerĂĄ-la como mem foi dada a palavra para esconder algo irreal, superficial ou ilusĂłrio? seu pensamentoâ€?. Ele queria dizer com Um exercĂ­cio com o significado usual isso que a linguagem ĂŠ importante nĂŁo de nossas palavras pode esclarecer meapenas para comunicarmos o que senlhor esse ponto. Aprofundemos um instimos, exprimir o que desejamos, mas tante o caso da maquiagem. Dizemos que tambĂŠm para fazer exatamente o oposto quem se pinta, usa corretivo, batom etc., disso, isto ĂŠ, para dissimular o que senti“se produzâ€?. Ora, nenhum dicionĂĄrio demos e pensamos. Afinal, e para recordar fine “produzirâ€? como equivalendo a “iluoutro ditado bem a propĂłsito, “quem diz dirâ€? ou “enganarâ€?. o que quer, ouve o que “Produzirâ€? ĂŠ criar nĂŁo querâ€?... algo novo, transformar a Imagine se, como realidade atual ou fabriexercĂ­cio em aula, vocĂŞ A linguagem ĂŠ car uma realidade nova, se reunisse em grubem diferente dela. VocĂŞ po e contasse tudo o usada nĂŁo apenas pode nĂŁo aprovar quem que passa por sua capara comunicar “se produzâ€? demais, mas beça! Ser educado imo que sentimos, seria estranho afirmar plica nĂŁo dizer a todo que seu rosto ou seu asmomento o que se mas tambĂŠm para pecto geral nĂŁo seja real. estĂĄ pensando. Outro dissimular o que A pintura – e agora, penexemplo de dissimupensamos. samos na arte da pintulação que parece bem ra, nĂŁo da maquiagem vinda: vocĂŞ nunca se – se encaixa muito bem pegou rindo de uma nessa explicação. Pintar piada que achou sem ĂŠ produzir aparĂŞncias, graça, apenas para ser criar novas realidades. Ao pintar seus quagentil com quem estĂĄ com dificuldades dros, na maioria das vezes o intuito do para entrar na conversa? Quando fez pintor ĂŠ muito mais o de ter sua obra adisso, agiu de forma falsa e hipĂłcrita ou mirada do que o de nos enganar. simplesmente foi gentil? HĂĄ um outro contexto no qual as apaConsidere mais um exemplo, tambĂŠm rĂŞncias, longe de serem recusadas, sĂŁo extraĂ­do de nosso cotidiano – o nosso bem vindas e atĂŠ mesmo tidas como incomportamento Ă mesa. Por que vocĂŞ dispensĂĄveis. Dissemos acima, ao enverecome de boca fechada, e nĂŁo de boca dar pela questĂŁo cosmĂŠtica e estĂŠtica, que aberta, se nĂŁo por consideração por quem cuidar de nossa imagem diante dos outros estĂĄ almoçando ao seu lado? VocĂŞ pode ĂŠ valorizar o modo como aparecemos para retrucar que isso ĂŠ relativo, recordando eles. Pois bem: esse cuidado com as apaque isso faz parte da etiqueta desta culturĂŞncias nĂŁo corresponde, em boa parte, ao ra, nĂŁo de outra, e sempre haverĂĄ alguĂŠm que chamamos de educação? para lembrar que, em algum lugar do Tente caracterizar uma pessoa eduplaneta, valoriza-se um comportamento cada. Para começo de conversa, ela ĂŠ alcontrĂĄrio ao que consideramos em nossa

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cultura como sendo de boa educação. Na Unidade Natureza e cultura, uma das questões mais discutidas reside, exatamente, na diversidade das culturas, no fato de que pode bem ocorrer de considerarmos uma grosseria tremenda aquilo

Rousseau Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) nasceu em Genebra, na Suíça, mas fez fama

Maurice Quentin de la Tour, Jean-Jacques Rousseau, óleo sb/ tela, séc. XVIII. Museu da Cidade de Paris, França

como escritor e filósofo na França. Chegou a Paris em 1742 para tentar a carreira de músico. Logo se aproxima de Denis Diderot (1713-1784), que lhe encomenda verbetes para a Enciclopédia (1750-1762). Entretanto, devido a seu gênio difícil, Rousseau polemiza fortemente com Voltaire (1694-1778), em seguida se desentende com Diderot e, finalmente, se indispõe com David Hume (1711-1776), que o havia acolhido no Reino Unido, sensibilizado pelas dificuldades pelas quais Jean-Jacques passava. Rousseau tem uma obra ampla, profunda e diversificada, com contribuições significativas para a filosofia política (Do contrato social, 1762), para a educação (Emílio ou da educação, 1762) e no domínio da literatura. Seu romance Júlia ou a Nova Heloísa (1761) foi um dos maiores sucessos de público do

realidade e aparência

século XVIII, tendo forte influência sobre o romantismo emergente no fim do século XVIII e início do século XIX. Além de boas traduções de seus livros mais importantes, há excelentes estudos sobre a obra de Rousseau no Brasil. Mencionamos apenas um deles, de autoria de Bento Prado Jr., um de nossos maiores ensaístas: A retórica de Rousseau e outros en-

que, para outro grupo diverso do nosso, não possui nenhum significado especial, e vice-versa. No caso que estamos discutindo agora, não é este o ponto; ninguém quer ignorar que as culturas sejam diversas umas das outras. A discussão é outra. Todas as culturas se apoiam em códigos de comportamento, valorizam certas condutas, recusam outras. Viver em qualquer sociedade exige dos indivíduos que usem seus corpos de uma determinada maneira, vistam-se assim ou assado, alimentem-se seguindo um grupo de regras, e assim por diante. E tudo isso tem de ser bem visível. Ou seja, tem de aparecer, manifestar-se. Eis-nos assim, outra vez, às voltas com as aparências. Parece inegável que elas são parte decisiva de nosso comportamento cotidiano e que, por isso, nem sempre é o caso de buscar uma “realidade” por trás delas.

saios. São Paulo: Cosacnaify, 2008.

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Nem toda aparência é falseamento No contexto ligado ao comportamento, assim como no caso dos cosméticos e da beleza, as aparências revelam dispor de uma realidade própria, a ponto de determinarem o modo como supostamente devemos nos comportar no dia a dia. Podemos nos rebelar e contestar esse tipo de regulamento não escrito, que exprime valores do grupo social a que pertencemos. Mas, exatamente porque vamos contra eles e os questionamos, atestamos que as aparências são tangíveis e efetivas, que possuem uma realidade bem palpável. Tão palpável que se torna difícil conseguir desembaraçar-se delas. Pode-se argumentar que a força das aparências sobre nós é tanto um fenômeno positivo quanto negativo. Nos dois casos, entretanto, concede-se que as aparências possuem uma eficácia real e que dispõem, nesse sentido, de uma realidade própria.

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Warner Bros/Everett Collection/Keystone

John Malkovich encarna o sedutor Visconde de Valmont em Ligações perigosas (Direção de S. Frears. EUA:1988), filme baseado no romance homônimo de P. C. de Laclos (1741-1803).

se entre o que somos realmente e nossa aparência exterior. Com isso, a sociedade atual criou um abismo entre ser e parecer. A aparência se tornou estranha à virtude, diz Rousseau. Nem sempre foi assim, ele acrescenta em seguida. Nos tempos primitivos, quando não havia a preocupação em parecer ser o que não se é, os indivíduos exibiam sua natureza mais íntima: “Antes que a arte tivesse polido nossas maneiras e ensinado a nossas paixões a falar uma linguagem artificial, nossos costumes eram rústicos, porém naturais. E a diferença no comportamento anunciava, imediatamente, a diferença dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor. Mas os homens encontravam sua segurança na facilidade de se perceberem reciprocamente, e essa vantagem, da qual não conhecemos mais o preço, lhes economizava muitos vícios.” (J.-J. Rousseau, Discurso sobre as ciências e

realidade e aparência

Um importante autor do século XVIII se deu conta disso logo cedo em sua vida. Referimo-nos a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Nascido em Genebra, Rousseau se tornou conhecido em Paris, onde chegou aos 30 anos. Na segunda metade do século XVIII, Paris se tornara a capital da cultura e da civilização europeias: música, teatro, artes, o espírito de conversação, as festas nos grandes salões, tudo isso chama a atenção de todos que podem afluir para lá. Rousseau tampouco fica indiferente aos brilhos e à pompa dos costumes parisienses. Só que, ao invés de aderir a eles, torna-se pouco a pouco seu crítico ferrenho. A crer em Rousseau, a sofisticação dos costumes, o brilho da civilização, o decoro e os bons modos não apenas são dissociados da virtude, como também, muitas vezes, são adversários dela. Rousseau apresenta essas ideias em uma obra publicada em 1750, o Discurso sobre as ciências e as artes. O texto responde a uma questão levantada pela Academia de Dijon (França), que indagava se, tudo somado, o desenvolvimento das ciências e das artes promove ou não o aperfeiçoamento moral da humanidade. Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “‘Perfectibilidade’ e ‘desenvolvimento’ ”), você é apresentado ao conceito de “perfectibilidade”, tal como entendido por J.-J. Rousseau. Se quiser aprofundar sua compreensão de como Rousseau concebe a mudança histórica, recorra àquele trecho, articulando-o com a presente discussão sobre realidade e aparência. O que agora examinaremos é um ponto mais específico. Interessa-nos a avaliação negativa feita por Rousseau quanto ao desenvolvimento da civilização. Por que negativa? Porque, como ele escreve, o desenvolvimento das ciências e das artes, a sofisticação de nossos costumes, a busca pelo luxo e o requinte dos modos modernos – tudo isso fez com que uma distância insuperável se interpuses-

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as artes. Tradução nossa. Edição de referência: Oeuvres complètes – vol. III [ed. Pléiade]. Paris: Gallimard: 1996, p. 8)

todos, diante das mesmas circunstâncias, as mesmas coisas, a não ser que motivos mais poderosos não os desviem.” (J.-J. Rousseau. Discurso sobre as

Você acha que Rousseau idealizava os ciências e as artes, op. cit. Tradução nossa) tempos primitivos? Talvez sim. Mas se o fez, não estava sozinho. Na Unidade Razão É fácil perceber que Rousseau é crítico [+] e paixão, examina-se como F. Schiller das aparências. Conforme o texto citado (1759-1805), autor influenciado por Rousacima, o aprimoramento dos costumes e seau, traçou um retrato da Grécia antiga o desenvolvimento da civilização causam conforme o qual os gregos viviam em harprejuízos à virtude. E isso, porque pessoas monia com o universo que os circundava. civilizadas são capazes de dissimular o que Para Pitágoras e os gregos antigos (ver sentem, esconder o que pensam, aparentar módulo “As aparências enganam?” nesta ser o que, na realidade, não são. mesma Unidade), o “cosmos” significava Note que Rousseau, na passagem citaum universo dotado de medida e ordem. da, esclarece que, antigamente, “a natureza Embora algo dessa humana não era melhor”. ideia tenha permaneciEntretanto, acrescenta, do até os dias de hoje, nada havia que impedisse ela não chegou a nós os indivíduos de perceber A sofisticação dos sem sofrer abalos. Um a essência íntima uns dos costumes, as maneiras deles foi causado pela outros. refinadas, as boas difusão da ideia cristã A sofisticação dos cosde que o universo detumes, as maneiras refiaparências, tudo isso, pende de um princípio nadas, as boas aparências, conforme Rousseau, infinito (Deus). Como tudo isso, conforme Rousrepresenta obstáculo compreender através de seau, representa obstácupara as virtudes uma medida humana – lo para as virtudes morais. e, por isso mesmo, finiPor duas razões: primeiro, morais. ta – um universo que se porque torna possível pafunda em um princípio recer honesto e virtuoso infinito? (Veja, a propósem sê-lo de fato. Eis um sito, a exposição de todo esse problema ponto no qual Rousseau retoma um dena Unidade Finito e infinito.) bate travado entre Glauco e Sócrates em Mas retornemos ao Discurso sobre as A república de Platão (ver módulo “Ser e ciências e as artes, o texto que estamos parecer justo”, nesta mesma Unidade). examinando aqui. Segundo Rousseau, foi Em segundo lugar, as aparências são pera partir do desenvolvimento econômico, niciosas às virtudes morais na medida em da sofisticação da vida em sociedade, do que, segundo Rousseau, hoje em dia é ineaprimoramento dos costumes, do florescivitável moldarmos nosso comportamento mento das ciências e das artes que aquele com base no que é considerado polido e equilíbrio original entre o ser e o parecer decoroso – isto é, procurarmos ser o que se rompeu. Como conclui Rousseau: esperam de nós e, assim, nos transformarmos em uma simples “aparência”, vol“Ninguém ousa mais parecer o que tada para satisfazer os outros. de fato é. E, submetidos a essa coerção Mas o ponto mais importante disso perpétua, os homens, formando esse tudo é outro. Para Rousseau, as aparênrebanho chamado sociedade, realizarão cias são reais. Muito embora ele possa não

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Coleção particular

Você sabe que isso é um quadro – ou melhor, a reprodução de um quadro. Você acreditaria estar nesse momento no local pintado? (Nicolau Antonio Faccinetti [18241900], Vista do Morro Pão de Açúcar, Rio de Janeiro. Óleo sb/ tela, 1868)

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cias consiste em produzir... novas aparências, melhores que aquelas do presente. A produção artística da aparência A disputa em torno do par realidade e aparência atravessa toda a história da filosofia. Há quem diga que, goste-se ou não das aparências, temos de conviver com elas. Como vimos, esse parece ser o posicionamento de Rousseau. Mas há também quem veja nisto algo essencialmente positivo. Já se disse que as aparências ocultam a essência de nosso caráter. Mas seus simpatizantes retrucam com esta pergunta: como, porém, nosso caráter se dá a conhecer, se não através de atos, palavras, discursos, bons ou maus modos, através da linguagem corporal, da maneira como nos vestimos – enfim, do modo como aparecemos aos outros? Talvez, em um universo sem aparências, não houvesse tampouco ilusões. Mas pense bem: o que seria da humanidade sem ilusões?

realidade e aparência

gostar delas, Rousseau sabe que nos encontramos em um caminho sem volta, no sentido de que não há meio de suprimir completamente as aparências. Não vá concluir disso que Rousseau fosse um partidário da selvageria ou da completa falta de polidez. Basta ler seus textos para se dar conta de que ele dominava com maestria a arte de bem escrever – seu estilo é carregado de floreios, inversões, ironias, etc., revelando a mesma sofisticação que não cansou de criticar. Paradoxo? Antes de simplesmente acusarmos Rousseau de incoerência (de um lado, criticar o aprimoramento das artes e, de outro, fazê-lo exibindo o domínio que possuía delas), percebamos que sua posição é a expressão bem acabada do fato de que as aparências possuem eficácia e poder no mundo que habitamos. Pode bem ser que Rousseau, lá no fundo (mas qual fundo, se a essência jamais se revela a nossos olhos?), estivesse querendo nos dizer que a única forma de combater as ilusões das aparên-

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Isso parece incontestável no que se refere a um âmbito essencial de nossa experiência: o da arte. Admitir que as aparências não correspondem adequadamente ao real não muda as coisas quando o assunto é arte. Pois a arte não possui o compromisso de representar a realidade tal como ela é. Imagine-se diante de um quadro que representa, por exemplo, a baía da Guanabara, no Rio de Janeiro. Por mais exata que seja a paisagem pintada ali, nem por isso você imagina, por um segundo, estar diante da própria baía da Guanabara. Você sabe perfeitamente que está diante de um quadro, que retrata uma realidade. Dito de outro modo, um quadro é um quadro mesmo quando se trata de uma pintura figurativa, na qual o pintor busca imitar a natureza de forma realista. Não é porque a maçã pintada no quadro aparenta ser igual a uma maçã real que você vai abocanhar a tela. E isso é ainda mais verdadeiro para a pintura moderna, que, em muitas de suas vertentes, abandonou o ideal figurativo em favor da exploração de volumes, cores e formas sem qualquer intuito mimético (= imitativo). Diante dessas pinturas, somos confrontados com cores e figuras formalizadas sem qualquer pretensão de imitar formas naturais determinadas. Nessa atividade de dar forma ao sensível, o pintor estabelece relações estéticas entre cores, espaços e figuras, criando um universo que expande nossa compreensão sobre as possibilidades que a realidade pode assumir. Vai nessa direção a forma como se posiciona quanto à pintura abstrata um importante historiador da arte do século XX, o norte-americano Meyer Schapiro (1904-1996). “Pintura abstrata” significa a arte pictórica que se despojou de todo intuito realista, ainda presente na assim chamada arte “figurativa”. Meyer Schapiro afirma que, na pintura abstrata, da qual o século XX e o século XXI fornecem inúmeros exemplos, o “abstrato” é, na verdade, muito concreto. Vejamos o que quer dizer com isso.

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É interessante observar que Schapiro faz referência a um elemento importante para o nosso par de conceitos: a “abstração” característica da linguagem da ciência. Só que ele o faz para em seguida nos recordar que a pintura, e mesmo a pintura abstrata (seu tema de maior interesse), tem pouco ou nada que ver com a abstração científica. Como dissemos, seu ponto reside em assinalar que a pintura abstrata é concreta, o que poderia soar paradoxal, mas não é. Pense bem. Se essa forma de pintura é “concreta”, é porque, apenas ao cortar toda referência ao mundo exterior ao quadro, a pintura pode se tornar completamente pintura. Difícil? Schapiro quer dizer que, no “abstracionismo”, o artista se concentra somente na atividade de pintar, despreocupando-se em reproduzir o que quer que exista fora do quadro. Por isso, o artista formaliza as aparências e, desse modo, exprime seu ponto de vista mais subjetivo: “aqui o subjetivo torna-se palpável”... Afinal de contas, a subjetividade do artista pode se exprimir sem que ele se preocupe em retratar a realidade. “A pintura abstrata de hoje tem pouco a ver com abstração lógica ou matemática. Ela é inteiramente concreta, sem simular um universo de objetos ou conceitos que existam fora da moldura. Na maioria dos casos, o que vemos na tela pertence a ela e a nenhum outro lugar. Mas a abstração em pintura evoca, mais intensamente do que nunca, o artista durante o ato de pintar – seu toque, sua vitalidade e estado de espírito, o drama da decisão no processo de feitura da arte. Aqui o subjetivo torna-se palpável. [...] Se há, na arte abstrata, a utilização de formas matemáticas, elas são, como as marcas materiais, elementos da mesma ordem de realidade que a própria tela visível. E se um pintor se

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arrisca a colar sobre a superfície do suporte pedaços de objetos externos – trechos de jornal ou tecido –, esses objetos não são imitados, mas transpostos materialmente para a tela, como a tinta propriamente dita.” (Schapiro, “A pintura abstrata”. Tradução: Betina Bischof, in: Mondrian – A dimensão humana da arte abstrata. São Paulo: Cosacnaify, 2001, pp. 10-11)

Desse modo, Schapiro torna a atividade artística uma produção da realidade… sob a forma de aparência. Como você pode perceber, Schapiro não concordaria com a tese defendida

por J.-J. Rousseau, conforme a qual as aparências representam um obstáculo intransponível para penetrarmos no íntimo das pessoas. Ao contrário, no entender do historiador da arte norte-americano, apenas ao lidar com as aparências poderemos transpor o isolamento de nossas paixões, sentimentos e juízos, compartilhando-os com nossos semelhantes. Vimos, todavia, que talvez Rousseau termine sua abordagem a esse problema admitindo que, já que temos de lidar com as aparências, o melhor a fazer é cuidar de torná-las melhores. Sob esse último aspecto, Rousseau e Schapiro parecem mais próximos um do outro.

Atividade em equipe e debate em sala de aula Em equipes de três ou quatro integrantes, realize pesquisa na internet ou em biblioteca, buscando artistas que podemos classificar como “abstratos”. Há inúmeros exemplos de pintores no Brasil que, embora tenham também realizado uma obra figurativa, exploraram com profundidade aspectos ligados à pintura abstrata. O caso de Alfredo Volpi (Lucca, Itália, 1896 - São Paulo, 1988) é, a propósito, de grande interesse. Volpi possui um conjunto de pinturas que o público costuma identificar como a representação de pequenas bandeiras. Ele mesmo não apreciava esta designação, pois o essencial, nesses quadros, não é a imitação das figuras, mas o fato de que a referência às formas triangulares possibilita explorar composições cromáticas especiais. Outro caso de grande interesse para um debate

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deste tipo é apresentado pela pintura de Alberto da Veiga Guignard (Nova Friburgo, 1896 - Belo Horizonte, 1962), cujas paisagens são propositadamente não realistas. Da mesma maneira, a trajetória artística de Lasar Segall (Vilnius, Lituânia, 1891 - São Paulo, 1957), Iberê Camargo (Restinga Seca, 1914 - Porto Alegre, 1994), Milton Dacosta (Nitéroi, 1915 - Rio de Janeiro, 1988) e Arcangelo Ianelli (São Paulo, 1922 - São Paulo, 2009), dentre outros, ilustram a ruptura com elementos figurativos, presentes de início em suas pinturas, em favor de poéticas influenciadas pelo construtivismo e tendências afins. • Após o levantamento de artistas abstratos (construtivistas, neoexpressionistas ou minimalistas), apresentem os resultados obtidos sob a forma de seminário em classe. Procurem mostrar reproduções das obras selecionadas, discutindo os aspectos abordados nesse módulo.

realidade e aparência

O abstracionismo na pintura moderna

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Bob Thomas/Getty Images

Gol de mão do argentino Diego Maradona contra a Inglaterra, nas quartas-de-final da Copa do Mundo de 1986

unidade 6 Interpretar as regras do jogo..........173 Mudar a “letra” para manter o “espírito” ...............177 Traduzir e interpretar ...............182 Questões de interpretação...........188

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espírito e letra

G

oste ou não de futebol, você já deve ter ouvido uma frase célebre de um ex-árbitro desse esporte, hoje comentarista de televisão: “A regra é clara...”. Não parece difícil compreender o que ele quer dizer com isso. O futebol, como todo esporte, possui um conjunto instituído de regras que normalizam a partida, regras que o árbitro deve aplicar durante o jogo. A primeira delas, a mais fundamental, é a de que o futebol é jogado com os pés. Dos onze jogadores de um time, só o goleiro pode pegar a bola com as mãos. Basta que o árbitro esteja atento para aplicar esta regra fundamental.

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“Um jogador será advertido com cartão amarelo se cometer uma das seguintes sete infrações: 1. for culpado de conduta antidesportiva; 2. desaprovar com palavras ou gestos as decisões da arbitragem; 3. infringir persistentemente as regras do jogo; 4. retardar o reinício do jogo; 5. não respeitar a distância regulamentar em um tiro de canto, tiro livre ou arremesso lateral; 6. entrar ou retornar ao campo de jogo sem a permissão do árbitro; 7. abandonar intencionalmente o campo de jogo sem a permissão do árbitro. Um substituto ou um jogador substituído será advertido com cartão amarelo se cometer uma das três infrações: 1. for culpado de conduta antidesportiva; 2. protestar com palavras ou gestos as decisões da arbitragem; 3. retardar o reinício do jogo. Um jogador, um substituto ou um jogador substituído será expulso e receberá o cartão vermelho se cometer uma das seguintes sete infrações:

espírito e letra

O futebol é regido por regras bem claras. Elas estabelecem, por exemplo, em quais situações a falta sofrida por um jogador deve ser punida com um cartão amarelo ou até com um cartão vermelho. Para que a regra seja aplicada nesses casos, não basta que o árbitro veja o ocorrido. Ele terá de interpretar a situação, determinar se o jogador que cometeu a falta teve a intenção de ser maldoso com seu adversário ou se a falta resultou de um lance natural do jogo. Além de possuir boa visão, o árbitro precisa julgar bem, a fim de tomar a boa decisão. Pensando melhor, isso vale até mesmo para um caso que envolve a regra fundamental do futebol, que estabelece que os jogadores de linha não podem usar as mãos. A regra é claríssima, mas sua aplicação nem sempre é fácil como pode parecer à primeira vista. Suponha que, no lance de um cruzamento para a área, o árbitro vê “mão na bola” por parte do zagueiro. Mas a bola tocou na mão dele sem querer ou foi ele quem quis interceptar o cruzamento, pondo a mão na bola de propósito? A interpretação do árbitro, como você já deve ter percebido, será decisiva. Se ele entender que não houve intenção do zagueiro em parar o jogo, marcará apenas a falta, e ponto final. Mas, se interpretar que o zagueiro quis pôr a mão na bola, as coisas mudam de figura. Além de marcar a falta, o árbitro punirá o zagueiro com cartão amarelo ou vermelho, por atitude antidesportiva. A Regra 12 do Manual de Regras do Futebol, elaborado pelo International Football Association Board e seguido por todas as confederações de futebol associadas à FIFA mundo afora, estabelece as condições vigentes do uso do cartão amarelo e do cartão vermelho. Vejamos o texto:

B Calkins/Shutterstock

Interpretar as regras do jogo

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Elena Schweitzer/Shutterstock

Os jogos de tabuleiro, como o gamão, damas, ludo, xadrez etc., mesmo quando mais simples, envolvem regras que organizam a competição entre os participantes.

espĂ­rito e letra

1. for culpado de jogo brusco grave; 2. for culpado de conduta violenta; 3. cuspir em um adversĂĄrio ou em qualquer outra pessoa; 4. impedir um gol ou acabar com uma oportunidade clara de gol, com uso intencional de mĂŁo na bola (isso nĂŁo vale para o goleiro dentro de sua prĂłpria ĂĄrea penal) 5. acabar ou impedir uma oportunidade clara de gol de um adversĂĄrio, que se movimenta em direção Ă meta adversĂĄria, mediante uma infração punĂ­vel com um tiro livre ou penal; 6. empregar linguagem e/ou gesticular de maneira ofensiva, grosseira ou abusiva; 7. receber uma segunda advertĂŞncia com cartĂŁo amarelo na mesma partida; Um jogador, um substituto ou um jogador substituĂ­do que for expulso e receber o cartĂŁo vermelho deverĂĄ deixar os arredores do campo de jogo e a ĂĄrea tĂŠcnica.â€?

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(“Regras de futebol 2012-2013 – Conferederação Brasileira de Futebolâ€?, publi-

cado in: <http://www.slideshare.net/afapp/livro-de-regras-futebol-2012-2013>, julho de 2012, acesso 18 de fevereiro de 2016, p. 83, pontuação adaptada aos propósitos desta diagramação)

Agora que lemos a “Regra 12â€?, voltemos Ă nossa conversa. Podemos qualificar melhor nossas primeiras consideraçþes Ă luz do texto. DizĂ­amos que, para aplicar bem uma regra, nĂŁo basta que esta seja clara, nem que o ĂĄrbitro que a aplica tenha um bom ângulo de visĂŁo; nem basta que ele seja imparcial, nem que nĂŁo se intimide com a pressĂŁo da torcida... AlĂŠm dessas condiçþes preliminares, o bom ĂĄrbitro ĂŠ aquele que interpreta bem os acontecimentos da partida com base no regulamento do jogo. Na maior parte das vezes, isso requer experiĂŞncia. O “conhecimentoâ€?, nesse caso, ĂŠ um conhecimento de experiĂŞncia. NĂŁo basta decorar as regras, nem basta que as regras sejam claras. É preciso saber interpretar os casos particulares que elas preveem, para saber como aplicĂĄ-las. Regras e capacidade de julgar Perceba que essa conclusĂŁo vale nĂŁo apenas para o futebol, mas para todas

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“A falta da faculdade de julgar é o que se chama tolice, e em relação a esse defeito, não há o que fazer. Uma cabeça obtusa ou limitada, à qual apenas falte o grau conveniente de entendimento e de conceitos que lhe são próprios, é sim capaz de ganhar com o estudo e mesmo alcançar a erudição. Mas, como há ainda, habitualmente, falha na faculdade de julgar [...], não é raro encontrar homens muito instruídos que habitualmente deixam ver, no uso de sua ciência, essa falta irreparável.” (Kant, Crítica da razão pura, B 172/173. Tradução nossa)

O que designamos acima como a experiência necessária para interpretar bem, Kant define como o bom uso da faculdade de julgar. Diante do exemplo do futebol, Kant diria que não basta ao árbitro conhecer de cor as regras do jogo; ele tem de ter juízo para saber como aplicá-las durante o jogo. Na nota acima, entretanto, Kant vai um pouco mais longe. Releia o texto. Pode-se depreender daí que há pessoas que simplesmente são incapazes de aplicar bem regras a casos, mesmo que tenham muita familiaridade com a matéria em pauta. A capacidade de servir-se bem das regras e, desse modo, evitar sua má aplicação, é considerada por Kant como “um dom da natureza”. Com isso, ele não entende que a natureza tenha reservado esse dom a poucas

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Como se aprende a aplicar regras? Desenvolvimento individual por escrito • Em um texto de aproximadamente três parágrafos a ser discutido em classe, procure refletir acerca da passagem citada de Immanuel Kant. Você concordaria com a avaliação deste autor, quando ele afirma que a capacidade de julgar, necessária para aplicar regras a casos, é uma espécie de talento natural, inexistente em algumas pessoas? Ou, ao contrário, você acredita que todos nós, sem exceção, podemos aprender a julgar bem, que é apenas uma questão de tempo e exercício? Se você defende a segunda posição, procure então responder a mais uma pergunta: como é que aprendemos isso? Certamente, não há um manual de regras que, uma vez consultado, nos ensine a como aplicar regras. Talvez possamos aprender a julgar, isto é, aprender a aplicar regras a casos. Mas o curioso é que se este aprendizado for mesmo possível, ele não residirá em decorar novas regras. Pois não bastaria decorar essas novas regras, o problema principal permaneceria intocado: como, afinal, aplicar as regras?

pessoas, mas apenas que, caso alguns de nós sejamos desprovidos dele, não haverá o que fazer. Quem não for capaz de fazer bom uso da faculdade de julgar jamais será capaz de interpretar bem a aplicação das regras aos casos. Vamos reter, do que falamos até aqui, alguns pontos: 1. Uma coisa é o enunciado da regra; outra, sua aplicação.

espírito e letra

as situações envolvendo a aplicação de um conjunto de regras. Foi o que perceberam filósofos como Immanuel Kant[+] (1724-1804). Há uma nota de rodapé na Crítica da razão pura (1787) em que Kant comenta um ponto muito semelhante ao que estamos discutindo. Nestas linhas reproduzidas a seguir, Kant não está pensando em esporte algum, ele apenas faz considerações gerais sobre o que é necessário para uma pessoa servir-se de regras. Eis o texto:

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2. Por isso, a boa aplicação de uma regra requer, em primeiro lugar, que a regra seja clara, isto é, que o texto em que ela é formulada seja compreensível. Dizer que “a regra é clara” significa dizer que a letra da regra não contém nenhuma ambiguidade, que ela está bem redigida.

3. Além disso, a boa aplicação de uma regra requer também que o árbitro ou juiz seja capaz de interpretar com bom senso os casos sobre os quais a regra se aplica. 4. Dito de outro modo, a aplicação de um conjunto de regras é uma atividade de interpretação que en-

O CASO EICHMANN: SEGUIR REGRAS SEM SABER SEU SIGNIFICADO Bettmann/Corbis/Latinstock

Hannah Arendt (1906-1975), uma das mais importantes filósofas do século XX, foi a Israel e acompanhou o julgamento de Eichmann. Ela publicou suas conclusões acerca da conduta de Eichmann em uma obra intitulada Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001).

espírito e letra

Nesta obra, H. Arendt relata sua perplexidade

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Adolf Eichmann (1906-1962) foi um cri-

com o fato de Eichmann não demonstrar sen-

minoso de guerra nazista, julgado em Israel

timentos de ódio contra o povo judeu, nem

pela sua atuação durante o período do

tampouco qualquer sentimento de culpa por

nazismo na Alemanha. Eichmann era um

ter cometido atos tão terríveis. A partir disso,

alto funcionário da SS e o principal respon-

Arendt conclui que o pior mal que pode afligir

sável pela identificação e transporte das víti-

a humanidade reside na completa recusa que

mas de extermínio racial para os campos de

um ser humano pode demonstrar em avaliar

concentração, nos quais foram assassinados

as regras que supostamente deveria cumprir.

milhões de pessoas, em sua grande maioria

Arendt conclui, portanto, que a “monstruo­

de origem judaica. Tendo fugido da Alema-

sidade” de Eichmann corresponde à sua

nha para a América do Sul após o fim da

total indiferença quanto ao teor das regras

Segunda Guerra Mundial (1945), Eichmann

e das ordens que obedecia. Como alegava

foi localizado em Buenos Aires pelo serviço

Eichmann, ele apenas as seguia; entretanto,

secreto israelense, o Mossad, e levado para

argumenta H. Arendt, por essa mesma razão

Israel em maio de 1960. Foi julgado na cidade

Eichmann terminou personificando, com seus

de Jerusalém em 1961.

atos durante a guerra e seu relato no tribu-

Durante o processo que findou condenan­

nal, o mal em sua total banalidade. Eis o que

do-o à morte, a linha de defesa de Eichmann

devemos nos perguntar: como é possível

foi declarar ao tribunal que, durante a

seguir regras e ordens sem, em momento

guerra, nada fizera senão “cumprir ordens”.

algum, questionar a natureza dessas regras e

Sua argumentação era a de que, como bom

ordens? Ao que tudo indica, Eichmann despo-

funcionário do Terceiro Reich, havia apenas

jou-se completamente da faculdade de julgar,

cumprido com esmero a tarefa que lhe fora

tornando­se, desse modo, um “funcionário

designada: a de não medir esforços para

das regras” incapaz de refletir sobre as conse-

exterminar o povo judeu.

quências de seus atos.

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volve a compreensão tanto da regra, quanto da circunstância em que ela é aplicável. 5. Mesmo se admitirmos que aplicar

regras é algo que todos nós ou quase todos nós podemos aprender, isso não muda o fato de que este aprendizado não repousa sobre regras.

Mudar a “letra” para manter o “espírito”

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sem criando um novo jogo, diferente do futebol. Entretanto, imagine: o que aconteceria se a FIFA determinasse que todos os jogadores em campo pudessem conduzir a bola com as mãos? Você concordaria em continuar chamando uma competição que seguisse esta nova regra de “futebol”? É pouco provável. Imaginar uma mudança dessas, que autorizaria todos os jogadores a empregar as mãos para pegar a bola no jogo, ajuda a esclarecer o que devemos entender pelo “espírito” de uma lei. Quando surgem regras novas no futebol, as mudanças que elas promovem têm de ser fiéis ao “espírito” desse esporte. Ao longo de sua história, o futebol mudou muito, mas a maioria das pessoas concorda que o esporte permaneceu o mesmo. Quando dizemos isso, queremos dizer que o “espírito” do jogo permanece idêntico, apesar das mudanças por que passaram suas regras. Eis o que se entende quando se fala que a letra do regulamento deve se pautar pelo espírito do jogo. A letra do regulamento, como vimos, admite muitas mudanças, mas essas mudanças não devem ferir o espírito daquilo que as regras normalizam (no caso do exemplo, o espírito do futebol).

espírito e letra

A “letra” quase sempre implica uma noção complementar, que é o “espírito”. O que essa palavra quer dizer aqui? Vamos tomar o caso das mudanças introduzidas nas regras de um jogo. Como um esporte já antigo, o futebol tem uma história. As regras do jogo foram modificando-se ao longo dos anos. Apenas a partir de 1958, por exemplo, um goleiro que se contundisse passou a poder ser substituído. Entretanto, até 1967, por exemplo, somente o goleiro podia ser substituído. Se outro jogador se machucasse, não havia o que fazer: ou ele permanecia jogando contundido ou, se a contusão fosse mais grave, saía de campo e seu time jogava com um jogador a menos. Isso só mudou em 1967, quando as equipes foram autorizadas a realizar duas substituições no andamento da partida. Outro exemplo também diz respeito ao goleiro. Antigamente, o goleiro podia receber a bola de seu companheiro e apanhá-la com as mãos. A FIFA entendeu que isso retardava muito o jogo e, a partir de 1992, o goleiro ficou proibido de pegar a bola com as mãos, se recebida dos pés de um atleta de sua equipe. Com essa novidade, o jogo tornou-se muito mais rápido. A decisão foi bem recebida pelo público, pois ela incorporava o fato de que a preparação física dos jogadores, cada vez mais intensa, já permitia um jogo bem mais veloz do que antes. Quando introduziu essas mudanças, a FIFA entendeu estar melhorando o futebol. Não passou pela cabeça de ninguém que as novas regras, embora modificassem a forma do jogo, estives-

Leitura recomendada Para a história das regras do futebol, vale a pena consultar a obra de Arnaldo Cézar Coelho, A regra é clara. São Paulo: Globo, 2002.

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Mudar as regras ou mudar o jogo?

espírito e letra

Debate em aula e elaboração individual por escrito

Atualmente, há um intenso debate sobre a utilização da tecnologia pela arbitragem do futebol. Há muitos defensores da ideia de que o juiz poderia consultar as imagens televisivas antes de decidir sobre sua interpretação de um lance duvidoso. Outra novidade, que vai na mesma direção, é a instalação de um chip eletrônico na bola, de modo a eliminar qualquer dúvida quanto à sua posição em um lance de gol. Entretanto, há quem diga que a utilização da tecnologia pelo árbitro pode ir contra o “espírito” do futebol. E quem argumenta assim defende que certa margem de erro é parte essencial do jogo, parte de sua “magia”. • Discuta em grupo se essas e outras eventuais mudanças nas regras alteram ou não a identidade do futebol, tomando o cuidado de justificar suas afirmações. Além disso, pesquise com o grupo a introdução de regras novas em outras modalidades esportivas, sempre examinando se elas porventura ferem ou não o “espírito” da competição em foco. • Após o debate e a pesquisa, que pode ser feita também fora da sala de aula, redija um pequeno texto, no qual, após uma apresentação introdutória da questão, você apresenta sua posição sobre o tema em pauta e expõe os elementos que a justificam. Tenha em mente que o mais importante, nisto tudo, é apresentar, com clareza, as razões que o conduziram a esta ou aquela tese.

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A letra e o espírito da lei Vimos que mudar as regras de um jogo significa mudar a letra de seu regulamento. Vimos também que as modificações só são introduzidas e acatadas se estiverem de acordo com o espírito do jogo. Dito de outro modo, altera-se a letra da lei, permanecendo-se fiel ao espírito daquilo que o regulamento normaliza. Até 1988, ano da promulgação da Constituição Federal hoje em vigor, relações duradouras entre um homem e uma mulher só eram consideradas como casamento quando ambos compareciam diante de um juiz de paz que celebrasse a união. Mesmo casais vivendo juntos por toda a vida, com filhos reconhecidos, se não tivessem feito um registro civil do casamento, não eram considerados pela lei como cônjuges. Por isso, quando um dos dois falecia, o outro não possuía base legal alguma para reivindicar, por exemplo, a mesma pensão assegurada aos casais reconhecidos pelo Estado. Pois bem: em 1988, os deputados constituintes decidiram que o Estado brasileiro deveria estender os direitos assegurados pelo casamento civil a todos aqueles que vivem em família, mesmo não dispondo do registro oficial do casamento. Vejamos como esta decisão está formulada na letra da lei. Siga com atenção o artigo 226 da Constituição brasileira, promulgada em 1988: “Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. § 1º O casamento é civil e gratuita a celebração. § 2º O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da lei. § 3º Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. § 4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade for-

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O que “normalização” quer dizer?

mada por qualquer dos pais e seus descendentes. § 5º Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher. § 6º O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos. § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. § 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.” (Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Extraído do site oficial

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costuma acontecer, mas, sim, um valor acerca do que deveria acontecer. Esses dois sentidos são não apenas diferentes, como também pode ocorrer de serem opostos entre si. Basta considerar que o que é “normal”, no sentido de habitual ou frequente, pode representar uma “anomalia” ou “anormalidade” do ponto de vista de nossos valores. Nos casos examinados nesta Unidade, “normalização” significa, de modo geral, o conjunto de medidas tomadas para regulamentar práticas sociais, envolvendo a observação de códigos e regulamentos instituídos com esse fim.

da Presidência da República: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/ConstituicaoCompilado. htm>, acesso em 18 de fevereiro de 2016)

Examine o texto, procurando identificar, nos parágrafos do Artigo 226 transcrito acima, o que é dito sobre a “união estável” entre duas pessoas. Se você se ateve aos três primeiros parágrafos, acertou. Dentre eles, o parágrafo 3 é de longe o mais importante para nosso debate. Pois aí são conferidos à “união estável” os mesmos direitos e obrigações de que gozam as pessoas casadas oficialmente. Ora, como vimos há pouco, as coisas não se passavam assim antes de 1988. Muitos homens e mulheres viviam em regime de união estável, constituindo, na prática, um núcleo familiar, mas tiveram de esperar pela Constituição de 1988 para serem reconhecidos pela lei como legítimos casais. Em 2002, o novo Código Civil, em conformidade com a Constituição Federal, também passou a estabelecer direitos aos casais que vivem em união estável. Hoje

espírito e letra

“Normalizar”, assim como “normalização”, remete à “norma” e à “normalidade”. Em sentido amplo, “normalização” designa um processo ao término do qual observamos que fenômenos sociais ou naturais exibem um ou mais índices de padronização. Entretanto, basta aprofundarmos um pouco a investigação acerca do conceito de “normalização” para atestarmos que ele possui sentidos diferentes, quando não irredutíveis entre si. Por vezes, “normal” é sinônimo de “regular”, “habitual”; por vezes, designa o ideal de um comportamento, exprimindo não o que

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Nosso caso é mais complicado do que isso. A própria verificação depende de uma atividade interpretativa. Para entendermos isso, basta pensar que, antes de 1988, já se podia verificar, com base em estatísticas, que muitos homens e mulheres viviam como marido e esposa, embora não fossem casados oficialmente. Embora esses casais vivessem como se fossem marido e esposa, aos olhos da lei não possuíam os direitos e deveres dos casais com registro civil. A partir de 1988, porém, a situação se altera: a união estável entre o homem e a mulher passa a ser equivalente a uma entidade familiar, com todas as consequências legais que isso traz. Ora, instituir uma relação de equivalência entre duas coisas diferentes requer interpretar que elas sejam iguais sob aspectos decisivos. Como acabamos de dizer, este é um ato diverso daquele de verificar que está chovendo lá fora. A vida dos casais em união estável passou a ser considerada como detentora, sob aspectos essenciais, das mesmas características que a dos casais com registro civil. Foi isso o que fez com que juristas e deputados elaborassem a proposta de modificação da letra da lei, estendendo os mesmos direitos e deveres do casamento

espírito e letra

Nenetus/Shutterstock

em dia, no Brasil, quem vive sob o regime de união estável possui os mesmos direitos e obrigações de quem é casado com registro civil. Aprofundemos, com base nisso, nosso debate sobre o espírito e a letra. O novo Código Civil, de 2002, foi redigido em conformidade com a nova “Lei Maior”, como é chamada a Constituição Federal, promulgada em 1988. Dito de outro modo, a letra do Código Civil foi formulada conforme os parâmetros mais amplos da Constituição. Porém, quais foram os motivos que levaram os autores da Constituição Federal de 1988 a instituir a equivalência entre o “casamento civil” e a “união estável”? A resposta é mais simples do que parece. Os deputados constituintes verificaram que muitos casais viviam de maneira estável, constituindo uma unidade familiar, mesmo sem terem formalizado essa relação perante o Estado pelo casamento civil. Mas o ponto que nos interessa aqui, a questão filosófica que está presente neste debate, é: como, afinal, transcorreu essa “verificação”? Por certo, isso não foi verificado do mesmo modo como olhar para o relógio e verificar que horas são, nem olhar para fora da janela e constatar que está chovendo.

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No Brasil, foi estabelecido que, do ponto de vista legal, a união estável equivale ao casamento: ambos implicam os mesmos direitos e deveres.

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O estatuto jurídico das relações homoafetivas

A relação entre a letra e o espírito da lei está em permanente mudança. Prova-o o fato de que, de 1988 para cá, a discussão sobre a “união estável” adquiriu novos contornos. Vamos examinar essas mudanças, recorrendo a uma questão atual que tem alimentado o debate jurídico e, com frequência, aparece no noticiário. Trata-se do que os juristas chamam as “relações homoafetivas”, isto é, as relações entre indivíduos do mesmo sexo. Com esse intuito, releia, antes de prosseguir, o parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição Brasileira, citado acima. Verifique o seguinte: a letra desse parágrafo 3 reconhece que apenas constitui uma entidade familiar que seja equivalente ao casamento a união estável entre um homem e uma mulher. Em outras palavras, a letra do artigo 226 da Constituição Brasileira não reconhece a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo. Por isso, conforme o texto constitucional, casais homossexuais que, na prática, vivem de modo estável, como ocorre com um casal heterossexual, não possuem os direitos e deveres que o artigo 226 assegura ao regime de união estável entre um homem e uma mulher. O fato de que a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo não seja reconhecida pelo artigo 226 da Constituição Federal torna este tipo de união inexistente do ponto de vista legal. Por isso, quando, por exemplo, um dos membros de uma união estável homoafetiva falece, o outro não po-

oficial à união estável entre um homem e uma mulher. Afinal, se “união estável” e “casamento civil” são equivalentes, é natural que se apliquem a ambos os mesmos direitos e atribuições.

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deria reivindicar o direito de herança assegurado aos casais heterossexuais, protegidos pela lei. Entretanto, em 2008 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que um fundo de pensões deveria incluir como seu beneficiário o parceiro de um homem falecido, com quem ele vivera em “união estável” por 15 anos. O argumento apresentado na justificativa dessa decisão inédita da justiça brasileira foi a de que a Constituição Federal institui direitos e deveres para todos os cidadãos, independentemente de raça ou sexo. Assim, argumentava-se que uma relação estável com parceiros do mesmo sexo deveria ser considerada pela lei como equivalente a uma relação estável com parceiros de sexos diferentes. Por isso, hoje em dia, aqueles que defendem que homossexuais devem ter os mesmos direitos de que gozam os casais heterossexuais brigam para modificar a letra do parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição Federal. • Forme uma dupla com um(a) colega e discuta esse assunto, pesquisando, por meio de consultas ao noticiário, o debate em torno das “relações homoafetivas”. Como trabalho fora da sala de aula, consulte a biblioteca ou a internet a fim de examinar qual o estatuto das relações homoafetivas em outros países, como a Argentina, os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo. Em seguida, formule em uma redação de aproximadamente duas páginas os resultados de sua pesquisa, levando sempre em conta a correlação aqui examinada entre letra e espírito da lei.

Essa equivalência não é o resultado de uma simples constatação, mas, sim, de uma interpretação conforme a qual as duas coisas comparadas – a “união estável” e o “casamento com registro civil”

espírito e letra

Discussão em classe e desenvolvimento individual por escrito

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– são tomadas como instituições que possuem, ambas, o mesmo espírito: o de uma entidade familiar. Texto e significado Para concluir esta aproximação ao tema de nossa Unidade, vamos considerar agora conjuntamente nossos dois exemplos, o do futebol e o da união estável. Como você já deve ter notado, a relação entre o espírito e a letra é muito dinâmica. Por exemplo: as regras do futebol foram modificando-se ao longo do tempo. A letra do regulamento foi sendo adaptada às novas circunstâncias da prática esportiva; as regras foram mudando, mas sempre procurando respeitar o espírito do jogo do futebol. Do mesmo modo, de tempos em tempos também no direito a letra é modificada em nome do espírito da lei. Vamos, então, arriscar formular uma definição do espírito, em sua oposição à letra? O espírito do futebol consiste em uma ideia do que seja a essência desse espor-

te. O espírito da lei também é uma ideia, no caso da Constituição Brasileira, a ideia de que todos dispomos de direitos e deveres iguais. Desse modo, enquanto a letra sempre se reporta a um texto, o espírito se reporta à ideia que dá sentido a esse texto. De fato, é por referência ao espírito que novas regras que normalizam o futebol ou qualquer outro esporte são introduzidas e adotadas no regulamento do jogo. “Letra” e “espírito”, pode-se concluir, são sempre relativos um ao outro. A letra pretende traduzir, em termos claros, o espírito. Por sua vez, o espírito força a letra a modificar-se, a se adaptar a novas circunstâncias. Em determinados momentos, tudo se passa como se o espírito dissesse que a letra que o traduzia até ali envelheceu, que ela precisa renovar-se, reformular-se. Talvez a razão disso seja simples: é que estamos constantemente interpretando o mundo que nos cerca, e esta interpretação é dinâmica.

espírito e letra

Traduzir e interpretar

A interpretação é uma atividade dinâmica. Vamos explorar um caso ligado a uma prática com a qual você já deve ter tido algum contato: a tradução de textos literários. Você já conhece a Ilíada, de Homero? Trata-se de um enorme poema épico, constituído por 24 cantos, que narram o último ano da guerra de dez anos entre os gregos e os troianos. Muitas dúvidas cercam a composição desta obra, que constitui um dos marcos fundadores da literatura ocidental. Por exemplo, há quem questione que um único poeta, Homero, tenha concebido todo o vasto material reunido na Ilíada, sobretudo porque, como diz a tradição, Homero declamava partes do poema, sem, todavia, ter chegado a escrevê-lo. A compilação escrita da narrativa transmitida oralmente através dos anos foi feita muito

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depois da data presumida de sua morte. Mas o que nos interessa reter da Ilíada não concerne à vida de Homero. Para nossos propósitos nesta Unidade, basta-nos o texto. Vamos nos ater a questões relacionadas com esse famoso poema, traduzido em centenas de línguas e que há muito tempo e ainda hoje suscita admiração por sua força expressiva e poética. Há muitos episódios famosos na Ilíada. Um deles, de que faremos uso logo abaixo, retrata uma cena comovente, quase no final do poema. Aquiles, o herói grego, tem um duelo mortal com Heitor, filho de Príamo, rei de Troia. Heitor é derrotado e morre. Aquiles, entretanto, não se satisfaz com ter tirado a vida do principal guerreiro de Troia. A fim de vingar Pátroclo, seu querido amigo morto por Heitor

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Tradução e interpretação Agora que você já sabe o que se passa no encontro entre Príamo e Aquiles, vamos ao texto. Mas qual texto, exatamente? Vimos que a Ilíada foi fixada em livro apenas após a morte de Homero. E isso foi feito na própria Grécia: não por acaso, a Ilíada é considerada uma obra fundamental para a difusão não apenas da poesia, como dos ideais de educação, da religião e da cultura grega de modo geral. Se, portanto, quiséssemos ir ao texto original, teríamos que saber o idioma grego. Claro que isso não é necessário: dispomos de diversas traduções da obra de Homero para o português. Não é preciso saber grego para ler a Ilíada. Façamos então a leitura de duas versões do mesmo passo do poema de Homero. É

espírito e letra

Gravura de Wogelmut & Pleydenwurff. Crônica universal

pai, que o espera, sem saber se voltará a vê-lo, em sua terra natal. Ambos se abraçam, confraternizam e, ao fim, Príamo retorna a Troia com o corpo de Heitor, para prestar-lhe as justas homenagens e realizar seu funeral.

de Hartmann Schedel. Nuremberg: Koberger, 1493, fo. 36r

na batalha, Aquiles, irado, prende o corpo de Heitor a seus cavalos e dá voltas em torno dos muros de Troia, exibindo cruelmente seu feito. A atitude de Aquiles é tanto mais terrível na medida em que, para os gregos, assim como para os troianos, não velar os mortos constituía ofensa aos deuses. Por isso, todos em Troia, a começar pelos pais de Heitor, desesperam-se diante do espetáculo cruel proporcionado por Aquiles. Aconselhado por um mensageiro dos deuses do Olimpo, que também desaprovam os excessos de Aquiles, Príamo toma uma decisão temerária. Resolve abandonar os muros de Troia e ir ao acampamento dos gregos pedir a Aquiles o resgate do corpo do filho. O que se passa, então, é surpreendente. Príamo alcança a tenda de Aquiles, que se espanta ao vê-lo diante de si, em pleno acampamento inimigo. O velho pai lança-se aos pés de Aquiles e lhe implora que aceite presentes em troca do corpo de Heitor. Aquiles escuta Príamo e também se põe a chorar, lembrando-se de seu próprio

Não apenas em textos a lendária guerra de Troia foi repetidamente interpretada na tradição do Ocidente. Nesta xilogravura alemã de 1493, vemos a cidade da Antiguidade clássica retratada com edifícios tipicamente medievais.

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um trecho pequeno, no qual ĂŠ narrada a chegada de PrĂ­amo, pai de Heitor, Ă tenda de Aquiles. SĂŁo uns poucos versos, mas, como vocĂŞ logo irĂĄ perceber, sua leitura serĂĄ suficiente para nos conduzir ao coração da questĂŁo anunciada anteriormente. QuestĂŁo que podemos formular tambĂŠm da seguinte maneira: o que exatamente se passa quando lemos a tradução de um texto que foi escrito originalmente noutra lĂ­ngua? Note que estamos Ă s voltas com o par que dĂĄ nome a esta Unidade. O texto original de Homero representa, de um lado, a letra do poema ĂŠpico intitulado IlĂ­ada; de outro, seus tradutores, que conhecem o idioma grego, buscam verter o espĂ­rito do poema em seus idiomas, ou seja, buscam traduzir o espĂ­rito homĂŠrico em outra letra – o idioma portuguĂŞs, por exemplo – que nem mesmo existia na ĂŠpoca em que a obra foi criada. Aos textos, entĂŁo! Por precaução, tenha um dicionĂĄrio a seu alcance. ApĂłs a leitura, voltaremos a nossas consideraçþes sobre o espĂ­rito e a letra. O primeiro dos textos ĂŠ extraĂ­do da tradução da IlĂ­ada por Odorico Mendes (1799-1864), intelectual e literato maranhense muito ativo na metade do sĂŠculo XIX. O primeiro verso transcrito abaixo fala da chegada de PrĂ­amo no acampamento dos inimigos gregos:

espĂ­rito e letra

“Seguiu direito; achou de Jove o aluno Dentro sentado, Ă parte os sĂłcios, menos Alcimo e Automedon, ramos de Marte, Que a mesa diligentes o serviam, Onde satisfizera a sede e a fome. NĂŁo visto passa o corajoso velho, AtĂŠ que prosternado, humilde beija A mĂŁo terrĂ­vel que imolou seus filhosâ€? (Homero, IlĂ­ada. Tradução de Odorico Mendes, publicada postumamente em 1874. Reedição com prefĂĄcio e notas de SĂĄlvio NienkĂśtter. Cotia, SP: AteliĂŞ Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2008, pp. 855-857)

Agora leia a descrição do mesmo episódio, noutra versão, contemporânea a

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nĂłs, feita pelo poeta, ensaĂ­sta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003), um dos pioneiros da poesia concretista no Brasil: “O anciĂŁo rumou direto para a morada onde Aquiles, caro a Zeus, sentava-se habitualmente. Estava ele no interno desta. Ă€ parte, os companheiros se sentavam. Dois somente, Automedonte e Alcimo, raça-de-Ares, se apressuravam junto dele: terminara, hĂĄ pouco, de comer e beber, mas a mesa seguia posta. Esquivando-se dos outros, PrĂ­amo acerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terrĂ­veis mĂŁos, mĂŁos assassinas, que lhes mataram tantos filhos.â€? (Homero, IlĂ­ada, XXIV, versos 471481. Tradução de Haroldo de Campos. SĂŁo Paulo: Arx, 2002, p. 467)

Comparemos as duas traduçþes, a fim de identificar quais diferenças existem entre elas. A versĂŁo de Odorico Mendes ĂŠ mais circunspecta e com uma sintaxe mais rebuscada que a de Haroldo de Campos. Esta Ăşltima, por sua vez, soa mais adjetivada e parece querer realçar a dramaticidade da cena. Compare, especialmente, os Ăşltimos versos, quando PrĂ­amo beija as mĂŁos de Aquiles, o assassino de seu filho Heitor. Enquanto Haroldo de Campos escreve “Esquivando-se dos outros, PrĂ­amo acerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terrĂ­veis mĂŁos, mĂŁos assassinas, que lhes mataram tantos filhosâ€? Odorico Mendes se contenta com o seguinte: “NĂŁo visto passa o corajoso velho, AtĂŠ que prosternado, humilde beija A mĂŁo terrĂ­vel que imolou seus filhosâ€? Como explicar essas diferenças, se os dois textos sĂŁo traduçþes do mesmo original? VocĂŞ dirĂĄ: mas sĂŁo traduçþes diferentes do mesmo original... SĂł que isso nĂŁo ĂŠ

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zer, então, de “ancião” ou “anciã”? A palavra não evoca a você um senhor ou senhora experientes, capazes de dar conselhos e revelar certa sabedoria? O fato de que palavras são sinônimas não quer dizer que possuem exatamente o mesmo sentido; se fosse assim, substituir um sinônimo por outro jamais modificaria em nada que fosse o sentido do enunciado. Ora, o exemplo da sinalização utilizada nos ônibus para reservar assentos a pessoas com 60 anos ou mais mostra que nem sempre um termo pode ser substituído por seu sinônimo, sem que, com isso, modifiquemos o sentido do enunciado. É o que mostra a tentativa de substituir “idosos” por “velhos”: a mensagem da placa soaria deseducada, não? Isso nos faz perceber que a tradução de um poema de uma língua para outra é um processo complexo, que envolve muito mais do que conhecer o significado das palavras no idioma de partida (no caso da Ilíada, o grego) e transpô-lo diretamente no idioma de chegada (o português). É

espírito e letra

British Museum. Foto: Hans Hillewaert. Cc-by-sa-3.0

solucionar o problema, e sim apenas explicá-lo, isto é, apresentá-lo e desenvolvê-lo em toda sua complexidade, sem, entretanto, resolvê-lo. Pois a questão é exatamente esta: como devemos compreender a diferença existente entre duas traduções de um mesmo texto, redigido noutra língua? Note que traduções não divergem entre si como soluções divergentes de um mesmo exercício de matemática, por exemplo. As resoluções de uma equação de segundo grau podem ser reconduzidas a uma só, unívoca. Boa parte das vezes, em matemática, há apenas um resultado correto; os outros, não. Pode até acontecer de nos depararmos com soluções erradas que sejam pedagogicamente interessantes. Mas, interesse à parte, permanecem soluções erradas do ponto de vista estritamente matemático. Releia, porém, as duas traduções do trecho da Ilíada, citadas acima. Ambas foram feitas por conhecedores do idioma grego da Antiguidade (a “língua de partida”, como dizem os estudiosos) e do português (“a língua de chegada”). Nenhum dos dois traduziu, por exemplo, a palavra que em grego significa “idoso” por “menino”, ou algo do gênero. Fazê-lo seria um erro. Porém, enquanto Odorico Mendes optou por traduzir a palavra grega que revela a idade avançada de Príamo por “velho”, Haroldo de Campos optou por “ancião”. São opções diferentes de tradução, ambas igualmente válidas. Como você sabe, “idoso”, “ancião” e “velho” são sinônimos. Não por acaso, em alguns dicionários, estão associados no mesmo verbete. Por outro lado, devido ao uso cotidiano da língua, a escolha por um desses termos ao invés dos outros pode fazer toda a diferença, conforme o contexto em que são usados. Por exemplo, dizer que “idosos” possuem preferência para assentos em transportes públicos, ao invés de utilizar o sinônimo “velhos”, confere um tratamento mais respeitoso a homens e mulheres com idade de 60 anos ou mais. O que di-

Por trazer o mesmo texto em hieróglifos, na escrita demótica e em grego, a Pedra de Roseta foi fundamental para a decifração das escritas egípcias.

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espírito e letra

preciso também e principalmente interpretar o sentido do poema, a fim de recriar este mesmo sentido na língua de chegada.

o autor de forma mais exata e completa, sem, para isso, forçar o leitor a abandonar o círculo de sua língua materna? A meu ver, há apenas dois caminhos. Ou o tradutor deixa tanto quanto possível em paz o escritor e leva o leitor a seu encontro; ou deixa tanto quanto possível em paz o leitor, e leva o escritor até ele. Os dois caminhos são tão diversos que se deve seguir apenas um deles com o máximo rigor. Pois da mistura entre eles resultará algo insatisfatório, pondo em risco o encontro entre o escritor e o leitor.” (Friedrich Schleier-

O significado filosófico da tradução Uma das contribuições mais decisivas para a reflexão sobre a atividade da tradução foi dada por Friedrich Schleiermacher (1768-1834; pronúncia aproximada: “chláiermaher”, com “h” aspirado). Schleiermacher não apenas traduziu as obras de Platão[+] para o alemão, como também ampliou o campo da hermenêutica, que até então designava a teoria e a prática da interpretação dos textos bíblicos, conferindo-lhe o significado de uma macher, “Dos diferentes metodos de arte geral da interpretação. traduzir”. Tradução nossa. Edição de A atividade de interpretar tornou-se um referência: Friedrich Schleiermachers ramo da filosofia hoje muito amplo, que sämmtliche Werke, III. Berlim: Reimer, teve seu ponto de partida moderno nas con1838, pp. 207-245, p. 218) tribuições de SchleiermaO que reter desse texcher. Ora, como vimos, to? Primeiro, perceba traduzir consiste numa que Schleiermacher conatividade de interpretaO tradutor lança uma cebe a tarefa do tradutor ção do texto original e, a ponte entre o escritor como sendo equivalente partir daí, numa atividaque será traduzido a de alguém que aproxide de relacionar culturas ma pessoas. O tradutor diferentes entre si, a da e o leitor dessa lança uma ponte entre o “língua de partida” e a da tradução. Assim, a escritor que será traduzi“língua de chegada”. atividade de traduzir do e o leitor dessa traduAs linhas que examiaproxima universos ção. Dito de outra forma, naremos abaixo pertena atividade de traduzir cem a um texto que Schdistintos. aproxima universos disleiermacher redigiu para tintos. Considere o que sua conferência na Acajá vimos: as traduções da demia Real de Ciências de Ilíada por Odorico MenBerlim, proferida em 24 des e, tempos depois, por Haroldo de Camde junho de 1813. Na passagem em quespos proporcionaram e ainda proporcionam tão, o autor aponta dois meios ao alcance de ao universo de leitores da língua portuguetodo tradutor ao exercer seu ofício: sa a oportunidade de travar contato com a cultura da Grécia antiga. “Que caminho pode tomar o verA representação que nós, leitores, fordadeiro tradutor que deseje aproximamos dessa cultura, especialmente da mar esses dois homens tão distantes poesia homérica, irá variar de acordo com um do outro, o escritor que irá traduas traduções disponíveis da Ilíada. Daí zir e o leitor que irá ler sua tradução? a importância de boas traduções para a Como pode fazê-lo, a fim de proporformação da cultura nacional: somente cionar a compreensão e o prazer com

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Schleiermacher Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher nasceu em Breslau, em 21 de novembro de 1768. Seu pai era um capelão protestante, o que teve grande influência sobre seu destino. Após iniciar seus estudos em uma instituição de orientação pietista, Schleimacher,

descon-

tente, ingressou na Uni-

Anônimo. Coleção particular

versidade de Halle, na qual se aprofunda em teologia. Após terminar seus estudos, torna-se capelão em Berlim, em 1796. Nesse período, aproxima­se do círculo dos filósofos românticos alemães, em especial de Friedrich Schlegel (1772-1829). Em 1807, assume um posto na Universidade de Halle e, em 1809, torna-se pastor de uma igreja em Berlim. De 1810 ate sua morte, em 12 de fevereiro de 1834, Schleiermacher exercerá atividades como pastor e também como professor da Universidade de Berlim, fundada por Wilhelm von Humboldt (1767-1835). Em português, há uma obra que reúne três contribuições importantes de Schleiermacher sobre o assunto tratado aqui: F. Schleiermacher, Hermenêutica: arte e técnica da interpretação. Tradução: Celso R. Braida. Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

homérico, em detrimento de outros; Haroldo de Campos, de seu lado, fez a mesma coisa, seguindo sua interpretação pessoal, e igualmente legítima, da Ilíada. É por conta disso que podemos dispor de duas traduções do mesmo texto que, embora sendo divergentes, são igualmente válidas. Isso porque cada uma delas interpretou o sentido do texto original de um modo e recriou esse sentido na língua de chegada. Eis o que liga aspectos relacionados à tradução de textos com o assunto

espírito e letra

por meio delas poderemos situar nossa literatura em relação a tradições literárias diversas, buscando estabelecer, assim, influências, continuidades e rupturas. O tradutor, enfim, é um elemento essencial para o sistema cultural em seu conjunto. Eis o primeiro ponto que se pode depreender do trecho citado acima. O segundo ponto diz respeito ao método utilizado no traduzir. Conforme Schleiermacher, há duas maneiras mediante as quais o tradutor pode promover o contato entre o escritor e o leitor. Ele pode verter o texto de partida para sua língua mantendo-se próximo da estrutura sintática e semântica do original. Uma vez que a escrita se altera conforme o tempo e o lugar, muitas vezes existe uma verdadeira distância entre nós, leitores de hoje, e a forma de que se serviu em sua época o escritor para escrever aquilo que escreveu. Por isso, quando o tradutor de um texto da Antiguidade seguir muito de perto a forma sintática utilizada pelo escritor, essa opção muito provavelmente irá produzir sobre o leitor da tradução algum estranhamento, como se o texto estivesse escrito em outro português, diferente daquele com que estamos habituados. Essa é a razão pela qual Schleiermacher diz que, nesse caso, é o leitor quem tem de esforçar-se para ser conduzido até o escritor. Na segunda opção, ao contrário, o tradutor adapta o discurso original ao uso contemporâneo de sua língua. É o escritor, portanto, quem é conduzido até o leitor, que permanece em um universo que lhe é familiar, o uso habitual de sua língua. Isso quer dizer também que a tradução não é uma atividade mecânica, pois envolve reflexão, interpretação, escolhas. As diferenças existentes entre duas traduções do mesmo trecho da Ilíada citadas acima explicam-se por esta razão. Elas exprimem as escolhas feitas por cada um dos dois tradutores, conforme o modo como cada um deles leu o original. Odorico Mendes optou por ressaltar determinados aspectos do texto

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desta Unidade: o sentido do original não é outra coisa senão o seu espírito, que as traduções buscam verter para a língua de chegada. Toda atividade de tradução consiste em recriar o espírito do texto original noutra letra, representada pela língua para a qual é feita a tradução.

Podemos concluir disso que traduzir é criar novamente, recriar algo já constituído, com base na letra que nos precede e nas escolhas que realizamos diante dela. Toda vez que algo do passado tem seu espírito reinterpretado, torna-se, com isso, atual e presente.

espírito e letra

Questões de interpretação

O espírito e a letra de um discurso se ticamente a mesma. Mas o sentido do céu, encontram em uma relação dinâmica. É isto é, o modo como ele é compreendido e comum acontecer de alterarmos a letra experimentado – seu “espírito” – alteroude um texto, enunciado ou proposição -se substancialmente. sob o pretexto de que essas mudanças O segundo exemplo, vamos tomá-lo são importantes para permanecermos da própria disciplina da filosofia. Platão[+] fiéis a seu espírito. É o que ocorre nas e Aristóteles[+], estudados em outras Unidades deste livro, são pensadores cujas alterações das regras do futebol pela obras têm sido lidas e interpretadas há FIFA, assim como nas leis introduzidas mais de dois milênios, na Constituição Federal sob perspectivas (filosósobre união estável. No fica, religiosa, científica caso das traduções, poetc.), épocas (antiga, dem existir diferentes A interpretação medieval, moderna) e versões (ou seja, letras) da tradição culturas (grega, romaigualmente válidas de está sempre na, cristã, árabe etc.) um certo texto para o muito diferentes. Suas português. ligada ao obras suscitaram as O que, entretanto, contexto mais variadas interpremotiva essas variações? histórico de Noutras palavras, o que tações, que por vezes é que cria todo esse dinachegam a ser conflitanuma dada época. mismo nas relações entes e irredutíveis umas tre o espírito e a letra? às outras. Não há conA fim de começarmos a senso sobre o significaresponder a essas quesdo principal das obras tões, examinemos dois novos exemplos. de Platão e Aristóteles, e nada garante O primeiro deles é tirado dos céus. O que haverá consenso algum dia. que os astrônomos de hoje interpretam, Você poderia pensar que toda a contropor meio de teorias e instrumentos de vérsia em torno das obras desses filósofos observação, como sendo corpos físicos sinada mais faz do que provar que, até hoje, tuados no espaço sideral, certos povos da Platão e Aristóteles não encontraram um Antiguidade liam no próprio céu como intérprete à sua altura, que fosse capaz de sendo formas sobrenaturais divinas. Na dar a interpretação definitiva de suas filopassagem entre essas épocas da cultura sofias. Mas a questão é outra: será que poocidental, a configuração dos astros celesderá haver algum dia uma tal interpretação tes, a maneira como eles aparecem a nós, definitiva? Pode bem ser que, ao contrário, sua letra, digamos assim, permaneceu praseja natural esperar que, de época para épo-

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SSPL/Getty Images

Muito antes da invenção e difusão do papel (no Ocidente, por volta do séc. VIII), os egípcios usavam as fibras entrelaçadas da haste de uma planta aquática (Cyperus papyrus) para escrever e desenhar.

tradução e das questões de interpretação que essa prática revela, nossa relação com a tradição e a história ganha destaque e ocupa o primeiro plano da reflexão filosófica. Não por acaso, a partir da segunda metade do século XIX e especialmente no curso do século XX, autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1889-1976) e Hans-Georg Gadamer (19002002) enfatizaram a articulação existente entre interpretação e consciência histórica. Examinaremos agora três momentos desse tipo de reflexão, cada um deles correspondendo aos autores mencionados. Apropriar-se da tradição: Nietzsche Iniciaremos com um trecho de A gaia ciência, obra que Nietzsche publicou em 1882, em uma fase muito produtiva de sua trajetória filosófica. O livro é todo ele

espírito e letra

ca, de cultura para cultura e mesmo de indivíduo para indivíduo, o espírito das obras desses filósofos se modifique. Pode bem acontecer, enfim, que o sentido das obras de Platão e Aristóteles dependa sobretudo do ponto de vista adotado pelo leitor que trava contato com elas. Como este leitor varia, assim também varia o sentido do texto em questão. De certo modo, o mesmo vale para o céu, no qual a ciência moderna já não reconhece aquelas divindades que certas culturas antigas enxergavam nele. Isso nos ensina duas coisas importantes sobre o nosso tema. Primeiro, que o espírito de um “texto” (seja uma obra filosófica, seja o mapa celeste) jamais se encontra dissociado de uma interpretação determinada. Segundo, que a diferença entre essas interpretações aparentemente se explica pela relação que cada cultura e cada época instituem com a tradição a que pertencem tais textos. Deixando agora o céu de lado e considerando apenas o caso das obras de Platão e Aristóteles, podemos afirmar que são “clássicos” da filosofia, na medida em que permanecem sempre atuais – bastando, para isso, que sejam lidos por nós. Já sabemos no que reside essa atualidade: no fato de que continuam possibilitando leituras as mais diversas, conforme a situação histórica e cultural de seus intérpretes. A essa altura, você já deve ter se dado conta do fato de que os problemas levantados pela tradução e interpretação de textos – e ligados, portanto, àquilo que se convencionou designar a partir de Schleiermacher [+] (1718-1834) por hermenêutica – conduzem a um tema filosófico de primeira grandeza: a questão da temporalidade. Se traduzir é relacionar pessoas de épocas diferentes, depreende-se daí que toda atividade de tradução envolve aspectos históricos. Toda tradução realiza escolhas diante do texto a ser traduzido e, com base nelas, reanima e atualiza o espírito do que pertence ao passado. Através da atividade de

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espírito e letra

escrito em aforismos e, cinco anos após sua aparição, Nietzsche acrescentou um novo capítulo. Leia o trecho:

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“Traduções – O grau do senso histórico de uma época pode ser avaliado pela maneira como ela faz traduções e procura absorver épocas e livros do passado. No tempo de Corneille, e ainda no da Revolução, os franceses se apropriaram da Antiguidade romana de uma forma de que já não teríamos coragem – graças ao nosso elevado senso histórico. E a própria Antiguidade romana: de que modo simultaneamente impetuoso e ingênuo ela pôs a mão em tudo o que era bom e elevado da anterior Antiguidade grega! Como traduziram as coisas para a atualidade romana! De que modo intencional e desenvolto tiraram o pó das asas da borboleta que é o instante! Assim Horácio traduziu, de vez em quando, Alceu e Arquíloco, assim fez Propércio com Calímaco e Filetas [...]: que lhes importava se o verdadeiro criador experimentara isso e aquilo e inscrevera no poema os sinais do que vivera! – como poetas eram avessos ao espírito antiquário inquisidor, que precede o senso histórico; como poetas não admitiam todas essas coisas e nomes pessoais, tudo o que era próprio de uma cidade, uma costa, um século, como sua roupagem e marca, e rapidamente punham no seu lugar o que era romano e atual. Eles parecem nos perguntar: ‘Não devemos tornar o antigo novo para nós e nos arrumarmos e imaginarmos nele? Não devemos poder insuflar nossa alma nesse corpo sem vida? Pois ele está morto, afinal; e como é feio tudo o que está morto!’. – Eles não conheciam o prazer do senso histórico; o que era passado e alheio os incomodava e, sendo romanos, estimulava a conquista romana. De fato, traduzir era conquistar – não apenas

ao se omitir o dado histórico: mais do que isso, acrescentavam alusões à atualidade, apagavam o nome do poeta e punham o próprio nome no lugar – não com o sentimento de um roubo, mas com a perfeita e boa consciência do Imperium Romanum.” (Friedrich Nietzsche, A gaia ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 103-104)

Observe como nessa passagem Nietzsche faz elogios ao modo como os franceses dos séculos XVII e XVIII (de Pierre Corneille até a Revolução de 1789) se apropriaram da cultura romana, de seu imaginário. De fato, tanto nas tragédias de Corneille (1606-1684), quanto nas telas de Jacques-Louis David (1748-1825), contemporâneo da Revolução Francesa, encontramos personagens da época moderna descritos ou pintados como romanos da antiguidade. Outro exemplo desta atitude é uma célebre estátua de Voltaire[+], no Museu do Louvre, em Paris, que nos apresenta o filósofo francês do século XVIII com vestes e atitude típicas de um senhor romano. Como revela o passo analisado, Nietzsche entende que esse processo de livre apropriação do passado é positivo. A apropriação de uma cultura por outra restitui-lhe vida e atualidade. É essa atitude de apropriação intensa do passado o que, conforme Nietzsche, termina sendo inibida pelo excesso de “senso histórico”. Os romanos, por exemplo, se apropriaram da cultura e da poesia gregas a partir de seus próprios interesses. Atualizaram o antigo com o propósito de servirem-se dele, para se arrumarem e se imaginarem nele. Já o “senso histórico” mencionado por Nietzsche é cheio de cautela e hesita em renovar o antigo. Ao invés disso, insiste em preservá-lo intacto, como algo “morto”. Com isso, o “senso histórico” criticado por Nietzsche perde de vista que o passado

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Friedrich Nietzsche nasceu em Röcken, Ale-

intelectuais ligados ao

manha, em 15 de outubro de 1844. Sob influên-

cristianismo. Nietzsche

cia da família luterana, Nietzsche inicialmente

propôs uma interpreta-

cogitou ser pastor. Seu contato com a filosofia,

ção muito original dos

entretanto, o afastou da teologia. Fez estudos

filósofos pré­socráticos

de filologia clássica na Universidade de Bonn e,

e de Sócrates e Platão,

em seguida, na Universidade de Leipzig. Nesse

na qual as investigaçòes

período, toma contato com a obra de Arthur

morais são articuladas

Schopenhauer (1788-1860), que o impressiona e

com a atenção de um

o influencia muito.

filólogo. No século XX, sua

obra

influenciou

fessor na Universidade da Basileia (Suíça), onde

diversos autores, em

leciona até 1879, quando problemas de saúde o

especial Michel Foucault

obrigam a renunciar à carreira acadêmica. Esses

(1926-1884).

problemas marcarão, daí em diante, a vida de

Há inúmeras obras de Nietzsche traduzidas

Nietzsche, a ponto de que, a partir 1889 até sua

para o português. Duas traduções são especial-

morte, ter de ficar aos cuidados de sua mãe e sua

mente recomendadas:

irmã, em um estado de grande desequilíbrio psí-

F. Nietzsche, Obras incompletas – Coleção Os

quico. Nietzsche falece em Weimar, Alemanha,

Pensadores. Tradução: Rubens R. Torres Filho.

em 25 de agosto de 1900.

São Paulo: Abril Cultural, 1978.

A obra de Nietzsche, pouco reconhecida du-

Mais recentemente, a editora Companhia das

rante sua vida, obteve enorme prestígio após sua

Letras publicou uma série de obras de Nietzsche

morte. Suas posições sempre polêmicas produzi-

traduzidas por Paulo César L. de Souza. O con-

ram reações violentas, em especial por parte de

junto também está disponível em livros de bolso.

se torna atual a cada vez que nos apropriamos dele com base em nossos interesses teóricos, práticos e morais. Modos de vivência: Heidegger A fim de aprofundarmos nosso assunto, vejamos agora uma ideia apresentada por Martin Heidegger em uma conferência intitulada “A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo”, que ele ministrou na Universidade de Friburgo em 1919. A certa altura, ele compara duas perspectivas – ou, como ele diz: duas “vivências” – bastante diversas sobre uma mesma coisa, uma científica e outra, digamos, pré-científica, “apenas” interpretativa. A primeira dessas vivências corresponde àquela dos cientistas da atualidade. Pense em um astrônomo, por exemplo, que analisa o nascer do sol como sendo um processo

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de ordem simplesmente natural. Para fazê-lo, ele tem de se tornar indiferente ao que percebe com seus sentidos, ao que enxerga com seus olhos, para ater-se a uma descrição abstrata do fenômeno observado. Ora, essa vivência nada tem que ver com aquela experimentada por indivíduos que endeusam o astro solar. Heidegger dá como exemplo dessa segunda vivência o que experimentam os anciãos de Tebas que representam o coro na tragédia Antígona, de Sófocles (496-406 a.C.). Observando o céu logo no início da manhã, os anciãos, comemorando o êxito dos tebanos em defender sua cidade do ataque do exército de Argos, exprimem-se assim: “Ó raio de sol, que para Tebas das sete portas luziu/ enfim o mais belo esplendor”

espírito e letra

Com apenas 24 anos, Nietzsche torna-se pro-

Friedrich Nietzsche, 1882. Gustav Schultze. Coleção particular

Nietzsche

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(Sófocles. Antígona, versos 100-101. Tradução nossa; edição de referência: The Antigone of Sophocles. Richard Jebb [ed.]. Cambridge: Cambridge University Press, 1900)

Para Heidegger, a comparação entre o conhecimento astronômico e a experiência religiosa introduz a questão sobre a diversidade entre os “modos de vivência”. Pois onde o sol é mais sol: no estudo objetivo do astrônomo ou na saudação solene dos tebanos?

Vimos que toda letra envolve interpretações, e que estas podem variar entre si. Temos agora, no caso apontado por Heidegger, um exemplo de conflito entre interpretações. Poderíamos ser tentados a supor que a primeira, em que o sol é considerado independentemente da relação afetiva do observador com ele, é objetiva, e a segunda, em que o sol é experimentado do ponto de vista do que sente o observador, é meramente subjetiva. Mas essa saída se expõe a críticas importantes. Pois, quando su-

Heidegger

Bettmann/Latinstock

Martin

Heidegger

até 1951, quando retoma suas atividades até

(pronuncia­se com “h”

aposentar-se, em 1958. Falece em 23 de maio

aspirado:

de 1976, em sua cidade natal, Messkirch.

“háideguer”)

nasceu em Messkirch,

A obra de Heidegger é considerada uma

na Alemanha, em 26 de

das mais importantes do século XX. Ela in-

setembro de 1889. De

fluenciou inúmeros pensadores, de con-

início, Heidegger cogitou

cepções muito diversas, tais como Herbert

ser pastor, tendo estu-

Marcuse (1898-1979), Hannah Arendt (1906-

dado teologia na Univer-

1975), Jean-Paul Sartre (1905-1980), pai do

sidade de Friburgo. Sob

existencialismo; e Jacques Lacan (1901-

influência da fenome-

1981), que renovou a psicanálise na França.

nologia de Edmund Hus-

As investigações de Heidegger concernem à

serl (1859-1938), porém,

metafísica, à linguagem, à poesia e às ciên-

decidiu-se por trocar os

cias. Seus estudiosos costumam classificar

estudos teológicos pela filosofia. Logo tornou­

seus escritos em dois períodos, o primeiro

-se assistente de Husserl em Friburgo, suceden-

em torno de Ser e tempo, o segundo, como

do-o como professor em 1929. Nessa altura,

tendo início após 1933.

Heidegger já se tornara conhecido com a publi-

espírito e letra

cação de sua principal obra, Ser e tempo (1927).

Você encontra em português a tradução de várias obras de Heidegger. Eis a principal:

Em 1933 dá-se o acontecimento que tor-

M. Heidegger, Ser e tempo. Tradução Fausto

naria sua trajetória muita polêmica: Heideg-

Castilho. Campinas: Editora da Unicamp/

ger filia­se ao partido nazista, que então

Vozes, 2012.

chegara ao poder. Torna-se reitor da Uni-

Se quiser aprofundar seus conhecimentos

versidade de Friburgo por pouco mais de

sobre Heidegger, você pode consultar duas

um ano, em meio às turbulências politicas

obras de introdução:

provocadas pelo intensificação do nazismo

Benedito Nunes, Heidegger & Ser e Tempo.

na Alemanha. Com o fim da segunda Guer-

(Coleção Passo-a-Passo). Rio de Janeiro: Zahar

ra mundial (1945), Heidegger é impedido de

Editores, 2002.

ensinar na universidade pelos ocupantes das

Zelyko Loparic, Heidegger (Coleção Passo-

forças aliadas na Alemanha. A proibição dura

-a-Passo). Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004.

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pomos que a interpretação científica é objetiva, baseamo-nos no critério científico de rigor e exatidão, isto é, estritamente no interesse da ciência. Mas a ciência, como vimos, é apenas uma espécie de vivência ao lado de outras possíveis. Da mesma forma, também seria parcial assumir como verdadeiro um ponto de vista religioso e, a partir daí, acusar a ciência astrofísica de cometer blasfêmias, por manter-se alheia e indiferente à “divindade” solar. Mas, então, será inevitável o conflito entre essas formas de vivenciar a presença do sol? De certo modo, essas

vivências são mesmo inconciliáveis. Assumir previamente o sol como um deus que é preciso louvar significa, sim, estar impedido de conhecê-lo com exatidão. Afinal, como se poderia medir um deus? Por sua vez, interpretar o sol como corpo situado no sistema gravitacional do espaço físico significa pôr em suspenso, ao menos enquanto o consideramos assim, toda possível relação (religiosa, estética e mesmo cotidiana) que possamos manter com ele, como se pudéssemos fingir não ver nem sentir (nem, muito menos, admirar e louvar) a luz do sol enquanto distinguimos em

Em um grupo de dois ou três colegas de sala, escolham algumas canções do repertório popular, brasileiro ou internacional, que sejam regravações de canções anteriormente lançadas. Há inúmeras canções que foram regravadas por artistas diferentes. Cada regravação envolve, de hábito, uma nova interpretação da canção original. • Uma vez que o grupo tenha definido uma ou mais canções para a pesquisa, cada membro da equipe deve pesquisar, em casa ou na escola, uma versão da canção (ou das canções) escolhida(s). Utilizando-se de recursos informáticos, reúna-se novamente em classe e compare, com os colegas da equipe, as diferentes versões. • Procurem então, em grupo, identificar com suas palavras o que é característico de

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cada versão, de modo a formular um pequeno texto descrevendo as “vivências” originadas pela mesma letra, pela sua melodia ou pelo arranjo. Há inúmeros exemplos de canções que se tornaram objeto de reinterpretação, como boa parte do repertório da banda inglesa The Beatles (só para falar em artistas brasileiros: Rita Lee lançou um CD cujas músicas são todas reinterpretações de canções dos Beatles, intitulado Bossa ’n’ Beatles, de 2002. Vale lembrar também a conhecida reinterpretação de “Help”, de John Lennon e Paul McCartney, por Caetano Veloso, no álbum Jóia, de 1975).

Frank Sinatra (1915-1998) , cantor americano, apelidado “a Voz”, reinterpretou canções de Tom Jobim.

espírito e letra

Atividade em equipe e desenvolvimento por escrito

Bettmann/Latinstock

Novas versões para velhas canções

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Gadamer Hans-Georg Gadamer AFP

nasceu em 11 de fevereiro de 1900, em Marburgo, na Alemanha. Seu pai era professor catedrĂĄtico de quĂ­mica. Estudou filosofia, filologia clĂĄssica, histĂłria da arte, literatura e teologia nas universidades de Breslau, Munique, Friburgo e Marburgo, onde foi aluno de M. Heidegger, cujo pensamento se tornou uma influĂŞncia decisiva para ele. Em 1933, tornou-se professor de estĂŠtica e de ĂŠtica na Universidade de Marburgo. Depois, ensinou em vĂĄrias universidades na Alemanha, tendo sido reitor da Universidade de Leipzig logo apĂłs o fim da Segunda Guerra Mundial. Faleceu em 13 de março de 2002. Sua obra mais importante ĂŠ Verdade e mĂŠtodo – Traços fundamentais de uma hermenĂŞutica filosĂłfica (1960), na qual se vĂŞ a dĂ­vida de Gadamer com as ideias de Heidegger. Dispomos da obra em portugĂŞs: H.-G. Gadamer, Verdade e mĂŠtodo – Traços fundamentais de uma hermenĂŞutica filosĂłfica. Tradução: FlĂĄvio P. Meurer. PetrĂłpo-

espĂ­rito e letra

lis: Vozes: 1998.

pensamento, abstratamente, as suas propriedades fĂ­sicas. A atitude cientĂ­fica requer do investigador que ele procure se isentar de toda relação pessoal com o que investiga (o que, evidentemente, nĂŁo significa que ele nĂŁo possa afirmar que “ameâ€? o que faz). Todavia, nĂŁo ĂŠ necessĂĄrio avaliar esse conflito de maneira apenas negativa, como se tivĂŠssemos que escolher uma

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vivĂŞncia em detrimento da outra. Isso seria o mesmo que declarar impossĂ­veis a coexistĂŞncia entre culturas distintas e atĂŠ mesmo as tensĂľes internas a uma mesma ĂŠpoca ou cultura. Seria o mesmo que ignorar que o sentido de alguma coisa ou o espĂ­rito de um discurso podem variar – enquanto a sua imagem ou a sua letra permanecem as mesmas – conforme as diferentes ĂŠpocas e culturas, bem como entre sociedades e indivĂ­duos dentro de uma mesma ĂŠpoca ou cultura. A distância do passado: Gadamer Examinaremos agora a posição de Hans-Georg Gadamer, que, apropriando-se das reflexĂľes de Schleiermacher e de Heidegger, sistematizou e aprofundou o campo filosĂłfico da hermenĂŞutica. Seu livro mais conhecido, Verdade e mĂŠtodo, publicado em 1960 na Alemanha, ĂŠ uma obra de grande importância para os estudos hermenĂŞuticos. Gadamer alinha-se a teses que jĂĄ examinamos anteriormente, como, por exemplo, a ideia de que a interpretação do passado sempre finca raĂ­zes no presente. O “historicismoâ€?, contra o qual jĂĄ se levantara Nietzsche, serĂĄ criticado por Gadamer exatamente porque os “historicistasâ€? creem que a distância temporal que nos separa do passado deve ser suprimida, como se ela pudesse desaparecer. Mas, dirĂĄ Gadamer, nĂŁo podemos suprimir o tempo que nos separa do passado; nem, tampouco, deverĂ­amos nos esforçar por fazĂŞ-lo, uma vez que sĂł hĂĄ sentido no passado a partir das leituras que o presente efetua sobre ele. Nesse aspecto, Gadamer se aproxima bastante da posição defendida por Nietzsche, discutida acima. Com efeito, as objeçþes que Nietzsche levantara Ă â€œconsciĂŞncia histĂłricaâ€? reaparecem em Verdade e mĂŠtodo. Gadamer dirige uma crĂ­tica a quem pretende ser neutro diante do passado e da tradição. Pois essa suposta “neutralidadeâ€?

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a um ponto fixo determinado, jamais atinge uma forma definitiva. E isso, simplesmente pela razão de que recriamos o passado, toda vez que nos debruçamos sobre ele. Eis o que significa dizer, como faz Gadamer em Verdade e método, que a “distância do tempo... se movimenta e se expande sem cessar”. O passado vai se alterando, conforme se altera o presente. Eis algo que se pode constatar olhando para si mesmo. Nossa trajetória pessoal não é avaliada por nós de modos distintos, a depender do momento em que nos encontramos? Isso, que já vale para o indivíduo, é tanto mais válido quando o assunto é o conjunto de relações existentes entre culturas e épocas diferentes. Também no interior de nossa cultura há maneiras diversas de interpretar os fenômenos. Pense, por exemplo, no enfoque oferecido a nós pelas ciências. Dificilmente você dirá que, por exemplo, a matemática e a história se orientam segundo a mesma compreensão dos fenômenos que abordam. A matemática, assim como outras ciências não por acaso denominadas ciências exatas, busca uma exatidão e objetividade que seria vão esperar das investigações históricas. Mas isso não significa que a história seja menos rigorosa do que a matemática. Há uma diferença entre elas, já que a ideia de rigor das ciências exatas não se aplica às assim chamadas ciências humanas. Como observou Heidegger, a matemática não é mais rigorosa do que a história, e sim apenas mais estreita do que ela. E note que a matemática é “mais estreita” não por ser deficiente, mas porque para encontrar acesso aos seus objetos precisa deixar fora de jogo “o ponto de vista do observador”, sob o qual as coisas podem mudar de sentido e fazer história.

espírito e letra

conduz a um resultado inesperado e contrário: ela ignora que qualquer apropriação do passado é sempre marcada pela perspectiva atual do historiador. Embora possua motivos que Gadamer reconhece serem bem intencionados, a tentativa de neutralidade por parte do historicismo termina por conduzir a uma ideia equivocada sobre nossa relação com a tradição. Por que o historicismo é tão difundido e arraigado? Por exprimir uma ideia muito familiar. Conforme essa ideia, apenas o distanciamento aberto pela passagem de tempo confere isenção a nossos juízos. E uma coisa é verdade: apenas o tempo, reconhece Gadamer, pode nos fazer abandonar certos preconceitos, que distorcem as avaliações que efetuamos acerca de tudo o que é recente ou atual. Gadamer fornece como exemplo disso nossa avaliação da arte moderna e contemporânea. Você sabia, por exemplo, que os pintores impressionistas e, depois deles, os pintores do cubismo, que hoje em dia são muito reconhecidos e cujas telas passaram a valer uma fortuna, foram mal compreendidos e mesmo desprezados em sua época? Gadamer é ciente disso, e reconhece que os preconceitos da moda, por exemplo, muitas vezes comprometem a formação de um juízo adequado sobre o objeto em questão. Por isso também Gadamer compreende (embora critique) a atitude “historicista”, conforme a qual apenas a distância confere objetividade a nossos juízos. Ocorre que o sentido verdadeiro de um texto ou obra de arte, diz Gadamer, jamais se esgota, sendo, antes, um processo infinito. Com isso, Gadamer se contrapõe à tendência do “historicismo”. Seu argumento é o de que nossa relação com a tradição, com o passado, jamais chega

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Museu do Prado, Madri

Diego Velázquez (1599-1660), As Meninas (óleo sb/ tela, 1656)

unidade 7

eu e o outro

O enigma do Eu e do Outro .......... 197 O “Eu penso”: Descartes ................

204

O Eu com o Outro ....................

207

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento .....

212

A defesa da tolerância ................

218

eu e o outro

N

ão há palavra que mais utilizemos na vida do que o pronome “eu”. Eu quero, eu posso, eu faço. Na palavrinha “eu” parece caber um mundo inteiro: um mundo de sentimentos, pensamentos, desejos, lembranças, sonhos, vivências que cada um experimenta em si mesmo e que expressa ou não para os outros. Esse mundo interior do Eu parece imenso e mesmo infinito: cada um de nós pode imaginar realidades incríveis em sua mente.

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© Muratov Vitold [CC BY 3.0]

O “eu” é como um mundo interior, ao qual cada um tem acesso exclusivo. Caso eu assim decida, ninguém mais além de mim poderá saber o que penso ou sinto de verdade – pelo menos até inventarem uma máquina de ler pensamentos. Mas o “eu” também representa um limite desse mundo interior, como se fosse a fronteira de um país. Ele só é interior e meu, porque me refiro a mim mesmo como “eu”. Quer dizer, só posso dizer “meu sentimento”, “meu sonho”, porque sei diferenciar o mundo interno do mundo externo, o mundo das coisas que vemos e tocamos, assim como sei diferenciar o meu mundo interno dos mundos internos dos outros. O “eu” é o que marca essa diferença. Mas como eu aprendo a fazer isso? Eu sempre tive esse “eu”, com o qual eu distingo um mundo interno da realidade exterior? E se eu não soubesse dizer “eu”? Quer dizer, se eu não soubesse o que significa “eu”? Você pode se perguntar: “Como é que

Uma cidade da região alemã em que Kaspar Hauser foi encontrado, há dois séculos, decidiu criar um monumento ao ar livre em sua homenagem

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alguém não vai saber o que significa ‘eu’?”. Mas, reflita: os bebês não nascem dizendo “eu”. Normalmente eles falam “mamãe” e “papai”, e isso depois de algum tempo. Só mais tarde aprendem a dizer “eu”, e daí para frente não param mais. Isso é só porque eles são bebês, porque eles ainda não se desenvolveram? Vamos supor que alguém tenha crescido desde criancinha sem nenhum contato com outras pessoas. Esse indivíduo não viu ninguém por muito, muito tempo. Há casos assim na história da Humanidade. Você provavelmente já ouviu fábulas ou contos que também retratam essa situação – a de uma criança abandonada e que cresce em completo isolamento. Um dos casos mais famosos é narrado em um filme de Werner Herzog, intitulado O enigma de Kaspar Hauser (Alemanha: 1974). O personagem principal, Kaspar Hauser, realmente existiu. Com aproximadamente quinze anos, ele foi encontrado em uma praça, na cidade de Nuremberg, sem que ninguém soubesse dizer qual era sua origem. Tudo que se conseguiu descobrir dele é que, até aquele momento, vivera preso em uma masmorra, praticamente sem contato com humanos. O diretor Werner Herzog tomou esse fato real como base para o seu filme, mas exagerou na situação, criando uma personagem fictícia de grande interesse para nossa questão sobre o eu e o outro. Vejamos o que nos conta o filme. Quando foi encontrado, Kaspar sabia falar pouquíssimas palavras, como: “cavalo” e “Eu quero ser um cavaleiro como meu pai”. No quase completo isolamento em que viveu até os quinze anos, Kaspar alimentava-se de pão e água, que eram deixados em sua cela enquanto dormia. Não falava, tampouco andava. Nunca havia ficado de pé. Ele só tinha como companheiro um pequeno cavalo de pau. Um

eu e o outro

O enigma do Eu e do Outro

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Everett Collection/Glow Images

Cena de O enigma de Kaspar Hauser, filme

eu e o outro

de Werner Herzog realizado em 1974.

dia, um homem entrou na cela e o ensinou à força a escrever seu nome no papel. Ele evidentemente não sabia o que escrevia, não sabia que era seu suposto nome. Apenas imitava o que o homem escrevia no papel, assim como imitava aqueles sons: “cavalo” e “Eu quero ser um cavaleiro como meu pai”. Apenas “cavalo” ele entendia que era o brinquedo. Logo depois, aquele homem o ensinou a ficar em pé e a andar. Em seguida, deixou-o sozinho na praça de Nuremberg, com uma carta na mão. A carta não contava o passado de Kaspar Hauser. Era uma justificativa por ter sido abandonado. Os habitantes da cidade só conheceram seu passado à medida que ele aprendia a falar. Ele se desenvolvia rapidamente, mas nunca conseguia se ajustar às convenções sociais, aos padrões de comportamento considerados normais. Um dia, Kaspar apareceu ferido no peito. E morreu algum tempo depois. Segundo os relatos oficiais, ninguém soube a origem do ferimento, nem seu autor. Curiosidade: chegou-se a supor que ele era neto de Napoleão Bonaparte, imperador da França. No filme de Herzog, há algumas coisas bastante interessantes para o nosso assunto. A primeira é que Kaspar não sabia quem era ele próprio. Além disso, o filme mostra que, nos seus primeiros contatos com os habitantes da cidade, Kaspar pas-

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sava o tempo dormindo, como se não tivesse vontade de fazer coisa alguma. Ele era totalmente passivo. Esse isolamento total havia privado Kaspar da capacidade de falar e, com isso, de se referir a si mesmo. É como se ele não tivesse um “eu”, justamente porque não havia um outro, um “você”, do qual ele poderia se distinguir e com o qual ele poderia aprender a se referir a si mesmo. Somente quando aprendeu a falar, pôde contar sua história diferenciando-se dos demais. Sem os outros, ele tampouco saberia diferenciar sonho e realidade, pois, se não havia um “eu” construído na experiência com o outro, o mundo interior não podia ser distinguido da realidade exterior. E como não havia esse “eu”, tampouco ele poderia se ver como um ser dotado de vontade, capaz de agir sobre as coisas. Ao contrário, ele acreditava que as coisas tinham vontade própria. Outra coisa importante, conforme retrata o filme, é o fato de que Kaspar encontrava dificuldade em se ajustar às normas da sociedade da época. Muitas vezes esse desajuste demonstrava o quanto essas normas, crenças e comportamentos eram absurdas, inexplicáveis, quando não hipócritas. No fim do filme, após a morte de Kaspar, os cientistas da cidade abrem seu cérebro e acreditam ter descoberto uma deformidade que explicaria a anormalidade dele. De um lado, a experiência de Kaspar daria a entender que, sem o contato com outros seres humanos, não seríamos capazes de constituir nosso “eu”, base do desenvolvimento de todas as nossas capacidades e condição para diferenciar o mundo interior da realidade exterior. De outro lado, essa experiência revela também como a relação com os outros pode ser marcada por violência. Ao querer integrar Kaspar na vida social, os habitantes da cidade lhe impõem uma série de regras cuja razão de ser eles mesmos não sabem explicar muito bem. Kaspar percebe que o que os outros valo-

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eu e o outro

O que é mais fácil: o saber de si ou a opinião sobre os outros? Saber o que cada um é em sua personalidade, em sua individualidade, não é fácil. É mais fácil dizer o que os outros são, pelo menos aparentemente, do que o que cada um é para si mesmo. Assim, dizemos que fulano é tímido, sicrana é orgulhosa, beltrana é corajosa, mas temos dificuldade em dizer de nós o que somos. Frequentemente, referimo-nos a

nós mesmos conforme as maneiras pelas quais somos vistos pelos outros. Isso significa que nossa visão de nós mesmos é bastante influenciada pela dos outros. Podemos rejeitar a imagem que os outros têm de nós, porém, mesmo assim, ela incide sobre a imagem que formamos de nós mesmos. Muitas vezes queremos ser como os outros, com os quais nos identificamos a partir de características que apreciamos de maneira especial. No entanto, frequentemente descobrimos que não somos como eles, e também que eles, eventualmente tomados como modelos, não são exatamente o que imaginávamos. Tudo se passa como se, de certo modo, nós tivéssemos inventado, em nós mesmos, a personalidade do outro. Tudo indica que nossa personalidade, nossa identidade pessoal, não está, assim, desvinculada da relação com os outros. Essa personalidade é bastante influenciada por eles. É difícil estar bem conosco Detalhe do afresco de Michelangelo (1475-1564) . Capela Sistina, Vaticano

rizavam nele era ou a sua vida estranha ou seu aprendizado para ser “normal”. Em certo momento, porém, ele quer mostrar aos outros que é especial independentemente de sua vida estranha: ele toca piano. A experiência de Kaspar é certamente rara e extrema. Sem o outro, ele não teria constituído seu “eu”, por isso não diferenciaria mundo interior e realidade exterior, deixando de desenvolver suas potencialidades físicas e intelectuais num momento decisivo da vida humana, a infância. É ao longo da infância que o “eu”, em presença do outro, se constitui enquanto indivíduo consciente de sua própria existência, em face dos padrões sociais vigentes. Ele constrói, assim, sua personalidade: porém, conforme ele é integrado à sociedade e seu próprio eu vai se desenvolvendo, deve também passar a entender o comportamento dos outros e a assumir posturas autônomas e críticas. A experiência de Kaspar nos ensina, assim, três lições importantes quando falamos do “eu” e do “outro”: 1. O “eu” surge em face do outro (o “tu”) e, por meio disso, estabelece uma distinção entre o mundo interior e o exterior; 2. O “eu” é também uma maneira de ser. Isto é, o “eu” de cada um se refere também à personalidade, construída sob a pressão da sociedade; 3. Uma vez que o “eu” se desenvolve, ele também se torna capaz de questionar e criticar os outros.

A imagem que cada um faz de si mesmo é influenciada pelo que os demais dizem dele. Mesmo sozinho, o eu não existe sem o outro.

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Londres: Chatto & Windus, 1882

Pedinte ou príncipe por um dia Desenvolvimento individual por escrito

eu e o outro

Na Unidade Realidade e aparência, módulo “A realidade da aparência”, comenta-se a importância que as aparências possuem na vida social. As imagens que fazemos dos outros e que apresentamos de nós mesmos decidem muitas coisas em nosso cotidiano. Esse tema é largamente explorado em narrativas em que há troca de papéis, como no romance de Mark Twain (1835-1910), O príncipe e o mendigo (Tradução: R. Eichehnberg. Porto Alegre: L&PM Editores, 2007). A história é sobre um príncipe que toma o lugar de um garoto muito pobre, e viceversa – e ambos se veem, de um momento para outro, em situações completamente diferentes daquela habitual, embora permaneçam sendo cada qual a mesma pessoa, o mesmo indivíduo. Imagine, porém, que os papéis permaneçam trocados por um longo período e não apenas um dia. Os dois indivíduos – o mendigo transformado em príncipe e o príncipe, em mendigo – terminariam por se transformar interiormente ou não? • Em dupla com um colega, discuta essa situação imaginária da troca de papéis sociais, e, com base em razões debatidas por vocês, respondam se a troca de papéis alte-

sem a aprovação dos outros, no que tange a nossas qualidades. Às vezes, a busca dessa aprovação pode causar transtornos. Podemos ser identificados por aquilo que nos difere dos outros, mas também podemos buscar identificação com outros a partir de traços comuns. Assim, igualamo-nos a outros indivíduos a partir de algumas características. Nesse caso, o eu e o ou-

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Ilustração de Frank T. Merrill (1848-1923) para a primeira edição do romance

ra ou não o que somos “interiormente”. Para enriquecer o debate, busque, na biblioteca ou na internet, casos nos quais repórteres simularam ser pedintes por algum tempo, colocando-se no lugar deles. São relatos dramáticos que põem em primeiro plano as questões que estamos examinando. • Ao fim, redija uma redação de no máximo duas páginas, na qual você irá apresentar o problema da relação entre “eu interior” e “imagem exterior” para, em seguida, exprimir sua posição sobre o assunto: o “eu” é ou não determinado pela imagem que produz sobre os outros? Em caso positivo, em que medida?

tro formam um “nós”, um grupo cuja identidade se estabelece a partir de traços comuns. O “nós” de um grupo parece às vezes ser um “eu” formado de muitos “eus”. E assim como o eu individual marca uma diferença em relação a outros eus individuais, o “nós” coletivo marca uma diferença em relação aos outros “nós” coletivos. Por exemplo, os torcedores de uma

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seus alunos. Essa história é contada no filme A onda, de Alexander Grasshof, realizado em 1981 nos Estados Unidos (há também, com o mesmo título, uma refilmagem alemã de 2008 dirigida por Dennis Gansel). O primeiro passo do professor foi ensinar aos alunos que eles se tornariam “especiais”, “fortes”, desde que tivessem disciplina e dedicação ao grupo, à “comunidade”. Todos, na esfera do grupo, deveriam buscar igualar-se e, na esfera da comunidade, conquistar respeito por participar do grupo, que ele denominou de “A onda”. Com isso, aqueles que se sentiam menos valorizados no colégio logo aderiram ao grupo. Em seguida ele criou um emblema para o grupo e um gesto de saudação – e todos os alunos envolvidos se empolgaram com esses sinais identitários, que os tornavam especiais aos olhos de si e da comunidade. Aqueles que discordavam do professor ou do grupo passaram a ser tratados como inimigos e a ser perseguidos. O professor passou a ser tratado como um líder, a quem os membros do grupo deveriam oferecer a mais completa obediência. Por

eu e o outro

Coleção particular

equipe esportiva em face dos torcedores de outras equipes; ou os brasileiros em face de outros povos. A vida em grupo é praticamente inevitável. É a maneira pela qual a humanidade se socializa. Mas a vida em sociedade traz consigo um conjunto de questões. Um dos problemas reside em saber até que ponto a pertença ao grupo não fere a individualidade e a capacidade crítica de cada um, o que resultaria em homogeneidades grupais opressoras; outro problema é saber discernir até que ponto diferenças identitárias legítimas não são convertidas em pretexto para manifestações de intolerância. Certa vez, um professor de história nos Estados Unidos foi questionado por seus alunos a respeito da adesão do povo alemão ao nazismo e às ideias de Hitler – responsável pelo extermínio de judeus, ciganos, homossexuais, comunistas e opositores políticos em geral. Os alunos não acreditavam que todo um povo, com uma cultura tão rica como a alemã, tivesse podido concordar com um dos maiores horrores da história da humanidade. O professor resolveu, então, fazer um experimento com

Juventude hitlerista em Berlim, 1943 (fotógrafo desconhecido). O filme A onda reconstitui o fenômeno semelhante ao representado pelo nazismo na Alemanha.

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fim, o professor marcou uma reunião de todo o grupo para que fosse anunciado o verdadeiro líder, o líder nacional, daquele movimento. Ele iria aparecer em um filme. Você já deve ter adivinhado quem apareceu na tela: o próprio Hitler. Esta foi a resposta do professor à questão de como todo um povo pode ser cúmplice do extermínio de milhões de pessoas. Essa experiência do professor, bastante radical, ilustra como é possível que, em casos extremos, cada um sacrifique sua individualidade em favor do grupo, ao mesmo tempo em que o grupo se forma na diferenciação em face de outros grupos. Cada um passa a ser valorizado porque é igual aos demais membros do grupo, e o grupo inteiro é valorizado internamente porque difere dos outros. O que há de comum ao “eu” e ao “outro” Igualdade ou identidade de um lado, diferença ou alteridade de outro. Observe,

porém, que a diferença, no caso do filme A onda, é pensada em termos de hierarquia social: o grupo arroga-se superioridade e a impõe pela força, beneficiando-se da passividade e da não-organização da comunidade em que se encontra inscrito. Visto que resistências individuais a um grupo organizado e violento costumam ser ineficazes, a ideologia violenta do grupo termina prevalecendo sobre os demais, tanto no filme quanto, às vezes, na vida real. Porém, é possível ser igual e diferente dos outros ao mesmo tempo, e sem a prevalência de hierarquias? A pergunta também pode ser colocada a partir da perspectiva do outro: o outro pode ser igual e diferente de mim ao mesmo tempo, sem que esteja em jogo quem é melhor? Em que sentido podemos ser iguais aos outros? Podemos ser iguais em diversos aspectos. Se o outro é um membro da mesma família, é evidente que há aí uma igualdade ou uma comunidade

eu e o outro

Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images

Arendt Hannah Arendt (1906-1975)

o indivíduo desaparece no

foi uma das filósofas mais

grupo social que o envolve.

importantes do século XX. Foi

Arendt assinala que o nacio-

aluna de Martin Heidegger na

nal-socialismo, que imperou

Universidade de Marburgo e

na Alemanha entre 1933 e

de Karls Jaspers na Universi-

o fim da Segunda Guerra

dade de Heidelberg.

Mundial, buscou aniquilar a

Com a ascensão do nazismo,

individualidade característi-

Arendt, assim como tantos

ca dos seres humanos.

intelectuais alemães de ori-

Em última análise, é essa

gem judaica, viu-se obrigada

ideologia o que, segundo

a fugir para proteger a pró-

Arendt, explica por que os

pria vida. Emigrou primeiro

prisioneiros (em sua gran-

para a França, depois para

de maioria, judeus) dos

os Estados Unidos, onde viveu e lecionou a

campos de extermínio nazistas quase não

partir de então.

reagiam a seus algozes, mesmo sabendo

Arendt refletiu profundamente sobre o fe-

que nada tinham a perder: eles já haviam

nômeno do totalitarismo. O totalitarismo,

sido destituídos de sua personalidade in-

conforme a autora, é o fenômeno mais

dividual, sem a qual nenhuma ação ou re-

radical e violento dentre os casos em que

ação humana é possível.

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A desaparição do eu na coletividade

A relação entre o indivíduo e o grupo do qual ele é parte pode assumir uma forma negativa, ameaçando aquilo que singulariza uma pessoa em comparação com as demais. De fato, um grupo habitualmente exige que nos comportemos como todos os indivíduos que participam dele, contrariando nossas vontades particulares em favor de um comportamento coletivo, de “massa”. Até certo grau, isso é aceitável e constitui um elemento da vida em sociedade. Entretanto, há situações extremas, em que as pessoas se sentem destituídas de sua individualidade por se encontrarem no interior de uma massa de indivíduos. • Produza um texto de pequena extensão comentando essas situações extremas, em que o eu “desaparece”, por assim dizer, no grupo. O trecho abaixo trata diretamente deste assunto, investigando o que certamente representa a situação mais radical do desaparecimento do eu em uma coletividade. Trata-se de um trecho de As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt (1906-1975). Uma alternativa na elaboração da redação consiste em tomar o caso dos campos de extermínio nazistas, analisado por Arendt, e apontar o conjunto de práticas ali instituídas que conduziram, na visão

de família. Se o outro é um brasileiro, há uma igualdade ou uma comunidade de cidadania, de cultura, de língua etc. Se o outro é um ser humano, há uma igualdade na humanidade comum a ambos. Você já pôde perceber pelos seus livros de História que nem sempre os seres humanos se entenderam como iguais, possuidores dos mesmos direitos e deveres. Na Ida-

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da autora, à destruição da personalidade individual dos prisioneiros. Eis o texto de Hannah Arendt: “É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carrascos, de que raramente havia uma revolta séria e de que, mesmo no momento da libertação [pelos aliados que derrotaram a Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em 1945], houve poucos massacres espontâneos de homens da SS [o comando de elite nazista, que dirigia os campos de extermínio]. Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base da reação ao ambiente e aos fatos. Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte.” (Arendt, As origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 506)

de Média, por exemplo, as sociedades eram fortemente estratificadas. Um nobre não podia ser tratado da mesma maneira que um camponês ou um trabalhador da cidade. Os direitos de cada um eram bem diferentes. A ideia de que todos os seres humanos são pessoas dotadas dos mesmos direitos demorou para surgir na História, e isso só se deu com muitos conflitos.

eu e o outro

Desenvolvimento individual por escrito

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Junto com essa ideia de pessoa, surgiu tambĂŠm a noção de que cada indivĂ­duo poderia ter a vida que quisesse, desde que nĂŁo afetasse a vida e os direitos dos outros. Assim, tornou-se possĂ­vel que as pessoas desenvolvessem no interior de uma mesma sociedade formas de vida bastante diferentes. Isso tambĂŠm ocorreu (e ocorre ainda hoje) de maneira conflituosa. Ser igual em direitos possibilita, assim, ter o direito Ă diferença. Portanto, essa ĂŠ uma maneira de ser igual e diferente ao mesmo tempo, e sem prevalĂŞncia de hierarquias. Voltemos a Kaspar Hauser. Vimos que Ă medida que se desenvolve e forma um “euâ€?, ele tambĂŠm se torna capaz de questionar os padrĂľes de comportamento dos outros e de realizar escolhas diferentes das que lhe sĂŁo impostas. A recusa de pensar o que os outros pensam ĂŠ muito importante – e tambĂŠm muito difĂ­cil. Se o eu surge em contradição com o outro, se ele aprende a diferenciar o mundo interior do mundo exterior, ele pode tambĂŠm refletir distanciadamente sobre o mundo exterior, dos outros, e julgĂĄ-lo com maior liberdade. Se em face do outro hĂĄ a possi-

bilidade do desenvolvimento do eu, com sua respectiva constituição, hĂĄ a possibilidade de se criticar o outro. Vamos retomar brevemente o que discutimos atĂŠ aqui: O “euâ€? ĂŠ um mundo interior que cada um aprende, na relação com o outro, a diferenciar do mundo exterior. O “euâ€? se refere Ă personalidade, Ă individualidade de cada um. E o desenvolvimento dessa personalidade tambĂŠm depende da relação entre o “euâ€? e os outros. A maneira como o “euâ€? ĂŠ visto pelos outros, por exemplo, ĂŠ um fator importante de seu prĂłprio desenvolvimento. Na relação entre o “euâ€? e o “outroâ€?, ĂŠ possĂ­vel estabelecer relaçþes de igualdade e diferença, marcadas pelo reconhecimento de equivalĂŞncias e de contrastes entre os indivĂ­duos. Tais identidades e diferenças podem ser criticadas pelo “euâ€?, na medida em que ele ĂŠ capaz de se distanciar dos outros e de suas maneiras de pensar. A possibilidade de crĂ­tica e de reflexĂŁo ĂŠ dada com a diferenciação do eu em relação ao outro e ao mundo exterior.

eu e o outro

O “Eu penso�: Descartes

“Penso, logo existo.â€? Essa ĂŠ uma ideia muito conhecida de RenĂŠ Descartes[+] (1596-1650), que admite muitas abordagens devido Ă sua relevância filosĂłfica. Por isso, deparamos com ela noutra parte desse livro, na Unidade DĂşvida e certeza (mĂłdulo: “Duvidando para atingir a certezaâ€?). A seguir, discutiremos a mesma ideia, mas destacando aspectos um pouco diferentes. Interessa-nos aqui examinar a relação entre o “eu pensoâ€? de Descartes com a questĂŁo da alteridade, do “outroâ€? que se distingue do “si mesmoâ€?. VocĂŞ pode talvez achar estranho que alguĂŠm diga que exista porque pensa. NĂŁo seria antes o contrĂĄrio: eu existo, logo eu penso? Basta vocĂŞ refletir um pouco e no-

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tar que, para dizer “eu existoâ€?, eu preciso pensar que eu existo. O pensamento tem de vir antes se vocĂŞ quiser provar que existe. Para provar qualquer coisa, diria Descartes, vocĂŞ tem de partir de vocĂŞ mesmo, de seus prĂłprios pensamentos. Isso significa que vocĂŞ tem de partir do seu “euâ€?. A expressĂŁo de Descartes ĂŠ: eu penso, logo eu existo. NĂŁo se trata de dizer “Deus me criou, logo eu existoâ€?; “Meu corpo existe, logo eu existoâ€?. Ou seja, nĂŁo se trata de dizer que hĂĄ alguĂŠm e algo, logo eu existo. Pois, para dizer essas coisas, eu preciso pensar que hĂĄ alguĂŠm ou hĂĄ algo – e de novo o eu e seus pensamentos se mostrariam anteriores na ordem da prova, na ordem da demonstração de minha existĂŞncia.

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Ilustração da obra de Descartes. Paris: Angot, 1664

notando que essa verdade – eu penso, logo eu existo – era tĂŁo firme e assegurada que nem as mais extravagantes suposiçþes dos cĂŠticos poderiam abalĂĄ-la, julguei que podia aceitĂĄ-la sem receios como sendo o primeiro princĂ­pio da filosofia por mim buscado.â€? (Descartes, Discurso do mĂŠtodo. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Pairs: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. VI, p. 32)

(1664), de Descartes. AlĂŠm do eu como pensamento, Descartes tambĂŠm refletiu sobre o eu como alma unida a um corpo.

AlĂŠm disso, para dizer que “Deusâ€? ou “corpoâ€?, ou ainda “naturezaâ€?, “mundoâ€?, ou qualquer outro ser seja a razĂŁo de minha existĂŞncia, eu precisaria provar que esse outro ser existe. E para provar isso, primeiramente sĂł posso recorrer aos meus prĂłprios pensamentos. Com isso, Descartes estabelece, antes de tudo, um caminho para refletir sobre qualquer coisa. Esse caminho ĂŠ dado por esse “euâ€?. E o começo desse caminho tem de ser a certeza de que o “euâ€? existe, quer dizer, que “eu existoâ€?. Conforme Descartes, ĂŠ apenas provando minha existĂŞncia, antes de tudo, que posso, em um segundo momento, provar a existĂŞncia de outras coisas e outros seres. Vejamos agora como ele chega a essa primeira certeza, essa primeira verdade. No inĂ­cio da Quarta Parte do Discurso do mĂŠtodo, lemos: “Decidi fazer de conta que todas as coisas que tinham atĂŠ esse momento entrado em meu espĂ­rito nĂŁo eram mais verdadeiras que as ilusĂľes de meus sonhos. Mas, imediatamente em seguida, percebi que, enquanto queria pensar que tudo era falso, era necessĂĄrio que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. E,

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1. sua decisĂŁo em duvidar de toda realidade, que ele considera nĂŁo sendo “mais verdadeiraâ€? que o sonho; 2. ao fazĂŞ-lo, porĂŠm, Descartes se dĂĄ conta de que a convicção de que “tudo era falsoâ€? supĂľe pelo menos uma verdade: a de que eu, enquanto penso que tudo ĂŠ falso, existo ao pensĂĄ-lo; 3. assim, minha existĂŞncia enquanto pensamento equivale ao “primeiro princĂ­pio da Filosofiaâ€?, expresso pelo enunciado “eu penso, logo existoâ€?. Pois ĂŠ verdadeiro que existe algo que pensa (= eu), mesmo se for apenas para pensar que tudo ĂŠ falso. Na consideração de Descartes, o “euâ€? significa, portanto, a coisa que ĂŠ primeiramente conhecida, quando se tenta conhecer algo “com firmeza e certezaâ€?. HĂĄ um ponto interessante nesse argumento. A crer em Descartes, a primeira verdade sĂł pode ser obtida na ocasiĂŁo em que se duvida de todas as coisas. A Ăşnica exceção reside no prĂłprio eu, que nĂŁo pode colocar a si mesmo em dĂşvida.

eu e o outro

Ilustração do Tratado do homem

A exclusĂŁo provisĂłria do “outroâ€? por parte do “euâ€? Eis aqui o contexto do famoso “penso, logo existoâ€?. Em latim, diz-se: cogito ergo sum. Com o “cogitoâ€?, com o “eu pensoâ€?, Descartes demonstra a impossibilidade, para alguĂŠm que duvida de todas as coisas, de colocar em dĂşvida a sua prĂłpria existĂŞncia. Usando o pronome pessoal da primeira pessoa singular, “euâ€?, Descartes afirma aqui trĂŞs coisas importantes:

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A crítica de Pascal ao eu cartesiano Desenvolvimento individual por escrito Leia a seguir uma passagem de Blaise Pascal (1623-1662) a respeito do “eu” e sua relação com os outros: “O eu é detestável. Ele possui duas características: é em si injusto, por se colocar no centro de tudo; é incômodo aos outros, por querer subjugá-los, pois cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros” (Blaise Pascal. Pensamentos. Tradução nossa. Edição de referência: Pascal, Oeuvres complètes [ed. Lafuma] Paris: Seuil, L’Intégral, 1963, § 597)

eu e o outro

• Com base nessa passagem e naquilo que examinamos acerca do “eu” de Descartes, redija um texto de no máximo duas

Nessa experiência de pensamento, o eu é para si mesmo o mais indubitável e certo. Mais ainda, a conquista dessa primeira verdade, que é a da existência do próprio eu, exige como uma de suas condições a dúvida dirigida contra tudo que não é o “eu”, ou seja, a exclusão (ao menos provisória) de todo outro possível. Não que Descartes vá duvidar sempre que esse outro (ou todo outro ser) exista. O importante é que só posso ter certeza primeiramente da minha própria existência. Posso duvidar, de início, que tudo mais não exista – Deus, mundo, todos os outros seres humanos. Mas não posso duvidar de que eu exista, pois como poderia duvidar disso, se para duvidar é necessário que eu exista? Como duvidar significa pensar, então só resta afirmar: “penso, logo existo”. Sob essa perspectiva, a descoberta da primeira verdade é uma experiência solitária. Esse “eu” que prova sua existência é absolutamente solitário. Tudo que se pos-

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páginas propondo uma comparação entre Pascal e Descartes em relação a esse tema. Atente para o fato de que Pascal critica o desejo do “eu” de ser o centro de tudo. Ao fazê-lo, Pascal volta-se contra o “penso, logo existo” cartesiano. Considere, entretanto, as razões de Descartes: se o “eu” não corresponde ao primeiro princípio do saber, o que mais – isto é, qual “alteridade” – poderia substituí-lo neste papel? • Examine alternativas, tome uma posição pessoal sobre o assunto. Leve também em conta a seguinte questão: se o primeiro princípio do saber reside em um “outro”, o que poderia ser dele, caso não fosse reconhecido pelo “eu”? E, se o “outro” depende do “eu” para ser reconhecido, qual dos dois possui, de fato, primazia?

tulava existir antes – Deus, mundo, todos os outros seres humanos – pôde ser afastado do pensamento como mera ilusão, como sonhos, pois posso perfeitamente duvidar da existência deles. Isso significa dizer que eu não preciso de nenhum outro, semelhante a mim (um outro ser humano) ou diferente de mim (Deus), para provar minha existência. Além disso, eu não preciso deles para saber o que eu sou. Pois se tenho certeza de minha existência na medida em que penso, então, antes de tudo sou uma coisa pensante, um ser cuja essência é o próprio pensamento. Assim, a primeira verdade da filosofia cartesiana e o primeiro conhecimento que o eu tem de si mesmo estão intimamente ligados à experiência de um eu absolutamente solitário, que independe dos outros para comprovar sua existência. O eu está sozinho – e nem podemos dizer que está sozinho no mundo, pois a existência do mundo não foi ainda demonstrada.

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O Eu com o Outro

“Não vivemos a princípio na consciência de nós mesmos, mas na experiência do outro. Só sentimos que existimos depois de já ter entrado em contato com os outros, e nossa reflexão é sempre um retorno a nós mesmos que deve muito à nossa frequentação do outro. Um bebê de poucos meses já tem habilidade suficiente para distinguir a simpatia, a raiva e o medo no rosto do outro, num momento em que ainda não poderia ter aprendido, pelo exame de seu próprio corpo, os sinais físicos dessas emoções. E o adulto descobre na sua própria vida o que a sua cultura, o ensino, os livros, a tradição lhe ensinaram a ver nela. Nosso contato conosco sempre se faz por meio de uma cultura, pelo menos por meio de uma linguagem que recebemos de fora e que nos orienta para o conhecimento

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de nós mesmos. De modo que, afinal, o puro si-mesmo, o espírito, sem instrumentos e sem história, só se realiza, em liberdade de fato, por meio da linguagem e participando da vida do mundo.” (Merleau-Ponty. Conversas – 1948. Organização e notas Stéphanie Ménasé. Tradução de F. Landa e E. Landa. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 48-49)

De forma concisa, a tese defendida por Merleau-Ponty é a seguinte: a relação de cada um consigo mesmo é mediada pela “experiência do outro”, a relação com outrem é constitutiva do conhecimento que cada um tem de si mesmo. Perceba agora como ele explica essa tese, recorrendo aos comportamentos do bebê e do adulto como exemplos da experiência de si mesmo tornada possível pela relação dele com outrem. O bebê reage às emoções de sua mãe antes de ter consciência de suas próprias emoções; o adulto descobre em sua própria vida aquilo que já lhe fora transmitido e ensinado por outros. Ninguém se encontra consigo mesmo senão a partir do que percebe no rosto e na palavra de outrem. Isso significa que há uma história do eu, que este se desenvolve ao longo de idades, em constante referência (“frequentação”) ao outro, próximo ou distante, que vem ao seu encontro no mundo. Segundo Merleau-Ponty, isso deve valer sobretudo para o “puro si-mesmo”, aquele mesmo eu puro com que Descartes se identifica ao duvidar de todas as coisas e, assim, pretender suspender em pensamento a vinculação dele com o mundo e os outros. Para Merleau-Ponty, até mesmo o eu que, por meio da dúvida mais radical, se tornou “sem história”, rompendo com seus antepassados e seus contemporâneos, constitui-se como tal apenas historicamente, na coexistência com aqueles de quem ele se aparta na reflexão.

eu e o outro

Ao buscar um princípio de conhecimento seguro, René Descartes[+] (15961650) foi levado a duvidar de tudo. Mas não podia duvidar de sua própria existência enquanto um ser pensante. A certeza da própria existência constitui a primeira verdade cartesiana – um eu que se afirma quando tudo mais parece incerto. Mas: será mesmo possível um pensamento completamente isolado do mundo, como queria Descartes? Afinal de contas, é possível um “eu” sem um “tu”, sem um “nós”? Quando digo “eu penso, eu quero, eu afirmo”, não estou dizendo isso para um outro, um “tu” ou “você”? O próprio livro de Descartes o demonstra: pelo seu texto, o autor se dirige a um leitor possível, a nós mesmos. Em meados do século XX, Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) pensou a relação entre o eu e o outro a partir de novas bases, bem diferentes daquelas presentes na meditação de Descartes. Vejamos um texto em que Merleau-Ponty apresenta essa relação:

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Ele tem a “vida do mundo” como ponto de partida insuperável de seu desenvolvimento. Quer dizer, é um ponto de partida que não pode simplesmente ser deixado para trás, pois possibilita e condiciona, em cada eu, a tentativa de abandonar o mundo na direção de si mesmo. Por isso, em referência explícita a Descartes, Merleau-Ponty afirma numa de suas obras mais importantes, a Fenomenologia da percepção (1945):

eu e o outro

Kunstahalle Hamburg. Foto: Cybershot800i PD-Art

“Mesmo a meditação universal que corta o filósofo de sua nação, de suas amizades, de seus preconceitos, de seu ser empírico, em uma palavra, do mundo, e que parece deixá-lo absolutamente só, na realidade é ato, fala, por conseguinte diálogo. Em seu retiro reflexivo, o filósofo não pode deixar de arrastar os outros porque, na obscuridade do mundo, ele aprendeu para sempre a tratá-los como companheiros de sorte, e porque toda a sua ciência está construída sobre este dado de opinião.” (Merleau-Ponty, Fe-

Caspar David Friedrich (1774-1840) é o mais conhecido pintor do Romantismo alemão, que exaltou a solidão humana diante do universo (O viajante sobre o mar de névoa,

detalhe, óleo sb/ tela, 1818).

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nomenologia da percepção. Tradução de C. A. Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 484-485)

O que faz com que, ao retirar-se do mundo para si mesmo, o filósofo inevitavelmente “arraste os outros”? Se, como pensa Merleau-Ponty, a sua solidão não é possível sem a companhia dos outros homens, como estes poderiam estar presentes à reflexão solitária do filósofo sobre si, dado que, nessa reflexão, este pretende ter suspendido os vínculos que o prendiam a todos os demais? O “eu penso” supõe um diálogo Se notarmos bem, as linhas que acabamos de ler indicam uma resposta muito interessante para essa difícil questão. Por meio dos exemplos propostos por Merleau-Ponty, já vimos que a coexistência com os outros constitui o ponto de partida de todo possível encontro do eu consigo mesmo: é somente a partir da “experiência do outro” que posso voltar-me para mim, a fim de reconhecer, com certeza, que eu mesmo existo. Resta, porém, esclarecer como é possível que essa relação entre o “eu”e o “outro” permaneça ativa na reflexão pretensamente mais isolada, no cogito de Descartes. De que modo o outro está “entranhado” no eu que pretende se isolar de todos? Retomemos alguns pontos do trecho citado de Merleau-Ponty: “Nosso contato conosco sempre se faz por meio de uma linguagem que recebemos de fora e que nos orienta para o conhecimento de nós mesmos”. E também: “Mesmo a meditação universal que corta o filósofo do mundo, e que parece deixá-lo absolutamente só, na realidade é ato, fala, por conseguinte diálogo” (grifo nosso). A linguagem que se usa e a fala que se pratica testemunham a presença do outro no pensamento por meio do qual o filósofo procura separar-se do mundo.

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Maurice Merleau-Ponty (1908-

Ponty traduzidas para o português:

1961) nasceu em Rochefort-sur-

• M. Merleau-Ponty, O olho e o es-

-Mer, na França. Formou-se na

pírito. Tradução: P. Neves e M. Er-

Escola Normal Superior de Paris,

mantina G. G. Pereira. São Paulo:

foi professor de liceu, serviu no

Cosacnaify, 2004.

exército francês durante a Segunda

• M. Merleau-Ponty, Fenomenolo-

Guerra Mundial. Em 1949, tornou-

gia da percepção. Tradução: C.

se professor na Sorbonne e, em

A. Ribeiro de Moura. São Paulo:

1952, ingressou no Colégio de Fran-

Martins Fontes, 1999.

ça, a instituição mais prestigiada do

Sobre Merleau-Ponty, vale con-

universo acadêmico daquele país.

sultar:

Merleau-Ponty iniciou sua carreira filosófica

• Marliena Chauí, Experiência do pensamento.

sob influência da fenomenologia de Edmund Hus-

Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São

serl (1859-1938), mas criou uma versão própria

Paulo: Martins Fontes, 2002.

dela ao sublinhar a importância da percepção.

Como apresentação da obra do filósofo, veja,

Suas obras são decisivas para a compreensão da

também de M. Chauí, seu artigo publicado na

trajetória da filosofia na França ao longo do século

Revista Cult (número 123) “Merleau-Ponty: a

XX. Merleau-Ponty foi muito próximo de grandes

obra fecunda”, disponível em: http://revistacult.

figuras do universo científico e cultural de sua

uol.com.br/home/2010/03/merleau-ponty-a-

geração. Atuou com Jean-Paul Sartre na revista

-obra-fecunda.

Temps modernes entre 1945 e 1952 (tendo porém

Confira também o capítulo redigido por Luiz

rompido com ele adiante, por divergências políti-

Damon Moutinho, “Merleau-Ponty: entre o corpo

cas). Era muito próximo de Jacques Lacan (1901-

e a alma”, na Antologia dos textos filosóficos (org.

1981) e de Claude Lévi-Strauss (1908-2009).

Jairo Marçal, Curitiba: SEED-PR, 2009, pp. 490-515.

Aos olhos de Merleau-Ponty, Descartes não poderia compreender-se a si mesmo sem falar, e falar implica pelo menos duas coisas: 1. retomar as palavras legadas por outros para construir um discurso próprio, uma fala própria; 2. dirigir-se a outrem como destina-tário desse discurso, dessa fala. Do ponto de vista de Merleau-Ponty, Descartes pode pretender estar isolado do mundo, mas ele ainda fala a alguém, e o faz com palavras “que recebe de fora”. Essa dupla referência ao outro é parte essencial do discurso cartesiano – como, aliás, de todo discurso. Por isso, é apenas em aparência que a reflexão radical sobre si deixa o filósofo

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A obra está disponível na internet).

absolutamente só. Ao pôr em dúvida a existência de tudo e de todos por meio de um pensamento que fala, isto é, mediante um discurso, o filósofo “arrasta os outros” consigo mesmo para a sua solidão. Assim, o fato de que o pensamento depende do discurso impede a possibilidade de uma reflexão em que o eu esteja completamente isolado dos demais. Para conseguir retirar-se numa solidão absoluta, rompendo todo possível vínculo com outrem, o filósofo precisaria não fazer nada e, principalmente, permanecer calado e, pior, deveria (se isso fosse possível) deixar de ter pensamentos. No fundo, a solidão experimentada pelo eu na reflexão filosófica constitui mais um modo de relação ou coexistência

eu e o outro

Eis duas das obras mais importantes de Merleau

Getty Images

Merleau-Ponty

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com o outro. Contra ou a favor da intenção mais própria de Descartes, o cogito seria, portanto, um diálogo. Podemos agora formular com mais clareza a diferença entre a posição de Merleau-Ponty e a de Descartes quanto ao

modo de pensar a relação entre o eu e o outro. Para Merleau-Ponty, o eu sempre se dirige a outrem, ele se constitui na relação com o outro. Diferentemente de Descartes, que pensa a partir de uma oposição radical entre o eu e o outro, Merleau-Ponty

eu e o outro

Debate em sala de aula

Um aspecto decisivo da crítica que Merleau-Ponty dirige ao isolamento do cogito cartesiano está no fato de que, para Merleau-Ponty, os indivíduos coexistem unidos pela linguagem e por um mundo comum. A linguagem, conforme Merleau-Ponty, é essencialmente intersubjetiva, o que significa que, através dela, cada um de nós está sempre em relação com os demais, sem que se possa, por isso, encontrar uma experiência completamente individual e subjetiva, na qual o “eu” esteja destituído de toda relação com o exterior e, assim, com o “tu” e o “ele” que o atravessam. Vejamos, então, este ponto mais de perto. Você já tentou alguma vez escrever em um código secreto, de modo que ninguém mais pudesse entender o que você escreveu? Por exemplo, um diário cuja escrita ninguém mais entenderia além de você. Nesse caso, você teria inventado uma linguagem própria. Mas é provável que você tenha apenas inventado novas palavras ou utilizado de modo diverso as palavras da sua língua. Aí, você apenas traduziu a sua língua materna, o português, para seu código pessoal. Por exemplo: em vez de “estou em casa”, você escreve no diário “toues me saca”. Porém e se em vez desse código de tradução você realmente inventou palavras novas, por exemplo, para todos os ti-

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pos de dores que já sentiu? As sensações são normalmente difíceis de comunicar porque elas não são tão identificáveis quanto os objetos exteriores, como uma caneta, um caderno etc. Suponha, então, que para cada tipo de dor você inventa uma palavra inteiramente nova. Nesse caso, você teria inventado uma linguagem privada, absolutamente pessoal, desde que não fosse compartilhada com absolutamente ninguém. Mas é mesmo possível usar uma linguagem privada? Os registros dessa linguagem, caso descobertos, poderiam ser decifrados? Em caso afirmativo, o que isso implicaria? E em caso negativo? • Debata a hipótese do uso de uma linguagem privada com seus colegas. Investigue com eles, por exemplo, se os parâmetros aplicados à linguagem habitual poderiam ser transpostos para essa linguagem privada hipotética. Como, por exemplo, saberíamos apontar para o uso adequado ou não dos termos nessa linguagem?

Gárdonyi Géza Emlékmúzeum

A linguagem privada

O escritor húngaro Géza Gárdonyi (1863-1922) tomava notas criptografadas em seu diário, que só foi decifrado em 1965, por ocasião de um concurso organizado com esse fim

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UMA LINGUAGEM PARA ALIENÍGENAS? Na vertente oposta à de uma linguagem privada,

de FM, em 1974. A ideia por trás é a de que,

o ser humano concebeu, nas últimas décadas, al-

sendo este um sinal radicalmente diferente das

gumas mensagens para que fossem decifradas...

informações que normalmente são “escutadas”

por alienígenas. Pense bem: não é fácil formular

do espaço sideral, uma inteligência extraterrestre

uma mensagem a ser comunicada entre espécies

possa aí reconhecer se tratar de uma mensagem

que mutuamente se desconhecem por completo

em código binário. Devidamente decodificada,

– incluindo aí um grande problema a resolver: que

ela traz informações sobre o sistema numérico

língua deve ser usada para levar a mensagem?

decimal; sobre a química de nosso planeta e da

Na década de 1970, cientistas buscaram resol-

base de suas formas de vida; sobre o ser huma-

ver essa questão de diversos modos. As sondas

no; sobre o nosso sistema planetário e o radiote-

Pioneer 10 e 11, lançadas para a exploração dos

lescópio utilizado para enviar a mensagem.

planetas do Sistema Solar respectivamente em

Caso algum dia, em algum milênio, um ser alieníge-

1972 e 1973, levam uma placa metálica cada, em

na receba uma dessas mensagens e seja capaz de

que são representados pictoricamente a própria

decodificá-la, o ser humano terá realizado o maior

sonda ao lado de uma mulher e de um homem,

passo jamais imaginado em direção ao Outro.

além de algumas informações sobre o planeta Terra. A ideia é que, terminadas suas missões principais, as sondas (que já saíram do Sistema Solar) eventualmente poderiam ser interceptadas por outra espécie de vida. Outro projeto envolveu enviar, num compartimento especial das sondas Voyager 1 e 2 (lançadas em 1977), um disco metálico que funciona como um tipo muito sofisticado de LP: gravadas em sua superfície – codificadas em som, com as respectivas instruções para decodificação – há dezenas de imagens que caracterizam nosso sistema planetário, nosso planeta e nossa vida aqui; além disso, o

Acima, detalhe da placa acoplada à Pioneer 10 (NASA); abaixo à esquerda, a mensagem de Arecibo em código binário e à direita, a decodificação visual da mesma mensagem (Arne Nordmann, CC-by-sa-2.5).

disco contém sons típicos do planeta Terra, saudações humanas em 59 línguas, ondas cerebrais de um ser humano e 27 músicas, do folclórico ao clássico e ao rock ’n’ roll (os cientistas, é claro, tiveram o bom senso de enviar uma vitrola junto). O problema dessas mensagens é que a probabilidade de que um dia sejam encontradas é

eu e o outro

muito próxima de zero: de fato, esgotadas as suas fontes de energia, as sondas já não emitirão qualquer sinal eletromagnético, o que torna sua descoberta e localização quase impossível, na imensidão do espaço. Um esforço diferente foi o de conceber e enviar uma mensagem justamente por meio de ondas eletromagnéticas. Cientistas norte-americanos usaram o radiotelescópio de Arecibo (em Porto Rico) para transmiti-la para o espaço em ondas

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entende que o encontro é anterior à seque, ao contrário, a relação entre o eu e o paração entre eles e que essa separação, outro frequentemente deriva para formas pressupondo sempre o encontro, jamais assimétricas, desequilibradas, de relação inpoderia extremar-se na forma do isolaterindividual. No âmbito do conhecimento, mento total. há lugar para o livre exercício da dúvida; Por essa razão, não há, mas também há casos segundo Merleau-Ponty, de submissão a formas conhecimento de si mesde autoritarismo. E isso mo fora da coexistência ocorre tanto no mundo Para Merleau-Ponty, com o outro. Experimendo saber, quanto na vida o encontro é anterior tar a própria existência em sociedade. à separação entre individual já é uma forma Em todo caso, a conde posicionar-se em face cepção de Merleau-PonEu e Outro; por isso, de outrem, de coexistir ty ao menos demonstra ela nunca leva a um socialmente. O eu e o ouque a alternativa entre isolamento total. tro são os polos de uma o conhecimento de si e relação que é anterior a a vida em comum não é cada um deles em separanecessária. Adotando o do. O outro não é objeto ponto de vista desse fique gravita em torno de um eu, situado lósofo, pode-se dizer, contrariando Descarno centro de tudo. Há, pelo contrário, um tes, que não é preciso isolar-se dos outros equilíbrio básico entre os polos, que vem para encontrar-se consigo. Para conhecerda impossibilidade de o eu e o outro sub-se a si mesmo, cada homem deve ir ao ensistirem cada qual em separado, já que são contro dos outros homens, pois uma indiessencialmente recíprocos. vidualidade não consiste senão num modo Merleau-Ponty sabe que nem sempre se de coexistência. Como diria Merleau-Ponverifica, na prática, esse equilíbrio. Ele sabe ty, o eu é com o outro.

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Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento

Para Descartes[+] (1596-1650), o eu pode ter certeza sobre sua existência e sobre o mundo independentemente dos demais. Esta existência é atestada pelo “eu penso”, de modo que Descartes conclui que a essência do “eu” é o pensamento. Para Merleau-Ponty[+] (1908-1961), ao contrário, ele só pode relacionar-se consigo mesmo, ter uma consciência de si e um conhecimento de si porque está desde o início em contato com os outros. Ele tem uma história, vive em um mundo, pensa segundo uma linguagem que não poderia existir independentemente dos outros.

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Porém, é possível perguntar: o que se passaria se não existisse essa história comum, se não existisse esse mundo comum, se não existir nem mesmo uma linguagem comum, como se o outro falasse uma língua nunca ouvida antes? Enfim, e se outro não for nada próximo de mim, qual seria a relação que eu teria com ele? Esse cenário é um tanto improvável, mas assim mesmo ele serve como ponto de partida para Georg Wilhelm Friedrich Hegel[+] (1770-1831), um dos maiores filósofos da Era Moderna, examinar como dois indivíduos absolutamente certos de si mesmos e totalmente

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A certeza de si mesmo vem do desejo Procuremos então analisar os principais momentos dessa luta pelo reconhecimento, a partir de trechos de dois livros de Hegel: Fenomenologia do espírito (1807) e Enciclopédia das ciências filosóficas (1817). Como você irá logo perceber, Hegel utiliza um vocabulário difícil, um dos mais difíceis da história da filosofia. Tome fôlego, portanto. “A consciência de si é certa de si mesma, somente porque suprime o outro que se lhe apresenta como ser vivo independente: ela é desejo. Certa da nulidade desse outro, […] ela aniquila o ser vivo independente e dá a si mesma, com isso, a certeza de si mesma como

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verdadeira certeza, como uma certeza que veio a ser para ela de maneira objetiva.” (Hegel, Fenomenologia do espírito. Tradução nossa. Título original: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 143)

Ao contrário de Descartes, Hegel pensa que o indivíduo consciente de si mesmo só está certo de si mesmo porque ele é, antes de tudo, um ser que deseja, que não chega à certeza de si mesmo porque ele pensa, mas porque deseja e busca satisfazer seu desejo. Isso significa que o indivíduo é compreendido de início como um ser vivo, que se depara com outros seres vivos, objetos de seu desejo. Esses seres vivos não são, ainda, outros indivíduos e outras consciências, mas entes (animais e vegetais) que ele consome para satisfazer seu desejo. Desse modo, é somente ao aniquilar o outro para a satisfação do desejo que o indivíduo consciente de si mesmo tem uma certeza objetiva a respeito de sua existência, de sua liberdade e de sua independência. Trata-se, portanto, não de uma certeza subjetiva (como, por exemplo, no caso de uma mera crença a respeito de si mesmo). Porque o indivíduo aniquila outros seres vivos, ele se mostra independente e poderoso. Vejamos o que diz Hegel sobre este momento da relação do eu com o que o cerca: “A relação do desejo com o objeto é ainda completamente a relação do destruir egoísta. […] Como o objeto do desejo e o próprio desejo, a satisfação do desejo é também necessariamente algo pontual, transitório, que cede ao desejo que sempre desperta de novo.”

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estranhos entre si entram em relação um com o outro. Antes de examinarmos o desenvolvimento que Hegel confere a esse problema, note que o filósofo o interpreta como sendo também um problema ético e político. Isso porque a certeza sobre si mesmo não se refere somente à existência do eu. Ela se refere também à liberdade, à certeza de se ser totalmente independente. A questão examinada por Hegel, assim, é a seguinte: como dois seres humanos que se julgam absolutamente independentes e livres se relacionariam entre si? Você, com razão, se pergunta por que tudo isso, já que é tão improvável uma situação assim. Como Merleau-Ponty, Hegel quer demonstrar que o indivíduo só pode ter uma relação consigo mesmo a partir do outro, mas, ao mesmo tempo, quer assinalar que a relação com o outro é conflituosa desde o início, e que esse conflito vai estabelecer as primeiras relações humanas, que são relações de dominação. O mais importante, para Hegel, é que os indivíduos lutam entre si porque eles querem o “reconhecimento” do outro a respeito de sua existência livre.

(Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas. Tradução nossa. Título original: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 428, adendo)

O desejo, conforme a análise de Hegel, é destrutivo, egoísta e, pior, insistente:

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reaparece o tempo todo. Ele se repete sem cessar. E daĂ­ a armadilha que envolve o indivĂ­duo, sujeito do desejo. Pois, se ele se sente livre e poderoso porque satisfaz seu desejo, ele jamais conquistarĂĄ uma certeza absoluta a respeito de si mesmo, de uma vez por todas. Isso porque a satisfação do desejo nĂŁo leva a uma certeza constante sobre a independĂŞncia e o poder do indivĂ­duo. É pela satisfação do desejo que o indivĂ­duo tem a primeira certeza de si mesmo, de sua independĂŞncia e poder. Mas o indivĂ­duo sĂł terĂĄ essa certeza de maneira transitĂłria. Afinal, tĂŁo logo um desejo seja satisfeito, um novo surgirĂĄ, colocando a independĂŞncia e o poder do indivĂ­duo novamente em xeque, atĂŠ que ele seja satisfeito, e assim por diante. A necessidade do reconhecimento recĂ­proco Antes de seguirmos adiante, uma observação merece ser feita. JĂĄ sabemos que a linguagem utilizada por Hegel ĂŠ muito incomum e soa, por vezes, incompreensĂ­vel, especialmente numa primeira leitura. Mas queremos insistir em decifrĂĄ-la. Isso poderĂĄ nos conduzir a identificar, sob suas formulaçþes, experiĂŞncias familiares a todos nĂłs, quando o assunto ĂŠ a relação de cada um de nĂłs com os demais. Vejamos, entĂŁo, como segue o desenvolvimento dado por Hegel a esse problema. Leia o parĂĄgrafo abaixo:

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“A consciĂŞncia de si ĂŠ em si e para si quando e porque ĂŠ em si e para si para uma outra consciĂŞncia de si, isto ĂŠ, ela sĂł ĂŠ quando ĂŠ reconhecida.â€? (Hegel, Fenomenologia do espĂ­rito, op. cit., p. 145. Tradução nossa)

Eis agora a explicação. O indivíduo consciente de si mesmo não pode obter certeza absoluta, permanente, sobre sua independência a partir da satisfação do desejo. Mas ele pode obter essa certeza

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se um outro indivĂ­duo o reconhecer dessa maneira. NĂŁo adianta apenas eu ter certeza de que sou independente, livre e poderoso. É preciso que um outro, semelhante a mim, me reconheça dessa forma. SĂł assim a certeza deixa de ser subjetiva ou momentânea e se torna objetiva e permanente. Ela se torna absoluta. É isso que Hegel quer dizer com “em si e para siâ€?: absolutamente. Mas, para que haja reconhecimento, ĂŠ preciso que os indivĂ­duos se reconheçam de maneira recĂ­proca, ĂŠ preciso que cada um expresse ao outro o seu reconhecimento mĂştuo. O reconhecimento tem de ser recĂ­proco. Como afirma Hegel em seu modo caracterĂ­stico, as consciĂŞncias “se reconhecem ao se reconhecerem reciprocamenteâ€? (Hegel, Fenomenologia do espĂ­rito, op. cit., p. 147. Tradução nossa). PorĂŠm, o que garante que esses dois indivĂ­duos, que querem ser reconhecidos em sua independĂŞncia e que aprenderam de inĂ­cio que sĂŁo independentes porque sĂŁo capazes de aniquilar um outro ser vivo, estejam dispostos a reconhecer o outro como tal? Uma coisa ĂŠ querer ser reconhecido pelo outro, outra ĂŠ estar disposto a reconhecĂŞ-lo. A essa questĂŁo junta-se uma outra: de que forma esses dois indivĂ­duos aparecem um para o outro em seu primeiro encontro? Recorde-se que ambos sĂŁo tambĂŠm seres vivos, semelhantes a todos os seres vivos que atĂŠ ali cada um deles aniquilava para a satisfação do seu prĂłprio desejo. Reconhecimento ĂŠ uma luta de vida ou morte Vejamos, entĂŁo, como Hegel reponde a esses dois problemas: “Para a consciĂŞncia de si, sua essĂŞncia e objeto absoluto ĂŠ o Eu [‌] O que ĂŠ o outro para ela ĂŠ como um objeto sem importância [‌]. O outro, porĂŠm, ĂŠ tambĂŠm uma consciĂŞncia de si; um indivĂ­duo a se confrontar com outro indivĂ­duo. Surgindo assim imediatamente,

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Leia o trecho abaixo, extraĂ­do de um livro do filĂłsofo Max Stirner (1806-1856). Nele, Stirner reflete sobre o que ĂŠ o “euâ€? e sua relação com o “outroâ€?. • ApĂłs lĂŞ-lo com atenção, comece escrevendo individualmente um comentĂĄrio de poucas linhas sobre a posição de Stirner. • Depois, reĂşna-se em um grupo de 3 a 4 integrantes e discutam os comentĂĄrios individuais de cada um. ApĂłs a leitura e discussĂŁo de todos os comentĂĄrios do grupo, façam uma redação em conjunto para ser apresentada Ă s demais equipes. Procure ressaltar a relação existente entre o “euâ€? e o “outroâ€?, conforme o autor citado, sem deixar de exprimir tambĂŠm a sua prĂłpria posição sobre o assunto. No trecho a seguir, Max Stirner retoma, a seu modo, os elementos da posição de Hegel acerca do reconhecimento. Note as semelhanças, mas tambĂŠm as diferenças em relação a Hegel. Max Stirner adota uma posição mais radical, que poderĂ­amos classificar como anarquista: “ ‘O que sou eu?’ – assim pergunta cada um de vocĂŞs a si mesmo. Um abismo de impulsos sem regra ou lei, sanhas, desejos, paixĂľes, um caos sem luz ou estrela guia! [‌] MilĂŞnios de cultura obscureceram para vocĂŞs aquilo que sĂŁo, fez-lhes acreditar que nĂŁo sejam egoĂ­stas coisa nenhuma, mas, ao contrĂĄrio, dignos de serem chamados idealistas (‘homens de bem’).

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Livrem-se disso! NĂŁo busquem a liberdade, que os leva bem a vagar ao entorno, em ‘auto-renegação’, mas busquem, em vez disso, a si prĂłprios, tornem-se egoĂ­stas, que cada um de vocĂŞs se torne um Eu todo-poderoso. Ou melhor: voltem a reconhecer apenas a si mesmos, reconheçam somente aquilo que vocĂŞs realmente sĂŁo, e deixem para lĂĄ seus esforços dissimulados, seu tolo anseio de ser algo diferente do que sĂŁo. [‌] SĂł de saber que nĂŁo posso impor minha vontade a um Outro (seja este Outro algo destituĂ­do de vontade, como um rochedo, ou bem um sujeito do querer, como um governo, um indivĂ­duo etc.), jĂĄ admito que a minha liberdade seja reduzida; renego minha particularidade quando eu – em face do outro – renuncio a mim mesmo, isto ĂŠ, cedo, desisto, me entrego portanto em obsĂŠquio e submissĂŁo. Pois o que estĂĄ em jogo ĂŠ um Outro, quando eu renuncio ao meu procedimento anterior porque este nĂŁo leva ao destino, assim desviando de um falso caminho; um Outro, quando eu me deixo apanhar. Um rochedo que esteja no meio do meu caminho, circundo-o atĂŠ possuir pĂłlvora suficiente para detonĂĄ-lo; as leis de um povo, circundo-as atĂŠ ter reunido forças para derrubĂĄ-las.â€? (Max Stirner, O Ăşnico e a sua propriedade. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Der Einzige und sein Eigentum. Leipzig: Reclam, 1972)

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DiscussĂŁo e desenvolvimento por escrito

Desenho de FĂŠlix Valloton (1865-1925). Paris: La Revue Blanche, 1900, vol. XXI

A virulĂŞncia de Max Stirner

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Torneio de Sumô, 2009 em Tóquio, Japão. J. Henning Buchholz/Shutterstock

As duas consciências, diz Hegel, medem-se uma com a outra, numa luta de vida e morte. Desse conflito surge a intersubjetividade, que se desenvolve até o mútuo reconhecimento.

eles são, um em relação ao outro, como objetos comuns, formas objetivas, consciências imersas no ser da vida.”

eu e o outro

(Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., p. 148. Tradução nossa)

Os dois indivíduos que se deparam consideram que o mais importante (sua “essência” e seu “objeto absoluto”) é o próprio Eu. O outro, por sua vez, não tem importância. Porém, como acabamos de ver, cada um precisa do outro, porque é o reconhecimento do outro que vai trazer uma certeza absoluta sobre sua liberdade. Você pode perceber aí que há uma contradição entre o que o reconhecimento exige – a reciprocidade – e o que cada indivíduo quer: unicamente ser reconhecido, sem reconhecer o outro, pois ele dá importância somente a si mesmo. E um dos motivos pelos quais o outro não é importante deve-se ao fato de que ele se apresenta apenas enquanto um ser vivo, em sua condição animal. Isso significa que cada um sabe que o outro também o vê dessa maneira. Ambos, o eu e o outro, querem ser reconhecidos em sua liberdade, mas o que veem um no outro é, de início, uma animalidade, uma naturalidade comum a todos os seres vivos – e na natureza uns são

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consumidos por outros para a satisfação do desejo, sob uma condição na qual os seres vivos não são realmente livres. Assim, os indivíduos precisam demonstrar reciprocamente não serem prisioneiros da condição puramente animal, que são livres, superiores aos imperativos biológicos. Vejamos como Hegel caracteriza esta condição: “A relação entre as duas consciências de si é determinada de tal maneira que elas se provam a si mesmas e uma para a outra mediante uma luta de vida ou morte. […] Só com o risco de perder a vida a liberdade se comprova. […] Cada um tem de buscar a morte do outro, tanto quanto arrisca a sua própria vida; pois para ele o outro não vale mais que ele próprio.” (Hegel, Fenomenologia do espírito, op. cit., pp. 148-149. Tradução nossa)

O processo de reconhecimento se torna uma luta de vida e morte porque cada indivíduo consciente de si considera que seu “eu” é o mais importante, e portanto tende a buscar ser reconhecido, negando-se a reconhecer o eu do outro. Por outro lado, assim como cada um

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vê inicialmente o outro enquanto animal, cada um considera que é também visto assim, em primeira instância, pelo outro, o que limita a liberdade absoluta de seu próprio “eu”. É preciso, portanto, arrogar superioridade em relação à própria vida, arriscando-a em uma luta com o outro. Cada um precisa se mostrar superior a ela, e é isso que passa a estar em jogo na luta por reconhecimento. O outro deve reconhecer em mim que sou superior, que não temo nada. Mas disso surge uma outra dificuldade, que representa uma contradição: se a luta resulta em morte, não há reconhecimento:

derrotado é aquele que preferiu viver, ao invés de morrer. Ele reconhece o vencedor como superior à vida e a si mesmo, como um indivíduo absolutamente livre. O derrotado, afirma Hegel, reconhece aquele que o venceu como seu senhor. E então torna-se o seu escravo. Reconhecimento desigual e o começo da vida em comum

“Se, dos dois que combatem entre si por seu reconhecimento mútuo, apenas um perece, nenhum reconhecimento ocorre. O sobrevivente existe tão pouco quanto o morto como um ser reconhecido. Consequentemente, por meio da livre quando o outro pédia das ciências filosófimorte sucede essa concas, op. cit., § 433. Tradutradição nova e maior: também é livre. ção nossa) aqueles que pela luta provaram sua liberdade A luta por reconheinterior não chegaram, cimento resulta assim em um reconheciporém, a nenhuma existência reconhemento desigual, unilateral. A relação entre cida de sua liberdade.” (Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 432, os dois indivíduos passa a ser uma relação adendo. Tradução nossa) de senhor e de escravo. Mas esse reconhecimento desigual é problemático e frágil. O morto não reconhece ninguém; o Ao rebaixar o outro indivíduo à situação vencedor não conseguiu assim obter o de escravo, o senhor é reconhecido de agoreconhecimento de que é superior à vida ra em diante por um ser que não é livre. É e merecedor de ser reconhecido como como se ele fosse reconhecido por uma coium ser livre. Disso resulta que a luta não sa. O verdadeiro reconhecimento não foi pode terminar em morte. Ela tampouco ainda alcançado. Mas o resultado desigual pode terminar “empatada”, pois os indida luta tem uma importância histórica: víduos aqui não estão dispostos a reconhecer a liberdade do outro, mas somen“A luta pelo reconhecimento e a subte a sua própria. missão a um senhor é o fenômeno do Resta, então, uma terceira possibiliqual proveio a convivência entre os hodade: há um vencedor e um derrotado. O mens, como um começar dos Estados.”

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“Uma vez que a vida é tão essencial quanto a liberdade, a luta se encerra antes de tudo […] com a desigualdade. Um dos lutadores prefere a vida, conserva-se como consciência de si individual, mas renuncia ao reconheciSe a liberdade mento. O outro lutador, porém, se afirma em sua consiste na relação consigo mesmo identidade de e é reconhecido pelo primim com o outro, meiro, na medida em que este é o subjugado: é então eu só sou a relação entre senhor e verdadeiramente escravo.” (Hegel, Enciclo-

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(Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 433. Tradução nossa)

Assim, para Hegel, a vida comum entre os homens surge de uma luta por reconhecimento, cujo resultado inicial é a relação de dominação. Mas se trata somente de um começo violento do Estado e da vida política. Como o resultado alcançado não é um reconhecimento recíproco, o Estado e a sociedade vão evoluir

no sentido de que todos os indivíduos sejam reconhecidos em sua liberdade. Dessa maneira, sempre conforme Hegel, a história humana será marcada por uma contínua luta por reconhecimento. Nesse processo longo e conflituoso, os indivíduos vão aprendendo aos poucos a se respeitarem e a se reconhecerem; eles aprendem, sobretudo, a reciprocidade do reconhecimento:

Abu Simbel, Templo de Ramsés II (séc. XIII a.C.) ©Foto: bbc-bve

“Só assim a verdadeira liberdade se realiza. Uma vez que a liberdade consiste na identidade de mim com o outro, então eu só sou verdadeiramente livre quando o outro também é livre, e é reconhecido por mim como tal.” (Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas, op. cit., § 431. Tradução nossa)

Na arte egípcia, uma convenção bastante utilizada era retratar o retorno bem sucedido de expedições militares com um cortejo de populações escravizadas.

A verdadeira liberdade só é alcançada com o reconhecimento recíproco: só sou livre se sou reconhecido por um outro como livre. E o outro só é livre quando ele é reconhecido por mim como livre. Cada um se relaciona consigo mesmo a partir do outro. Mas, como foi dito, essa reciprocidade não é alcançada logo de início, ela é obtida por uma história marcada por lutas em busca do reconhecimento.

eu e o outro

A defesa da tolerância

Georg W. F. Hegel[+] (1770-1831) considerava que um indivíduo só poderia ter certeza a respeito de si mesmo, de suas qualidades, se um outro o reconhecesse como possuidor delas. Cada um luta, assim, pela conquista do reconhecimento do outro. Mas há conflitos entre indivíduos, grupos e mesmo entre nações inteiras, em que o outro representa uma diferença de opinião e de crença que é percebida como intolerável pelas partes envolvidas. Apa-

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rentemente, nesses casos as partes não pretendem obter reconhecimento umas das outras, mas antes reprimir, expulsar ou mesmo aniquilar a parte supostamente contrária. Ou ainda, fazer com que a parte contrária abandone suas convicções, o que significa abandonar suas diferenças. Conflitos dessa índole foram e são muito comuns nas sociedades de todo o mundo. Eles motivaram alguns pensadores a realizar defesas da tolerância entre os seres

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“O direito natural é aquele que a natureza indica a todos os homens. Educastes vosso filho, ele vos deve respeito como a seu pai, reconhecimento como a seu benfeitor. Tendes direito aos frutos da terra que cultivastes com vossas mãos. Fizestes ou recebestes uma promessa: ela deve ser cumprida. Em todos os casos, o direito humano só pode se fundar nesse direito da na-

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tureza; e o grande princípio, o princípio universal de ambos, é, em toda a terra: ‘Não faças o que não gostarias que te fizessem’. Ora, não se percebe como, de acordo com esse princípio, um homem poderia dizer a outro: ‘Acredita no que acredito, ou morrerás’. É o que dizem, porém, em Portugal, na Espanha, em Goa. Atualmente, limitam-se a dizer, em alguns países: ‘Crê, ou te abomino; crê, ou te farei todo o mal que puder; monstro, não tens minha religião: logo não tens religião nenhuma; cumpre que sejas odiado por teus vizinhos, tua cidade, tua província’. Se fosse de direito humano conduzir-se dessa forma, caberia então que o japonês detestasse o chinês, o qual execraria o siamês; este perseguiria os gancares, que cairiam sobre os habitantes do Indo; o mongol arrancaria o coração do primeiro malabar que encontrasse; o malabar poderia degolar o persa, que poderia massacrar o turco – e, todos juntos, se lançariam sobre os cristãos, que por muito tempo já se devoram mesmo uns aos outros. O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto que nós exterminamo-nos por parágrafos.” (Voltaire, Tratado sobre a tolerância. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 33-34)

O argumento de Voltaire consiste basicamente em defender que a intolerância não se funda nem no direito natural nem no direito humano. Ele entende por direito natural o que é indicado pela natureza, independentemente das leis e dos costumes das sociedades existentes. O direito natural expressa, desse modo, o que todos os seres humanos devem e podem saber imediatamente, com base unicamente em sua razão, a respeito de suas relações com os outros. Voltaire elenca nessa passagem três regras

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humanos, entre as culturas e as religiões diferentes. Tais pensadores defendem que a intolerância é injustificável e que seja preciso respeitar as diferenças mesmo quando não se concorda com elas. A tolerância é, assim, um respeito pelas diferenças dos outros, ainda que não precisemos reconhecê-las como válidas. Os defensores da tolerância argumentam que o simples fato de que julgamos as crenças dos outros como erradas não justifica que se deva limitar de algum modo o direito deles a suas crenças e à expressão delas. Uma das mais admiráveis defesas da tolerância foi feita por Voltaire em 1762. Seu Tratado sobre a tolerância teve como motivo imediato a morte de Jean Calas (1698-1762), acusado injustamente da morte de seu filho. Como Calas era protestante, as autoridades católicas da cidade francesa de Toulouse – o catolicismo era a religião oficial na França da época – supuseram, seguindo os boatos da população, que Calas havia assassinado seu próprio filho, porque este iria se converter ao catolicismo, o que também era uma mera suposição, baseada no simples fato de que um outro filho de Calas havia se convertido a essa religião. Calas foi condenado a uma morte atroz, lenta e repleta de torturas. Ele morreu reclamando sua inocência. Voltaire se interessou pelo processo e realizou uma investigação do caso que comprovaria a inocência de Calas. A seguir, você lerá uma passagem desse tratado, em que Voltaire argumenta que o suposto direito à intolerância é completamente infundado:

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Voltaire François Marie ArouBiblioteca Russian State, Moscou.

et, conhecido como Voltaire (1694-1778), foi possivelmente o filósofo mais lido na Europa

no

século

XVIII, tendo sido, ao lado de Denis Diderot (1713-1784), Jean Le Rond D’Alembert (1717-1783) e Jean-Jacques

Rousseau

(1712-1778), um dos maiores expoentes do Iluminismo. Este movimento, também chamado de Filosofia das Luzes ou Esclarecimento, caracterizou-se por combater formas de superstição, despotismo e de opressão vigentes no Antigo Regime. No âmbito da filosofia, este clamor pela liberdade se expressou na grande diversidade de formas utilizadas pelos iluministas para difundir suas ideias. Diferentemente da maioria dos filósofos do século precedente, que escreveram suas obras na forma de tratados sistemáticos, os iluministas recorreram a expedientes literários tais como a fábula, o conto, o romance e o drama, ampliando as possibilidades formais da reflexão filosófica. Voltaire, por exemplo, redigiu tragédias com forte apelo moral, além de narrativas que se tornaram mundialmente conhecidas, como Zadig ou o destino (1748) e Cândido ou o otimismo (1759). Também empreendeu a redação e publicação de um Dicionário filosófico (1764),

Para Voltaire, o “direito humano”, o direito feito pelos seres humanos, deve se fundar no direito natural. Isso significa que eles possuem o mesmo princípio, aquele segundo o qual cada um não deve fazer ao outro o que não deseja para si mesmo. Observe que se trata de uma obrigação, de um dever, um imperativo: “não faças…”. O direito natural, assim como o direito criado pelos homens, envolve não apenas a liberdade de fazer isso ou aquilo, mas também a lei que restringe essa liberdade, de modo que cada um limita a sua liberdade para não prejudicar o outro. Cada um sabe naturalmente o que pode prejudicar o outro, pois cada um sabe o que poderia prejudicar a si mesmo. Em seguida, Voltaire indica que todos os princípios da intolerância são incompatíveis com esse grande princípio, que é o mesmo no direito natural como no direito criado pelos homens. Voltaire não está dizendo que não há leis opostas àquele princípio, pois as leis podem ser intolerantes. Trata-se de apontar que, se elas são intolerantes, vão contra o princípio do direito natural e, com isso, do direito humano, que se funda naquele e tem em seu cerne o mesmo princípio. Se uma lei exige que alguém morra – ou se torne alvo de abominação – por não comungar da mesma religião da maioria, é evidente que tal lei contraria aquele princípio, uma vez que o eventual defensor de semelhante lei certamente não concordaria em ser assassinado ou vilipendiado em razão de suas próprias crenças.

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com o qual buscou popularizar a filosofia. Eis uma boa edição de seus contos filosóficos: Voltaire, Micromegas e outros contos. Tradução: G. Marcolin. São Paulo: Hedra, 2007.

simples: os filhos devem respeitar os pais, porque estes os educaram e criaram; os seres humanos podem ter o direito de propriedade sobre os resultados de seu trabalho; as promessas devem ser cumpridas.

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A intolerância poderia ser direito de alguns? Voltaire acrescenta um segundo argumento, que consiste em aceitar a hipótese de que a intolerância é um direito humano, que os seres humanos poderiam adotá-la legitimamente, para então verificar quais seriam suas consequências. Observe que se trata de uma mera hipótese, descolada do argumento anterior, já que este funda

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todo o direito criado pelos homens no direito natural, e no princípio de não fazer ao outro o que não se quer para si mesmo. As consequências do suposto direito à intolerância, enquanto direito que os homens poderiam adotar em toda parte, levaria a uma barbárie sem fim. Uma

barbárie que acontece, constata o filósofo, entre os cristãos, pois eles se agrediam uns aos outros havia muito tempo. Nesse ponto, Voltaire se refere a conflitos entre protestantes e católicos, que perduraram por séculos e arrastaram as nações europeias a guerras longas e terríveis.

GUERRAS ENTRE CRISTÃOS Heinrich Heine Universität Düsseldorf

É preciso compreender o cenário a partir do qual Voltaire formula seu libelo de tolerância religiosa. Esse contexto não é exclusivo de seu tempo, mas nutre-se da maneira como se articularam as mentalidades e acontecimentos dos séculos passados. A história europeia da segunda metade do séc. XVI foi especialmente marcada por intensos conflitos entre grupos cristãos de diversa confissão e suas respectivas forças políticas. A França, dentre outras regiões, foi palco de desentendimentos que

Gravura de Franz Hogenberg (1535-1590)

desembocaram em francas guerras civis (1562,

publicada em 1576 que retrata atrocidades

1567-68, 1572…). Como isso chegou a ocorrer?

cometidas na noite de São Bartolomeu.

muitos pregadores calvinistas, que aos poucos

(mãe de Carlos IX, rei de França) dera sinais de

foram capazes de reunir um grupo relevante

que buscava uma reconciliação entre as mais

no plano social e político, opondo-se à orien-

poderosas famílias da aristocracia francesa, ao

tação religiosa do governo central, que era

propor o matrimônio entre sua filha Margarida

católica. Esses grupos calvinistas, que incluíam

e Henrique de Navarra. O acordo buscava con-

membros da alta aristocracia francesa, foram

solidar a paz também com o reino da Espanha.

apelidados (pejorativamente) de Huguenotes.

Mas, tendo-se reunido em Paris uma multidão

Durante certo tempo, esperava-se que

de pessoas – inclusive milhares de calvinistas –

uma solução teológica pudesse conformar

para acompanhar a celebração do casamento,

os cristãos católicos e reformados sob uma

Catarina vê aí uma oportunidade sem igual para

mesma égide, num desejado cenário de paz.

eliminar as lideranças huguenotes.

Mas o Concílio de Trento (1545-1563) pôs essa

A ideia inicial era assassinar apenas alguns

possibilidade por água abaixo, ao promulgar

líderes-chave. A situação, porém, lhe escapa

uma política de combate à expansão protes-

do controle, e o que se vê nessa noite (conhe-

tante (no movimento que passou a ser conhe-

cida como noite de São Bartolomeu) e nos

cido como Contra-Reforma), terminando por

dias seguintes é um massacre de grandes pro-

radicalizar a oposição entre uns e outros.

porções. Os eventos foram romanceados por

Um acontecimento notório, que de certo

Alexandre Dumas em seu célebre livro A rainha

modo simboliza o ápice da violência e da into-

Margot (1845), por sua vez base de numerosas

lerância entre cristãos católicos e protestantes,

adaptações para o palco, o cinema e a tevê,

deu-se em Paris na noite de 23 de agosto de 1572

entre eles o filme homônimo de produção

e nos dias que se seguiram. Catarina de Medici

francesa (1994, direção de Patrice Chéreau).

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eu e o outro

A partir de 1555, o país começara a receber

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eu e o outro

Calvin & Hobbes, Bill Watterson © 1995 Watterson / Dist. by Universal Uclick

Conclusão de Voltaire: o direito à intolerância é absurdo, o que significa dizer que ele não é um direito, pois vai contra o princípio que está na base de todo direito (tanto do direito natural quanto no direito criado pelos seres humanos). Mais uma vez é preciso observar que, com isso, ele não quer dizer que os seres humanos não criam leis intolerantes. Ele quer dizer somente que essas leis contrariam o direito – e por isso não devem ser consideradas como próprias do direito. E que esse “direito à intolerância” é bárbaro, situando-se em um nível abaixo da animalidade, pois as feras atacam por comida, enquanto os seres humanos se matam por conta dos textos que consideram sagrados. No entanto, há uma outra conclusão que também podemos extrair desse argumento. Se Voltaire defende que a intolerância é incompatível com o direito, tanto o natural quanto o humano, então resta concluir que a tolerância (conceito oposto ao de intolerância) e o direito são compatíveis entre si. Nesse caso, a tolerância significa não fazer contra o outro o que não se deseja para si mesmo. O respeito pelas opiniões e crenças dos outros é o mesmo que se almeja para as próprias opiniões e crenças. Cabe acrescentar que para Voltaire esse respeito não equivale necessariamente a concordância: pode-se respeitar as opiniões alheias, mesmo considerando-as erradas.

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Mas você pode se perguntar: devemos ser tolerantes até mesmo com os intolerantes? Não haveria limites para a própria tolerância, quando ela, aplicando--se aos intolerantes, corre o risco de ser destruída por eles? Não haveria casos em que deveríamos ser intolerantes

Tolerância e intolerância nos dias de hoje Debate em sala de aula e apresentação de seminário • Faça com colegas um painel de discussão sobre a questão da tolerância hoje. Busque primeiro identificar mediante consulta à imprensa eventos ligados ao tema da tolerância. Em seguida, elabore uma apresentação em grupo para os demais alunos da sala, enfatizando pontos como o reconhecimento das diferenças e o convívio – pacífico ou não – entre crenças religiosas diversas; por fim, reflita, de preferência tendo em vista um caso concreto tirado da imprensa ou da história, sobre a questão: devemos ser tolerantes com os intolerantes? Apresentem os resultados na forma de seminário para os demais colegas de classe.

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para com os intolerantes em nome da própria tolerância? Voltaire considera que sim, que há casos em que a intolerância é razoável, na medida em que combate os intolerantes: “Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes quando perturbam a sociedade; perturbam a sociedade a partir do momento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens comecem por não ser fanáticos para me-

recer a tolerância.” (Voltaire, Tratado sobre a tolerância, op. cit., p. 105)

O governo não deve punir os “erros”, isto é, certas doutrinas e crenças, a não ser que elas fomentem o fanatismo, e, com isso, os crimes. Como o fanatismo leva ao crime, é preciso ser intolerante com ele. Os limites da tolerância coincidem assim com aquilo que protege os tolerantes da ação dos intolerantes. Dito de outro modo, a aceitação das diferenças pressupõe recusar aqueles que não aceitam as diferenças, os quais Voltaire designa como “fanáticos”.

Você sabia que os nazistas chega-

eleitorado. Mas esse quadro iria

ram ao poder na Alemanha sem

se alterar rapidamente.

que, para isso, tivessem promovido

Em novembro de 1932, o partido

qualquer ruptura da ordem cons-

nazista obteve apoio de 37% do

titucional? De modo paradoxal, o

eleitorado. Isso fez com que Hitler

sistema democrático alemão, exis-

se tornasse chanceler da Alemanha

tente após a Primeira Guerra Mun-

em janeiro de 1933. Daí em diante,

dial (1914-1918) e conhecido com

os nazistas, sob a liderança de Hi-

Biblioteca do Congresso, Washington DC

Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images

o nome de “República de Weimar”,

Thomas Mann

tler, suprimiram todo tipo de mani-

possibilitou que um movimento

festação que não professasse sua

político contrário à democracia che-

ideologia. Naquele mesmo ano de

gasse pacificamente ao poder.

1933, foram reprimidas reuniões do

O movimento nazista, liderado por

Partido Comunista da Alemanha e

Adolf Hitler (1889-1945), surgiu

do Partido Social-Democrata da Ale-

como um partido político – o Par-

manha, e em apenas duas semanas

tido Nacional-Socialista, fundado

foram presos 10 mil comunistas ale-

em 1920. Hitler e seus correligio-

mães, assim como líderes dos social-

nários tentaram tomar o poder

-democratas.

através da força em novembro de

Bertold Brecht

Diversos intelectuais e cientistas

1923, mas a iniciativa fracassou

de renome, como Thomas Mann

e Hitler foi julgado e condenado

(1875-1955), Bertold Brecht (1898-

à prisão, onde permaneceu por

1956) e Albert Einstein (1879-1955),

pouco mais de um ano. Em segui-

pressentindo que a ditadura iria

da, Hitler voltou às atividades polí-

recrudescer, deixaram o país no

ticas e buscou ampliar a populari-

ano de 1933. Os nazistas só foram

dade do partido nazista, que, toda-

desalojados do poder em maio

via, obteve resultados medíocres

de 1945, com a vitória dos aliados

nas eleições de 1928 na Alemanha,

sobre a Alemanha, no término da

com menos de 3% de apoio do

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Albert Einstein

Segunda Guerra Mundial.

eu e o outro

Corbis/Latinstock

A ORIGEM DO PODER NAZISTA

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Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro

Eduardo de Sá (1866-1940), Leitura da Sentença (óleo sb/ tela, s.d.). A obra retrata o momento em que Tiradentes (1746-1792) recebe sua sentença de morte.

unidade 8 A tragédia de Édipo ........................ 225 Estoicismo e a necessidade do universo .................. 227 A origem da ideia de necessidade ...........

235

Necessidade natural e liberdade humana ................... 238

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liberdade e necessidade

A

ideia de que um destino inflexível governa certos aspectos de nossas vidas é mais comum do que pode parecer à primeira vista. Pense, por exemplo, na reação que muitas pessoas têm quando estão diante de situações trágicas ou catastróficas, como terremotos, inundações etc.: “estava escrito que isso iria acontecer”... Como se, confrontados com aquele acontecimento terrível, não tivéssemos nenhuma capacidade de escolha, nenhuma liberdade de ação. Dizer que um evento estava “destinado a acontecer” equivale dizer que ele seria necessário.

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A tragédia de Édipo

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tas da cidade de Tebas, vai de encontro a um monstro, a esfinge, que mata todos os que se aproximam, propondo-lhes um enigma dificílimo. Mas Édipo soluciona o enigma e livra a cidade da terrível esfinge. Como recompensa, torna-se rei de Tebas, casando-se com a rainha, cujo marido tinha sido assassinado. Tempos depois, a cidade é tomada pela peste, causada por um deus, Apolo. Essa peste só será interrompida pelo deus quando se descobrir quem matou o antigo rei. Édipo passa então a investigar. E descobrirá que seu verdadeiro pai era esse rei, Laio. Descobrirá também que o velho que ele matou naquela encruzilhada era Laio,

liberdade e necessidade

Metropolitan Museum of Art, Nova York.

Talvez você já tenha assistido à apresentação teatral de uma tragédia grega – ou lido seu roteiro em livro – como as que eram encenadas na cidade de Atenas há muitos séculos, mais precisamente no século V a.C. Infelizmente, das muitas dezenas de obras escritas por alguns tragediógrafos (poetas que elaboravam as tragédias), restaram-nos apenas cerca de trinta. Uma delas se chama Édipo rei, composta por Sófocles (496-406 a.C). Nela, rei e rainha de uma importante cidade, Tebas, ficam sabendo de uma maldição que os envolve: se tiverem um filho, ele estará destinado a matar o pai. Essa maldição é comunicada por adivinhos e é uma determinação dos deuses (os gregos antigos eram politeístas, isto é, acreditavam em vários deuses). Apesar da profecia, o rei e a rainha de Tebas geram um filho. Então, para evitar a maldição, o rei amarra os pés do bebê e ordena que sua mulher o mate. Ela, porém, é incapaz de destruir o fruto de seu ventre e o entrega a um criado, para que ele o faça. Mas o criado encarregado da tarefa também não consegue cumprir as ordens à risca. Tendo levado o bebê até o alto de uma montanha, para que lá morresse sozinho, acaba entregando-o a um pastor, que o leva para a cidade de Corinto. Lá, o bebê é dado ao rei Políbio, que não tinha herdeiros e passa a criá-lo como se fosse seu filho. Essa criança, Édipo (que quer dizer “o que tem pés inchados”), crescerá pensando ser filho de Políbio. Um dia, vindo a saber que está destinado a matar o próprio pai e desposar a mãe, vai embora, para evitar que a profecia se realize. Durante sua viagem, numa encruzilhada, encontra um homem já idoso, acompanhado de seus servidores. Desentendendo-se com eles, mata esse homem e segue seu caminho. Chegando às por-

Ao decifrar o enigma lançado pela esfinge, Édipo libertou Tebas de sua maldição. (Gustave Moreau [1826–1898]. Édipo e a esfinge. Óleo sb/ tela, 1864)

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seu pai, e que a esposa dele, Jocasta, com quem Édipo depois se casou e teve filhos, ĂŠ sua mĂŁe. A maldição foi cumprida. Diante da desgraça, Édipo fura os prĂłprios olhos e deixa a cidade, exilado. Vale a pena focar um trecho da peça, logo apĂłs a funesta revelação. Nele, o coro (grupo de atores que representa os anciĂŁos da cidade de Tebas) e Édipo lamentam os acontecimentos: “Coro: Que coisas terrĂ­veis vocĂŞ fez, que ousadia destruir seus olhos assim? Qual dos deuses o moveu? Édipo: Amigos, ĂŠ obra de Apolo, ĂŠ Apolo o executor destes meus males, destes meus sofrimentos. Mas sĂł eu e ninguĂŠm mais, com minhas mĂŁos, ousei fazĂŞ-lo, infeliz que sou. Por que eu deveria ver, se nada agradĂĄvel havia aos olhos para ver?â€? (SĂłfocles. Édipo

liberdade e necessidade

rei, versos 1327-1334. Tradução nossa. Edição de referência: Sophoclis fabulae. Oxford Classical Texts. Oxford University Press, 1987)

Observe que o coro acredita que Édipo sĂł pode ter se cegado por ordem de algum deus. HĂĄ aqui uma importante relação entre as ordens divinas e uma espĂŠcie de necessidade: para o coro, Édipo nĂŁo teria furado seus olhos se nĂŁo tivesse sido obrigado, forçado por uma ordem divina. Sendo os deuses superiores aos homens, o que eles determinam deverĂĄ necessariamente acontecer. De fato, lembre-se que aquela maldição lançada sobre a famĂ­lia de Édipo havia sido determinada pelos deuses e que, por mais que Édipo e seus pais tenham tentado fugir dela, ela se cumpriu. Quando Édipo abandonou a cidade de Corinto pensando assim escapar ao seu destino, na verdade ele corria em direção a ele. JĂĄ estava entĂŁo determinado de antemĂŁo que Édipo mataria o pai e teria filhos com a mĂŁe? Uma coisa ĂŠ certa: todos os seus esforços para evitar que isso acontecesse foram inĂşteis. Édipo estava, di-

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gamos assim, destinado Ă desgraça e era impotente para evitĂĄ-la, embora nĂŁo soubesse disso. Essa ideia de destino ĂŠ muito importante na cultura dos gregos antigos, pois eles entendiam que os acontecimentos estavam, de algum modo, anteriormente determinados. AtĂŠ mesmo os deuses estavam sujeitos ao destino. Isso levava os gregos a interpretar os grandes fatos com base nessa ideia. Voltemos um instante ao trecho de SĂłfocles citado hĂĄ pouco. Observe bem a resposta de Édipo ao coro. Chama a atenção que Édipo reconheça que sua desgraça foi causada pela vontade de um deus e que, por isso, ele nĂŁo tinha nem teria poder para evitĂĄ-la. Mas Édipo tambĂŠm afirma que a decisĂŁo de se cegar foi, essa sim, de sua inteira responsabilidade. EntĂŁo, podemos concluir que dependeu exclusivamente dele a decisĂŁo de furar seus olhos, embora ele nĂŁo fosse livre para desfazer aquela maldição a que foi destinado. De inĂ­cio, ele acreditava ser livre tambĂŠm para isso. Mas vem depois a descobrir que nunca possuĂ­ra outra opção alĂŠm dessa. AĂ­ estĂĄ o que torna essa tragĂŠdia tĂŁo poderosa: durante a maior parte de sua trajetĂłria, Édipo se julgava capaz de fazer o que quisesse – para entĂŁo descobrir que suas tentativas de escapar da maldição estavam fadadas ao fracasso, independentemente de sua vontade. Édipo se sentia livre quando fugia de seus falsos pais e achava que estava evitando a maldição, assim como se sentiu livre ao se cegar. Mas descobriu que sĂł foi realmente livre nessa Ăşltima escolha... Talvez essa diferença esteja presente tambĂŠm em situaçþes corriqueiras, experimentadas por nĂłs. Quando digo a mim mesmo: “sou livre para fazer o que quiser, atĂŠ mesmo abandonar meus compromissos e sair viajando pelo mundoâ€?, expresso um sentimento de liberdade, uma espĂŠcie de desejo de ser livre. Mas

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o que garante que eu realmente possa fazer isso? Não estarei, muitas vezes, em situação semelhante à de Édipo? É claro que posso abandonar tudo que estive fazendo até agora e fazer algo diferente (mesmo que não consiga sair viajando pelo mundo), enquanto, na peça, Édipo não podia evitar sua desgraça. Mas é frequente que nossos sentimentos ou desejos de liberdade encontrem uma série de obstáculos, que muitas vezes terminam nos fazendo deixá-los de lado. E isso aponta para uma conclusão importante. Não é por que me sinto livre que sou livre. O caso de Édipo ilustra bem a distância que pode haver entre uma coisa e outra. Sentir-se livre foi, para ele, uma grandiosa ilusão, porque algo mais poderoso do que esse sentimento se impôs à sua existência, como uma necessidade. Isso nos conduz então a uma pergunta: nesse sentido de liberdade, que não é nem jurídico, nem político, mas que está tão

Édipo: responsável ou não? Debate em sala de aula Aprofunde seu conhecimento sobre a tragédia de Sófocles. Há mais de uma tradução da obra para o português e você pode encontrar algumas delas na internet, com livre acesso (procure, por exemplo, no site www.dominiopublico.gov.br, mantido pelo Ministério da Educação). • Depois disso, e em colaboração com um(a) colega, discuta na sala de aula essa questão: Édipo, em sua opinião, é ou não responsável pelos atos que cometeu, assassinar seu pai e casar-se com sua mãe?

presente em nossas vidas, pode haver realmente uma liberdade de fato, que não seja apenas uma sensação que tenho em mim?

Diante de uma catástrofe natural de grandes proporções, é comum que as pessoas tenham reações como essa: “Era mesmo para acontecer, não havia nada a fazer quanto a isso.” A convicção de que o acontecimento se deveu a uma vontade alheia a nós, superior e inquestionável, ajuda-nos a suportá-lo. “Estava escrito, era mesmo para acontecer”, isso, de algum modo, consola e conforta, dando uma resposta à pergunta: “Por que isso aconteceu comigo?”. Esse tipo de raciocínio possui inclusive um alcance mais amplo. Uma vez que, de antemão, considero essas razões superiores a mim e mais poderosas do que qualquer atitude que eu pudesse tomar para alterá-las, posso até mesmo ignorar as causas dos acontecimentos em pauta. Nesse caso, não me vejo como sendo o

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principal responsável pelo que ocorre ao redor de mim e até comigo. Só que, ao mesmo tempo, percebo que os acontecimentos ocorrem de uma forma sistemática, com mais ou menos ordem, o que sugere a presença de algum tipo de organização neles. Em vista da aceitação dessas premissas, uma pergunta irá se colocar de forma quase espontânea: quem, afinal, organiza o universo, de modo que as coisas aconteçam assim e não assado? Se não sou eu, é quem? Na história da filosofia, a primeira grande tentativa de atribuir a todos os acontecimentos uma inevitável necessidade, com base na existência de uma racionalidade divina que administra o mundo, foi feita pelo pensamento estoico. Os estoicos – assim chamados porque o fundador da escola, um certo Zenão, originário da ilha de Chipre, estabeleceu

liberdade e necessidade

Estoicismo e a necessidade do universo

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liberdade e necessidade

como lugar da escola uma região próxima a um dos pórticos (stoá, em grego) de Atenas – foram os primeiros pensadores a defenderem a tese de que o mundo é um grande sistema de coisas e eventos. Ao sustentarem que o mundo é um sistema de seres e acontecimentos, um todo que é ordenado por uma razão divina inerente à natureza, a filosofia estoica teve de lidar em profundidade com o tema das relações entre liberdade e necessidade. Os estoicos, por causa de alguns princípios que fundavam seu pensamento, viram-se diante da tarefa de tentar conciliar essas duas ideias. Eles o fizeram de forma muito interessante, com grandes consequências para os rumos posteriores da filosofia. Observemos, então, esses princípios característicos, reconhecíveis em algumas passagens de textos. Leia o trecho abaixo:

“Os estoicos dizem que o mundo é uma unidade que contém em si todos os seres; dizem que ele é governado por uma natureza viva, racional e inteligente, e que esse governo dos seres que possui é eterno e procede por certa sequência e ordem, já que coisas anteriores se tornam causas para as que ocorrem depois. Desse modo, tudo está ligado e não há nenhum evento no mundo do qual não se siga outro, como sua consequência; e um evento posterior não pode estar desassociado de eventos anteriores, a ponto de não ser uma consequência de um deles. Mas de tudo que acontece se segue alguma outra coisa, que dela necessariamente depende como de uma causa, e tudo que acontece tem algo anterior de que depende, como de uma causa. Pois nada no mundo existe e acontece sem uma causa, porque nada nele está desvinculado e separado de tudo o que aconteceu antes. Pois o mundo, eles dizem, seria desarticulado e dividido, e não mais permaneceria uma

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unidade, governado sempre conforme uma única ordem e organização, se nele fosse introduzida uma mudança sem causa [...] Eles dizem, com efeito, que ocorrer algo sem uma causa é tão impossível quanto algo ocorrer a partir do que não existe. Sendo de tal forma, o governo da totalidade dos seres ocorre infinitamente, de modo evidente e sem cessar [...] Eles dizem que o próprio destino, a natureza e a razão de acordo com o qual o todo é governado, é deus, e que está em todos os seres e acontecimentos,

O ESTOICISMO ANTIGO O estoicismo foi uma das mais influentes correntes filosóficas da Antiguidade. Infelizmente, restaram-nos poucas obras escritas pelos estoicos. Costuma-se dividir em três períodos diferentes a história do estoicismo. O “estoicismo antigo”, nos séculos IV-III a.C, cujos principais representantes foram o fundador Zenão (334-262 a.C.), seu discípulo Cleantes (c. 330-230 a.C.) e o discípulo deste, Crisipo (280-207 a.C.). O “estoicismo médio”, nos séculos II-I a.C., com Panécio (185-10 a.C.) e Posidônio (135-51 a.C.). E o “estoicismo romano”, com Sêneca (4 a.C.-65 d.C.), Epiteto (55-135) e Marco Aurélio (121-180), nos séculos I-II d.C. Possuímos os escritos dos estoicos romanos (a Unidade Razão e paixão aborda um deles, no módulo “A rejeição das paixões”), mas, dos escritores dos outros períodos, apenas fragmentos. Essa corrente filosófica se manteve bastante uniforme durante cerca de quinhentos anos. No entanto, muitas vezes o que conhecemos da filosofia estoica provém de autores que a expuseram para poder criticá-la, dificultando, para nós, uma compreensão segura dessa filosofia. – Uma observação útil: cuidado para não confundir Zenão (334-262 a.C.), o fundador da escola estoica, com outro Zenão, o de Eleia (489-431 a.C.), discutido na Unidade Finito e infinito.

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(Alexandre de Afrodísia, Sobre o destino, 191, 30 – 192, 28. Tradução nossa)

Observe quais são, nessa passagem, as principais afirmações atribuídas pelo autor do trecho citado aos estoicos: a existência de uma “natureza viva, racional e inteligente”, que governa o mundo. A isso chamam também de “destino” e “deus”. A associação entre termos como “razão” e “destino” ou “natureza” e “deus” não é tão comum. Mas os estoicos identificam tudo isso. Para eles, afinal, essas palavras dizem a mesma coisa, têm o mesmo significado. O que os leva a essa conclusão? Parece que eles a extraem de algo que se apresenta e que se explica quando falamos nessa “unidade” ou “ser vivo” que é o mundo: o fato de que existem mudanças, de que acontecimentos se seguem uns aos outros, só pode ser explicado por meio de uma compreensão sistemática e coerente das coisas. É inegável que os acontecimentos se sucedem, isto é, que ocorrem numa certa sequência. Afirmar que eles compõem uma unidade significa pretender que estão concatenados rigorosamente. Os acontecimentos se relacionam como “causas” e “efeitos”. Ora, segundo os estoicos, todos os acontecimentos devem estar relacionados assim. A razão para isso é que nenhum acontecimento pode se dar sem uma causa. Então, as causas de cada evento devem ser ligadas entre si, uma após a outra, numa cadeia incessante. Por isso, pode-se concluir que o mundo, como um grande conjunto de seres e eventos, está todo ele constituído como uma grande unidade, um ser vivo, um organismo, com partes que se associam. Os estoicos não parecem considerar a possibilidade de que a causa para que algo aconteça possa ser indeterminada, ou seja, que possa haver uma causa imprevista para algo. E eles parecem se basear no

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Alexandre de Afrodísia Alexandre de Afrodísia (sécs. II-III d.C.) viveu em Atenas e foi um estudioso de Aristóteles. Comentou e divulgou diversas obras aristotélicas em Atenas e Alexandria. Seus escritos se tornaram uma importante fonte para os estudos sobre o aristotelismo. O texto de sua autoria citado nesta Unidade, Sobre o destino, foi editado na coletânea de A. A. Long & D. N. Sedley (orgs.), The Hellenistic philosophers, vol. 2, Cambrigde University Press, 1997, com textos originais em grego e latim, além de sua tradução para o inglês.

fato de que realmente o mundo se apresenta a nós como um gigantesco conjunto de fatos dotados de necessidade. Pensemos em um exemplo banal como o da pedra solta no ar, que então cai. Ela não cai à toa, por acaso, mas, dirão os estoicos, é seu “destino” comportar-se assim, e é “racional” e “necessário” que assim seja. Virtude e necessidade Essa tese é bastante polêmica e forte, tendo provocado objeções. Mas vale a pena tomar conhecimento da forma como os estoicos a estabeleceram. Para os estoicos, o próprio mundo se comporta como um ser vivo, e isso não deve ser entendido como uma imagem poética ou uma metáfora. O mundo, para eles, é de fato um ente, que contém em si uma “alma”. Seu comportamento obedece às determinações dessa racionalidade que está presente nele. Como argumentaram em favor disso? Observemos a passagem a seguir: “[...] o que pode ser tão manifesto e evidente, quando olhamos para o céu e contemplamos os corpos celestes, quanto a existência de uma divindade de intelecto superior que os governa?... Assim como, se um homem vai a uma casa, ginásio ou fórum, quando vê a

liberdade e necessidade

assim utilizando a natureza própria de todos os seres para o governo do todo.”

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liberdade e necessidade

deuses, II, 4-15. Tradução nossa)

O argumento parece ser o seguinte: nós sabemos, com base em nossas próprias criações artificiais (como uma construção, por exemplo), que há nas produções humanas um plano inteligente, uma finalidade preestabelecida. Uma construção bem feita, com proporção e ordem, é sinal de um criador dotado de inteligência e racionalidade. Ora, diz o argumento, se olharmos para os eventos naturais – por exemplo, os movimentos e fenômenos celestes –, notaremos que eles apresentam ordem e proporção. Portanto, deve haver um ser inteligente que é sua causa e que os torna possíveis e reais. Para os estoicos, somente somos capazes de compreender a natureza quando tomamos a nós mesmos como ponto de partida, justamente porque somos uma parte da natureza, ou seja, porque não poderíamos nos compreender a nós mesmos senão como seres naturais. Os estoicos defendiam o lema “viver de acordo com a natureza”, que entendiam como idêntico a “viver de acordo com a virtude”. As ações humanas também estão associadas a essa grande racionalidade divina que governa o mundo, elas são também uma parte de um

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todo mais amplo. Se há um “destino” presente em todos os eventos naturais, e o homem é componente da natureza, seus atos também estão, digamos assim, “destinados” a ocorrer de certo modo. Assim, para os estoicos, há uma ética a ser seguida pelo homem que conhece a natureza, o “sábio”, que nada mais é do que uma conduta natural, que obedece ao próprio modo como a natureza se comporta. Na linguagem técnica da filosofia, essa concepção do estoicismo antigo dá origem a uma “metafísica da natureza” – a noção de uma ordem de base, anterior

Cícero Marco

Túlio

Cícero

(103-43 a.C.) foi um dos homens mais notáveis do período que marcou o fim da República Romana. Advogado, orador, homem político e filósofo: é até difícil defini-lo de acordo com suas tantas (e tão influentes) atividades na vida pública de Roma. Tendo chegado ao mais alto cargo da república (cônsul, em

Gunnar Bach Pedersen Thorvaldsens Museum, Copenhagen

proporção, método e ordem de todas as coisas, não pode julgar que foram feitas sem causa, mas sim compreende que existe alguém que as dirige e submete, ainda mais, a respeito dos monumentais movimentos, dos muitos procedimentos ordenados de tantas coisas gigantescas, nas quais nunca o mais remoto e incontável passado em nada foi desmentido, é necessário que ele conclua que tamanhos movimentos naturais são governados por algum intelecto” (Cícero, Sobre a natureza dos

63 a.C.), em muitos momentos críticos da democracia romana tomou para si o papel de seu defensor. Sua relação com Caio Júlio César – que viria a se tornar ditador vitalício de Roma, abrindo caminho para o futuro sistema de governo do império – foi marcada por atitudes ambíguas, aproximações e rivalidades. Da extensa obra de Cícero, são muito lidos e estudados o seu livro sobre a retórica, suas cartas (além de documentos históricos, também apreciadas enquanto literatura), os discursos políticos e os livros filosóficos, em que expressa o pensamento estoico romano. Dentre estes, encontramos os livros Sobre os deveres, Sobre o destino, Sobre a natureza dos deuses e diversos outros.

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fado: essas palavras exprimem a ideia de que não escolhemos o destino. (Jan Theodore Toorop [1858-1928], Fatalidade (giz e lápis sobre papel, 1893)

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à negação da responsabilidade de cada um ao executar uma dada ação. Para compreender o problema, observemos a seguinte passagem de Cícero. Nela, este pensador estoico apresenta uma objeção levantada contra o posicionamento estoico por ele mesmo defendido – uma objeção que se tornou conhecida sob uma denominação curiosa, a do “argumento preguiçoso”: “[...] que não nos impeça o ‘argumento preguiçoso’ [...] se o aceitarmos, nada mais faremos na vida. Formulam-no assim: ‘se é seu destino recuperar-se desta doença, chamando um médico ou não chamando um médico, você vai se recuperar. Do mesmo modo, se é seu destino não se recuperar, chamando um médico ou não chamando um médico, você não vai se recuperar. Portanto, não adianta nada chamar um médico’.”

liberdade e necessidade

à própria ordenação da natureza. Para os estoicos, é essa ordem mais elevada que fundamenta a moralidade humana, o modo como devemos agir no mundo. Mas isso também coloca o estoicismo diante de um problema – pois em filosofia, como você provavelmente já percebeu, uma solução quase sempre abre novas questões, cada resposta engendra um novo questionamento, requerendo que todas as vias da reflexão sejam percorridas e bem mapeadas. O mesmo problema é vivido por Édipo, personagem de Sófocles (496-406 a.C.). Desde antes que nascesse, uma terrível maldição rondava sua existência. Édipo era ou não livre em seus atos? Se tudo está destinado a acontecer de um certo modo, isso não torna impossível a liberdade na ação humana? Então, tudo o que fazemos – sobretudo nossos atos de valor moral – não depende em nada de nós? Os estoicos logo se deram conta de que uma visão radicalmente sistemática do mundo, da natureza e do homem, conduziria a uma possível objeção de caráter moral: se tudo está preestabelecido e determinado, não há lugar para avaliações e julgamentos morais – o que poderia levar

Jan Theodore Toorop. Rijksmuseum Kroller-Muller, Otterlo, Holanda

Fatalidade, sina,

(Cícero, Sobre o destino, 28-30. Tradução nossa. Edição de referência: De fato, Paris: Les Belles Lettres, 1973)

Os adversários dos estoicos, ao formular tal argumento, querem extrair a indesejada consequência de que fazer seja o que for de nada adianta, de que, portanto, “nada mais

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faremos na vida”. Apontam, portanto, para a indiferença moral da ação. Se tudo já está destinado a acontecer de um modo ou de outro, não importa o que fazemos. Embora o argumento pareça apenas concluir que “não adianta nada” fazer qualquer coisa – daí sua denominação de “preguiçoso” –, ele tem consequências mais graves: ninguém poderia me censurar, se, por exemplo, eu cometesse um ato bárbaro, porque tudo estava “destinado” a acontecer assim. A presença da necessidade, do destino, nesse caso, significa a total supressão e ausência de liberdade, e isso faz com que não haja mais nenhuma distinção moral a

ser feita. Assim como posso deixar de fazer qualquer coisa, se tudo estiver predeterminado, assim também posso fazer o que quiser, sem que se possa me censurar e punir, porque também isso estava predeterminado. A relação de exclusão entre necessidade e liberdade se torna, agora, uma ameaça à própria ideia de moral. Destino e responsabilidade moral Note que a ideia de liberdade aparece como uma espécie de condição para que se possa julgar uma ação como moralmente boa ou má: se executo um ato reprovável, só posso ser recriminado moralmente se o tiver executado de livre e espontânea von-

A responsabilidade das ações

liberdade e necessidade

Pesquisa individual e discussão em grupo

Na Unidade Razão e paixão (módulo “Uma espécie que se diz racional”), são discutidos aspectos ligados a casos nos quais réus de ações criminais têm sua pena atenuada quando sua defesa alega que eles fizeram o que fizeram “sob influência de violenta emoção”. O argumento jurídico examinado ali pode ser aproximado de nosso debate sobre a liberdade, pois a responsabilidade do agente para com sua ação é relativizada. Portanto, até certo ponto, sua ação não é “imputável” (isto é, não se pode atribuir à pessoa a responsabilidade por seus atos). Em casos assim, a defesa pode alegar que o acusado não agiu conforme sua razão, não sabia o que estava fazendo e que, por isso, sua ação não proviria de uma decisão livre. Como se o seu agir fosse baseado unicamente na necessidade das emoções, logo, sem liberdade. Por aí argumenta-se que o agente estaria total ou parcialmente isento de respon-

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sabilidade, “inimputável”. • Em uma equipe contendo entre três e cinco integrantes, discutam situações concretas envolvendo as noções de liberdade e necessidade no âmbito moral e jurídico. Para ordenar o debate, vocês podem seguir esses passos: 1) Pesquisem individualmente, fora da aula, um acontecimento em que se alega que um ou mais indivíduos agiram sem estarem completamente em posse de seu livre-arbítrio. 2) Em seguida, em grupo, exponham os casos selecionados entre os membros da equipe e discutam o que é comum a eles do ponto de vista argumentativo: em todos eles alega-se que a liberdade do agente estava comprometida ou temporariamente suspensa pelas circunstâncias? 3) Apresentem aos demais colegas os resultados obtidos, formulando também uma conclusão qualificada, isto é, fundada em argumentos, sobre a validade ou não do “argumento do preguiçoso”, que vimos ser recusado por Cícero no texto citado.

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tade, sem ter sido coagido ou ignorando suas possíveis consequências. Crisipo (280-207 a.C.), talvez o mais importante filósofo estoico, procurou fornecer uma solução para essa dificuldade, segundo se lê na seguinte passagem, de um autor que apresenta a posição daquele importante filósofo:

Jeanne-Louise, dito Nanine Vallain. Coleção particular

“Contra isso, Crisipo argumenta com argúcia e variedade, mas, de tudo que escreveu sobre o assunto, eis o ponto: ‘ainda que seja certo que tudo está conectado e ligado pelo destino, por meio de uma razão necessária e primeira, contudo, a própria submissão de nossos intelectos ao destino tem a ver com o que é específico e próprio de cada um deles. Pois se são feitos por natureza de modo saudável e benéfico, toda aquela força externa que o destino externamente exerce, eles a transmitem de modo suave e desimpedido. Mas se são ásperos, ignorantes, ineptos, crentes do mínimo da boa

instrução, mesmo se pouco ou nada pressionados pelos incômodos do destino, mergulham em erros e frequentes transgressões, em virtude de sua inaptidão e ímpeto voluntário. E isso se dá justamente por causa daquela articulação natural e necessária das coisas, chamada destino. Pois se segue de uma regra por assim dizer fatídica, que maus intelectos não estejam desprovidos de malefícios e erros’. Ele usa então um exemplo bem apropriado e espirituoso: ‘assim como, se você empurra uma pedra cilíndrica sobre uma superfície inclinada, você produz a causa e início do seu movimento, mas a seguir ela rola não porque você ainda a empurra, mas porque assim determina sua forma, assim também a ordem, razão e necessidade do destino atuam sobre os tipos e princípios de causas, mas os impulsos deliberativos de nossos intelectos e nossas ações são controlados por nossas próprias vontades e intelectos particulares’ [...] Por isso, ele nega que se deva tolerar e dar ouvidos àqueles que, por preguiça ou maldade, sendo nocivos e maldosos, quando apanhados em culpa ou má ação, refugiam-se na necessidade do destino e dizem que agiram muito mal não por vício seu, mas que isso se deve atribuir ao destino.” (Aulo Gélio,

A liberdade foi frequentemente representada como uma mulher combativa, que supera toda sorte de dificuldades. (Nanine Vallain [1767-1815], Alegoria da liberdade. Óleo sb/ tela, 1794)

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A passagem não afirma que Crisipo defendesse ser possível desculpar atos maus de quem alega ter agido “por força do destino”. É ao chamado “argumento preguiçoso” que ele está tentando responder: a ordem que estrutura o universo não exime a responsabilidade de nossas ações. A maneira para fazê-lo consiste em propor uma distinção entre o destino

liberdade e necessidade

Noites áticas, 7, 2, 6-13. Tradução nossa. Edição de referência: Noctes atticae. Oxford Classical Texts. Oxford University Press, 1968)

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Peças de dominó caindo uma após a outra: um símbolo da ausência da liberdade, da necessidade natural, representada pelas leis do movimento. E quanto a quem

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enfileirou as peças?

como uma necessidade que controla todos os acontecimentos, de um lado, e, de outro, “nossas próprias vontades e intelectos particulares”, que, aparentemente, estão sob nosso controle. Entre os indivíduos, há diferenças que os fazem submeter-se de modo distinto ao destino. Assim, sou responsável pela forma como me relaciono com a natureza. Cada um de nós é dotado de um intelecto naturalmente diferente, que permitirá aderir mais ou menos à natureza e seus acontecimentos sistemáticos. Isso significa que essa adesão cabe a mim. Para Crisipo, contudo, após essa decisão, o que se seguirá é a inevitável consequência de uma necessidade presente nas coisas. Se empurro uma pedra cilíndrica, não decido se ela vai rolar ou não, porque isso está contido necessariamente em seu formato – embora tenha sido minha a escolha de empurrá-la ou não. Com isso, haveria uma esfera de “liberdade” presente em nossas vidas que está, no entanto, subordinada a uma “necessidade” maior, que seríamos obrigados a obedecer. Note que admitir essas diferenças entre os indivíduos e as escolhas que elas

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acarretam não significa, para o filósofo estoico, que haja “liberdade”. Ao menos, não no sentido de uma “transgressão da necessidade”. Um intelecto capaz de alcançar o pleno conhecimento das verdades do mundo não tem dificuldade em reconhecer que a esfera de suas ações voluntárias é limitada, e até mesmo que, em certo sentido, também essas ações voluntárias estão submetidas a uma necessidade natural. Minhas escolhas por agir deste ou daquele modo são consequência necessária de minha disposição intelectual, que é sempre natural e, nesse sentido, determinada. Lembre-se do exemplo da pedra: está muito acima de meu poder determinar se a pedra cilíndrica que decidi empurrar vai ou não rolar ladeira abaixo – isso é tão naturalmente necessário quanto a queda de um corpo solto no ar. Teria o estoico Crisipo realmente conseguido resolver a questão? O que realmente lhe interessava era conciliar aquela concepção profundamente harmônica e sistemática da natureza, da qual também o homem é parte, com a possibilidade de distinguir atos morais como bons ou maus. Pelo que podemos conhecer de seu pensamento, restrito a

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comentários de outros autores, Crisipo parece ter defendido que mesmo quando agimos por livre e espontânea vontade seguimos uma necessidade inevitável. Isso lhe basta para garantir que não estamos autorizados a fazer qualquer coisa ou a dizer que não faz diferença agir bem ou mal.

O ponto não é concordar ou não com o filósofo, e sim observar que ele introduz uma questão filosófica de máxima importância: pode-se garantir a liberdade humana, com tudo o que há de positivo ou negativo nisso, se a pensamos com base na necessidade presente na natureza? Filósofos posteriores dedicarão muita atenção a esse tema.

A origem da ideia de necessidade

“Parece evidente que, se todas as cenas da natureza alterassem-se continuamente de tal maneira que jamais dois acontecimentos tivessem qualquer semelhança um com o outro, e cada objeto fosse sempre inteiramente novo, sem nenhuma similaridade com qualquer coisa que se tivesse visto antes, jamais teríamos chegado, nesse caso, a formar a menor ideia de necessidade, ou de uma conexão entre esses objetos [...] A relação de causa e efeito teria de ser absolutamente desconhecida pela humanidade [...] Portanto, nossa ideia de necessidade e causação provém inteiramente da uniformidade que se observa nas operações da natureza, nas quais objetos semelhantes estão constantemente conjugados, e a mente é levada pelo hábito a inferir um deles a partir do aparecimento do outro. Nessas duas circunstâncias esgota-se toda a necessidade que atribuímos à matéria. Fora da conjunção constante de obje-

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tos semelhantes, e da consequente inferência de um ao outro, não temos a menor ideia de qualquer necessidade ou conexão.” (Hume, Investigação sobre o entendimento humano, seção 8: “Da liberdade e necessidade”. Tradução J. O. de Almeida Marques. São Paulo: Editora da UNESP, 2004, pp. 121-122)

Nessa passagem, David Hume[+] (1711-1776) pretende responder a uma questão muito clara: como chegamos a formar a ideia de necessidade? Dito de outro modo, e para usar um vocabulário típico de Hume e de filósofos modernos, qual é a origem da ideia de necessidade? Para Hume, qualquer questão de natureza filosófica só pode ser bem pensada e resolvida se partimos dessa pergunta. Isso porque, para ele, a resposta a essa pergunta é fundamental e prévia a todas as outras. Dela extraímos consequências importantes sobre o tipo e alcance do conhecimento que podemos obter a respeito de qualquer assunto. O caso das noções de liberdade e necessidade, como veremos, é ilustrativo dessa ideia. Note como já essa forma de abordar o tema distancia Hume do estoicismo (ver box à pág. 228). Para os estoicos, há uma verdade metafísica incontestável, que deve nos orientar em nossa investigação: a realidade, o mundo em que vivemos, tudo está subordinado a uma razão superior e divina, presente no próprio mundo, como

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Há uma série de elementos que permitem determinar o problema da relação entre necessidade e liberdade, transformando-o de dificuldade pontual em um autêntico problema filosófico. E quando dizemos isso, pensamos não só na filosofia antiga (especialmente no estoicismo), mas também no pensamento filosófico moderno e contemporâneo.

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uma alma estĂĄ presente em um corpo. A por concluir que os eventos se repetirĂŁo regularidade dos acontecimentos e o fato sempre assim. de que tudo deve ter uma causa levou os estoicos a defenderem a tese de que exisRegularidade e uniformidade te uma racionalidade interna Ă natureza, Eis o que, segundo Hume, explica que conferindo-lhe um comportamento sispossamos pensar a ideia de necessidatemĂĄtico e infalĂ­vel. TĂŁo de. É fĂĄcil perceber que infalĂ­vel que determina isso ĂŠ bem diferente de inclusive nossas prĂłprias dizer que essa necessidaaçþes, jĂĄ que fazemos de estĂĄ presente nas coiPodemos imaginar parte da natureza. Um sas, como poderes secreque a regularidade exemplo? Se vocĂŞ estĂĄ tos que as comandam. lendo isso agora, ĂŠ porEsse passo, nĂŁo estamos entre os fenĂ´menos que estava determinado autorizados a dar, diz exprime uma que seria assim. Hume. Podemos imaginecessidade objetiva. Hume chegarĂĄ a connar, e de fato imaginaclusĂľes bem diferentes. mos que a regularidade SĂł que, de verdade, Mas isso porque o ponto entre os fenĂ´menos exnada pode nos de partida tomado por prime uma necessidaassegurar sobre isso, ele nada tem a ver com de objetiva. SĂł que, de o ponto do qual partiam verdade, nada pode nos argumenta Hume. os estoicos. A abordaassegurar sobre isso, argem se altera radicalgumenta Hume. mente. Quando se perQuais as consequĂŞngunta: “como chegamos a formar a ideia cias dessa constatação, para pensar a de necessidadeâ€?, “qual a origem em nossa relação entre liberdade e necessidade? mente da ideia de necessidadeâ€?, Hume ApĂłs algumas anĂĄlises sobre o compornĂŁo estĂĄ falando diretamente sobre a reatamento dos homens em geral, Hume lidade, mas sobre o que acontece em nosconcluirĂĄ: sa mente. Seu enfoque ĂŠ, digamos assim, “subjetivoâ€?, voltado para o sujeito do co“Reconhecemos, assim, uma uninhecimento, e nĂŁo “objetivoâ€?, como nos formidade nas açþes e motivaçþes huestoicos, que tiram conclusĂľes a respeito manas de forma tĂŁo pronta e univerde como as coisas realmente sĂŁo, indesal como o fizemos no caso das operapendentemente de como as percebemos. çþes dos corpos [...] Parece, entĂŁo, nĂŁo Os estoicos chegaram Ă sua conclusĂŁo apenas que a conjunção entre motivos sobre a necessidade universal obser vando e açþes voluntĂĄrias ĂŠ tĂŁo regular e que os eventos naturais se dĂŁo sempre oruniforme como a que existe entre caudenadamente e numa sequĂŞncia repetisa e efeito em qualquer parte da natuda. DaĂ­ tiraram sua conclusĂŁo metafĂ­sica. reza, mas tambĂŠm que essa conjunção Ora, Hume tambĂŠm observa essa mesma regular tem sido universalmente recoordem e regularidade nos eventos, mas, nhecida pela humanidade, e nunca foi ao colocar a questĂŁo do ponto de vista esobjeto de disputa, seja na filosofia, tritamente mental, do ponto de vista do seja na vida ordinĂĄria.â€? (Hume, Invessujeito do conhecimento, ele sĂł admite tigação sobre o entendimento humano, que hĂĄ uma conjunção constante e reguseção 8: “Da liberdade e necessidadeâ€?. lar dos eventos. E nada mais. PorĂŠm, visto Tradução J. O. de Almeida Marques. que nos habituamos a isso, terminamos op. cit., pp. 124; 128-129)

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A regularidade estatística A estatística procura determinar a frequência com que determinados eventos ocorrem. Para fazê-lo, é preciso estabelecer o âmbito da pesquisa e determinar as possibilidades de variação dos fenômenos observados. Em grupos de dois ou três colegas, realizem consulta a jornais ou à internet e selecionem pesquisas estatísticas sobre três assuntos diferentes. Vale política, economia, demografia, pesquisas sobre o número de acidentes automobilísticos etc. Procurem identificar e destacar esses elementos nas pesquisas estatísticas consultadas por vocês. Em seguida, passem à prática, experimentando realizar, vocês mesmos, uma pesquisa estatística. Formulem um objeto a ser investigado na sua unidade escolar. Pode ser qualquer

coisa pesquisável por essa metodologia: prática de esportes (quais, com que frequência etc.), hábitos culturais (frequenta museus/ cinema/ teatro? etc.) e assim por diante. Procurem sistematizar os resultados para então apresentá-los aos demais colegas na forma de seminário. A questão filosófica de fundo é a seguinte: se, como indivíduos, cada um de nós é livre para fazer o que bem entende, como explicar que façamos coisas tão parecidas com tanta frequência? Ou o fato de sermos livres não tem nada que ver com o fato de que há muita regularidade nos comportamentos que assumimos diante do mundo? • Apresentem a posição de vocês a esse respeito, procurando respaldá-la em bons argumentos e boas razões.

Agora, Hume afirma que, assim como observamos uniformidade e regularidade na natureza e seus eventos, também constatamos, em grande medida, que as ações humanas – “ações voluntárias” – também apresentam constância. Podemos prever como seres humanos agirão, com base em seu comportamento, pois os homens, em diversas épocas e culturas, e apesar de inegáveis diferenças, se mostram profundamente semelhantes. E quando essas previsões não se confirmam, é porque algo inusitado ocorreu, fora do padrão costumeiro de ação. Veja bem, Hume não nega que os seres humanos agem por livre e espontânea vontade, como causadores livres de seus atos, sendo por isso capazes de agir de forma inesperada. Ele apenas observa que as

ações humanas são, na grande maioria das vezes, dotadas de tanta constância e regularidade quantos os acontecimentos naturais. Se é assim, então a ideia de necessidade que temos em nossa mente resulta da observação de uma conjunção constante tanto entre eventos naturais, quanto entre ações humanas voluntárias. O domínio da natureza e o domínio humano têm em comum serem pensados segundo uma mesma ideia de necessidade, que se origina da observação de ambos. Ora, diferentemente dos estoicos, que explicavam a necessidade das ações humanas por meio de uma necessidade realmente presente na natureza, Hume apenas diz que nos dois domínios, o natural e o humano, somos capazes de ter

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Trabalho em equipe e apresentação de seminário

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uma ideia de necessidade, baseada, nos dois casos, nas mesmas razões. E isso lhe parece suficiente para concluir que não há motivo para imaginar qualquer sentido em que se excluam liberdade e necessidade. Por isso, ele entende que o tema tem sido objeto de equívocos, e que é perfeitamente possível reconciliar liberdade e necessidade. E como se daria essa reconciliação? Ao invés de afirmar que a necessidade dos acontecimentos naturais e das ações humanas são diversas uma da outra, Hume

toma outra direção. Ele descarta que sejamos capazes de conhecer as causas pelas quais os eventos são realmente portadores de causas necessárias, que os fazem ser como são. Aqui, o que faz toda a diferença são os limites do conhecimento humano, uma característica muito importante de seu pensamento. Para esse filósofo, não conhecemos as causas metafísicas da realidade e devemos nos conformar com isso. Mas não precisamos nos preocupar com a liberdade e a necessidade de nossos atos, pois estão ambos garantidos.

Necessidade natural e liberdade humana

liberdade e necessidade

Ciências da natureza e ciências humanas A despeito das diferenças significativas entre essas duas posições, note que há algo que ambas admitem e compar-

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tilham. Tanto os estoicos quanto Hume não estabelecem qualquer diferença relevante entre eventos humanos e não humanos. Nenhum deles reconhece a existência de marcas específicas que separem as ações humanas dos acontecimentos do mundo natural. Para os estoicos, toda

Nova York, EUA). Vespasian/Alamy/Glow images

Assim como tantas outras questões de relevo, o par necessidade e liberdade foi abordado das mais distintas maneiras pelos autores de filosofia. Há quem defenda que todos os acontecimentos, humanos ou não, são eventos que se encontram igualmente submetidos a uma ordem necessária. Essa posição corresponde à filosofia do estoicismo, por exemplo (ver box à pág. 228). Conforme os estoicos, tudo se encontra determinado e segue uma única necessidade, que eles interpretam como sendo ordem divina do cosmos. Cabe ao sábio submeter-se a ela e admirá-la. Mas há autores que pensam de maneira diversa. Conforme David Hume[+] (1711-1776), por exemplo, necessidade e liberdade são ideias que somente possuem um estatuto subjetivo. São apenas representações que formamos em nossas mentes com base no modo como interpretamos a experiência. Hume conclui que é impossível decidir se algo exterior e objetivo realmente corresponde a elas.

“New School For Social Research”, instituição famosa por acolher investigadores voltados para as ciências humanas e sociais.

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a realidade é igualmente determinada; Médio, mas que permanecem válidas nas para Hume, ao contrário, “liberdade” e universidades? Qual o princípio ou o cri“necessidade” são sempre representações tério utilizado para aproximar a física da subjetivas, digam respeito aos acontecimatemática, por exemplo, ou a história mentos naturais ou aos acontecimentos dos estudos literários? Em resumo: o que culturais. Note que nem estoicos nem explica esses agrupamentos? Hume se viram obrigados a diferenciar o Os nomes podem nos ajudar nisso. âmbito natural do cultural na abordagem Muito provavelmente, você já se deparou a essas questões. com a expressão “ciências humanas”. TraNo século XIX surgiu um debate que ta-se de um termo que designa o conjunto mudou essa história. O seu tema consiste de disciplinas voltadas para o universo huno surgimento das “ciênmano, que abarca realicias humanas”. Trata-se zações e acontecimentos de um debate com conpertencentes ao âmbito sequências bem atuais, da cultura. “Cultura” sigA crer nas divisões como é fácil perceber. nifica, nesse contexto, atuais, existem ao Quer ver? Reflita sobre o que se diferencia da a classificação e divisão “natureza”. Não por acamenos dois grandes existente entre as disso, ao lado das “ciências agrupamentos ciplinas do ensino unihumanas”, deparamos de discipinas: as versitário. Você já parou com outro grande agrupara pensar na maneira pamento, o das “ciências “ciências humanas” como os cursos (direito, da natureza”. e as “ciências da filosofia, biologia, mateClaro que a repartinatureza”. mática, física, engenhação das disciplinas ou rias etc.) estão organizamatérias nesses dois dos no interior de uma grandes grupos – “ciênuniversidade? cias humanas” e “ciênUma repartição semelhante pode ser cias da natureza” – não é rígida, muito observada no Ensino Médio. Compare menos definitiva. O saber e a prática algumas das disciplinas que você tem na das ciências são fenômenos dinâmicos. escola: matemática, física, biologia, de Por isso, não é surpresa que novos doum lado; história, sociologia, língua e limínios sejam descobertos e explorados, teratura, de outro. Em muitos países – e e também acontece que domínios mais também durante muito tempo no Brasil tradicionais sejam reinterpretados e re–, a etapa final da Educação Básica era definidos. Uma classificação muito usual, ou permanece sendo dividida conforme um pouco diferente dessa que estamos duas ênfases, a das disciplinas científicas mencionando, não trabalha com dois, e a das disciplinas humanísticas. A ênmas três grandes agrupamentos de disfase em “ciência” privilegia matemática, ciplinas: as ciências humanas, as ciências física, biologia e química; a ênfase em exatas e as ciências da vida. A classificaestudos humanísticos dá maior peso a ção, portanto, varia. história, filosofia, língua e literatura. Até Há também disciplinas “híbridas”, a década de 1960, no Brasil, esse direcioque não admitem ser listadas somente namento curricular refletia-se nos cursos em um ou outro desses grandes grupos, denominados “Clássico” e “Científico”. como é o caso, por exemplo, da geografia. Qual a origem dessas divisões, que É comum encontrarmos o estudo dessa hoje em dia foram atenuadas no Ensino disciplina dividido em “geografia física” e

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“geografia humana”. O motivo reside em que a geografia é uma disciplina que concerne tanto ao universo da cultura, quanto ao da natureza. Toda essa discussão sugere que temos mais de um tipo de ciência. Nosso desafio é compreender como essa diferença entre as ciências foi estabelecida. Para isso, examinemos alguns conceitos envolvidos nesse debate. A ciência, em sua acepção geral, é um tipo de discurso que formula leis sobre um conjunto determinado de fenômenos. Mas será que a noção de “lei científica” é empregada da mesma forma em toda a extensão do saber? Isto é, será que a “lei” possui o mesmo significado em todas as disciplinas científicas? Ou, ao contrário, a lei científica opera de maneira diversa nas “ciências humanas” e nas “ciências da natureza”? No âmbito dos fenômenos naturais, é usual compreender a lei científica como sendo a expressão de uma necessidade universal, que em princípio não admite exceções. Nesse âmbito, é comum supor que a

lei preveja o que ocorrerá sob certas condições, porque, sob tais condições, é inevitável que ocorram tais e tais eventos. Quer ver um exemplo tirado do dia a dia? Se a água atingir a temperatura de 100º Celsius em um ambiente sob pressão = 1 atm, ela necessariamente entrará em ebulição. O investigador da natureza não hesitará em afirmar que esse fenômeno obedece a uma necessidade inflexível, assim como, quando eu solto uma pedra dentro de um determinado campo gravitacional, ela “cai”. Por isso se afirma que, nessas circunstâncias, a água está necessariamente determinada a se transformar em vapor, e a pedra, a cair. Essa constatação está na base do que é conhecido como determinismo natural, que se apoia na solidez das leis físicas, biológicas etc. Mas o mesmo raciocínio é válido para fenômenos concernindo a cultura? O determinismo nas ciências humanas Suponhamos que nas ciências humanas nos deparássemos com fenômenos submetidos ao mesmo tipo de

Divisões disciplinares no saber universitário de hoje

liberdade e necessidade

Desenvolvimento individual por escrito

Recorrendo à internet, acesse duas ou mais instituições universitárias de sua escolha, de preferência uma perto e uma outra afastada de onde você mora. Navegue pelas páginas das universidades escolhidas e verifique como estão agrupados os cursos nelas oferecidos. A nomenclatura varia de uma universidade para outra, mas o princípio de classificação dos cursos costuma ser o mesmo: ciências exatas, ciências humanas, ciências biomédicas. É também muito comum, ao lado desses três agrupamentos, encontrarmos uma “faculdade” ou um “setor” voltado

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especificamente para as disciplinas jurídicas, assim como outra unidade voltada para diversas áreas da medicina. • Faça a pesquisa em duas ou mais universidades. Em seguida, elabore um pequeno texto relatando os resultados obtidos. Nele, procure estabelecer como os cursos estão agrupados nas universidades escolhidas por você. (Por exemplo: na universidade A, os cursos ligados ao estudo e à prática do Direito estão reunidos em uma unidade chamada “Instituto de ciências jurídicas”; enquanto, na universidade B eles estão reunidos em uma unidade chamada “Faculdade de Direito”, e assim por diante.)

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CC-BY-SA-3.0 - Friedrich Petersdorff

Wilhelm von Humboldt (1767-1835) foi o fundador da Universidade de Berlim, hoje chamada pelo seu nome. A pedagogia de Humboldt está na base da estrutura universitária moderna. De

necessidade que prevalece nas ciências exatas. Fosse assim, os fenômenos observados pelos historiadores ou pelos economistas, por exemplo, seguiriam um comportamento rígido e inflexível, como o que ocorre com a água, que necessariamente entra em ebulição ao atingir a temperatura de 100º Celsius em um ambiente sob pressão = 1 atm. O determinismo das ciências naturais também estaria presente nas ciências humanas. Só que, como talvez você já tenha adivinhado, isso levanta um problema filosófico de peso. Afinal, caso defendamos que as ações humanas admitem a mesma necessidade que os fenômenos naturais, como poderemos afirmar que essas ações são livres? Veja onde fomos parar. Se aplicarmos a noção rígida de lei, tal como presente nas ciências da natureza, no campo das ações humanas, não ameaçaremos a liberdade que reivindicamos para nossos atos? Suponha que nossos desejos e vontades sejam tão previsíveis quanto

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os fenômenos naturais, como ocorre no exemplo da ebulição da água. Nesse caso, não pesaria sobre nós a mesma necessidade inflexível a que obedecem os eventos estudados pelas ciências naturais? Há boas razões para admitir que o ser humano é capaz de escolhas e reações diversas e até inesperadas diante do mundo. Nem por isso, é claro, o ser humano deixa de participar do mundo natural. O ser humano possui uma realidade dupla: de um lado, produz o universo da cultura; de outro, permanece um ser vivo, um organismo natural, um corpo que se encontra, juntamente com os demais corpos, submetido a um conjunto de determinações que as ciências naturais procuram desvendar. Há, portanto, uma dupla condição que caracteriza a humanidade: a natureza e a cultura. O que concluir disso? Não é difícil notar que existe uma correspondência entre essa primeira divisão, entre natureza e o da cultura, e uma outra, entre o âmbito da necessidade e o âmbito da liberdade. De fato, a natureza parece caracterizar-se por

liberdade e necessidade

inspiração humanista, Humboldt defendia a união entre ensino e pesquisa.

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o ser humano dispõe de liberdade para engendrar o novo, para criar algo que não estava predeterminado. Eis uma excelente razão para diferenciar fenômenos ligados às ciências humanas dos fenômenos que pertencem às ciências naturais.

Podemos crer que nossa escolha é completamente livre. Mas até que ponto ela não é predeterminada por fatores que

liberdade e necessidade

ignoramos?

não admitir escolha por parte dos seres naturais. Já o universo cultural, de seu lado, mostra-se muito diversificado, exatamente porque os indivíduos são capazes de elaborar reações e produzir criações diferentes umas das outras, em circunstâncias semelhantes. A coexistência de culturas as mais diversas entre si – tema que é abordado na Unidade Natureza e cultura, no módulo “A diversidade das culturas”– dá provas de que nós, seres humanos, fornecemos respostas diferentes a problemas que dizem respeito a toda humanidade. Talvez você possa considerar que uma forma de vida é “pior” que outra, que há tipos de cultura que exprimem valores e práticas que você dificilmente admitiria. Tudo isso é objeto de debate. Mas há algo sobre o que não resta dúvida. A discussão sobre a melhor forma de vida envolve comparar culturas diferentes, o que já demonstra existir mais do que uma única forma de vida ao alcance dos seres humanos – simplesmente porque somos capazes de criar formas diferentes de vida social. Essa diversidade de respostas, o fato de que podemos transformar nosso comportamento, nossa ordem social e nossos esquemas de pensamento – isso prova que

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Determinismo econômico e liberdade política Vamos admitir que a característica específica da condição humana é a criação do novo, a capacidade de realizar ideais e perseguir objetivos simbólicos; de encontrar respostas originais e inéditas para os desafios que nos cercam. É uma admissão bem vinda, para dizer o mínimo. Afinal, ao contrário dos fenômenos naturais, sempre podemos improvisar, o que torna sensato diferenciarmos os fenômenos da cultura dos eventos naturais. Por isso, a diferença entre ciências da natureza e ciências humanas é uma distinção pertinente. Agora que admitimos isso, surge um novo problema, mais avançado. Será que, só porque assumimos o caráter “espontâneo” de boa parte de nossos atos, desaparece com um passe de mágica toda necessidade ligada aos fenômenos históricos, sociais e culturais? Ou aqui opera um tipo particular de necessidade, que também limita o raio de ação de nossas condutas? Reflita um pouco sobre a sua trajetória individual, sobre a sua condição presente, sobre os planos que você possui para o futuro. Você seria capaz de afirmar que sua vida está acima de todo tipo de determinação ou condicionamento social, cultural, histórico? A fim de aprofundar essa questão, pense um pouco em como nós, indivíduos, nos inserimos nas relações complexas que constituem a sociedade. Dificilmente alguém poderá afirmar que o lugar que ocupamos e os papéis que desempenhamos socialmente não condicionam de alguma maneira nossa forma de vida e, mais importante que isso, não condicionam também as escolhas que fazemos durante a

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vida. Alguém poderia até dizer, avançando nesta direção, que o próprio repertório de escolhas varia conforme a posição de partida que o indivíduo ocupa no corpo social... Liberdade e seus limites Por aí você já pode perceber que seria ingênuo imaginar que nossa liberdade opera de forma ilimitada, como se estivesse sempre a nosso alcance pensar ou mesmo desejar uma coisa qualquer. Curiosamente, queremos certas coisas, não outras – e, dentre as coisas que queremos, muitas

constituem também os objetivos de pessoas próximas a nós, que se encontram sob circunstâncias semelhantes às nossas. Talvez isso não seja mera coincidência. Pode acontecer que aquilo que queremos, assim como as alternativas com que nos defrontamos na vida, estejam em alguma medida predeterminadas pelo que somos socialmente. Procuremos formular essas dúvidas de modo mais qualificado. Vamos supor que nossa faculdade de querer é livre, e assim exerçamos nossa liberdade. Por um lado,

Seminário em duplas O universo da cultura abarca as artes, as ciências, a tecnologia. Tudo isso nos torna capazes de modificar a natureza. Mesmo assim, permanecemos integrando o mundo natural. Os seres humanos dispõem de uma dupla condição: por um lado, somos parte da natureza; por outro, nossa condição racional nos permite modificar o curso da natureza de acordo com objetivos que transcendem nossas necessidades biológicas. Uma ocasião de comentar essa dupla condição surge pela diferença entre as reações instintivas aos estímulos externos e nossas criações espontâneas. Há um conjunto de reações que são “automáticas”, isto é, que não dependem de nossa vontade ou consciência. Tome como exemplo o caso da água que ela entra em ebulição a 100º C sob a pressão de 1 atm: assim também, se qualquer um de nós em condições fisiológicas normais tocar com a mão a chaleira onde há água fervendo, ime-

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diatamente recolherá a mão, evitando queimar-se. Ao lado de reações instintivas, todavia, há também um conjunto de atitudes que são “espontâneas”, no sentido de que sua realização pode ou não transcorrer, a depender de nossa vontade ou consciência. Essas atitudes espontâneas parecem assinalar que somos seres dotados de liberdade. Pois, embora sob condições normais não sejamos livres para nos afastar de algo que produz uma dor intensa, somos livres para, por exemplo, reagir desse ou daquele modo a uma agressão física ou verbal. Podemos inclusive ignorá-la. • Forme uma dupla com um colega e, juntos, procurem separar o âmbito das questões relacionadas com a “espontaneidade” daquelas realizadas por “instinto”. Primeiro, demarquem essas duas classes de atuação dos seres humanos. Em seguida, procurem fundar essa diferença em uma explicação que singularize cada uma das classes de atuação diante da outra. Apresentem os resultados aos demais colegas em forma de seminário.

liberdade e necessidade

Instinto versus espontaneidade

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o ser humano é capaz de inovar, de ser espontâneo e livre, especialmente quando consideramos o âmbito da vida social, simbólica e cultural de nossas existências. Por outro lado, essa liberdade é exercida dentro de certos limites, parâmetros que estão fora do alcance de nossa vontade individual. Isso não significa que não haja liberdade; significa apenas que ela não é absoluta. Tudo leva a crer que as formas de nosso pensar, nossa “mentalidade”, como se costuma dizer, fixam balizas ou parâmetros que, ao exercermos nossa liberdade, dificilmente conseguimos contornar. Se é assim, o que, afinal, determina nossa mentalidade, antes mesmo que pensemos aquilo que pensamos? Vejamos, com esse intuito, o que nos dizem dois importantes autores que refletiram a fundo sobre esse problema no século XIX, Karl Marx e Friedrich Engels: “Podemos diferenciar os seres humanos dos animais pela consciência, pela religião, pelo que bem entendermos. Eles próprios começam a diferenciar-se dos animais tão logo começam a produzir seus meios vitais, passo esse que é condicionado pela sua organização corporal. Na medida em que os seres humanos produzem seus meios vitais, eles indiretamente produzem sua própria vida material.” (Marx & Engels,

liberdade e necessidade

A ideologia alemã. Tradução nossa. Edição de referência: “Deutsche Ideologie”, in: Marx-Engels Werke. Berlim: Dietz Verlag, 1978, vol. 3, p. 21)

Essas linhas retomam a divisão entre os seres humanos e o reino da natureza. Mas note que, segundo os autores, Marx e Engels, o que instaura essa diferença é algo muito peculiar. Para eles, o que nos singulariza face ao reino animal é o fato de que nós, humanos, produzimos nossos meios vitais, os meios que asseguram nossa sobrevivência. Ao fazê-lo, produzimos nossa “vida material”. E essa é a

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razão pela qual nossa vida em sociedade pôde assumir formas por vezes tão “artificiais”, tão distantes das condições em que se encontravam nossos ancestrais. Mas isso não é tudo. A exposição de Marx e Engels prossegue com uma afirmação contundente: somos aquilo que fazemos, dizem eles. Com isso, querem deixar claro que os seres humanos encontraram, no decorrer da história, formas diferentes de assegurar os meios vitais. De acordo com Marx e Engels, cada uma dessas formas corresponde ao que eles designam um modo de produção dos meios de existência. E cada modo de produção é uma forma de vida determinada, manifestando uma maneira particular de existência. Nas palavras dos filósofos: “Os indivíduos são de acordo com o modo como manifestam sua vida. Logo, aquilo que são coincide com sua produção, tanto com o que produzem, quanto com como produzem. O que, portanto, os indivíduos são depende das condições materiais de sua produção.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tradução nossa. Op. cit., p. 21)

Vamos entender por que Marx e Engels afirmam ter adotado um enfoque “materialista” para abordar a realidade social. Repare no texto. A ênfase da passagem citada aqui (e também da obra de onde ela foi extraída) recai sobre as condições materiais da existência dos seres humanos. Estas podem variar, claro – e Marx e Engels, logo após esse trecho, repassam os diversos momentos da história social da humanidade, marcando as diferentes formas através das quais os seres humanos cuidaram de assegurar e reproduzir seus meios de existência. Só que, diversidade à parte, Marx e Engels afirmam haver uma coisa que abrange todas essas formas, algo que é comum a todas elas. O que há de comum a todas as formas de produção – como a economia

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do Marx e Engels, a “consciência” é sempre determinada por condicionamentos materiais, relativos a um certo modo de produção de riquezas. Se é assim, como um indivíduo ou uma classe de indivíduos podem agir livremente sobre o mundo ao seu redor? Se aceitarmos o argumento de Marx e Engels, veremos a noção de liberdade restringir-se de maneira radical. Você pode até imaginar que, como indivíduo que age aqui e agora, é livre, fazendo escolhas de acordo com seus parâmetros de mentalidade, suas representações da vida e do mundo. Entretanto, a crer nesses dois filósofos, o leque de representações de que “A moral, a religião, a metafísica você dispõe para optar por isso ou aquilo e demais ideologias, tanto quanto as já se encontra condiformas de consciência cionado pela realidade que lhes correspondem, material que pesa sobre perdem, assim, sua Para Marx e Engels, você e sobre o meio em aparência de autoque você se insere. nomia. Elas não poso que diferencia os Quem contestaria suem história, nem seres humanos dos que ser livre não é igual tampouco desenvolvianimais é o fato de a poder fazer qualquer mento; mas são os hocoisa a qualquer momenmens que, modificando produzirem uma “vida to? Até aqui, o raciocínio sua produção material material”, na busca de de Marx e Engels limita e seu comércio matemeios que garantam o alcance da liberdade rial, modificam com sem chegar a ameaçá-la. sua realidade tamsua sobrevivência. Mas isso não é tudo. bém seu pensamento Essa é apenas a prie os produtos de seu meira consequência da pensamento. Não é a análise materialista de Marx e Engels. O consciência que determina a vida, mas argumento desses filósofos possui uma a vida que determina a consciência.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Traimplicação mais profunda para as relações dução nossa. op. cit., p. 27) entre necessidade e liberdade. Para compreendê-la, devemos atentar para o Note que esta “vida” que determina a que já anunciamos antes: a história huma“consciência” – isto é, nossas represenna engendra formas de produção de riquetações, ideias e valores – não consiste de za diferentes umas das outras. condicionamentos fisiológicos. Trata-se, Além disso, as formas de produção sob isso sim, da vida já modificada pelos seas quais a sociedade se organiza evoluem, res humanos, a maneira como os indivítransformam-se (pense, por exemplo, em duos de uma sociedade asseguram suas sociedades de coletores; caçadores; agricondições de existência. cultores: as formas de produção influem Eis aí um ponto importante para nossa sobre a própria conformação social). A discussão. Pois, como você já viu, segunargumentação materialista de Marx e

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feudal ou a economia burguesa moderna – é que elas condicionam o conjunto de representações que os indivíduos de cada época possuem: representações sobre si mesmos, sobre os outros, sobre o mundo. “Condicionar” equivale em certo sentido a “determinar”. A tese sustentada por Marx e Engels, portanto, é a de que o conjunto de representações, ideais e valores que os indivíduos de uma dada época ou sociedade possuem é ditado pelas condições materiais, pela forma de produção de riqueza daquela época ou sociedade. Veja a conclusão que eles então extraem daí:

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Revista Ilustração Brasileira

Greve de operĂĄrios em SĂŁo Paulo em 1907. Muitos deles eram imigrantes italianos em busca de um futuro melhor nas AmĂŠricas.

Engels leva a entender essas mudanças no modo de produção como fatores que modificam as formas de pensamento. Sob a perspectiva do materialismo de Marx e Engels, o moderno desenvolvimento da forma de produção capitalista cria uma nova divisĂŁo social do trabalho – trabalhadores de um lado, proprietĂĄrios dos meios de produção de outro – e intensifica as trocas comerciais em um nĂ­vel que abarca todo o globo terrestre. Diante disso, os autores apontam o que lhes parece uma consequĂŞncia esperada do desenvolvimento do capitalismo:

liberdade e necessidade

“O comĂŠrcio, que nada mais ĂŠ do que a troca dos produtos de diferentes indivĂ­duos e paĂ­ses por meio da relação da oferta e da procura, domina o mundo inteiro – uma relação que [...] paira sobre a terra como o destino antigo, e com mĂŁo invisĂ­vel distribui a felicidade e a desgraça entre os homens, que faz povos surgirem e outros desaparecerem.â€? (Marx & Engels, A ideologia alemĂŁ. Tradução nossa. Op. cit., p. 35)

Veja que o trecho citado retoma um ponto central explorado em outro mĂłdulo desta Unidade. Pois o “destino antigoâ€? mencionado aĂ­ nada mais ĂŠ do que a neces-

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sidade universal de que falavam os filĂłsofos estoicos! Mas claro que, ao constatarem a presença do “destino antigoâ€? no modo de produção capitalista, Marx e Engels nĂŁo estĂŁo querendo dizer que tudo seja necessĂĄrio e que a liberdade humana seja ilusĂłria. NĂŁo ĂŠ isso que eles afirmam, a começar porque dizem apenas que a lĂłgica do mercado funciona como se fosse o destino antigo, com sua necessidade inflexĂ­vel – sugerindo, por outro lado, que isso nĂŁo precisa ser sempre assim. A conclusĂŁo que Marx e Engels tiram daĂ­ ĂŠ a seguinte: enquanto nĂŁo for ultrapassada a etapa do capitalismo, os seres humanos nĂŁo poderĂŁo ser efetivamente livres, pois esse sistema econĂ´mico-social se caracteriza pela dominação de uma classe – a burguesia – sobre todos os demais grupos da sociedade. Para os dois filĂłsofos materialistas, mesmo que o Estado moderno possa assumir a forma da democracia representativa, fazendo crer que um povo soberano decide os rumos a serem tomados por sua nação – isso, concluem os autores, nĂŁo passa de ilusĂŁo. O Estado, a organização polĂ­tica ĂŠ somente a expressĂŁo da dominação da burguesia sobre a classe operĂĄria. Pois o capitalismo corresponde, segundo esse argumento, ao estĂĄgio histĂłrico no qual a polĂ­tica ĂŠ determinada pelos capitalistas. Como superar essa situação? Marx e Engels sĂł enxergavam uma saĂ­da: a revolução proletĂĄria, isto ĂŠ, a tomada do poder pelo classe trabalhadora. De acordo com seu pensamento, somente desse modo o comĂŠrcio e a acumulação de riquezas capitalistas seriam eliminados, dando ocasiĂŁo ao surgimento de uma sociedade na qual todos os seres humanos poderiam exercer sua liberdade de fato. Marximos para alĂŠm de Marx Durante sua vida, Karl Marx e Friedrich Engels viram sua obra adquirir um alcance nĂŁo apenas no meio intelectual, mas tambĂŠm fora dele. Suas investigaçþes se tornaram um destacado instrumento analĂ­tico da

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Marx e Engels Karl Marx foi um importante pensador da filosofia política e da economia no Foto: Schlegel. Bundesarchiv 183-46722-0008

século XIX. Nascido em 1818 em Trier, na Prússia, atual Alemanha, integrou o movimento denominado esquerda hegeliana, que sustentava posições críticas ao regime político vigente. Como editor do jornal “Gazeta Renana”, Marx publicou diversos artigos de oposição à monarquia prussiana, o que lhe rendeu a expulsão da terra natal, perseguições políticas por toda a Europa e a impossibilidade de ingressar na carreira acadêmica. Friedrich Engels, também alemão, nasceu em 1820. Membro de uma família rica, seu pai era um industrial importante, e foi o contato com a miséria dos operários que trabalhavam em suas fábricas o que despertou em Engels o interesse pelas ideias socialistas. Engels foi para a Inglaterra e, em uma viagem à França, conheceu Marx, em 1844. Os dois se tornaram coautores de diversas obras e amigos muito próximos, além de aliados políticos que desempe-

Estátua em bronze de Karl Marx e Friedrich Engels na cidade de Chemnitz, antiga Karl Marx-Stadt. Escultor: Walter Howart (1957).

nharam juntos papel importante na organização do movimento operário europeu. Entre os principais temas do pensamen-

Tradução de Rubens Ederle, Nélio Sch-

to de Marx e Engels destacam-se, como

neider, Luciano Cavini Martorano. São

determinantes do processo histórico, a

Paulo: Boitempo, 2007.

democracia radical, a alienação religiosa e

K. Marx e F. Engels, Manifesto comunista.

econômica, a ideologia e as forças produti-

Tradução de Álvaro Pina. São Paulo:

vas do capital, além da tese da supressão

Boitempo, 1998.

da propriedade privada como fundamen-

K. Marx, O capital. Tradução de Rubens En-

to da emancipação humana. Marx morreu

derle. São Paulo: Boitempo, 2013.

reu em Londres, em 1895. I - Principais obras de Marx e Engels traduzidas para a língua portuguesa: K. Marx, Sobre a questão judaica. Tradução

II - Obras introdutórias sobre Marx: J. A. Giannotti, Marx: vida & obra. Porto Alegre: L& PM, 2001. L. Konder, Marx: vida e obra. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

de Nélio Schneider, Daniel Bensaïd e

A. Codato, “Marx: a política, o poder e o Es-

Wanda Caldeira Brandt. São Paulo: Boi-

tado capitalista, in: V. Figueiredo (org.).

tempo, 2010.

Filósofos na sala de aula – Vol. 2. São

K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã. Supervisão editorial de Leandro Konder.

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liberdade e necessidade

em 1883 em Londres. Engels também mor-

Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2007, pp. 110-154.

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nando com ele outras formas de reflexão política, como o leninismo e o maoísmo. O século XX assistiu a reinterpretações e aplicações concretas do legado de Marx e Engels que eles dificilmente teriam imaginado. Em muitos países sob a ordem capitalista, o marxismo foi e ainda hoje é um instrumento para a reflexão crítica sobre o presente. Seu interesse teórico não pressupõe a subversão efetiva da estrutura social existente por meio de uma revolução. Necessidade e liberdade na política Que conclusões podemos extrair dessa etapa de nosso percurso? Você aceitaria a ideia de que, no plano da política, necessidade e liberdade não precisam se opor inevitavelmente? Pode-se, por exemplo, dizer que a prática da política é necessária e, ainda assim, atribuir essa atividade à nossa liberdade. Por sermos livres, devemos enfrentar tarefas políticas, por meio das quais nos tornamos sujeitos políticos. É isso, entre outras coisas, que as democracias modernas reconhecem sob o conceito de “cidadania”. Se, por um lado, a cidadania é um direito, possuir cida-

liberdade e necessidade

CC-BY-SA-3.0 - Rafael Matsunaga

produção social da riqueza, como também um elemento ideológico importante no palco das lutas políticas pelo mundo todo. A Revolução Russa de outubro de 1917 é o exemplo mais conhecido da tomada do poder político por um partido orientado por ideias marxistas, o partido bolchevique. Mas a tomada de poder pelo partido bolchevique, que deu origem à União Soviética, terminou assumindo formas de dominação política que negaram a liberdade dos indivíduos. Josef Stalin (1878-1953) assumiu a direção do Partido Comunista Soviético em 1922 e comandou a União Soviética com mãos de ferro até sua morte, em 1953. Algo semelhante ocorreu na China, dirigida há décadas pelo Partido Comunista Chinês, que tomou o poder em 1949, sob a liderança de Mao Tse-Tung (1893-1976). Seria precipitado pretender avaliar a teoria marxista pelos resultados da via socialista, orientação política tomada por diversos países na história moderna e contemporânea. A começar porque as experiências socialistas do século XX não se basearam apenas no marxismo, combi-

Pregão de bolsa de valores. O mercado financeiro tornou-se uma força econômica

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e política considerável no mundo contemporâneo, suscitando críticas por parte de pensadores que falam em “determinismo econômico”.

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O determinismo econômico como ameaça para o ambiente

Conforme Marx e Engels, a economia é um forte fator de condicionamento da política. Pode-se divergir deles quanto ao grau desse condicionamento. Mas mesmo economistas que não são marxistas estão de acordo que, em algum grau, a economia fixa limites para as decisões políticas. Um exemplo: você realmente acredita que um governo possa, por exemplo, implementar medidas que modifiquem radicalmente a ordem econômica atual? Não estamos indagando se isso é ou não desejável. Queremos refletir apenas sobre se isso é ou não possível. Em que medida a política é capaz de regular a economia? Encontramos uma ilustração disso no debate sobre os riscos que a produção e a acumulação de riqueza na economia capitalista trazem para o equilí-

dania envolve também ter deveres. Entretanto, o fato de a cidadania envolver deveres não impede que, nas democracias modernas, ela seja concebida como expressão da liberdade. A falta de liberdade parece ocorrer nos momentos em que a possibilidade de ações com sentido político é bloqueada. O que confere sentido político a uma ação é a liberdade política. A instauração de uma ditatura de qualquer orientação ideológica, o abuso do poder por parte do Estado, a cristalização de uma burocracia intransigente, o bloqueio das instituições de-

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brio ecológico. O ritmo do crescimento econômico e a exploração concomitante dos cada vez mais escassos recursos naturais dão sinais de que podem alterar radicalmente as condições climáticas, causar a degradação dos mares e, desse modo, afetar a vida na terra. Isso fez da ecologia um ponto importante para o debate político contemporâneo. Essa agenda e os desafios que ela impõe às gerações de hoje e do futuro põem em evidência um aspecto do problema que estamos discutindo. • Em dupla, pesquise o assunto recorrendo a revistas, jornais e internet: As instâncias de decisão política em diversos níveis (municipal, estadual, nacional e internacional) têm ou não se mostrado capazes de regular a exploração predatória das fontes naturais pelos agentes econômicos? Apresente os resultados para os demais colegas em forma de seminário. Ao fim, produza uma redação expondo o seu ponto de vista sobre o assunto.

mocráticas, o descontrole econômico, a intolerância de certas doutrinas ideológicas, tudo isso coloca em risco a possibilidade de fazer política, de participar dela. A dissolução da política, desse ponto de vista, pode ser caracterizada como um retorno à condição da natureza, compreendida como reino da necessidade. Pois, quando nos faltam as condições para exercer efetivamente nossa liberdade política, os rumos da sociedade adquirem características de uma necessidade cega, diante da qual as escolhas dos indivíduos é completamente irrelevante.

liberdade e necessidade

Atividade em equipe, apresentação de seminário e desenvolvimento individual por escrito

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Louis Kurz (1835-1921), “Batalha de Franklin Tenessee – 1864” (litografia de 1891) . Kurz & Allison. Library of Congress, Washington DC

A Guerra civil norte-americana, ou Guerra de Secessão, ocorreu entre 1861 e 1865, e opôs onze Estados Confederados, do Sul, contra os Estados do Norte

unidade 9 A bagunça do meu quarto ..................... 251 A origem do mundo ..................... 256 A ordem política ..... 259

P

or mais que às vezes nos pareçam opressivas, o que seria de nossa vida e de nosso mundo se todas as leis, regras e normas, tomadas como instrumentos de instituição e manutenção da ordem, subitamente deixassem de valer? Seria o fim da civilização, a chamada barbárie?

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Da ordem do irracional ........... 267

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A geometria fractal, fruto das pesquisas do matemático Benoit Mandelbrot (1924-2010) é um complexíssimo modelo matemático que busca esclarecer comportamentos aleatórios. Seu trabalho foi central para o que veio a ser chamado de “teoria do caos”.

Todavia, é esse “irrelacionável” o que, por vezes, encontramos naquilo que chamamos “desordem”. Ordem civil, controle e sociedade Pense em uma guerra civil, por exemplo. À primeira vista, trata-se de um estado de completa desordem, em que os grupos em conflito buscam impor aos demais a sua própria ordem. Tudo se passa como se o conflito deflagrador do caos fosse uma etapa da instituição de uma nova ordem. O caos, nesse caso, é o que antecede ao surgimento de uma nova ordem, como se a preparasse. Por isso, também, é um caos transitório, muito mais fácil de compreender do que a ideia de um caos mais duradouro e aparentemente definitivo. Em certo sentido, a vida humana assemelha-se a uma contínua luta com o caos. A vida seria possível sem ordem? Numa passagem do livro I da República, Platão[+] (427-347 a.C.) faz a principal personagem de seus diálogos, Sócrates, argumentar em

ordem e caos

“Vá arrumar o seu quarto, ele está uma bagunça!” Você já deve ter ouvido isso muitas vezes. Em algumas delas, é possível que você tenha se sentido injustiçado, por achar que a tal “bagunça” não era desordem, mas um arranjo particular das coisas, determinado por suas próprias escolhas e hábitos. O fato, porém, é que o que está arrumado do seu jeito pode parecer desordenado a outras pessoas. Em meio a essa situação tão cotidiana, você pode se perguntar: O que torna uma ordem, estabelecida por mim ou por outra pessoa, indispensável? Para refletir sobre essa pergunta, imagine se toda ordem fosse eliminada, não só a de seu quarto e a da casa em que você mora, mas também a da própria sociedade da qual você é parte, e até mesmo do universo que habitamos. Digamos que seria o caos. Porém, agora, um novo problema se coloca. O que devemos entender por essa palavra? Podemos chegar a imaginar o caos? Se levarmos em conta que nossa imaginação e, sobretudo, a linguagem que praticamos já são ordenadoras (pense, por exemplo, nas técnicas artísticas e nas regras gramaticais), é duvidoso que possamos descrever, representar ou mesmo nomear um estado de completa ausência de ordem. Santo Agostinho[+], filósofo e teólogo medieval, definiu ordem (ordo) nos seguintes termos: “disposição de coisas iguais ou desiguais atribuindo-se a cada uma o seu lugar” (A cidade de Deus 19, 13, 1, apud Fontanier, Vocabulário latino da filosofia: de Cícero a Heidegger. Tradução de Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 100-101). Se, com base nessa definição de ordem, perguntamos o que é o caos, esbarramos numa grave dificuldade: como compreender um elemento que rejeita lugar na ordem, não se subordina à hierarquia estabelecida ou não se relaciona com nenhum outro elemento do conjunto em que está inserido?

Criação: Wolfgang Beyer [Ultra Fractal 3]. CC-sa-3.0

A bagunça do meu quarto

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Pieter Brueghel. Kunsthistorisches Museum

Pieter Brueghel, o Velho (1525-1569), Torre de Babel (1563, óleo sb/ madeira).

ordem e caos

Conforme o relato bíblico, Deus dispersou os povos pela diferença de suas línguas.

favor da necessidade da justiça como princípio de ordem: mesmo em uma quadrilha, os ladrões precisam ser justos uns para com os outros, proceder com ordem, caso contrário não poderiam ser bem sucedidos em seus intentos. A desordem entre eles impediria a própria ação conjunta em relação à ordem contra a qual se voltam. Mas nosso exemplo inicial não vai tão longe, pois seria exagero enxergar quem deixa o quarto bagunçado como se fosse um contraventor... O que interessa é que, se alguma vez ocorreu de lhe dizerem para arrumar o quarto e você retrucou que ele já estava arrumado, você também assumiu para si o princípio da ordem. Uma ordem que talvez só você consiga compreender, é verdade, mas ainda assim uma ordem. Logo, quando contestamos a imposição de uma ordem alheia e estranha a nós, quase sempre é para ver reconhecido nosso próprio princípio de ordenação. E isso, é fácil perceber, é bem diferente de tomar o partido do caos. Não por acaso, o filósofo Edmund Husserl (1859-1938) disse: “a verdadeira ciência deve ordenar o caos em um cosmos, em

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uma ordem simples, completamente clara e desenvolvida” (Husserl. A filosofia como ciência rigorosa. Tradução nossa. Edição de referência: Philosophie als strenge Wissenschaft. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 1965, p. 69). Desse ponto de vista, a própria verdade depende de ordenação, entendida como procedimento de eliminação do caos. Por outro lado, não é fácil instituir e conservar uma ordem, seja ela qual for. O motivo talvez resida em que a total eliminação do caos, por meio da instauração de uma ordem definitiva, seja um fim irrealizável. Voltemos ao exemplo da vida em sociedade. Se já não é fácil manter o quarto arrumado ou simplesmente convencer os outros de que ele está em ordem... o que dizer então da complexa tarefa de se administrar uma sociedade composta por grupos diferentes, cada qual com interesses particulares, cujas ações são ordenadas em sentidos ora convergentes, ora divergentes, ora francamente opostos? Pense nas grandes cidades do Brasil e do mundo: elas não são, ao mesmo tempo, ordem e caos?

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O PLANEJAMENTO URBANÍSTICO DE BRASÍLIA Como você deve saber, nossa capital feCroqui: Lucio Costa, Foto: Arquivo/AE

deral, Brasília, nasceu antes no papel do que na realidade. Ou melhor, numa prancheta, a do arquiteto e urbanista Lúcio Costa (Toulon, França, 1902 – Rio de Janeiro, 1998). Tudo começou com a decisão do presidente Juscelino Kubitscheck (1902-1976). Lúcio Costa venceu o concurso nacional que selecionou o projeto urbanístico da nova capital federal, até então situada na cidade do Rio de Janeiro. Sua concepção da nova capital foi inspirada nos ideais da arquitetura e do urbanismo modernos. Não por acaso, o grande parceiro de Lúcio Costa na elaboração dos espaços e edifícios públicos na nova capital foi

Plano piloto de Brasília

Oscar Niemeyer (1907-2012). Leia, abaixo, um trecho do memorial do plano piloto de Brasília, de autoria de Lúcio

vantagem de garantir a ordenação urbanística

Costa, que lhe valeu a premiação do projeto

mesmo quando varie a densidade, categoria,

com base no qual a capital federal foi edifi-

padrão ou qualidade arquitetônica dos edifícios

cada. Nesta passagem, em que Lúcio Costa

e de oferecer aos moradores extensas faixas

apresenta a solução que havia idealizado para

sombreadas para passeio e lazer, independente-

a questão da moradia na nova cidade, você

mente das áreas livres previstas no interior das

perceberá o aspecto do planejamento, da or-

próprias quadras.” (Lúcio Costa, Brasília, cidade

denação ideal do espaço urbano:

que inventei. Relatório do Plano Piloto de Brasília. Brasília: Governo do Distrito Federal, 1991, p. 30)

solução de criar-se uma sequência contínua de

No oposto da origem planejada de Brasí-

grandes quadras dispostas em ordem dupla ou

lia, há inúmeras cidades na Europa que man-

singela, de ambos os lados da faixa rodoviária,

têm ainda intacto o desenho antigo de suas

e emolduradas por uma larga cinta densamente

ruas centrais. Cidades como Spoleto, na re-

arborizada, árvores de porte, prevalecendo em

gião da Umbria, ou Barga, na região da Tos-

cada quadra determinada espécie vegetal, com

cana, ambas na Itália; a aldeia de Piódão, em

chão gramado e uma cortina suplementar inter-

Portugal, ou a cidade de Chartres na França,

minente de arbustos e folhagens, a fim de res-

são exemplos de uma ocupação urbana não

guardar melhor, qualquer que seja a posição do

planificada, ao menos não nos moldes mo-

observador, o conteúdo das quadras visto sem-

dernos, quando a cidade passou a poder ser

pre num segundo plano e como que amortecido

pensada antes mesmo de vir a existir, como é

na paisagem. Disposição que apresenta a dupla

o caso de Brasília.

Aprofundemos este aspecto de nossa questão. Observamos anteriormente as dificuldades que cercam a noção de caos. Isso porque não é fácil definir precisamente o conceito que corresponde a essa palavra.

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Mas vejamos o outro lado do problema. Será que a nossa vida pode se desenvolver em uma ordem simples, completamente clara e lógica, imune a qualquer adversidade caótica?

ordem e caos

“Quanto ao problema residencial, ocorreu a

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Aldous Huxley e O admirável mundo novo Desenvolvimento individual por escrito “As pessoas que governam o Admirável Mundo Novo podem não ser sãs de espírito (no sentido absoluto desta palavra), mas não são loucas, e o seu fim não é a anarquia, mas a estabilidade social.” Essas são palavras do “Prefácio” de 1946 da obra O admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley (1894-1963), um dos romances mais lidos do século XX. O livro conta a história de uma era no futuro, em que os seres humanos são adestrados e treinados para viver socialmente em total harmonia. Não há, nem pode haver conflito, desordem ou caos no futuro do admirável mundo novo. Huxley deixa claro que essa visão do futuro é sombria, exatamente porque nessa sociedade todas as atividades e desejos estão constrangidos a promover “a estabilidade social”. Há uma versão cinematográfica de Admirável mundo novo, dirigida por Leslie Libman e Larry Willians (EUA, 1998).

ordem e caos

• Tendo em vista as questões envolvidas na fábula de um planejamento social total, procure, em um texto de aproximadamente duas páginas, posicionar-se sobre a seguinte indagação: a seu ver, a tecnologia está sendo utilizada como meio para criação de uma ordem social que termina se confundindo com o controle sobre os indivíduos? Ou, ao contrário, o progresso da tecnologia não põe em risco a nossa liberdade individual?

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A ordenação plena da vida talvez não seja possível e nem desejável, pois a completa subordinação a uma ordem, caso isso fosse mesmo possível, atingiria nossa liberdade. Desse ponto de vista, buscar submeter os homens a uma ordem imposta a todo custo leva, mais cedo ou mais tarde, ao conflito, à violência e eventualmente à desordem. Assim, o desejo de imposição da ordem pode produzir seu contrário, o caos! Não por acaso, no curso do século XX, houve muitos pensadores que, impressionados com o avanço formidável da tecnologia, lançaram uma advertência sobre os riscos que isso poderia trazer. Aproximando o ideal de realização de uma ordem absoluta à noção de controle, eles protestaram contra a tendência de fazer da ordem total um objetivo que devêssemos perseguir. A complexa conformação social brasileira Essas observações mostram que a multiplicidade, a complexidade parece inseparável da existência da ordem. Vejamos a esse respeito um caso emblemático, o da formação da nossa própria sociedade. Recorrendo à nossa História, é fácil constatar que a chegada dos colonizadores ao território depois batizado de Brasil não foi, a rigor, uma “descoberta”, de acordo os estudos mais aceitos nos dias atuais. Assumir esse termo significaria, para esses estudos, desprezar os povos que já viviam aqui, cuja terra foi, do ponto de vista dos habitantes locais, invadida. O processo fundador do Brasil foi inegavelmente marcado pela imposição violenta de uma ordem, de um sistema econômico-social e de uma cultura completamente estranhos à vida dos povos nativos, e também à das populações trazidas à força da África. A submissão de indígenas e africanos aos valores europeus, à sua religião, ao trabalho forçado, bem como o extermínio de populações inteiras pelas guerras ou por doenças testemunham abundantemente esse fato.

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Contudo, a imposição da ordem econômica e social europeia às populações ameríndias e africanas não explica por si só a formação da nossa sociedade, bastante singular se comparada à de outras nações colonizadas por outros países europeus. Como se sabe, foi característica da colonização portuguesa a miscigenação dos povos (que deu origem, no pensamento social brasileiro dos séculos XIX-XX, ao assim chamado “mito das três raças”: o português, o indígena e o africano). O impacto da confrontação entre povos bastante diferentes, porém envolvidos num mesmo processo (o da colonização do Brasil) terminou sendo decisivo para a formação da sociedade brasileira. De fato, o tecido social nacional é feito de muitos agentes diferentes,

oriundos de diversas tradições e culturas. Aos portugueses, indígenas e africanos, juntaram-se depois tantos outros, como os imigrantes vindos da Europa e da Ásia. A constituição da sociedade brasileira não remonta a nenhuma ordem ou unidade cultural tomada em separado, mas ao encontro conflitante de ordens de início diferentes entre si. Retomemos, agora, as considerações gerais com que começamos nossa discussão. Quando falamos em caos, tendemos a nos referir à desordem, compreendida no sentido da desestruturação de uma ordem preestabelecida: por exemplo, a queda do Império Romano, a decadência do Absolutismo, a quebra de um sistema econômico, a falência de uma empresa ou mesmo uma doença degenerativa.

GILBERTO FREYRE E A MISCIGENAÇÃO NO BRASIL Em dezembro de 1933, foi publicada uma

como também de proximidade entre os agru-

obra que se tornaria por muito tempo refe-

pamentos característicos da colônia, sobretu-

rência para a compreensão da formação da

do entre brancos e negros. Ao longo do livro,

sociedade brasileira: Casa-grande e senzala,

Freyre examina diversos aspectos da miscige-

escrita pelo pernambucano Gilberto Freyre

nação, que se tornou uma prática bastante ge-

(1900-1987).

neralizada, dando forma ao que terminou se tornando a identidade nacional brasileira.

tros dois marcos para a compreensão de nosso

A obra de Freyre representou uma rup-

país, Raízes do Brasil (1936), de Sérgio Buarque

tura com modelos teóricos antecedentes,

de Holanda (1902-1982), e Formação do Brasil

que, baseadas em concepções naturalistas e

contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr. (1907-

deterministas, preconizavam que a mistura

1990). Mas a obra de Gilberto Freyre é, dentre

de raças seria prejudicial à formação da civi-

essas, a que dedica mais atenção à miscigena-

lização no Brasil. De outro lado, Casa-grande

ção e às consequências que a mistura das po-

e senzala foi frequentemente criticada como a

pulações branca, índia e negra produziu sobre

obra responsável pela criação do mito da “de-

a sociedade brasileira.

mocracia racial” brasileira, o que, na visão de

Freyre discute no livro de que forma a

diversos intérpretes, travou o reconhecimen-

vida colonial, que encontrou sua expressão

to da existência do racismo no Brasil. O deba-

nas propriedades fundiárias dos senhores de

te em torno disso envolveu o próprio Freyre,

engenho (a casa-grande ao lado da senzala),

que, em mais de uma ocasião, procurou reba-

não apenas conformou relações de hierarquia

ter tais críticas.

ordem e caos

No mesmo período, foram publicados ou-

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Johann Moritz Rugendas. Biblioteca Nacional, RJ

Johann Moritz Rugendas permaneceu no Brasil entre 1822 e 1825 e publicou em 1835 suas imagens em Viagem pitoresca atravĂŠs do Brasil (1835).

Em todos esses casos, tomados como eventos caóticos, tende-se a ressaltar o aspecto negativo do caos, a indicar que, em nossa compreensão usual da relação entre ordem e caos, subentendemos a ordem como mais valiosa. No entanto, no exemplo anterior sobre a formação da identidade nacional, destaca-se a ideia de que, em boa medida, o caos tambÊm pode ser a ocasião da ordem.

De um lado, hå situaçþes em que a tentativa de impor uma ordem a qualquer custo termina produzindo desordem e caos. De outro, hå situaçþes em que da desordem surge uma ordem. Extraímos disso uma conclusão importante: a de que ordem e caos são noçþes correlatas, imbricadas uma na outra. Seria possível separå-las completamente?

ordem e caos

A origem do mundo

Ă€ pergunta sobre a origem do mundo os homens respondem de inumerĂĄveis formas, diversas e antagĂ´nicas: a ordem do mundo tem origem exterior ao mundo; a ordem do mundo ĂŠ autossuficiente; o mundo ĂŠ ordenado e racional; e, atĂŠ mesmo, o mundo ĂŠ caos e acaso. Todas essas, e outras mais, sĂŁo respostas possĂ­veis a questĂľes de carĂĄter cosmolĂłgico. Particularmente interessante, pelo desafio que abre para a nossa compreensĂŁo, ĂŠ a “respostaâ€? que encontramos em um dos textos mais antigos do pensamento ocidental, a Teogonia (“O nascimento dos deusesâ€?) de HesĂ­odo, poeta grego que viveu entre os os sĂŠculos VIII e VII a.C. O poema de HesĂ­odo pretende narrar “desde o princĂ­pioâ€? (ex arkhĂŞs) a geração dos

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primeiros elementos, dos primeiros deuses e dos homens a partir dos deuses. Os deuses olímpicos (Zeus, Apolo, Ares, Hermes etc.) formam apenas uma das geraçþes narradas no mito. Após um preâmbulo dedicado a louvar as Musas, o poeta começa a narrativa da gênese dos deuses assim: E quem primeiro surgiu foi Khåos, mas logo a seguir / Terra de amplo peito, sempre firme assento de todos / os imortais que habitam os picos do nevado Olimpo; / [então] sombrio Tårtaro no âmago do solo de largos caminhos, / e Amor, o mais belo dentre os deuses imortais,/

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(Hesíodo, Teogonia, versos 116-125. Tradução nossa.)

Galleria degli Uffizi, Florença.

HesĂ­odo considera o Caos (KhĂĄos) o primeiro dos deuses, do qual todos os demais descendem. Principalmente, depois do Caos nasceu Eros (o Amor), aquele que torna possĂ­vel a geração dos que se sucedem (Éter e Dia, diz o poema, foram gerados atravĂŠs do amor entre Noite e Érebo). NĂŁo ĂŠ espantoso? Afinal de contas, em HesĂ­odo o “caosâ€? ĂŠ indicado como princĂ­pio da teogonia, da ordem dos deuses e dos homens. O prĂłprio Zeus, instaurador e mantenedor do Olimpo, ĂŠ um descendente distante de Caos. O caos, nesse caso, ĂŠ origem da ordem do mundo (kĂłsmos). Esse sentido por assim dizer “positivoâ€? do caos exprime-se, aliĂĄs, na prĂłpria

lĂ­ngua grega. O vocĂĄbulo KhĂĄos procede de um termo comum aos verbos gregos khaĂ­no, que significa “abrir-seâ€? ou “entreabrir-seâ€?, “abrir a bocaâ€?, “ficar boquiaberto de espanto, espera ou admiraçãoâ€?, “abrir a boca para falarâ€?, “falarâ€? (khĂĄnos: “bocaâ€?); e khĂĄsko: “abrir-seâ€?, “bocejarâ€?, “ficar boquiabertoâ€? (cf. A. Bailly, Dictionnaire grec-français. Paris: Hachette, 2000, pp. 2113, 2127). Assim, na origem da palavra KhĂĄos, confluem duas atitudes opostas: a do espanto diante de algo que nos deixa boquiaberto e a da articulação dos sons conforme o propĂłsito de se comunicar com os outros. No mito de HesĂ­odo, “Caosâ€?, o primeiro dos deuses, dĂĄ origem a um mundo organizado no qual os deuses e os homens sĂŁo gerados por atração mĂştua. De modo semelhante, abrimos a boca para falar, para produzir mediante sons palavras encadeadas em uma ordem e possuindo um sentido. Nesse contexto, o caos nĂŁo desagrega, mas articula e organiza, embora a ordem nele constituĂ­da seja muito diversa da relativa a um sistema de razĂľes, cujos elementos se deixam deduzir uns dos outros segundo regras universalmente vĂĄlidas de explicação.

VĂŞnus (Afrodite, na mitologia grega) ĂŠ a deusa do amor e da beleza. Mas, para os romanos,

ordem e caos

que afrouxa os membros, a todos os deuses e a todos humanos / vencendo-lhes, no peito, [qualquer] propĂłsito e ponderada determinação. / E de KhĂĄos geraram-se tanto Érebo quanto a negra Noite, / tambĂŠm por sua vez da Noite nasceram o Éter e o Dia, / aos quais concebeu e pariu ao misturar-se ao Érebo em afeição.

ĂŠ tambĂŠm mĂŁe de Cupido, cujas flechas trazem desordem (Sandro Botticelli [1445-1510], O nascimento de VĂŞnus, Ăłleo sb/ tela, 1485).

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Album/Prisma/Latinstock

O Caos se opõe à ordem? O que há de tão significativo para nós nesse mito? É que, no contexto do pensamento grego de Hesíodo, entre caos e cosmos parece não existir uma oposição radical, mas, sim, uma complementação. Ora, em nossa linguagem cotidiana, “caos” não é frequentemente oposto a “cosmos”? Quando nos referimos a “cosmos”, geralmente pensamos na apreciação de uma disposição harmônica das coisas. E essa ideia é antiga. De fato, na Unidade Realidade e aparência (módulo “As aparências enganam?”), examina-se como, a partir de Pitágoras, a ideia de cosmos exprime a estrutura harmônica do universo. Por mais instigante que seja o pensamento veiculado na poesia de Hesíodo, o pensamento filosófico moderno, especialmente em sua vertente racionalista, assume uma direção divergente da dele. As vertentes do pensamento racionalista postulam como verdade inquestionável que tudo exige uma causa como razão de origem, razão essa que poderia ser entendida enquanto inteligência, seja ela humana ou divina. Os modernos – a exemplo de René Descartes[+] (15961650), Gottfried Leibniz (1646-1716) e Baruch Espinosa (1632-1677) – exprimem tal posição dizendo, por exemplo: Ex nihilo nihil fit, “Do nada nada se faz”; Nihil est sine ratione, “Nada é sem razão”. Na linguagem da filosofia moderna, essas teses são enunciadas no princípio de razão suficiente. Do ponto de vista desse princípio, seria absurdo pensar uma origem caótica da ordem, porque isso seria contrário à razão, na medida em que esta toma como princípio universal de explicação da realidade justamente... a impossibilidade de algo nascer da desordem. Logo, aos olhos de um defensor do racionalismo, seria impossível explicar a razão de algo que faz exceção à ordem. O que está fora da ordem é interpretado como não sendo nada, até mesmo como “o Nada”, porque contraria o princípio de ex-

A pergunta metafísica pela ordem tornou-se indagação pelo princípio de ordenação da vida social – uma questão recorrente entre os antigos.

plicação de tudo o que verdadeiramente é, para essa corrente de pensamento. Diferentemente, no mito arcaico de Hesíodo, em lugar do princípio que exige uma causa racional para todo acontecimento, inclusive o do próprio mundo tomado em sua totalidade, encontramos o Caos como um elemento primordial e Eros, o amor, como princípio de geração. Mas não se engane. Hesíodo não nos apresenta uma explicação rudimentar da realidade, mas um discurso poético cuja maneira de “encontrar” o real difere de uma explicação baseada em causas ou razões. A realidade não é racionalmente explicada na mitologia de Hesíodo, mas, digamos, apresentada de uma certa maneira. Podemos, de forma muito geral, chamá-la poética. Nela algo nos é contado, mas não necessariamente explicado, no sentido de uma ordenação de razões consequentes. Será, então, que a forma poética do discurso de Hesiodo é uma maneira efetiva de abordar a “realidade” enquanto esta resiste à explicação racional?

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Hoje em dia, é verdade, uma poética como a Teogonia nos soa fantasiosa, eminentemente imaginativa, como um discurso sobre “coisas que não existem”. E isso é algo muito diferente de uma descrição objetiva ou de uma explicação científica de fatos. Mas você deve refletir se a impressão que o poema de Hesíodo produz sobre nós não tem a ver com a nossa necessidade de sempre identificar, em nosso contato com a realidade, uma “razão suficiente”. Dito de outro modo, pode ser que vejamos a poética de Hesíodo como fantasiosa

porque somos demasiadamente modernos. Como seria possível crer em mitos, se sempre estamos à espera de uma explicação? Se essa for uma boa pergunta, então vale a pena você refletir também sobre o fato de que, quando preferimos uma explicação a um mito, estamos também preferindo, no limite, a ordem ao caos, ao que nos parece sem explicação e caótico. Não há nada de errado nisso. Mas é sempre importante examinar o compromisso que essa escolha representa para a compreensão que possuímos da realidade.

É bem fácil constatar que algum tipo de ordem se faz necessária na vida cotidiana. Da arrumação da casa ao ordenamento jurídico da sociedade, passando pelas regras do jogo que cada um considera o seu preferido, deparamo-nos com ordenações, regulamentos e normas por todo lado. Placas nas ruas assinalam as leis que regulam o trânsito. Relógios de ponto controlam a hora de entrada e

“Cultura”, “cultivo” O significado originário da palavra “cultura” vem do “cultivo” da terra, como a nos lembrar que o universo cultural próprio dos seres humanos nasceu da articulação entre duas ordens: a da natureza (ciclo das estações) e a fabricada pelos humanos a fim de tirar proveito do meio que habitam.

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saída do trabalho. Comissários de bordo demonstram aos passageiros do avião as normas de segurança que devem ser seguidas durante o voo e o que é preciso ser feito em casos de emergência. Mesmo quando damos asas à imaginação, seguimos ou mesmo criamos uma ordem de relações entre os elementos que utilizamos. A execução de uma música, por mais espontânea que seja, é pautada por um ritmo, que não pode ser “atravessado” por nenhum dos integrantes do conjunto. No âmbito das relações entre natureza e cultura, tema de outra Unidade deste livro, o ciclo das estações possibilitou aos humanos organizarem uma intervenção ordenada sobre a natureza, da qual passaram a extrair seu sustento. O cultivo do solo, é sempre oportuno recordar, está na origem da palavra e do conceito de “cultura”. Seja natural ou humana, a ordem, como foi dito, parece encontrar-se por todo lado. Ao percebermos que a vida cotidiana é permeada de ordem, surge a suspeita de que algum tipo de ordenamento esteja sempre presente em nossas vidas. De fato, muitos filósofos dedicaram-se a discutir a origem da ordem por contraposição ao caos, investigando o princípio a partir do qual a ordem é produzida ou o princípio com base no qual a ordem vigente é justificável.

ordem e caos

A ordem política

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No caso da reflexĂŁo sobre a polĂ­tica, xĂŁo polĂ­tica tambĂŠm se alterasse em funnĂŁo hĂĄ como evitar esta questĂŁo. Pois a ção das modificaçþes por que passaram os polĂ­tica, em seu sentido mais imediato, ĂŠ fenĂ´menos polĂ­ticos ao longo da histĂłria. o conjunto de cĂłdigos e regras com base Selecionamos para exame duas resnos quais indivĂ­duos postas Ă pergunta pela interagem socialmenorigem e finalidade da te. É com base em reordem polĂ­tica. A prigras, normas e leis que meira delas ĂŠ a solução, Para AristĂłteles, o os indivĂ­duos constipor assim dizer, “clĂĄsser humano ĂŠ o mais tuem uma coletividasicaâ€? formulada por polĂ­tico de todos de mais ampla do que, AristĂłteles[+] (384-322 por exemplo, a unidaa.C.) na GrĂŠcia antiga os animais, porĂŠm de familiar. e que permaneceu vĂĄliĂŠ o discurso ou a Qual a natureza da, em grandes linhas, linguagem o que o desses cĂłdigos e desdurante a Idade MĂŠdia. sas regras? Sobre que A segunda ĂŠ a resposta diferencia dos outros bases as normas da fornecida por Thomas animais. vida polĂ­tica se enconHobbes (1588-1679), tram fundadas? SĂŁo cuja obra constitui o com indagaçþes como ponto de partida prinessas que nos depacipal da filosofia polĂ­ramos quando nos tica moderna. Como pomos a pensar acerca da nossa prĂłpria serĂĄ fĂĄcil perceber, estas duas respostas existĂŞncia na sociedade. diferem substancialmente uma da outra. Isso explica por que parte importanA diferença entre elas nos instrui sobre o te da filosofia polĂ­tica tenha se dedicado que separa os antigos dos modernos. a refletir sobre a origem da vida civil ou polĂ­tica. Indagar pela origem ou princĂ­pio O animal polĂ­tico da vida polĂ­tica equivale a indagar pelas Leiamos com atenção o trecho abaixo: razĂľes do ordenamento polĂ­tico sob o qual vivem os indivĂ­duos e, por extensĂŁo, pela “Que o homem seja um animal polĂ­finalidade da vida civil. A pergunta pelo tico em grau superior que uma abelha princĂ­pio, na polĂ­tica, ĂŠ a pergunta pela qualquer ou de todo outro vivente em origem da ordem polĂ­tica e dos fins realiestado gregĂĄrio, isso ĂŠ evidente. A nazados por ela. tureza, com efeito, segundo pensamos, E qual seria a resposta a essa pernada faz em vĂŁo: e somente o homem, gunta? Melhor dizendo, quais seriam as dentre todos os animais, possui a palarespostas? Como se verifica em outras vra. Ora, enquanto a voz sĂł serve para ĂĄreas da filosofia, tambĂŠm neste caso indicar a felicidade e a dor, e pertence hĂĄ mais de uma resposta para a mesma por conta disso igualmente aos outros pergunta. A histĂłria da filosofia polĂ­tica animais (pois sua natureza experiapresenta mais de uma solução para a permenta as sensaçþes do prazer e da dor gunta pela origem ou princĂ­pio da ordem e chega a significĂĄ-los uns aos outros), social. Mas esta diversidade nĂŁo deve nos o discurso serve para exprimir o Ăştil e assustar. Afinal, as formas de organizao nocivo e, por consequĂŞncia, o justo e ção polĂ­tica da sociedade se modificaram o injusto. Pois ĂŠ o carĂĄter prĂłprio do profundamente no curso do tempo. Era homem, em comparação com os outros mesmo de esperar, por isso, que a refleanimais, de ser o Ăşnico a possuir o sen-

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teles, Política. Tradução nossa. Livro I, capítulo 2, 1253a)

Com base na anĂĄlise desse passo, vamos procurar apontar a orientação geral da concepção de AristĂłteles sobre a polĂ­tica. A primeira coisa a reter ĂŠ a afirmação de que o ser humano ĂŠ o mais polĂ­tico de todos os animais. Como vocĂŞ sabe, hĂĄ animais que vivem em grupo e dispĂľem de uma organização social complexa, que pode chegar a incluir atĂŠ a divisĂŁo de trabalho. As abelhas, por exemplo, especializam-se conforme funçþes e tarefas a cumprir no interior da colmeia: algumas sĂŁo “operĂĄriasâ€?, outras, “guardiĂŁsâ€?, e uma Ăşnica dentre todas elas, a “rainhaâ€?. Em certa medida, portanto, abelhas tambĂŠm sĂŁo “polĂ­ticasâ€?. Mas AristĂłteles chama a atenção para o fato de que “somente o homem, dentre todos os animais, possui a palavraâ€?. É, portanto, a palavra – ou seja, o discurso ou a linguagem – o que diferencia o ser humano dos outros animais. Se muitos dentre eles possuem a capacidade de emitir sons e por meio deles comunicar prazer e dor, sĂł os humanos aparentam ser capazes de ir alĂŠm disso – e, com o discurso, “exprimir o Ăştil e o nocivo e, por consequĂŞncia, o justo e o injustoâ€?. FazĂŞ-lo ĂŠ ultrapassar o instinto, ĂŠ praticar a polĂ­tica em sentido prĂłprio. Conforme AristĂłteles, portanto, a polĂ­tica estĂĄ profundamente articulada com o discurso. Pois de um lado o discurso possibilita compartilhar noçþes morais, tais como o bem, o mal, o justo e o injusto; de outro, tanto a famĂ­lia, quanto a cidade, tĂŞm origem quando os homens compartilham esses sentimentos – o que sĂł ĂŠ possĂ­vel graças ao discurso. Na lĂ­ngua grega, “discursoâ€? ĂŠ lĂłgos, que tambĂŠm significa “razĂŁoâ€?, “pensamentoâ€?. Assim, ĂŠ porque sĂŁo capazes de pensamento e linguagem

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PĂ“LIS, A CIDADE-ESTADO DA GRÉCIA ANTIGA Entre os gregos da Antiguidade, pĂłlis era o nome da “Cidade-Estadoâ€?, isto ĂŠ, da unidade polĂ­tica que reunia um conjunto de indivĂ­duos sob leis, normas, uma armada e uma administração comuns. A GrĂŠcia antiga reunia diversas Cidades-Estado, cada uma delas com caracterĂ­sticas prĂłprias. As mais conhecidas foram Atenas e Esparta. É a palavra grega pĂłlis que dĂĄ origem aos termos “polĂ­ticaâ€? (portuguĂŞs), politics (inglĂŞs), Politik (alemĂŁo), politique (francĂŞs) etc. HĂĄ muita polĂŞmica em torno do momento exato em que se originou a pĂłlis. Para alguns estudiosos, ela remonta aos regimes oligĂĄrquicos dos sĂŠculos VIII a.C.-VI a.C. Para outros, ĂŠ mais caracterĂ­stica dos regimes democrĂĄticos, que surgiram a partir do sĂŠculo VI a.C. De todo modo, hĂĄ um ponto consensual entre os estudiosos da Cidade-Estado: todos estĂŁo de acordo com o fato de que o tipo de organização polĂ­tica representada por ela consolidou uma forma de mentalidade, para a qual o uso da palavra se torna o principal instrumento de poder. Por isso, ĂŠ frequente associarmos ao surgimento da pĂłlis o aparecimento da retĂłrica e da oratĂłria, da lĂłgica e da argumentação, como tambĂŠm, em Ăşltima anĂĄlise, a consolidação da filosofia. HĂĄ um livro que examina o vĂ­nculo entre o surgimento da pĂłlis e o nascimento da filosofia que vale a pena ler: Jean-Pierre Vernant, As origens do pensamento grego. Tradução: Ă?sis B. da Fonseca. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.

que os humanos sĂŁo naturalmente “animais polĂ­ticosâ€?, conforme AristĂłteles. O que define a humanidade ĂŠ a racionalidade. E isso quer dizer que, a fim de realizarem sua essĂŞncia, os seres humanos tĂŞm de organizar-se em sociedades polĂ­ticas (a pĂłlis, isto ĂŠ: a Cidade, como falava AristĂłteles). SĂł no interior da Cidade o ser humano se realiza plenamente, jĂĄ que, se estiver apartado da vida polĂ­tica,

ordem e caos

timento do bem e do mal, do justo e do injusto, e das outras noçþes morais; e ĂŠ a comunidade desses sentimentos que engendra a famĂ­lia e a cidade.â€? (AristĂł-

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Linda Steward/iStockphoto

A revolução inglesa opôs o rei Carlos I, da Inglaterra, aos seguidores do líder revolucionårio Oliver Crommwel (1599-1658). Carlos I foi executado em 1649.

ordem e caos

ele se verĂĄ impedido de compartilhar a razĂŁo e de servir-se do discurso.

O lobo do homem Passemos, agora, ao exame do pensamento de Thomas Hobbes, filósofo, político, autor de uma obra considerada tão importante para a filosofia política quanto a Política de Aristóteles. Trata-se do livro intitulado Leviatã, publicado na Inglaterra, em 1651. Examinar um trecho desta obra irå nos transportar para uma concepção da política muito distinta daquela que examinamos acima. Hobbes diverge de Aristóteles sob muitos aspectos. Mas queremos enfatizar aqui sobretudo um deles. Vimos que, conforme Aristóteles, a política Ê, fundamentalmente, o exercício conjunto das faculdades morais e intelectuais dos indivíduos. Para Aristóteles, política e discurso estão profundamente ligados. Pois bem, o que verificamos em Hobbes Ê algo diverso. A linguagem, segundo Hobbes, atÊ Ê importante para a política, mas estå longe de ser o que a define. Embora Hobbes admita que a linguagem e o discurso são essenciais aos humanos, não Ê sobre isso que

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ele insiste, ao explicar-nos o que ĂŠ preciso para que se estabeleça a vida polĂ­tica. Leia o trecho abaixo, procurando atentar para a novidade introduzida por Hobbes em relação a AristĂłteles: “Mesmo que haja uma grande multidĂŁo, se as açþes de cada um que a compĂľe forem determinadas pelo julgamento e pelos apetites individuais de cada um, nĂŁo se poderĂĄ esperar que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguĂŠm, seja contra o inimigo comum, seja contra os danos causados uns aos outros. Pois, se suas opiniĂľes divergem quanto ao melhor uso e aplicação da sua força, em vez de se ajudarem sĂł se atrapalham uns aos outros, e essa oposição mĂştua faz reduzir a nada a sua força. Assim, nĂŁo apenas facilmente serĂŁo subjugados por uns poucos que tenham entrado em acordo, mas alĂŠm disso, mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farĂŁo guerra uns contra os outros, por causa dos seus interesses particulares. Pois se conseguĂ­ssemos imaginar uma grande multidĂŁo capaz de consentir na observância da justiça e das

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outras leis da natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente conseguirĂ­amos imaginar a humanidade inteira capaz de fazer o mesmo. Nesse caso nĂŁo haveria, nem seria necessĂĄrio, nenhum governo civil ou repĂşblica, pois haveria paz sem sujeição.â€? (Hobbes, LeviatĂŁ ou matĂŠria, forma e poder de uma repĂşblica eclesiĂĄstica e civil. Tradução: JoĂŁo Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 2008, CapĂ­tulo XVII [“Das causas de uma repĂşblicaâ€?], pp. 144-145)

Agora, passemos Ă anĂĄlise do trecho. Vamos realizĂĄ-la em trĂŞs etapas. “Uma grande multidĂŁoâ€? significa, aqui, uma comunidade de indivĂ­duos bem mais ampla do que, por exemplo, uma unidade familiar. Hobbes estĂĄ nos dizendo que nĂŁo basta haver uma grande multidĂŁo para as-

segurar aos indivĂ­duos nela reunidos defesa e proteção contra inimigos externos – ou seja, contra um “inimigo comumâ€?. Mas isso nĂŁo ĂŠ tudo. Essa multidĂŁo, continua Hobbes, nĂŁo ĂŠ capaz sequer de assegurar a paz interna entre os indivĂ­duos que a compĂľem. A apoiar-se somente sobre os julgamentos e inclinaçþes de cada um dos seus integrantes, o grupo que forma essa “grande multidĂŁoâ€? poderĂĄ facilmente autodestruir-se. Contra o que defendia AristĂłteles, assim, Hobbes afirma que, para constituir e manter uma ordem polĂ­tica, nĂŁo basta aos indivĂ­duos comunicarem-se uns com os outros. Em segundo lugar, Hobbes apresenta as razĂľes que apoiam as conclusĂľes que ele havia avançado na primeira parte de nosso trecho. Isso ĂŠ sinalizado pelo recurso Ă conjunção explicativa “poisâ€?, que inicia o perĂ­odo. Releia com atenção o passo, e procure, assim, identificar a razĂŁo apontada por

manha e ItĂĄlia. Mais tarde,

em Westport, na Inglater-

em 1637, Hobbes retorna

ra, no ano de 1588. Como

à França e estabelece boas

ele mesmo conta, seu nas-

relaçþes com o padre Marin

cimento

Mersenne (1588-1648), muito

transcorreu

sob

o signo do medo. Quando

prĂłximo de RenĂŠ Descartes.

sua mĂŁe estava grĂĄvida, a

A crise polĂ­tica e social

Espanha travava uma guer-

atravessada pela Inglaterra a

ra com a Inglaterra. Hobbes

partir de 1640, que resultou

veio Ă luz precocemente,

numa guerra civil e na deca-

quando sua mĂŁe soube, te-

pitação do rei Carlos I (1600-

merosa, que a InvencĂ­vel

1649), marcou profundamen-

Armada, isto Ê, as forças ma-

te a vida e a obra de Hobbes,

rĂ­timas da Espanha, estavam preparando-se

a começar porque, tendo tomado partido

para o ataque aos ingleses.

do rei contra o parlamento, viu-se obrigado

Desde cedo, Hobbes revelou seus dotes

a exilar-se por onze anos em Paris. Quando

intelectuais. Aos seis anos, jĂĄ sabia grego e

retorna Ă Inglaterra, em 1651, publica seu livro

latim. Aos 14, traduziu a tragĂŠdia grega de

mais famoso, LeviatĂŁ. As ideias expostas na

EurĂ­pedes, Medeia, para o latim. ApĂłs se for-

obra garantem fama, mas tambĂŠm inĂşmeros

mar (1608), Hobbes tornou-se tutor de um

adversĂĄrios a Hobbes, acusado de imoralis-

aristocrata e com ele viajou pela França, Ale-

mo, ateĂ­smo etc. Hobbes falece em 1679.

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Thomas Hobbes nasceu

John Michael Wright. National Portrait Gallery, Londres

Hobbes

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Everett Collection/Keystone

O gĂŞnero cinematogrĂĄfico do faroeste explora uma tĂ­pica convenção narrativa: o vĂĄcuo de poder polĂ­tico cria oportunidade para o banditismo e todo tipo de abusos – e o “mocinhoâ€? busca restaurar a ordem.

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Hobbes para o fato de que uma multidĂŁo de indivĂ­duos reunidos possa fracassar em promover sua defesa e a segurança mĂştua. VocĂŞ perceberĂĄ que a principal razĂŁo desse provĂĄvel fracasso reside na divergĂŞncia de opiniĂľes dos indivĂ­duos sobre o melhor uso a fazer de sua força. É o desacordo mĂştuo o que enfraquece esses indivĂ­duos e os expĂľe tanto ao risco de serem dominados por algum grupo coeso, quanto ao risco de se indisporem internamente uns com os outros, a ponto de guerrearem entre si, devido a seus “interesses particularesâ€?.

O que leva os homens a se associarem? Se agora voltarmos Ă comparação com AristĂłteles, poderemos identificar qual o principal motivo que conduz Hobbes a contrariĂĄ-lo. Conforme Hobbes, os homens dificilmente se entendem uns com os outros, simplesmente porque cada qual busca fins prĂłprios, que divergem dos fins alheios. Nada, segundo Hobbes, favorece uma convergĂŞncia espontânea entre os indivĂ­duos. Em terceiro e Ăşltimo lugar, no trecho citado Hobbes afirma que “uma grande

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multidĂŁoâ€? nĂŁo age espontaneamente com base na justiça, nem com base em outras leis da natureza. Com isso, Hobbes aponta que os indivĂ­duos podem atĂŠ saber o que seja a justiça; sĂł que coisa bem diferente de saber no que ela consiste ĂŠ agir observando – isto ĂŠ, respeitando – a justiça. Isso eles nĂŁo fazem, a nĂŁo ser sob a condição de que exista “um poder comumâ€? que mantenha “a todos em respeitoâ€?. Se fosse possĂ­vel prescindir dessa condição; se, portanto, os indivĂ­duos agrupados em uma grande multidĂŁo fossem capazes de agir juntos observando a justiça, sem serem forçados a isso por um “poder comum que mantivesse a todos em respeitoâ€?, neste caso, conclui Hobbes, o “governo civil ou repĂşblicaâ€? nĂŁo seriam necessĂĄrios. Eis o ponto para o qual estĂĄ orientado todo o raciocĂ­nio de Hobbes em nosso trecho. Visto que os indivĂ­duos nĂŁo observam espontaneamente a justiça, sĂł hĂĄ paz com sujeição. Sujeição a que? A “um poder comum que mantenha a todos em respeitoâ€?... Esta ĂŠ a grande novidade da concepção polĂ­tica hobbesiana em relação Ă concepção aristotĂŠlica. Segundo Hobbes, sĂł hĂĄ ordenamento polĂ­tico onde hĂĄ uma instância cuja força ĂŠ capaz de manter unidos todos os indivĂ­duos do corpo polĂ­tico. Afirmar que nĂŁo hĂĄ paz sem sujeição equivale a dizer que uma multidĂŁo de indivĂ­duos reunidos sĂł se torna uma unidade polĂ­tica ordenada na medida em que estes indivĂ­duos aceitam submeter-se a um poder comum, dotado de força para obrigar a todos aĂ­ reunidos a agirem conforme a justiça. Ou seja, a existĂŞncia do governo civil (ou “repĂşblicaâ€?) depende diretamente da presença de uma instância de coerção, munida de força para normalizar as relaçþes interindividuais. Na ausĂŞncia dessa instância coercitiva, a divergĂŞncia de interesses termina por indispor os indivĂ­duos entre si e impossibilitar a ordem polĂ­tica: ĂŠ o caos. Sem uma autoridade reconhecida por todos e dotada de força dissuasiva, conclui Hobbes,

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O PENSAMENTO ANARQUISTA É difĂ­cil dizer quando exatamente surgiu o ideĂĄrio do anarquismo. Os anarquistas viram com muita simpatia J.-J. Rousseau, que defendia que o ser humano ĂŠ naturalmente bom e que a sociedade o corrompe. Certo ĂŠ que o primeiro a declarar-se “anarquistaâ€? foi Pierre-Joseph Proudhon (18081865), filĂłsofo e polĂ­tico francĂŞs. Ele afirmava que o Estado era um mal desnecessĂĄrio e que os trabalhadores deveriam associar-se em comunidades livres de propriedade privada. Seu livro mais importante chama-se O que ĂŠ a propriedade? Pesquisa sobre o princĂ­pio do direito e do governo, de 1840. Ao lado dele, o principal teĂłrico anarquista ĂŠ o russo Mikhail A. Bakunin (1814-1876), que se tornou conhecido por sua oposição Ă ideia de ditadura do proletariado, defendida por Karl Marx. Por acreditarem que os governantes de modo geral querem exercer um controle total sobre os indivĂ­duos, muitos anarquistas defenderam a desobediĂŞncia civil. Nos Estados Unidos, alguns anarquistas se recusaram a pagar impostos para o governo, alegando que, com isso, estariam contribuindo para fortalecer algo contrĂĄrio Ă liberdade. Alguns anarquistas chegaram a se auto-exilar em regiĂľes desabitadas, construindo suas prĂłprias casas e vivendo em um regime de subsistĂŞncia. Outros lutaram para introduzir na constituição norte-americana uma emenda que permitisse ao contribuinte assinalar o destino de seus impostos. No Brasil, o anarquismo foi difundido a partir de imigrantes italianos que aqui chegaram no fim do sĂŠculo XIX e inĂ­cio do sĂŠculo XX. No ParanĂĄ, no municĂ­pio de Palmeira, foi fundada em 1890 a ColĂ´nia CecĂ­lia, sob a liderança do anarquista italiano Giovanni Rossi (1859-1943). A ColĂ´nia chegou a contar com 250 indivĂ­duos, que viviam da lavoura de

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nĂŁo hĂĄ vida polĂ­tica possĂ­vel, ĂŠ a guerra de todos contra todos. Ao contrĂĄrio do que vocĂŞ pode ter sido levado a pensar, a tese de Hobbes, embora tenha sido formulada no sĂŠculo XVII Ă ĂŠpoca do Antigo Regime, nĂŁo vale apenas para uma monarquia absoluta, mas tambĂŠm para as formas atuais da democracia. Pois tambĂŠm na ordem democrĂĄtica percebe-se claramente a presença do que Hobbes designava “um poder comum capaz de manter a todos em respeitoâ€?. HĂĄ formas bem concretas para atestĂĄ-lo. Basta um cidadĂŁo pretender sonegar seus impostos, por exemplo, para sentir concretamente o poder do LeviatĂŁ. E isso ĂŠ tĂŁo sabido de todos, que no Brasil o imposto de renda ĂŠ chamado coloquialmente de... “leĂŁoâ€?! Assim tambĂŠm, mesmo se de forma mais sutil, o Estado (o LeviatĂŁ hobbesiano) mostra todo seu poder ao configurar-se como a Ăşnica instância de reconhecimento legal da uniĂŁo matrimonial entre indivĂ­duos. É o Estado quem outorga o direito de propriedade da terra; tambĂŠm ĂŠ o Estado quem define quais sĂŁo os beneficiĂĄrios de suas polĂ­ticas de inclusĂŁo social e assim por diante. Mesmo ali onde a soberania emana do povo (ou seja, numa democracia), ĂŠ o Estado soberano quem, em Ăşltima instância, reconhece os indivĂ­duos como cidadĂŁos, dotados de direitos e deveres. Conforme Hobbes, ĂŠ a busca de proteção e segurança o que faz com que os homens ingressem na sociedade polĂ­tica. Contrariamente ao que pensava AristĂłteles, Hobbes defende que a vida polĂ­tica responde principalmente ao desejo dos indivĂ­duos de se assegurarem frente aos interesses abusivos dos outros. A uniĂŁo faz a força e dĂĄ segurança a cada um dos indivĂ­duos reunidos em um corpo polĂ­tico. Mas note que essa uniĂŁo sĂł ĂŠ realizĂĄvel na medida em que todos os indivĂ­duos reconhecem um indivĂ­duo ou um grupo de indivĂ­duos como seu(s) governante(s).

milho. Diante de inúmeras dificuldades, entretanto, os membros se dispersaram e a Colônia Cecília findou em 1894. Alguns livros sobre anarquismo em português: Proudhon, A propriedade Ê um roubo e outros escritos anarquistas. Tradução: Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1998. Disponível em e-book. Bakunin, O princípio do Estado e outros ensaios. Tradução: Plínio A. Coelho. São Paulo: Hedra, 2008.

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A tragĂŠdia do Haiti

ordem e caos

DiscussĂŁo em grupo e desenvolvimento individual por escrito

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Abaixo, vocĂŞ encontrarĂĄ um possĂ­vel desenvolvimento dos tĂłpicos abordados atĂŠ aqui, para discussĂŁo com seus colegas de classe e redação de aproximadamente duas pĂĄginas. Apresentamos a seguir um caso real para discutirmos uma questĂŁo conceitual. Ela concerne Ă discussĂŁo sobre a questĂŁo da ordem polĂ­tica segundo Hobbes. Trata-se de um fato tirado da histĂłria contemporânea, envolvendo a polĂ­tica internacional, a crise polĂ­tico-social do Haiti. O exame desse caso possibilitarĂĄ compararmos a tese de Hobbes, segundo o qual sĂł hĂĄ paz em sociedade se o Estado for um poder coercitivo “que mantĂŠm a todos em respeitoâ€?, e aqueles que defendem o oposto, os anarquistas (ver box Ă pĂĄg. 267). Para o anarquismo, o Estado ĂŠ uma invenção dos governantes para exercerem um controle excessivo sobre os indivĂ­duos. Em dezembro de 1990, Jean-Bertrand Aristide foi eleito presidente do Haiti. Em setembro de 1991, ele foi deposto por um golpe de Estado promovido por militares. Organizaçþes internacionais como a Organização dos Estados Americanos (OEA) e a Organização das Naçþes Unidas (ONU) protestaram e pediram sua recondução ao poder. ApĂłs breves negociaçþes fracassadas, os militares empossaram Émile Jonassaint, marcando eleiçþes para fevereiro de 1995. Sob liderança dos Estados Unidos da AmĂŠrica, a ONU nĂŁo apenas contestou a legitimidade do poder de Jonassaint, como autorizou uma intervenção militar no paĂ­s, que teve inĂ­cio em setembro de 1994. Entre 1994 e 2000, o Haiti mergulhou em uma profunda crise

polĂ­tica, a despeito de dois presidentes terem sido eleitos. A crise prosseguiu atĂŠ 2004, motivando nova resolução do Conselho de Segurança da ONU, determinando o envio de uma Força Multinacional Interina, liderada pelo Brasil. Em junho de 2004, as forças internacionais assumiram o poder por longo tempo, visto que Ă crise polĂ­tica somaram-se todos os infortĂşnios trazidos pelo terremoto de 12 de janeiro de 2010, que arrasou o paĂ­s, tirando a vida de mais de 200 mil pessoas. Ao discutir a histĂłria recente do Haiti, atente para a seguinte questĂŁo: atĂŠ que ponto a noção de “normalidadeâ€? equivale Ă vigĂŞncia de uma ordem? É possĂ­vel alcançar uma necessĂĄria estabilidade do corpo social sem que haja um poder reconhecido como tal? A crise polĂ­tica e a tragĂŠdia causada pelo terremoto no Haiti ĂŠ um caso extremo, mas representa uma situação que poderia abater-se sobre qualquer povo. Note, por outro lado, que um simpatizante do anarquismo poderia protestar e dizer que o caso do Haiti nĂŁo ĂŠ adequado para esse debate, jĂĄ que a situação que mergulhou o povo haitiano na crise jĂĄ possuĂ­a causas ligadas ao mal representado pelo Estado e os governantes. • Em grupos de trĂŞs, realize uma pesquisa (internet, jornais, revistas) e consulte bibliografia sobre os fatos transcorridos. Procure apontar a origem da crise, seu aprofundamento conforme as etapas que os observadores identificaram nesse processo, atĂŠ o momento em que as forças armadas de outros paĂ­ses foram convocadas para integrar uma missĂŁo da ONU. Com essas informaçþes em mĂŁos, faça uma reflexĂŁo sobre as ideias de ordem e caos no âmbito da filosofia polĂ­tica.

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O pacto que funda a sociedade civil, por isso, Ê um pacto de sujeição à instância que irå monopolizar o uso legítimo da força. E isso Ê indispensåvel para que cada indivíduo persiga seus próprios objetivos. Assim, enquanto Aristóteles defendia que a vida política Ê o fim último dos homens e que, portanto, a Cidade-Estado realiza a essência da humanidade, na me-

dida em que só na vida política os indivíduos convergem em torno de valores comuns, Hobbes, de seu lado, sustenta que o Estado Ê o único modo seguro para que os homens possam satisfazer seus fins particulares com segurança e tranquilidade. Fora da vida civil, somos condenados a viver na condição da guerra de todos contra todos. O caos, ao invÊs da ordem.

Da ordem do irracional O filósofo político Thomas Hobbes[+] (1588-1679) concebeu a reunião dos humanos em sociedade como um conflito permanente, remediåvel apenas por meio do estabelecimento do Estado, instituição que detÊm poder e que pode fazer uso legítimo da força, a fim de assegurar a paz civil. Abandonada a si mesma, a sociedade dos seres humanos seria um eterno conflito de interesses e de paixþes. O Estado hobbesiano, ao conter e ordenar esses interesses e paixþes conflitantes, promove a ordem política, a ordem civil. Por isso, segundo

Hobbes, o Estado ĂŠ expressĂŁo da razĂŁo. Mas e se, diferentemente do que pensou Hobbes, as paixĂľes resistissem com sucesso Ă função ordenadora da razĂŁo? Nesse caso, sĂł restaria Ă razĂŁo impor-se Ă s paixĂľes pela força. Mas isso nĂŁo contradiria a prĂłpria noção de razĂŁo, compreendida por oposição ao que ĂŠ arbitrĂĄrio? AlĂŠm disso, talvez as paixĂľes disponham, nelas mesmas, de uma ordem... Se essa suposição for vĂĄlida, terĂ­amos de nos ver com o que parece ser um paradoxo: uma “ordem do caosâ€?. Vamos examinar mais de perto essa alternativa?

Em seu livro A anatomia da melancolia, o inglĂŞs Robert Burton (1577-1640) “dissecouâ€? as patologias da psiquĂŞ humana segundo um esquema de categorias. Ele dividiu os assuntos,

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Filadelfia; Nova York: Moore; Wiliey, 1850. Internet Archive / Google Books / Universidade de Michigan

Um esquema da melancolia

por exemplo, de acordo com suas causas, seus sintomas, suas possĂ­veis curas. Seu esquema busca compreender o caos das paixĂľes humanas segundo uma ordem racional.

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A ordem das paixĂľes A ideia de que hĂĄ uma ordem das paixĂľes se generalizou na modernidade, no mesmo perĂ­odo em que Hobbes escreveu sua obra. Mas ela surgiu no âmbito da reflexĂŁo ĂŠtica. Para aproximar-se dela, façamos um recurso Ă literatura. Madame de La Fayette foi uma importante escritora francesa do sĂŠculo XVII, atuante no perĂ­odo que se seguiu Ă divulgação da filosofia de RenĂŠ Descartes[+] (1596-1650). Madame La Fayette foi muito prĂłxima de pensadores e escritores ligados ao jansenismo, um movimento de carĂĄter religioso, moral e polĂ­tico, inspirado na obra de Santo Agostinho[+] (354-430). Examinemos o seguinte trecho de um dos romances de La Fayette, ZaĂ­de, publicado em duas etapas: 1769 e 1771. É a histĂłria de dom Alfonso, o narrador

do livro, que conta suas desventuras amorosas. Ao romance, portanto. dom Alfonso Ê um espanhol de meia-idade, que, por conta de suas experiências anteriores na vida, decidira não voltar a envolver-se nunca mais em um relacionamento amoroso. A razão disso, segundo ele revela, seria a inconstância e a infidelidade das mulheres. Mas ele trava conhecimento com uma jovem e linda viúva que acaba de chegar à corte, Belasira. Descobre que ela tampouco possui intençþes de casar-se de novo, pois sofrera muito com a perda do esposo, morto em uma batalha. dom Alfonso, movido pelo orgulho de vencer o desafio representado pela resistência de Belasira, termina cortejando-a, atÊ que ela cede a seus encantos e se apaixona por ele. Como dom

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Marie-Madeleine Pioche de La Vergne, Con-

famosa, que lhe trouxe enorme prestĂ­gio: A

dessa de La Fayette (1634-1693), nasceu em

princesa de Clèves (hå uma tradução brasileira

uma famĂ­lia nobre que era prĂłxima do Cardeal

de LĂŠo Schlafman, pela Editora Record, 2004).

de Richelieu (1585-1642), o todo-poderoso mi-

AlĂŠm do seu interesse literĂĄrio, a obra de

nistro do rei francĂŞs LuĂ­s XIII (1601-1643). Ver-

Madame de La Fayette ĂŠ reveladora das ideias

sada em letras clĂĄssicas,

associadas ao jansenismo,

ela passa a frequentar os

que inspirou tambĂŠm Blaise

salþes literårios da França

Pascal (1623-1662) e o dra-

absolutista. Casa-se aos

maturgo Jean Racine (1639-

21 anos com o conde de

1699). A ĂŞnfase comum a

La Fayette. Seu primeiro

esses autores ĂŠ a impor-

romance, A princesa de

tância conferida ao dogma

Montpensier, foi publica-

cristĂŁo do pecado original

do

em

e da queda, com suas con-

Paris, em 1662. Nos anos

anonimamente

sequĂŞncias para a condi-

seguintes, ela se torna

ção humana, compreendi-

muito prĂłxima de La Ro-

da como sendo a misĂŠria.

chefoucauld (1613-1680),

A única salvação possível

um nobre de grande pres-

residiria na graça divina. A

tĂ­gio, muito conhecido atĂŠ

desordem moral provocada

nossos dias devido à publicação de Reflexþes

pela ordem das paixĂľes, retratada pelos ro-

ou sentenças e måximas morais (1664). Madame

mances de Madame de Lafayette, seguem

de La Fayette publica em 1678 sua obra mais

nessa direção.

Biblioteca Nacional da França, Paris.

Madame de La Faye e e o jansenismo na França

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Alfonso tambĂŠm sucumbe ao amor, amnossas açþes, como se ditassem o que debos decidem casar-se. vemos fazer. É este evidentemente o caso Mas, quando ambos tornam-se noivos, de dom Alfonso, protagonista do romanAlfonso começa a ser possuĂ­do pelo mais ce ZaĂ­de. O mesmo assunto ĂŠ discutido ao violento ciĂşme. Tudo o que Belasira faz inslongo da Unidade RazĂŁo e paixĂŁo. VocĂŞ tiga sua alucinada desconfiança. E o pior de logo se darĂĄ conta do motivo para o abortudo ĂŠ que dom Alfonso sabe que seu ciĂşme darmos aqui. nĂŁo possui qualquer fundamento real. A NĂŁo hĂĄ mistĂŠrio. A reflexĂŁo promovida certo momento, ele diz: “Percebia muito por esses pensadores franceses da segunda bem que tinha errado; mas nĂŁo depenmetade do sĂŠculo XVII traz Ă luz que nem dia de mim ser razoĂĄvelâ€? (Madame de La toda ordem assumida por nĂłs na vida prĂĄFayette, “ZaĂŻdeâ€?, in: La Princesse de Clèves tica ĂŠ pautada pela razĂŁo. Frequentemente, et autres romans. Paris: Gallimard, 1995, p. aliĂĄs, ocorre o contrĂĄrio. No romance de 88. Tradução nossa). Madame de La Fayette, por exemplo, dom Logo em seguida, acrescenta: “Percebia Alfonso sabe que estĂĄ cego pelo ciĂşme. No muito bem que violava as fronteiras da raentanto, nĂŁo ĂŠ capaz de resistir a ele. Toda zĂŁo; mas tampouco acresua ação, do inĂ­cio ao ditava merecer ser infim do caso de amor teiramente condenado, com Belasira, ĂŠ deterĂ€s vezes, as senĂŁo por estar amanminada por uma Ăşnido Belasiraâ€? (Madame ca coisa: a paixĂŁo do paixĂľes organizam de La Fayette, op. cit., ciĂşme. Eis uma forma nossas açþes e p. 89. Tradução nossa). de ilustrar que a orordenam nossa Mas, embora percebendem de nossas açþes, do muito bem que estade nossa conduta nos conduta – por mais va sendo enganado pela assuntos mais imporque, aos olhos da paixĂŁo do ciĂşme, dom tantes, pode assumir e razĂŁo, o resultado Alfonso simplesmente muitas vezes assume nĂŁo conseguia evitĂĄ-la. um princĂ­pio passional. beire o caos. Começa entĂŁo a inferniE isso, a ponto de ser zar de tal modo a vida de mais apropriado conBelasira, que ela desiste cluir que, por vezes, as do casamento. Isso seria apenas dramĂĄtipaixĂľes organizam nossas açþes e nelas se co, mas o romance acaba em tragĂŠdia, pois situa o princĂ­pio de ordenação de nossa condom Alfonso, tomado de paixĂŁo e ciĂşme, duta – por mais que, aos olhos da razĂŁo, o segue atĂŠ onde Belasira se encontra no resultado beire o caos. inĂ­cio de uma noite escura, depara com Em vista disso, nĂŁo ĂŠ muito adequado um homem que saĂ­a de sua casa e termina dizer simplesmente que as paixĂľes, que assassinando-o. Descobre, depois, que era geralmente sĂŁo vistas como arbitrĂĄrias e seu melhor amigo, que buscava convencer impetuosas, promovem a desordem. O Belasira a reatar com Alfonso. Ela entĂŁo fenĂ´meno aqui ĂŠ diverso e merece outra parte para um convento, decidida a jamais formulação, mais adequada. Na verdade, revĂŞ-lo, e ele sucumbe ao arrependimento. o que ocorre no romance de Madame Madade de La Fayette, assim como oude La Fayette ĂŠ que a ordem das paitros escritores e pensadores do perĂ­odo, xĂľes se sobrepĂľe Ă ordem da razĂŁo, como La Rochefoucauld e Blaise Pascal, desorganizando-a, promovendo conduapontaram para o fato de que nossas paitas que a razĂŁo vĂŞ como caos. Mas o que xĂľes por vezes assumem a direção de a razĂŁo interpreta como caĂłtico ĂŠ o fato

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Jean-HonorĂŠ Fragonard (1732-1808) , “Jovem lendoâ€? (c. 1776) . National Gallery of Art, Washington DC

O quadro atesta a difusĂŁo da leitura solitĂĄria no sĂŠculo XVIII, uma prĂĄtica que acompanhou o advento da interioridade moderna.

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de que o princípio que ordena e conduz nossos atos não estå sob seu domínio, e sim sob o das paixþes. A conclusão a tirar daí, todavia, Ê a de que deparamos com duas ordens distintas e conflituosas, e não com uma única ordem – a da razão, abalada pela desordem das paixþes.

O princípio da ordem pråtica Hå, entretanto, outro aspecto no romance de Madame de La Fayette para o qual vale a pena atentar. O protagonista, dom Alfonso, sabe a todo momento o que estå ocorrendo com ele. É verdade que esse conhecimento não o ajuda muito, pois ele permanece incapaz de fazer frente ao ciúme e tudo termina como termina, de forma trågica. Por outro lado, Ê porque sabe o que sabe que dom Alfonso pode escrever sua história, narrar seu infortúnio. O que Ê mais curioso na personagem Ê que o saber da razão só lhe serve para descrever a própria derrota diante das paixþes. Comparemos o caso de dom Alfonso por exemplo com aquele de Édipo, posto em cena na tragÊdia Édipo rei, de Sófocles

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(496-406 a.C.), discutida tambĂŠm na Unidade Liberdade e necessidade. Édipo ignorava completamente a ordem a que estavam sujeitos os acontecimentos de sua vida. Fez tudo o que fez sem saber o que fazia. Encontrou-se com um homem no caminho para Tebas, desentendeu-se com ele, partiram para um combate violento e Édipo terminou por matĂĄ-lo. Chegando a Tebas, casa-se com a rainha, cujo esposo, Laio, desaparecera de forma misteriosa. Édipo ignorava completamente que o homem que havia matado era seu pai e que a rainha de Tebas, Jocasta, com quem terminou por se casar, era sua mĂŁe. Tratava-se de uma ordem dos cĂŠus que ele desconhecia, mas que havia determinado que esse seria o seu destino. A comparação entre a tragĂŠdia de SĂłfocles e o romance de Madame de La Fayette nos ajudarĂĄ quanto ao tema que discutiremos na Ăşltima seção deste mĂłdulo. Por isso, vamos buscar estabelecer a partir dela algumas conclusĂľes. Pondo as coisas de modo simplificado, estamos diante de uma oposição. De um lado, Édipo, que nada sabe. De outro, dom Alfonso, que sabe de tudo. Dois personagens em situaçþes opostas, portanto; mas igualmente infelizes. Édipo encontra-se nessa situação porque a ordem que dirige os atos no curso de sua vida ĂŠ exterior a ele, ultrapassa e transcende (isto ĂŠ: supera, estĂĄ alĂŠm de) sua consciĂŞncia. Trata-se da ordem divina, que comanda todos os acontecimentos mundanos. NĂŁo ĂŠ esse o caso de dom Alfonso. Ele sabe de tudo o que ocorre, pois as duas ordens que lutam entre si lhe pertencem: a ordem de sua razĂŁo e a ordem de suas paixĂľes. Dentre os motivos que o levam a fazer o que faz, nenhum situa-se alĂŠm dele ou ĂŠ exterior a ele. Tudo lhe ĂŠ “internoâ€?: seu entendimento (incapaz de decidir) e suas paixĂľes (que tudo decidem). Observe que, por conta disso que acabamos de apontar, podemos comentar a diferença entre as duas personagens em

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PaixĂľes avassaladoras Desenvolvimeno individual por escrito Com o auxĂ­lio de seu professor de literatura, identifique um romance ou um conto (pode ser nacional ou estrangeiro), no qual as paixĂľes sĂŁo apresentadas como as forças determinantes da ação dos protagonistas. • Elabore uma redação, dividindo-a em duas partes: primeiro, exponha, em termos gerais, a trama da narrativa que vocĂŞ escolheu. Em seguida, busque enunciar um juĂ­zo pessoal e crĂ­tico sobre o desfecho da histĂłria: o que poderia resultar em outro final? VocĂŞ entende que sĂŁo comuns, na vida real, casos nos quais as paixĂľes assumem o comando de nossas condutas?

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“sinto, logo existoâ€? do que para o “penso, logo existoâ€? cartesiano. Mas hĂĄ, alĂŠm disso, outro ponto, como jĂĄ assinalamos. dom Alfonso sabe de tudo o que se passa com ele. EntĂŁo, ĂŠ como se seu lema fosse: “sinto – e sei o que sinto –, logo existoâ€?. Sem dĂşvida, essa formulação revela uma inversĂŁo diante de Descartes, cujo princĂ­pio ĂŠ o pensamento. E tambĂŠm uma diferença maior ainda, de dom Alfonso diante de Édipo, que ignora completamente o que seu destino lhe determinou. Enquanto Descartes dizia saber uma Ăşnica coisa com certeza: “eu pensoâ€?, dom Alfonso sabe mais que isso. Sabe exatamente o que pensa e sabe exatamente o que sente (o ciĂşme devastador em relação a Belasira). Sabe inclusive que o ciĂşme que sente nĂŁo possui fundamento objetivo. Tudo se passa como se o romance de Madame de La Fayette ampliasse os domĂ­nios da consciĂŞncia em relação aos limites que lhe haviam sido assinalados por Descartes. O tipo de indivĂ­duo representado pela personagem de dom Alfonso corresponde a alguĂŠm que lamenta sinceramente o que faz consigo mesmo, porque sabe ser ele mesmo (ou uma parte dele, suas paixĂľes) o responsĂĄvel pelos atos que terminam em desgraça. Entretanto... e se alguĂŠm nos afirmasse que nĂŁo temos consciĂŞncia nem do que acontece dentro de nĂłs mesmos? A novidade de Freud: a ordem do inconsciente Essa suspeita estĂĄ na base das investigaçþes feitas por Sigmund Freud (18561939), o fundador da psicanĂĄlise. Segundo Freud, a contribuição decisiva da psicanĂĄlise foi a de ter mostrado que nossa vida psĂ­quica – isto ĂŠ, o conjunto das representaçþes que circulam em nossa mente – ĂŠ mais ampla do que tradicionalmente havia sido admitido, mesmo por Madame de La Fayette. Pense em dom Alfonso e em Édipo. Este Ăşltimo ignorava completamente o princĂ­pio que dirigia sua vida, a vontade divina, transcendente a ele. Em contraste,

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termos mais globais, que concernem a mudanças transcorridas em uma escala mais ampla. Note que o personagem de Madame de La Fayette revela possuir os traços do indivĂ­duo moderno, que, como se discute em outras Unidades deste livro, ĂŠ profundamente marcado pela “interioridadeâ€?. Na Unidade Eu e o Outro, por exemplo, esse traço da “interioridadeâ€? ĂŠ apontado como um elemento essencial da filosofia de RenĂŠ Descartes, que se funda na certeza de si mesmo, na certeza do “penso, logo existoâ€? (chamado, em filosofia, o “cogitoâ€?, a partir do verbo latino cogitare: pensar). E essa observação ĂŠ muito Ăştil para compreendermos melhor o drama de dom Alfonso, cujo conflito interior termina sendo decidido pela vitĂłria arrasadora das paixĂľes sobre a razĂŁo. Em certa medida, dom Alfonso representa uma viravolta do que havia formulado Descartes, uma manobra que pĂľe o cogito de cabeça para baixo. Afinal, dom Alfonso estĂĄ muito mais para

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dom Alfonso, o personagem de Madame de La Fayette, sabe perfeitamente por que se desentendeu com Belasira e acabou na infelicidade: seu ciĂşme. O ciĂşme ĂŠ uma paixĂŁo que lhe pertence e da qual ele ĂŠ perfeitamente consciente. Ora, segundo Freud, hĂĄ representaçþes que sĂŁo nossas e das quais nĂŁo somos conscientes. Vamos agora assinalar, em linhas gerais, o que essa concepção implica para a compreensĂŁo de nossa vida psicolĂłgica. Veremos que, com ela, a concepção moderna do ser humano ĂŠ ultrapassada para dar vez Ă sua compreensĂŁo contemporânea. Em primeiro lugar, se a admissĂŁo da existĂŞncia do inconsciente for correta, resulta que nem sempre estĂĄ ao nosso alcance saber por que fazemos o que fazemos, ou por que sentimos o que sentimos. Sem dĂşvida, podemos justificar por que agimos de tal maneira – e quase sempre o fazemos – com base em motivos que acreditamos serem reais e objetivos. VocĂŞ pode acreditar sinceramente que, por exemplo, tem um comportamento violento porque o mundo nĂŁo ĂŠ nada fĂĄcil. Logo, se vocĂŞ nĂŁo tratasse de se defender, iria terminar sendo uma vĂ­tima dos outros. E, como o ataque ĂŠ a melhor defesa, vocĂŞ vive mostrando dureza e desconfiança para com os outros. Certa pessoa, digamos, ĂŠ autoritĂĄria e costuma mandar nos outros, mas nĂŁo, segundo afirma, porque goste de ser assim. Ela diz que age dessa maneira porque as pessoas, em geral, precisariam mesmo de alguĂŠm que assuma a liderança e diga qual o caminho a tomar, qual a melhor maneira de fazer as coisas. Sem isso, diz ela a si mesma, nada chegaria a bom termo. O ponto aqui nĂŁo ĂŠ legitimar condutas que, por vezes, podem tornar-se agressivas. É compreender que ordem de justificativas sĂŁo essas, nos exemplos hipotĂŠticos acima. Observe: todas elas sĂŁo justificativas conscientes. E a questĂŁo trazida por Freud ĂŠ exatamente a de saber se as justificativas conscientes que damos a nĂłs mesmos sĂŁo satisfatĂłrias.

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Digamos: estou dirigindo no trânsito, vejo um sujeito “cortandoâ€? todo mundo, o sinal fecha, ele encosta ao meu lado e me olha com a cara amarrada, avança a faixa de pedestres e logo arranca. Ele mostra ter uma conduta desequilibrada, nĂŁo resta dĂşvida. Isso ĂŠ objetivo. Mas: se eu arranco com meu carro no seu encalço e o ajudo a pĂ´r todo mundo em risco, atĂŠ que eu, ao alcançå-lo, o faça ver que ele ĂŠ um estĂşpido – hĂĄ qualquer justificação objetiva para isso? Ou na verdade isso mostra apenas que eu me tornei como ele, por razĂľes que eu mesmo ignoro? Começa a ficar claro, entĂŁo, que o princĂ­pio que muitas vezes guia nossos atos e reaçþes pode permanecer ignorado por nĂłs. NĂŁo era isso o que tambĂŠm ocorria na tragĂŠdia de SĂłfocles, na qual Édipo ignorava que o que fazia seguia os desĂ­gnios dos deuses? Mas hĂĄ uma diferença crucial: segundo Freud, isso que ignoramos ĂŠ interior Ă nossa vida psĂ­quica, e nĂŁo, como retratatava o mito grego, transcedente e exterior a ela. De acordo com a psicanĂĄlise freudiana, nĂŁo temos consciĂŞncia de uma parte essencial de nĂłs mesmos. A importância disso vocĂŞ mesmo pode avaliar, se considerar que, a crer na psicanĂĄlise, as representaçþes que ignoramos (as representaçþes inconscientes) frequentemente assumem as rĂŠdeas de nossas açþes, funcionando como princĂ­pio de ordenação oculto e ignorado de nosso comportamento. E como foi que Freud chegou a essa ideia? O que a tornou necessĂĄria para ele? No inĂ­cio de sua carreira mĂŠdica, Freud acompanhou o tratamento que Josef Breuer tinha começado a aplicar a casos de histeria. Breuer hipnotizava seus pacientes e recriava as situaçþes traumĂĄticas que estavam na origem de sintomas como paralisia etc. Surpreendentemente, Breuer conseguiu obter ĂŞxito com alguns pacientes. O que ele e Freud concluĂ­ram disso foi que existem distĂşrbios corporais – nĂŁo conseguir mexer a perna, nĂŁo enxergar a

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Freud Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em PrĂ­-

Josef Breuer (1842-1925), que adotava a prĂĄtica

bor, uma cidade que Ă ĂŠpoca pertencia ao ImpĂŠ-

da hipnose e dava importância à fala dos pa-

rio AustrĂ­aco. Quando tinha quatro anos, sua fa-

cientes histĂŠricos, a fim de curĂĄ-los. algum

tempo,

maneceu atÊ 1938 – ocasião em que fugiu dos

Freud

nazistas para a Inglaterra. (Quatro de suas irmĂŁs

Breuer, que nĂŁo concor-

nĂŁo tiveram a mesma sorte e foram assassina-

dava com a tese de que,

das nos campos de concentração nazistas.)

na origem dos sintomas

distanciou-se

de

Tendo se formado em medicina na Univer-

histĂŠricos, haveria sempre

sidade de Viena em 1881, Freud foi trabalhar

um trauma de natureza

no Hospital Geral da capital imperial. Graças

sexual. Com a publica-

a uma licença, Freud segue para Paris, onde

ção de A interpretação dos

acompanha os trabalhos de Jean-Martin Char-

sonhos (1899) e com sua

cot (1825-1893), importante psiquiatra francĂŞs

atuação na primeira dÊca-

dedicado ao estudo da histeria. De retorno a

da do sĂŠculo XX, Freud tor-

Viena, Freud aprofunda o tratamento de pa-

na-se conhecido pela sua

cientes histÊricos – isto Ê, vítimas de perturba-

teoria sobre o inconsciente.

çþes de ordem psicológica que se manifesta-

As obras de Freud compĂľem mais de vinte

vam em sintomas como paralisia, descontrole

volumes. No Brasil, sĂŁo encontradas em edi-

motor, surdez, cegueira etc. A etapa seguinte ĂŠ

çþes da editora Imago e, mais recentemente,

a colaboração com o amigo e neurofisiologista

da editora Companhia das Letras.

luz – cuja origem ou princĂ­pio ĂŠ psicolĂłgico, mental: fisiologicamente, aqueles pacientes nĂŁo apresentavam qualquer disfunção motora ou oftalmolĂłgica. Esse princĂ­pio era desconhecido pelos prĂłprios pacientes, isto ĂŠ: agia no seu insconsciente. A hipnose mostrou-se um mĂŠtodo parcialmente eficaz para trazer Ă tona a causa inconsciente dos distĂşrbios que se manifestavam fisicamente. Uma vez descoberta essa causa psĂ­quica inconsciente, em alguns casos o paciente se via livre do sintoma. Restava, entretanto, explicar por que razĂŁo causas poderosas assim, capazes atĂŠ mesmo de paralisar nossos movimentos, permaneceriam ignoradas por nĂłs. Freud procurou responder a essa pergunta por meio de outra: por que certas representaçþes psĂ­quicas sĂŁo excluĂ­das do consciente, se algum dia estiveram em sua superfĂ­cie? Convencido de que nossa vida psĂ­quica nĂŁo ĂŠ constituĂ­da apenas de representaçþes conscientes, procurou

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Ferdinand Schmutzer. Coleção particular

ApĂłs

descobrir por que certas representaçþes sĂŁo conscientes, outras, inconscientes. O conceito de “repressĂŁoâ€? lhe deu uma chave para a resposta. Leiamos o seguinte trecho de uma importante obra de Freud, publicada em 1923: “[...] Chegamos ao termo e ao conceito de inconsciente [...] pela elaboração de experiĂŞncias nas quais a dinâmica mental ĂŠ significativa. Descobrimos, isto ĂŠ, tivemos de admitir que existem processos ou representaçþes mentais muito fortes, [...] as quais podem implicar, para a vida mental, todas as consequĂŞncias que possuem as representaçþes ordinĂĄrias – atĂŠ mesmo consequĂŞncias que podem se tornar conscientes, novamente na qualidade de representaçþes –, as quais, entretanto, permanecem elas mesmas nĂŁo conscientes. NĂŁo ĂŠ necessĂĄrio repetir detalhadamente aqui o que jĂĄ foi

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mĂ­lia mudou-se para a capital, Viena, onde per-

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Hieronymus Bosh. Museu do Prado, Madri

exposto tantas vezes. Basta dizer que aĂ­ se instaura a teoria psicanalĂ­tica, e afirmar que essas representaçþes nĂŁo podem ser conscientes porque uma determinada força se contrapĂľe a isso; que, nĂŁo fosse por isso, elas se tornariam conscientes e que entĂŁo nos darĂ­amos conta de que diferem pouco de outros elementos psĂ­quicos reconhecidos. Essa teoria torna-se irrefutĂĄvel na medida que foram encontrados, na tĂŠcnica psicanalĂ­tica, os meios com o auxĂ­lio dos quais ĂŠ possĂ­vel suspender a força contraposta e tornar conscientes as representaçþes em questĂŁo. Chamamos de repressĂŁo o estado em que essas representaçþes se encontravam antes de se tornarem conscientes, e a força que mobilizou e manteve a repressĂŁo, defendemos tĂŞ-la percebido durante o trabalho analĂ­tico como resistĂŞncia.â€? (Freud, O ego e o id. Tra-

Durante a Idade MÊdia, difundiu-se a ideia de que a loucura era causada por uma pedra localizada na cabeça. (Hyeronimus Bosh [1450-1516], A extração da pedra da

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loucura, c. 1475-1480).

dução nossa. Edição de referência: Das Ich und das Es. Leipzig; Viena; Zurique: Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1923, pp. 11-12)

Note que Freud sublinha o carĂĄter dinâmico de nossa vida mental. Assumir esse aspecto dinâmico o fez concluir que hĂĄ um conflito interno entre nossas representaçþes. Embora todas elas produzam efeitos sobre o que pensamos, muitas permanecem ocultas sob a superfĂ­cie da consciĂŞncia, porque sĂŁo reprimidas por forças psĂ­quicas. Elas sĂŁo, por assim dizer, impedidas de se manifestar conscientemente. A tĂŠcnica psicanalĂ­tica desenvolvida por Freud busca trazer Ă luz essas representaçþes submergidas, excluĂ­das da nossa consciĂŞncia. Uma prova disso sĂŁo os “atos falhosâ€?, aos quais Freud com frequĂŞncia recorria quando confrontado por aqueles que duvidavam de sua teoria. É comum que nos enganemos com as palavras. Um exemplo pode tornar a hipĂłtese de Freud mais clara. Digamos que um colega seu, Hugo, estĂĄ encarregado de coordenar um seminĂĄrio. Nele, vĂĄrias pessoas apresentam suas colaboraçþes, entre elas, Maria, de quem Hugo gosta em segredo. Ao fim, abre-se espaço para perguntas e, logo em seguida, Hugo toma a palavra para encerrar o debate. SĂł que, ao invĂŠs de dizer: “Para concluir, gostaria de agradecer a Mariaâ€?, ele diz, diante de toda a turma: “Para concluir, gostaria de agradar Ă Mariaâ€?. Eis o inconsciente em ação... AlguĂŠm poderia retrucar: mas foi um simples engano, uma bobagem! NĂŁo aos olhos da teoria freudiana. Para a psicanĂĄlise, esse “ato falhoâ€? tem um significado. Os atos falhos representam uma forma do inconsciente dizer o que quer. Com a troca de palavras, Hugo disse algo que no fundo desejava dizer, mas que, evidentemente, jamais diria numa situação como aquela, pois tem consciĂŞncia de que algo assim soaria completamente fora de lugar.

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Para compreendermos como a novidade

essa, chamada justamente Sobre os sonhos

de Freud ĂŠ radical, vamos aumentar mais

– são uma resposta residual aos estímulos

ainda o contraste, regressando um momen-

antes recebidos pelos sentidos. Assim como

to a AristĂłteles [+]. Numa obra de pequena ex-

um objeto impulsionado por outro continua

tensĂŁo, intitulada Sobre o sono e a vigĂ­lia, Aris-

a se mover mesmo quando nĂŁo estĂĄ mais em

tĂłteles se pergunta: o que ĂŠ o sono e o que ĂŠ

contato com aquele objeto que originou seu

a vigĂ­lia? Parecem ser propriedades diferen-

movimento; ou como a imagem brilhante

tes do mesmo â€œĂłrgĂŁoâ€?, ligado Ă percepção

que continuamos a enxergar depois de mirar

dos sentidos, uma vez que “vemos� e “ouvi-

o sol, em seguida desviando o olhar dele.

mos� coisas quando sonhamos. No entanto,

Voltando a Freud, veremos que sua

quando estamos dormindo nĂŁo recebemos

teoria explica tudo isso de uma maneira

percepçþes exteriores atravÊs de nossos

completamente diversa. Para ele, nĂŁo ĂŠ so-

cinco sentidos. AlĂŠm disso, se o sonho e a

mente um â€œĂłrgĂŁoâ€? (para usar a linguagem

percepção exterior são propriedades do

aristotĂŠlica) que governa nossa vida mental

mesmo â€œĂłrgĂŁoâ€?, por que Ă s vezes lembramos

na vigĂ­lia e no sono, mas pelo menos dois:

dos nossos sonhos e outras vezes, nĂŁo? Aris-

o consciente e o inconsciente. EntĂŁo, jĂĄ nĂŁo

tĂłteles desenvolve seu raciocĂ­nio de maneira

se pode descrever esses diferentes regimes

estritamente lógica – a mais explícita expres-

como um caos contraposto a uma ordem,

sĂŁo de uma ordem, portanto. Se a um dado

mas antes como duas ordens diferentes (ainda

momento existe percepção sensorial, isto

que tantas vezes conflitantes). Por meio de

implica que quem percebe esteja acordado e

sua teoria e prĂĄtica psicanalĂ­tica, Freud foi

nĂŁo dormindo. O sono ĂŠ entĂŁo definido como

capaz de responder Ă quela velha pergunta

ausência da percepção dos sentidos. Os so-

de AristĂłteles: por que Ă s vezes lembramos

nhos – dirå Aristóteles noutra obra ligada a

de nossos sonhos, outras vezes, nĂŁo?

Ocorre que nem sempre a vigilância exercida pela consciĂŞncia ĂŠ eficaz, e o inconsciente entĂŁo irrompe, seja na forma de atos falhos, seja nos sonhos, seja na forma de comportamentos neurĂłticos etc. No exemplo, Hugo desejava muito ser reconhecido pela sua colega, pois nutria por ela uma paixĂŁo. AlĂŠm disso, vamos dizer que algo nela lembrasse o temperamento da mĂŁe de Hugo, cujo reconhecimento ele sempre buscou, sem jamais tĂŞ-lo recebido satisfatoriamente. O conceito de “repressĂŁoâ€?, assim, deu a Freud uma explicação dos motivos que levam certas representaçþes a mergulharem no inconsciente e lĂĄ permanecerem, atĂŠ reaparecem sem aviso, a qualquer momento. No exemplo hipotĂŠtico do semi-

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nĂĄrio e do ato falho envolvendo “Mariaâ€?, se Hugo fosse submeter-se a uma terapia analĂ­tica, ele possivelmente descobriria, em algum momento, por que disse o que disse no encerramento do debate. E se tornaria consciente das dificuldades que cercam as relaçþes com sua mĂŁe, dificuldades que fazem parte de sua histĂłria individual. Por isso, na psicanĂĄlise, a aplicação da teoria para fins de cura precisa atentar para a individualidade de cada paciente. Pense, por exemplo, no tratamento de uma doença infecciosa. O protocolo, como dizem os mĂŠdicos, ĂŠ essencialmente o mesmo para todos os pacientes. No caso da psicanĂĄlise, nĂŁo. Pois o objetivo de tornar o paciente consciente de suas representaçþes inconscientes

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O MUNDO DOS SONHOS: ARISTĂ“TELES E A PSICANĂ LISE

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depende do que ele mesmo contar sobre sua histĂłria. Ao analista – isto ĂŠ, ao terapeuta formado no mĂŠtodo psicanalĂ­tico – cabe apenas ouvir o que diz o paciente, promovendo intervençþes com o intuito de que ele, o paciente, “escaveâ€? mais em si mesmo. A novidade dessa abordagem pode ser percebida, se a compararmos com as posiçþes que discutimos hĂĄ pouco. Classificamos a tragĂŠdia de SĂłfocles como ilustração da concepção clĂĄssica; o romance de Madame de La Fayette, ilustração da concepção moderna. Em relação a elas,

a de Freud representa a concepção contemporânea, inovadora na medida que o indivíduo, a crer na teoria da psicanålise, ao mesmo tempo sabe e não sabe o que determina seus comportamentos. Se muitos dos motivos que o fazem ser como ele Ê estão fora de sua consciência, estes não estão, todavia, fora dele. Estão nele mesmo, em seu inconsciente. Conforme Freud, basta deixar o inconsciente à vontade (como nos sonhos, por exemplo) para reavê-los. Basta deixar o inconsciente falar para, assim, o indivíduo começar a fazer as pazes consigo mesmo.

DESDOBRAMENTOS DA HIPĂ“TESE FREUDIANA Em vĂĄrios de seus textos, Freud conta

aplicação do mÊtodo da livre associação de

como abandonou o mĂŠtodo da hipnose,

ideias. Nas dĂŠcadas seguintes, porĂŠm, surgi-

substituindo-o pelo da “livre associaçãoâ€?. Este

ram fortes divergĂŞncias teĂłricas entre eles,

mĂŠtodo consiste em fazer o paciente falar

e cada qual seguiu seu caminho. Jung fun-

tudo o que lhe vem Ă mente, comunicando

dou a “psicologia analĂ­ticaâ€?, que dĂĄ grande

sem nenhuma censura as associaçþes entre

importância Ă noção de “inconsciente cole-

suas ideias. A regra fundamental reside em

tivo�, não admitida por Freud.

ordem e caos

não omitir nada que lhe passe pela cabeça.

Nos Estados Unidos, a psicanĂĄlise encon-

A hipĂłtese freudiana do inconsciente foi

trou grande recepção e, tambÊm por isso,

vista de início com muita desconfiança por

adquiriu, especialmente apĂłs a morte de

vĂĄrios mĂŠdicos e psicĂłlogos. (Isto ĂŠ retra-

Freud, feiçþes contestadas por freudianos

tado dramaticamente no filme Freud, alĂŠm

mais ortodoxos. A psicologia do ego consti-

da alma, de 1962, cujo roteiro foi de inĂ­cio

tui a vertente mais conhecida. Na França, o

encomendado ao filĂłsofo Jean-Paul Sartre,

legado freudiano foi retomado e amplamen-

mas que nessa versĂŁo acabou nĂŁo sendo

te aprofundado por Jacques Lacan (1901-

utilizado pelo diretor John Huston.) No en-

1981), que trouxe para o primeiro plano da

tanto, tambĂŠm ganhou inĂşmeros adeptos, a

teoria e da prĂĄtica psicanalĂ­ticas as inova-

ponto de tornar-se difundida em vĂĄrios paĂ­-

çþes da linguística moderna, de Ferdinand

ses. Com isso, a psicanĂĄlise recebeu novas

de Saussure (1857-1913).

contribuiçþes. O movimento inaugurado

No Brasil, encontram-se seguidores de

por Freud adquiriu vertentes diversas e,

praticamente todas essas correntes meto-

como costuma ocorrer, passou por divisĂľes

dolĂłgicas, reunidos em escolas e grupos

internas, polĂŞmicas, revisĂľes e divergĂŞncias

de trabalho que visam tratar pessoas com

que levaram a novas tĂŠcnicas de terapia. A

os mais variados tipos de patologia men-

ruptura mais conhecida foi a ocorrida entre

tal, desde psicĂłticos e esquizofrĂŞnicos atĂŠ

Freud e Carl G. Jung (1875-1961). No inĂ­cio do

neurĂłticos, histĂŠricos e pacientes acometi-

sĂŠculo XX, ambos entraram em intensa cola-

dos de distúrbios como síndrome de pânico

boração, pois Jung tambÊm foi pioneiro na

ou de perseguição.

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Desenvolvimento escrito em equipe Como afirmava Freud nos textos em que divulgou sua teoria e seu mĂŠtodo clĂ­nico, a psicanĂĄlise ganhou prestĂ­gio e foi aplicada em domĂ­nios diversos da psicologia, como a histĂłria da arte, a mitologia, o estudo da sociedade etc. Um campo que tirou muito proveito da teoria freudiana foi o da produção artĂ­stica, especialmente no contexto das vanguardas modernas do inĂ­cio do sĂŠculo XX. O surrealismo foi um dentre esses movimentos vanguardistas. Agrupando artistas ligados ao dadaĂ­smo, o surrealismo surgiu em Paris na dĂŠcada de 1920, sob a liderança de AndrĂŠ Breton (1896-1966) e Paul Éluard (1895-1952). O Manifesto surrealista, de 1924, reivindicava maior valor para a linguagem do sonho do que para a da vigĂ­lia, e decretava que a lĂłgica seria dispensĂĄvel em relação ao autĂŞntico valor da existĂŞncia, contraditĂłrio, desconhecido e caĂłtico. No prefĂĄcio do primeiro nĂşmero da revista Revolução surrealista, a influĂŞncia de Freud ĂŠ evidente: “o sonho restitui ao homem todos os seus direitos Ă liberdadeâ€? (J. A. Boiffard, P. Éluard e R. Vitrac, A revolução surrealista, nĂşmero 1, dezembro de 1924). Expoentes do surrealismo que exploraram a noção freudiana do inconsciente sĂŁo o cineasta Luis BuĂąuel (1900-1983) e os pintores RenĂŠ Magritte (1898-1967) e Salvador Dali (1904-1989). Uma das mais conhecidas tĂŠcnicas criadas pelo surrealismo ĂŠ a “escrita automĂĄticaâ€?. A intenção era, por meio dela, romper com o sentido habitual e consagrado da linguagem, produzindo novos sentidos e associaçþes entre ideias, que estivessem livres da censura que a consciĂŞncia exerce sobre elas. A atividade que vocĂŞ irĂĄ realizar agora ĂŠ uma variante da escrita automĂĄtica. • Forme um grupo de quatro integrantes e peguem uma Ăşnica folha em branco. De-

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finam entre vocĂŞs uma sequĂŞncia, na qual cada um de vocĂŞs irĂĄ escrever um Ăşnico verso nessa folha: de preferĂŞncia, a primeira coisa que lhe vier Ă cabeça. Agora vem a parte principal: ninguĂŠm deve saber o que os outros escreveram antes que todos o tenham feito. É fĂĄcil: apĂłs o primeiro verso ter sido escrito no topo da pĂĄgina, dobrem-na para trĂĄs, de modo que o segundo integrante escreva seu verso na parte superior da pĂĄgina dobrada, sem ver o que foi escrito pelo primeiro. O mesmo deve ser feito para o terceiro e, finalmente, para o quarto integrante. ApĂłs todos terem escrito, leiam o resultado, como se se tratasse de um Ăşnico poema, uma unidade. • Em seguida, reĂşnam os poemas dos demais grupos da classe, juntando-os em uma ordem qualquer, como se todas as folhas reunidas compusessem um Ăşnico poema. Façam uma leitura coletiva. • Por fim, vocĂŞs podem fazer ainda um terceiro experimento: separem, recortando-os, cada verso de todas as folhas da classe, e misturem. Em seguida, sorteiem-nos num determinado nĂşmero (4, 8, 11...), naturalmente ainda sem lĂŞ-los, e montem dessa maneira novos poemas. SerĂĄ que, procendendo assim, o resultado serĂĄ ainda mais “absurdoâ€? do que nos experimentos anteriores? Ou – se por exemplo muitos participantes escreveram versos de amor – ao contrĂĄrio, assim o resultado tende a se tornar mais previsĂ­vel? Esses experimentos darĂŁo a vocĂŞs uma ideia dos sentidos aleatĂłrios produzidos quando, por meio de artifĂ­cios como esses, a ordem habitual do discurso ĂŠ transgredida. O resultado, sem dĂşvida, difere de uma escrita consciente elaborada por um Ăşnico indivĂ­duo. Mas tampouco equivale Ă linguagem do inconsciente que se exprime nos sonhos, nos atos falhos etc.

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A escrita automĂĄtica

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©Foto: Doris Antony, Creative Commons

No que a curva faz você pensar? Em mudança, surpresa, ou apenas o prosseguimento do caminho?

continuidade e ruptura

unidade 10 Como e quando algo muda ................

279

O “movimento” segundo Aristóteles ................

288

Perfectibilidade e desenvolvimento ....

293

As revoluções científicas .................

302

continuidade e ruptura

C

ertamente você tem alguma noção do que significam as expressões “continuidade” e “ruptura”, assim como tantas outras que são sinônimas delas. “Permanência”, “conservação”, “prolongamento”, “linearidade” são palavras que têm afinidade com o que é contínuo. Há continuidade de estado, de qualidade, de movimento, de direção etc. Por sua vez, “quebra”, “cisão”, “corte” e “reviravolta” são alguns poucos exemplos de palavras que se associam à ideia de ruptura. Muitas outras noções podem, no entanto, se ligar a esses termos.

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Como e quando algo muda?

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O RENASCIMENTO: ALGUMAS REFERĂŠNCIAS GERAIS Como afirma um importante

historia-

dor da arte do sĂŠculo XX, Ernst H. Gombrich, se alguĂŠm quisesse elogiar um artista no fim do sĂŠculo XIV ou inĂ­cio do sĂŠculo XV, bastava dizer que sua obra se igualava Ă dos antigos. O primeiro pintor a ser considerado sob esse ângulo foi Giotto di Bondone (1267-1337), que viveu e trabalhou em Florença, na ItĂĄlia. A principal inovação de Giotto foi a de tratar temas habituais da pintura – a vida dos santos e dos mĂĄrtires, assim como a paixĂŁo de Cristo – de uma forma naturalista, em contraste com a pintura medieval ou “gĂłticaâ€?, como tambĂŠm era chamada. Para isso, Giotto situava as figuras retratadas em seus quadros em um novo espaço – um espaço que, Ă semelhança do que jĂĄ haviam realizado os pintores da Antiguidade, era tridimensional e muito prĂłximo do que os pintores do sĂŠculo XV, na trilha redescoberta por Giotto, consagrariam com a descoberta das leis da perspectiva. A histĂłria da pintura italiana do sĂŠculo XV e XVI ĂŠ a trajetĂłria de pintores extraordinĂĄrios – como, dentre outros, Massacio (1401-1428), Paolo Uccello (1397-1475) Andrea Mantegna (1431-1506) e Pietro della Francesca (1416?-1492) – na investigação do novo espaço naturalista inaugurado com a pintura de Giotto. Os trĂŞs maiores artistas desse perĂ­odo, Leonardo da

Lamentação sobre o Cristo Morto, c.1305 (afresco) (pós restauração) de Giotto di Bondone; Capela Scrovegni, Pådua, Itålia.

Vinci (1452-1519), Michelangelo (1475-1564) e Ra-

continuidade e ruptura

Reflita sobre um fenĂ´meno tomado da histĂłria universal, que vocĂŞ jĂĄ estudou ou irĂĄ estudar: o Renascimento. Trata-se de um vasto movimento intelectual e artĂ­stico, que teve origem na ItĂĄlia no sĂŠculo XIV e que se expandiu por boa parte da Europa durante os sĂŠculos XV e XVI. Repare nesse nome: “renascimentoâ€? evoca a ideia de um novo nascimento, do ressurgimento de algo do passado, que, apĂłs um perĂ­odo de inexistĂŞncia, reaparece no curso do tempo, assinalando o começo de uma nova era. No caso, o que existia antes, e que os pensadores e artistas do sĂŠculo XIV decidiram fazer renascer, foi a arte da Antiguidade. A grande maioria dos primeiros “renascentistasâ€? viveu em Roma e Florença. Entusiasmados com o que descobriram observando as ruĂ­nas dos edifĂ­cios, as esculturas e pinturas da Antiguidade greco-romana, condenaram a produção artĂ­stica feita na Idade MĂŠdia. Foi esse juĂ­zo negativo sobre o perĂ­odo medieval o que os levou a designĂĄ-lo como “idade das trevasâ€?. Note que o fenĂ´meno do Renascimento propĂľe a necessidade de a cultura artĂ­stica romper com o passado que a precede imediatamente, a arte da Idade MĂŠdia, para, em lugar dela, promover uma arte que tem por modelo as concepçþes da Antiguidade. De fato, os autores e artistas do Renascimento proclamaram uma ruptura (com a Idade MĂŠdia) que, ao mesmo tempo, retomasse uma tradição, a aprofundasse, desse a ela continuidade (a arte antiga). O principal motivo para isso residia, no entender dos partidĂĄrios do Renascimento, na necessidade de uma arte baseada na natureza. A ideia principal era portanto retomar o modelo clĂĄssico, para, com isso, conseguir uma representação realista na pintura e nas artes. O Renascimento, assim, foi concebido como ruptura, ressurgimento e novidade. Afinal, embora tivessem como mode-

fael (1483-1520), representam a realização bem acabada desse ideal.

lo os antigos, os artistas do Renascimento sabiam perfeitamente que não eram mais antigos. Decidiram reatar com uma tradição perdida e, nessa medida, tornaram-se modernos.

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Aqui já temos, portanto, algumas outras expressões ligadas às ideias de continuidade e ruptura. “Tradição” significa o ato de transmitir, de passar para o presente e para o futuro o que foi criado e formado no passado. O novo, ou o moderno, por sua vez, sublinha o que é atual, o que se diferencia de algum modo do passado, e, por isso, se vincula à ideia de ruptura. Ainda que, no caso do Renascimento, o novo envolvesse justamente uma volta ao passado remoto, que fora interrompido pela Idade Média. Noções semelhantes também aparecem no campo da ciência. Confira, por exemplo, a seguinte situação, extraída de uma peça teatral de Bertolt Brecht (18981956), um dos mais criativos dramaturgos alemães do século passado. A peça trata da vida de Galileu Galilei (1564-1642), astrônomo, matemático e físico que apoiou, no século XVII, a teoria segundo a qual Terra girava em torno do sol (conhecida pelo nome de heliocentrismo), e não o contrário (segundo a teoria geocêntrica). A teoria heliocêntrica não foi uma criação de Galileu. Tal mérito coube, um século antes, ao astrônomo e matemático Nicolau Copérnico (1473-1543). Porém Galileu contribuiu decisivamente para fortalecer

a teoria heliocêntrica, a qual era rejeitada oficialmente pela Igreja católica. Em certo momento da peça, Galileu conversa com Andrea, filho de sua governanta. Ambos observam um artefato, um astrolábio mostrando como, segundo a opinião dos antigos, as estrelas e o sol se moveriam em torno da Terra, a concepção geocêntrica. Andrea admite que a imagem produzida pelo astrolábio é cheia de beleza, mas afirma também que ela representa os seres humanos e a Terra fechados no meio de tudo. Ao que Galileu retruca: sim, já faz muito tempo que a humanidade acredita que tudo – o Sol, as estrelas – giram em torno dela. E, continua Galileu, agora é hora de “sair”, de partir para uma fantástica viagem – a nova concepção do universo, baseada na revolução feita por Copérnico. Há um novo tempo, diz Galileu, que se abre para eles, que irá substituir “o tempo antigo”. Pelo menos na visão de Brecht, portanto, um grande cientista como Galileu se viu diante da questão: o novo contra o antigo. A nova teoria defendida por Galileu é representada como uma grande viagem de descoberta, pois o que até então se acreditava verdadeiro começou a ser questionado. O conhecimento, o saber

IDADE MÉDIA, IDADE DAS TREVAS? O poeta e literato italiano Francesco Petrarca (1304-1374) foi um dos primeiros humanistas a formular a ideia de que era preciso voltar à Antiguidade clássica. Em seu entender, esta havia sido esquecida durante todo o período entre o início da era cristã e sua própria época, o século XIV. Após visitar a cidade de Roma e tomar contato com vestígios da arte clássica, escreveu em latim um poema intitulado Africa. Nele, Petrarca deseja que

continuidade e ruptura

as gerações futuras possam reaver a claridade dos antigos, ocultada pela Idade Média: Mas a ti, quem sabe – pois a mente espera e deseja –, se hás de viver ainda muito depois de mim, restam tempos melhores: futuramente, não a todos alcançará este torpor desmemoriante! Os descendentes, talvez, poderão voltar das dissipadas trevas à pura claridade de outrora. (Petrarca, Africa, IX, 453-457. Tradução nossa.)

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sobre o mundo, enfim, a ciência também conheceu (e conhece ainda) o dilema entre a continuidade e a ruptura, aqui apresentadas na oposição entre tempo antigo e tempo novo. O tempo novo significa, nesse texto, uma total ruptura com uma tradição que durou dois mil anos.

continuidade e ruptura

Museu do Louvre, Paris

A revolução como ruptura histórica Agora repare nesse belo quadro, de um pintor francês chamado Eugène Delacroix, que recebe o título de A liberdade guiando o povo. Esse quadro se tornou símbolo da Revolução de Julho de 1830, durante a qual o rei Carlos X foi deposto na França. Na realidade, a Revolução de Julho sucedeu a uma série de reviravoltas políticas na França, iniciada em 1789 com a chamada Revolução Francesa. Esta é considerada uma das revoluções mais importantes da

história do Ocidente, já que promoveu, entre muitas coisas, o fim da monarquia e o começo da república como forma de governo, e também a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, a qual proclamava a igualdade e a liberdade como direitos de todos os seres humanos. Porém, a partir de 1815 começa um período conhecido pelo nome de Restauração, caracterizado pela volta da monarquia e pelas tentativas de restaurar a ordem social e política anterior à Revolução Francesa. Em 1830 eclode a Revolução de Julho pintada por Delacroix, a qual proclamava, por sua vez, a volta da República. Não por acaso, a mulher representando a liberdade ergue a bandeira tricolor, que havia sido adotada durante a Revolução Francesa e depois substituída por uma bandeira branca pelos monarcas da Restauração. Na pintura de Delacroix, a

Esta é provavelmente uma das imagens mais emblemáticas dos tempos modernos. Foi repetidamente apropriada por pessoas e movimentos sociais em contextos bem diversos daquele que motivou Delacroix a pintá-la. (Eugène Delacroix [1798-1863], A liberdade guiando os povos. Óleo sb/ tela, 1830)

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Revolução de Julho de 1830 é apresentada, então, como uma retomada dos ideais da Revolução Francesa de 1789. “Revolução”, como você pode ver no seu livro de história, é um dos termos que mais aparecem para caracterizar transformações radicais. O termo significa exatamente isso: uma transformação radical, que altera inteiramente a organiza-

ARTE, FORMA, TRADIÇÃO E RUPTURA A música é uma arte estreitamente ligada a um conjunto de convenções. Ela é, assim como o texto, também um discurso, que é feito de partes. O conjunto das partes e maneira de ligá-las é a forma musical. No período chamado em música de Classicismo – a partir da segunda metade do século XVIII – uma dessas convenções era que o primeiro movimento, isto é, a parte inicial de sinfonias, sonatas e peças para quarteto de cordas devia sempre ser conformada em um mesmo tipo de estrutura. Essa ordem dos elementos musicais é conhecida como “forma sonata”, justamente por ser tão característica desse tipo de composição. No entanto, um dos maiores gênios do Classicismo, Ludwig van Beethoven (17701827), dedicou-se, especialmente na fase final de sua carreira, a ampliar as fronteiras estilísticas e formais até então vigentes. Assim, em seu quarteto de cordas opus 133, intitulado Grande fuga, ele volta – e dá nova dimensão – a uma forma musical menos apreciada em seu tempo, a fuga, que fora muito explorada em um período anterior, o Barroco. Mesmo

continuidade e ruptura

assim, o quarteto op. 133 de Beethoven está longe de uma fuga barroca. Quando foi divulgado, os críticos musicais disseram que aquilo já não era um quarteto de cordas. Para esses seus contemporâneos, o abandono da convencionada “forma sonata” resultava, por parte do compositor, em uma ruptura na mú-

sica clássica. Mas nem por isso a obra de Beethoven deixou de se inserir numa tradição.

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ção política e social de um povo. A história da humanidade seria uma sequência de revoluções... Mas também, como no caso da França, de tentativas de restaurar o que foi abandonado ou conservar o que surgiu da revolução. E há também as tentativas de reformar (reformar as leis, as instituições). “Reformar” é buscar formar outra vez o que se tinha antes, sem rupturas radicais, mas com diferenças consideráveis em relação à forma anterior. Tanto “revolução” como “reforma” são conceitos muito próximos da ideia de progresso, já que revoluções ou reformas buscam alterar para melhor o que havia antes. Por esses breves exemplos você pode perceber que as noções de continuidade e ruptura, e também as que lhes são próximas, admitem e implicam termos diversos: “tradição”, “conservação”, “novo”, “moderno”, “revolução”, “reforma”... Além disso, as noções de continuidade e ruptura se apresentam em diversos campos da vida humana: na arte, na ciência, na política, no direito etc. É claro que, dependendo de cada campo, essas noções ganham um sentido específico, pois entram em jogo motivos diferentes para continuar um determinado conjunto de princípios, ideias, comportamentos – ou romper com ele e tentar algo radicalmente novo. Por exemplo, os motivos para mudar e inovar uma forma artística como a pintura podem ser bastante diferentes das razões que levam cientistas a debater uma nova teoria. No caso da teoria do heliocentrismo, defendida por Galileu, talvez importasse muito mais saber se ela é verdadeira ou falsa, se ela descreve corretamente a realidade ou se simplesmente explica mais coisas que a teoria do geocentrismo. Por sua vez, em revoluções políticas o que se questiona frequentemente é se a organização da sociedade, suas instituições e hierarquias satisfazem os interesses de determinados grupos.

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1503-1506. Louvre, Paris

1919. Coleção Particular

A história da arte dá muitos exemplos de continuidade e ruptura, como é o caso aqui: Marcel Duchamp (1887-1968) fez sua L.H.O.O.Q baseando-se na Mona Lisa

Transformação e permanência Trata-se aqui apenas de exemplos de como as noções de continuidade e ruptura podem se inserir em contextos bastante diversos de significados. A pintura, a música, a teoria heliocêntrica e a Revolução de Julho de 1830 podem ser estudados e discutidos de muitas outras maneiras. Entretanto, apesar dessa diversidade de contextos e significados, apesar da diversidade de palavras que expressam as noções de continuidade ou ruptura, estas apresentam o mesmo sentido básico: continuar o que já existe ou romper com isso e dar início a outra coisa. A pintura já existia, já tinha um passado e uma história antes de o Renascimento pretender defender sua continuidade de uma certa maneira, sem repeti-la tal e qual. Galileu, por sua vez, quis romper com o que já existia, uma teoria que já durava cerca de dois mil anos, e dar início a algo inteiramente novo. E os revolucionários pintados por Delacroix quiseram romper com o que já existia, mas para retomar a Revolu-

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ção Francesa, que havia sido interrompida pela Restauração. A Revolução Francesa representava, por sua vez, uma ruptura com séculos de domínio de reis e aristocratas. Em todos esses casos, as noções de continuidade e ruptura se referem a algo que já existe ou existia, que, portanto, já tinha um certo tempo de existência. Continuidade e ruptura se referem, nesses casos e em tantos outros, a algo que se dá no tempo e que, portanto, possui um passado, um presente e... um futuro? Bem, depende se esse algo continuará a existir ou não. Mas há outro ponto em comum entre nossos exemplos iniciais. Tal artista quis defender a continuidade da pintura, um cientista quis começar algo inteiramente novo, os revolucionários quiseram, de novo, instaurar a república. Esses três exemplos mostram a atitude daqueles que participam dos acontecimentos, a atitude de quem julga, avalia e quer influenciar os acontecimentos, seja para dar continuidade a algo, seja para começar algo diferente do que havia antes.

continuidade e ruptura

de Leonardo da Vinci (1452-1519).

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uma coisa continua a ser o que era, você provavelmente não está supondo que ela continua a ser exatamente a mesma, com todos os detalhes, mas que algo nela permanece, independentemente de certas alterações. Vamos chamar isso que permanece de “o essencial da coisa”. Não é necessário que isso seja algo oculto e difícil de perceber. Trata-se somente das características essenciais que permitem dizer que tal coisa é tal coisa. É essa essência que permite dizer que ela é a mesma, e que, portanto, continua a existir. Entretanto, a questão se torna bem mais complicada se alguém pedir que você defina essa “essência da coisa”. Dependendo de como ela é definida, o que se compreende por sua continuidade pode variar bastante. Ainda assim, pode-se dizer que a continuidade no tempo depende de certas características que definem o essencial da coisa. São elas que supostamente permanecem as mesmas, possibilitando dizer que se trata sempre da mesma coisa. Assim, a continuidade de algo poderia ser descrita como uma sequência de instantes no tempo, em que ele é sempre o mesmo no seu essencial. Esses instantes podem ser segundos, horas, dias, anos ou mesmo séculos.

Quando uma árvore torna-se diferente do que é? Quando perde suas folhas ou quando tem seus

Foto: Luc Viatour. CC-by-sa-3.0-migrated

continuidade e ruptura

Foto: Nevit Dilmen. CC-by-sa-3.0-migrated

Parâmetros para constatar rupturas e permanências Vamos agora deixar esses exemplos de lado e nos ater a uma única questão: o que significa dizer que algo continua a ser o que já era ou que algo deixa de sê-lo? Vamos supor que uma coisa se mantém contínua no tempo. O que significa dizer que algo se mantém contínuo no tempo? Que a coisa é a mesma em vários instantes seguidos do tempo, não é? Por exemplo, uma árvore. Nós a observamos por uma hora e ela aparenta ser exatamente a mesma. De repente, cai uma folha. Ela é a mesma ou é já outra coisa? Quem vai dar importância para uma folha, afinal? Uma árvore adulta pode ter mais de mil folhas. Uma só não faz diferença. Depois de algum tempo, voltamos a nos deparar com a árvore. Agora, os galhos estão podados. Ainda assim é a mesma árvore? Você poderá responder: claro que é, ela sofreu algumas mudanças, mas continua, no essencial, a ser o que era. As coisas podem ser ditas as mesmas, apesar de algumas modificações que não seriam essenciais. Já pensou se tudo o que muda um pouco deixasse de ser o que era? No entanto, pela resposta, você já pode perceber que continuidade não é uma noção tão simples. Ao dizer que

galhos podados? Ou ainda é a mesma árvore e só deixa de sê-lo, quando é feita lenha para os

humanos? Mesmo assim, algo dela não permanece?

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“SE QUEREMOS QUE TUDO FIQUE COMO ESTÁ, É PRECISO QUE TUDO MUDE” O livro O leopardo, escrito por Giuseppe

Como é possível que tudo mude e, no entan-

Tomasi di Lampedusa (1896-1957) é um dos

to, fique como está? Como é possível que uma

grandes romances da literatura italiana do sé-

“revolução” resulte na mesma coisa que havia

culo XX. Em certo momento, o romance fala di-

antes? Tudo vai depender de como se decide o

retamente do assunto desta Unidade. Tancredi

“essencial da coisa”.

Falconeri, um jovem aristocrata que decidiu

De início, o príncipe, tio de Tancredi, consi-

participar da guerra pela unificação da Itália,

dera que a decisão do sobrinho, de se juntar

despede-se de seu tio, Don Fabrício Salina, um

aos revolucionários, vai contra seus próprios

príncipe da Sicília, que tem muito carinho e ad-

interesses de aristocrata. Para o tio, o essen-

miração pelo sobrinho.

cial é conservar o que existe, manter as coisas

Na época em que se passa o romance, cerca

como são, tais e quais. Mas, diante da pressão

de 1860, a Itália ainda era dividida em muitos

por uma revolução radical, o sobrinho calcu-

Estados, entre os quais a Sicília e Nápoles, que

la que o essencial não é a defesa do estado

juntas formavam o Reino das Duas Sicílias,

de coisas existente – no caso, a defesa do rei

governado então pelo Rei Francisco II (1836-

Francisco II e de tudo que havia antes. O mais

1894). Os que lutavam pela unificação da Itália

importante é outra coisa. Para ele, tudo pode

se dividiam entre os seguidores de Vitor Ema-

mudar de aspecto, o rei pode ser outro, a Itália

nuel II (1820-1878), rei de Piemonte-Sardenha,

pode se unificar e, ao mesmo tempo, o essen-

favoráveis à unificação por meio da monarquia,

cial pode ser preservado, pode continuar como

e os favoráveis à unificação por meio da repú-

antes. O tio acaba concordando com ele, pois

blica. Entre estes se destaca Giuseppe Garibaldi

compreende que o essencial é manter um cria-

(1807-1882), cujo exército desembarcou na Sicí-

do para vesti-lo e uma grande casa que conti-

lia para combater o Rei Francisco II. É para essa

nue a ser sua. O que as duas personagens querem garan-

No momento em que se despede do tio,

tir, e nisso ambas concordam no final, é uma

Tancredi é advertido por ele para se manter

determinada posição social. O resto se torna

longe dos inimigos do rei. Mas Tancredi retruca

aspecto secundário. Para elas, a mudança na

que será preciso aliar-se com aqueles que o tio

organização política da Sicília e da Itália se torna

tem como adversários, aqueles que querem a

uma mudança aparente, se não afetar o que há

revolução, exatamente para impedir que a mu-

de essencial na ordem da sociedade italiana.

dança seja tão brusca. E enuncia a frase que tornou esse romance tão conhecido: “Se quisermos que tudo permaneça como está, é preciso que tudo mude”.

E a ruptura? Concluímos que estamos diante de uma ruptura quando não identificamos mais o que assegurava que a coisa fosse considerada a “mesma”, por não estarem mais presentes as suas características essenciais. Por exemplo, a árvore foi extraída do solo e foi transformada em lenha ou carvão.

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O romance de Tomasi di Lampedusa recebeu uma versão cinematográfica que se tornou muito famosa: O leopardo (Itália, França, 1963), dirigido por Luchino Visconti (1906-1976).

Nesse caso, a ruptura é uma quebra da sequência de instantes em que a árvore era árvore porque tinha como características essenciais isto ou aquilo. Surgiu uma nova sequência: a lenha ou o carvão, dotados de certas características, serão os mesmos por um determinado período de tempo.

continuidade e ruptura

batalha que Tancredi decide partir.

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continuidade e ruptura

Mas quando começa essa nova sequência? Quando a árvore é extraída do solo, quando é transformada em lenha ou quando é queimada? Tudo vai depender de como você define as características essenciais da árvore. Se o fato de a árvore ter raízes no solo é algo necessário para a árvore ser árvore, nesse caso concluiremos que a nova sequência tem início quando a árvore começa a ser extraída do solo. Para estabelecer se uma sequência permanece contínua ou se é interrompida, é preciso antes saber como foram definidas as características que permitem dizer se a coisa ainda é a mesma ou não. A continuidade de uma coisa no tempo pode ser pensada, então, como uma linha reta, em que cada ponto representa um instante. A coisa, no seu essencial, é a mesma em cada ponto. De repente, a linha é quebrada, virada para um lado ou para o outro, ou simplesmente tem um fim. Eis o instante de ruptura. A essência da coisa deixou de existir. Surge em seu lugar algo diferente, novo em comparação com o que vinha antes. Este algo novo pode ou não iniciar uma nova sequência no tempo. O instante em que ocorre a ruptura supõe uma diferença entre o que vinha antes e o que vem depois. É importante que essa diferença não seja qualquer diferença. As coisas podem ser muito diferentes entre si e nem por isso estarem sob uma relação de ruptura. Pense, por exemplo, na relação entre o pássaro pousado na árvore e a própria árvore. Pássaro e árvore são diferentes entre si, mas dificilmente diríamos que há qualquer tipo de ruptura entre eles. É preciso que a diferença, pressuposta na noção de ruptura, seja a diferença entre duas coisas que tem alguma relação entre si, como a árvore e o carvão, e que estejam em relação no tempo, em um antes e um depois. Você pode pensar: “Pois é, mas sem árvore não há carvão. Algo da árvore não

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passou para o carvão? Ela simplesmente não mudou de forma, não se transformou em carvão? Talvez haja continuidade nessas mudanças de forma”. Esse raciocínio também é bom, mas lembremos que tudo vai depender de como foi definido o que é essencial à árvore. Se nele a “forma” era importante, então a continuidade da árvore foi interrompida. E o fato de que algo da árvore passou para o carvão não equivale a dizer que o essencial da árvore, em seu todo, passou para o carvão, permanecendo intacto. Do contrário, como seria possível distinguir árvore e carvão? O raciocínio é válido porque ele descortina outras maneiras de apresentar continuidades e também rupturas. Na história da filosofia, encontramos muitos pensadores que desenvolveram formas diversas de pensar continuidades e rupturas. Já sabemos que juízos sobre continuidades e rupturas podem variar bastante, conforme o que se considera mais importante na identidade das coisas. O nosso artista, o nosso cientista e os nossos revolucionários quiseram dar continuidade ou romper com algo que já existia. Todos participam dos processos históricos e culturais, julgam e tomam posição em relação a eles. E têm em vista também o “essencial da coisa” que defendem ou rejeitam. Outros podem ter juízos e avaliações bem diferentes deles, com base em outras concepções sobre o que, de fato, é essencial naquilo que está em pauta. As continuidades e rupturas vão depender dessas concepções em jogo. Note que diferenças sobre o que continua ou muda radicalmente podem surgir também entre aqueles que não participam dos acontecimentos, mas que se contentam em apenas observá-los e descrevê-los, a fim de explicá-los. Por exemplo, historiadores da arte podem divergir sobre o que é essencial na pintura, e, portanto, podem nos contar histó-

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rias muitos diferentes sobre essa forma artística. O mesmo vale para os historiadores da ciência e dos sistemas políticos. Algumas dessas histórias podem ser apresentadas como contínuas, ou-

tras como contendo inúmeras rupturas. A história, de modo geral, é um campo em que continuidades e rupturas não são apenas constatadas, mas também objeto de muito debate e disputa.

Pesquisa em grupo e desenvolvimento individual por escrito No início deste módulo, mencionamos o movimento intelectual e artístico denominado Renascimento, que se originou em cidades italianas como Roma e Florença e, pouco a pouco, se estendeu para outros países da Europa ao longo dos séculos XV e XVI. Esse movimento, que foi de importância crucial na história da pintura no Ocidente, durou mais de cem anos. Passou por transformações, comportou tentativas diferentes e sucessivas para obter uma representação realista na pintura. Mas o que é comum a essas tentativas é a referência à pintura e à escultura da Antiguidade romana, cujo caráter realista os pintores do século XV procuraram retomar e aprofundar. • Forme uma equipe de dois ou três colegas, e juntos façam uma pesquisa na biblioteca da escola ou na internet, procurando por pinturas da Antiguidade romana. Em seguida, busquem resultados que envolvam pintores do Renascimento italiano, tais como Giotto di Bondone (1267-1337), Massacio (1401-1428), Paolo Ucello (1397-1475), Andrea Mantegna (1431-1506), Leonardo da Vinci (14521519), Michelangelo Buonarroti (14751564) e Rafael Sanzio (1483-1520). Com base nesse material, procurem levantar as semelhanças entre os dois períodos:

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o da Antiguidade romana e o do Renascimento. Para que essas semelhanças se tornem mais evidentes, realizem uma outra pesquisa, agora sobre a pintura medieval. Para obter uma comparação que seja explicativa das diferentes formas de representação pictórica, façam o seguinte: selecionem, na busca, pinturas do período medieval e do Renascimento que abordem o mesmo tema. Isso é simples: basta que vocês procurem por temas ligados à vida de Cristo, um tema que foi exaustivamente representado tanto pelos pintores da Idade Média, quanto pelos pintores do Renascimento. • Comparem as duas formas de representação (a medieval e a renascentista) de um mesmo tema escolhido por vocês (por exemplo, a Anunciação da Virgem, a Crucificação, a Deposição da Cruz ou Deposição de Cristo etc.). Em seguida, procurem caracterizar com suas palavras as diferenças existentes entre elas para os demais alunos. Enfatizem as rupturas existentes no modo de representar as figuras, na disposição delas no espaço, etc. Procurem apontar, na análise das imagens dos quadros escolhidos, em que medida os pintores do Renascimento romperam com a pintura medieval, retomando a inspiração realista da pintura da Antiguidade romana. A ruptura, nesse contexto, foi considerada pelos seus protagonistas como retomada, reínicio, “renascimento”.

continuidade e ruptura

Investigações na história da arte

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O “movimento” segundo Aristóteles O tema da continuidade e da ruptura está sempre ligado à questão da mudança: se alguma coisa muda em algum aspecto – como de uma árvore se fazem outras coisas: lenha, carvão, mobília –, ela continua a ser o que era antes ou deu lugar a outra coisa, radicalmente diferente? Para aprofundar essa questão, vamos ler duas passagens de um dos mais importantes tratados da história da filosofia, a Metafísica, do filósofo grego Aristóteles[+] (384-322 a.C.): “[...] é evidente que, de algum modo, tudo vem a ser a partir de algo de mesmo nome, assim como os seres naturais, ou de uma parte de mesmo nome (por exemplo, a casa a partir de uma casa, enquanto casa no intelecto; pois a arte é forma). E os seres naturais se comportam de maneira semelhante a essas coisas, pois a semente produz tal como os produtos da arte, visto que possui em potência a forma e aquilo de que surge a semente é, de certo modo, de mesmo nome.” (Aristóteles, Metafísi-

Vamos comentar esses aspectos. Por que há um problema sobre a natureza que é preciso resolver? Porque a natureza se caracteriza pela presença do movimento. Esse termo é empregado por Aristóteles com um significado bem mais amplo do que aquele que se encontra normalmente nos textos contemporâneos de filosofia e, principalmente, de física. Para nós, o mais comum é que a palavra “movimento” seja sinônimo de “mudança de lugar”, de “deslocamento”. A investigação moderna sobre os princípios do movimento, das leis que podemos descobrir a seu respeito, enfoca a mudança de lugar efetuada por um objeto qualquer. É por isso, aliás, que se pode tratar do movimento em termos de quantidade, formulando suas leis por meio da linguagem matemática, procedimento que certamente teve em Isaac Newton (1643-1727) seu maior representante, mas que já se apresentava, entre outros, em Galileu (1564-

ca, Livro VII, capítulo 9. Tradução nossa)

Foto: Max Ronnersjö. CC-by-sa-3.0

“[...] a matéria e a forma são uma única coisa e a mesma, uma em potência, outra em ato... cada coisa é uma unidade, e o que é em potência e o que é em ato são, de certo modo, uma coisa una, de modo que há somente uma causa, que movimenta da potência para o ato.” (Aristóteles, Metafísica, Licontinuidade e ruptura

vro VIII, capítulo 6. Tradução nossa)

Nessas passagens, há aspectos interessantes que precisamos destacar. Observe que se trata de falar sobre como a natureza se comporta; que esse comportamento conduz a uma afirmação sobre a unidade dos objetos naturais; que a resposta à questão envolve uma comparação com a arte e que se fala, para isso, de “ato” e “potência”, “forma” e “matéria”.

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A semente traz a árvore em potência: a capacidade de tornar-se árvore... em ato.

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continuidade e ruptura

1642), em Evangelista Torricelli (1608tante delas – sĂŁo a passagem dessa potĂŞn1647), em Johannes Kepler (1571-1630). cia para uma nova situação, que o filĂłsofo Para AristĂłteles, a palavra “movimendenomina “atoâ€?. toâ€? (em grego, kĂ­nesis, palavra presente Uma semente vira ĂĄrvore, portanto, em termos modernos, como “cinemaâ€?) porque deixa de ser uma â€œĂĄrvore em potĂŞnse refere a alguns tipos ciaâ€? para se tornar uma distintos de mudança, â€œĂĄrvore em atoâ€?, e essas de alteração. alteraçþes podem entĂŁo Nos textos de Arisser consideradas como Em AristĂłteles, tĂłteles, a geração de um um processo de “atualia palavra objeto, seu nascimento zaçãoâ€? dessa potĂŞncia. “movimentoâ€? se e surgimento, seu “vir O termo “potĂŞnciaâ€? a serâ€?, ĂŠ um tipo de mo(em grego, dĂ˝namis) refere a vĂĄrios tipos vimento. A mudança significa “capacidadeâ€?, de mudança – o de lugar tambĂŠm o ĂŠ. “poderâ€?. A semente ĂŠ “vir a serâ€? de um As alteraçþes em gecapaz de se tornar ĂĄrral por que passam os vore, traz em si esse objeto ĂŠ um tipo de seres naturais, como poder. E quando olharmovimento. o envelhecimento, sĂŁo mos para uma ĂĄrvore, tambĂŠm movimento. E diremos, conforme o o aumento ou diminuivocabulĂĄrio de Aristóção de algo tambĂŠm sĂŁo teles, que ali estĂĄ uma chamados de movimento por AristĂłteles. ĂĄrvore “atualâ€?, que “atualizouâ€? as potenVeja como o emprego da palavra ĂŠ bem cialidades que continha, quando era semais amplo do que aquele que se tornou mente, para ser uma ĂĄrvore. comum entre nĂłs. De modo geral, essas distintas formas “Formaâ€? e “matĂŠriaâ€?, segundo de movimento, de transformação e muAristĂłteles dança, se articulam de forma unificada, faAo conceitualizar vĂĄrios tipos distintos zendo parte de uma explicação sistemĂĄtica. de mudança, AristĂłteles estĂĄ procurando Para AristĂłteles, o deslocamento do uma saĂ­da para um impasse que seu mesfogo, para cima e nĂŁo para baixo, se explica tre PlatĂŁo[+] havia formulado. Para este, o conhecimento deve ser imutĂĄvel, deve ser porque o “lugar naturalâ€? do fogo ĂŠ o alto. sempre o mesmo. Uma pedra cai porque seu “lugar naturalâ€? Ora, justamente por isso, raciocinava ĂŠ a terra. Como explicar que um ser naPlatĂŁo, o conhecimento nĂŁo pode ter por tural, como uma ĂĄrvore, passe por tantas objetos os seres da natureza, que estĂŁo transformaçþes, desde sua existĂŞncia inisempre mudando. Isso levou PlatĂŁo, em cial como simples semente? Ou que uma alguns de seus diĂĄlogos, a afirmar que o criança recĂŠm-nascida, gerada tambĂŠm a conhecimento diz respeito a realidades partir de um tipo de semente, se transforque nĂŁo se apresentam na natureza e que me em um indivĂ­duo adulto? nĂŁo estĂŁo sujeitas a nenhum tipo de muA resposta de AristĂłteles ĂŠ, basicamendança, denominando-as de “ideiasâ€? ou te, que a semente ĂŠ uma ĂĄrvore “em potĂŞn“formasâ€?, que seriam seres dotados de ciaâ€?, assim como a criança ĂŠ um adulto “em existĂŞncia, conhecidos apenas pelo pensapotĂŞnciaâ€?. No caso da semente vegetal, ela mento – sem o auxĂ­lio dos sentidos – e que traz em si algo que a torna potencialmenexistem fora da natureza, numa espĂŠcie de te uma planta, e as transformaçþes que “lugar suprassensĂ­velâ€? (fora do alcance da sofre – nĂŁo todas, mas uma parte impor-

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percepção pelos sentidos). Aristóteles, que foi aluno da escola de Platão (a Academia) durante vinte anos, herdou de seu mestre o ideal de um conhecimento imutåvel e eterno, mas não podia admitir que esse conhecimento não se referisse de nenhum modo aos seres naturais. Como, porÊm, conciliar um conhecimento idealmente imutåvel com o fato inconteståvel de que os seres naturais estão em mudança permanente e contínua? A solução de Aristóteles Ê complexa e sofisticada, mas pode ser resumida em algumas proposiçþes:

continuidade e ruptura

1. O objeto do conhecimento sĂŁo as “ideiasâ€? ou “formasâ€?, como queria PlatĂŁo. Mas essas formas estĂŁo presentes nos objetos da natureza, nĂŁo sendo separadas deles a nĂŁo ser abstratamente, pelo pensamento. 2. Cada ser natural, humano, animal, vegetal, ĂŠ um composto de matĂŠria e forma. De um lado, a forma permite que cada ser seja exatamente o que ele deve ser. De outro, a matĂŠria torna possĂ­vel que essa forma possa se desenvolver. No caso de uma criança, por exemplo, sua matĂŠria – carne, ossos, nervos – recebe uma sĂŠrie de determinaçþes. Uma sĂŠrie delas ĂŠ variĂĄvel, como cor, peso ou altura. Ao lado dessas, porĂŠm, hĂĄ determinaçþes essenciais: todo ser humano serĂĄ um animal e um ser racional. Isso ĂŠ sua forma. 3. Uma parte das mudanças de um ser natural serĂĄ, portanto, o processo pelo qual a forma se atualiza na matĂŠria. É isto que permite a esse ser tornar-se em ato o que, de inĂ­cio, ele ĂŠ apenas em potĂŞncia.

Voltemos ao exemplo da ĂĄrvore. Uma semente ĂŠ um composto de uma matĂŠria e de uma forma, que estĂĄ ali em potĂŞncia. Quando essa semente germina, disso se segue seu crescimento, o surgimento de raĂ­zes, caule, folhas, tronco, flores e frutos.

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Essas transformaçþes ocorrem porque na semente estava, como diz AristĂłteles, a “forma da ĂĄrvore em potĂŞnciaâ€?, que estĂĄ se atualizando na matĂŠria, que ĂŠ madeira, seiva, folhas, flores e frutos. Ao dispor a questĂŁo desse modo, AristĂłteles dĂĄ conta de alguns problemas. Pode explicar por que, se tiver condiçþes de se desenvolver plenamente, toda semente vira ĂĄrvore ou toda criança vira adulto. A mudança nĂŁo ĂŠ completamente caĂłtica, aleatĂłria, nĂŁo ĂŠ um aglomerado incompreensĂ­vel de rupturas: ĂŠ, na verdade, um processo contĂ­nuo de transformação, previamente estabelecido, no qual determinada matĂŠria, contendo em si uma forma (em potĂŞncia), ĂŠ alterada por causa da presença dessa forma, e esse conjunto de alteraçþes ĂŠ a atualização da forma na matĂŠria.

O significado de “formaâ€? em AristĂłteles É importante esclarecer que AristĂłteles nĂŁo entende por “formaâ€? o sentido que nos ĂŠ mais familiar, em que ĂŠ sinĂ´nimo de “formatoâ€?, do contorno de algo. As traduçþes modernas dos termos empregados por AristĂłteles consagraram a palavra “formaâ€?, mas, na filosofia aristotĂŠlica, forma nĂŁo ĂŠ formato. A “formaâ€? da ĂĄrvore, por exemplo, nĂŁo ĂŠ seu formato: comprido ou chato, altura, largura e espessura. Em AristĂłteles, a palavra se refere a uma espĂŠcie de estrutura interna do objeto, que torna possĂ­vel, inclusive, que ele tenha determinado formato.

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Cataratas do Iguaçu. Š Foto: bbc-bve

Certos fenĂ´menos parecem evidenciar, a nossos olhos, que a natureza estĂĄ em constante movimento.

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rio de ser que a matĂŠria jĂĄ traz em potĂŞncia, enquanto os atributos acidentais sĂŁo resultado de efeitos nĂŁo necessĂĄrios na matĂŠria, sem a atuação da forma. É por isso tambĂŠm que admitir que todos os humanos sĂŁo racionais nĂŁo significa ignorar que alguns sĂŁo mais altos do que outros, que diferem em tantos aspectos: peso, altura, sexo etc. “Arteâ€? ou “tĂŠcnicaâ€?em AristĂłteles Para explicar esse comportamento observado nos eventos naturais, AristĂłteles faz uma comparação com os produtos da arte, ou tĂŠcnica. Essa duas palavras, “arteâ€? e “tĂŠcnicaâ€?, sĂŁo tomadas aqui em sentido equivalente, para fazer referĂŞncia Ă palavra grega tĂŠkhne. Em grego, e particularmente em AristĂłteles, tĂŠkhne (arte, tĂŠcnica) ĂŠ o termo pelo qual se descreve a capacidade criadora, digamos, seja de um poeta, seja de um carpinteiro. Cada um deles, Ă sua maneira, produz alguma coisa. Ora, AristĂłteles compara os produtos da natureza com os da arte, porque isso lhe permite exprimir de maneira familiar a ideia de que hĂĄ um mesmo tipo de processo em situaçþes diferentes. Assim como um carpinteiro inicia seu trabalho de

continuidade e ruptura

É verdade que nem todas as mudanças que a ĂĄrvore sofre sĂŁo explicadas por esse processo. Uma ĂĄrvore pode ter, por exemplo, 1000 folhas, ou 1001, 1002 e assim por diante... Seu tronco pode medir dois metros, ou dois metros e dez centĂ­metros, ou dois metros e vinte, e assim por diante... Mas todas as ĂĄrvores necessariamente serĂŁo dotadas de algumas caracterĂ­sticas, sem as quais nĂŁo seriam ĂĄrvores – por exemplo, ter raĂ­zes e tronco –, e isso se explica pela presença da “forma da ĂĄrvoreâ€?. JĂĄ as outras mudanças, que nĂŁo interferem nessas caracterĂ­sticas, sĂŁo para AristĂłteles contingĂŞncias devidas ao fato de que a matĂŠria da ĂĄrvore pode ser alterada de diversas maneiras, nem sempre previsĂ­veis. No vocabulĂĄrio aristotĂŠlico, todo ser natural contĂŠm atributos essenciais, aqueles sem os quais um ser nĂŁo poderia ser o que ĂŠ – como ter um tronco, para uma ĂĄrvore –, e atributos acidentais, que poderiam ser diferentes, sem que o ser deixasse de ser o que ele ĂŠ essencialmente – como ter 1000 ou 1001 folhas, para uma ĂĄrvore. Os atributos essenciais sĂł sĂŁo possĂ­veis por causa da ação da forma na matĂŠria, por causa da atualização de um modo necessĂĄ-

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Kartos/Dreamstime

Para o pensamento aristotÊlico, a atividade do artesão pode ser comparada aos processos naturais de mudança e movimento.

continuidade e ruptura

transformação de certas peças de madeira visando um objetivo previamente estabelecido – por exemplo, construir uma mesa –, a semente tambĂŠm inicia seu prĂłprio processo de alteração com uma finalidade jĂĄ presente nela: tornar-se ĂĄrvore. Tanto na construção da mesa quanto no crescimento da ĂĄrvore, hĂĄ uma finalidade jĂĄ definida, que vai nortear todo o processo de transformação. O carpinteiro, diante de um tronco, sabe o que deve fazer para tornĂĄ-lo uma mesa, e aplica esse conhecimento no seu trabalho. E a semente se torna espontaneamente uma ĂĄrvore de forma natural, sem procedimentos artificiais como os do carpinteiro. Por causa dessa doutrina, AristĂłteles costuma ser considerado o fundador da teleologia natural (a palavra contĂŠm o termo tĂŠlos, que significa “fimâ€? ou “finalidadeâ€?). O termo “teleologiaâ€? significa, de modo geral, um discurso sobre os fins (do universo, da criação, da humanidade). A explicação aristotĂŠlica para o movimento e a mudança passa por uma teleologia, cujas linhas gerais foram aqui apresentadas. Eis uma das vĂĄrias ideias importantes que esse pensador introduziu na filosofia.

“Em tudo o que hĂĄ finalidade, ĂŠ em vista disso que se executa o que vem antes e o que vem depois. EntĂŁo, o modo como se produz algo ĂŠ o mesmo em que

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surgem os seres naturais, e o modo como esses seres naturalmente vĂŞm a ser ĂŠ o mesmo em que se produz algo, se nĂŁo houver impedimento. E se produz tendo uma finalidade; portanto, ĂŠ tambĂŠm com uma finalidade que se dĂŁo os processos naturais. Por exemplo, se uma casa surgisse naturalmente, surgiria tal como agora ĂŠ feita pela arte. Geralmente, a arte aperfeiçoa o que a natureza ĂŠ incapaz de completar e a imita. Se, entĂŁo, os produtos da arte tĂŞm finalidade, evidentemente tambĂŠm tĂŞm finalidade os seres naturais.â€? (AristĂłteles, FĂ­sica, Livro II, capĂ­tulo 8. Tradução nossa)

AristĂłteles desenvolve aqui uma postura caracterĂ­stica, de grandes consequĂŞncias. Uma coisa ĂŠ o ser como ocorre no mundo; outra, tendo em vista a compreensĂŁo desta, ĂŠ o conhecimento que podemos alcançar. “O caminho da investigação começa naturalmente com o que ĂŠ mais cognoscĂ­vel e claro para nĂłs, na direção do mais claro e cognoscĂ­vel por natureza – pois nĂŁo ĂŠ a mesma coisa o mais cognoscĂ­vel para nĂłs e o mais cognoscĂ­vel em absoluto. Por isso, ĂŠ necessĂĄrio partir do que ĂŠ mais claro para nĂłs, para chegar ao que ĂŠ mais claro e cognoscĂ­vel por natureza.â€? (AristĂłteles, FĂ­sica, Livro I, capĂ­tulo 1. Tradução nossa)

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“Perfectibilidadeâ€? e “desenvolvimentoâ€? Georg W. F. Hegel, filĂłsofo alemĂŁo do começo do sĂŠculo XIX, ĂŠ sem dĂşvida um dos mais importantes pensadores que se dedicaram ao estudo filosĂłfico da histĂłria. Hegel trata de uma questĂŁo que tem a ver diretamente com o tema da continuidade e ruptura. Trata-se, como em AristĂłteles, da questĂŁo das mudanças, porĂŠm mudanças ocorridas na histĂłria. Vamos examinar algumas de suas ideias, comparando-as com outras importantes filosofias da histĂłria. Dois modos de compreender a histĂłria Leiamos, a seguir, dois trechos de Preleçþes sobre a filosofia da histĂłria, de Hegel: “HĂĄ muito, a transformação que ocorre na histĂłria foi de uma maneira geral compreendida como se ela contivesse ao mesmo tempo um progresso para o melhor, para o mais perfeito. As transformaçþes na natureza, por mais

Poucas perspectivas podem contrastar tanto quanto a sociedade egĂ­pcia da Antiguidade e aquela contemporânea – aĂ­ incluĂ­dos os respectivos universos culturais.

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continuidade e ruptura

ŠFoto: bbc-bve

O tema da continuidade e da ruptura Ê muito discutido no que se refere aos grandes acontecimentos da história, como revoluçþes, reformas, contrarrevoluçþes etc. Lemos nos livros de história que civilizaçþes inteiras desapareceram, dando lugar a outras com características diferentes. A GrÊcia e o Egito antigos são bons exemplos disso. Encontramos hoje na GrÊcia e no Egito culturas muito diferentes daquelas que existiram na GrÊcia e no Egito antigos. Os deuses dos gregos e dos egípcios jå não são cultuados hå muitos sÊculos. Os faraós e suas leis jå não existem mais. Essas mudanças na história do mundo provocam a questão de saber se hå continuidade nela ou se hå apenas rupturas, períodos históricos que não têm nada ou muito pouco a ver entre si. Na filosofia, essa questão Ê tratada, sobretudo, pela filosofia da história, que consiste na tentativa de filosofar sobre o sentido da história, sobre a unidade e as transformaçþes da história.

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continuidade e ruptura

da história. Tradução nossa. Edição de referência: Vorlesungen ßber die Philosophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, pp. 75-76)

Segundo Hegel, pode-se pensar as mudanças histĂłricas de mais de uma maneira. Uma delas vĂŞ as mudanças a partir do princĂ­pio da perfectibilidade (capacidade de aperfeiçoamento); outra, a partir do princĂ­pio do desenvolvimento. Esses princĂ­pios podem ser pensados a partir de duas comparaçþes entre a “naturezaâ€? e o que ele chama de campo espiritual ou “espĂ­ritoâ€?, que corresponde ao universo simbĂłlico da cultura. O princĂ­pio da perfectibilidade ĂŠ visto como uma maneira de explicar uma dife-

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A

obra

filosĂłfica

de

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) Ê enciclopÊdica. Hegel pretendeu erigir um sistema filosófico em que praticamente todo saber humano acumulado atÊ a sua Êpoca encontrasse uma posição adequada: a Êtica, o direito, a política, a estÊtica, a religião e toda a história do mundo. AlÊm disso, tentou unificar todo esse saber por meio de um mÊtodo, a dialÊtica.

Alte Nationalgalerie, Berlim. Foto: Anagoria. CC-PD

Hegel Jakob Schlesinger (1792-1855). O filĂłsofo G. F. W. Hegel, Ăłleo sb/ tela, 1831.

infinitas e diversas que sejam, mostram apenas um ciclo que se repete sempre. Na natureza nada de novo acontece sob o sol. [...] Apenas nas transformaçþes que ocorrem no campo espiritual sobrevĂŠm o novo. Esse fenĂ´meno do espiritual torna visĂ­vel que no homem hĂĄ uma determinação diferente da que existe nas coisas meramente naturais [...], a saber, uma capacidade real de transformação, mais exatamente, um impulso para a perfectibilidade. [...] O princĂ­pio do desenvolvimento contĂŠm algo mais amplo [...]. O organismo natural produz a si mesmo: ele faz de si mesmo o que ele ĂŠ em si. Igualmente, o espĂ­rito ĂŠ apenas o que ele faz de si mesmo, e ele faz de si mesmo o que ele ĂŠ em si. O desenvolvimento na natureza se dĂĄ de maneira imediata, sem oposição nem obstĂĄculo. [...] No espĂ­rito, porĂŠm, tudo se passa diferentemente. [...] O desenvolvimento, que na natureza ĂŠ uma produção calma, ĂŠ no espĂ­rito uma luta infinita e ĂĄrdua contra si mesmo. [...] AlĂŠm disso, o desenvolvimento do espĂ­rito tem uma finalidade: a liberdade.â€? (Hegel, Preleçþes sobre a filosofia

Para ele, a dialÊtica não Ê um mÊtodo dialógico, como era nos filósofos antigos e medievais, mas a exposição do desenvolvimento do saber e dos objetos do saber, desenvolvimento esse que se då na forma de contradiçþes. Atualmente, sua filosofia Ê retomada em grande parte por causa do seu conceito de reconhecimento recíproco, o qual Ê inserido na discussão sobre os movimentos sociais e sobre os conflitos culturais. Eis algumas das obras de G. W. Hegel em português: Cursos de estÊtica. Tradução: M. A. Werle. São Paulo: Edusp, 2000-2005. 5 vols. Discursos sobre a educação. Lisboa: Colibri, 1994. EnciclopÊdia das ciências filosóficas em compêndio. Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995-1997. 3 vols. FÊ e saber. Tradução: O. Tolle. São Paulo: Hedra, 2007. Fenomenologia do espírito. Tradução: Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.

rença fundamental entre natureza e espírito: o novo. E ele explica o novo porque o homem, incluído no terreno espiritual, tem uma capacidade real de mudar, e de mudar para melhor. Haveria no homem um impulso para se aperfeiçoar, para melhorar constantemente.

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Desenvolvimento individual por escrito Como vocĂŞ pode ter percebido, a filosofia dĂĄ grande importância ao significado das palavras. AlĂŠm disso, ocorre tambĂŠm de os filĂłsofos, quando buscam introduzir novos conceitos, se servirem de palavras de um modo que por vezes foge de seu sentido consagrado. Por exemplo: o conceito de “formaâ€?, tal como empregado por AristĂłteles, nĂŁo corresponde ao significado habitual que essa palavra possui hoje (ver segundo mĂłdulo desta Unidade). Outro exemplo ĂŠ a palavra “tĂŠcnicaâ€?, que em AristĂłteles abarca parte do que hoje entendemos por tĂŠcnica (carpintaria, sapataria etc.), mas que tambĂŠm inclui atividades que atualmente distinguimos da tĂŠcnica, como ĂŠ o caso da arte. Assim tambĂŠm sucede com a palavra “espĂ­ritoâ€?, muito empregada em filosofia, a ponto de figurar no tĂ­tulo de uma das Unidades deste livro: EspĂ­rito e letra. O mesmo termo tambĂŠm aparece nos textos de Hegel. Em nenhum desses casos, “espĂ­ritoâ€? corresponde ao significado mais difuso entre nĂłs hoje em dia, em que ĂŠ sinĂ´nimo de “alma apĂłs a morteâ€? (eis a primeira definição de “espĂ­ritoâ€?, no DicionĂĄrio Unesp do portuguĂŞs contemporâneo). Na obra de Hegel, a palavra alemĂŁ correspondente a “espiritoâ€? ĂŠ “Geistâ€? (que se pronuncia: “gĂĄistâ€?). Se vocĂŞ abrisse um dicionĂĄrio de lĂ­ngua alemĂŁ, observaria que Geist possui mais de um significado, como, aliĂĄs, acontece com quase todas as palavras em todos os idiomas. Um desses dicionĂĄrios de alemĂŁo – o Wahrig Deut­ sches WĂśrterbuch, de 1986 – lista vĂĄrios

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sentidos para Geist. Um dos mais antigos, que encabeça a lista, equivale a “arâ€? (em alemĂŁo: Atem, que corresponde Ă palavra grega “pneumaâ€?, tambĂŠm conhecida da lĂ­ngua portuguesa: “pneumologiaâ€?, por exemplo, ĂŠ a parte da medicina que estuda as doenças das vias aĂŠreas inferiores: traqueia, brĂ´nquios etc.). E o dicionĂĄrio alemĂŁo Wahrig tambĂŠm fornece, no fim da lista de significados para Geist, um dos sentidos mais difundidos entre nĂłs: “aparição de um morto que voltou Ă vidaâ€? (tradução nossa), como vemos nos filmes de terror. No meio da lista de significados, entretanto, hĂĄ outros muito prĂłximos do que Hegel entende por Geist. Agora passemos para o portuguĂŞs. TambĂŠm nossa lĂ­ngua possui significados diferentes para o termo “espĂ­ritoâ€?. Dentre eles, encontram-se correspondĂŞncias com aquilo que Hegel quis dizer com Geist. Basta vocĂŞ abrir um dicionĂĄrio da nossa lĂ­ngua para verificĂĄ-lo. Por exemplo: “espĂ­ritoâ€? = “conjunto de ideias, opiniĂľes e disposiçþes que predominam em uma ĂŠpoca ou instituiçãoâ€? (DicionĂĄrio Unesp do portuguĂŞs contemporâneo). Se nĂŁo ĂŠ exatamente o que Hegel tem em mente, jĂĄ ĂŠ bem mais prĂłximo do que, por exemplo, o sentido que “espĂ­ritoâ€? possui para os espiritualistas, como Alan Kardec (1804-1869). • Consulte bons dicionĂĄrios da lĂ­ngua portuguesa, relacione os sentidos admitidos por “espĂ­ritoâ€? e aponte, em um texto breve, com no mĂĄximo uma pĂĄgina, qual desses significados mais parece se aproximar da ideia presente no uso que Hegel confere a esse termo. VocĂŞ terĂĄ assim começado a descobrir o significado hegeliano de “espĂ­ritoâ€?.

continuidade e ruptura

O “espĂ­ritoâ€? que nĂŁo aparece em filmes de terror

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Museu Histórico, Palåcio de Versalhes, França

Jean-Pierre Houel (1735-1813). Tomada da Bastilha em 14 de Julho de 1789 (Ăłleo sb/ tela, 1789).

continuidade e ruptura

A Bastilha era uma prisĂŁo que simbolizava o poder monĂĄrquico aos olhos do povo de Paris.

Enfim, seria isso que explicaria a visĂŁo de que as mudanças histĂłricas formariam um progresso para o melhor, para o mais perfeito. Ou seja, porque ĂŠ um ser perfectĂ­vel, porque ĂŠ capaz de mudar e de se tornar melhor do que antes, o homem produz mudanças histĂłricas que sĂŁo passos progressivos de melhora do prĂłprio homem. Note que, para Hegel, hĂĄ uma diferença entre mudanças histĂłricas e mudanças naturais. As mudanças naturais sĂŁo na verdade repetiçþes. Isto ĂŠ, os eventos naturais sĂŁo sempre os mesmos, como as estaçþes do ano: a primavera ĂŠ uma mudança em relação ao inverno, mas todo ano ela se repete, assim como o inverno. As mudanças histĂłricas, ao contrĂĄrio, nĂŁo sĂŁo repetiçþes, mas novidades em relação ao que vinha antes. Se as mudanças naturais sĂŁo sempre repetiçþes do “mesmoâ€?, as mudanças histĂłricas seriam o surgimento do “novoâ€?. Uma outra coisa importante a observar diz respeito ao conceito de “espĂ­ritoâ€?, de que Hegel lança mĂŁo. Na medida em que sĂł no campo espiritual hĂĄ o novo, e o novo ĂŠ o que caracteriza

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as mudanças histĂłricas, entĂŁo o campo do espĂ­rito abrange a prĂłpria histĂłria. AlĂŠm disso, o homem ĂŠ tambĂŠm incluĂ­do no campo espiritual: ele seria o responsĂĄvel pelas mudanças, jĂĄ que possui a capacidade de mudar para melhor. Assim, sabemos um pouco mais sobre o conceito de espĂ­rito: ele se refere Ă histĂłria e ao prĂłprio homem. Por fim, se as mudanças histĂłricas se diferenciam das mudanças naturais por apresentarem o “novoâ€?, este novo nĂŁo estĂĄ em total descontinuidade com o que vinha antes, pois isso tambĂŠm era um passo para a melhora dos seres humanos. As mudanças novas tĂŞm algo em comum: sĂŁo sempre graus de aperfeiçoamento. É por isso que o princĂ­pio de perfectibilidade, tal como analisado por Hegel, pode ser visto como um princĂ­pio que explica a continuidade das mudanças, ao mesmo tempo em que as pensa como “novasâ€?. Essa ĂŠ uma maneira de pensar o progresso: ele seria uma linha estendida para o futuro em que cada momento representa um aperfeiçoamento da humanidade.

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Perfectibilidade e progresso em Rousseau e Condorcet

Hegel nĂŁo cita especificamente nenhum autor que faça uso do conceito de perfectibilidade. PorĂŠm, antes dele, pelo menos dois importantes filĂłsofos do sĂŠculo XVIII pensaram a perfectibilidade como condição do progresso: Jean-Jacques Rousseau [+] (17121778) e Nicolas de Caritat, marquĂŞs de Condorcet (1743-1794), sendo mais conhecido por esse Ăşltimo nome. Para Rousseau, como para Condorcet, a perfectibilidade ĂŠ uma das particularidades mais importantes que distinguem o homem e o animal. • Em grupos de dois ou trĂŞs, leiam com atenção os dois trechos a seguir e procurem destacar as diferenças entre eles quanto ao tema da perfectibilidade e do progresso. Com base nessa comparação, exponham para a classe os resultados de sua reflexĂŁo, posicionando-se sobre qual das duas concepçþes corresponde mais ao conceito de perfectibilidade com que começamos essa discussĂŁo. Eis os dois empregos do princĂ­pio da perfectibilidade: “Mas, mesmo que as dificuldades que cercam todas essas questĂľes em torno da diferença entre o homem e o animal deixassem lugar para a polĂŞmica, haveria ainda uma outra qualidade muito especĂ­fica que os diferencia entre si, e sobre a qual nenhuma contestação pode ser levantada. É a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxĂ­lio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e que, em nosso caso, existe tanto na espĂŠcie, quanto no indivĂ­duo. JĂĄ um animal permanece sendo, apĂłs mil anos, o que ele era no primeiro desses mil anos. Por que somente o homem ĂŠ capaz de tornar-se imbecil? [...] Seria triste para nĂłs sermos obrigados a admitir que

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essa faculdade distintiva e quase ilimitada ĂŠ a fonte de todas as infelicidades do homem. Que ĂŠ ela que, no decorrer do tempo, o tira dessa condição originĂĄria, na qual ele viveria dias tranquilos e inocentes; que ĂŠ ela que, fazendo que surjam com os sĂŠculos suas luzes e seus erros, seus vĂ­cios e suas virtudes, o torne, ao fim e ao cabo, o tirano de si mesmo e da natureza.â€? (Rousseau, Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Parte I. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: J. J. Rousseau, Contrat social ou Principes de droit politique, prĂŠcedĂŠ de Discours sur les sciences. Paris: Librairie Garniers Frères, 1926, p 48) Agora, o segundo trecho, extraĂ­do da obra de Condorcet: “Tal ĂŠ a meta da obra que empreendi, e cujo resultado serĂĄ mostrar pelos fatos, assim como pelo raciocĂ­nio, que a natureza nĂŁo indicou nenhum termo ao aperfeiçoamento das faculdades humanas; que a perfectibilidade do homem ĂŠ realmente indeterminada: que os progressos desta perfectibilidade, doravante independentes da vontade daqueles que desejariam detĂŞ-los, nĂŁo tĂŞm outros termos senĂŁo a duração do globo onde a natureza nos lançou. Sem dĂşvida, estes progressos poderĂŁo seguir uma marcha mais ou menos rĂĄpida, mas ela deve ser contĂ­nua e nunca retrĂłgrada enquanto a Terra ocupar o mesmo lugar no sistema do universo, e enquanto as leis gerais deste sistema nĂŁo produzirem nem uma desordem geral, nem mudanças que nĂŁo permitiriam mais Ă espĂŠcie humana conservar aqui as mesmas faculdades, desdobrĂĄ-las, encontrar aqui os mesmos recursos.â€? (Nicolas de Condorcet, Esboço de um quadro histĂłrico dos progressos do espĂ­rito humano. Tradução: Carlos A. R. de Moura. Campinas: Editora da Unicamp, 1993, pp. 20-21)

continuidade e ruptura

Atividade em equipe e debate em sala de aula

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Objeçþes Ă perfectibilidade É mesmo razoĂĄvel defender inteiramente o princĂ­pio de perfectibilidade para entender as mudanças histĂłricas? Ou, ao invĂŠs disso, a ideia de perfectibilidade se expĂľe a objeçþes e crĂ­ticas? Note que o princĂ­pio da perfectibilidade faz da mudança uma lei, como se houvesse uma lei na histĂłria da humanidade que submete tudo Ă mudança para o melhor. É uma posição defensĂĄvel. PorĂŠm, assumi-la gera alguns problemas, que examinaremos a seguir. Para começo de conversa, muitas mudanças ocorrem para pior, como, aliĂĄs, nĂŁo deixa de observar J.-J. Rousseau[+] (1712-1778). AlĂŠm disso, como saber se uma coisa ĂŠ melhor ou pior que outra, se, como nos indica a experiĂŞncia, a avaliação

sobre melhoras e pioras difere muito, de acordo com a perspectiva e as circunstâncias? Voltemos a Hegel um instante. A objeção que ele faz Ă â€œperfectibilidadeâ€? reside exatamente no fato de que, a seus olhos, ela ĂŠ um princĂ­pio indefinido. E para Hegel, sem definir o que ĂŠ o “perfeitoâ€?, o objetivo, as mudanças acabam valendo por si mesmas, sem nenhum critĂŠrio de avaliação. Desse modo, Hegel, que foi leitor de Rousseau e Condorcet, tenta resolver esse problema de falta de finalidade lançando mĂŁo do princĂ­pio de desenvolvimento. Com esse objetivo, Hegel recorre novamente a uma comparação entre natureza e espĂ­rito. Desta vez, porĂŠm, trata-se nĂŁo de toda a natureza, mas apenas da natureza orgânica, isto ĂŠ, do campo dos seres vivos, dos organismos biolĂłgicos. Por que essa

Lebrecht/Keystone

Kant Immanuel

Kant

(1724-

Note-se que possuĂ­mos duas

1804) nasceu em KĂśnigsberg,

boas traduçþes brasileiras da

uma cidade importante da

CrĂ­tica da razĂŁo pura:

PrĂşssia Oriental, Ă ĂŠpoca um

CrĂ­tica da razĂŁo pura. Tra-

reinado que teve, como seu

dução: V. Rohden e U. Moos-

monarca mais famoso, Frede-

burguer. SĂŁo Paulo: Abril Cul-

rico II, o Grande (1712-1786).

tural, 1983.

Kant teve uma infância rela-

CrĂ­tica

pura.

Tradução: F. C. Mattos. São

cedo lecionou na Universida-

Paulo; Petrópolis; Bragança

gressou como professor regular em 1770. JĂĄ era

Paulista: Vozes & Ed. UniversitĂĄria SĂŁo Francisco, 2012.

conhecido do universo cultural alemĂŁo quando

Hå uma outra boa tradução de M. P. dos

publicou a CrĂ­tica da razĂŁo pura (1781), com que

Santos e A. F. Morujão, pela Fundação Calouste

promoveu “a revolução copernicana em filoso-

Gulbenkian (1994).

fia�. A ela, seguiram-se a Crítica da razão pråtica (1788), a Crítica da faculdade de julgar (1790) e a

continuidade e ruptura

razĂŁo

tivamente modesta e desde de de KĂśnigsberg, onde in-

MetafĂ­sica dos costumes (1797), alĂŠm de outras obras que se tornaram centrais na trajetĂłria do

da

Ademais, você tambÊm pode consultar as seguintes obras de Kant em português: Crítica da razão pråtica. Tradução: V. Rohden. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

pensamento ocidental em ĂĄreas como o direi-

Crítica da faculdade do juízo. Tradução: V. Ro-

to, a polĂ­tica, a epistemologia, a moral e a es-

hden e A. Marques. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-

tĂŠtica. NĂŁo por acaso, Kant ĂŠ, nos dias de hoje,

leiro, 1993.

um dos autores mais estudados da histĂłria da

Fundamentação da metafísica dos costumes.

filosofia. Dispomos de boas traduçþes de suas

Tradução: G. de Almeida. São Paulo: Discurso

obras no Brasil. Eis uma relação das principais.

Editorial; Barcarolla, 2009.

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Nascido em 1743, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, MarquĂŞs de Condorcet, foi um intelectual muito atuante entre os iluministas franceses XVIII.

do

Defensor

sĂŠculo das

Luzes, ou Esclarecimento, como tambĂŠm ĂŠ denominado esse movimento, Condorcet era muito prĂłximo de Jean Le Rond D’Alembert (1713-1783), o qual, juntamente com Denis Diderot (1713-1784), organizou a EnciclopĂŠdia (1750-1765). Condorcet exerceu atividades polĂ­ticas e administrativas no reinado de LuĂ­s XVI, quando este monarca nomeou Anne R. J. Turgot (1727-1781), um importante progressista, para dirigir os negĂłcios pĂşblicos. Com a Revolução de 1789 e, em seguida, com a tomada do poder pelos jacobinos, Condorcet foi perseguido e terminou capturado, sendo executado em 1794.

desenvolvimento desse princípio, dessa finalidade fundamental que Ê a liberdade e a consciência da liberdade. A realização da liberdade Ê o objetivo final, por meio do qual cada mudança histórica recebe seu sentido e sua importância. Apesar da aproximação entre natureza orgânica e cultura, você pode notar que hå tambÊm diferenças importantes que explicariam o caråter conflituoso e contraditório do desenvolvimento histórico dos seres humanos. Sob condiçþes normais, nada que seja próprio ao organismo o desvia do desenvolvimento que vai do germe ao último grau de crescimento. Logo, se depender apenas dele, o desenvolvimento estarå assegurado. Do lado do espírito e da cultura, no entanto, o desenvolvimento não ocorre sem a consciência e a vontade, capacidades que não existem nos organismos biológicos, afora o ser humano. Pode ocorrer de o ser humano não querer

continuidade e ruptura

Desenvolvimento e liberdade Hegel não tem dúvida de que o que caracteriza o espírito Ê a liberdade e a consciência da liberdade. A finalidade a ser alcançada jå estå inscrita no espírito desde o início. Como o espírito abarca a história e a humanidade, pode-se dizer que a finalidade da história Ê alcançar a Êpoca histórica em que todos os seres humanos, sem exceção, seriam livres e conscientes de sua liberdade. Assim, a história universal seria a marcha em etapas, por graus, do

MarquĂŞs de Condorcet

Jean Baptiste Greuze. Palåcio de Versalhes, França.

comparação? Porque tambĂŠm os organismos biolĂłgicos se desenvolvem, evoluem. E se desenvolvem a partir de um princĂ­pio, que no começo tem a forma de um germe, mas depois abandona essa forma, muda, e por fim retorna ao inĂ­cio, conservando sempre o mesmo princĂ­pio orgânico. Podemos pensar no exemplo da ĂĄrvore, que ĂŠ tambĂŠm utilizada por Hegel em outros contextos. A semente, o germe, se desenvolve, constitui-se como ĂĄrvore, que por sua vez gera novas sementes etc. O ciclo se repete. Mas o que interessa nĂŁo ĂŠ a diferença entre a repetição e o novo. Pois inicialmente Hegel trata de aproximar a natureza orgânica e o espĂ­rito. E isso porque o espĂ­rito se desenvolve tambĂŠm a partir de um “germeâ€?, de uma determinação que estĂĄ nele desde o inĂ­cio e ĂŠ a finalidade a ser alcançada, o que define o prĂłprio conceito de espĂ­rito. Se o organismo produz a si mesmo, o que ele produz jĂĄ estĂĄ contido no que ele era em si. Igualmente, o que o espĂ­rito faz de si mesmo ĂŠ o que ele era em si. Essa ideia ĂŠ muito importante para compreender o conceito de desenvolvimento proposto por Hegel: algo sĂł pode se desenvolver porque desde o inĂ­cio ele tem em si, como potencialidade, as transformaçþes posteriores. É um tipo de explicação prĂłxima da que AristĂłteles dĂĄ para a questĂŁo geral da mudança. Ora, segundo Hegel, esse desenvolvimento vale para os seres orgânicos em geral e tambĂŠm para o espĂ­rito, isto ĂŠ, para a histĂłria e para a humanidade.

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se desenvolver, ele pode mesmo se alienar e pode se satisfazer com algo que não corresponde à sua finalidade, a liberdade. Para usar um exemplo sempre citado por Hegel, houve povos na história que não conheceram a ideia de que todos os indivíduos são livres, mas apenas um deles (como os povos asiáticos antigos que aceitavam um déspota como governante) ou apenas alguns (exemplos disso são os gregos antigos, que admitiam a escravidão, assim como no Brasil durante quase todo o período imperial). Por isso, o desenvolvimento do espírito é marcado

por sua luta contra si mesmo, e, como diz Hegel, pela contradição interna a tudo aquilo que ainda é imperfeito, vale dizer, tudo aquilo que não realizou inteiramente a liberdade. Dessa maneira, se Hegel conclui que o desenvolvimento é um progresso que vai do imperfeito para o mais perfeito, esse progresso só se dá porque há contradição e conflito do espírito consigo mesmo. A contradição é a forma por meio da qual se realiza o progresso. Sempre que o espírito não é ainda livre, sempre que a história não apresenta a liberdade de todos os ho-

O antagonismo gerando progresso: Kant e Marx

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Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito

Hegel não foi o primeiro filósofo a ver no conflito um aspecto determinante do progresso histórico. Antes dele, o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) já havia proposto a ideia de que, se o ser humano deve progredir continuamente e desenvolver todas as faculdades de que foi dotado por natureza, esse progresso só pode se efetuar por um antagonismo entre os indivíduos. Depois de Kant e Hegel, a ideia do antagonismo como gerador de progresso foi desenvolvida também por Karl Marx (1818-1883). • Faça uma pequena análise dos textos de Kant e Marx reproduzidos na sequência, tendo em vista principalmente o que afirmam a respeito da noção de antagonismo. Em seguida, exponha em uma redação de duas páginas os pontos mais importantes para cada um desses autores, destacando suas diferenças. Eis o trecho de Kant: “O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ela se torna, ao fim, causa de uma or-

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dem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Esta disposição é evidente na natureza humana. O homem tem uma inclinação para associar­se porque se sente mais como homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições naturais. Mas ele tem também uma forte tendência a isolar-se, porque encontra em si ao mesmo tempo uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta oposição é a que, despertando todas as forças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca de projeção, pela ânsia de dominação ou pela cobiça, a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura mas dos quais não pode prescindir. Dão­se então os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que consiste propriamente no valor social do homem [...]. Agradeçamos, pois, à natureza a intratabilidade, a vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de

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dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem desenvolvimento num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é melhor para a espécie: ela quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamente, mas a natureza quer que ele abandone a indolência e o contentamento ocioso e lance­se ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que conduzem a isto, as fontes da insociabilidade e da oposição geral, de que advêm tantos males, mas que também impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior desenvolvimento das disposições naturais, revelam também a disposição de um criador sábio.” (Immanuel Kant, Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução: Ricardo Terra e Rodrigo Naves. São Paulo: Martins Fontes, 2004, pp. 8-9) Agora, o trecho de Marx: “Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do que ele pensa a respeito de si mesmo, tampouco se pode julgar uma época revolucionária como essa a partir de sua consciência, mas é preciso, ao contrário, explicá­la a partir das contradições da vida material, do conflito presente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. Uma conformação social nunca desa-

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Hegel entende que o desenvolvimento histórico tem começo, meio e fim. O fim é a realização do que estava contido no começo, só que de maneira não desenvolvida. Assim, se o princípio de perfectibilidade explica e une as mudanças pela ideia de aperfeiçoamento, formando uma série contínua, progressiva e indefinida de eventos, o princípio hegeliano de desenvolvimento explica as mudanças por meio de rupturas (conflitos e contradições) e as une como etapas de realização da finalidade, formando uma série de desenvolvimento conflituosamente contínuo, progressivo e definido.

parece antes que todas as forças produtivas estejam desenvolvidas, para as quais ela é mais do que suficiente, e relações de produção mais novas e elevadas nunca surgem em seu lugar antes que as condições materiais de existência destas tenham sido incubadas por si próprias no seio da velha sociedade. É por isso que a humanidade só se lança a tarefas que possa resolver, pois, a um exame mais atento, sempre se descobrirá que a tarefa só vem à tona ali onde as condições materiais de sua resolução já se encontrem presentes ou, pelo menos, sejam apreensíveis no processo de seu devir. Em linhas gerais, os modos de produção asiáticos, antigos, feudais ou burgueses modernos podem ser descritos como épocas progressivas da conformação social econômica. As relações de produção burguesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido do antagonismo individual, mas de um antagonismo alimentado pelas condições de vida dos indivíduos. Entretanto, as forças produtivas desenvolvidas no seio da sociedade burguesa criam também as condições materiais para a solução desse antagonismo. Portanto, é com essa conformação social que se encerra a pré­história da sociedade humana.” (Karl Marx, Para a crítica da economia política. Prefácio. Tradução nossa. Edição de referência: Zur Kritik der politischen Ökonomie, in: Marx & Engels. Werke. Berlim: Dietz, 1971, vol. 13, 7ª ed., p. 9)

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mens, há contradição com aquilo que ele é segundo sua finalidade, o seu “germe”, e as tentativas de resolver essa contradição impulsionam o progresso. Assim, o conceito de desenvolvimento de Hegel apresenta as mudanças históricas como progresso para o mais perfeito, mas, ao contrário do princípio de perfectibilidade, esse progresso tem uma finalidade, um estágio último de realização da liberdade. Além disso, o desenvolvimento histórico se realiza por meio de conflitos e contradições, e não por um impulso humano para se aperfeiçoar indefinidamente.

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As revoluções científicas

Leonardo Da Vinci. National Gallery, Washington DC

Observe o retrato (1) no quadro abaixo. Ele foi pintado por Leonardo da Vinci no final do séc. XV (pouco antes de o Brasil ser descoberto, portanto) sobre um pedaço de madeira. É um quadro pequeno, de pouco mais de 40 cm de altura. É fácil perceber que Leonardo da Vinci está tentando dar destaque à beleza de Ginevra Benci, a mulher que lhe serviu de modelo. Note que, embora ainda seja dia, a cena está marcada pela sombra de uma árvore cheia de espinhos, logo atrás da moça. Isso faz com que grande parte da pintura tenha tons bem escuros – a árvore, o chão e algumas partes do vestido. A luz só está batendo suavemente sobre o rosto e o peito da modelo.

1

Andy Warhol. Coleção particular. Album/Oronoz/Latinstock

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Retrato de Ginevra Benci

2

Retrato de Marilyn Monroe

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Isso dá destaque à brancura e à suavidade de sua pele. Ginevra está usando uma espécie de blusa branca, por baixo do vestido, e quase não se vê a separação entre o tecido e a pele. Há também um contraste entre a dureza dos espinhos da árvore e a suavidade dos cachinhos loiros caindo pelo lado do rosto. Essas duas ideias – brancura e suavidade – são também realçadas pela echarpe marrom. Por contraste, a cor da echarpe realça a brancura da pele. Mas note como Leonardo consegue transmitir também a ideia de leveza. Parece que qualquer brisa, por mais suave que fosse, seria capaz de fazer a echarpe se mover sobre o ombro da moça. Observe agora o outro retrato (2). Trata-se da atriz norte-americana Marilyn Monroe (1926-1962), retratada por Andy Warhol (1928-1987) em 1964. Marilyn tinha morrido dois anos antes e era considerada uma das mulheres mais bonitas do mundo. Repare que Warhol transmite uma ideia de beleza, como Leonardo, mas de outra forma. Em primeiro lugar, Marilyn não está num ambiente determinado. Há apenas uma massa de cor laranja emoldurando o seu rosto. Não sabemos se é noite ou se é dia, se ela está em casa ou no trabalho, se está posando para uma fotografia ou representando. Cores berrantes dão destaque à boca, aos cabelos e à expressão sensual dos olhos. Ela é, sem dúvida, um modelo de beleza. Só que a Marilyn de Andy Warhol não é uma pessoa – é uma figura, é uma ilustração. Parece ter saído de uma história em quadrinhos e só existir no universo de fantasia de seus admiradores. É apresentada como um objeto de consumo, como uma garrafa de refrigerante ou uma lata de sopa (objetos também retratados por Warhol, em obras que executou com a mesma técnica da serigrafia).

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“Cada época elabora seus próprios padrões de gosto. A pintura de Leonardo da Vinci não é nem mais bonita, nem mais feia do que a pintura de Andy Warhol. Cada uma segue um padrão diferente de beleza e só pode ser julgada por meio desses

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padrões. O mesmo vale para todos os tipos de arte e também para os padrões de beleza feminina ou masculina. Os padrões variam de época para época, de cultura para cultura. Quando seguem um mesmo padrão, podemos comparar as obras de arte entre si. Mas se os padrões seguidos são completamente diferentes, a comparação fica impossível. Os padrões estéticos foram mudando ao longo do tempo, mas não foram ‘melhorando’, nem ‘piorando’. Uns vão sendo abandonados, enquanto outros vão se tornando aceitos, e isso é tudo.” Você pode concordar ou não com o raciocínio acima, mas há de convir que ele expressa uma opinião razoável, partilhada por muitas pessoas. É mais ou menos isso, salvo engano, que se quer dizer com a frase: “gosto não se discute”. O que fizemos foi apenas refinar um pouco essa afirmação. Dissemos que apenas pessoas que compartilham o mesmo padrão estético podem discutir suas preferências. Se elas discordam até mesmo quanto àquilo que é feio ou que é bonito, dificilmente chegarão a um acordo acerca do valor artístico de uma obra de arte. Como julgar ciências diferentes? Imagine agora que alguém lhe diga o seguinte: “Ciência não se discute. Cada um tem a sua ciência. Ptolomeu tinha a dele, Copérnico tinha outra, e Einstein tinha outra, mais diferente ainda. Nenhuma é melhor do que a outra. São apenas diferentes. Não houve ‘progresso’ na ciência desde a Antiguidade até hoje. Houve apenas mudança de padrões. Aceitou-se um padrão na Antiguidade, aceitou-se outro padrão na Idade Moderna, e agora adotamos um terceiro padrão para julgar aquilo

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O gosto é relativo ao contexto Qual das duas mulheres você achou mais bonita? De qual das duas pinturas você gostou mais? A beleza de Marilyn Monroe está, sem dúvida, mais próxima de nossos padrões do que a de Ginevra Benci. A brancura da pele, por exemplo, já não é uma exigência de beleza. Pelo contrário. Homens e mulheres passam horas debaixo do sol para ficar com a pele bronzeada. É bem provável que, num concurso de beleza, os lábios carnudos e bem pintados de Marilyn levassem vantagem, hoje, sobre os lábios suaves de Ginevra. Mas o contrário também não deixa de ser verdade. Se Marilyn aparecesse com os lábios, cabelos e olhos pintados no meio de uma praça de Florença no final do século XV, provavelmente faria as pessoas fugirem de medo. Se fizesse um olhar sensual, como esse da pintura de Warhol, seria muito mal vista pelos que ali estivessem, para dizer o mínimo. O que vale para as modelos vale também para os pintores. Andy Warhol provavelmente não conseguiria emprego nem como pintor de paredes na Florença do Renascimento, e alguém que pintasse como Leonardo, hoje, seria visto como um artista antiquado e sem imaginação. Você acha que o nosso gosto melhorou ou piorou ao longo dos séculos? As mulheres que hoje consideramos bonitas são mais bonitas do que as que eram consideradas bonitas antigamente? E a pintura? Foi piorando ao longo dos tempos? Qualquer que seja a sua resposta a essas questões, é interessante que você medite a respeito da seguinte resposta que alguém poderia dar:

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Kuhn Thomas

Kuhn

(1922-

1996) nasceu em Cincinnati,

EUA.

Lecionou

na

Universidade de Princeton e no MIT (Massachusetts Institute of Technology). É

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reconhecido como um dos

E agora? Você acha que esta opinião é tão razoável quanto a que examinamos há pouco, sobre o gosto? Será que as coisas, na ciência, se passam mais ou menos da mesma forma que na arte? Ou será que os padrões daquilo que é verdadeiro ou falso são universais e válidos para toda e qualquer época? Ao contrário do que acontece no caso dos valores estéticos, a maioria das pessoas tende a pensar que, quando o assunto é ciência, os padrões são absolutos. Ouvimos coisas do tipo: “Ptolomeu achava que a Terra estava parada no centro do universo, e que o Sol se movia ao redor dela. Copérnico afirmava o oposto: a Terra gira ao redor do Sol, e não o contrário. Ptolomeu certamente achava que estava correto, mas estava errado. Numa discussão com um cientista moderno, ele certamente levaria a pior”. Será mesmo? Um filósofo estadunidense chamado Thomas Kuhn (19221996) diria que não. Em 1962, ele publicou um livro chamado A estrutura das revoluções científicas, que procurava mostrar que a história da ciência não é tão diferente assim da história da arte, e que a noção de progresso científico, na medida em que é sustentável, tem que ser submetida a uma profunda revisão. Um dos casos que ele analisou é exatamente esse que acabamos de citar: o da astronomia copernicana em oposição à astronomia ptolomaica. Todos os dias vemos o Sol nascer num determinado ponto do horizonte, traçar uma curva no céu ao longo do dia e se pôr no outro lado daquele em que nasceu. O que vemos, portanto, é o Sol

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precursores da teoria do conhecimento e da episte-

Bill Pierce/Time Life Pictures/Getty Images

que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. A rigor, portanto, verdade e falsidade não existem. Existem apenas diferentes modos de julgar se uma determinada afirmação é verdadeira ou é falsa, e nenhum desses modos é melhor ou superior aos outros.”

mologia contemporâneas. Sua obra modificou significativamente o modo como concebemos a produção e os rumos da ciência. Obras publicadas em língua portuguesa: A estrutura das revoluções científicas. Tradução: B. V. Boeira e N. Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2006. A revolução copernicana. Lisboa: Edições 70, 1990. O caminho desde a estrutura. Tradução: C. Mortari. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

girando em torno da Terra, e não a Terra girando em torno do Sol. Além disso, a Terra parece estar realmente parada. Em seu livro Almagesto, Ptolomeu (90168) propõe que façamos um teste. Se você não acredita que a Terra esteja parada, ele dizia, basta ir até uma muralha, ficar de frente para ela e dar um pulo. Se a Terra estiver se movendo a muralha deve vir de encontro ao nosso nariz. Se não vier, é porque está parada. Como resistir a um argumento como esse? Na verdade, a teoria de Ptolomeu encontrava algumas dificuldades – algumas “anomalias” de que não conseguia dar conta. A principal delas dizia respeito ao movimento dos planetas. Se observarmos o céu todas as noites a uma determinada hora (digamos, à meia-noite) e anotarmos a posição em que está o planeta Marte, ou o planeta Júpiter, ao final de um ano nós teremos uma surpresa. Ao contrário do Sol e das estrelas, que têm um movimento ra-

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Johannes Kepler (1571-1630)

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considerar que a Terra está parada, com o Sol e os planetas girando ao redor dela, ele propôs o modelo com o qual hoje estamos acostumados: a Terra gira ao redor de si mesma ao longo de um dia (movimento de rotação), e ao redor do Sol ao longo de um ano (movimento de translação). No começo, enfrentou fortes resistências, assim como Galileu, que o apoiou e foi criticado por isso. Tempos depois de Copérnico ter formulado suas teorias, porém, este passou a ser o sistema aceito. Hoje, ninguém mais diria que a Terra está parada no centro do universo, e que o Sol é que gira em torno dela. Progredimos? Segundo Kuhn, antes de responder a isso, é preciso olhar de perto o que realmente aconteceu. Você pode achar que o sistema de Ptolomeu era muito complicado, por causa dos epiciclos. A verdade, porém, é que de início o sistema de Copérnico era ainda mais complicado. Copérnico não abandonou, por exemplo, a ideia de que a órbita dos planetas tivesse epiciclos. Pelo contrário. Seu sistema pressupunha a existência de mais epiciclos que o sistema de Ptolomeu. Para piorar as coisas, o sistema anterior permitia calcular a posição de um planeta no céu com muito maior precisão. Neste ponto, você deve estar perguntando: “E por que o sistema de Copérnico foi aceito?”. Bem, a verdade é que ele não foi aceito de imediato. Durante muito tempo, as pessoas continuaram a utilizar o sistema grego. A simplicidade nas contas e um argumento como o da muralha pareciam razões decisivas em favor do sistema antigo, apesar de todas as deficiências que ele pudesse ter. Ruim com Ptolomeu, pior com Copérnico – foi assim que as pessoas pensaram por muito tempo. A situação só começou a mudar quando outro cientista, chamado Johannes Kepler (1571-1630), propôs uma alteração fundamental no sistema de Copérnico. Kepler percebeu que, se as órbitas dos planetas fossem elípticas, e não circulares, nós poderíamos adotar o sistema de Copérnico

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Mosteiro Kremsmünster Abbey, Áustria

zoavelmente simples, os planetas apresentam um movimento mais complexo. Vão mudando de posição a cada dia. Depois de muita observação, os cientistas da Antiguidade até sabiam onde cada planeta iria aparecer. O caminho descrito por eles no céu não era linear, como o das estrelas, mas se repetia de tempos em tempos. Mas eles definitivamente não pareciam estar apenas “girando em torno da Terra”, como o Sol. O que fazer diante dessa anomalia? Ptolomeu enfrentou o problema. Sem questionar sua ideia mais básica (ou seja, de que a Terra está parada no centro do universo, e os outros astros é que giram em torno dela), ele deu um jeito de explicar o movimento errante dos planetas. E ele o fez supondo que as órbitas dos planetas não fossem simplesmente circulares, mas contivessem uma série de círculos menores. Além de girarem em ciclos em volta da Terra, eles girariam também em epiciclos – ciclos menores dentro do ciclo maior. Só que um único epiciclo não resolvia o problema. Era preciso postular vários epiciclos, cada um com um tamanho e uma velocidade diferentes, até se aproximar mais ou menos daquilo que era observado no céu. Copérnico propôs inverter completamente a ordem das coisas. Ao invés de

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sem ter que pressupor nenhum epiciclo. Isso foi decisivo. Sem os epiciclos, o sistema ficava mais simples. Os cálculos ficam imensamente mais fáceis. Além disso, com os trabalhos de Galileu e a aceitação do princípio da inércia, o argumento da muralha pôde ser refutado. Uma trajetória de percalços O que o filósofo da ciência Thomas Kuhn conclui a partir de casos como esse? Basicamente, ele afirma que a história da ciência realiza uma trajetória muito diferente daquela que costumamos imaginar. Segundo Kuhn, ela não é um empreendimento linear, em que o conhecimento vai se acumulando aos poucos e os erros vão sendo afastados. A história da ciência, segundo Kuhn, envolve dois tipos de momentos muito distintos. O primeiro momento pode ser chamado de “ciência normal”. Durante mil e quinhentos anos, os astrônomos seguiram o modelo proposto por Ptolomeu. Aceitar esse modelo não quer dizer concordar com tudo o que foi dito por Ptolomeu, muito menos achar que tudo já foi

dito por ele. Se fosse assim, não haveria necessidade nenhuma do trabalho dos astrônomos. Aceitavam-se determinados postulados básicos do sistema ptolomaico, por exemplo: “A Terra está parada no centro do universo”, e determinados procedimentos adotados por Ptolomeu, tais como a postulação de epiciclos. Mas havia discordância – e muita – a respeito de detalhes. Havia inúmeros problemas para os quais os cientistas ptolomaicos não tinham respostas, e todos eles procuravam resolver esses problemas da melhor forma possível. O mesmo acontece com o sistema copernicano. Quando as órbitas elípticas de Kepler permitiram dispensar os epiciclos, ainda restavam muitos problemas a resolver. Qual a distância entre a Terra e o Sol? A que velocidade a Terra está girando? Se a Terra gira, por que não somos atirados para o espaço? E assim por diante. Todos esses problemas eram resolvidos adotando-se o novo modelo de investigação estabelecido por Copérnico, Kepler e Galileu.

A explicação de Ptolomeu para o movimento dos planetas

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Debate em sala de aula e elaboração de diagrama

Imagine uma roda gigante com uma única cadeira. Olhando de fora, você verá essa cadeira descrevendo um círculo, e voltando sempre ao mesmo lugar. Imagine, porém, que no lugar dessa cadeira nós puséssemos uma outra roda, menor que a primeira, e que essa outra roda também só tivesse uma cadeira. Imagine que as luzes do parque se apaguem, e que só essa cadeira fique iluminada. O que você acha que verá? Bem, isso depende muito da velocidade em que essas rodas estiverem girando, e do tamanho de cada uma delas. Em condições normais, você verá uma série de “loopings”.

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No entanto, se as rodas estiverem girando com velocidades muito diferentes, outros desenhos poderão surgir. Suponha, por exemplo, que a roda menor só complete uma volta depois que a roda grande completar duas. O que acontece? • Desenhe no caderno o movimento que será visto. Desenhe em seguida o movimento caso a relação seja de uma volta da roda menor para cada três voltas da maior. Compare seus desenhos com o dos colegas e discuta-os com o seu professor de matemática ou de física. Eles concordam com sua representação gráfica?

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Antar Dayal. Coleção particular

Até o século XV, era comum a crença de que o mundo terminava em um abismo e os mares, em terríveis quedas d’água. Atribui-se a Fernão Magalhães (1480-1521) a primeira circunavegação do globo terrestre, no início do século XVI.

sível nem mesmo falar em “progresso”. Mudam os critérios daquilo que é aceitável ou não, daquilo que é certo ou errado. Ninguém fez viagens interplanetárias para aceitar que a Terra gira em torno de si mesma. As pessoas passaram a ver o mundo dessa maneira porque era mais simples e mais conveniente olhar para o mundo assim. No fundo, segundo Kuhn, ocorre um processo de “conversão” da comunidade científica a um novo paradigma, a uma nova visão de mundo. Os cientistas começam a fazer “ciência normal” novamente, só que agora obedecendo a outros critérios, adotando um novo paradigma. No interior desse novo paradigma, o progresso é possível. Mais e mais problemas serão solucionados, uma exatidão cada vez maior será obtida, e assim por diante. Mas, na passagem de um paradigma para outro, ao invés de falarmos em progresso, será mais prudente e mais exato falarmos apenas em mudança. Isso, claro, se adotarmos o modelo de explicação de Kuhn.

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Em épocas de “ciência normal”, segundo Kuhn, um determinado paradigma (modelo) é aceito e trabalhado no sentido de fazê-lo ficar cada vez mais eficiente. Há progresso, e muito. As pessoas aceitam as mesmas verdades básicas, e por isso compartilham os mesmos critérios para decidir o que é um avanço e o que não é. É mais ou menos isso o que acontece na arte. Cada período tem seus próprios parâmetros de julgamento. Aceitos os parâmetros de um Leonardo da Vinci, podemos julgar se os resultados obtidos por um certo pintor são satisfatórios ou não. Mas não podemos julgar uma obra de Leonardo utilizando o paradigma de beleza (ou de inventividade) de um Andy Warhol, e vice-versa. Em determinadas épocas, os paradigmas aceitos podem enfrentar uma série de problemas. Na ciência, esses problemas envolvem quase sempre (mas nunca exclusivamente) a presença de um número excessivamente grande de anomalias – de casos que a ciência não consegue resolver satisfatoriamente. Isso pode determinar o surgimento de uma crise. Algumas pessoas começam a propor teorias alternativas – novos paradigmas, como o que foi proposto por Copérnico. Isso quer dizer que elas têm todas as respostas? De jeito nenhum. Jamais surge alguém que tenha todas as respostas. Mas outras pessoas, como Kepler, podem ver nessas propostas revolucionárias um bom começo, introduzindo modificações que tornam aquela nova maneira de ver as coisas cada vez mais sedutora. É por isso que Kuhn chama seu principal livro de A estrutura das revoluções científicas (1962). Para ele, há épocas em que ocorrem transformações radicais na ciência – o abandono completo de uma maneira de pensar e de ver o mundo, e sua substituição por outra. Esse processo de mudança, segundo Kuhn, não é cumulativo, nem gradual. Há uma completa reviravolta, uma mudança tão completa que não é pos-

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Gustave Klimt. Galleria Nazionale d’Arte Moderna, Roma

Gustav Klimt (1862-1918), As três idades da mulher (óleo sb/ tela, 1905). Nessa obra, o artista representou a passagem do tempo na figura feminina

unidade 11 A diferença entre fundamento e início ....................

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Platão e o tempo ...

317

princípio ordem e temporalidade e caos

O tempo em Agostinho ................ 321 Elogio de Kant a Platão ..................

329

Regularidade da experiência ............

333

A noção de progresso científico.................

336

princípio e temporalidade

N

ão há dúvida: você se encontra no começo de uma das doze Unidades que compõem este livro. Outra coisa de que você também pode ter certeza é que esse livro possui princípios, dentre os quais figura, por exemplo, o de que a educação é um direito de todos, e que o ensino da filosofia deve contribuir para sua boa realização. Qual seria a diferença entre estas duas noções? Uma primeira resposta está em dizer que “começo” remete a uma sequência que transcorre no tempo (o começo, o meio, o fim). Já “princípio”, por sua vez, conduz a ideias como “norma” ou “fundamento”, ou à ideia de alguma coisa da qual se seguem consequências.

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A diferença entre fundamento e início Quando dizemos: “Maria é uma pessoa de princípios” ou “João segue princípios muito rígidos”, queremos dizer, com isso, que eles agem de determinada maneira, por causa dos princípios com base nos quais orientam suas condutas. Muitas vezes, o termo “princípio” exprime o fundamento de uma atitude – como no famoso ditado: “o importante não é vencer, mas competir”. Apesar dessa diferença de fácil compreensão, em muitos casos “começo” e “princípio” se confundem. Isso costuma ocorrer porque em alguns contextos os dois termos são sinônimos. Leia, abaixo, um texto no qual uma palavra vale pela outra:

Essas são as primeiras linhas do Antigo Testamento da Bíblia. Para nossa investigação, interessa-nos aí a palavra “princípio”. Vejamos o sentido que essa palavra, que figura no primeiro verso (no texto citado, a primeira oração), assume no conjunto desse trecho. Releia-o e confirme: “princípio” não é utilizado aqui como sinônimo de “começo”? Tanto é assim, que podemos substituir um termo por outro, sem alterar o sentido da frase. Experimente: “No começo criou Deus o céu e a terra”. O termo “princípio”, no primeiro verso de “Gênesis”, remete à sequência do “antes” e do “depois”. Logo, remete à temporalidade. O mesmo fenômeno você observará no texto a seguir, que é um pequeno trecho de um dos clássicos de nossa

Flavio de Barros, “Canudos”. Essa imagem mostra o povoado dirigido por Antonio Conselheiro após sua invasão pelas tropas da República.

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princípio e temporalidade

Flavio de Barros. Museu da República, RJ

“No princípio criou Deus o céu e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. E viu Deus que era boa a luz; e fez Deus separação entre a luz e as trevas.” (“O primeiro

livro de Moisés, chamado Gênesis”, 1, 1-4, in: A Bíblia Sagrada – Almeida Corrigida Fiel [ACF]. 1994, 1995, 2007. Sociedade Bíblica Trinitariana do Brasil)

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“A PRINCÍPIO” ≠ “EM PRINCÍPIO” Na língua portuguesa, a palavra “princípio” compõe duas locuções adverbiais à primeira vista bastante parecidas, mas com sentidos diferentes. Consultando um dicionário ou gramática de nossa língua, vemos que “a princípio” assinala um determinado momento no início de um processo ou de um intervalo de tempo (como na frase: “A princípio, sentiu frio, depois vestiu um casaco”). Já “em princípio” implica uma consideração geral, abstraída deste ou daquele caso concreto: “Em princípio, prefiro ler livros na língua original a traduzidos”. A diferença entre as duas locuções adverbiais corresponde grosso modo aos dois conceitos com os quais estamos às voltas: de um lado, a temporalidade; de outro, o princípio, compreendido como fundamento, norma ou razão de alguma coisa.

princípio e temporalidade

literatura nacional. Trata-se de uma passagem de Os sertões (1902), na qual Euclides da Cunha (1866-1909) descreve a formação do povoado de Canudos, no nordeste da Bahia. Conforme relata neste trecho, Canudos foi o resultado da afluência de grupos de pessoas de diferentes proveniências, que possuíam em comum o fato de que se encontravam no sertão em busca da aldeia fundada por Antonio Conselheiro:

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“Inhambupe, Tucano, Cumbe, Itapucurú, Bom Conselho, Natuba, Massacará, Monte-Santo, Geremoabo, Uauá, e demais lugares próximos; Entre-Rios, Mundo Novo, Jacobina, Itabayana, e outros sítios remotos, forneciam constantes contingentes. Os raros viajantes que se arriscavam a viagens naquele sertão, topavam grupos sucessivos de fiéis que seguiam, ajoujados de fardos, carregando as

mobílias toscas, as canastras e os oratórios, para o lugar eleito. Isoladas a princípio, essas turmas adunavam-se pelos caminhos, aliando-se a outras, chegando, afinal, conjuntas, a Canudos.” (Euclides da Cunha, Os sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1936, p. 183. Atualizamos a grafia)

Não é difícil perceber que “isoladas a princípio” significa aqui “inicialmente isoladas”. Com efeito, “a princípio” é uma locução adverbial que indica o tempo da ação – em boa gramática, uma locução adverbial temporal. Euclides da Cunha relata que agrupamentos humanos vindos de todas essas aldeias e vilas se mesclavam uns com os outros, até chegarem, juntos, a Canudos. Também aqui, como na passagem do “Gênesis,” que lemos há pouco, “princípio” vale como sinônimo de “começo” ou “início”. Princípio como fundamento Entretanto, como já advertimos, nem sempre as coisas se passam assim. Há muitos contextos nos quais a noção de “princípio” se diferencia de um momento inscrito no curso do tempo. Nem sempre “princípio” é sinônimo de “início” ou “começo”. Para fornecer um exemplo, leiamos mais uma vez uma passagem da Bíblia, mas agora extraída de outro dentre os livros que a compõem. Examine o passo abaixo, sempre tendo em mente nossa tarefa de entender a diferença entre “princípio”, de um lado, e “começo” ou “início”, de outro: “Pela fé entendemos que os mundos pela palavra de Deus foram criados; de maneira que aquilo que se vê não foi feito do que é aparente.” (“Hebreus”, 11, 3, in: A Bíblia Sagrada – Almeida Corrigida Fiel [ACF]. op. cit.)

Ora, dirá você: “Mas aqui nem mesmo aparecem as palavras que estamos

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do positivismo e republicano convicto. Sua obra Os sertões (1902) contém uma interpretação da formação do povo brasileiro.

investigando!”. E você tem razão. De fato aí não há ocorrência de nenhum dos termos que estamos discutindo – nem “princípio” nem “início” ou “começo”... Mas agora estamos procurando ideias ou noções que admitam ser identificadas em um discurso oral ou escrito, mesmo que os termos que geralmente são utilizados para designá-las não apareçam. Como saber se as noções ou ideias estão mesmo presentes, se as palavras que habitualmente funcionam como seus signos não estão aí para confirmar sua ocorrência? Não há outra saída, senão interpretar o texto. Somente sua interpretação possibilitará identificar, na mensagem que nos é exposta, se as noções que estamos buscando aparecem aí ou não. E não se preocupe, isso é mais fácil do que você pode imaginar. Quer ver? Na passagem acima, por exemplo, a ideia de “princípio” está presente, embora a palavra que a designa não apareça. Vamos tirar a prova? Releia essas linhas e responda à seguinte questão: segundo a Bíblia, o que foi que criou os mundos? O trecho de “Hebreus” responde que foi a palavra de Deus. A crer na Bíblia, nada havia antes da palavra divina.

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“No princípio criou Deus o céu e a terra”

Discutimos essa oração e estabelecemos que nela a palavra “princípio” possui o significado de “início” ou “começo”... Se, porém, você novamente empreender aqui o trabalho de intérprete, de identificar o sentido de um discurso a partir do seu contexto e das ideias que nos são propostas em seu conjunto, certamente descobrirá a complexidade e a riqueza do texto. Fizemos isso com o trecho de “Hebreus” e, para nossa surpresa, identificamos operando nele as noções de princípio e temporalidade desacompanhadas de seus termos habituais. Será que o mesmo não se verifica com o verso inicial do “Gênesis”? De uma coisa você pode estar certo. Supondo que o início de “Gênesis” expõe a ideia de que Deus é a origem do universo, seu princípio, isso não é indicado pela ocorrência do termo “princípio”. Pois vimos que “no princípio” assinala aqui somente um instante na ordem temporal em que transcorreram os acontecimentos: antes de criar as outras coisas, Deus criou os céus e a terra. Assim, nessa sentença é inútil esperar da expressão “em princípio” a explicação bíblica sobre o princípio ou origem do universo. Mas então o que mais pode nos informar sobre isso? Releia uma última vez a sentença analisada aqui. Aquilo que assinala o princípio da criação é... o verbo

princípio e temporalidade

Coleção particular

Euclides da Cunha (1866-1909) foi adepto

Logo, aqui também há a noção de um “antes” e um “depois”. De forma que, além de apresentar a noção de princípio, o trecho de “Hebreus” também contém a noção de uma ordem de acontecimentos que se desenrolam no tempo. Eis, assim, confirmada a presença de nossas duas noções (princípio e temporalidade) no trecho citado, embora os termos que correspondem a elas não tenham sido utilizados. Agora voltemos os olhos outra vez para o passo inicial do “Gênesis”:

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“criar”. De fato, fôssemos reescrever para fins de análise a primeira sentença do “Gênesis”, poderíamos muito bem fazê-lo assim: “No início criou Deus os céus e a terra”

Juxtapose Esopatxuj. Coleção particular

princípio e temporalidade

Esta reescritura ou paráfrase (isto é, a reformulação das ideias de um discurso por meio de outras palavras) da primeira sentença do livro de “Gênesis” tem um intuito determinado. Através dela, sublinhamos com toda clareza possível a presença das duas noções que aparecem aí, tornando ambas passíveis de imediata identificação por parte do leitor. Tanto a ideia de um início temporal, quanto a de um princípio criador, encontram-se agora bem evidentes. É interessante observar que a ação criadora não é evocada pela palavra “princípio”, mas pelo verbo da frase. É o verbo “criar” o que aproxima muito o conjunto do texto inicial do “Gênesis” da passagem tirada de “Hebreus”, que, como apontamos, estabelece ter sido a palavra de Deus o que criou os mundos.

Compreensão e interpretação A primeira lição a tirar daí é bem trivial: compreender o sentido das palavras em um texto é condição para entender as ideias que este texto expõe. Só que nem sempre isso é o suficiente. Embora seja fundamental compreender exatamente em que sentido as palavras estão sendo utilizadas em um texto, por vezes isso não resolve todos os problemas, mas apenas revela... como o texto é difícil. Pois uma coisa é resolver as dificuldades trazidas pelo uso das palavras (dificuldade terminológica), outra, superar as dificuldades conceituais impostas pela articulação entre as noções e as ideias de um determinado discurso (dificuldade interpretativa). No primeiro caso, um dicionário é de grande auxílio. No segundo, recorrer a ele não basta, é preciso interpretar o texto. Tome nosso caso. Já sabemos, a esta altura, o que dizem as primeiras linhas do “Gênesis”. Mas isso não refresca muito a situação, pois, tudo somado, não é tão simples assim explicar, para si mes-

Ilustração do Livro de “Gênesis” (Bíblia Sagrada 1631, Robert Barker/John Bill: Londres.

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King James. Coleção particular). “E disse Deus: haja luz, e houve luz”. J. W. Goethe (17491832) irá retomar esse tema, modificando-o: “No início, era a ação”.

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Foto: ESA/NASA/JPL-Caltech

Esta é uma região da Via Láctea onde a matéria dispersa no espaço sideral se condensa, formando estrelas: o nascimento de novos sóis... quem sabe, de novos mundos?

Análise como etapa prévia ao debate Nossa intenção aqui, veja bem, não é concordar ou não com a Bíblia. Não é decisivo para nossos propósitos abordar um assunto que opôs recentemente intelectuais leigos e cristãos, a polêmica em torno das doutrinas do criacionismo e do evolucionismo. Estamos ocupados com um plano prévio às polêmicas que um texto pode suscitar. Queremos simplesmente estabelecer uma importante base para o debate das ideias, sem a qual nenhuma argumentação atingirá sua desejada consistência. Estamos fazendo uma simples análise de texto, incorrendo em exercícios de interpretação, a fim de entender termos e conceitos. E o que nos ensina a análise conjunta desses textos?

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A leitura do trecho de “Gênesis”, especialmente em conjunto com a citação de “Hebreus”, confirma haver um significado para o conceito de princípio diferente daquele de “começo” ou “início” de algo no tempo. Com efeito, diversas passagens da Bíblia dizem que a palavra divina é a “origem”, a “causa” do mundo. É isso o que torna explícito o passo de “Hebreus” que citamos há pouco: “aquilo que se vê não foi feito do que é aparente”

Logo, aquilo de que foi feito o visível é invisível, aquilo que vemos tem por origem o que não podemos ver. O resultado da discussão pode, desse modo, ser resumido pela diferenciação de duas ideias que estão articuladas na Bíblia: (1) antes mesmo de o mundo existir, Deus decidiu criá-lo (o enunciado da razão de ser do mundo, ou seja, de seu princípio: a vontade divina); (2) a primeira coisa que fez foi criar os céus e a terra (ordem da temporalidade). Como você pode ver, tanto o texto de “Gênesis” quanto a passagem de “Hebreus” descrevem a criação do mundo

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mo ou para alguém, textos que envolvem ideias filosóficas difíceis. No caso que estamos examinando, como explicar que, antes mesmo de o mundo existir, Deus decidiu criá-lo? Você se sente capaz de explicar o que afirma o texto do “Gênesis”, conforme o qual a palavra divina, como princípio de toda criação, criou também o próprio tempo?

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OS NOMES QUE SE DĂƒO AO PRINCĂ?PIO uma cuidadosa tradução da TorĂĄ para o idioma grego. Legendariamente, essa tradução teria sido empreendida por setenta (ou 72) sĂĄbios do mundo helenĂ­stico, e ĂŠ por isso conhecida como “Tradução dos Setentaâ€? ou “SeptuagĂŠsimaâ€?. Nela, a tradução do “GĂŞnesisâ€? inicia-se com a expressĂŁo en arkhĂŞ. A palavra grega arkhĂŠ (de pronĂşncia aproximada “arquĂŠâ€?) comporta, efetivamente, os dois sentidos de princĂ­pio discutidos ao longo dessa Unidade: um temporal e outro causal. (É dessa palavra grega que deriJena-University Library/James L. Amos/Corbis/Latinstock

vam termos como “arcaicoâ€? e “arqueologiaâ€? – a Como ĂŠ evidente, as questĂľes de interpre-

ciĂŞncia que estuda indĂ­cios materiais de civiliza-

tação são muito frequentes e decisivas na tarefa

çþes antigas.) A Tradução dos Setenta foi tam-

de tradução de textos. O caso que aqui examina-

bĂŠm muito utilizada entre os cristĂŁos.

mos, o inĂ­cio do livro do “GĂŞnesisâ€?, nĂŁo ĂŠ exceção.

Entre o fim da Antiguidade e a Idade MĂŠdia,

Basta comparar algumas traduçþes diferen-

na Europa cristĂŁ, a versĂŁo mais difundida do An-

tes para constatarmos como o emprego de um

tigo Testamento foi a tradução para o latim re-

termo ou outro pode levar a interpretaçþes por

alizada por SofrĂ´nio EusĂŠbio JerĂ´nimo (347-420

vezes divergentes. Lembre-se ainda que, tor-

d.C.), depois conhecido pelos catĂłlicos como

nando as coisas ainda mais complexas, a BĂ­blia

SĂŁo JerĂ´nimo. Essa versĂŁo, de enorme impor-

ĂŠ um dos livros mais discutidos nos Ăşltimos dois

tância histĂłrica, ĂŠ chamada “Vulgata latinaâ€? ou

milênios – assim como as leituras que se fazem

simplesmente “Vulgata� (que significa “comum�,

dela, em geral sancionadas por uma autoridade

“popular�, “disseminado�). Na Vulgata, o livro

(o rabinato, a Igreja CatĂłlica Romana, as diversas

do “GĂŞnesisâ€? começa com a expressĂŁo latina

tradiçþes do Protestantismo, o Islã etc.).

in principio, muito prĂłxima Ă portuguesa e que

“GĂŞnesisâ€? ĂŠ o tĂ­tulo com que comumente nos

princĂ­pio e temporalidade

referimos ao primeiro dos cinco livros ditos “de

comporta no mĂ­nimo dois sentidos diversos, seja o temporal, seja o causal.

MoisÊs�, tambÊm conhecidos no seu conjunto

Examinemos por fim a locução em duas

como “TorĂĄâ€? (em hebraico, “o Ensinamentoâ€?; re-

outras traduçþes importantíssimas: a alemã de

ferido ainda como “a Lei�) ou “Pentateuco� (do

Martinho Lutero (1483-1546), o iniciador da Re-

grego, “Os cinco livros�).

forma Protestante; e a inglesa, encomendada a

O texto do “GĂŞnesisâ€? foi escrito primeira-

um grupo de religiosos e eruditos no sĂŠculo XVII

mente em hebraico. O livro se abre com a ex-

pelo rei da Inglaterra e que por isso costuma ser

pressĂŁo be rê’yshĂŽyth, que tem uma denotação

referida pelo seu nome (“King James�):

mais acentuadamente temporal, mas tambĂŠm

• Lutero: Am Anfang (“No começo...â€?)

admite a noção de “proeminĂŞnciaâ€? (“No come-

• King James: In the beginning ... (“No começo...â€?)

ço...â€? / “Em primeiro lugar...â€?). AliĂĄs, essa ĂŠ jus-

Vemos que, nessas duas versĂľes, o sentido

tamente a expressĂŁo que dĂĄ nome ao primei-

de causa, origem, nĂŁo ĂŠ nem mesmo sugerido,

ro livro de MoisĂŠs: assim se chama o livro do

como ocorre na Vulgata ou na tradução portu-

“GĂŞnesisâ€? na tradição hebraica.

guesa de JoĂŁo Ferreira de Almeida citada neste

Entre os sĂŠculos II a.C. e I d.C., a comunidade

mĂłdulo. VocĂŞ encontra uma discussĂŁo mais

judaica estava espalhada por diversas regiĂľes

geral sobre esse tipo de problema, levanta-

do Mediterrâneo. Muitos judeus leigos não do-

do pela interpretação dos textos, na Unidade

minavam o idioma hebraico. Produziu-se entĂŁo

EspĂ­rito e letra deste livro.

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pelo Deus judaico-cristĂŁo. Os dois textos dizem a razĂŁo dessa criação: segundo a BĂ­blia, foi porque Deus quis, que o mundo passou a existir. Foi atravĂŠs de suas palavras que o mundo ganhou existĂŞncia. Conforme a anĂĄlise global dos dois passos citados acima, portanto, podemos concluir que a BĂ­blia afirma que a razĂŁo de ser do mundo reside na palavra divina. DaĂ­ ela ser considerada, na concepção judaico-cristĂŁ, princĂ­pio do mundo. JĂĄ o texto sobre Canudos extraĂ­do de Os sertĂľes nĂŁo contĂŠm nada de semelhante a esse significado de “princĂ­pioâ€?. Euclides da Cunha afirma apenas que agrupamentos de indivĂ­duos, que inicialmente estavam isolados, se encontravam a caminho de Canudos, e terminavam chegando lĂĄ juntos. NĂŁo hĂĄ nenhuma explicação sobre a “causaâ€? ou “princĂ­pioâ€? que levou Ă formação de Canudos, diferentemente do que vimos acontecer na BĂ­blia, que sustenta que a vontade e a

palavra divinas sĂŁo a origem, o princĂ­pio do mundo. Vamos sistematizar essas consideraçþes? 1. Primeiro, vimos que a palavra “princĂ­pioâ€? possui ao menos dois significados bem distintos: a. “princĂ­pioâ€? = “começoâ€?, “inĂ­cioâ€?. b. “princĂ­pioâ€? = “origemâ€?, “fundamentoâ€?, “causaâ€?. 2. Segundo, que hĂĄ um sentido explĂ­cito e outro implĂ­cito nos textos. Vejamos o trecho citado do “GĂŞnesisâ€?. Embora a palavra “princĂ­pioâ€? apareça na primeira oração como sinĂ´nimo de “começoâ€?, a continuação do passo e sua leitura em conjunto com a citação de “Hebreusâ€? revela que a BĂ­blia atribui Ă palavra divina o estatuto de princĂ­pio do mundo, entendido como sua “origemâ€?, sua “causaâ€? ou “razĂŁo de serâ€?. O mesmo texto de “GĂŞnesisâ€?, portanto, abriga

Desenvolvimento individual por escrito e debate em sala de aula Realize em bibliotecas ou na internet pesquisa acerca da histĂłria de Antonio Conselheiro (1830-1897) e da comunidade liderada por ele, Canudos (BA), que foi duramente atacada pelo exĂŠrcito brasileiro no episĂłdio que se tornou conhecido como a “Guerra de Canudosâ€? (1896-1897). • ApĂłs enumerar os principais acontecimentos que cercam esse episĂłdio, redija um texto de uma ou duas pĂĄginas relacionando as principais razĂľes ou causas que, segundo os historiadores, explicam a origem da comunidade liderada por Antonio Conselheiro. Observe que,

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desse modo, vocĂŞ estarĂĄ apresentando princĂ­pios explicativos para um fenĂ´meno histĂłrico, o que ĂŠ bem diferente de contentar-se em localizĂĄ-lo na ordem dos acontecimentos (cronologia). A explicação da origem de um fenĂ´meno remete ao princĂ­pio de algo, que podemos diferenciar do seu começo no tempo. • Compare, em aula, as razĂľes levantadas em sua pesquisa para o surgimento de Canudos com as razĂľes pesquisadas pelos seus colegas. Note que, embora os historiadores concordem com a datação da maior parte dos acontecimentos que cercam Canudos, eles costumam divergir bastante sobre as causas ou princĂ­pios que explicam sua existĂŞncia.

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O princípio da explicação nos estudos de História

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Urostom/Shutterstock

O tema do princípio e da origem, como indica o passo examinado de Hebreus, articula-se com a oposição entre realidade e aparência.

o significado de “princípio” = “começo” (sentido explícito) e de “princípio” = “origem” (sentido implícito). Esse segundo significado torna-se apreensível tanto pela referência à criação, que naturalmente requer um princípio, quanto pela oração intermediária, em que se lê:

buscando identificar o sentido das palavras nele empregadas, sempre o faz de uma perspectiva particular, de um ponto de vista determinado. O mesmo texto pode evocar ideias diferentes para seus diferentes leitores, a depender da perspectiva adotada. Daí porque a análise, por mais criteriosa que seja, sempre possui um viés, jamais é completamente neutra. A análise já traz consigo uma interpretação. Isso também explica por que o sentido que damos por meio das palavras às coisas que nos cercam pode ser revisto, questionado e atravessado por novas indagações. Sob esse aspecto, deter-se sobre as ideias e noções presentes nos discursos – políticos, éticos, estéticos e científicos – é uma maneira de se posicionar diante do senso comum, como também das ideias legadas pela tradição a que pertencemos.

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“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.”

Embora aí não apareça a palavra “princípio”, percebe-se a presença do seu significado como “origem”, “causa” da luz: bastou que Deus dissesse “haja luz”, para que o mundo se iluminasse. 3. A terceira conclusão é mais geral e diz respeito aos textos, aos discursos, às palavras. Visto que as palavras abrigam mais de um significado, a compreensão de uma frase, de um texto ou de um discurso exige análise para que se esclareçam os sentidos em que elas são empregadas. Nem sempre a análise conduz a uma resposta exata e definitiva, e isso por duas razões. Primeiro, porque as palavras nem sempre admitem ser tratadas como corpos a serem dissecados pelos leitores; uma análise de texto não é apenas uma anatomia da linguagem. Em segundo lugar, há o fato de que quem realiza a análise de um discurso,

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Uma paráfrase de ‘Gênesis’ Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito • Procure reescrever o texto citado do “Gênesis” com as suas próprias palavras. Você realizará, assim, um exercício de paráfrase de texto. Busque marcar bem, pela escolha dos termos, a diferença existente entre os dois significados da palavra “princípio”. • Pesquise diferentes concepções sobre a criação do universo. Dicas: hinduísmo, Corão, Antiguidade greco-romana etc. Produza um breve texto (entre um e três parágrafos) comentando se estas apresentam ou não o mesmo tipo de ambiguidade entre “princípio” e “início” que observamos no “Gênesis”.

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Platão e o tempo

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Jan Pieterszoon Saenredam (1565-1607), A caverna de Platão (1604). Essa alegoria define a relação do filósofo com os outros homens, ao ver de Platão: ele sabe que o que os demais creem ser a verdade é ilusão.

desfazer a ilusão em que vivem ainda seus companheiros. Ele então procura convencê-los de que aquilo que acreditam ser verdadeiro não passa de sombras e ilusões. Para sua surpresa, estes se recusam a ouvi-lo. Pois simplesmente não conseguem admitir que o que acreditam ser real seja, de fato, ilusório. O desenlace da história é previsível: nosso personagem termina sendo escorraçado por seus antigos camaradas de cativeiro, que passam a vê-lo como um trapaceiro que só quer ludibriá-los quanto ao que é a verdade. É o que diz Sócrates a Glauco, os dois personagens principais do diálogo criado por Platão, descrevendo o momento em que o “filósofo” volta à escuridão da caverna e mal consegue enxergar o que encontra diante de si: “E se ele, a respeito da significação daquelas sombras, precisasse competir com os que continuavam como prisioneiros, no momento em que sua

princípio e temporalidade

A alegoria da caverna Muito resumidamente, o texto de Platão diz o seguinte: um grupo de indivíduos encontra-se preso em uma caverna, todos com os rostos voltados para uma parede. Atrás deles há uma abertura da caverna, dando para a luz; mas os prisioneiros não conseguem vê-la. Como não podem tirar os olhos da parede, veem apenas, projetadas nela, as sombras de pessoas e objetos que passam por trás deles. Esses prisioneiros sempre estiveram nesta situação, de modo que creem que as sombras que veem projetadas na parede correspondem à realidade. Um deles, porém, consegue se libertar e escapa da caverna. Quando descobre a luz do dia, mal consegue, num primeiro momento, abrir os olhos. Mas, aos poucos, vai acostumando sua visão e passa a contemplar tudo como realmente é. As árvores, a montanha e até a sua própria imagem, refletida na superfície límpida de um lago – os seres e os objetos até ali ignorados por ele, que sempre estivera recluso na caverna, assistindo a sombras que lhe apareciam como se fossem as próprias coisas. Finalmente, nosso personagem olha para o céu e, de vislumbre e com dificuldade, mira o sol, cuja luz tudo ilumina. Sabendo agora como de fato é a realidade, que contempla diante de si, nosso personagem decide voltar à caverna, para

British Museum, London

Você talvez já tenha ouvido falar da alegoria da caverna, de Platão[+]. É uma das narrativas mais conhecidas da filosofia, sempre evocada quando se quer abordar a relação entre o filósofo e os indivíduos que o cercam no dia a dia. Vamos examinar esta famosa história, que é apresentada por Platão no Livro VII de uma de suas obras mais conhecidas, A república.

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O significado de “alegoria” “Alegoria” é uma figura de lin-

ligadas ao tema que é apresenta-

guagem que apresenta uma coi-

do no desfile por aquela escola de

sa para fornecer a ideia de outra.

samba. No caso que nos interessa

Quem já viu ao vivo ou na televisão

discutir aqui, Platão se serve de

um desfile de carnaval pode for-

uma alegoria ou mito para expli-

mar uma ideia de como isso fun-

car como Sócrates, o personagem

ciona: as “alegorias” das escolas

principal de A república, compreen-

são figuras concretas, que expri-

de o papel do filósofo e sua relação

mem ideias ou concepções gerais,

com aqueles que o cercam.

visão estivesse fraca e antes que seus olhos estivessem bem – e esse tempo de acomodação seria muito curto –, será que não seria motivo de riso? Não diriam dele que, tendo ido lá para cima, tinha voltado com os olhos lesados e que não valia a pena nem mesmo tentar ir lá? E a quem tentasse libertá-los e conduzi-los lá para cima, se de alguma forma pudessem segurá-lo com suas mãos e matá-lo, eles não o matariam?” (Platão, A república, Li-

princípio e temporalidade

vro VII, 516e-517a. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 270)

Há inúmeros sentidos nessa famosa alegoria inventada por Platão. Um deles, talvez o mais óbvio, tem a ver com o par realidade e aparência, que discutimos em outra Unidade deste livro. Pois a alegoria da caverna é, em primeiro lugar, uma alegoria sobre a confusão entre o real e o aparente. O protagonista da história, o homem que escapa da caverna, descobre que o que acreditara até ali ser real era aparente. Tenta convencer disso seus companheiros, sem ter sucesso. Aprendemos, pela continuação do texto, que o homem que saiu da caverna representa o filósofo. Ou seja, a alegoria da caverna fala tanto da relação do filósofo

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com o saber, quanto da relação do saber filosófico com a opinião comum, que anima as convicções da maior parte dos homens. Conforme a alegoria, é por ter descoberto a verdade e graças ao fato de que esta verdade se choca com o que pensa a maioria das pessoas, que o filósofo corre o risco de terminar sendo excluído da vida comum. Segundo Platão, a maior parte da humanidade se habituou a viver na ignorância da verdade e, por isso, se recusa a crer no que tem a lhe dizer o filósofo. O temporal como domínio do erro Como observamos, porém, há outros sentidos além desse, presentes na alegoria da caverna e no contexto que a cerca. A imagem do sol que tudo ilumina é utilizada por Platão como uma metáfora do princípio que torna compreensível toda a realidade, além de torná-la existente. Esse princípio, diz Sócrates, é a ideia do bem. Por isso, a alegoria da caverna também admite ser lida e discutida a partir da distinção entre princípio e temporalidade. Numa passagem da mesma obra, situada um pouco antes da apresentação da alegoria da caverna, Platão põe em destaque essa noção de princípio. Leia o trecho abaixo, no qual Sócrates dialoga com Glauco. O narrador é o próprio Sócrates:

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Museu do Vaticano, Vaticano

Sócrates debate em grupo no qual se encontra Glauco, que era um primo de Platão. Os Diálogos platônicos estão cheios de personagens de sua época que praticavam a filosofia. (Rafael [1483-1520], Escola de Atenas. Afresco, 1510-11. Detalhe).

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de, na medida em que esta é conhecida.” (Platão, A república, Livro VI, 508c-e. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. São Paulo: Martins Fontes, 2006, pp. 259-260)

Analisemos a passagem transcrita acima. Você terá notado que Sócrates institui uma analogia entre a luz do sol e a ideia do bem. Assim como o sol ilumina tudo e nos possibilita ver as coisas com acuidade, do mesmo modo a ideia do bem “confere verdade ao que está sendo conhecido e capacidade ao que conhece”. A alegoria da caverna, cuja apresentação se segue ao texto que acabamos de ler, é preparada por essa analogia. E essa analogia ressalta o fato de que, assim como o sol é o princípio da visibilidade, assim também a ideia do bem é o princípio das coisas inteligíveis, isto é, de tudo o que podemos inteligir e conhecer. Estamos diante de um momento no qual o Sócrates apresentado por Platão faz uma escolha significativa. Pois pense bem: nada nos obrigaria a articularmos a dimensão da temporalidade, assinalada pela expressão “o que vem a ser e perece”, com a escuridão e a falta de conhecimento que é representada pelas trevas. Não é verdade que à luz do dia contemplamos muitas coisas, especialmente

princípio e temporalidade

“– Sabes bem, disse eu, que quando não se voltam mais para os objetos em cujas cores a luz do dia se fixa, mas sim para as centelhas noturnas, os olhos ficam embaçados e parecem quase cegos, como se neles não houvesse acuidade de visão. – É bem assim que acontece, disse [Glauco]. – Mas, creio eu, aquilo que o sol ilumina eles veem nitidamente, e parece que naqueles mesmos olhos há acuidade de visão. – Sem dúvida. – Pois bem! Pensa assim também a respeito da alma. Quando ela se apoia no que a verdade e o ser iluminam, ela o concebe, conhece e parece ter inteligência. Quando, porém, se apoia em algo que se mistura com a escuridão, aquilo que vem a ser e perece, ela emite opiniões e a visão turva porque vai mudando suas opiniões numa e noutra direção, e então se assemelha a alguém que não tem inteligência. – É isso mesmo. – Pois bem! Eis o que deves afirmar… É a ideia do bem que confere verdade ao que está sendo conhecido e capacidade ao que conhece. Deves pensá-la como causa da ciência e da verda-

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O tempo: obstáculo ao conhecimento da verdade? Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito

princípio e temporalidade

Procuremos compreender melhor o que exatamente Sócrates contrapõe à luz e ao saber. Releia o texto reproduzido à página 319 e identifique os elementos que Sócrates associa à “escuridão” e à “falta de clareza”. Note que encontraremos a questão dessa Unidade, o par princípio e temporalidade, sob a forma de uma oposição entre esses conceitos. De fato, a primeira coisa mencionada nessa direção são as “centelhas noturnas”. Contemplá-las é quase não enxergar nada, posto que a luz está ausente. Mas, logo em seguida, ao passar para a analogia do “ver” com o “conhecer”, Sócrates afirma que, na ausência da luz (quando a alma se apoia “em algo que se mistura com a escuridão”), nossa visão se embaça e se turva. Como a visão é a metáfora do conhecimento, isso significa que, na falta de luz, nosso saber se torna instável, cambiante. Como diz o texto, vamos mudando de opinião “numa e noutra direção”.

organismos, virem a ser e perecerem? Vir a ser, transformar-se, perecer são processos orgânicos que transcorrem tanto no clarão da luz, quanto na escuridão. Por que, então, o Sócrates posto em cena por Platão associa o “vir a ser e o perecer”, dimensões da temporalidade, apenas à sombra e à escuridão? Pense nisto: o que significa afirmar, como aqui faz luz, Sócrates, que “o que vem a sol ser e perece” mistura-se com a “escuridão”? A não ser que sombras, Sócrates associe a ausência escuridão de luz e a falta de clareza no

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Juntamente com isso, o texto acrescenta outro elemento, que também é imediatamente associado à ausência de luz e à deficiência do conhecimento: “aquilo que vem a ser e perece”… Ora, tudo aquilo que “vem a ser e perece” pertence à ordem temporal, situa-se sob o regime da temporalidade. Logo, podemos afirmar sem hesitação que, nessa passagem de A república, o Sócrates de Platão interpreta a temporalidade como fator que nos afasta do conhecimento da verdade. • Em um texto de aproximadamente uma página, procure relacionar quais motivos poderiam ter levado Platão a associar o que transcorre no tempo com o erro. Lembre-se de que você pode apresentar razões que expliquem a posição de Sócrates sem, para fazê-lo, ter de concordar com essas razões. Por isso, se entender oportuno, após apresentar aquelas que poderiam ser as razões que motivam Sócrates a dizer o que diz, redija também um parágrafo expondo seu próprio ponto de vista sobre o assunto. Guie-se pela questão: o tempo é necessariamente um obstáculo para o conhecimento, ou seria sua condição?

conhecimento a tudo o que transcorre no tempo? Sim, no tempo: afinal, “o que vem a ser e perece” é o que está submetido à ação do tempo, é o que se situa no regime da temporalidade. Logo, o conjunto do passo de A república que estamos discutindo admite ser analisado conforme duas linhas em oposição, conforme este diagrama: contemplação da ideia do bem

inteligência, conhecimento

princípio do conhecimento e do ser

ignorância sobre a ideia do bem

opinião cambiante

temporalidade, o que vem a ser e perece

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Se quisermos, podemos sistematizar assim os resultados de nossa análise do trecho de Platão: o princípio do conhecimento da realidade, já o sabemos, é a ideia do bem. Como a luz do sol que, no mundo físico, torna as coisas visíveis, a ideia do bem torna as coisas inteligíveis (por referência a ela, podemos conhecer a realidade, para além das aparências). Platão considera estável esse princípio: ele não oscila, como oscilam as nossas opiniões. Toda vez que a alma se distancia desse princípio estável (a ideia do bem) e faz recurso “a algo que se mistura com a

escuridão”, termina por se assemelhar “a alguém que não tem inteligência”. Em terceiro lugar, vimos que esta instabilidade da opinião, característica da ignorância e da escuridão, associa-se com o que transcorre no tempo. O texto o afirma, sem, contudo, fornecer maiores explicações a respeito. Deixe de lado, por um instante, a questão de saber se você assinaria ou não embaixo dessa tese. Tomando-a tal e qual, note que ela implica o seguinte: o princípio do conhecimento deve estar fora do regime do tempo – ou seja, deve ser atemporal.

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Orígenes de Alexandria é um dos primeiros teólogos a formular a doutrina cristã. Foi fortemente influenciado pelo platonismo.

mo. Do ponto de vista da história do cristianismo, a assimilação de elementos da doutrina platônica das ideias foi precoce, sendo atestada pelos pensadores cristãos dos primeiros séculos de nossa era. É o que observamos, por exemplo, nas obras de Justino (início do século II); de Clemente de Alexandria (c. 150-215); e de Orígenes de Alexandria (c. 185-c. 255).

princípio e temporalidade

A difusão do cristianismo no Ocidente provocou grandes mudanças nos rumos de sua história. No plano do pensamento filosófico, isso também é perceptível. Entretanto, existem muitos pontos de contato entre doutrina cristã e certas concepções da filosofia antiga, particularmente aquelas que se desenvolveram a partir da obra de Platão[+] (428/7-348/7 a.C.). Adotando uma perspectiva comparativa, o que poderíamos apontar como semelhanças e diferenças entre o platonismo e a concepção judaico-cristã sobre a origem do mundo? Para Platão, o princípio de inteligibilidade e realidade se situa em um plano atemporal. Mas isso não quer dizer que esse princípio não atue sobre as coisas temporais. Pelo contrário: tudo o que ocorre no curso do tempo tem seu princípio de realidade e de inteligibilidade no reino das ideias e, especialmente, na ideia do bem. Há aqui um ponto de convergência: platonismo e cristianismo instituem, cada qual a seu modo, uma diferença entre eternidade e temporalidade. O princípio dos seres temporais se situa fora do tempo; logo, é eterno. Essa convergência, aliás, foi o que favoreceu a assimilação da filosofia platônica pelos primeiros pensadores do cristianis-

Anônimo (c.1800). Dicionário histórico Crabbes. 1825. Coleção particular

O tempo em Agostinho

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Isso é o que explica por que certas noções fundamentais da filosofia e do pensamento grego, presentes no platonismo, permaneceram tendo grande prestígio à medida que se expandia o cristianismo – o qual, por sua vez, teve um papel central nos rumos históricos e simbólicos do Ocidente. Contudo, tais tendências de pensamento também guardam as suas divergências. E a diferença entre o pensamento grego, que encontra em Platão um de seus expoentes, e, de outro lado, a religião cristã, pode ser assinalada nos textos. Sua leitura permite identificar os pontos de aproximação e de distanciamento entre o Deus bíblico e a ideia do bem concebida por Platão. Vejamos, com este intuito, o que diz um dos mais importantes pensadores do cristianismo, Aurélio Agostinho, bispo de Hipona, conhecido como Santo Agostinho.

No trecho escolhido para análise, Agostinho interpreta o livro de “Gênesis”, mencionado em outro módulo desta Unidade. Repare, ao longo da leitura, como há elementos comuns e elementos heterogêneos em relação à posição platônica: “E assim, senhor – tu que não és às vezes uma coisa e outras vezes algo diferente, mas este mesmo, o mesmo e o mesmo: santo, santo, santo, Deus onipotente –, no princípio, isto é, de ti, em tua sabedoria nascida de tua substância, foste tu que fizeste algo, e o fizeste a partir do nada. Com efeito, fizeste céu e terra; não extraídos de ti, porque não há nada que seja igual ao teu filho único, portanto igual a ti. Não se admite de modo algum que algo seja igual a ti se não é feito de ti. E não havia outra coisa antes de ti da qual o terias feito, Deus, una trindade e tripla unidade:

Eternidade e mortalidade

princípio e temporalidade

Estudo dirigido

Observe que, ao menos sob o aspecto analisado aqui, o platonismo se aproxima não apenas do cristianismo, como também das outras duas grandes religiões monoteístas – o judaísmo e o islamismo. O ponto comum reside neste elemento que acabamos de comentar: a ideia de que é legítimo e mesmo necessário diferenciar eternidade e temporalidade. Essa diferenciação é a premissa sem a qual não se pode discernir dois tipos de ser ou duas formas de existência, a cada uma delas correspondendo um registro (eternidade ou temporalidade). Por haver tal diferença, a separação entre divindade

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e seres mundanos se torna vigente no interior desses discursos. Os seres eternos não estão submetidos às mudanças de que padecem todos os outros seres, cuja existência se dá no tempo. Além disso, o que se passa no tempo – “o que vem a ser e perece”, como diz o texto de A república – tem seu princípio de ser e de conhecimento no que está fora do tempo, na eternidade. • Pesquise na biblioteca e na internet os princípios e dogmas centrais de uma determinada religião. Identifique, na doutrina em que essa religião se baseia, como é elaborada a relação entre o plano da divindade e o plano em que transcorre a existência dos seres humanos.

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Agostinho de Hipona ou Santo Agostinho Justus (Joos) van Gent. Museu do Louvre, Paris

Aurélio Agostinho nasceu em 354 d.C., na cidade de Tagaste, situada na atual Argélia. Tagaste pertencia ao Império Romano no norte da África. O pai de Agostinho era cidadão romano. Ainda menino, Agostinho travou contato com a literatura latina e com a religião cristã (sua mãe, sem sucesso, procurou convertê-lo ao cristianismo). Aos dezessete anos, foi para Cartago, onde se tornou professor de retórica. Agostinho seguia, então, o maniqueísmo, doutrina conforme a qual há dois princípios que governam o mundo: o bem e o mal. Em 383, foi lecionar em Roma. De lá, seguiu para Milão, em um período marcado pelo abandono do maniqueísmo em favor da aproximação da tradição cética. Foi o contato com

Agostinho, Confissões. Tradução: J. Oli-

o neoplatonismo que terminou levando

veira Santos e A. Ambrósio de Pina; São

Agostinho a se converter ao cristianismo, em

Paulo: Vozes de Bolso, 2011.

386. Em 388, retornou à África, despojou-se

A cidade de Deus. Parte I. Tradução: Oscar

de seus bens e fez de sua casa um centro

Paes Leme. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012.

Em 391, tornou-se sacerdote em Hipona e, logo depois, bispo coadjutor (daí ter-se tor-

A cidade de Deus. Parte II. Tradução: Oscar Paes Leme. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2012.

nado conhecido como Agostinho de Hipona).

Sobre Agostinho, veja:

Permaneceu nessa cidade até sua morte, em

Cristiane Abbud Ayoub e Moacyr Nova-

430. Agostinho foi canonizado e considerado

es, “Agostinho: a razão e progresso perma-

doutor da Igreja.

nente”, in: Jairo Marçal (org.), Antologia dos

Principais obras de Agostinho traduzidas para o português:

por isso criaste do nada céu e terra, o grande e o pequeno, visto seres onipotente e bom em criar todas as coisas boas, seja o grande céu como a pequena terra. Tu existias e mais nada, do qual criaste céu e terra, essas duas coisas: uma próxima a ti, outra perto do nada. Quanto à primeira, só tu és superior; quanto à outra, só o nada pode ser inferior.” (Agostinho, Confissões, XII, 7. Tradução nossa. Edição de referência: Corpus Christianorum, Series latina

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Textos Filosóficos. Curitiba: SEED-PR, 2009, pp. 18-25 (acesso aberto na internet).

vol. XXVII. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1990, pp. 219-220)

No que a posição de Agostinho se assemelha à eternidade das ideias platônicas? No que se distingue dela? Comecemos por observar o seguinte. No início do trecho citado, Agostinho afirma a “mesmidade” de Deus: “não és às vezes uma coisa e outras vezes algo diferente, mas este mesmo, o mesmo e o mesmo”... Encontramos algo assim no platonismo: a ideia do

princípio e temporalidade

monástico para si e seus próximos.

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Rafael Sanzio. Museus do Vaticano e Galerias. Vaticano

Rafael Sanzio (1483-1520), Deus criando o mundo. Para o cristianismo, o princĂ­pio do mundo e de tudo que transcorre no tempo estĂĄ fora dele, na eternidade.

princĂ­pio e temporalidade

bem, assim como o Deus judaico-cristão, Ê eståvel, única, idêntica a si mesma. Esse trecho tambÊm nos diz que o princípio de tudo estå em Deus. E essa afirmação tambÊm revela haver convergência entre a posição agostiniana e a doutrina platônica das ideias, tal como exposta em A república. Pois, conforme Platão, a ideia do bem tambÊm Ê princípio de todas as coisas.

O Deus cristão não Ê redutível ao Bem platônico PorÊm, nesse mesmo trecho das Confissþes, a presença de um terceiro elemento singulariza o Deus cristão em relação à ideia platônica do bem. Esse elemento reside na ideia de criação e no lugar central que esta ideia ocupa no pensamento agostiniano. Nisso se revela a novidade do pensamento cristão não apenas em relação ao platonismo, como tambÊm, e de modo geral, em relação às filosofias da Antiguidade

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grega. Agostinho afirma que Deus fez algo, e o fez “a partir do nadaâ€?. (Confira vocĂŞ mesmo: nĂŁo hĂĄ qualquer noção correspondente a isso nos trechos de PlatĂŁo discutidos no segundo mĂłdulo desta Unidade.) Para Agostinho, o conceito de criação ĂŠ central. Note que a sequĂŞncia do trecho discutido acima nada mais faz do que explicar a relação existente entre Deus, que criou o universo, e o universo criado por ele. A esse propĂłsito, Agostinho assinala que aquilo que foi criado por Deus nĂŁo ĂŠ feito dele, mas difere de sua substância. Mais para o fim do trecho citado, lĂŞ-se que, nesta criação, Deus procedeu do nada: “criaste do nada cĂŠu e terra, o grande e o pequenoâ€?. E conclui assinalando a hierarquia existente entre as coisas criadas (o cĂŠu, a terra) e seu criador, que coexiste com sua criação: o cĂŠu estĂĄ mais prĂłximo dele do que a terra etc. A ĂŞnfase sobre a criação, portanto, ĂŠ um elemento decisivo para diferenciar entre pensamento cristĂŁo (do Antigo

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Coleção particular

“Que tempos poderiam ter existido, sem que fossem fundados por ti? Ou como seriam mais antigos, se nunca tinham existido? DaĂ­, portanto, que sejas o artĂ­fice de todos os tempos. Se

Ouroboros realizado a partir de um manuscrito de alquimia da GrĂŠcia bizantina tardia. Eis por que os pensadores cristĂŁos recusaram a doutrina do eterno retorno: nela, nĂŁo hĂĄ passagem do tempo para o eterno.

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houve algum tempo antes que tivesses criado o cĂŠu e a terra, como dizem, por que razĂŁo te abstinhas da obra? De fato, a esse mesmo tempo que tu havias criado, nĂŁo poderiam preceder outros, antes que tu houvesses criado os tempos. AlĂŠm disso, se o tempo existia antes do cĂŠu e da terra, como alguns pretendem, o que estavas entĂŁo a fazer? Com efeito, nĂŁo podia haver algo quando o tempo nĂŁo existia. Nem ĂŠ no tempo que tu precedes os tempos: de outro modo nĂŁo precederias todos os tempos.â€? (Agostinho, ConfissĂľes, XI, 13. Tradução nossa. op. cit., p. 202)

Tempo e imortalidade Eis, entĂŁo, o ponto em que nos encontramos: segundo Agostinho, Deus, como princĂ­pio atemporal do universo, criou o prĂłprio tempo. Ao criĂĄ-lo, conferiu ao tempo a unidade de uma narrativa com começo, meio e fim. O tempo passou a ser visto como um processo que sempre segue para frente, sem voltar jamais a um momento antecedente. Agostinho o concebe como algo que passa, mas nĂŁo se repete. Isso pode parecer Ăłbvio para nĂłs, mas estava longe de ser a Ăşnica forma de compreender a temporalidade na Antiguidade. Ao sustentar essa ideia, Agostinho polemizava com uma doutrina muito difundida entre os gregos da Antiguidade, especialmente entre os adeptos do estoicismo – conhecida como a doutrina do “eterno retornoâ€?. Antes de prosseguirmos, duas palavras sobre isso. Pelo nome, o que vocĂŞ arriscaria dizer sobre o “eterno retornoâ€?? Sim, algo que retorna sempre, a toda vez, infinitamente... Algo, portanto, que tem a ver com uma eterna repetição. De fato, o “eterno retornoâ€? ĂŠ uma ideia que corresponde a uma concepção filosĂłfica da natureza do tempo. Nela, o tempo ĂŠ pensado como ciclo natural em que todas as coisas vĂŞm a ser, desaparecem e voltam a ser como eram antes. Isto ĂŠ, elas se repetem.

princĂ­pio e temporalidade

Testamento a Agostinho) e filosofia platĂ´nica. Tanto a divindade judaico-cristĂŁ, quanto a ideia de bem platĂ´nica sĂŁo atemporais, origem e princĂ­pio de tudo o que se encontra no tempo. PorĂŠm, dentre essas duas concepçþes somente o pensamento judaico-cristĂŁo concebe Deus como um ser que, por sua livre vontade, cria o universo a partir do nada. Neste ponto, os cristĂŁos seguem o judaĂ­smo: o texto de “GĂŞnesisâ€? ĂŠ comum a essas duas religiĂľes. Veja, nessa direção, que a interpretação que Agostinho efetua do “GĂŞnesisâ€? faz do poder criador de Deus algo tĂŁo decisivo e tĂŁo ilimitado, que atĂŠ o tempo possui nele sua origem. É o que constatamos no trecho abaixo, no qual Agostinho responde Ă queles que indagam o que fazia Deus nos sĂŠculos que antecederam a criação do mundo:

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Masaccio. Galleria Naionale di Capodimonte, Nápoles

princípio e temporalidade

Contra os defensores do eterno retorno, Agostinho afirma que Cristo morreu uma única vez e então deixou de morrer. (Masaccio [1401-1428], Crucificação. Óleo sb/ madeira, 1426)

Compreendendo não só os processos que interpretamos hoje como estritamente naturais, mas também tudo o que sucede à alma humana e que costumamos ligar à cultura, a “ordem da natureza” seria composta, em sua totalidade, de ciclos de tempo. Seguindo o tempo cíclico da natureza, que se divide nas quatro estações, todas as coisas surgiriam, se desenvolveriam e se corromperiam para tornar a fazê-lo repetidamente (por exemplo, à maneira do processo de geração e corrupção que se constata nos seres vivos de uma mesma espécie natural). Pois bem, a que ideia de princípio corresponde essa concepção filosófica do tempo como “ordem da natureza”, sustentada pelos partidários antigos do “eterno retorno”? Se tudo na natureza se repete desde sempre, nascendo e perecendo e ressurgindo incessantemente, não se pode dizer que as coisas tenham começado originalmente em algum momento do tempo, pois elas já teriam surgido e desaparecido incontáveis vezes. Sendo pensado como circular e cíclico, o tempo não ad-

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mite um começo absoluto das coisas, nem um fim definitivo para as mesmas. Podemos assim perceber por que os pensadores cristãos rejeitaram a doutrina do “eterno retorno”. Não há lugar, nesta concepção, para a ideia de criação, nem tampouco para a ideia de Juízo final. Mas não é só isso. Como observa Agostinho, a ideia de que tudo sempre retorna traz consigo a ideia de que nada começa ou acaba de uma vez por todas. Se admitirmos a ideia do eterno retorno, teremos de admitir também que todas as conquistas da alma humana, por exemplo, são relativas a um determinado momento no curso do tempo, momento esse que adiante irá dar vez ao momento que o antecedeu. Digamos que a alma era ignorante, mas adquiriu sabedoria e beatitude. Conforme a doutrina do eterno retorno, observa Agostinho, a alma se tornará novamente ignorante e deixará de ser beata, tão logo o ciclo do tempo se complete e volte a se repetir. Em resumo, a ideia de que tudo sempre retorna, sem jamais começar ou acabar de uma vez só, valeria também para a “alma imortal” que aprendeu a sabedoria. Como

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verdade também que essa sua imortalidade consiste em viver, desaparecer e ressurgir, como o restante dos seres e coisas submetidos ao ciclo temporal. Conforme essa concepção, portanto, a alma sobrevive, desaparece e ressurge no tempo, e assim por diante, indefinidamente. Mas há uma grande diferença entre, de um lado, durar, perecer e retornar no tempo (concepção do “eterno retorno”) e, de outro, atravessá-lo para, então, existir definitivamente fora dele, na eternidade (concepção cristã). Duração ≠ atemporalidade Note que estamos às voltas aqui com dois sentidos de imortalidade, dos quais apenas um é aceito por Agostinho. Há (i) a imortalidade da alma que sempre retorna temporalmente e (ii) a imortalidade da alma que ultrapassa o próprio

Borboleta-monarca - Danaus plexippus - saindo do casulo. Pantanal-MT, 2009. Agostinho, pensador cristão, afirma que tomar o ciclo da natureza como modelo do universo é ignorar aquilo que o transcende, seu princípio criador: Deus.

princípio e temporalidade

Fabio Colombini

tudo o que nasce está destinado a perecer e a retornar eternamente, nenhuma coisa, nem mesmo a alma humana, seria capaz de se furtar ao ciclo natural. E isso Agostinho não pode admitir. Pois nesse caso não haveria permanência nem salvação possíveis para a alma do homem. Tendo experimentado a felicidade, ela estaria fadada, conforme a ordem da natureza, a reincidir na desgraça; tendo se tornado sábia, voltaria, em virtude do tempo cíclico, a cair na ignorância. Condenado a sempre transmigrar entre os estados mais diversos e opostos, o ser humano nunca conseguiria interromper o ciclo da natureza, o assim chamado destino. Todas as coisas nasceriam e pereceriam para retornar incontáveis vezes, excluindo a possibilidade da morte única de cada homem e, principalmente, a de uma vida humana sobre a qual a morte não já não possui mais domínio. É fácil perceber, agora, por que Agostinho polemiza com os defensores do eterno retorno. É que essa doutrina contraria um dos dogmas centrais do cristianismo, representado pela ressureição de Cristo. Afinal, como afirma Agostinho, “só uma vez Cristo morreu pelos nossos pecados; ao surgir dos mortos deixa de morrer, e a morte já não tem mais poder sobre ele” (Agostinho, A cidade de Deus [De civitate dei], livro XII, capítulo 14. Tradução nossa. Edição de referência: Corpus Christianorum, Series latina vol. XLVIII parte XIV, 2. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1955, p. 369). A concepção cíclica do eterno retorno, assim, põe em questão dois dogmas fundamentais do cristianismo: a ideia de criação e a ideia da imortalidade da alma humana, tal com concebida pelos cristãos. Com efeito, se a alma participa da ordem da natureza, que não foi criada uma primeira vez, mas sempre se repete, neste caso a alma já nasceu e morreu e voltará a nascer e morrer infinitas vezes, necessariamente. Se é verdade que, em seu “eterno retorno”, ela nunca se extingue de todo e por isso se torna, em certo sentido, imortal, é

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tempo. Entram em jogo também dois sentidos de eternidade: (i’) é eterna a alma que constantemente retorna segundo ordem natural; e (ii’) é eterna, em um sentido muito diferente, a alma que, rompendo com o ciclo da natureza, escapa à temporalidade. No primeiro

sentido, admitido pela doutrina do eterno retorno, a alma é imortal e eterna porque está destinada a nascer e morrer ciclicamente; no segundo, característico do cristianismo, ela é imortal e eterna porque pode vencer a morte de uma vez por todas.

TEOLOGIA OU FILOSOFIA? Alamy/Glow Images

É importante perceber como se torna complexa, no pensamento de Agostinho, a relação entre filosofia e religião (ou, se quisermos, entre razão e fé). Observe que com frequência Agostinho critica o discurso filosófico em nome de uma interpretação da palavra religiosa baseada na “reta fé”. É isso o que ocorre na polêmica de Agostinho com a doutrina do eterno retorno. De acordo com isso, a filosofia é uma forma de pensamento que nem sempre está comprometida (ou, pelo menos, não diretamente) com a possibilidade da salvação da alma humana, conforme deixa ver a concepção filosófica do tempo que Agostinho questiona. Por outro lado, é inegá-

Interior da Catedral de Reims, França.

vel o fato de que o pensamento agostiniano se refere constantemente à filosofia, che-

é preciso reconhecer também que o fato de

gando mesmo a incorporá-la e desenvolvê-la

Agostinho se posicionar criticamente em rela-

em sua explicação das questões da fé, como

ção à filosofia não torna o seu pensamento

pudemos constatar através da leitura do

menos importante para o entendimento da

texto selecionado.

natureza do discurso filosófico, nem menos

princípio e temporalidade

Apesar de tudo, não poderíamos dizer, a

decisivo quanto ao seu destino na história.

partir do texto, que Agostinho reconheça a

Afinal, não é apenas graças às obras

si mesmo como um filósofo, nem que pre-

daqueles pensadores que se assumem cla-

tenda sê-lo, muito embora nós hoje o consi-

ramente como filósofos que a filosofia se

deremos assim. Isso evidencia que há uma

constitui como uma forma eminente do pen-

flutuação do conceito da filosofia ao longo

samento humano: ela também surge e se

da história do pensamento ocidental: os

nutre das contribuições, contrárias ou não,

pensadores que pertencem a essa história

de outros discursos (como, por exemplo, o

não só compreendem a natureza da filoso-

religioso). Para formar uma compreensão

fia diversamente, mas também se posicio-

introdutória das relações entre filosofia e

nam em relação ao discurso filosófico de

teologia ao longo da Idade Média, indicamos

maneiras bastante diferentes (realizando-o

que você consulte a seguinte obra:

e defendendo-o, mas também criticando e contestando esse discurso). Junto com isso,

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Alfredo Storck, Filosofia medieval. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.

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Agostinho sustenta existir um conflito entre esses dois sentidos de imortalidade e eternidade e afirma que apenas um deles é correto. A verdadeira imortalidade e eternidade, conforme Agostinho, representa a possibilidade de superar de uma vez por todas a miséria, iminente conforme o ciclo natural. Não poderia haver autêntica salvação, caso a alma jamais pudesse estar segura de ter vencido, em definitivo, a sua miséria. Pois, conforme o cristianismo, a salvação exige a ruptura com o ciclo da natureza. Visto que Agostinho é um pensador cristão, ele tem de encontrar uma alternativa à doutrina do eterno retorno. Sua solução é apresentada em duas frentes: de um lado, Agostinho afirma haver uma diferença entre eternidade (Deus como princípio atemporal) e temporalidade (o ciclo da natureza); de outro, sustenta a possibilidade do aparecimento do novo em relação ao que já ocorreu (a salvação do homem por meio da ruptura com a ordem natural). De nosso comentário a Agostinho podemos tirar duas conclusões relevantes: 1. A possibilidade do novo, do aparecimento de algo que jamais aconteceu anteriormente, não tem lugar em uma concepção do tempo como processo cíclico, tal como a que é criticada por Agostinho. Ele mostra que o novo só pode ocorrer em um tempo finito, que começa e acaba (a vida terrena), sendo limitado por um princípio atemporal (Deus).

A filosofia torna-se forma eminente do pensamento não só por pensadores que se declaram “filósofos”, mas se nutre de contribuições de outros discursos, como o religioso.

Para Agostinho, a eternidade torna possível a novidade. 2. No pensamento de Agostinho sobre a relação entre eternidade e tempo, há uma ligação estreita entre três elementos principais: a natureza, Deus e o homem. A diferença entre a ordem da natureza, que é temporal, e a existência divina, que é eterna, garante a salvação humana, isto é, a possibilidade de o homem romper com a ordem natural e entrar em relação com a eternidade, atingindo a beatitude. Para Agostinho, a diferença entre Deus e natureza dá lugar, assim, à história humana.

Com o advento dos tempos modernos, a discussão em torno dos conceitos de princípio e temporalidade recebeu novas orientações no Ocidente. O debate deixou de se concentrar sobre a relação entre a divindade atemporal e eterna, de um lado, e os “seres que vêm a ser e perecem”, de outro. Não que os filósofos modernos tenham ignorado, em suas in-

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vestigações, a herança da filosofia grega e do pensamento judaico-cristão. Mas as ideias e os conceitos destas duas tradições foram reinterpretados e, muitas vezes, fundidos. E, muitas vezes, suas implicações religiosas foram relativizadas, para dar lugar a uma reflexão sobre outros aspectos do par princípio e temporalidade. É algo assim o que ocorre

princípio e temporalidade

Elogio de Kant a Platão

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princípio e temporalidade

com Immanuel Kant[+] (1724-1804), filósofo muito importante da segunda metade do século XVIII. Em um passo de sua principal obra, a Crítica da razão pura (primeira edição: 1781; segunda edição: 1787), Kant faz um eloquente elogio a Platão[+]. Trata-se de um elogio que tem tudo o que ver com a concepção platônica do mundo das ideias e, especialmente, da ideia do bem. Só que o contexto agora é outro, muito diverso daquele do próprio Platão. Kant o elogia porque ele teria sido o primeiro a compreender que, na filosofia moral, o aspecto mais importante é a ideia ou princípio que possuímos acerca do que devemos fazer, ainda que, na realidade, muito raramente os seres humanos realizem essa ideia em suas existências concretas. Leiamos o texto:

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“Platão encontrava suas ideias principalmente em tudo o que é prático, isto é, que se assenta na liberdade […]. Quem quisesse extrair da experiência os conceitos de virtude ou quisesse converter em modelo de fonte de conhecimento […] o que apenas pode servir de exemplo para um esclarecimento imperfeito, teria convertido a virtude num fantasma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias e inutilizável como regra. Em contrapartida, qualquer um se apercebe de que, se alguém lhe é apresentado como um modelo de virtude, só na sua própria cabeça possui sempre o verdadeiro original com o qual compara o pretenso modelo e pelo qual unicamente o julga. Assim é a ideia de virtude […]. Que ninguém jamais possa agir em adequação com o que contém a ideia pura da virtude, não prova que haja qualquer coisa de quimérico neste pensamento. Com efeito, todo juízo acerca do valor ou desvalor moral só é possível mediante esta ideia; por conseguinte, ela serve de fundamento,

necessariamente, a qualquer aproximação à perfeição moral, por muito que dela nos mantenham afastados impedimentos da natureza humana.” (Kant, Crítica da razão pura, A 314-315/ B 371-372. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, pp. 309-310)

Como se vê, nessas linhas Kant afirma que Platão tomou a via correta, quando decidiu abordar matérias ligadas “a tudo o que é prático”, ou seja, “que se funda sobre a liberdade”. E isso, porque Platão abordou questões relativas à liberdade (ou seja, questões morais) a partir de

A retomada do platonismo por Kant Atividade em equipe e debate em sala de aula • Trabalhando em equipe de no máximo três integrantes, relacione, no texto de Kant aqui citado, as noções que indicam que o trecho em questão fala de filosofia moral. • Em seguida, discuta com os demais membros de sua equipe por que a posição apresentada por que a posição de Kant pode ser aproximada de Platão. Dica: Kant fala da ideia de virtude como algo que não pode ser desmentido pela experiência, pelo motivo de que essa ideia está fora da experiência... Ora, a experiência corresponde ao domínio da temporalidade. Você pode, com base nisso, relacionar a argumentação de Kant nesse trecho com o que é discutido no módulo “Platão e o tempo” da presente Unidade.

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Georges de La Tour. Museu do Louvre, Paris

Georges de La Tour (1593-1652), O trapaceiro (óleo sb/ tela c.1635-40). Segundo Kant, o fato de que grande parte dos seres humanos cometa, na prática, atos contrários à virtude não é decisivo. O que importa é que todos sabem bem o que é a virtude, mesmo quando a transgridem.

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de uma regra da virtude, que paira acima deste ou daquele indivíduo: “o verdadeiro original” está em nossa cabeça, diz Kant. Este “original” é válido mesmo se jamais alguém estiver à sua altura. O “pensamento da virtude” permanece legítimo, a despeito do fato de que “os obstáculos presentes na natureza humana” impeçam que um de nós realize plenamente o ideal que este pensamento exprime. Conforme o texto, embora nenhum de nós seja moralmente perfeito, o ideal moral permanece legítimo. Moralidade e inconstância Se, agora quisermos identificar o que esse texto tem que ver com o par princípio × temporalidade, teremos de fazer uma última releitura, procurando identificar os passos nos quais um desses dois conceitos ou ambos aparecem mencionados. A resposta é muito simples, pois o texto menciona com todas as letras o

princípio e temporalidade

“ideias”. Talvez isso pareça estranho à primeira vista. Mas, você verá, é mais comum do que se imagina. Partir de ideias, diz nosso trecho, é o oposto de “extrair da experiência os conceitos de virtude”. Assim, conforme Kant, ideia e experiência são dois caminhos diversos e opostos para abordar as questões morais. Negligenciar as ideias e abordar questões morais a partir da experiência é o mesmo que se contentar com um exemplo, ao invés de chegar à regra da qual este ou aquele exemplo são, na melhor das hipóteses, ilustrações determinadas. Negligenciar a regra, acrescenta o texto, equivaleria a fazer da virtude um “fantasma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias”... E isso, conclui Kant, equivaleria a destruir a própria virtude. Logo depois disso, o trecho evoca algo que presumidamente todos sabemos. Ao designar alguém como virtuoso, consideramos este alguém como um exemplo

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Giorgio Vasario. Palazzo Vecchio

A virtude é, como quer Kant, um princípio normativo atemporal? Ou uma ideia que formamos no curso da experiência? Quem é experiente não merece nossa atenção? (Giorgio Vasari [1511-1564], Alegoria da virtude. Afresco, c. 1556-1558)

“tempo”. Vamos então reescrever o trecho, suprimindo tudo que nele não seja essencial para nosso propósito:

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“Quem quisesse extrair da experiência os conceitos de virtude [...] teria convertido a virtude num fantasma equívoco, variável consoante o tempo e as circunstâncias e inutilizável como regra.” (Kant, Crítica da razão pura, A 315/B 372. op. cit., p. 309)

Como se vê, o tempo entra aí como fator de instabilidade. Apoiar nossos “conceitos de virtude” na experiência é torná-los sujeitos às variações temporais, às “circunstâncias”. Ora, o termo “circunstância” está associado a “imprevisto”, “acaso”, “vicissitude”, “episódio”. Se continuarmos nossa lista, acrescentaremos também: “conjuntura”, “acidente”, “contingência” etc. Por essas razões, a temporalidade, ao menos conforme o passo citado e discutido aqui, representa um impedimento decisivo quando o assunto é a moral. Pois

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é o fato de variar no tempo o que torna a experiência instável. E é isso o que impede de fixar os conceitos de virtude a partir dos casos advindos da experiência: a cada momento, nossa avaliação e nosso juízo oscilam, conforme as circunstâncias; ora indicam uma direção, ora outra... O texto de Kant postula outra via para determinar os conceitos de virtude. Uma dessas vias, que o texto descarta pelas razões que acabamos de levantar, é a experiência. A outra, que o texto apoia, é o caminho tomado por Platão, a via das ideias. É fácil perceber que as ideias de que o texto fala ao mencionar Platão se encontram, por assim dizer, “fora do tempo”. Como noções que fazem as vezes de originais e que servem como regra, as ideias são atemporais. Conclusão: Kant elogia Platão porque ele concebeu as ideias como normas atemporais a partir das quais julgamos o que se passa ao nosso redor, quando o assunto é o valor moral desta ou daquela ação. Observe que o fato de Kant elogiar Platão nesse passo não significa que Kant

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seja um adepto do platonismo. Há, aliás, outras passagens da mesma Crítica da razão pura (a obra da qual extraímos o trecho analisado) em que Platão é criticado. O elogio que Kant faz a Platão exprime, assim, uma concordância pontual com ele. Só que é um ponto muito importante: o que está em jogo é nada menos que a noção de princípio e sua relação com a temporalidade. Assim como já o fizera Platão, Kant afirma que o conceito de virtude é uma norma ou princípio atemporal, do qual nos servimos para julgar as condutas que se inscrevem no tempo. Mesmo nós, considerados como seres que agem neste mundo, temos de nos pautar por este ideal, ainda que saibamos ser impossível realizá-lo plenamente na vida. E isso porque a vida se desenvolve no tempo. Como, então, esperar realizar

O elogio de Kant a Platão exprime uma concordância parcial. Só que é muito importante: o que está em jogo é a noção de princípio e sua relação com a temporalidade.

plenamente no curso temporal da vida um princípio de natureza atemporal?

Em diversos contextos da história da filosofia, da Antiguidade grega ao século XVIII passando pelos primórdios da era cristã, a ideia de que há um princípio atemporal que explica a ordem do tempo e das coisas temporais recebeu formulações importantes. Mas não haveria outro modo de pensar a relação entre o princípio e a temporalidade, diverso da posição platônica e cristã – que é apropriada, na época moderna, por Immanuel Kant[+]? Ou, na falta de alternativa, só nos restaria adotar a solução que, de Platão[+] a Kant e passando pelo advento da filosofia cristã, faz recurso a um princípio extratemporal para explicar os seres temporalizados? Será que, abandonado a si mesmo, o regime da temporalidade realmente nos conduz, como eles afirmam, a uma base incerta sobre a qual não poderíamos jamais formar um juízo razoável

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nem, muito menos, construir qualquer saber? Dito de outro modo, o tempo necessariamente remete à “instabilidade”, à “variação”, à “incerteza”, não podendo, por isso, contribuir para a elaboração de normas que sirvam como princípios, seja da moral, seja da ciência? A história da filosofia não cessa de nos revelar um horizonte de respostas muito diversificadas. Difícil não encontrar, na leitura de grandes autores, soluções diferentes para problemas e questões comuns. E isso, mesmo quando se trata de uma tese bem estabelecida e cuja história acaba por se mesclar com convicções arraigadas no senso comum, como tantas vezes é o caso quando o assunto é princípio e temporalidade. Não há tese que não tenha sua antítese, nem filósofo que não encontre adversários, que discordarão dele e seguirão um caminho próprio. Isso parece

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Regularidade da experiência

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“NĂŁo hĂĄ ninguĂŠm tĂŁo jovem e inexperiente que nĂŁo tenha formado, a partir da observação, muitas mĂĄximas gerais e corretas relativas aos assuntos humanos e Ă conduta da vida; mas deve-se confessar que, quando chega a hora de pĂ´-las em prĂĄtica, um homem estarĂĄ extremamente propenso a erros atĂŠ que o tempo e experiĂŞncias adicionais venham a expandir essas mĂĄximas e ensinar-lhe seu adequado uso e aplicação. HĂĄ em todas as situaçþes ou ocorrĂŞncias, um grande nĂşmero de ciscunstâncias peculiares e aparentemente minĂşsculas que tendem a ser de inĂ­cio ignoradas mesmo pelo homem mais

Museu Fitzwilliam, Universidade de Cambridge

fazer parte do jogo do pensamento. Por isso, Ê de se esperar que tambÊm a concepção platônica de princípio, elogiada por Kant na Êpoca moderna, tenha sido questionada por outros filósofos, dentre os quais um que foi praticamente contemporâneo de Kant. Leia o texto abaixo, que integra uma obra muito conhecida de David Hume[+] (1711-1756), filósofo escocês que viveu no sÊculo XVIII, um pouco antes de Kant. E procure, no curso desta primeira leitura, assinalar em que Hume se opþe à posição platônica (que Ê retomada por Kant, como discutido no módulo precedente desta Unidade): Willian Blake (1757-1827), Frontispício de Cançþes de experiência (Gravura e tinta, prancha 28, c. 1815-26). A experiência leva a inocência nos ombros, como se procurasse protegê-la no caminho da vida.

talentoso, embora delas dependa por completo a justeza de suas conclusþes e, em consequência, a prudência de sua conduta. Para não mencionar que, no caso de um jovem principiante, as måximas e observaçþes gerais nem sempre lhe vêm à mente nas ocasiþes apropriadas, nem podem ser aplicadas de

princĂ­pio e temporalidade

AS FILOSOFIAS EMPIRISTAS Hume foi muitas vezes classificado como

que questionam o papel preponderante dado

representante do empirismo. “Empirismo�

Ă razĂŁo pelos assim chamados “racionalistasâ€?

ĂŠ um termo classificatĂłrio que agrupa es-

ou “noologistas�.

colas filosĂłficas que dĂŁo valor central Ă experiĂŞncia.

“empiris-

filĂłsofos empiristas AristĂłteles (384-322 a.C.),

mo� remete a “empiria� que, por sua vez,

a quem opĂľe PlatĂŁo (c.427-c.347 a.C.). Nos

tem origem no termo grego �empeiría�

tempos modernos, Kant denomina empirista

(= experiência). É comum encontrarmos o

John Locke (1632-1704), em oposição ao “noo-

conceito de “empirismo� designando filosofias

logismo� de Gottfried Leibniz (1646-1716).

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Etimologicamente,

É assim que Immanuel Kan classifica como

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(Hume, Investigaçþes sobre o entendimento humano e sobre os princípios da moral, seção V, Parte 1. Tradução: JosÊ O. De Almeida Marques. São Paulo: Editora da UNESP, 2004, p. 77)

Ivan Akira

Esse trecho corresponde a uma nota da obra em que Hume questiona o racionalismo clĂĄssico, isto ĂŠ, questiona os filĂłsofos que, de forma geral, sustentam que a razĂŁo ĂŠ capaz de conhecer verdades independentemente da experiĂŞncia. É nesse contexto que Hume desenvolve a argumentação transcrita acima. Examinemos o texto propriamente dito. A primeira coisa a fazer para compreender nosso trecho no aspecto que

O aprendizado de normas, assim como das regras, depende da experiĂŞncia, argumenta Hume. SĂł atravĂŠs de experiĂŞncias repetidas, diz ele, podemos aprender coisas simples tais como o sentido de uma seta.

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O tempo como condição das regras prĂĄticas Pense um instante nisso que acabamos de destacar. JĂĄ nĂŁo dispomos de elementos para dar uma resposta provisĂłria Ă nossa questĂŁo sobre o estatuto, positivo ou negativo, que Hume atribui ao tempo na passagem citada? Pois essa primeira parte do texto afirma que o tempo nos instrui a aplicar bem a regra relativa Ă prĂĄtica, isto ĂŠ, Ă moral. PlatĂŁo e Kant excluem a moralidade do domĂ­nio temporal. Hume se opĂľe frontalmente a ambos, na medida em que sustenta que o tempo, ao invĂŠs de ser elemento dispersivo e anĂĄrquico, constitui, ao contrĂĄrio, condição para o “adequado uso e aplicaçãoâ€? das regras. Note que Hume assume essa tese sem, por isso, negar que haja algo de circunstancial no agir e no julgar a partir da experiĂŞncia. Ele inclusive admite que o carĂĄter circunstancial e particular que cerca toda e qualquer situação concreta altera de modo decisivo as conclusĂľes que se tiram dela. Mas, na opiniĂŁo desse filĂłsofo, isso nĂŁo ĂŠ motivo para buscar a regra ou princĂ­pio fora da experiĂŞncia – como fez antes dele, PlatĂŁo, e irĂĄ fazer logo depois dele, Kant. Para Hume, quanto mais ampla for a experiĂŞncia, quanto mais longo for o perĂ­odo em que experimentamos

princĂ­pio e temporalidade

nos interessa ĂŠ indagar o estatuto que ele atribui Ă temporalidade. Esse estatuto ĂŠ positivo ou negativo? Releia o inĂ­cio da citação. Hume começa recordando que qualquer um de nĂłs, mesmo “jovem e inexperienteâ€? (isto ĂŠ, com menos “experiĂŞnciaâ€?, o que ĂŠ uma noção importante nessa argumentação), ĂŠ capaz de formar regras, “mĂĄximas gerais e corretasâ€?, acerca dos assuntos humanos e das nossas condutas. Entretanto, diz em seguida, apenas “o tempo e experiĂŞncias adicionaisâ€? podem assegurar melhor uma boa aplicação dessas regras.

imediato com a devida tranquilidade e discernimento. A verdade ĂŠ que um raciocinador inexperiente nĂŁo poderia de forma alguma raciocinar se lhe faltasse por completo a experiĂŞncia; e, quando dizemos que alguĂŠm ĂŠ inexperiente estamos aplicando essa denominação num sentido apenas comparativo e supondo que ele possui experiĂŞncia em um grau menor e mias imperfeito.â€?

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situações concretas diSegundo Hume, podeversas entre si, maior mos formar regras gerais será nossa capacidade a partir da observação Para Hume, sem de discernir o que é dos casos particulares. experiência, não relevante ou não para a E, se acrescentarmos a boa aplicação da regra isso mais experiência, há como formar neste ou naquele caso. chegaremos a saber apliprincípios para nosso Conclusão: a formação car essas regras a casos julgamento nem da regra ou do princífuturos, prevendo cirpio para o bom uso do cunstâncias e aprendencomo encontrar juízo supõe a experiêndo com elas. Contrariaparâmetros para cia e, portanto, tem mente a Platão e a Kant, conhecer o mundo e no tempo um aliado Hume enfatiza o caráter necessário, não um adregular, isto é, a consnele e agir. versário perigoso. tância, a previsibilidade Essa mesma concluda experiência. são pode ser extraída Hume parte desta pelo avesso, como faz Hume no fim do constatação: há regularidade – e portanpasso citado acima. Com efeito, Hume to, alguma ordem – no modo sob o qual afirma que, a rigor, “um raciocinador transcorrem os eventos naturais e as inexperiente não poderia de forma alguações humanas. O decurso do tempo, por ma raciocinar se lhe faltasse por completo isso, não é visto como algo que nos cona experiência”. Portanto, se nós não tivésdena ao “não ser”. Ao contrário, constitui semos contato algum com a experiência, condição da formação das regras gerais – nem tivéssemos jamais experimentado a isto é, de princípios – que balizam nossa diversidade de circunstâncias que cercam conduta prática. as situações concretas em que agimos, E poderia ser de outro modo? Certanão seríamos sequer capazes de raciocimente não, segundo Hume. Pois, como ele nar. Isso significa que o “raciocínio”, a radiz, sem experiência, sem observação do zão, requer alguma experiência e em boa que se passa no tempo, não há como formedida dependem dela. mar princípios para nosso julgamento, nem É fácil notar que essa conclusão sucomo encontrar parâmetros para conhecer põe que a experiência exiba regularidade. o mundo e nele agir.

princípio e temporalidade

A noção de progresso científico

De maneira muito geral, podemos dizer que há, de um lado, filósofos que negam existir no tempo um princípio que fundamenta as situações concretas do mundo; de outro, filósofos “partidários do tempo”. Exemplos do primeiro tipo de posição são Platão[+] e Kant[+]; do segundo, Hume[+]. No século XVIII, toda uma polêmica foi desenvoldida em torno do par princípio e temporalidade.

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Vamos agora examinar uma abordagem notável dessa controvérsia no século XX. Iremos nos deter um instante sobre as concepções de Karl Popper (1902-1994), uma referência essencial para a filosofia da ciência contemporânea. Conforme Popper, a pesquisa científica possui uma lógica da qual a experiência e a temporalidade são dimensões essenciais. É este aspecto que iremos

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examinar, através da análise de alguns passos de seus textos. Começamos pelo trecho de uma conferência publicada originalmente em 1945:

Popper e a descoberta científica Karl Popper nasceu em Viena (1902) no seio de uma família abastada. Defendeu seu

de definições”, in: Popper – Textos escolhidos. Org.: David Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto; Ed. PUC-Rio, 2010, pp. 87-99. Aqui citadas: pp. 96-97)

doutoramento na Universidade de Viena, em 1928. Em seguida, lecionou no Ensino Médio até que, diante da ascensão do nazismo, Popper, de origem judaica, emigrou para a Nova Zelândia (1937) até se fixar em Londres (1946), onde se tornou professor da Escola Econômica de Londres (1949). Formou um círculo de grande prestígio com Friedrich Hayek (18991992) e Milton Friedman (1912-2006), dentre outros, ligados pela defesa e difusão do ideário liberal. Popper produziu textos voltados para a filosofia da ciência e para a filosofia política. Morreu em Londres em 1994. Dentre suas obras traduzidas para o português, destacam-se:

David Levenson/Getty Images

“Em ciência, tomamos cuidado para que nossas afirmações nunca dependam do significado dos termos. Mesmo quando os termos são bem definidos, nunca tentamos derivar qualquer informação da definição nem basear nela um argumento. Por isso os termos criam tão pouca dificuldade. Não os sobrecarregamos. Procuramos fazer com que carreguem o mínimo peso possível. Não levamos muito a sério o seu ‘significado’. Estamos sempre conscientes de que são meio vagos (pois só aprendemos a usá-los em aplicações práticas) e atingimos a perfeição não por diminuir sua penumbra de incertezas, mas por nos manter bem dentro dela, enunciando cuidadosamente as frases, de modo que as possíveis penumbras de significado não tenham muita importância. Evitamos assim as disputas em torno de palavras.” (Popper, “Dois tipos

K. Popper, A lógica da pesquisa científica. Tradução de Leonidas Hegenberg e Octanny S. da Mota São Paulo: Cultrix, 2011. A sociedade aberta e seus inimigos. Tradução de Milton Amado. Belo Horizonte: Itatiaia, 1998. O racionalismo crítico na política. Tradução de M. C. Côrte Real. Brasília: Editora da UnB, 1994.

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A lógica da pesquisa científica, publicada originalmente em 1934, é uma obra de grande originalidade, dedicada ao exame dos processos envolvidos nas descobertas científicas e na progressão da ciência em desvendar as leis da natureza.

precisão linguística. O avanço nas ciências depende de outros fatores. Insistir sobre a clareza dos termos, conclui o passo citado acima, seria sobrecarregar a ciência com um problema secundário

princípio e temporalidade

Nessa passagem, Popper fala diretamente da utilização dos termos na ciência. Ou seja, fala da terminologia que julga apropriada para o bom andamento da pesquisa científica. Popper defende que, mesmo ali onde nossos termos são bem definidos, o cientista não deve apoiar suas conjecturas e investigações sobre eles. E afirma: “Não levamos muito a sério o seu ‘significado’”. Isso nos faz presumir que a investigação científica, aos olhos de Popper, pouco ou nada ganha com uma grande

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e até mesmo inútil, a saber, “as disputas em torno de palavras”. O que nos interessa nesse passo, mais do que a questão dos termos, é algo que se articula com ela: é a questão da “imprecisão”... Sim, pode parecer estranho à primeira vista, mas o fato é que Popper faz uma espécie de elogio da “imprecisão”, ao dizer que ela pode ser benéfica para as ciências. No texto examinado, não se trata de qualquer imprecisão, mas daquela relativa à terminologia. Em todo caso, esse trecho já nos põe em alerta no que diz respeito ao fato de que, bem possivelmente, Popper irá confrontar a posição platônica, examinada em outro módulo desta Unidade. Para se certificar disso, basta atentar ao que Popper nos diz no trecho citado acima: o ideal do conhecimento é plenamente realizado quando, ao invés de procurar diminuir a “penumbra das incertezas”, mantemo-nos em seu interior.

À vontade no escuro O cientista concebido por Popper, então, sente-se à vontade no interior de uma penumbra de incertezas... É possível imaginar algo mais antiplatônico? Na alegoria da caverna que é desenvolvida em A república, Platão associa o saber à luz, à exatidão, à clareza. Popper, embora falando sobre os termos utilizados pelos cientistas, defende que a ciência e o saber podem, sim, conviver com a penumbra. Logo em seguida ao trecho citado, ele acrescenta: “Nas medições físicas, por exemplo, sempre tomamos o cuidado de considerar a margem de erro. A exatidão não consiste em tentar reduzir essa margem a zero nem em fingir que ela não existe, mas sim em reconhecê-la explicitamente.” (Karl Popper, “Dois tipos de definições”, in: Popper – Textos escolhidos. Tradução de Vera Ribeiro, op. cit., p. 97)

As zonas de penumbra do saber científico

princípio e temporalidade

Desenvolvimento individual por escrito

Naturalmente somos levados a acreditar que o saber, em suas diversas ramificações, é tanto mais qualificado, quanto mais for exato. Isso significa que nossa ideia habitual do saber supõe haver uma proporção entre a validade das conclusões e a exatidão dos resultados. O máximo de saber corresponderia, nessa direção, a um resultado inequívoco, absolutamente determinado, exato. Essa interpretação está na base da classificação usual dos ramos do conhecimento em “ciências exatas” e “ciências humanas”. As ciências humanas, pre-

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sume-se nesse raciocínio, são inexatas. Entretanto, até que ponto a exatidão é uma condição necessária e indispensável do conhecimento de forma geral? • Empreenda uma pesquisa e com base nela, redija um texto de aproximadamente uma página, procurando identificar exemplos de ramos científicos nos quais a incerteza ou indeterminação dos enunciados é parte constitutiva do saber. Aponte por que motivos, no campo pesquisado por você, algum grau de incerteza e indeterminação não pode ser eliminado. Uma boa ideia é incluir, na pesquisa, a abordagem às “ciências exatas”.

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Biblioteca britânica, Londres.

O sistema copernicano ou Planisphaerium Copernicanum (c.1543), extraído do Atlas Celestial, ou a Harmonia do Universo (Atlas coelestis seu harmonia macrocosmica)

Note que o assunto passa a ser, agora, o da mensuração nas ciências exatas. Já ultrapassamos assim o território inicial, agora se trata de algo mais do que, simplesmente, uma questão de terminologia. E Popper faz uma afirmação que aprofunda o espírito antiplatônico do trecho antecedente, que acabamos de ver. Sim, pois ele afirma que a exatidão científica exige assumir a “margem de erro” de nossas teorias. Ou seja, ser bom cientista é saber que, em alguma medida, as teorias falham em apreender completamente o real. De modo aparentemente paradoxal, Popper conclui que uma atitude orientada pela exatidão inclui o reconhecimento e a convivência com... o erro! Uma última passagem, retirada dessa mesma conferência de Popper, não deixa dúvida de que ele compreende o saber e as ciências de modo muito distante daquele representado pelo ideal platônico: “Primeiro: na ciência, fazemos o melhor possível para descobrir a verdade, mas sabemos que nunca podemos ter certeza de havê-la alcançado.

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Aprendemos no passado, à custa de muitas decepções, que não devemos esperar atingir algo definitivo. E aprendemos a não ficar decepcionados quando nossas teorias científicas são superadas. Entre duas teorias, na maioria dos casos somos capazes de determinar com grande confiança qual é a melhor. Assim, podemos saber que estamos progredindo. Para a maioria de nós, isso compensa a perda da ilusão de termos chegado a algo definitivo ou certo. Em outras palavras, sabemos que nossas teorias científicas devem manter-se como hipóteses, mas que, em muitos casos importantes, podemos descobrir se uma nova hipótese é ou não superior à antiga. Se elas forem diferentes, levarão a previsões diferentes, as quais amiúde poderão ser testadas; com base em experimentos cruciais, podemos verificar se a nova teoria leva a resultados satisfatórios onde a antiga falhava. Substituímos a certeza científica pelo progresso científico na busca da verdade.” (Karl Popper, “Dois

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Amsterdam, c.1660.

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princĂ­pio e temporalidade

Vamos analisar esse trecho parte a parte. De inĂ­cio, Popper afirma que jamais teremos certeza de ter atingido a verdade. Em ciĂŞncia, nĂŁo hĂĄ como “atingir algo definitivoâ€?. Popper justifica esta conclusĂŁo recorrendo Ă histĂłria: “aprendemos no passadoâ€?... Ele quer dizer com isso que o passado nos mostrou que teorias consideradas verdadeiras foram refutadas por novas descobertas, associadas a novas teorias. Foi assim que, por exemplo, a teoria de Ptolomeu deu vez Ă teoria de CopĂŠrnico para explicar o sistema solar. Assim tambĂŠm, a teoria fĂ­sica de Newton foi em parte substituĂ­da, no sĂŠculo XX, pela teoria da relatividade e pela teoria quântica, para compreender a dinâmica de nosso universo. Conforme Popper, portanto, a histĂłria da ciĂŞncia ĂŠ a histĂłria da substituição de teorias cientĂ­ficas consagradas durante um perĂ­odo por novas teorias cientĂ­ficas, que contradizem alguns aspectos das teorias precedentes. É com base nisto que, na segunda parte do texto, Popper declara que, embora jamais possamos dizer que tenhamos chegado Ă verdade definitiva, podemos ao menos adotar teorias cada vez melhores para compreender o universo. Nisso reside o progresso da ciĂŞncia. Mas esse progresso, como podemos adivinhar, nĂŁo chega a um tĂŠrmino. É o que conclui Popper na terceira parte do trecho acima: jamais chegaremos “a algo definitivo ou certoâ€?. E isso equivale a dizer que a ciĂŞncia ĂŠ hipotĂŠtica: “nossas teorias cientĂ­ficas devem manter-se como hipĂłtesesâ€?. As hipĂłteses concorrem entre si para explicar melhor os fenĂ´menos, e quanto maior for o nĂşmero de fenĂ´menos que uma teoria possibilita prever e compreender,

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Coleção particular.

tipos de definiçþesâ€?, in: Popper – Textos escolhidos. Tradução de Vera Ribeiro, op. cit., p. 97)

“Deu no New York Timesâ€? : “A teoria de Einsteim triunfa!â€?. A manchete de 10 de novembro de 1919 se referia Ă confirmação oficial da teoria einsteiniana da relatividade pela Sociedade Real e pela Sociedade AstronĂ´mica Real do Reino Unido

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Popper, ao contrĂĄrio, recusa que o saber possa consistir de verdades definitivas, baseadas na apreensĂŁo intelectual de essĂŞncias. Ao invĂŠs disso, ele aposta na ideia de progresso. O progresso, como vimos, passa por substituir teorias vigentes por outras SĂł no tempo hĂĄ progresso teorias melhores. Mas qualquer teoOra, o progresso sĂł se dĂĄ na ordem ria, enquanto tal, pode ser refutada do tempo, sendo ele mesmo um procespor uma nova hipĂłtese. O que define a so temporal. O princĂ­pio do desenvolvinoção de “teoria cientĂ­ficaâ€?, aos olhos mento do saber ciende Popper, estĂĄ exatatĂ­fico nĂŁo ĂŠ estranho mente no fato de que ao tempo e Ă expeela pode ser refutaA exatidĂŁo nĂŁo riĂŞncia. Ao contrĂĄrio, da. Como ele mesmo esse princĂ­pio ĂŠ eso diz, toda teoria ĂŠ consiste em tentar sencialmente ligado Ă um corpo de enunreduzir a margem de temporalidade. ciados que podem ser erro nas mediçþes VocĂŞ se dĂĄ conta falseados por novos da oposição entre as experimentos e nofĂ­sicas a zero nem conclusĂľes de Popper vas descobertas. Os em fingir que ela e do platonismo? princĂ­pios que tornĂŁo existe, mas sim PlatĂŁo lança mĂŁo nam a natureza comda alegoria da caverpreensĂ­vel jamais sĂŁo em reconhecĂŞ-la na para ilustrar o que definitivos, embora explicitamente. ĂŠ o conhecimento. Por progridam ao longo meio dela, opera uma da histĂłria da ciĂŞndiferenciação rĂ­gida cia – e, portanto, no entre o saber e o nĂŁodecurso do tempo. -saber. Para PlatĂŁo, ambos se opĂľem entre Eis como tanto a ideia de “falseasi como a luz solar se opĂľe Ă escuridĂŁo da bilidadeâ€? das teorias, quanto a noção caverna. De fato, conforme essa alegode progresso cientĂ­fico, ligada a ela, ria, o filĂłsofo termina em apuros, porque articulam-se de modo direto com a descobre a verdade e tenta, sem sucesso, valorização da ideia de tempo. SĂł hĂĄ transmiti-la a seus companheiros. Isso progresso no tempo e apenas o tempo supĂľe que a verdade seja algo apreensĂ­vel, poderĂĄ dizer se esta ou aquela teoria algo que possamos atingir de uma vez por cientĂ­fica permanece vĂĄlida. Assim, entodas e depois transmitir aos demais (ou quanto PlatĂŁo fundava o princĂ­pio do tentar fazĂŞ-lo). Para PlatĂŁo, a essĂŞncia ou ser e do saber das coisas em uma realiideia do bem ĂŠ o princĂ­pio do qual emana dade atemporal, Popper defende que a todo ser e todo saber. E essa essĂŞncia ĂŠ bem temporalidade constitui um elemenreal, a crer em PlatĂŁo. to essencial do saber.

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princĂ­pio e temporalidade

melhor serĂĄ esta teoria e a hipĂłtese em torno da qual ela ĂŠ formulada. Mas, por melhor que seja uma teoria, ela sempre poderĂĄ ser superada por outra. Esta ĂŠ a ideia de “progressoâ€? que Popper privilegia diante da ideia de “certezaâ€?.

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©Ilustração: Julian Peña

Livros por todos os lados, numa biblioteca sem fim: eis a Biblioteca de Babel

unidade 12 A biblioteca de Borges ................ 343 Filosofia grega e infinito .................. 347 O infinito divino ....

352

Quem é finito não pode conceber o sem-fim ................ 357 O infinito atual das matemáticas ........... 361

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finito e infinito

P

ense num número grande. Grande mesmo. Por exemplo: uma pesquisa publicada em 2013 estimou que o corpo humano tem uma média de 37 trilhões de células. Multiplique isso pelo número de habitantes em nosso planeta (6 bilhões). É até difícil imaginarmos uma grandeza como essa, não é? No entanto, esse número gigantesco está tão longe de uma grandeza infinita quanto o número 1. O conceito de infinito propõe questões tão interessantes quanto complexas – não é à toa que os mais diversos filósofos e cientistas se ocuparam dele. Desde a Antiguidade, o conceito de infinito vem propondo uma série de problemas interessantíssimos, e os mais diversos filósofos e cientistas se ocuparam deles.

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A biblioteca de Borges

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Caracteres “babélicos” De acordo com a descrição da “Biblioteca de Babel”, confira quantos caracteres estariam contidos numa única sala hexagonal (imagine quantas combinações são possíveis entre eles): 1 linha = 80 caracteres; 1 página = 40 linhas = 3.200 caracteres; 1 livro = 410 páginas = 1.312.000 caracteres; 1 prateleira = 32 livros = 41.984.000 caracteres; 1 estante = 5 prateleiras = 209.920.000 caracteres; Numa única sala (= 4 estantes), haveria quase um bilhão de caracteres!

O principal detalhe vem agora. A maioria absoluta dos livros dessa biblioteca contém uma mistura completamente incompreensível de sinais, sem nenhuma ordem aparente. A maioria deles não parece estar escrito em nenhuma língua. No entanto, como os livros da biblioteca contêm todas as combinações possíveis dos 25 caracteres (22 letras mais 1 espaço, 1 vírgula e 1 ponto final, confere?) distribuídos pelas 410 páginas de cada livro, é sempre possível encontrar, no meio de um livro, uma palavra, ou mesmo uma sentença que conseguimos entender. Imagine, por exemplo, que você abra um livro e não encontre nenhuma palavra conhecida, com exceção de três, perdidas no meio de uma linha da página 327:

finito e infinito

O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) imaginou, num de seus contos, que o universo todo fosse uma biblioteca aparentemente sem fim. Cada um dos andares do prédio dessa biblioteca seria composto por galerias hexagonais, dispostas lado a lado, como favos de uma colmeia. Quatro das seis paredes de cada hexágono estariam ocupadas por cinco prateleiras cheias de livros. Portanto, haveria vinte prateleiras em cada hexágono. Até aqui, fácil: 4 × 5 = 20, certo? Mas prepare-se, porque Borges gostava de brincar com raciocínios lógicos e matemáticos. Deste, a seguir, você vai gostar. Além disso, ele ajudará a entendermos melhor a oposição entre o finito e o infinito. Então vamos lá. Nas duas paredes sem estantes, o visitante encontraria duas passagens para hexágonos vizinhos. No meio de cada galeria, debruçado sobre uma mureta baixa, ele veria um fosso escuro que parece não ter fim – nem para cima, nem para baixo. Na passagem de uma galeria a outra, uma escada muito estreita dá acesso ao andar de cima e ao andar de baixo. Seja pelos corredores, seja pelas escadas, podemos andar o quanto quisermos, passando de um hexágono para o outro da biblioteca, sem jamais chegarmos ao fim. Bem... pelo menos não há notícia de ninguém que tenha chegado, ou sequer avistado o fim dessa biblioteca. Cada prateleira da biblioteca contém exatamente 32 livros de formato uniforme. Cada livro tem 410 páginas; cada página, 40 linhas; cada linha, aproximadamente 80 caracteres. Dê uma olhada no box ao lado para ver o resultado: um número impressionante! Os únicos sinais usados nesses livros são as 22 letras do alfabeto (Borges refere-se ao alfabeto oficial utilizado na Argentina em sua época), mais o espaço, a vírgula e o ponto final – não há numerais, letras maiúsculas, sinais de interrogação ou de exclamação.

crftttherddfssrrteeeedlouco amor azul drtghyhyhyuioihdrtyafrtseree A bilhões e bilhões de quilômetros dali (andando para o alto, para baixo ou para o lado), você talvez encontre um livro contendo uma página inteira perfeitamente compreensível. Mais raramente ainda, outro

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Foto: Rama CC-by-sa-2.0-fr

A criptografia (técnica para codificar e decodificar informações) é usada militarmente desde a Antiguidade. Na Segunda Guerra Mundial,

finito e infinito

utilizaram-se máquinas criadas para esse fim.

com 200 páginas legíveis. É dificílimo encontrar um livro assim numa das estantes – muito mais difícil do que ganhar na loteria. Mesmo assim, é possível. Concorda? Na verdade, é mais do que possível. Se imaginarmos que a biblioteca contém todas – absolutamente todas – as combinações possíveis de 25 caracteres distribuídos por 410 páginas, então não apenas é “possível” que encontremos dentro dela qualquer livro que possamos imaginar, como também é necessário que isso aconteça. Cedo ou tarde, toparemos com qualquer livro – desde que esse livro tenha menos que 411 páginas. Como narra Borges, a Biblioteca conteria uma história detalhada do futuro, o catálogo descrevendo os livros da própria Bilioteca, também catálogos falsos, comentários sobre textos bíblicos, e ainda comentários a esses comentários... Mais: a Biblioteca imaginada por Borges conteria também relatos sobre nossas vidas, como, por exemplo, o registro exato de como você nasceu, viveu e morreu. O mais interessante, porém, é que a Biblioteca possui todas as gramáticas e dicionários que você possa imaginar. Tanto gramáticas e dicionários de línguas exis-

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tentes, como o português, o inglês e o tagalog (uma das línguas faladas nas Filipinas), quanto gramáticas e dicionários de línguas que jamais foram faladas por ninguém. Assim, livros que aparentemente não têm sentido nenhum, quando “lidos” segundo as regras de certas gramáticas da Biblioteca ficam perfeitamente compreensíveis. Mais ainda: haverá sistemas de códigos muito complicados capazes de mudar completamente o sentido de uma mensagem. Este livro que você está lendo, por exemplo, estaria numa das estantes da Biblioteca. Em outras estantes, no entanto, você encontraria livros que o ensinariam a “ler” este livro como se ele estivesse escrito em código. Quando “decifrado” segundo um código complicadíssimo, este livro poderia ser, por exemplo, a autobiografia de um monge budista que viveu no século XVIII numa aldeia do Japão. Isso quer dizer uma coisa muito simples. Você lê as sentenças deste livro aplicando a elas as regras do português. À palavra “livro” você associa um determinado objeto, ao verbo “ler” você associa uma determinada atividade, e assim por diante. Se as lesse, porém, aplicando as regras de um código muito diferente, poderia enxergar nestes mesmos sinais de tinta sentidos muito diferentes desses que você está apreendendo neste exato instante. Leria um outro livro, embora estivesse diante dos mesmos sinais... Como todos os livros possíveis e imagináveis estão contidos na Biblioteca imaginada por Borges, ela conteria livros que nos ensinam a interpretar qualquer livro de qualquer maneira que você consiga imaginar. Mais ainda: todos os livros da biblioteca fariam sentido – mesmo aqueles que aparentemente não fazem sentido nenhum. Vamos recordar aquela linha inserida na página 327 de um certo livro:

crftttherddfssrrteeeedlouco amor azul drtghyhyhyuioihdrtyafrtseree

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A fundamentação teórica e bibliográfica do projeto é satisfatória Adotando um outro código, leríamos uma outra sentença. E assim por diante. Infinitamente. Conseguiu compreender? É possível contar o que não tem fim? Utilizaremos essa biblioteca imaginada por Jorge Luis Borges para pensar a respeito de diversas questões envolvendo a oposição entre o finito e o infinito. Em primeiro lugar, imagine-se na pele de alguém que sempre viveu dentro da biblioteca. Você acha que seria capaz de descobrir se ela é finita ou infinita? Existe alguma coisa que você pudesse fazer para tentar descobrir isso? Há basicamente duas coisas que você pode fazer: caminhar – e tomar nota (num papel ou na memória) das salas pelas quais você já passou. É importante tomar notas, para ter certeza de que não está andando em círculos. Será também necessário planejar uma estratégia de busca. Você irá partir de um dos hexágonos e, como todos os hexágonos da biblioteca, ele tem duas passagens e uma escada. Cada passagem dá acesso a um hexágono vizinho no mesmo andar; a escada leva ao andar de cima e ao de baixo. A primeira decisão a ser tomada, portanto, é em que direção procurar: para cima, para baixo ou para o lado? Digamos que você resolva descobrir, em primeiro lugar, se a biblioteca é infinita “para baixo”. Para isso, você terá que escolher uma das escadas e ir descendo

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por ela. Veja agora que situação curiosa. É fácil imaginar uma situação na qual você diria que a biblioteca tem um andar “térreo”, digamos assim. Você começa a descer as escadas e, depois de algum tempo (dez anos, digamos), chega num hexágono no qual a escada simplesmente acaba. Se isso acontecer, você já terá cumprido uma parte de sua tarefa: descobriu que a biblioteca tem um “primeiro andar”. Pronto. Pelo menos naquele ponto, você descobriu, após dez anos descendo escadas todos os dias o dia todo, que a biblioteca é finita para baixo. Resta saber, agora, se ela é finita para cima e para os lados. Outra busca deverá ter início. Suponha, no entanto, que depois de dez, vinte anos descendo pelas escadas da biblioteca, você não tenha chegado ao fim. Em que ponto da descida você poderá ter certeza absoluta de que a biblioteca é infinita naquela direção? Depois de 30 anos? De 50 anos? De 200 anos de busca? A resposta é simples – você nunca poderá ter certeza de que ela é infinita. Aconteça o que acontecer, desça o quanto descer, você nunca poderá estar absolutamente seguro de que não poderia continuar descendo para sempre. Mas, se é assim, o que queremos dizer quando afirmamos que a biblioteca é “infinita para baixo”? Que tipo de coisa poderia nos indicar que ela é infinita? E, se nada puder nos indicar que ela é infinita, o que poderia nos indicar que ela é finita, enquanto não chegarmos ao seu fim? Como saber se um dia chegaremos ao “fim” da biblioteca? Sempre mais um Aparentemente, há um sentido muito simples contido na afirmação de que a biblioteca é “infinita para baixo”. Quem diz isso está afirmando que não importa quantos andares já tivermos descido, sempre será possível descer mais um. Mas, aqui, é preciso ter muito cuidado. É possível que esse tipo de sentença não nos tenha tirado do lugar. De fato,

finito e infinito

Para nós, isso não quer dizer absolutamente nada. A única coisa que conseguimos entender (e olhe lá...) é a expressão “louco amor azul”, no meio dessa sopa de letras. Mas, se adotarmos um dos infinitos códigos de interpretação contidos na biblioteca, poderíamos ver essa sequência de sinais como uma sentença de uma língua imaginária, querendo dizer

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ŠIlustração: Tom B

alguĂŠm poderia nos perguntar o que nĂłs queremos dizer com a palavra “sempreâ€?. Como ĂŠ que podemos saber que uma coisa sempre irĂĄ acontecer? Como saber se serĂĄ “sempreâ€? possĂ­vel descer mais um lance de escada? Nossa vida, afinal de contas, ĂŠ finita. Como ĂŠ que podemos afirmar algo a respeito de qualquer tempo futuro? E como sabemos que o tempo ĂŠ infinito na direção do futuro? O tempo, como a escada da biblioteca, nĂŁo poderia um dia acabar? O problema, na verdade, ĂŠ ainda mais complicado. Nossa vida ĂŠ finita, e por isso nĂŁo temos “tempoâ€? de verificar se a biblioteca ĂŠ infinita ou nĂŁo. Suponha, no entanto, que nossa vida fosse infinita, e que o tempo tambĂŠm fosse. Suponha que tivĂŠssemos todo o tempo que quisĂŠssemos para fazer a nossa investigação. SerĂĄ que, se fĂ´ssemos imortais, conseguirĂ­amos algum dia decidir essa questĂŁo? É fĂĄcil ver que nem assim a situação se altera muito. De nada adiantaria ficarmos descendo as escadarias “para sempreâ€?, pois a cada manhĂŁ a dĂşvida seria exatamente a mesma que tivemos na manhĂŁ anterior: serĂĄ que a descida um dia chegarĂĄ ao fim? Vamos refinar um pouco mais o problema. NĂŁo apenas nossa vida ĂŠ finita, como nossas energias tambĂŠm o sĂŁo. Por mais que nos esforcemos, hĂĄ sempre um limite para a velocidade com que conseguimos descer uma escada. Suponhamos que, sem me esforçar muito, eu consiga descer de um andar para o outro em 1 minuto. Se eu descer correndo, poderei chegar em 30 segundos. Mas haverĂĄ sempre um limite que eu nĂŁo conseguirei ultrapassar. Muito bem. Suponhamos, entĂŁo, que eu sĂł tenha mais dois minutos de vida, mas que me sejam dados superpoderes para descer escadas. NĂŁo importa o quĂŁo rĂĄpido eu desça de um andar para o outro, meus novos poderes irĂŁo permitir que eu desça para o andar seguinte na metade do tempo gasto para descer o andar anterior.

1 min

30 s

15 s

7,5 s

É fĂĄcil ver que, se eu tiver mesmo esse poder de dobrar a minha velocidade a cada andar, poderei chegar a qualquer andar que eu quiser antes de se passarem dois minutos. (Tente calcular, por exemplo, quanto tempo vocĂŞ levaria para descer 50, 500 ou 5 mil andares.) Quando chegasse o momento de minha morte, no segundo e Ăşltimo minuto de minha vida, bastaria eu verificar se houve um Ăşltimo andar que eu atingi. Se houve, ĂŠ porque a biblioteca ĂŠ “finita para baixoâ€?. Se nĂŁo houve, ĂŠ porque ela nĂŁo tem fim. FĂĄcil? Nem tanto. Pois suponha, agora, que vocĂŞ vĂĄ morrer nĂŁo depois de dois, mas sim depois de trĂŞs minutos apĂłs o inĂ­cio da descida. VocĂŞ continuarĂĄ fazendo a mesma coisa: se levou um certo tempo para chegar num dos andares, levarĂĄ a metade do tempo para chegar no prĂłximo. Por mais andares que vocĂŞ tenha descido, vocĂŞ sĂł irĂĄ parar se nĂŁo houver mais escada â€“ ou seja, se a biblioteca for finita. Suponha, agora, que a biblioteca seja infinita. Ao final do segundo minuto, graças a seus superpoderes, vocĂŞ jĂĄ terĂĄ descido infinitos degraus. Parece fazer sentido? Tente, entĂŁo, responder a uma pergunta muito simples: em que lugar vocĂŞ estarĂĄ no terceiro e Ăşltimo minuto da sua vida?

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Se, durante os dois primeiros minutos, você desceu todos os infinitos degraus, acho que você concordará que, no terceiro minuto, já não haverá degrau nenhum para você descer. Você estará parado, portanto. Mas, em que degrau? No último? Se estiver parado no último degrau, você deve concordar que a escada não era infinita. Se ainda estiver descendo degraus,

concordará que ainda não havia (apesar de seus superpoderes) descido todos os degraus. E agora? Como sair dessa situação? O infinito, como você pode ver, é mais complicado do que parece. Esse exercício de raciocínio pode ser comparado com um problema que já era conhecido na Grécia Antiga: o argumento de Aquiles.

AQUILES E A TARTARUGA Aquiles, um veloz guerreiro da Grécia, é desafiado por uma tartaruga para uma corrida. A tartaruga pede a Aquiles que lhe dê dez metros de vantagem. Aquiles corre a dez metros por segundo. A tartaruga anda dez centímetros por segundo. Após um segundo, Aquiles terá chegado ao lugar de que a tartaruga partiu. A tartaruga, porém, terá andado um centímetro. Aquiles, portanto, ainda não alcançou a tarum centímetro, o que fará numa fração minús-

Nessa fração ainda mais minúscula de

cula de tempo. Imaginemos essa fração minús-

tempo, a tartaruga terá percorrido uma dis-

cula de tempo sendo exibida em câmera lenta,

tância ainda mais minúscula que a distância

para podermos acompanhar seus passos.

anterior.

a tartaruga terá percorrido uma distância tam-

Aquiles, portanto, ainda não terá alcançado a tartaruga.

bém minúscula. Ponhamos uma lupa sobre a

Quantas vezes Aquiles terá que chegar ao

pista, para percebermos a distância que a tar-

lugar em que a tartaruga “estava”, antes de

taruga percorreu.

alcançá-la? Qual foi o último lugar em que ele

Aquiles, portanto, ainda não alcançou a

“esteve” antes de ultrapassar a tartaruga?

tartaruga. Para alcançá-la, terá que percorrer

Este raciocínio foi chamado de “argumento

aquela distância minúscula que observávamos

de Aquiles” porque o guerreiro Aquiles, prota-

com uma lupa. Isso tomará uma fração mais

gonista da Ilíada de Homero, era conhecido por

minúscula ainda de seu tempo.

sua grande velocidade.

finito e infinito

Nessa fração minúscula de tempo, porém,

©Ilustração: Tom B

taruga. Para alcançá-la, deverá percorrer mais

Filosofia grega e infinito A dificuldade oferecida por raciocínios envolvendo o infinito é notável. Vejamos um exemplo de como a noção foi desenvolvida filosoficamente na Grécia antiga. Este exemplo tem mais de dois mil anos, mas guarda enorme atualidade. Seu autor

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é Zenão de Eleia (489-431 a.C.), que foi discípulo de Parmênides. Ao que parece, o filósofo Sócrates chegou a conhecê-lo, quando, ainda muito jovem, teve a oportunidade de ouvir Zenão por ocasião de uma visita que este fez a Atenas.

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A ESCALA DO UNIVERSO Já dizia o pré-socrático Protágoras (c. 490-420 a.C.): “O homem é a medida de todas as coisas”... É partindo da relação de escala entre o homem, o infimamente micro e o gigantescamente macro que Cary e Michael Huang desenvolveram um recurso interessantíssimo, disponível na internet (http://scaleofuniverse.com – acesso em 15 de março de 2016). Com ele, pode-se deslizar um botão como se fosse uma lente de aumento, e explorar objetos e seres dos mais di-

finito e infinito

versos tamanhos imagináveis (do que é menor

Algumas imagens do projeto.

que um neutrino ao que é bem maior que o

A animação da htwins é de Cary Huang.

Aglomerado Local de Galáxias).

Para Parmênides, mestre de Zenão, todo o ser é uno e imutável: as mudanças e a multiplicidade são ilusórias e não próprias do ser. Zenão defendia os princípios de seu mestre Parmênides contra aqueles que sustentavam a existência da mudança e do movimento. A fim de demonstrar a tese de que o movimento não passa de aparência, Zenão apresentou argumentos que se tornaram conhecidos, na história da filosofia e da matemática, como os “paradoxos de Zenão”. Existe um tipo de argumento que demonstra de forma indireta aquilo que se quer provar: a demonstração é efetuada através da refutação do oposto do que se quer provar. (Por exemplo, se quero provar x, demonstro que o seu oposto, não-x, é absurdo.) Os paradoxos de Zenão são considerados os primeiros exemplos de “refutação por absurdo” (reductio ad absurdum) na história da filosofia. E o que Zenão demonstra ser absurdo? A “mudança” e, mais especialmente, o “movimento”. Este é o contexto no qual a noção de infinito ganha relevância no âmbito do pensamento filosófico grego. Vamos examinar apenas o mais famoso dos quatro paradoxos de Zenão, o de

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Aquiles e o da tartaruga (isto é, o segundo). Quem o expõe é Aristóteles[+], pois os textos de Zenão de Eleia infelizmente se perderam. Eis o trecho de Aristóteles no qual ele relata o paradoxo da corrida entre Aquiles e a tartaruga: “O segundo argumento é chamado ‘Aquiles’. Conforme esse argumento, o mais lento nunca será alcançado pelo mais veloz, porque é necessário que o perseguidor chegue antes ao ponto do qual saiu o perseguido, de modo que o mais lento, necessariamente, terá sempre alguma vantagem.” (Aristóteles, Física, VI, 9, 239b. Tradução nossa. Edição de referência: Physica. W. D. Ross [ed.]. Oxford: Clarendon, 1950)

Não há como evitar a sensação de que Zenão está brincando conosco ou pensando de forma absurda. Mas não se esqueça de que a intenção dele é mostrar que o movimento e a mudança em geral são ilusórios, e que devemos adotar a posição de seu mestre Parmênides, para quem apenas o ser é realmente, e é único, uma coisa só; a multiplicidade de coisas em mudança não passa de aparência.

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evidência é muito mais forte para nós do que qualquer artifício argumentativo. O argumento, por isso, é chamado de “paradoxo”, uma forma de apontar para sua fraqueza e, mais do que isso, sua não-validade e falsidade. Contudo, antes de acusar Zenão de ser louco, note que, partindo de uma tese inicial com a qual podemos concordar, seu argumento explora uma outra, que está implícita no raciocínio e o torna possível: a tese da infinita divisibilidade do espaço. Vejo que sempre há um determinado intervalo entre o ponto do qual saiu o corredor mais lento e o ponto alcançado pelo corredor mais rápido, que chega depois ao ponto do qual o mais lento já partiu. De modo que – eis a conclusão de Zenão – o perseguidor nunca o alcançará. Ora, para que se possa concluir que ele “nunca o alcançará”, no entanto, é preciso dizer também que toda distância existente entre eles, que vai diminuindo com o passar do tempo, pode ser ainda dividida novamente, sem cessar. A cada instante a distância entre eles diminui, mas nunca será completamente suprimida, porque sempre pode ser novamente dividida, mesmo que eu não mais seja capaz de perceber. A desqualificação do argumento de Zenão envolve, então, a defesa de uma posição contrária a essa divisibilidade infinita. Se concordamos que, no momento em que ambos os corredores iniciam sua corrida, a distância entre eles é finita, então, estando em diferentes velocidades, podemos até mesmo calcular e prever o momento em que acontecerá a ultrapassagem. A menos que – assim quer Zenão – essa distância seja, em certo sentido, infinita, pelo fato de que sempre podemos dividir novamente cada intervalo que separa os dois corredores, isso infinitamente. Mas isso não pode ser aceito. Se a ultrapassagem acontece,

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Para Parmênides e Zenão, essa tese do ser imóvel e uno é compreensível no domínio do pensamento: é preciso pôr de lado as ilusões da multiplicidade e do movimento. É com esse propósito que Zenão se propõe, por meio de argumentos por absurdo, a denunciar a impossibilidade de pensar o movimento de forma razoável. O argumento parte de uma tese que não é difícil aceitar: “Para alcançar o corredor mais lento à sua frente, é necessário que o perseguidor antes chegue ao ponto do qual o perseguido saiu”. De fato, estamos todos dispostos a aceitar essa tese, já que é evidente aos nossos olhos que o corredor mais veloz, começando a correr bem atrás do corredor mais lento, passa pelos mesmos pontos que o outro, e o faz depois dele. Então parece também necessário concluir que, para ultrapassar o mais lento, o mais veloz terá que passar pelo ponto em que o mais lento estava... mas não está mais, porque continua se movimentando, ainda que lentamente. Muito bem, se isso for correto, então, para Zenão será inevitavelmente correto também que o corredor mais rápido estará sempre na situação descrita e, portanto, nunca alcançará o corredor mais lento. Essa conclusão contraria aquilo que percebemos – pois vemos que a ultrapassagem acontece. Mas o que importa a Zenão é que isso mostra como o movimento e a mudança percebidos por nós não podem ser plenamente compreendidos pelo pensamento, que tem a capacidade de compreender o ser, a unidade e a imutabilidade. Se assim for, deveremos concluir, segundo Zenão, que o movimento não possui realidade plena, uma vez que esta só é compreensível pelo pensamento. Assim, podemos até entender as intenções de Zenão. Mas isso não torna seu argumento mais convincente e menos estranho, pelo simples fato de que vemos que o corredor mais rápido, em algum momento, faz a ultrapassagem. Essa

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finito e infinito

O SIGNIFICADO ETIMOLÓGICO DE “INFINITO”

Cabe lembrar que o termo grego que se

Na origem, então, “infinito” expressa ausência

traduz por “infinito”, ápeiron, é dotado de sig-

de fim ou limite. Mas essa ideia também podia

nificado amplo. Na língua grega, a vogal “a” (α:

ser compreendida no sentido da ausência de

“alpha”), colocada no início de uma palavra,

determinação, da “indeterminação”, porque

muitas vezes expressa negação ou privação.

“determinar” algo é dar-lhe um limite ou fim –

O português incorporou esse significado em

pense na ideia de “determinar o tamanho de

termos como “amoral” e “atemporal”. Ápeiron

um terreno”, isto é, estabelecer seus “limites”. E

significa ausência ou privação de péras, termo

observe também que determinar os limites de

que quer dizer “limite”, “fim”. O latim diz infinitus,

algo é demarcar seu “fim” no sentido de “definir”

porque o prefixo “in” com frequência expressa

esse algo. Uma “determinação” sobre algo per-

ausência ou privação – pense, no português, em

mite “defini-lo”. Haverá, assim, uma associação

palavras como “incrível”, “inaceitável” ou “inde-

importante entre “infinito” e “indefinível”, que

cente”. Finis, em latim, significa “fim” ou “limite”.

terá consequências importantes.

mostra-se que não é possível dividir infinitamente uma magnitude finita. Parece ser essa a maneira como Aristóteles denuncia o absurdo do argumento de Zenão, pelo que lemos na sequência de seu texto: “A afirmação de que aquilo que está na frente não é ultrapassado é falsa. De fato, quando está na frente não é ultrapassado; contudo, ele será ultrapassado se for aceito que se percorre uma distância finita” (Aristóteles, Física, VI, 9, 239b. Tradução nossa). A solução parece simples e, em certo sentido, é mesmo, já que a seu favor está a evidência dos fatos. Por que, então, falar disso? Por que perder tempo com um mero paradoxo, que não se sustenta diante de nossos olhos? A resposta a essa pergunta nos levaria a um estudo profundo das análises que Aristóteles, em sua Física, faz sobre o conceito de infinito, particularmente no livro III dessa obra. Trata-se de páginas filosoficamente profundas e complexas, nas quais o filósofo está interessado em mostrar os problemas que surgem quando se investiga a natureza tomando o “infinito” como um possível princípio explicativo.

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A seguinte passagem expressa bem o tipo de objeção que Aristóteles tem contra essa pretensão: “Há certamente uma investigação mais ampla sobre isso, sendo possível o infinito nas matemáticas, na esfera do pensamento e no que não possui magnitude. Mas neste estudo, investigamos sobre os objetos dos sentidos, se há ou não corpo infinito em extensão” (204a-204b). Não se deve misturar o “infinito” relativo às matemáticas, um infinito conceitual, que pode ser pensado, com um “infinito” real. Este, para Aristóteles, não deve ser tomado como princípio de explicação da realidade, porque, a bem dizer, não existe o “Infinito”, como uma entidade dotada de realidade própria. Conforme Aristóteles, nada que existe pode, em sentido rigoroso, “ser infinito”. Aristóteles defende essa afirmação porque entende que tudo que tem realidade tem determinações, portanto, limites e fins. Um homem qualquer, por exemplo, é “um”. Isso o limita e determina. Ele possui várias outras determinações: é animal, racional, tem um aspecto, uma altura, um peso etc. Tudo isso impede que se fale dele como “infinito” ou como originado de algo “infinito”. E o mesmo vale para todo ser.

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Percorrendo e traçando Desenvolvimento individual por escrito No início da corrida (p0), Ájax tem 20 m de vantagem sobre Aquiles. Então marcamos o primeiro ponto do gráfico com x=0 (etapa zero: o número de pedrinhas no chão desde o início da corrida) e y=20 (a distância, em metros, que naquele mesmo instante separa Aquiles de Ájax). Na etapa seguinte p1 – isto é, tendo Aquiles percorrido aqueles primeiros 20 m – Ájax, que nesse meio tempo avançou 10 m, deixa cair a primeira pedrinha. Agora, a distância que separa Aquiles de Ájax é de 10 metros. Então marcamos, no nosso gráfico: x=1 (uma pedrinha, ou etapa 1 da corrida), y=10 (a distância, em metros, entre a posição atual de Aquiles e a posição atual de Ájax). • Após preencher algumas etapas seguindo esse procedimento, procure responder: Que tipo de linha os pontos desse gráfico irão esboçar? Essa linha irá tocar na abscissa em alguma etapa? Justifique a sua resposta com um breve comentário por escrito. Dica: a pergunta aqui não é pela representação gráfica da velocidade de cada um dos corredores, nem da distância total percorrida por eles desde a largada. O que buscamos é um gráfico da distância que separa os competidores a cada “etapa” da corrida, ou seja, a cada pedrinha que cai no chão. Uma boa ideia é iniciar a atividade calculando as distâncias percorridas por Aquiles e Ájax a cada etapa, em seguida a diferença entre uma e outra, e então anotar os resultados em uma tabela.

finito e infinito

Dois lendários guerreiros gregos, Aquiles e Ájax, vão apostar uma corrida. Ájax é conhecido como “o corredor”, já Aquiles recebeu o apelido de “pés-velozes”... Também, pudera: é o homem mais rápido da Grécia antiga. Suponhamos que Aquiles corra a uma velocidade constante de 20 m/s – o dobro da velocidade de Ájax (10 m/s). Por causa disso, Ájax recebe uma “colher de chá” e pode iniciar a corrida 20 metros à frente de Aquiles. • Seguindo o esquema do argumento de Zenão de Eleia, procure fazer o seguinte gráfico. Comece desenhando um plano coordenado cartesiano. A abscissa representará “etapas” da corrida (num sentido que examinaremos abaixo); a ordenada representará a distância que, a cada uma dessas etapas, separa Aquiles de seu oponente. Imagine que em cada “etapa” Ájax deixa cair uma pedrinha no chão, no exato lugar onde se encontra. Você vai marcar, no gráfico, a distância que naquele momento separa Aquiles daquela pedrinha. Ájax corre olhando para trás, prestando atenção em seu oponente. Quando Aquiles alcança a primeira pedrinha, Ájax, que já está um pouco mais adiante, deixa cair a segunda pedrinha no chão. Quando Aquiles chega nesse lugar, Ájax deixa cair a terceira pedrinha, e assim por diante. Assim, cada segmento de nossa abscissa representa uma etapa, ou seja, uma pedrinha que Ájax deixa cair para marcar a sua posição atual. Aqui está o começo de nosso gráfico:

20 Distância entre os corredores (m)

15 10 5 0

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1

2

3

4

5

6

7

8

Etapas (pedrinhas)

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O infinito divino

O infinito no Antigo Testamento Como compreender as mudanças por que passou a ideia de infinito, em consequência da cristianização do Ocidente? O cristianismo é uma religião que se funda na aceitação da verdade das Escrituras. O que, então, as Escrituras dizem sobre o infinito? Uma passagem do Antigo Testamento foi repetidamente apontada pelos pensadores cristãos como base para a afirmação da infinidade de Deus. Vejamos essa

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passagem e, em seguida, assinalemos suas consequências. O texto encontra-se no livro do Êxodo, que narra o momento em que Moisés é interpelado por Deus. Este lhe ordena retirar do Egito o povo de Israel. Moisés, então, indaga o seguinte:

PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA “Patrística” designa o conjunto das reflexões efetuadas pelos “Pais da Igreja”, isto é, por aqueles que, no início de nossa era até aproximadamente o século V, deram uma forma organizada e doutrinal aos dogmas do cristianismo primitivo. “Escolástica”, por sua vez, designa o pensamento ligado aos ensinamentos cristãos transmitidos pelas universidades medievais a partir do século XI até o século XV. Embora seja muito rico, englobando diversas correntes, o pensamento escolástico possui por característica comum a tentativa de articular a filosofia helênica, especialmente a filosofia de Aristóteles, com os princípios da religião cristã. A partir do século XV, a Escolástica tornou-se cada vez alvo de críticas, primeiro, pelos humanistas do Renascimento, em seguida, pelos reformadores do Cristianismo, a começar por Martinho Lutero (1483-1546). Universum - C. Flammarion, xilogravura, Paris 1888, Colorizada: Heikenwaelder Hugo, Viena 1998.

finito e infinito

Para um dos mais importantes filósofos da Antiguidade, Aristóteles[+], o infinito a rigor não existe, ao menos não como uma entidade dotada de realidade própria. Este é um ponto no qual Aristóteles faz coro com quase todos os filósofos da Antiguidade grega. Com efeito, de modo geral pode-se dizer que a infinitude soa à mentalidade grega como algo irracional. Não por acaso, o ideal estético e moral dos gregos é ligado à ordem, à medida e à proporção. Tudo mudará de figura a partir do momento em que o Ocidente se tornar cristão. Por uma razão que você já pode adivinhar: para os teólogos cristãos, Deus é infinito. Partindo daí, o desenvolvimento da especulação filosófica ligada ao cristianismo (o que inclui, por um longo período, o conjunto da reflexão filosófica ocidental) tomou uma direção inédita em relação à Antiguidade grega – uma vez que o infinito passou a ser considerado como uma entidade dotada de realidade própria, a realidade suprema, divina. Iniciou-se, então, um debate que se estende por mais de mil anos, sobre a natureza de Deus e sua infinitude. Um debate que não termina com o fim da Escolástica, mas segue adiante, envolvendo autores da Filosofia Moderna, como René Descartes[+] (1596-1650), Nicolas Malebranche (1638-1715) e Gottfried W. Leibniz (1646-1716), entre outros.

Exemplo de uma representação do mundo finito, muito difusa na Idade Média

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“Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? O que lhes direi? Respondeu Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.” (“Êxodo”, 3, 13-14, in: A Bíblia Sagrada. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1986).

Vejamos como esse famoso texto foi interpretado pela maioria dos pensadores cristãos. Ao instruir Moisés a dizer aos filhos de Israel que EU SOU o enviou a eles, Deus, conforme a interpretação cristã (e também certas correntes de pensamento judaico), quis dizer que o seu nome é o ser. E isso significa que o ser de

Deus é o ser em puro ato, aquilo que exclui de si todo não-ser, toda ausência de ser. Ora, isso precisamente não equivale a dizer que o ser de Deus é... infinito? Se não há nenhum ser fora de Deus, se Deus contém em si, como ser em ato, todo o ser, conclui-se daí que Deus é infinito. Totalidade do ser Com base nisso, já podemos arriscar uma explicação da novidade trazida pelo advento do cristianismo para a reflexão em torno do infinito. No entender de Aristóteles, o infinito é apenas potencial ou virtual, não real. E, se é assim, o infinito então se define como aquilo fora do que sempre se encontra algo. Posso não chegar ao término da série dos números naturais, por exemplo, e concluir daí que ela é “infinita”. Mas isso, aos olhos de Aristóteles e de quase todos

Na Unidade Razão e paixão (módulo “His-

está presente na noção antiga de “cosmos”,

tória, razão e paixões”), examina-se como, no

compreendido como “beleza” e “ordem”. Veja, a

curso do século XVIII, autores como Friedrich

este respeito, a Unidade Realidade e aparên-

Schiller (1759-1805) sublinharam os aspectos

cia, módulo “As aparências enganam?”.

que, no entender deles, separam a Grécia an-

Com isso, compreendemos melhor o por-

tiga da época moderna. Conforme tal interpre-

quê de os gregos entenderem a “perfeição”

tação, os gregos possuíam uma atitude diante

como algo dispondo de limites. Afinal, sem

da natureza muito diversa daquela assumida

esses limites, como poderíamos identificar a

por nós, modernos.

medida das coisas e do todo? Esse privilégio da

A atitude grega, escreve Schiller, é “ingê-

ordem, do equilíbrio, da medida e da finitude

nua”, e não “sentimental” – querendo dizer com

se exprime igualmente nas concepções morais,

isso que os gregos antigos se sentiam em união

políticas e estéticas da Antiguidade.

com a natureza, e não em oposição a ela. Esta

Para você ter uma ideia do contraste entre

ideia de união entre humanidade e natureza

essa atitude e a dos modernos, imagine a rup-

se refletia também na convicção da existência

tura representada pela ideia judaico-cristã de

de uma harmonia entre a razão e as paixões. E

que a perfeição e infinitude são ambas carac-

essa harmonia, por sua vez, dependia de os hu-

terísticas da divindade: a perfeição de Deus,

manos serem capazes de encontrar uma medi-

conforme o cristianismo, passa pelo fato de

da entre a razão e as paixões e, além dela, uma

que ele é infinito. E, se ele é infinito, em que

medida entre a humanidade e o cosmos em

medida nós, seres finitos, podemos ter algo

que ela se encontra. Essa mesma ideia, aliás,

em comum com ele?

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finito e infinito

A PERFEIÇÃO POSSUI LIMITES OU É INFINITA?

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os gregos da Antiguidade (Zenão de Eleia é uma exceção), quer dizer apenas que há sempre um número superior além daquele em que me detive. Muito diferente disso é o que resulta da ideia de que a infinitude é uma mar-

ca característica de Deus, compreendido como “totalidade do ser”. Neste caso, o infinito é aquilo fora do qual não há nada. Ele engloba tudo. Percebe a diferença? Não bastasse isso, a entrada em cena do Deus judaico-cristão na história

A historicidade das questões filosóficas

finito e infinito

Pesquisa e desenvolvimento individual por escrito

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A noção de infinito surgiu no pensamento filosófico grego como uma questão metafísica, envolvendo a realidade ou irrealidade do movimento. Esse quadro, como estamos assinalando agora, altera-se com a grande importância que irá adquirir a religião cristã no Ocidente em nossa era. O infinito passa a ser pensado tanto por referência à infinidade de Deus, quanto por referência à finitude do ser humano. Ora, essas alterações de abordagem não constituem privilégio do par discutido nesta Unidade. Você certamente poderá perceber, seguindo os demais percursos propostos nesse livro, que é comum verificarmos mudanças nos problemas e conceitos filosóficos conforme se sucedem as épocas. Um aspecto essencial do estudo da filosofia reside em levarmos a sério a sua historicidade. Isso significa que, para compreender os problemas levantados pela reflexão filosófica, convém ter em mente que ela é fruto de indivíduos que vivem em um determinado período da história e em um determinado espaço geográfico – em resumo, que vivem em um contexto cultural particular. Este contexto em que se desenvolve a reflexão é um elemento relevante para os resultados, sempre díspares, a que chega a reflexão humana. Esta disparidade não é problema. Ao contrário: tomar contato

com ela é uma experiência única e muito formadora. Tentemos, então, verificar até que ponto diferentes contextos produzem soluções distintas para as mesmas questões ou problemas. Estamos às voltas com um caso assim: com a cristianização do Ocidente, a reflexão sobre o infinito tornou-se em boa medida o exame e a discussão da infinitude enquanto característica da divindade. • Utilizando a biblioteca da escola e a literatura disponível na internet, empreenda uma pesquisa inicial sobre história das religiões, sempre tendo em vista duas questões determinadas. Primeiro, procure identificar quais religiões se edificam com base na ideia de um Deus único e pessoal. Segundo, examine se tal divindade se caracteriza ou não pela sua infinitude. Como entradas possíveis para o trabalho, pesquise sobre as religiões do Oriente, tais como o confucionismo, o taoísmo, o islamismo, o budismo. Ou, caso prefira, sobre a religião da Antiguidade greco-romana (geralmente denominada “mitologia grega” ou “greco-romana”) ou sobre as tradições religiosas dos ameríndios. Com base no material pesquisado, organize as informações sob a forma de uma redação, buscando investigar o seguinte ponto: todas as religiões monoteístas concebem a divindade como sendo infinita, como faz o cristianismo? De que modo o infinito é compreendido no seio de uma religião politeísta?

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Tomás de Aquino (1225-1274), também conhecido como Doctor Angelicus, é considerado um dos principais expoentes do

Tomas Aquino. Gravura, 1662 . Georg Andreas Wolfgang. Biblioteca Nacional da França, Paris

pensamento cristão.

resumo, o problema do infinito terminou dando grande relevo ao debate sobre as relações entre a fé e a razão. Para que você possa medir a magnitude dessa mudança, façamos recurso, mais uma vez, à comparação com a Antiguidade. A filosofia grega havia tomado a via da razão como instrumento privilegiado para o exercício filosófico. Mesmo no caso de Platão[+], que repetidamente lança mão de mitos e alegorias, os elementos poéticos e mitológicos se veem subordinados a um tipo de investigação que não supõe a aceitação de dogmas ou verdades reveladas. Já o cristianismo é uma religião e, como tal, se baseia na fé de seus adeptos, que partem da convicção de que as Escrituras contêm uma verdade inquestionável. Essa verdade não pode ser contradita pela razão, nem precisa – embora às vezes possa – ser demonstrada por ela. A título de “verdade revelada”, ela é conhecida por uma via independente da razão.

finito e infinito

do pensamento ocidental trouxe para o primeiro plano do debate filosófico outra novidade muito significativa. Como era mesmo de se esperar, a nova maneira de pensar a infinitude mudou também a compreensão da finitude. Se os gregos acreditavam que havia uma medida comum entre a humanidade e o universo, entre a razão e a natureza, isso tinha por consequência a convicção, muito difundida entre eles, de que a razão humana era capaz de conhecer as coisas ao nosso redor, a começar por nós mesmos. Nossas paixões, a vida política, a natureza, tudo isso era matéria de uma reflexão marcada pela confiança em nosso poder de compreensão, pela confiança no lógos, que admite ser traduzido como “razão”, “argumentação”, “discurso”. (Veja, sobre isso, a etimologia do termo “lógos”, na Unidade Dúvida e certeza, módulo “A dúvida, base da investigação”.) Você pode então imaginar o que acontece se, como ocorreu a partir da cristianização do Ocidente, o que há de mais perfeito (isto é: Deus) é concebido como infinito – isto é, como algo que ultrapassa a razão humana, por definição finita. Era mesmo inevitável que os pensadores cristãos se perguntassem: de que maneira, afinal, o infinito pode ser compreendido pelo que é finito? Quando falamos da finitude, estamos falando de nós mesmos. O ser humano é marcado pela finitude. Veja, então, a revolução que o advento do cristianismo representou para o par de conceitos desta Unidade. Ao mesmo tempo em que difundiu a ideia de que o infinito existe como realidade positiva, já que Deus é infinito, o cristianismo também trouxe para o primeiro plano da reflexão teológica e filosófica a questão de determinar como podemos conhecer esta infinitude, visto que somos finitos. Com isso, o debate sobre o infinito viu-se ligado a uma controvérsia mais ampla, acerca da nossa capacidade de compreender a essência e a natureza de Deus. Em

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finito e infinito

Vimos, hĂĄ pouco, a passagem do ĂŠxoria de fĂŠ. A razĂŁo poderia, na melhor das do, no Antigo Testamento, sobre a qual hipĂłteses, esclarecer e promover a verdase basearam muitos pensadores cristĂŁos, de das Escrituras. a fim de assinalar a infinitude de Deus. Ao lado dessa vertente, e que surgiu HĂĄ um outro passo da Escritura que foi ao mesmo tempo que ela, houve uma oumuito relido por todos aqueles que refletra maneira de interpretar a afirmação de tiram sobre as relaçþes entre a fĂŠ e a razĂŁo IsaĂ­as. Pensadores igualmente ligados ao como vias diferentes para apoiar a reflecristianismo levantaram suspeitas mais xĂŁo religiosa cristĂŁ. Trata-se de uma senfortes quanto ao poder de compreensĂŁo tença do Livro de IsaĂ­as, tambĂŠm ele no das verdades da religiĂŁo por parte de nosAntigo Testamento: “Mas se nĂŁo crerdes so entendimento. Conforme essa outra / nĂŁo subsistireisâ€? (“IsaĂ­asâ€?, 7,9; tradução vertente, nosso entendimento e nossa de Frederico Dattler. BĂ­blia, mensagem de razĂŁo natural seriam incapazes de forneDeus. SĂŁo Paulo: Loyola, 1994, p. 761). cer explicação para os temas fundamenEssa sentença foi intais da religiĂŁo cristĂŁ. terpretada jĂĄ pelos priA primeira interpretameiros padres da Igreja, ção colaborou para o apaDesde muito cedo, denominados os “padres recimento de autores de gregosâ€?, como significanorientação “racionalistaâ€?, vĂĄrios pensadores do que a nossa capacidacomo ĂŠ o caso de AnselcristĂŁos buscaram de de compreensĂŁo dos mo (1033-1109), TomĂĄs apoiar-se na razĂŁo temas que cercam a criade Aquino (1225-1274) e ção do universo, a natuDuns Scot (1266-1308). para esclarecer, reza da alma e a existĂŞnA segunda foi representacomentar e cia de Deus dependem da da por pensadores como confirmar a fĂŠ, muito mais do que da Agostinho[+] (354-430) e, de uma forma mais radirazĂŁo e do entendimenrevelação. cal, pelos defensores da to. A sentença de IsaĂ­as mĂ­stica cristĂŁ. foi interpretada, porÉ interessante notanto, nesses termos: “se tar que o debate que reuniu essas duas nĂŁo crerdes, nĂŁo compreendereisâ€?. vertentes permaneceu ativo atĂŠ mesmo Como se vĂŞ, a fĂŠ passou a ser considerano seio da Filosofia Moderna, no sĂŠculo da condição da compreensĂŁo das questĂľes XVII. É o que atesta a comparação enmais decisivas aos seres humanos, como tre dois grandes pensadores do perĂ­odo, seu lugar no universo, sua natureza, o que RenĂŠ Descartes[+] (1596-1650) e Blaise ĂŠ capaz de conhecer e o que deveria fazer. Pascal (1623-1662). Se vocĂŞ consultar Abandonada a si mesma, a razĂŁo nĂŁo seria a carta que Descartes escreveu aos tecapaz de atingir essas verdades mais proĂłlogos da Universidade de Sorbonne, fundas e decisivas. Isso nĂŁo significa que na França, a fim de conseguir seu apoio o pensamento cristĂŁo tenha concebido a para publicar suas Meditaçþes metafĂ­sirazĂŁo como sua adversĂĄria. Desde muito cas, identificarĂĄ facilmente o elemento cedo, vĂĄrios pensadores cristĂŁos buscaracionalista que anima esse autor. Logo ram apoiar-se na razĂŁo para esclarecer, code inĂ­cio, Descartes afirma que cabe Ă fimentar e confirmar a revelação. Mas nem losofia, mais do que Ă teologia, demonsmesmo os que mais se aprofundaram nestrar a existĂŞncia de Deus e a imortalidade sa via questionaram que as verdades acerda alma. Conforme Descartes, portanto, ca da alma, da criação do mundo e de Deus esses dois dogmas essenciais ao cristiaconstituĂ­ssem, antes de mais nada, matĂŠ-

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nismo podem e devem ser conhecidos pela “razão natural”. Blaise Pascal, de seu lado, irá opor-se completamente a Descartes. Segundo Pascal, seria uma enorme insensatez pretender conhecer pela razão os mistérios que cercam a criação do mundo por Deus e, mais ainda, a própria infinitude de Deus. Há uma passagem, em seus Pensamentos, muito instrutiva a esse respeito, na qual, com grande ironia, Pascal questiona a capacidade de os filósofos, servindo-se apenas de sua razão, chegarem

a alguma descoberta relevante: “O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o convença de que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá” (Pascal. Pensamentos. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13). Ora, conclui Pascal, se a razão humana mal consegue fazer frente à nossa imaginação, como poderia ela pretender descortinar os princípios da criação e de Deus?

Como o finito pode compreender o infinito? Pesquisa em grupo • Reúna-se em equipe de três a cinco pessoas e, juntos, imaginem que vocês estivessem em uma universidade europeia do século XIV, e que fossem responsáveis pelos debates teológicos e filosóficos acerca da infinitude de Deus. Investiguem a seguinte questão: a essência de Deus é ou não inatingível ao entendimento e à razão humanas? Procurem formular argumentos tanto para uma, como para a outra posição. Revejam a passagem do Êxodo, que citamos há pouco. Eis, em termos sucintos, a dificuldade que ela parece impor a esta questão: se o nome de Deus é o ser total, se ele se faz

chamar pelo “EU SOU”, então como nós, que dispomos de nomes e conceitos de seres determinados, poderíamos ser capazes de nomeá-lo? • Em seguida, consulte, juntamente com os demais membros da equipe, alguns dicionários, a fim de identificar como eles definem o infinito. Consulte também, se possível, o termo equivalente em dicionários em outras línguas. Após a consulta, busquem resolver o seguinte desafio: vocês seriam capazes de fornecer, ou ao menos encontrar em alguma fonte consultada, uma caracterização positiva do infinito, isto é, que não se contente em dizer que ele equivale ao que “não é finito”?

Sendo o infinito algo de tão difícil apreensão, como será que um pensador empirista – alguém para quem tudo o que concebemos provém das sensações – poderia admitir que o infinito esteja ao alcance de nossas capacidades de conhecimento, se tudo o que nossos sentidos nos dão a conhecer possui limites no espaço ou no tempo?

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Dá-nos um exemplo desse raciocínio Thomas Hobbes[+] (1588-1679), filósofo que também é discutido na Unidade Ordem e caos, na ocasião em que é examinada a instituição da ordem política nas sociedades humanas. Assim como naquela Unidade, aqui também tomaremos um trecho da obra mais conhecida de

finito e infinito

Quem é finito não pode conceber o sem-fim

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“Tudo que imaginamos é finito. Portanto, não existe nenhuma ideia, ou concepção de algo que denominamos infinito. Nenhum homem pode ter no seu espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita, ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas da nossa própria incapacidade. Portanto, o nome de Deus é usado não para fazer concebê-lo (pois ele é incompreensível e a sua grandeza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos honrar. Também porque tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos, de uma vez só, ou por partes, pois o homem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação. Nenhum homem, portanto, pode conceber uma coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, e dotada de uma determinada magnitude, e susceptível de ser dividida em partes.” (Hobbes,

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Leviatã, Parte I, “Do Homem”, Cap. 3, “Da sequência ou cadeia de imaginações”. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria B. Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 28-29)

Pois bem: com base em que razões Hobbes alega que não podemos conceber, sob hipótese alguma, o infinito? Veja a primeira sentença do texto: “Tudo que imaginamos é finito”. Ora, apenas com base nela não é possível concluir que seja impossível conceber o infinito, como faz Hobbes, a não ser que acrescentemos a ela um outro elemento, que, no trecho em debate, aparece um pouco mais à frente. É preciso acrescentar que “tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos” para, partindo da afirmação inicial de que tudo o que imaginamos é finito, extrair, então, a conclusão de que não podemos conceber o infinito. A razão disso é simples. Suponha que possuíssemos ideias ou noções que não vêm dos sentidos; neste caso, mesmo admitindo que tudo que imaginamos seja finito, poderíamos ainda assim alegar que concebemos o infinito por outra via, diversa da imaginação (o intelecto puro, por exemplo). Mas, como o conjunto do trecho que estamos discutindo deixa claro, Hobbes não admite que possamos

Gerald Raab. Staatsbibliothek Bamberg - Msc.Bibl.140, fo. 24v

Hobbes, o Leviatã (1651). Vamos extrair dela uma passagem inicial, inscrita no trecho em que Hobbes defende que todas as nossas concepções têm por origem alguma sensação. É isso o que faz com que Hobbes seja considerado um partidário do empirismo, isto é, da doutrina conforme a qual todas as representações e ideias que possuímos provêm da experiência. Leiamos o trecho no qual Hobbes expõe as implicações que seu posicionamento filosófico possui em relação ao infinito:

Nesta bela cena de um Apocalipse (séc. XI), encontramos uma representação pictórica da revelação: o anjo soando a trombeta.

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Desafiamos você a identificar, na passagem citada, uma prova que nos permita afirmar que Hobbes nega a existência divina. Reexamine o texto uma última vez. O que nele é afirmado é que não podemos conceber o infinito – e nem conceber, por isso, Deus. Mas uma coisa é afirmar que um ser é inconcebível; outra, que ele não existe... No trecho citado, Hobbes afirma que o nome de Deus é usado “para que o possamos honrar”. Isto é, Hobbes aceita e mesmo defende que honremos a Deus, embora não possamos compreendê-lo. E, uma vez que Deus e a infinidade estão assimilados entre si no argumento de Hobbes, o mesmo, segue-se daí, vale para o infinito: não podemos de fato compreendê-lo, embora possamos atribuí-lo como predicado da sabedoria ou bondade de Deus. Talvez possa parecer estranha a você a ideia de que possamos – e, conforme Hobbes, até mesmo devamos – honrar aquilo que ultrapassa nossa compreensão. Mas essa não é uma convicção isolada. Hobbes alinha-se a muitos outros pensadores que defendem, eles também, que a existência e o significado da infinitude não dependem de nossa capacidade de compreendê-la. Essa tese de Hobbes, aliás, se inscreve em uma vertente que remonta aos primeiros séculos de nossa era. Isso é especialmente o caso ali onde a infinitude se encontra assimilada à ideia cristã da divindade. Uma postura semelhante é encontrada nos textos de outro célebre pensador empirista, o escocês David Hume. O trecho abaixo é extraído de Investigação sobre o entendimento humano, e nele Hume aceita claramente a tese empirista de que nossas representações têm por origem as impressões sensíveis: “[...] quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos ou grandiosos que sejam, sempre verificamos que eles se decompõem

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acessar ideias ou concebê-las sem que, antes, a realidade que elas designam tenha sido percebida pelos sentidos. Ou, nos termos do trecho sob exame: “o homem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação”. Aqui entra em cena o empirismo de Hobbes: só representamos aquilo que foi, de início, percebido pelos sentidos, aquilo que foi primeiro matéria para a imaginação. Ora, se admitirmos isso, admitiremos sem dificuldades a afirmação inicial de que não podemos formar ideia do infinito. Afinal, como nos recorda Hobbes mais para o fim do trecho em debate, toda coisa pensada por nós, na medida em que é algo sujeito à sensação, tem de ser uma coisa determinada. A coisa representada pelo pensamento, assim, é sempre “dotada de uma determinada magnitude”, “suscetível de ser dividida em partes” etc. Logo, jamais concebemos algo indeterminado e sem limites, como é o caso do infinito. Conclusão de Hobbes: quando falamos que algo é “infinito”, com isso não qualificamos a coisa em pauta, mas, sim, nossa própria incapacidade de compreendê-la. O infinito, conclui Hobbes, situa-se além de nossa compreensão. Mas isso significa que Hobbes rejeita completamente a existência do infinito, ou a existência de um ser que disponha de qualidades infinitas? Note que, no trecho citado, Hobbes assimila sem rodeios a infinidade a Deus. Nisso, Hobbes agiu como todos os pensadores de seu tempo: a questão do infinito, após a cristianização do Ocidente, passou a concernir diretamente ao ser de Deus. Pois, como vimos há pouco, Deus foi tradicionalmente caracterizado como dispondo de predicados infinitos (“bondade infinita”, “poder infinito”, “sabedoria infinita”, etc.). Entretanto, o trecho que estamos discutindo faria de Hobbes um pensador ateu, que nega a existência de Deus, associado que está à representação do infinito?

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em ideias simples copiadas de alguma sensação ou sentimento precedente. Mesmo aquelas ideias que, à primeira vista, parecem as mais afastadas dessa origem revelam-se, após um exame mais detido, dela derivadas. A ideia de Deus, no sentido de um Ser infinitamente inteligente, såbio e bondoso, surge da reflexão sobre as operaçþes de nossa própria mente e do aumento ilimitado dessas qualidades de bondade e sabedoria. Podemos prosseguir o quanto quisermos nessa investigação, e para cada ideia que examinarmos sempre descobriremos que ela Ê co-

piada de uma impressĂŁo semelhante. Aqueles que desejarem declarar que essa proposição nĂŁo ĂŠ universalmente verdadeira, ou que admite exceçþes, sĂł dispĂľem de um mĂŠtodo para refutĂĄ-la, que de resto ĂŠ simples: apresentar alguma ideia que, em sua opiniĂŁo, nĂŁo derive dessa fonte. CaberĂĄ a nĂłs, entĂŁo, se quisermos sustentar nossa doutrina, exibir a impressĂŁo, isto ĂŠ, a percepção vĂ­vida, que a ela corresponde.â€? (Hume, Investigaçþes sobre o entendimento humano e sobre os princĂ­pios da moral. Tradução: JosĂŠ O. Marques. SĂŁo Paulo: Edunesp, 2004, p. 36)

Allan Ramsay. Galeria Nacional da EscĂłcia, Edimburgo

Hume David Hume (1711-1776)

As obras principais de

nasceu em Edimburgo, na

Hume possuem excelentes

EscĂłcia. Tornou-se ĂłrfĂŁo de

traduçþes para o português:

pai logo criança, com ape-

D. Hume, Tratado da na-

nas dois anos; com doze, foi

tureza humana. Tradução: D.

enviado pela famĂ­lia para

Danowski. SĂŁo Paulo: Editora

a Universidade de Edim-

da Unesp, 2009.

burgo, a fim de preparar-

D.

sobre o entendimento humano

cos. Mas Hume de partida

e sobre os princĂ­pios da moral.

tomou gosto pela literatu-

Tradução: JosÊ O. de A. Mar-

ra clĂĄssica e pela filosofia,

ques. SĂŁo Paulo: Editora da

assim como pela matemĂĄti-

Unesp, 2004.

Com apenas vinte e oito anos, Hume publica sua obra mais importante, o Tratado sobre a natureza humana (1739-1740). Decep-

finito e infinito

ção: o livro passou totalmente despercebido

D. Hume, A arte de escrever ensaio e outros ensaios. Tradução: Mårcio Suzuki e Pedro Pimenta. São Paulo: Iluminuras, 2011. Como introdução à obra de Hume, sugerimos:

do pĂşblico. Somente em 1742, com a publica-

• Leonardo Sartori Porto, Hume (Coleção

ção de seus Ensaios, Hume começa a tornar-

Passo a Passo). Rio de Janeiro: Jorge Zahar

-se familiar do pĂşblico leitor. Tenta por duas

Editor, 2006.

vezes ingressar como professor na universi-

• FernĂŁo de Oliveira Salles, “Hume e a cau-

dade, mas fracassa. Em 1748, publica a Inves-

salidade�, in: V. Figueiredo (org.), Filósofos na

tigação sobre o entendimento humano – obra

sala de aula – vol. 3. São Paulo: Berlendis & Ver-

que retoma, de forma resumida, teses do

tecchia, 2009, pp. 86-126.

Tratado da natureza humana. Hume se tornarĂĄ cĂŠlebre como escritor, porĂŠm, apenas com

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Investigaçþes

-se para os estudos jurĂ­di-

ca e a histĂłria.

Hume,

a publicação de sua História da Inglaterra, em seis volumes (a partir de 1754).

Para um estudo mais aprofundado, mas muito instigante, veja-se: Gilles Deleuze, Empirismo e subjetividade. SĂŁo Paulo: Editora 34, 2001.

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Analisando O LeviatĂŁ AnĂĄlise de texto em equipe Vamos ler com atenção o trecho do LeviatĂŁ (ver p. 360) que traz importantes consequĂŞncias para a relação entre finito e infinito. Façamos primeiramente uma anĂĄlise gramatical. • Em equipe, realize uma primeira leitura, sublinhando as palavras que operam como conectivos do discurso desenvolvido pelo autor. Identifique com os colegas as conjunçþes que ocorrem no tex-

to. Privilegie as conjunçþes explicativas (“porqueâ€?, “poisâ€? etc.) e conclusivas (“portantoâ€?, “logoâ€?, “por conseguinteâ€? etc.). Isso possibilitarĂĄ a vocĂŞ enxergar a estrutura argumentativa da passagem em discussĂŁo, apontando o que ĂŠ afirmado e com base em que razĂľes. • Faça, juntamente com sua equipe, um esquema da estrutura argumentativa desse trecho e apresente em classe, comparando com o resultado obtido pelas outras equipes.

O infinito atual nas matemĂĄticas

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tencem a ele. Considere, por exemplo, o conjunto dos mĂşltiplos de 3 que sĂŁo maiores que 4 e menores que 10. Naturalmente, esse conjunto ĂŠ formado por dois elementos â€“ o 6 e o 9. Podemos representar esse conjunto da seguinte forma: {6 , 9} Considere agora o conjunto dos divisores de 18 que sĂŁo maiores que 3 e menores que 18. É fĂĄcil perceber que esse conjunto ĂŠ idĂŞntico ao primeiro. NĂŁo importa que estejamos nos referindo a esse conjunto por meio de duas caracterizaçþes diferentes. Importa apenas o fato de que os elementos sĂŁo exatamente os mesmos. ConclusĂŁo idĂŞntica valeria para o caso de o conjunto ser “vazioâ€?, isto ĂŠ, de nĂŁo ter nenhum elemento. O conjunto dos presidentes dos Brasil nascidos em Botucatu ĂŠ idĂŞntico ao conjunto dos peixes que sabem assobiar o Tico-tico no fubĂĄ. Em ambos os casos, temos um conjunto que nĂŁo contĂŠm elemento nenhum, e que ĂŠ chamado por isso de “conjunto vazioâ€?. Pouco importa como nos referimos

finito e infinito

O infinito, por sua prĂłpria caracterização conceitual, sempre foi uma noção que oferece dificuldade para ser apreendida. Contudo, no final do sĂŠculo XIX, a noção de infinito sofreu uma verdadeira reviravolta. Pela primeira vez, foi dada uma definição matemĂĄtica da ideia de “infinitudeâ€? – uma definição que parecia finalmente colocar o infinito atual a salvo das crĂ­ticas que lhe eram feitas desde os tempos de AristĂłteles[+]. Uma sĂŠrie de matemĂĄticos chegou a essa nova concepção do infinito mais ou menos ao mesmo tempo, e hĂĄ controvĂŠrsias a respeito de sua paternidade. Os dois principais nomes associados a essa revolução conceitual sĂŁo os de Georg Cantor (1845-1918) e Richard Dedekind (1831-1916). As teorias que eles formularam sĂŁo bastante complicadas, mas a ideia de infinito que elas incorporam ĂŠ relativamente simples. VocĂŞ deve ter estudado nas aulas de matemĂĄtica algumas noçþes de teoria dos conjuntos. Vamos nos lembrar de algumas delas. Um conjunto ĂŠ determinado Ăşnica e exclusivamente pelos elementos que per-

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ao conjunto vazio, portanto â€“ estaremos sempre nos referindo ao mesmo conjunto, pois um conjunto ĂŠ determinado Ăşnica e exclusivamente pelos elementos que pertencem a ele. Como o conjunto vazio nĂŁo tem elementos, sĂł pode existir um Ăşnico conjunto vazio, e os matemĂĄticos costumam representĂĄ-lo usando o sĂ­mbolo Ă˜. A noção de “conjuntos equinumĂŠricosâ€? Uma coisa, porĂŠm, ĂŠ possuir os mesmos elementos. Outra, muito diferente, ĂŠ possuir o mesmo nĂşmero de elementos. O conjunto dos imperadores do Brasil ĂŠ diferente do conjunto dos divisores de 18 maiores que 3 e menores que 18. Apesar disso, esses dois conjuntos possuem exatamente dois elementos: {6 , 9} {D. Pedro I , D. Pedro II} Quando isso acontece, dizemos que os conjuntos sĂŁo equinumĂŠricos. A palavra ĂŠ complicada, mas a ideia ĂŠ simples: ela quer dizer apenas “ter o mesmo nĂşmero de elementosâ€?. Embora a ideia seja, de fato, simples, hĂĄ algumas aplicaçþes dessa ideia que oferecem alguma dificuldade. Considere, por exemplo, o conjunto dos nĂşmeros naturais: â„• = {0 , 1 , 2 , etc.}

Quantos elementos tem esse conjunto? A resposta parece ser: “infinitosâ€?. Repare, no entanto, que a resposta ĂŠ a mesma que nĂłs darĂ­amos a respeito do conjunto dos nĂşmeros pares: finito e infinito

P = {0 , 2 , 4 , etc.}

E, no entanto, parece haver “maisâ€? elementos no conjunto dos naturais do que no conjunto dos pares. O motivo ĂŠ simples. Todo par ĂŠ um nĂşmero natural, mas nem todo natural ĂŠ um nĂşmero par. O conjunto dos nĂşmeros pares ĂŠ um subconjunto prĂłprio do conjunto dos naturais. SerĂĄ que estamos autorizados, por isso, a dizer que o conjunto dos naturais ĂŠ “mais

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infinitoâ€? que o conjunto dos pares? SerĂĄ que, apesar de ambos serem infinitos, um conjunto ĂŠ “mais numerosoâ€? que o outro? Vamos refletir um pouco, fazendo outra pergunta. O que serĂĄ maior? O conjunto dos pares, ou o conjunto dos Ă­mpares? Aqui, nĂŁo temos nenhuma razĂŁo para dizer que um ĂŠ menor que o outro. O conjunto dos pares ĂŠ parte prĂłpria do conjunto dos naturais, mas nĂŁo ĂŠ parte prĂłpria do conjunto dos nĂşmeros Ă­mpares. Um conjunto ĂŠ uma parte prĂłpria de outro quando todos os elementos do primeiro conjunto pertencerem ao segundo, mas nĂŁo o contrĂĄrio. Assim, por exemplo, o conjunto dos habitantes de Indaiatuba ĂŠ uma parte prĂłpria do conjunto dos habitantes do Brasil. Todo habitante de Indaiatuba ĂŠ habitante do Brasil, mas nĂŁo o contrĂĄrio.

É fĂĄcil ver, aliĂĄs, que ambos nĂŁo possuem elementos em comum: P = {0 , 2 , 4 , etc.} I = {1 , 3 , 5 , etc.} Como ambos sĂŁo infinitos, e um nĂŁo ĂŠ parte prĂłpria do outro, somos tentados a dizer que ambos tĂŞm o mesmo nĂşmero de elementos. AtĂŠ aĂ­, tudo bem. O problema surge quando juntamos os dois raciocĂ­nios que fizemos. Pois considere o seguinte conjunto: A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.} O conjunto I (dos Ă­mpares) começa com o nĂşmero 1 e avança somando 2; o conjunto A tambĂŠm começa com o nĂşmero 1, mas avança somando 4. Note que este segundo conjunto ĂŠ uma parte prĂłpria do conjunto dos nĂşmeros Ă­mpares. Por nosso critĂŠrio, portanto, A seria um conjunto infinito, mas teria “menosâ€? elementos que I. Vamos representar isso da seguinte maneira: (i) nĂşmero de elementos de A < nĂşmero de elementos de I

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(ii) nĂşmero de elementos de A = nĂşmeros de elementos de P Pelo mesmo raciocĂ­nio, deverĂ­amos admitir que (iii) nĂşmero de elementos de P = nĂşmero de elementos de I É fĂĄcil ver, no entanto, que fomos levados a um beco sem saĂ­da. A partir de (ii) e de (iii), deverĂ­amos concluir que (iv) nĂşmero de elementos de A = nĂşmero de elementos de I No entanto, (iv) e (i) sĂŁo claramente incompatĂ­veis. Entramos num beco sem saĂ­da. Becos sem saĂ­da como este levaram muitos filĂłsofos e matemĂĄticos a darem razĂŁo a AristĂłteles. Eles passaram a desconfiar da noção de “infinito atualâ€?. NĂŁo se trata apenas de constatar que todos os agregados que encontramos na experiĂŞncia sĂŁo agregados finitos. O problema ĂŠ ainda mais grave. A ideia de um agregado com um nĂşmero infinito de elementos parece nos levar a contradiçþes como essa que acabamos de descrever. SĂŠries potencialmente infinitas A melhor saĂ­da, entĂŁo, talvez fosse admitir que nĂŁo faz sentido falarmos na totalidade dos nĂşmeros naturais, ou na totalidade dos nĂşmeros Ă­mpares. O que temos ĂŠ uma regra para a obtenção da sequĂŞncia de nĂşmeros que chamamos de “nĂşmeros naturaisâ€?. A regra diria o seguinte: “comece de 0, e vĂĄ somando 1â€?. Essa regra pode ser aplicada quantas vezes quisermos, gerando uma quantidade cada vez maior de nĂşmeros na sĂŠrie. PorĂŠm, jamais terĂ­amos “todosâ€? os nĂşmeros naturais. TerĂ­amos

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apenas a regra que nos permite ir avançando na sĂŠrie, passo a passo. Como a regra nos permite ir sempre mais longe do que jĂĄ fomos, dizemos que ela produz uma sĂŠrie potencialmente infinita de nĂşmeros â€“ uma sĂŠrie que nunca chega ao fim. Mas ela nĂŁo nos dĂĄ nenhum tipo de “totalidadeâ€? infinita. As totalidades que ela produz sĂŁo sempre finitas: chegamos hoje atĂŠ mil, podemos chegar amanhĂŁ atĂŠ 10 mil, atĂŠ 100 mil e assim por diante. Mas sempre estaremos lidando com totalidades finitas. O que isso quer dizer? Basicamente, quer dizer que a expressĂŁo “etc.â€? nos enganou. Reescrevamos os conjuntos “infinitosâ€? que deram origem ao beco sem saĂ­da: â„• = {1 , 2 , 3 , etc.} P = {0 , 2 , 4 , etc.} I = {1 , 3 , 5 , etc.} A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.} Em todos eles, utilizamos a expressĂŁo “etc.â€? e interpretamos essa expressĂŁo como se ela indicasse que a sĂŠrie continua “atĂŠ o infinitoâ€?. O que os seguidores de AristĂłteles irĂŁo alegar ĂŠ que nĂŁo faz sentido dizer que continuamos “atĂŠ o infinitoâ€?. Podemos continuar atĂŠ o ponto que quisermos. Mas o ponto que atingirmos serĂĄ sempre atingido num nĂşmero finito de passos: iremos atĂŠ 257, atĂŠ 566, atĂŠ 13.453, e assim por diante. Jamais chegaremos “atĂŠ o etc.â€?; jamais iremos “atĂŠ o infinitoâ€?. O que matemĂĄticos como Cantor e Dedekind fizeram foi oferecer um mĂŠtodo para lidar com totalidades infinitas sem entrar em becos sem saĂ­da como os que acabamos de examinar. Ou seja, eles ofereceram uma resposta precisa Ă s dificuldades que envolviam a noção de “infinito atualâ€?. Para isso, eles formularam uma definição precisa da noção de “totalidade infinitaâ€?. Essa definição, por sua vez, sĂł foi possĂ­vel a partir do momento em que esses matemĂĄticos formularam

finito e infinito

Agora, repare no seguinte fato. O conjunto A ĂŠ uma parte prĂłpria de I, mas nĂŁo ĂŠ uma parte prĂłpria do conjunto P dos nĂşmeros pares. Como ambos sĂŁo infinitos, deverĂ­amos concluir que

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uma definição precisa de “equinumericidadeâ€?. Vejamos como isso tudo se deu. O que significa dizer que dois conjuntos sĂŁo equinumĂŠricos? No caso de conjuntos finitos, isso ĂŠ claro. Eles sĂŁo equinumĂŠricos caso seja possĂ­vel estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre seus membros, ou seja, se for possĂ­vel fazer com que cada membro de um conjunto corresponda a um e somente um membro do outro conjunto, e vice-versa. Tomemos dois conjuntos com trĂŞs elementos cada: X = {a , b , c} Y = {d , e , f} É possĂ­vel fazermos cada elemento de X corresponder a exatamente um elemento de Y, e cada elemento de Y corresponder a exatamente um elemento de X. Por exemplo, podemos fazer o seguinte pareamento:

a

b

c

↕

↕

↕

d

e

f

Não faltaram nem sobraram elementos, e nenhum elemento foi associado a mais de um elemento correspondente: o pareamento foi perfeito. É isso que chamamos de correspondência biunívoca. Sempre que for possível fazer isso com dois conjuntos finitos, eles são equinumÊricos. E sempre que não for possível fazer isso com dois conjuntos finitos, eles não são equinumÊricos. Tente fazer um pareamento perfeito entre o conjunto X e este outro: finito e infinito

Z = {g , h}

Isso ĂŠ impossĂ­vel. Sempre vai sobrar algum elemento de X que nĂŁo estarĂĄ pareado a nenhum elemento de Z. O que matemĂĄticos como Cantor e Dedekind fizeram foi muito simples. Eles estenderam essa definição de equinumericidade para o caso dos conjuntos infinitos. Por definição, passaram a chamar de “equinu-

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mÊricos� quaisquer conjuntos entre cujos elementos houvesse uma correspondência biunívoca. Podemos perceber o que isso significa voltando aos casos estudados mais acima. O conjunto P dos pares Ê equinumÊrico ao conjunto I dos ímpares, pois Ê possível estabelecer uma correspondência biunívoca entre eles. Basta associar o primeiro par ao primeiro ímpar, o segundo par ao segundo ímpar, e assim por diante:

0

2

4

↕

↕

↕

1

3

5

... etc.

A cada nĂşmero par irĂĄ corresponder exatamente um nĂşmero Ă­mpar, e a cada Ă­mpar, exatamente um nĂşmero par. Existe, portanto, uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os dois conjuntos, e em função disso diremos que eles sĂŁo equinumĂŠricos. A mesma coisa irĂĄ acontecer com os casos mais “complicadosâ€?. É perfeitamente possĂ­vel estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os nĂşmeros naturais, de um lado, e os nĂşmeros Ă­mpares, de outro. Podemos novamente fazer o primeiro nĂşmero natural corresponder ao primeiro nĂşmero Ă­mpar; o segundo, ao segundo; o terceiro, ao terceiro e assim por diante: 0

1

2

↕

↕

↕

1

3

5

... etc.

JĂĄ nĂŁo vamos dizer agora que o conjunto dos naturais tem “maisâ€? elementos que o conjunto dos Ă­mpares. Ambos sĂŁo equinumĂŠricos – tĂŞm o mesmo nĂşmero de elementos, pois ĂŠ possĂ­vel estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre eles. “Ah, mas isso estĂĄ errado!â€?, vocĂŞ pode pensar. “Como ĂŠ possĂ­vel que um conjunto tenha o mesmo tamanho que outro do qual ele ĂŠ apenas uma parte? Como ĂŠ possĂ­vel que o conjunto dos nĂşmeros natu-

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A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.}

Trabalho por escrito individual Prove que o conjunto A = {1, 5, 9, 13, 17, etc.} ĂŠ mesmo infinito, isto ĂŠ, ache uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre A e uma parte prĂłpria de A.

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Como ele era uma parte prĂłpria do conjunto dos nĂşmeros Ă­mpares, nĂłs ĂŠramos levados a dizer que “o nĂşmero de elementos de A < o nĂşmero de elementos de Iâ€?, e isso acabava nos levando a um beco sem saĂ­da. Lembra-se disso? Pois bem. Agora, com nossa definição, o fato de A ser “parte prĂłpriaâ€? de I jĂĄ nĂŁo nos dĂĄ razĂŁo para dizer que I ĂŠ “maiorâ€? ou “mais numerosoâ€? que A. Ambos tĂŞm exatamente o mesmo tamanho. Eles sĂŁo infinitos, pois existe uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre eles e certas partes prĂłprias deles mesmos, e tambĂŠm sĂŁo equinumĂŠricos, pois existe uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre eles:

1

3

7

9

↕

↕

↕

↕

1

5

13

17

... etc.

Pronto. O paradoxo se dissolveu. Infinitos maiores que outros Vamos resumir aquilo que fizemos atĂŠ aqui. EstĂĄvamos lidando com uma noção vaga de “infinitoâ€?, e com um critĂŠrio vago para dizer quando um conjunto tem o mesmo nĂşmero de elementos que outro. Diante do conjunto dos nĂşmeros naturais e do conjunto dos nĂşmeros pares, nossa primeira reação era dizer que, apesar de ambos serem “infinitosâ€?, o conjunto dos pares aparentava nĂŁo ter “o mesmo nĂşmero de elementosâ€? que o conjunto dos naturais, jĂĄ que aquele ĂŠ uma parte prĂłpria deste Ăşltimo. O conjunto dos naturais tem todos os elementos que pertencem ao conjunto dos pares e outros mais. Isso nos levava a becos sem saĂ­da (ou, como se diz em lĂłgica, nos levava a “paradoxosâ€?). O que nĂłs fizemos? Decidimos (isso mesmo: decidimos) que, em nossas discussĂľes, quando dizemos que um conjunto tem o mesmo nĂşmero de elementos que outro, estamos dizendo que

finito e infinito

rais, que contĂŠm todos os nĂşmeros Ă­mpares e, alĂŠm disso, todos os nĂşmeros pares, tenha o mesmo tamanho que o conjunto dos nĂşmeros pares sozinho?â€? Seu estranhamento ĂŠ compreensĂ­vel. No caso de um conjunto finito, isso jamais acontece. Se um conjunto finito estĂĄ contido em outro, entĂŁo ele nĂŁo pode mesmo ter o mesmo tamanho desse outro. Por que nĂŁo pode? Porque, pela nossa definição, dois conjuntos tĂŞm o mesmo tamanho (isto ĂŠ, sĂŁo equinumĂŠricos) caso exista uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre eles, e essa correspondĂŞncia jamais vai existir entre dois conjuntos finitos quando um ĂŠ parte prĂłpria do outro. SĂł que isso nĂŁo vale para conjuntos infinitos. Se o conjunto ĂŠ infinito, entĂŁo ele pode perfeitamente ter o mesmo tamanho que uma de suas partes prĂłprias, como acontece no caso dos naturais e dos Ă­mpares. Foi isso que permitiu aos matemĂĄticos do final do sĂŠculo XIX elaborar uma definição rigorosa do infinito – algo que nĂŁo tinha sido feito atĂŠ entĂŁo. A definição ĂŠ muito simples: Um conjunto ĂŠ infinito se (e somente se) for equinumĂŠrico a alguma parte prĂłpria de si mesmo. Ser infinito, entĂŁo, quer dizer justamente isso: ter o mesmo tamanho que certas partes prĂłprias de si mesmo. Com essa definição, todas as contradiçþes que surgiam quando falĂĄvamos do infinito desaparecem completamente. Lembre-se do conjunto A:

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hå uma correspondência biunívoca entre eles. A partir desta decisão, fica estabelecido que o conjunto dos naturais e o conjunto dos pares têm o mesmo número de elementos, apesar de um ser parte própria do outro. A existência dessa correspondência biunívoca, neste caso, pode ser evidenciada por meio de uma regra de correspondência. A regra Ê a seguinte. Associamos a cada número natural o número par – ao 0 associamos o 0; ao 1 associamos o 2; ao 2 associamos o 4; ao 3 associamos o 6; e assim por diante. Essa regra pode ser expressa da seguinte forma: x / 2x

finito e infinito

A associação produzida por essa regra pode ser representada da seguinte forma:

0

1

2

3

↕

↕

↕

↕

0

2

4

6

... etc.

AtĂŠ aqui, tudo corre Ă s mil maravilhas. O problema surge quando temos dois conjuntos infinitos e nĂŁo sabemos se existe ou nĂŁo uma regra para estabelecer a correspondĂŞncia biunĂ­voca entre seus elementos. Seja, por exemplo, o conjunto dos nĂşmeros naturais e o conjunto dos nĂşmeros racionais. NĂşmeros racionais, vocĂŞ sabe, sĂŁo aqueles que podem ser expressos por uma fração: 1â „1, ½, 37â „241 etc. E agora? SerĂĄ que existe uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os naturais e os racionais, ou nĂŁo? NĂŁo existe nenhuma regra Ăłbvia a ser aplicada neste caso. Se tentarmos colocar as fraçþes em ordem crescente, veremos que entre duas fraçþes quaisquer sempre existe uma terceira. Na verdade, entre quaisquer duas fraçþes sempre existem infinitas outras. SerĂĄ que isso ĂŠ motivo para dizermos que nĂŁo ĂŠ possĂ­vel estabelecer uma cor-

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Trabalho por escrito individual • Para vocĂŞ verificar isso com seus prĂłprios meios, ache uma fração F1 entre 0 e ½. Em seguida, ache uma fração F2 entre 0 e F1; e assim por diante. ApĂłs o terceiro ou quarto caso, responda se este procedimento pode ou nĂŁo ser repetido indefinidamente, e por quĂŞ.

respondĂŞncia biunĂ­voca entre os naturais e os racionais? Isso ĂŠ motivo para dizermos, enfim, que o conjunto dos racionais, apesar de ser infinito como o conjunto dos naturais, nĂŁo contĂŠm o mesmo nĂşmero de elementos que este Ăşltimo? Se nĂŁo fosse possĂ­vel estabelecer a correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os dois conjuntos, essa seria certamente a conclusĂŁo a ser tirada. No entanto, Cantor descobriu uma maneira simples de estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os naturais e os racionais. Imaginemos uma fileira infinita na qual nĂłs poremos todas as fraçþes com numerador 1; imaginemos uma segunda fileira com todas as fraçþes com numerador 2; uma terceira com todas as fraçþes com numerador 3; e assim por diante: 1â „1 , ½ , â…“ , Âź , 1â „5 , ... 2â „1 , 2â „2 , â…” , 2â „4 , 2â „5 , ... 3â „1 , 3â „2 , 3â „3 , ž , 3â „5 , ... ... Eliminando as fraçþes que expressam nĂşmeros repetidos, 1â „1 , ½ , â…“ , Âź , 1â „5 , ... 2â „1 , 2â „2[=1â „1], â…” , 2â „4[=½], 2â „5 , ... 3â „1 , 3â „2 , 3â „3[=1â „1], ž , 3â „5 , ... ... obtemos a seguinte lista infinita de listas infinitas de nĂşmeros racionais:

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Agora, faremos uma espiral percorrer todos os nĂşmeros dessa lista infinita de nĂşmeros infinitos, começando do canto superior esquerdo, isto ĂŠ, começando com a fração 1â „1: 1â „1 , ½ , â…“ , ... 2â „1 , â…” , 2â „5 , ... 3â „1 , 3â „2, ž , ... 4â „1 , 4â „3 , 4â „5 , ... Imaginemos, agora, esta espiral sendo “desenroladaâ€?. Teremos uma lista infinita de nĂşmeros racionais: 1â „1, ½, 2â „1, â…“, â…” , 3â „1, Âź, 2â „5, 3â „2, 4â „1, 1â „5 ... Note que esses nĂşmeros nĂŁo estĂŁo organizados em ordem de grandeza. Apesar disso, qualquer nĂşmero racional que vocĂŞ possa imaginar aparecerĂĄ mais cedo ou mais tarde nessa lista. Por exemplo, o nĂşmero 37â „241 certamente serĂĄ encontrado em algum ponto da 37ÂŞ fileira. Podemos, agora, associar cada nĂşmero natural a um nĂşmero racional, e cada racional a um natural – podemos, enfim, mostrar a existĂŞncia de uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os dois conjuntos. Primeiramente, associamos o nĂşmero 0 Ă fração 0â „1, que nĂŁo estava em nossa lista. Em seguida, passamos a associar o 1 ao primeiro nĂşmero racional da lista; o nĂşmero 2, ao segundo; o nĂşmero 3, ao terceiro e assim por diante:

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1

↔

1â „1

2

↔

½

3

↔

2â „1

4

↔

â…“

5

↔

â…”

etc.

Pronto. A cada nĂşmero natural fizemos corresponder um (e somente um) nĂşmero racional, e a cada nĂşmero racional, um (e somente um) nĂşmero natural. Existe uma correspondĂŞncia biunĂ­voca, o que, segundo nossa definição de “possuir o mesmo nĂşmero de elementosâ€?, quer dizer o seguinte: o conjunto dos naturais tem o mesmo nĂşmero de elementos que o conjunto dos racionais. ExpansĂľes e mais expansĂľes Recapitulemos, outra vez, o que fizemos atĂŠ aqui. Vimos, em primeiro lugar, que a noção de infinito atual apresentava inĂşmeros problemas, o que levou muitos filĂłsofos a rejeitar completamente essa ideia. EntĂŁo, na segunda metade do sĂŠculo XIX, matemĂĄticos como Cantor e Dedekind elaboraram uma definição da infinitude que parecia nos permitir lidar com essa ideia sem nos vermos presos em becos sem saĂ­da. A definição era muito simples, e partia da ideia de “equinumericidadeâ€? entre dois conjuntos. Dizer que um conjunto ĂŠ infinito significa dizer que ele ĂŠ equinumĂŠrico a uma parte prĂłpria de si mesmo. Isso acontece com os nĂşmeros naturais, e acontece tambĂŠm com os nĂşmeros racionais e com os nĂşmeros reais. Todos esses conjuntos sĂŁo equinumĂŠricos a partes prĂłprias deles mesmos. Mas poderĂ­amos, agora, fazer uma outra pergunta: “SerĂĄ que, alĂŠm de serem equinumĂŠricos a partes prĂłprias deles mesmos (sendo, em função disso, infinitos), esses conjuntos tambĂŠm sĂŁo equinumĂŠricos entre si?â€?. Ou, fazendo a pergunta de outra forma: “SerĂĄ que os conjuntos infinitos sĂŁo todos do mesmo tamanho, ou alguns sĂŁo maiores que os outros?â€?. O que acabamos de ver ĂŠ um caso de dois conjuntos infinitos que possuem o mesmo tamanho, jĂĄ que foi possĂ­vel estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre eles: o conjunto dos naturais e o conjuntos dos racionais. A prĂłxima pergunta a ser feita ĂŠ: “SerĂĄ que isso acontece sempre?â€?. SerĂĄ possĂ­vel

finito e infinito

1â „1 , ½ , â…“ , ... 2â „1 , â…” , 2â „5 , ... 3â „1 , 3â „2, ž , ... 4â „1 , 4â „3 , 4â „5 , ...

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Mondadori /Getty Images

Georg Cantor (1845-1918)

estabelecer toda vez uma correspondência biunívoca entre dois conjuntos infinitos quaisquer, como fizemos no caso dos naturais e dos racionais? Cantor mostrou que as coisas não são assim. Considere, por exemplo, o conjunto de todas as expansþes decimais infinitas correspondentes a números reais entre 0 e 1 (exclusive). Uma expansão desse tipo seria o número 0,5000000... (As reticências indicam aqui que os zeros se repetem infinitamente nessa expansão.) Ele Ê a expansão correspondente ao número 0,5, que por sua vez corresponde à fração ½. Outra expansão do mesmo tipo seria

finito e infinito

0,3333333...

correspondente Ă fração â…“. HĂĄ expansĂľes que nĂŁo correspondem a fração nenhuma. Por exemplo, 5 ĂŠ um nĂşmero real que nĂŁo pode ser posto na forma de uma fração. Mesmo assim, existe uma “receitaâ€? (um algoritmo) para ir calculando a expressĂŁo decimal de 5 atĂŠ onde quisermos. Se aplicarmos esse algoritmo atĂŠ a sĂŠtima casa decimal, obteremos o seguinte nĂşmero: 0,7071067...

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(As reticĂŞncias postas no final dessa expressĂŁo numĂŠrica indicam apenas que poderĂ­amos continuar calculando alĂŠm desse ponto, atĂŠ onde quisĂŠssemos.) HĂĄ infinitas outras expansĂľes decimais compreendidas entre 0 e 1 que sĂŁo como 5: possuem uma receita, um algoritmo a partir do qual elas podem ser geradas. Imaginemos, agora, o conjunto de todas as expansĂľes decimais compreendidas entre 0 e 1 – sejam elas geradas por um algoritmo ou nĂŁo. Suponha que existisse uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os nĂşmeros naturais e essas expansĂľes decimais infinitas compreendidas entre 0 e 1. Se essa correspondĂŞncia biunĂ­voca existisse, seria possĂ­vel fazer uma lista dos nĂşmeros reais entre 0 e 1 como fizemos no caso dos nĂşmeros racionais. Seria possĂ­vel pĂ´-los numa fila infinita que conteria todos esses nĂşmeros reais. Cantor, no entanto, provou que isso nĂŁo ĂŠ possĂ­vel. Ele mostrou que, se uma lista qualquer nos fosse dada, sempre poderĂ­amos apresentar uma expansĂŁo decimal entre 0 e 1 que nĂŁo foi associada a nenhum nĂşmero natural. A prova ĂŠ um pouco difĂ­cil de ser seguida no detalhe, mas o resultado final era exatamente esse: Cantor mostrou que ĂŠ impossĂ­vel estabelecer uma correspondĂŞncia biunĂ­voca entre os nĂşmeros naturais e as expansĂľes decimais infinitas compreendidas entre 0 e 1. Isso quer dizer que o conjunto dessas expansĂľes nĂŁo tem o mesmo nĂşmero de elementos que o conjunto dos naturais. Os dois conjuntos sĂŁo infinitos, mas nĂŁo sĂŁo equinumĂŠricos. O conjunto das expansĂľes decimais infinitas ĂŠ “maiorâ€? ou “mais densoâ€? que o conjunto dos naturais. Cantor nĂŁo apenas deu uma definição rigorosa da noção de infinito, como vemos, mas tambĂŠm mostrou que hĂĄ diferentes tipos de infinitude, e que hĂĄ um sentido preciso no qual podemos dizer que certos conjuntos infinitos (como o dos nĂşmeros reais) sĂŁo “maioresâ€? que outro conjun-

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A crĂ­tica de Wittgenstein Embora essa prova seja aceita pela maioria dos matemĂĄticos contemporâneos, ela foi submetida a duras crĂ­ticas por um filĂłsofo importantĂ­ssimo, que viveu na primeira metade do sĂŠculo XX. Estamos falando de Ludwig Wittgenstein[+] (1889-1951). Wittgenstein examinou essa prova de Cantor e tentou mostrar que ela nĂŁo demonstra aquilo que nĂłs fomos levados a pensar que ela estava demonstrando, mas, sim, outra coisa. Como a prova de Cantor ĂŠ um pouco complicada, nĂłs nĂŁo a reproduzimos aqui. Mas ĂŠ fĂĄcil entender qual foi o foco das crĂ­ticas de Wittgenstein. Cantor nos pede, lĂĄ pelas tantas, que imaginemos que todas as expansĂľes decimais infinitas entre 0 e 1 nos fossem dadas. Voltemos, entĂŁo, por um momento Ă noção de “expansĂŁo decimal infinitaâ€?. Tomemos, por exemplo, a raiz quadrada de 0,5. Existe uma receita – um algoritmo – que nos permite ir calculando essa raiz quadrada atĂŠ o ponto que quisermos. É essa “receitaâ€? que podemos inserir num computador para que ele vĂĄ calculando essa raiz quadrada passo a passo, atĂŠ o ponto que desejarmos. Se aplicamos a receita uma vez, chegamos ao primeiro algarismo da expansĂŁo, que ĂŠ o “7â€?:

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0,7... Se aplicamos o algoritmo mais uma vez, chegamos ao segundo algarismo da expansĂŁo, que ĂŠ o “0â€?: 0,70... Novas aplicaçþes do algoritmo nos levam ao terceiro algarismo 0,707... ao quarto 0,7071... ao quinto 0,70710... ao sexto 0,707106... e assim por diante. Todo o problema, segundo Wittgenstein, estĂĄ em saber o significado exato das reticĂŞncias neste caso. O que querem dizer expressĂľes como “etc.â€? e “e assim por dianteâ€?, que muitas vezes sĂŁo postas no lugar das reticĂŞncias? Assim por diante atĂŠ quando? Cantor responderia – “AtĂŠ o infinitoâ€?. SerĂĄ que faz sentido, porĂŠm, imaginar que a expansĂŁo prossegue “atĂŠâ€? o infinito? Quando dizemos que calculamos a expansĂŁo atĂŠ a quinta casa decimal, a palavra “atĂŠâ€? expressa o fato de que fomos atĂŠ a quinta casa e entĂŁo paramos. SerĂĄ que ĂŠ isso que queremos dizer quando afirmamos que a sĂŠrie continua atĂŠ o infinito? NĂłs vamos atĂŠ o infinito e depois paramos? Ou serĂĄ que estamos querendo dizer justamente o contrĂĄrio, ou seja: que, por mais longe que nĂłs formos, jamais teremos chegado ao final da expansĂŁo? O que o algoritmo nos dĂĄ ĂŠ uma “receitaâ€? para ir calculando um algarismo depois do outro. Ele nĂŁo nos dĂĄ “todosâ€? os algarismos da expansĂŁo decimal de 5, nem poderia dar. NĂŁo existe nada que seja a totalidade dos algarismos dessa expansĂŁo decimal.

finito e infinito

tos tambĂŠm infinitos (como o dos nĂşmeros naturais). Estranho? Talvez. Mas repare que tudo que nĂłs fizemos foi seguir Ă risca nossa definição de “ter o mesmo nĂşmero de elementosâ€?. Havendo uma correspondĂŞncia biunĂ­voca, o nĂşmero de elementos ĂŠ o mesmo; nĂŁo havendo, nĂŁo ĂŠ. Como nesse caso a correspondĂŞncia biunĂ­voca nĂŁo existe, somos obrigados a dizer que o conjunto das expansĂľes tem um nĂşmero de elementos “maiorâ€? que o conjunto dos naturais. É tudo uma questĂŁo de sermos coerentes com as definiçþes que estabelecemos no inĂ­cio.

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finito e infinito

Para compreender isso, vamos imaginar a seguinte situação. Suponha que um homem chamado “Lúcio” resolva passar o resto de sua vida sorteando os números de uma expansão decimal. Lúcio não usa nenhuma espécie de algoritmo. Ele sorteia os algarismos com um dado. Sua expansão decimal, portanto, só contém algarismos de 1 a 6. Ele chama essa expansão de “expansão de Lúcio”, e estabelece que ela nunca estará completa. Quando ele morrer, a expansão de Lúcio poderá ser continuada por qualquer pessoa que queira jogar aquele dado e anotar mais um dígito no papel. Você acha que faz algum sentido falar em “todos os algarismos da expansão de Lúcio”? Não faz sentido nenhum. Essa expansão se caracteriza exatamente pelo fato de que ela jamais contém “todos” os seus algarismos. Ela contém apenas os algarismos que foram sorteados até agora. Não faz sentido supor que a expansão de Lúcio tenha sido escrita “até o infinito”. Mesmo que Lúcio fosse imortal, e que nunca mais parasse de escrever a sua expansão, ele jamais chegaria ao final dela. Estaria sempre sorteando um novo algarismo. A mesma coisa, diz Wittgenstein, vale para a expansão decimal correspondente a 5. Podemos ir até onde quisermos. Jamais poderemos falar em “todos” os algarismos componentes dessa expansão, mas apenas dos primeiros 100 algarismos, ou do primeiro trilhão de algarismos, dá na mesma. Teremos sempre um segmento inicial da expansão, jamais a expansão “toda”. É contraditório, nesse caso, falarmos na totalidade dos dígitos dessa expansão, pois se trata de uma expansão que não possui totalidade. Está sempre incompleta, sempre aberta, sempre desenvolvida apenas até um certo ponto.

Wittgenstein e a tartaruga A crítica que Wittgenstein endereça a Cantor retoma aspectos importantes

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que cercam a discussão filosófica sobre o infinito... desde a Antiguidade grega! Afirmar que jamais atingimos senão um valor para o qual sempre se pode encontrar um valor superior, como Wittgenstein objeta a Cantor, é reaver a ideia de que a infinidade (compreendida como totalidade absoluta da série) é inalcançável para nós. Foi pela teologia cristã que a noção de infinidade positiva, estranha ao universo conceitual do pensamento grego, entrou na história da filosofia. Esse ingresso, porém, não foi feito sem dificuldades. A afirmação da infinitude de Deus produziu, em linhas gerais, duas consequências importantes. De um lado, muitos autores, dentre os quais alguns dos mais antigos e influentes pensadores cristãos, insistiram na impossibilidade de nós, seres humanos, enquanto seres finitos, compreendermos positivamente a essência infinita de Deus. De outro, também houve quem defendesse que nossa finitude não impede que ao menos concebamos a infinitude de Deus. Por isso, propuseram-se a fornecer uma prova ou demonstração dessa existência. Santo Anselmo (c.1034-1109) e Descartes[+] (1596-1650) fornecem exemplos disso. Com Cantor e Dedekind – grandes filósofos da matemática do século XIX –, o debate sobre o infinito recebeu novo impulso. Recorrendo à noção de conjuntos equinuméricos, foi possível atingir uma definição positiva do infinito atual. Se aplicássemos esse resultado ao universo conceitual da Antiguidade, é como se o argumento de Cantor e Dedekind desse vantagem a Zenão diante de Aristóteles. Porém, como acabamos de ver, Wittgenstein levantou uma objeção de peso a Cantor: jamais podemos realmente compreender uma “totalidade infinita”... Terá dessa forma o debate chegado a seu termo ou, ao contrário, ele – como a reflexão que o anima – também é infinito?

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Apêndices Quadro sinótico: Grandes áreas da Filosofia ................... 372 Conteúdos e referências ...............374 Índice de boxes bio-filosóficos ......... 399

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Quadro sinótico: grandes áreas da Filosofia

Apêndices

Este – como diz o nome – é um quadro abrangente, de visão panorâmica (“sinótico” vem do verbo grego synoráo: abranger no campo de visão; ver com um golpe de vista). Nele, encontramos a distribuição dos conteúdos do livro de acordo com os tradicionais recortes disciplinares do ensino universitário de Filosofia: Teoria do conhecimento, Filosofia política, Ética, Filosofia da ciência, Estética etc.

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NATUREZA E CULTURA

Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia das Ciências Humanas

Ética

Filosofia Política

Estética

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO

Ética

Lógica

Teoria do Conhecimento

Estética

DÚVIDA E CERTEZA

Ética

Lógica

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

REALIDADE E APARÊNCIA

Estética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia da História

Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Ética

Filosofia Política

Teoria do Conhecimento

Filosofia das Ciências Humanas

Filosofia da Ciência

Ética

Filosofia Política

Lógica

Estética

CONTINUIDADE E RUPTURA

Filosofia Política

Filosofia da Ciência

Filosofia da História

Metafísica

PRINCÍPIO E TEMPORALIDADE

Ética

Teoria do Conhecimento

Filosofia da Ciência

Metafísica

FINITO E INFINITO

Ética

Lógica

Teoria do Conhecimento

Estética

Metafísica

RAZÃO E PAIXÃO

ESPÍRITO E LETRA

EU E O OUTRO

LIBERDADE E NECESSIDADE ORDEM E CAOS

Apêndices

GRANDES ÁREAS DA FILOSOFIA (Distribuição de conteúdos estruturantes nas Unidades)

UNIDADE

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Conteúdos e referências As tabelas a seguir resumem e sistematizam dois aspectos de cada módulo nas Unidades do livro. O primeiro diz respeito aos conceitos centrais explorados em cada etapa. Aqui encontram-se indicações breves para localizar as principais questões da história da filosofia que são tratadas neste livro. Por exemplo: a instituição da ordem política; o contratualismo; a consciência histórica; a dúvida cética; a teoria do discurso e assim por diante. Dado o caráter eminentemente interdisciplinar da Filosofia, essas noções desdobram-se em especificações que dizem respeito a outras áreas dos saberes e das atividades humanas: economia, ecologia, geografia, literatura, direito, ciências da natureza... O que já nos leva ao segundo aspecto sistematizado nas tabelas: as referências e as indicações para eventuais aprofundamentos – os autores tratados, os contextos mobilizados (artes; ciências humanas; ciências exatas etc.), os diferentes tipos de abordagem para uma determinada questão. Daí a pertinência das correlações com os outros componentes curriculares do Ensino Médio: “ganchos” que podem ser desenvolvidos no encontro das diferentes disciplinas, com grande proveito para todos os envolvidos.

Apêndices

Um papel de destaque é reservado à História: pois o estudo do debate filosófico tantas vezes se expressa no que se convencionou chamar de “história das ideias”. Nos estudos de História, mentalidade e motivações interpenetram-se mutuamente: há pouco ganho em isolar hermeticamente ideias e fatos. As ações humanas só adquirem sentido histórico quando são contextualizadas em seu alcance simbólico e ideológico. As tabelas também trazem, sinteticamente, as indicações que se encontram exclusivamente no Manual do Professor. Elas são indicadas nesta cor especial.

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1

unidade

natureza e cultura Módulo • O limite entre dois universos Filosofia – Conceitos

Natureza; civilização

História

Sociedade contemporânea

Literatura

Amyr Klink; Homero; Jack London; Saint-Exupéry; John Krakauer

Artes

Cinema

Ciências humanas

Antropologia: diversidade cultural, etnocentrismo

Interdisciplinaridade

Literatura

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Adorno e Horkheimer; Gagnebin; Nobre; Duarte

Módulo • O naufrágio de Robinson Crusoé Filosofia – Autores

Delamarre

Filosofia – Conceitos

Natureza; civilização; diversidade cultural

História

Grandes navegações (Novo Mundo)

Literatura

Defoe

Ciências humanas

Antropologia, economia

Ciências da natureza; saúde

Ecologia

Interdisciplinaridade

Literatura; Ciências sociais

Outras Unidades: Ordem e caos {A ordem política}

Filosofia – Autores

Lévi-Strauss

Filosofia – Conceitos

Diversidade cultural; civilização; barbárie

História

Civilização greco-romana, invasões bárbaras; Novo Mundo; sociedade contemporânea (séc. XX)

Ciências humanas

Antropologia

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Antifonte; Cassin

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Apêndices

Módulo • A diversidade das culturas

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Módulo • A ideia de “natureza humana” Filosofia – Conceitos

Jusnaturalismo (direito natural)

História

Iluminismo; Revolução Francesa

Direito e legislação

Declaração dos direitos do homem

Religião

Budismo; judaísmo; cristianismo; islamismo

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Grotius; Bodin; Hobbes; Locke; Jaucourt (Enciclopédia) História: Iluminismo; comércio de negros; Declaração dos direitos da Virgínia; Nabuco

Módulo • Montaigne e os canibais Filosofia – Autores

Montaigne; Adorno e Horkheimer; Montesquieu; Rousseau

Filosofia – Conceitos

Natureza; civilização; crítica da cultura

História

Grandes navegações (Novo Mundo)

Interdisciplinaridade

Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades

Dúvida e certeza

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Taylor Outras Unidades: Dúvida e certeza {Limites da dúvida ao garantir a certeza}

Módulo • “Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas” Filosofia – Autores

Pascal

Filosofia – Conceitos

Moral; política

História

Era Moderna; Iluminismo

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Apêndices

Outras Unidades: Realidade e aparência {A realidade da aparência}

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2

unidade

razão e paixão Módulo • Uma espécie que se diz racional Filosofia – Autores

Aristóteles

Filosofia – Conceitos

Racionalidade/irracionalidade; paixões; loucura; virtude

História

Sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro

Saramago (entrevista a Carlos Reis); Eurípedes; Sófocles; Cervantes

Direito e legislação

Código Penal; violência contra a mulher

Religião

"Paixão de Cristo"

Interdisciplinaridade

Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades

Espírito e letra

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Hegel

Módulo • Virtude e paixão Filosofia – Autores

Aristóteles; Schopenhauer; Hegel; Nietzsche; Freud

Filosofia – Conceitos

Virtude/vício; educação; hábito

História

Grécia antiga

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Zingano; Wolff; Lopes; Aubenque; Lebrun Outras Unidades: Lógica e argumentação {A arte de persuadir}; Ordem e caos {A ordem política}

Filosofia – Autores

Sêneca; Cícero; Marco Aurélio; Aristóteles

Filosofia – Conceitos

Estoicismo; filosofia aristotélica; virtude/vício

História

Roma antiga

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Lebrun

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Apêndices

Módulo • A rejeição das paixões

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Módulo • A razão a serviço das paixões Filosofia – Autores

Hume; Sêneca; Aristóteles; Horkheimer;

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Salles; Porto; Deleuze

Filosofia – Conceitos

Virtude; vontade; razão;

História

Iluminismo

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Remissão a outras Unidades

Dúvida e certeza; Princípio e temporalidade

Módulo • História, razão e paixões Filosofia – Autores

Schiller; Sêneca

Filosofia – Conceitos

Racionalidade/emoções; estoicismo; alienação; arte; gosto estético

História

Antiguidade greco-romana; Era Moderna

Literatura/ Teatro

Schiller; Goethe; "Tempestade e Ímpeto" (Pré-Romantismo)

Interdisciplinaridade

Literatura; artes

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Marx; Weber; Lukács; Habermas; Rousseau; Schopenhauer Filosofia – Conceitos: Diversidade cultural; especialização e técnica; divisão social do trabalho; progresso da civilização/decadência moral Outras Unidades: Natureza e cultura

3

unidade

lógica e argumentação

Apêndices

Módulo • Racionalidade e emoção

Filosofia – Conceitos

Dialética; racionalidade; lógica; teoria do discurso; argumento: componentes racionais e emocionais; verdade ≠ validade; enunciados

História

Segunda Guerra Mundial; sociedade contemporânea

Ciências humanas e cognitivas

Economia; comunicação; publicidade e propaganda

Interdisciplinaridade

Língua estrangeira (inglês)

Filosofia – Conceitos: Silogismo

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Módulo • A arte de persuadir Filosofia – Autores

AristĂłteles

Filosofia – Conceitos

Teoria do discurso; retĂłrica; debate (dialĂŠtica); persuasĂŁo

HistĂłria

Democracia ateniense (GrĂŠcia antiga); Segunda Guerra Mundial

Artes

Cinema

Direito e legislação

Argumentação jurídica

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: AristĂłteles; Zingano; Copi; Velasco; Walton

Módulo • Premissas e conclusþes Filosofia – Autores

AristĂłteles; Frege; Russell

Filosofia – Conceitos

Teoria do discurso; lógica; tipos de sentenças; verdade e validade; enunciados; proposiçþes; premissas e conclusþes; Lógica formal: conectivos, tabelas de verdade; busca booleana

HistĂłria

Sociedade contemporânea

CiĂŞncias exatas

Linguagens artificiais

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua portuguesa; matemĂĄtica; informĂĄtica

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Copi; Kneale & Kneale; pesquisas em bancos de dados Filosofia – Conceitos: Silogismo

Filosofia – Autores

Schopenhauer; Newton da Costa

Filosofia – Conceitos

Teoria do discurso; debate (dialÊtica); retórica; lógica; verdade e validade; falåcias; tipos de argumentos; proposiçþes; premissas e conclusþes

HistĂłria

Sociedade contemporânea; Antiguidade; Idade MÊdia

CiĂŞncias humanas e cognitivas

Sociologia; comunicação; publicidade

CiĂŞncias exatas

Geometria

Artes

Ă“pera cĂ´mica

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua (latim)

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Wittgenstein; Walton; Copi; Marques; Perelman & Olbrechts-Tyteca

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ApĂŞndices

Módulo • Falåcia e argumento

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4

unidade

dúvida e certeza Módulo • Vivemos cercados de dúvidas Filosofia – Conceitos

DĂşvidas filosĂłficas; investigação; certeza ≠verdade; objetividade Ă— subjetividade; lĂłgica; dedução; paixĂľes; Modernidade

HistĂłria

Sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro

Machado de Assis; Shakespeare

Artes

Cinema

Interdisciplinaridade

Literatura

MĂłdulo • A dĂşvida, base da investigação Filosofia – Autores

PlatĂŁo

Filosofia – Conceitos

Dúvida filosófica; investigação; verdade e falsidade; significado, alcance e condiçþes do conhecimento (epistemologia); lógos: discurso, razão, argumento; lógica; necessidade; justificação; oratória; persuasão; justiça; mÊtodo; definiçþes; dialÊtica

HistĂłria

GrĂŠcia antiga

Literatura

Machado de Assis

Direito e legislação

Argumentação jurídica

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias humanas

ApĂŞndices

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: PlatĂŁo; AristĂłteles Outras Unidades: Realidade e aparĂŞncia {Ser e parecer justo}

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Módulo • Duvidando para atingir a certeza Filosofia – Autores

Descartes; Galileu; Aristóteles; Tomás de Aquino; Platão; Pascal

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Silva; Cotingham; Teixeira

Filosofia – Conceitos

Dúvida como instrumento e método da investigação (dúvida metódica); cartesianismo; ceticismo; verdades presumidas ≠ certeza; necessidade e lógos; “penso, logo existo”; critério de verdade; prova; sujeito do conhecimento

História

Era Moderna; Maurício de Nassau; Grécia antiga

Literatura

Machado de Assis

Interdisciplinaridade

Ciências exatas; ciências da natureza

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Boehner & Gilson; Storck; Shakespeare; Cervantes Outras Unidades: Eu e o Outro {O ‘Eu penso’: Descartes}; Princípio e temporalidade {Platão e o tempo; O tempo em Agostinho}; Finito e infinito {O infinito divino}

Filosofia – Autores

Hume; Descartes; Moore; Wittgenstein; Porchat; céticos antigos; Carnap; Schlick; Waismann; Ryle; Strawson; McDowell

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Cuter; Marques; Moreno

Filosofia – Conceitos

Sujeito do conhecimento; curiosidade filosófica; ceticismo; cartesianismo; empirismo; ação hábito; prova do mundo exterior; evidência; limites do conhecimento filosófico; idealismo; suspensão do juízo; simplicidade e simetria

História

Antiguidade greco-romana; Era Moderna

Interdisciplinaridade

Ciências da natureza

Apêndices

Módulo • Limites da dúvida ao garantir a certeza

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Wrigley & Smith

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5

unidade

realidade e aparência Módulo • As aparências enganam? Filosofia – Autores

Pré-socráticos; Pitágoras; Leucipo; Demócrito Sócrates; Platão

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Cornford

Filosofia – Conceitos

Natureza (phýsis); realidade; aparência; ilusão; atomismo; teoria do número

História

Grécia antiga;

Artes

Música

Ciências da natureza

Astronomia; Cosmologia; Física

Religião

Teologia cristã (Escolástica)

Interdisciplinaridade

Língua portuguesa; línguas estrangeiras; Física; Matemática; Química

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Diógenes Laércio; Cornelli; Hegel

Apêndices

Módulo • Ser e parecer justo

Filosofia – Autores

Platão; Sócrates; Pitágoras; Parmênides; Lucrécio; Sêneca; Marco Aurélio; Montaigne; Diderot; Nietzsche; Novalis; F. Schlegel

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Santos; Bolzani Filho

Filosofia – Conceitos

Aparência × essência; debate (dialética, divergência); formas do filosofar; ética; justiça; argumentação; platonismo: Formas ou Ideias; fins políticos

História

Antiguidade greco-romana

Artes

Telenovela

Ciências humanas e cognitivas

Ciência política

Religião

Religião oficial da República Romana: Bona Dea, pontifex maximus

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Bacon; Goethe; Hobbes Filosofia – Conceitos: Aporia

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Módulo • A revolução filosófica e científica moderna Filosofia – Autores

Aristóteles; Tomás de Aquino; Kepler; Giordano Bruno; Galileu; Descartes; Kuhn

Filosofia – Conceitos

Essência; razão; percepção; qualidades primárias e secundárias; experimento

História

História dos povos árabes; história da ciência e da tecnologia; Era Moderna

Ciências da Natureza

Astronomia; Física; Química

Religião

Teologia cristã (Escolástica)

Interdisciplinaridade

Física; matemática; química

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Burtt; Koyré; Marion Outras unidades: Continuidade e ruptura {Como e quando algo muda?}

Filosofia – Autores

Platão; Malagrida; Rousseau; Diderot; Voltaire; Hume; Schiller

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Prado Jr.

Filosofia – Conceitos

Estética; cuidado de si; moral e crítica dos costumes; contratualismo; representação pictórica, imitação (mímesis)

História

Iluminismo; Grécia antiga; Romantismo

Literatura/ Teatro/ Artes

Teatro; Cinema; Artes plásticas

Ciências humanas e cognitivas

Pedagogia

Interdisciplinaridade

Ciências sociais; artes

Apêndices

Módulo • A realidade da aparência

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6

unidade

espírito e letra Módulo • Interpretar as regras do jogo Filosofia – Autores

Kant; Arendt

Filosofia – Conceitos

Regras; normas; interpretação; experiência e conhecimento; capacidade de julgar

História

Sociedade contemporânea; nazismo

Direito e legislação

Crimes de guerra

Saúde; esporte

Esporte

Interdisciplinaridade

Ciências sociais; prática esportiva

Módulo • Mudar a “letra” para manter o “espírito” Filosofia – Conceitos

Regras; legislação; normalização; justiça; interpretação jurídica

História

Sociedade contemporânea

Direito e legislação

Constituição Federal; Código Civil

Saúde; esporte

Esporte

Interdisciplinaridade

Ciências sociais; prática esportiva

Apêndices

Módulo • Traduzir e interpretar

Filosofia – Autores

Schleiermacher; Platão; Aristóteles

Filosofia – Conceitos

Hermenêutica (interpretação); tradução

História

Antiguidade greco-romana

Literatura

Homero

Interdisciplinaridade

Língua; literatura

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Módulo • Questões de interpretação Filosofia – Autores

Nietzsche; Foucault; Heidegger; Husserl; Marcuse; Arendt; Sartre; Lacan; Gadamer

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Nunes; Loparic

Filosofia – Conceitos

Tradução; consciência histórica; historicismo; tradição; estética; fenomenologia; existencialismo

História

Era Moderna; Antigo Regime: Revolução Francesa; Segunda Guerra Mundial

Literatura/ Teatro

Sófocles; Horácio; Alceu; Arquíloco; Propércio; Calímaco; Filetas; Corneille

Artes

Pintura; escultura; música

Ciências da natureza

Astronomia

Religião

Panteísmo greco-romano

Interdisciplinaridade

Artes; Física; Matemática

Outras Unidades: Realidade e aparência {As aparências enganam?}; Natureza e cultura {A diversidade das culturas}

7

unidade

o eu e o outro

Filosofia – Autores

Arendt; Heidegger; Jaspers

Filosofia – Conceitos

Indivíduo; interioride/exterioridade; vida em sociedade

História

Nazismo (totalitarismo); Segunda Guerra Mundial; Idade Média

Literatura

Twain

Artes

Cinema

Ciências humanas

Ciência política

Direito e legislação

Estado de exceção; direitos do homem e do cidadão

Interdisciplinaridade

Literatura; ciências sociais

Remissão a outras Unidades

Realidade e aparência {A realidade da aparência}

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Correia; Duarte Outras Unidades: Natureza e cultura {A ideia de “natureza humana”}

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Apêndices

Módulo • O enigma do Eu e do Outro

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Módulo • O “Eu penso”: Descartes Filosofia – Autores

Descartes; Pascal

Filosofia – Conceitos

Dúvida cética; cartesianismo; corpo; Mundo; Deus; racionalidade; sujeito do conhecimento; "eu penso, logo existo”; verdade

História

Era Moderna

Ciências humanas e cognitivas

Psicologia

Interdisciplinaridade

Ciências da natureza

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Leopoldo e Silva; Cottingham Outras Unidades: Dúvida e certeza {Duvidando para atingir a certeza}

Apêndices

Módulo • O Eu com o Outro Filosofia – Autores

Merleau-Ponty; Descartes; Husserl; Sartre; Lacan; Lévi-Strauss

Filosofia – Ensaios, introduções e comentários

Chauí; Moutinho

Filosofia – Conceitos

Reflexão; “eu penso, logo existo”; existência social; coletividade; formação do indivíduo; linguagem; História; relações assimétricas de poder; autoritarismo

História

Sociedade contemporânea

Literatura

Géza Gárdonyi

Ciências humanas e cognitivas

Linguística; psicologia

Ciências da natureza; exatas

Astronomia; navegação espacial; exobiologia

Interdisciplinaridade

Língua; ciências sociais; física; matemática; biologia

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Wittgenstein Outras Unidades: Dúvida e certeza {Limites da dúvida ao garantir a certeza}

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Módulo • Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento Filosofia – Autores

Hegel; Descartes; Merleau-Ponty; Stirner

Filosofia – Conceitos

Consciência de si; imperativos biológicos; desejo; egoísmo; liberdade; ética; política; dominação; individualismo; necessidade do reconhecimento recíproco; vida em sociedade

História

Sociedade contemporânea

Ciências humanas e cognitivas

Ciência política; sociologia; psicologia;

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Habermas; Honneth; Kojève; Hyppolite; Konder; Rosenfield; Araújo; Menezes; Santos

Módulo • A defesa da tolerância Filosofia – Autores

Voltaire; Hegel; Diderot; D’Alembert; Rousseau

Filosofia – Conceitos

Tolerância (necessidade e limites); jusnaturalismo; fundamento do Direito

História

Nazismo

Literatura/ Teatro

Voltaire; Dumas; Mann; Brecht

Artes

Cinema

Direito e legislação

Instituição e legitimidade do Direito

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Apêndices

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Habermas; Rawls; Werle Outras Unidades: Princípio e temporalidade {Elogio de Kant a Platão}

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unidade

liberdade e necessidade Módulo • A tragédia de Édipo Filosofia – Conceitos

Destino; liberdade; ilusão; responsabilidade

História

Grécia antiga

Literatura/ Teatro

Sófocles

Religião

Panteísmo greco-romano

Interdisciplinaridade

Literatura

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Dodds; Brandão; Vernant

Módulo • Estoicismo e a necessidade do universo Filosofia – Autores

Zenão de Chipre; Cleantes; Crisipo; Panécio; Posidônio; Sêneca; Marco Aurélio; Alexandre de Afrodísia; Aristóteles; Cícero; Aulo Gélio

Filosofia – Conceitos

Estoicismo; destino; ordem e regularidade; natureza; sistema; universo; causa e consequência; ética; virtude; necessidade; metafísica da natureza; indiferença moral × responsabilidade da ação; vontade e moralidade

História

Antiguidade greco-romana

Interdisciplinaridade

Ciências sociais

Remissão a outras Unidades

Razão e paixão {A rejeição das paixões; Perder a razão}

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Bacon; Descartes Outras Unidades: Natureza e cultura

Apêndices

Módulo • A origem da ideia de necessidade

Filosofia – Autores

Hume

Filosofia – Conceitos

Ideia de necessidade; relações causais; hábito; empirismo; cartesianismo; regularidade e uniformidade; condições e limites do conhecimento humano; ações voluntárias

História

Era Moderna (o sujeito; empirismo)

Literatura/Teatro

Sófocles

Interdisciplinaridade

Física; química; geografia; matemática

Filosofia – outras indicações bibliográficas: Kant; Descartes Filosofia – Conceitos: Racionalismo; cartesianismo Outras Unidades: Eu e o Outro {O “eu penso”: Descartes}

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Módulo • Necessidade natural e liberdade humana Filosofia – Autores

Hume; estoicismo; Marx e Engels

Filosofia – Ensaios, introduçþes e comentĂĄrios

Giannotti; Konder; Codato

Filosofia – Conceitos

Determinismo na natureza; teoria das ciĂŞncias humanas; lei cientĂ­fica; cultura; determinismo nas ciĂŞncias humanas; diversidade de formas de vida social; determinismo econĂ´mico e liberdade polĂ­tica; instinto Ă— espontaneidade; divisĂŁo do trabalho; condiçþes de sobrevivĂŞncia material; ideologia; materialismo histĂłrico; consciĂŞncia; luta de classes; revolução; cidadania: liberdade e deveres; democracia; progresso econĂ´mico Ă— danos ambientais; leis de mercado; marxismos; liberalismo

HistĂłria

Revolução Industrial; Era das Revoluçþes; sociedade contemporânea

CiĂŞncias humanas e cognitivas

Pedagogia; ciĂŞncia polĂ­tica; economia; sociologia

Interdisciplinaridade

Geografia; ciĂŞncias sociais; fĂ­sica; quĂ­mica

RemissĂŁo a outras Unidades

Natureza e cultura

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: AristĂłteles; Popper; Kuhn Filosofia – Conceitos: Kant Outras Unidades: Continuidade e ruptura {Perfectibilidade e desenvolvimento} Realidade e aparĂŞncia {As aparĂŞncias enganam?} PrincĂ­pio e temporalidade {A noção de progresso cientĂ­fico} RazĂŁo e paixĂŁo {Uma espĂŠcie que se diz racional}

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unidade

ordem e caos

Filosofia – Autores

Agostinho; PlatĂŁo; Husserl; Freyre; Buarque de Holanda; Prado Jr.

Filosofia – Conceitos

Civilzação e barbĂĄrie; ordem; desordem leis; liberdade; violĂŞncia; controle social; conformação do corpo social; teorias da miscigenação (“mito das trĂŞs raçasâ€?); ordem e caos como noçþes correlatas

HistĂłria

Sociedade contemporânea; ImpÊrio Romano; Absolutismo

Literatura

Huxley

Artes

Urbanismo; cinema

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: CopĂŠrnico; Galileu Filosofia – Conceitos: Revolução Francesa Outras Unidades: Continuidade e ruptura {Como e quando algo muda?}

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ApĂŞndices

MĂłdulo • A bagunça do meu quarto

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Módulo • A origem do mundo Filosofia – Autores

Descartes; Leibniz; Espinosa

Filosofia – Conceitos

Khaos como origem do universo; poesia; racionalismo moderno; princĂ­pio de razĂŁo suficiente; mito

HistĂłria

Antiguidade greco-romana

Literatura

HesĂ­odo

ReligiĂŁo

PanteĂ­smo grego

Interdisciplinaridade

Literatura

Módulo • A ordem política Filosofia – Autores

Hobbes; Descartes; AristĂłteles; Vernant; Rousseau; Proudhon; Marx; Bakunin

Filosofia – Conceitos

Normas e leis; instituição da ordem política; uso da linguagem (lógos) como característica distintiva do ser humano; Cidade-Estado (pólis); interesses particulares; sujeição como condição da paz social; doutrina do direito divino; jusnaturalismo; soberania emanando do povo para o Estado; guerra civil; anarquismo; governo despótico; tragÊdias naturais

HistĂłria

Antiguidade greco-romana; Idade MÊdia; Era Moderna; Antigo Regime; sociedade contemporânea

Direito e legislação

Jusnaturalismo (direito natural); Organização das Naçþes Unidas

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais; geografia

ApĂŞndices

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Montaigne; Pascal; Maquiavel; Bodin; Weber; Limongi; Frateschi; Janine Ribeiro; Lebrun; Kant

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Módulo • Da ordem do irracional Filosofia – Autores

Hobbes; Agostinho; Descartes; Burton; Pascal; Freud; Charcot; Breuer; Jung; Lacan; Saussure; AristĂłteles

Filosofia – Conceitos

RazĂŁo; paixĂľes; irracional; indivĂ­duo moderno; princĂ­pio de coerĂŞncia; inconsciente

HistĂłria

Era Moderna; sociedade contemporânea

Literatura/ Teatro

Madame de La Fayette; Racine; La Rochefoucauld; Sófocles; surrealismo (Breton; Éluard; Boiffard; Vitrac)

Artes

Cinema; artes plĂĄsticas

CiĂŞncias humanas e cognitivas

Psicologia; psicanĂĄlise

ReligiĂŁo

Jansenismo

Interdisciplinaridade

Literatura; artes

RemissĂŁo a outras Unidades

RazĂŁo e paixĂŁo; Liberdade e necessidade; Eu e o Outro

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Hume; Jones; Gay; Simanke; Wollheim; Fuks; Elia; Cabas; Roudinesco Outras Unidades: Ăşvida e certeza; LĂłgica e argumentação

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unidade

continuidade e ruptura

Filosofia – Conceitos

Arte; tradição; ruptura; heliocentrismo; revolução político-social; processo histórico; forma artística; permanência e mudança; processos naturais;

HistĂłria

Idade MÊdia; Renascimento; Antiguidade greco-romana; Era Moderna; Revolução Francesa; Restauração; Unificação Italiana

Literatura/Teatro

Petrarca; Brecht; Tomasi di Lampedusa

Artes

Artes plĂĄsticas; mĂşsica; cinema

CiĂŞncias da natureza

Astronomia

ReligiĂŁo

Mitologia

Interdisciplinaridade

Literatura; artes; fĂ­sica; biologia

RemissĂŁo a outras Unidades

EspĂ­rito e letra

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ApĂŞndices

Módulo • Como e quando algo muda

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MĂłdulo • O “movimentoâ€? segundo AristĂłteles Filosofia – Autores

AristĂłteles; Newton; Galileu; Torricelli; Kepler; PlatĂŁo;

Filosofia – Conceitos

Imutabilidade do conhecimento no platonismo; mudança; linguagem matemĂĄtica expressando leis do movimento; ato e potĂŞncia; forma e matĂŠria; natureza; mundo da percepção Ă— suprassensĂ­vel; atributos essenciais Ă— acidentais; arte e tĂŠcnica; teleologia

HistĂłria

GrÊcia antiga (e herança)

Interdisciplinaridade

FĂ­sica; matemĂĄtica; biologia

Outras Unidades: Finito e infinito {Filosofia grega e infinito}

Módulo • Perfectibilidade e desenvolvimento Filosofia – Autores

Hegel; Rousseau; Condorcet; Kant; Marx

Filosofia – Conceitos

EspĂ­rito hegeliano; mudança natural Ă— mudança histĂłrica; perfectibilidade Ă— desenvolvimento; finalidade histĂłrica; liberdade; governo despĂłtico; consciĂŞncia e vontade; progresso; antagonismos como premissa da sĂ­ntese histĂłrica

HistĂłria

Antiguidade (GrĂŠcia, Egito); Filosofia da HistĂłria; Iluminismo

ReligiĂŁo

Concepção pneumológica da alma; kardecismo

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais

RemissĂŁo a outras Unidades

EspĂ­rito e letra

Outras Unidades: Liberdade e necessidade

ApĂŞndices

MĂłdulo • As revoluçþes cientĂ­ďŹ cas

Filosofia – Autores

Kuhn; Kepler

Filosofia – Conceitos

Gosto estĂŠtico ĂŠ relativo ao contexto histĂłrico; ideia do belo; princĂ­pcios que norteiam a ciĂŞncia; paradigma e revolução cientĂ­ficos; sistema geocĂŞntrico Ă— heliocĂŞntrico

HistĂłria

História da Arte; Era Moderna; história da ciência; revoluçþes científicas

Artes

Artes plĂĄsticas

CiĂŞncias da natureza

Astronomia

Interdisciplinaridade

Artes; fĂ­sica; geografia

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unidade

princĂ­pio e temporalidade MĂłdulo • A diferença entre fundamento e inĂ­cio Filosofia – Autores

Textos bĂ­blicos (Antigo Testamento)

Filosofia – Conceitos

"PrincĂ­pio": pluralidade de sentidos – começo, ponto de partida, temporalidade - fundamento, causa; origem do universo (cosmogonia); criacionismo, evolucionismo; textos: anĂĄlise, tradução e interpretação; histĂłria do texto bĂ­blico; o discurso adquire perspectivas em função de quem lĂŞ; princĂ­pios explicativos na HistĂłria; senso comum Ă— atitude crĂ­tica e filosĂłfica

HistĂłria

HistĂłria judaica; mundo helĂŞnico; cristianismo; Reforma; guerra de Canudos

Literatura/ Teatro

GĂŞnesis; Euclides da Cunha; Hebreus;

ReligiĂŁo

Antigo Testamento; interpretaçþes e conceitos judaico-cristãos; rabinato; Igreja Romana, Reforma protestante, Igreja Anglicana; Islã; criação do universo sob diversas perspectivas (hinduísmo, politeísmo greco-romano...)

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua; literatura; lĂ­ngua portuguesa

RemissĂŁo a outras Unidades

EspĂ­rito e letra {Traduzir e interpretar}

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: AristĂłteles; Boehner & Gilson; BrĂŠhier; Agostinho; Homero; Mendes; Campos; Schleiermacher; Nietzsche; Heidegger; Gadamer Filosofia – Conceitos: Diversidade do pensamento filosĂłfico; histĂłria do pensamento ocidental; aristotelismo: primeiro motor imĂłvel; significados implĂ­citos Outras Unidades: Realidade e aparĂŞncia {Ser e parecer justo}

Filosofia – Autores

PlatĂŁo, SĂłcrates; Justino, Clemente de Alexandria; OrĂ­genes

Filosofia – Conceitos

Realidade Ă— ilusĂŁo (alegoria da caverna); atemporalidade do ser real no platonismo; senso comum; saber filosĂłfico; existĂŞncia temporal/ atemporal; aparĂŞncia, sentidos; realidade e permanĂŞncia; o Bem platĂ´nico; cosmo; intelecto; princĂ­pio do ser e do conhecimento; eternidade Ă— mortalidade; pluralidade de crenças

HistĂłria

GrĂŠcia antiga, mundo helĂŞnico; pensamento cristĂŁo

ReligiĂŁo

Assimilação do platonismo pelos primeiros pensadores cristãos

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua

RemissĂŁo a outras Unidades

Realidade e aparĂŞncia

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ApĂŞndices

Módulo • Platão e o tempo

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Módulo • O tempo em Agostinho Filosofia – Autores

Agostinho; PlatĂŁo; estoicismo antigo

Filosofia – Ensaios, introduçþes e comentĂĄrios

Ayoub e Novaes; Storck

Filosofia – Conceitos

Textos: expressĂŁo da diferença de pensamento (grego, cristĂŁo), mas tambĂŠm de sua convergĂŞncia; "mesmidade" de Deus em Agostinho; Deus judaico-cristĂŁo como princĂ­pio atemporal, criador do universo; estoicismo e "eterno retorno" (tempo circular e cĂ­clico); duração ≠atemporalidade; teologia Ă— filosofia

HistĂłria

Passagens entre mundo antigo e medieval; Idade MĂŠdia

Literatura

Eclesiastes

ReligiĂŁo

Patrística: relaçþes de proximidade e distanciamento da filosofia greco-romana; dogmas do cristianismo; razão e fÊ

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Novaes Filosofia – Conceitos: Peregrinação da alma Ă— retorno Ă proximidade divina Outras Unidades: Liberdade e necessidade {Estoicismo e a necessidade do universo}

Módulo • Elogio de Kant a Platão Filosofia – Autores

Kant; PlatĂŁo

Filosofia – Conceitos

Filosofia moderna: novos termos da relação entre dividade atemporal e seres mortais; Kant lĂŞ PlatĂŁo: ideia do bem, princĂ­pio moral; fundamentos da filosofia prĂĄtica (moral): ideia Ă— experiĂŞncia; modelo de virtude ĂŠ ideal; normas atemporais

HistĂłria

Era Moderna

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais

ApĂŞndices

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Nietzsche Filosofia – Conceitos: Noção comum Ă s 3 grandes religiĂľes monoteĂ­stas (judaĂ­smo, cristianismo, islamismo): Deus ĂŠ causa e princĂ­pio de inteligibilidade de toda mudança; pietismo; crĂ­tica de Nietzsche Ă â€œmoral cristĂŁâ€?

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Módulo • Regularidade da experiência Filosofia – Autores

Hume; Kant; PlatĂŁo; AristĂłteles; Locke; Leibniz

Filosofia – Conceitos

CrĂ­tica do racionalismo; tempo e experiĂŞncia orientam o homem para fora do erro; tempo como condição das regras prĂĄticas; empirismo Ă— racionalismo

HistĂłria

Era Moderna

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias da natureza; ciĂŞncias sociais

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: Kant

MĂłdulo • A noção de progresso cientĂ­ďŹ co Popper; Hume; Kant; PlatĂŁo; Hayek; Friedman

Filosofia – Conceitos

Tempo e experiência são dimensþes essenciais para a ciência; imprecisão terminológica Ê um bem para a ciência; admissão da margem de erro: teorias falham em apreender completamente o real; história da ciência: substituição de teorias consagradas por novas teorias que as contradizem; só no tempo hå progresso

HistĂłria

História da Ciência; Era Moderna; sociedade contemporânea

CiĂŞncias da natureza; exatas

Filosofia da ciĂŞncia; hipĂłtese; imprecisĂŁo da ciĂŞncia; teoria cientĂ­fica; Ptolomeu Ă— CopĂŠrnico; FĂ­sica newtoniana Ă— einsteiniana e quântica

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias da natureza

ApĂŞndices

Filosofia – Autores

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unidade

finito e infinito

Módulo • A biblioteca de Borges Filosofia – Conceitos

Infinito; espacialidade; número; codificação e decodificação (criptografia); linguagem; gramåtica; cålculo infinitesimal

HistĂłria

Segunda Guerra Mundial; sociedade contemporânea

Literatura

Borges; Homero

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua; literatura; informĂĄtica; matemĂĄtica; geografia

ApĂŞndices

MĂłdulo • FilosoďŹ a grega e inďŹ nito Filosofia – Autores

ParmĂŞnides; ZenĂŁo de Eleia; SĂłcrates; AristĂłteles

Filosofia – Conceitos

Filosofia prĂŠ-socrĂĄtica; unidade Ă— multiplicidade do ser; permanĂŞncia Ă— mudança; irrealidade do tempo e do movimento; argumentação; paradoxo; refutação por absurdo (reductio ad absurdum); infinito; tese da infinita divisibilidade do espaço; realidades matĂŠticas; ato Ă— potĂŞncia

HistĂłria

GrĂŠcia antiga

CiĂŞncias da natureza; exatas

Movimento; tempo e espaço; grandezas contĂ­nuas Ă— discretas; cĂĄlculo

Interdisciplinaridade

MatemĂĄtica; fĂ­sica; lĂ­ngua

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: HerĂĄclito; Tonelli; PitĂĄgoras; DiĂłgenes LaĂŠrcio; Aminia; Diel & Kranz; PlatĂŁo; Nietzsche Filosofia – Conceitos: PrincĂ­pio do movimento; primeiro motor aristotĂŠlico Outras Unidades: Realidade e aparĂŞncia {As aparĂŞncias enganam?}

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MĂłdulo • O inďŹ nito divino Filosofia – Autores

AristĂłteles; Descartes; Malebranche; Leibniz; Lutero; Agostinho; PlatĂŁo; Schiller; Anselmo; TomĂĄs de Aquino; Scot; Descartes; Pascal

Filosofia – Conceitos

GrĂŠcia: ordem=ideal estĂŠtico e moral; expansĂŁo do cristianismo; lĂłgos: argumentação, razĂŁo, discurso; mito, alegoria; totalidade do ser; perfeição; finitude humana Ă— infinitude divina; teologia; PatrĂ­stica; EscolĂĄstica; historicidade das questĂľes filosĂłficas; revelação; "racionalidade cristĂŁ"

HistĂłria

Passagens entre mundo antigo e medieval; Idade MĂŠdia; Romantismo alemĂŁo

Literatura

ĂŠxodo; IsaĂ­as

ReligiĂŁo

Antigo Testamento; interpretaçþes e conceitos judaico-cristĂŁos; Igreja Romana, Reforma protestante; panteĂ­smo grego; crenças amerĂ­ndias; taoĂ­smo; confucionismo; budismo; islamismo; monoteĂ­smo Ă— politeĂ­smo

Interdisciplinaridade

LĂ­ngua; geografia; ciĂŞncias sociais

RemissĂŁo a outras Unidades

Razão e paixão {História, razão e paixþes}; Realidade e aparência {As aparências enganam?}; Dúvida e certeza {A dúvida, base da investigação}

ApĂŞndices

Filosofia – outras indicaçþes bibliogrĂĄficas: ParmĂŞnides; HerĂĄclito; GregĂłrio de Nazianzo; HilĂĄrio de Poitiers; GregĂłrio de Nissa; Boaventura; Dionisio Pseudo-Areopagita; Gilson; Boehner e Gilson; Kant; Schelling; Tomatis Filosofia – Conceitos: AnĂĄlise da linguagem; argumento ontolĂłgico; cogito cartesiano HistĂłria: Mundo helenĂ­stico; GrĂŠcia antiga; cinema Outras Unidades: Eu e o Outro {O ‘Eu penso’: Descartes}; DĂşvida e certeza {Duvidando para atingir a certeza}

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MĂłdulo • Quem ĂŠ ďŹ nito nĂŁo pode conceber o sem-ďŹ m Filosofia – Autores

Hobbes; Hume

Filosofia – Ensaios, introduçþes e comentĂĄrios

Porto; Salles; Deleuze

Filosofia – Conceitos

Empirismo; intelecto e sentidos; finitude humana Ă— predicados infinitos; anĂĄlise da linguagem, do texto

HistĂłria

Era Moderna (o sujeito; empirismo)

Interdisciplinaridade

CiĂŞncias sociais; ciĂŞncias da natureza; lĂ­ngua

RemissĂŁo a outras Unidades

Ordem e caos {A ordem polĂ­tica}

MĂłdulo • O inďŹ nito atual nas matemĂĄticas AristĂłteles; Cantor; Dedekind; Wittgenstein; Alsemo; ZenĂŁo de Eleia; Descartes

Filosofia – Conceitos

Paradoxo; conjuntos infinitos; sĂŠries potencialmente infinitas; equinumericidade; correspondĂŞncia biunĂ­voca; infinitos maiores que outros

HistĂłria

História da ciência; GrÊcia antiga; sociedade contemporânea

CiĂŞncias exatas

Teoria dos conjuntos; teoria do nĂşmero; algoritmo

Interdisciplinaridade

MatemĂĄtica

ApĂŞndices

Filosofia – Autores

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�ndice de boxes bio-filosóficos O livro oferece ao leitor pequenos resumos sobre a vida e a obra de importantes pensadores e autores. Como muitos deles são referidos em mais de uma seção do livro, o índice abaixo os lista alfabeticamente, para sua råpida localização e consulta.

Agostinho de Hipona

323

Alexandre de Afrodisia

229

Arendt

202

AristĂłteles

85

CĂ­cero

230

Condorcet

301

Descartes

126

Freud

273

Gadamer

194

Hegel

296

Heidegger

192

Hobbes

263

Hume

360

Kant

300

Kuhn

306

La Fayette

268

LĂŠvi-Strauss

29

Marx & Engels

247

Merleau-Ponty

209

Newton da Costa

108

Nietzsche

191

PlatĂŁo

156

Popper

337

Rousseau

166

Schiller

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PĂĄgina

ApĂŞndices

Autor

71

Schleiermacher

187

Schopenhauer

59

SĂŞneca

60

Voltaire

220

Wittgenstein

143

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Manual do Professor Palavra ao Professor ..................

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Suplementos às Unidades .............409 Indicações bibliográficas .......... 499

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livro do professor

palavra ao professor

Este livro é uma introdução à filosofia voltada para o Ensino Médio. Para atender aos três anos do ciclo, compõe-se de doze Unidades, quatro para cada ano. Essa distribuição de conteúdos se presta a um uso flexível, de acordo com o contexto específico da unidade escolar em que for adotado. Tanto os planos de ensino de filosofia de cada escola, quanto o programa de cada ano letivo obedecem a exigências específicas, que dirigem o recurso ao material didático. A presente obra foi concebida como instrumento para assegurar o êxito do educador na tarefa de aproximar os educandos ao universo fascinante da filosofia. Cada uma das doze Unidades convida-nos a percorrer um itinerário reflexivo em torno de temas centrais da Filosofia, examinando como eles foram formulados pela tradição do pensamento filosófico e como suscitam interrogações e debates na atualidade. Cada Unidade é estruturada em torno de temas, apresentados em dupla:

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1. Natureza e cultura 2. Razão e paixão 3. Lógica e argumentação 4. Dúvida e certeza 5. Realidade e aparência 6. Espírito e letra 7. Eu e o Outro 8. Liberdade e necessidade 9. Ordem e caos 10. Continuidade e ruptura 11. Princípio e temporalidade 12. Finito e infinito Essa forma de introdução a conceitos e temas filosóficos resulta de uma escolha baseada na experiência de que, em filosofia, as questões ganham muito quando investigadas sob aspectos diferentes. Sua apresentação mediante os principais temas das investigações filosóficas parece-nos o melhor meio para atingir esse intuito. Com efeito, um dos aspectos mais formadores do estudo filosófico reside em promover o contato com maneiras diferentes de ver e conceber o mundo ao nosso redor. O percurso reflexivo

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As opiniões espontaneamente sustentadas quanto a assuntos os mais diversos foram e são objeto de uma reflexão elaborada pela filosofia. O essencial é fazer o educando dar-se conta disso. Ao ser orientado para medir suas posições com o que há de melhor na história da filosofia, o aluno terá condições de enriquecer sua própria compreensão acerca de questões que sempre motivaram e ainda hoje motivam nossa curiosidade sobre o mundo que nos cerca.

Sobre a estrutura do presente livro Esse objetivo de fundo exprime-se na forma de exposição do livro. Em vez de adotar o frequente recorte entre áreas da filosofia – tais como metafísica, ética, política, epistemologia, estética etc. – e dedicar a cada uma delas uma abordagem isolada no interior de uma seção do livro, preferimos estruturar essa introdução à filosofia segundo temas essenciais comuns a diversas áreas da pesquisa filosófica. É como se o objeto – a questão filosófica ela mesma – nos conduzisse ao método, e não o contrário. Afinal, o interesse pelas questões ganha muito quando sua apresentação é acompanhada das tantas possibilidades de conceituação que cada uma delas admite e exige por si própria. Assim, decidimos não organizar o livro a partir de recortes disciplinares tradicionais, como teoria do conhecimento, metafísica, ética e política, estética etc., tão característicos da filosofia universitária, pois fazê-lo seria submeter leitores iniciantes a divisões exigidas pela prática acadêmica. Esses recortes têm sua pertinência, mas é saudável também questioná-los e refletir sobre eles. O ensino de Pitágoras (570-497 ou 496 a.C.), para ficarmos com um exemplo pioneiro, postulava-se como um saber que se ocupava igualmente da cosmologia, da música, da matemática e da ética. Seria difícil imaginá-lo tendo de

livro do professor

proposto em cada Unidade apresenta, por isso, uma paisagem conceitual variada, a fim de que o aluno possa enriquecer suas convicções pessoais. Isso é importante especialmente no que diz respeito a uma presumida “ordem natural das coisas”, com a qual é frequente que estudantes sejam confrontados nessa etapa de sua formação. O axioma metodológico que guiou a redação da presente obra está fundamentado nesta peculiaridade da filosofia: a de ser, segundo nós a entendemos, uma prática de reflexão no campo dos saberes. Ora, são esses mesmos saberes que compõem a formação do educando no Ensino Médio. Essa peculiaridade salta aos olhos tão logo nos damos conta do caráter plural das soluções e dos desenvolvimentos pertinentes a um problema filosófico. Em filosofia, ao contrário do que habitualmente ocorre em outros campos da investigação humana, é inútil esperar pelo consenso em torno das soluções aos problemas abordados. Ao contrário, parece-nos muito bem vinda e formadora a prática de multiplicar soluções, apresentando ao estudante um grande leque de variações admitidas pelo tema abordado. Ao fazê-lo, nosso objetivo não é, evidentemente, formar pessoas que duvidem de tudo e de todos, por simples mania de duvidar. Trata-se antes de promover uma visão de conjunto sobre as diferentes posições defendidas ao longo da história da filosofia, para que o educando seja levado a qualificar seus pontos de vista. Reflexões por parte do educando sobre os âmbitos mais diversos – a ciência, a sociedade, a política, a psicologia, a ética, a tecnologia etc. – poderão, assim, adquirir formulações mais refletidas, que considerem os problemas de um ponto de vista abrangente. Só assim o posicionamento do educando poderá fazer frente à complexidade dos problemas com que se depara no mundo contemporâneo.

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escolher em que subárea da filosofia universitária de hoje ele deveria enquadrar suas reflexões sobre o universo. Parece-nos que o estudante do Ensino Médio goza de situação semelhante à de Pitágoras, e não há por que priválo do exercício desse notável privilégio. Isso não quer dizer, é claro, que somos contrários à classificação adotada usualmente. Sua pertinência é reafirmada pelo quadro sinótico que se encontra nos Apêndices, de modo que o leitor possa identificar como essas diferentes competências incidem nas 12 Unidades do livro. Ainda assim, optamos por não fazer delas o princípio de estruturação da obra, e sim apresentar os grandes problemas da filosofia na desobediência que originalmente revelam diante de exigências que mais dizem respeito à configuração do saber universitário contemporâneo do que a um primeiro contato com a experiência filosófica. Por conta dessas premissas, as Unidades partem de uma apresentação introdutória aos seus temas, para em seguida aprofundar a investigação em torno deles. Iniciar pela abordagem de elementos palpáveis e de compreensão mais fácil sinaliza ao educando que a discussão desenvolvida ao longo da Unidade tem a ver com questões que lhe são familiares. Questões que estão a seu alcance, a começar porque têm relação com sua experiência cotidiana. Não é gratuito, portanto, que tenhamos recorrido a várias considerações sobre temas atuais, como decisões do Supremo Tribunal Federal, regras de futebol, tendências da moda, consulta a bancos de dados, crises internacionais e assim por diante. Essas remissões são imprescindíveis para mostrar aos jovens que a filosofia é algo vivo, atual e relevante. À medida que a Unidade é percorrida, o grau de complexidade aumenta. Os temas debatidos são então expostos conforme as formulações de autores da história da filosofia, sem,

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contudo, perder de vista a agenda da reflexão sobre nosso presente.

A natureza dos temas nas Unidades A forma como esta obra está organizada busca engajar o estudante por meio das questões expostas. A escolha pela apresentação de temas em dupla justifica-se, do ponto de vista pedagógico, pelo fato de que as noções ou temas que encabeçam as doze Unidades são conceitos correlativos. Pouco interessa, para ficar com apenas dois exemplos, falar da realidade sem discorrer sobre a aparência, ou da paixão sem levar em conta a razão. Em vários casos, deparamo-nos com uma relação de complementaridade entre as ideias apresentadas. E mesmo ali onde a apresentação inicial é de oposição, o aprofundamento da discussão cuida de apontar que é possível pensá-las como complementares. Vejamos isso na prática. Toda ruptura, por exemplo, incide sobre algo que havia permanecido idêntico a si mesmo até o momento anterior, de modo que não podemos falar de ruptura sem convocar a ideia de continuidade. Esquema semelhante vale para o eu e o outro. Podemos, claro, pensar o eu isoladamente, mas apenas até certo ponto; para início de discussão, um indivíduo que se encontrasse completamente isolado dos outros não sobreviveria às primeiras semanas de vida. O isolamento do eu em relação ao outro é sempre um afastar-se deles que guarda consigo uma referência à alteridade. De maneira similar, a discussão sobre a letra das normas jurídicas, por exemplo, tem de se reportar ao espírito da lei, que, como princípio norteador da legislação, anima e promove novas interpretações sobre o que se considera ser seu sentido mais genuíno. E assim por diante. Há também casos nos quais é a oposição entre o par de temas o que salta à vista em um primeiro momento. Entre o

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Relação entre as Unidades Não bastasse o fato de que os temas abordados nas Unidades são correlativos entre si, eles tambÊm dão ocasião para remissþes de Unidade a Unidade. Essa inter-relação dos conceitos explorados ao longo das Unidades Ê uma característica inovadora desta abordagem. Ela Ê propiciada pelo caråter abrangente dos doze pares de temas que perfazem o livro. Passagens entre as Unidades, devidamente contextualizadas, encontram-se ao longo da obra. Constituem estímulos para que o leitor circule entre as partes do livro, partes exigidas para a exposição, mas que nem por isso devem ser consideradas fronteiras que assinalam territórios isolados uns dos outros. Ao contrårio, nossa aposta Ê a de que, ao utilizar a obra, outras tantas passagens irão insinuar-se naturalmente ao educador e aos educandos. Desse modo, o trabalho com o livro em sala de aula serå um estímulo para o educando formar uma elaboração autônoma, qualificada e pessoal das articulaçþes existentes entre os principais temas da investigação filosófica. AlÊm disso, essa escolha metodológica traz uma importante novidade. O

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presente livro pode ser utilizado no ciclo do Ensino MÊdio segundo diferentes ordens no desenvolvimento da disciplina, pois a mútua remissão entre Unidades que são independentes umas das outras possibilita servir-se da obra partindo da Unidade que pareça mais adequada para o contexto específico da escola e da turma. Por isso, a ordem das Unidades adotada no livro Ê apenas a sugestão de uma sequência que nos parece oportuna, ao lado de outras igualmente vålidas. Nada impede que o educador utilize o livro, por exemplo, iniciando pela Unidade Finito e infinito e em seguida passe à Unidade Dúvida e certeza, criando uma sequência própria.

Estrutura modular Mais que isso, este livro admite leituras ortogonais, que sigam uma Unidade atĂŠ certo ponto, em seguida abordem um segmento ou mĂłdulo de outra Unidade e assim por diante, conforme o roteiro que pareça mais conveniente ao professor na elaboração de seus planos de trabalho. A forma como a obra foi concebida procura exatamente assegurar essa plasticidade, que de resto faz jus ao carĂĄter dinâmico e variado que marca o ensino filosĂłfico. A alteração da ordem de utilização dos mĂłdulos e das Unidades nĂŁo compromete atingir as competĂŞncias visadas, uma vez que elas nĂŁo dependem de o educando completar uma coleção de opiniĂľes que começasse pelos gregos antigos atĂŠ chegar aos dias de hoje. No limite, cada mĂłdulo ĂŠ independente e nĂŁo pressupĂľe a leitura dos demais. De modo que o professor – ou o leitor em geral, numa leitura independente – pode fazer um plano de leitura que utilize o presente livro saltando de mĂłdulo em mĂłdulo de acordo com outros critĂŠrios que nĂŁo os que regeram a ordenação das Unidades. Vamos dar um ou dois exemplos de como ĂŠ possĂ­vel fazĂŞ-lo. Digamos que

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finito e o infinito, por exemplo, parece não haver medida comum. Todavia, a finitude foi e permanece sendo pensada por oposição à infinitude (recordemos, para mencionar o exemplo mais conhecido, da tradição do pensamento cristão, que tematizou a finitude humana por referência à infinitude de Deus). O mesmo vale, por exemplo, para a natureza e a cultura. AtÊ mesmo autores que situam cada uma delas em âmbitos irredutíveis (o que, aliås, não Ê regra geral) pensam uma por referência à outra, ainda que para concebê-las atravÊs de uma oposição. Assim, a própria oposição entre os conceitos apoia-se na correlação existente entre eles, que permanecem sendo pensados por referência mútua.

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você decidisse trabalhar um trimestre focado em temas ligados à filosofia política, começando pela filosofia antiga, passando pela Idade Moderna e terminando com questões contemporâneas. Consultando as tabelas de conteúdos e referências e o quadro sinótico de grandes áreas da filosofia – ambos localizados nos Apêndices –, você en-

contra os conteúdos abordados nos 55 módulos que compõem o livro. Pode, assim, optar por começar por Aristóteles, daí passar para Hobbes, Pascal, em seguida Marx, questões ligadas às formas totalitárias de governo e enfim comentar as características que norteiam o discurso argumentativo, como é o político.

Exemplo – uma possível abordagem modular de filosofia política: Autor (assunto)

Unidade

módulo

Aristóteles

Ordem e caos

A ordem política

Hobbes

Ordem e caos

A ordem política

Pascal

Natureza e cultura

“Grandezas naturais” e “grandezas estabelecidas”

Marx

Liberdade e necessidade

Necessidade natural e liberdade humana

Arendt

Eu e o Outro

O enigma do Eu e do Outro

(Retórica e argumentação) Lógica e argumentação

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Com esses recursos, você também pode elaborar planos pedagógicos que abordem diferentes questões que dizem respeito a um determinado período (digamos, a filosofia antiga) ou a um autor (digamos, Descartes). Ao fazê-lo, porém, é preciso atentar para o seguinte: os módulos que se encontram na parte final das Unidades tendem a ser mais complexos do que os iniciais. Contudo, se a turma for bem introduzida ao tema, nada impede que se aborde um módulo mais refinado sem ter trabalhado o módulo inicial antes.

Competências visadas Buscamos privilegiar, ao longo do desenvolvimento das Unidades, a atividade de leitura, análise e interpretação de trechos dos autores, visto nela residir a base para uma discussão orientada sobre os aspectos envolvidos pelos

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Racionalidade e emoção

conteúdos abordados. Pelos mesmos motivos, as Situações de aprendizagem privilegiam análise e interpretação de textos, de um lado, e a atividade dissertativa, de outro. Leitura e redação de textos são instrumentos essenciais para que o educando se torne mais preparado para elaborar um pensamento coerente, capaz de resistir ao debate e tirar dele todos os benefícios. A interpretação dos fatos ganha com o trabalho sobre os textos, pois estes últimos foram selecionados para aprofundar problemas ao alcance da curiosidade do educando. Além disso, aprofundar a familiaridade com a tradição que anima a reflexão filosófica e os problemas que ela levanta é requisito decisivo para a inserção refletida do educando no conjunto de discursos que circulam no mundo contemporâneo.

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áreas envolvidas na formação escolar. A valorização da disciplina da Filosofia na grade curricular do Ensino Médio passa pelo reconhecimento da pertinência de suas questões para as outras disciplinas.

Manual do Professor O Manual do Professor é pensado como recurso para a sala de aula e para a formação continuada do educador. Por isso, assinalamos a cada passo das Unidades tanto estratégias alternativas para abordagem dos conteúdos em sala de aula, quanto indicações de leitura que possibilitam ao educador aprofundar sua própria investigação nas questões discutidas no Livro do Aluno. Esse recurso oferece ao educador um arsenal de subsídios para elaborar seu planejamento escolar, conforme ênfases que julgar adequadas para sua experiência pedagógica particular. Como regra geral, a bibliografia sugerida é composta de títulos em língua portuguesa, sempre que possível em edições recentes e bem estabelecidas. São obras ao alcance do educador, que nelas poderá encontrar desenvolvimentos mais aprofundados para as questões levantadas em classe. Esse recurso tornará a utilização da obra em sala de aula uma oportunidade para o educador travar contato com questões até o momento pouco exploradas ou aprofundar problemas com relação aos quais já possui familiaridade. livro do professor

Interdisciplinaridade O desenvolvimento das Unidades aponta para questões e problemas abordados em outras disciplinas. Ora, isso não é fruto do acaso. A filosofia, como se sabe, foi concebida de início como um discurso envolvendo, dentre outros saberes, a física, as artes, a reflexão sobre a vida natural, a matemática, a linguagem e a vida em sociedade. Daí sua vocação interdisciplinar: por um longo período, ela não foi uma disciplina específica, mas uma reflexão mais ou menos sistemática sobre problemas relativos a âmbitos que só bem mais tarde se tornaram objeto de disciplinas particulares. A aproximação da filosofia por meio de temas facilita reaver a vocação interdisciplinar dos estudos filosóficos, que foi tão frutífera para a história do pensamento. Coerentemente, procuramos incorporar esse seu alcance interdisciplinar no interior das seções que compõem o livro. Dois objetivos didáticos foram perseguidos aí. Além de familiarizar o educando com o aspecto abrangente característico da reflexão filosófica, buscamos, sempre que possível, favorecer o debate com as demais disciplinas do Ensino Médio. Daí por que, em mais de uma ocasião ao longo do livro, a apresentação do problema em discussão busca estimular o contato tangível e adequado com as demais disciplinas do ciclo, promovendo uma interação qualificada entre as diversas

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Suplementos Ă s Unidades

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unidade

natureza e cultura Para um comentário breve, mas muito instrutivo sobre a leitura que Adorno e Horkheimer fizeram do canto das sereias, você pode consultar o artigo “Resistir às sereias”, escrito por Jeanne-Marie Gagnebin e publicado na Revista Cult, 72. O artigo pode ser acessado na página da revista na rede: • http://revistacult.uol.com.br/ home/2010/03/resistir-as-sereias/ Para uma introdução ao pensamento de T. Adorno e M. Horkheimer, veja: • Marcos Nobre, A teoria crítica. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004. • Rodrigo Duarte, Adorno/Horkheimer & Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2002. LITERATURA DE AVENTURA: ALGUMAS DICAS

Todo mundo sabe que Saint-Exupéry escreveu O

pequeno príncipe (1943). O que nem todos sabem é que ele também publicou outros livros, bem menos conheci-

dos, porém mais interessantes que a obra que o imortalizou. Aí vai a lista deles:

L’aviateur (O aviador), 1926

Courrier sud (Correio do Sul), 1929 Vol de nuit (Voo noturno), 1931

Terre des hommes (Terra dos homens), 1939 Pilote de guerre (Piloto de guerra), 1942

Lettre à un otage (Carta a um refém), 1943/1944

A obra de Jack London já é mais extensa. Listamos

abaixo apenas alguns títulos, os mais conhecidos, dis-

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poníveis em tradução para o português: A estrada (Boitempo, 2008)

Antes de Adão (L&PM, 1999)

A praga escarlate (Conrad, 2003) Caninos brancos (L&PM, 2004)

Chamado selvagem (Hemus, 2008)

O povo do abismo (Ed. Perseu Abramo, 2004) Tacão de ferro (Hemus, 2008)

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De Amyr Klink, destacamos três livros:

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Cem dias entre céu e mar (Cia. das Letras, 2005) Linha d’água (Cia. das Letras, 2006)

Mar sem fim (Cia. das Letras, 2000)

natureza e cultura

Você pode explorar a comparação sugerida aqui entre relatos de grandes aventureiros – como de Amyr Klink ou dos exploradores do Polo Norte – e a narrativa do episódio em que Odisseu (ou Ulisses, como também é chamado o herói de Homero) se amarra ao mastro do navio para resistir ao canto das sereias. O episódio relatado por Ulisses encontra-se no Canto XII da Odisseia. Há duas excelentes edições relativamente recentes: • Homero, Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011. • ____. Odisseia. Tradução de Christian Werner. São Paulo: Cosacnaify, 2014. Há também dois filmes inspirados no poema homérico: • Ulisses (direção de Mario Camerini. Itália: 1955) • A Odisseia (direção de Andrei Konchalosky. EUA, Reino Unido, Grécia, Itália, Alemanha: 1997), traz a cena em que Ulisses se depara com as sereias em seu retorno para Ítaca. Não se pode deixar de mencionar a famosa interpretação desse episódio, efetuada por T. W. Adorno e M. Horkheimer em sua obra conjunta, publicada pela primeira vez em 1947: • A dialética do esclarecimento (Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985). Conforme essa interpretação, o episódio de Ulisses representaria o preço que a humanidade teve de pagar para dominar a natureza: reprimir a si mesma, controlar-se, negar-se enquanto natureza.

Você poderá dizer: mas há tantas histórias assim... Os romances de Jack London (1876-1816), que narram as desventuras dos baleeiros singrando os mares por meses a fio; os relatos de Saint-Exupéry (1900-1944), que foi aviador no início do século XX e que sobrevoava os Andes sem instrumentos, em meio a tempestades... E nem é preciso restringir-se ao passado mais remoto. Mais recentemente, em 1984, Amyr Klink, velejador brasileiro, cruzou o Atlântico Sul a remo, em um barco de oito metros de comprimento, numa aventura fabulosa que imortalizou em seu livro Cem dias entre céu e mar. Como se isso não bastasse, construiu outro barco (um pouco maior, desta vez) e partiu em

direção à Antártida. De lá, cruzou o globo terrestre, até chegar ao extremo norte, no qual permaneceu por dois meses, inteiramente sozinho, com o barco cercado de gelo e neve. No degelo, voltou ao Brasil. Poderíamos buscar outros exemplos para engrossar esta lista de feitos extraordinários. Só que nosso intuito, aqui, é outro. Queremos instituir diferenças. Compare os casos mencionados acima, veja o que eles têm em comum uns com os outros, e no que diferem. Jack London e Saint-Exupéry, cada qual a seu modo, nos contam aventuras de homens que participaram de dois grandes empreendimentos econômicos: a pesca baleeira do fim do século XIX e o início da aviação na primeira metade do século XX. Claro que isso não diminui em nada as façanhas que retratam em seus textos. São acontecimentos extraordinários, sem dúvida. A diferença em relação aos dois homens que perderam a vida no Alasca está em que os heróis de Jack London e Saint-Exupéry integram empreendimentos que afirmam o poder dos seres humanos sobre a natureza. Esse também é o caso dos feitos de Amyr Klink. Basta abrir um de seus livros para constatar seu minucioso cuidado em antecipar os imprevistos, planejar alternativas, programar suas travessias, de modo a voltar vivo para poder contar sua história e lembrá-la entre nós. Amyr Klink tem algo do Ulisses da Odisseia, de Homero, que se amarrou ao mastro de seu navio para resistir ao canto enfeitiçado das sereias e, assim, retornar a Ítaca, sua cidade natal. Amyr Klink, ao modo de Saint-Exupéry, Jack London e tantos outros, prova que a espécie humana é capaz de um extraordinário vigor diante das forças da natureza. Já Timothy Treadwell e Christopher McCandless, com cujos exemplos começamos este módulo, parecem ter atendido outra vocação. Não que quisessem perder suas vidas; mas talvez a tenham perdido por terem pouco a pouco esticado a corda até romper o

O naufrágio de Robinson Crusoé página 27, Situação de aprendizagem Se você avaliar que isto é pertinente, pode-se desenvolver uma comparação entre o ponto abordado aqui e os conteúdos apresentados na Unidade Ordem e caos. Os estudos de ecologia demonstram que a afirmação do homem sobre a natureza pode acabar se revelando um elemento desordenador de nosso planeta. A imposição da ordem humana sobre o meio torna-se, assim, princípio de desordem. Veja, também a esse propósito, a exposievitadas se os fins buscados por nossa civilização fossem reconsiderados à luz do que se designa um “desenvolvimento sustentável”. Muito antes deles, mais de um filósofo assinalou que, a depender de como é exercida, a afirmação do ser humano sobre a natureza pode ser prejudicial à natureza de que também é feito o próprio ser humano. As conclusões acima dizem respeito a um primeiro grupo de reflexões levantado pelo nosso tema. Mas examinamos um segundo ponto importante. Vimos também que há maneiras diferentes de os agrupamentos humanos se afirmarem sobre a natureza. O romance de Daniel Defoe nos dá um exemplo disso: Crusoé e Sexta-Feira são portadores de culturas muito diversas entre si. Ocorre que Sexta-Feira se adapta completamente ao modo de vida de Crusoé. Mas lembremos que se trata de um romance, cuja narrativa corresponde ao relato pessoal de Crusoé. O romancista decidiu não dar voz própria a Sexta-Feira.

Os desafios da ecologia

Desenvolvimento individual por escrito • Por meio de consulta à impren-

sa, apresente, em um pequeno texto de aproximadamente uma página, um caso em que a afirmação da humanidade sobre a natureza representa um risco de dano ou mesmo de extinção da natureza. Em seguida, em um parágrafo separado, exponha o que seria, do seu ponto de vista, uma afirmação da humanidade sobre a natureza capaz de modificá-la, sem, todavia, destruí-la. Como conclusão, compare o ponto de vista elaborado por você com o conceito de “desenvolvimento sustentável”, cujo significado você poderá pesquisar em livros, revistas e na internet.

The Asahi Shimbun/Getty Images

O limite entre dois universos

natureza e cultura

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Nesta imagem aérea, vê-se a cerca para conter o vazamento de asfalto ocorrido na refinaria localizada em Ichihara, Chiba, no Japão, em junho de 2012.

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A diversidade das culturas

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É fácil constatar que o homem se coloca face à natureza em função de sua cultura. No entanto, o universo da cultura é diversificado e multifacetado. Não há uma única cultura, mas um conjunto delas. Dito de outro modo, os homens de diferentes culturas (por exemplo, o europeu moderno e o ameríndio) se afirmam frente à natureza segundo diferentes formas de vida. É a situação exemplificada pelo romance de Daniel Defoe, Robinson Crusoé. Vivendo sozinho em uma ilha, o protagonista do livro termina encontrando um nativo, ao qual dá o nome de “Sexta-Feira”. Crusoé logo se dá a tarefa de “civilizar” Sexta-Feira. No romance, tudo se passa como se Sexta-Feira não pertencesse a nenhuma cultura, nem integrasse universo algum de simbolização antes de se deparar com Crusoé. Sexta-Feira aparece no livro como o representante de uma natureza em estado bruto, que Crusoé moldará conforme seus próprios valores. Como se Crusoé representasse o polo da cultura e Sexta-Feira, o da natureza. Ocorre que, como informa o próprio romance, Sexta-Feira também pertencia a um agrupamento social do qual se desgarrou antes de se deparar com Crusoé. O encontro entre eles, portanto, equivale ao confronto entre duas culturas diversas e não entre a cultura, de um lado, e a natureza, de outro. Isso nos leva diretamente ao ponto que nos interessa examinar agora. Esse ponto é, primeiro, a diversidade das culturas. Mas é também nossa atitude em

natureza e cultura

De acordo com o antropólogo Lévi-Strauss, a diversidade de cultura atua no interior de duas coordenadas. As culturas distinguem-se tanto no espaço quanto no tempo. Isso porque há culturas diversas que são contemporâneas entre si, assim como há culturas que são diversas porque sua existência transcorreu em momentos diferentes da história humana.

“Para compreender como, e em que medida, as culturas humanas diferem entre si, se tais diferenças se anulam ou se contradizem, ou se contribuem para formar um conjunto harmonioso, é preciso inicialmente inventariá-las. Mas aqui começam as dificuldades, pois é forçoso reconhecer que as culturas humanas não diferem umas das outras do mesmo modo, nem no mesmo plano. Inicialmente estamos diante de sociedades justapostas no espaço, umas próximas, outras distantes, mas todas contemporâneas. Em seguida, devemos contar com formas da vida social que se sucederam no tempo, e que nos é vedado conhecer por experiência direta. Qualquer pessoa pode se transformar em etnógrafo e ir compartilhar in loco a existência de uma sociedade que lhe interesse. Contudo, ainda que se torne historiador ou arqueólogo, jamais entrará diretamente em contato com uma civilização extinta, mas somente através dos documentos escritos ou monumentos figurados que essa sociedade – ou

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Crusoé opera com uma noção etnocêntrica de cultura. Tal noção só reconhece como válida a sua própria forma de se afirmar sobre a natureza. Ora, por que um modo de afirmação do homem sobre a natureza tem de se impor às demais culturas, como se fosse a “verdadeira” cultura?

relação a esse mesmo fenômeno. Como lidamos com o fato de que outros agrupamentos humanos possam se pautar por valores tão diversos dos nossos? O romance de Defoe, por exemplo, revela que a diversidade cultural muitas vezes não foi admitida pelos integrantes de uma cultura, especialmente quando esta pretende ser a única civilização autêntica, verdadeira. Crusoé está tão preso a essa convicção que chega a crer que, sem seu auxílio, Sexta-Feira não desenvolve-

O saque de Roma pelos visigodos em 410 d.C. foi visto como um golpe no centro da civilização clássica.

in: Antropologia estrutural – Volume 2, pp. 357-399. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 359-360)

página 30 O debate em torno das relações entre “gregos” e “não-gregos”, no qual ganham relevância os “bárbaros”, é muito antigo, e atravessa vários períodos do pensamento político e filosófico grego. Uma fonte importante corresponde ao texto do sofista grego antigo Antifonte, “Sobre a verdade”, do qual dispomos de tradução em português (feita por Paulo Pinheiro), incluída na obra de Barbara Cassin, O efeito sofístico. Tradução: Ana L. De Oliveira e Maria C. F. Ferraz. São Paulo: Editora 34, 2005. A filosofia e a antropologia

Desenvolvimento individual por escrito

mente diferentes daqueles que nos

A antropologia apresenta-nos estu-

habituamos a considerar “naturais”. Recorrendo à biblioteca e à internet,

dos de culturas e modos de vida muito diversos do nosso. As relações entre a antropologia e a filosofia, por isso, são

identifique dois exemplos de estudo antropológico. Em seguida, escolha um deles e desenvolva um texto de

inúmeras. Vários estudos antropológicos possuem interesse filosófico.

aproximadamente uma página, apresentando as características principais

A história da antropologia está cheia de estudos de casos muito interessantes, exatamente porque nos

da cultura que foi objeto da investigação antropológica (localização geográfica, população, tipo de organização

colocam diante de modos de vida pautados por hábitos e costumes radical-

social, forma de relação com o meio, religião, instituições, etc.)

-Strauss, esse tipo de reação exprime uma completa incompreensão em relação a modos de vida, de crença ou pensamento que nos sejam estranhos. O que chama a atenção é o fato de que isso não é de hoje. Na Antiguidade, recorda-nos Lévi-Strauss, tudo o que não era grego era designado pejorativamente pelos gregos como “bárbaro”. Do ponto de vista etimológico, “bárbaro” provavelmente se refere ao canto dos pássaros – mas não no sentido de enaltecer sua beleza. Antes, “bárbaro” originariamente se

referia ao fato de que os pássaros emitem sons desarticulados, confusos, por oposição ao “valor significante da linguagem humana”. Como acrescenta Lévi-Strauss,

Leitura recomendada

livro do professor

Isso nos leva a outra conclusão, relativa não mais à oposição geral entre natureza e cultura. Trata-se, agora, da questão representada pelo contato e embate entre as diferentes culturas. Você verá que, ao tomar Sexta-Feira como um indivíduo destituído de civilização própria, a ser “civilizado”,

Claude Lévi-Strauss, “Raça e história”, in: Antropologia estrutural – Volume 2. Tradução: Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Cosacnaify, 2013, pp. 357-399.

OS SENTIDOS DA PALAVRA “BÁRBARO”

natureza e cultura

A diversidade das culturas

outras – tiver deixado a seu respeito. Enfim, não devemos esquecer que as sociedades contemporâneas que desconhecem a escrita, como as que chamamos de ‘selvagens’ ou ‘primitivas’, também foram precedidas por outras formas, praticamente impossíveis de conhecer, mesmo de maneira indireta; um inventário consciencioso deve-lhes reservar casas em branco, certamente muitíssimo mais numerosas do que as casas em que nos sentimos capazes de inscrever algo. Impõe-se uma primeira constatação: a diversidade das culturas humanas é, de fato no presente e de direito no passado, muito maior e mais rica do que jamais nos será dado conhecer.” (Lévi-Strauss, “Raça e história”, Joseph-Noël Sylvestre (1847-1926), óleo sb/ tela, 1890. Museu Paul Valéry, Sète. Foto: Jdsteakley

ção resumida sobre a palavra cultura na Unidade Ordem e caos (p. 259).

“Bárbaro” é uma palavra de origem grega,

dos indivíduos que não pertencem a ela.

por meio da qual os gregos da Antiguidade

O termo “barbarismo” designa o uso deli-

designavam aqueles que não eram gregos,

berado de palavras estrangeiras. Quando,

isto é, os estrangeiros. Ao mesmo tempo, a

por exemplo, digo que vou pegar minha

palavra “barbárie” costuma ser utilizada em

“bike”, isso caracteriza um barbarismo ou

oposição à “civilização”. Juntando as duas

estrangeirismo. Discute-se muito se a pro-

coisas, seríamos conduzidos à conclusão de

liferação de barbarismos (isto é, de pala-

que o “estrangeiro” é o “não-civilizado”.

vras estrangeiras) é ou não prejudicial à

Toda questão recai, como se vê, sobre

a relação que uma cultura assume diante

língua nacional.

O que você pensa a respeito?

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direitos. Dito de outro modo, foi se consolidando a noção de que haveria uma universalidade que engloba a todos nós, apesar das particularidades que nos diferenciam individualmente. Essa convicção está na base não apenas da Declaração dos direitos do homem e do cidadão, proclamada pelos revolucionários franceses de 1789, que citamos em seguida no Livro do Aluno, como também das doutrinas abolicionistas que floresceram no curso do século XIX. No Brasil, o mais importante representante desta corrente foi Joaquim Nabuco (1849-1910), cujo livro O abolicionismo (1883) teve grande importância no debate que culminou com a abolição da escravidão em 1888. A seguir, você irá encontrar pequenos trechos de pensadores diversos, que giram todos em torno da questão mencionada aqui – a construção lenta e progressiva do discurso sobre os direitos do homem. Esse material é um recurso à mão para promover situações de aprendizagem em aula. Uma sugestão é a de ressaltar, com base nestas passagens, a distinção (e, por vezes, o eventual conflito) entre a pretendida universalidade dos direitos humanos e a particularidade da situação efetiva em que os seres humanos se encontram (categoria social, diversidade cultural, diferença de credo etc.).

As posições de Antifonte são apresentadas por Barbara Cassin no segundo capítulo da obra citada, intitulado: “Como a política é uma questão de lógos” (O efeito sofístico, op. cit., pp. 65-75). De acordo com Cassin, Antifonte sustentou que a diferença existente entre “gregos” e “bárbaros” não possui um fundamento natural, mas um fundamento cultural. Antifonte, sob esse aspecto, seria um dos primeiros pensadores a recusar as formas de “etnocentrismo”, contra o qual se pronuncia Claude Lévi-Strauss em “Raça e história”.

A ideia de “natureza humana” O processo de construção da doutrina dos direitos humanos é complexo e diz respeito a um amplo âmbito de investigação, que se estende dos estudos ligados à história das ideias até a filosofia política, passando pela reflexão e pela doutrina jurídica. Um momento sem dúvida decisivo nessa história é o século XVIII, quando, na Europa ocidental, filósofos, juristas, intelectuais e políticos aprofundaram elementos das doutrinas jusnaturalistas dos séculos XVI e XVII (jusnaturalista: relativo ao “direito natural” – do latim jus, Direito; justiça; legislação + natura, natureza), que já se baseavam na ideia de um direito natural comum a todos os seres humanos (Jean Bodin, Thomas Hobbes, Grotius, John Locke). No curso dessa reflexão, tecida ao longo do século XVIII no assim chamado Iluminismo, foi se consolidando a ideia de que os seres humanos, independentemente da condição social concreta em que se encontram, dispõem, todos, dos mesmos

“selvagem” vai na mesma direção, pois evoca “selva”, referindo-se à vida animal, em contraste com a cultura dos humanos. Nos dois casos, conclui Lévi-Strauss, é recusada a diversidade cultural. Joga-se para fora do âmbito da cultura, empurra-se para o âmbito natural tudo aquilo que não é considerado “normal”. Graças às contribuições da antropologia e da etnografia ao longo do século XX (muitas das quais devemos à obra de Lévi-Strauss), as ciências humanas têm se mostrado muito críticas diante de mentalidades e comportamentos etnocêntricos. Hoje em dia, a ideia de que povos ou simplesmente grupos humanos que se orientam por valores diferentes dos nossos sejam “primitivos” ou “bárbaros” pode até vir à tona na retórica de extremistas e xenófobos, mas, de maneira geral, discursos dessa ordem já não são respaldados, como foram outrora, por teorias ditas “científicas”.

Barbaridades, bárbaros e barbarismos

Desenvolvimento individual por escrito

• Desenvolva um pequeno texto, de aproximadamente uma página,

fornecendo exemplos de barbarismo idiomático e expondo seu ponto de vista sobre esse assunto. Não perca de vista que, por trás dessa discussão, o que está em jogo é a relação entre culturas diversas.

O fato é que uma questão tão complexa e instigante como a da diversidade das culturas sempre traz desafios para a reflexão filosófica.

A ideia de “natureza humana”

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Diferentes sociedades humanas instituem modos diversos de se relacionar com a natureza. Dizemos então que pertencem a culturas diferentes. Há, de outro lado, valores considerados universais, como os direitos humanos, que não estariam restritos a essa ou aquela cultura. Os direitos humanos supõem como válida a premissa de que, sob certos aspectos, todos nós – mulheres, homens, sul-americanos, asiáticos, europeus, hindus, tupis, guaranis, protestantes, muçulmanos, católicos, umbandistas etc. – sejamos iguais ao menos sob um aspecto. A argumentação em prol dos direitos humanos afirma que, apesar de todas as diferenças culturais que pesem sobre os indivíduos, somos todos igualmente sujeitos possuindo certos direitos inalienáveis, que dizem respeito à condição humana indistintamente, isto é, sem distinção de raça, sexo, cultura ou classe social.

“O primeiro estado que o homem adquire pela natureza, e que se estima o mais precioso de todos os bens que possa possuir, é o estado de liberdade; ele não pode nem trocar-se por outro nem vender-se nem perder-se; pois, naturalmente, todos os homens nascem livres, ou seja, não são submetidos ao poder de um senhor, e ninguém possui sobre eles um di-

O tema dos direitos do homem ou direitos humanos surgiu na cena da política mundial ao longo do século XVIII, no movimento de ideias chamado “Iluminismo”, “Esclarecimento” ou “Filosofia das Luzes”. Foram pensadores iluministas que deram origem ao tipo de discurso político e à base filosófico-jurídica para a Revolução Francesa, de 1789. Veja você mesmo o texto de apresentação e os dois primeiros artigos da Declaração dos direitos do homem, proclamada pela Assembleia nacional francesa, em 1789, no contexto da revolução que derrubou o Antigo Regime: “Os representantes do povo francês, constituídos como Assembleia nacional, considerando que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das desgraças públicas e da corrupção

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verbete “Comércio de negros”, redigido por Louis de Jaucourt para a Enciclopédia, organizada por Denis Diderot e Claude D’Alembert e publicada entre 1751 e 1772. Verbete publicado em 1766. Tradução nossa. Edição de referência: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents, op. cit., p. 44)

• “Art. 1: Que todos os homens nasceram igualmente livres e independentes, e que possuem certos direitos inerentes dos quais não podem, quando ingressam no esta-

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página 32 Uma sugestão: discuta com os estudantes a diferença entre o significado geral de natureza e o significado específico, antropológico, ligado à ideia de natureza humana. Faça-os notar que são duas acepções muito diferentes de um único termo, o de “natureza”. A começar porque o significado antropológico não requer (embora possa até admitir) fundamentos naturalistas, como é o caso da “natureza” em sua acepção geral. Veja: é perfeitamente possível reivindicar que a ideia de “humanidade” seja legítima sem que tenhamos de buscar respaldo em argumentos de caráter científico, empírico ou fatual. Isso porque o discurso em prol da “humanidade” – e, por extensão, dos “direitos humanos” – é, antes de tudo, uma construção de caráter político-social. Por isso, a “humanidade” ou “natureza humana” aí em pauta não envolve um fato a ser demonstrado pela ciência (p. ex.: “Observa-se isto e aquilo na natureza, portanto...”), consistindo antes em uma ideia e um princípio de ordem ético-política dos governos, decidiram expor, em uma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que esta declaração, constantemente apresentada a todos os membros do corpo social, lhes recorde incessantemente seus direitos e deveres; a fim de que os atos do poder legislativo e os do poder executivo, podendo ser a todo instante comparados com o objetivo de toda instituição política, sejam a ele mais conformes; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante sobre princípios simples e incontestáveis, se direcionem sempre para a conservação da Constituição e da felicidade de todos. Em consequência, a Assembleia nacional reconhece e declara, em presença e sob os auspícios do Ser supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão. Artigo 1º: Os homens nascem livres e permanecem livres e iguais em direito. As distinções sociais só podem se fundar sobre a utilidade comum. Art. 2º: O objetivo de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis [isto é, que não prescrevem, permanentemente válidos] do homem. Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” (Declaração dos direitos do homem e do cidadão, de 26 de agosto de 1789. Tradução nossa. Edição de referência: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents. Paris: Larousse, 1989, pp. 75-76)

Podemos, com base no que foi dito, formar uma noção do que está em jogo. Vamos considerar três pontos. Primeiramente, podemos dizer que a cultura é a expressão de uma afirmação do homem sobre a natureza. Mas há inúmeros modos de fazê-lo, vale dizer: o ser humano se caracteriza pela diversidade de culturas. Mas como a existência de diversas culturas se articula com o

Sala do picadeiro, na qual se reuniu a Assembleia Constituinte francesa a partir de novembro de 1789.

conceito de humanidade, do qual depende a questão dos direitos humanos? Você já deve ter se dado conta do seguinte: a argumentação que defende a ideia dos direitos humanos supõe que a humanidade possua uma realidade em si, independente das diferenças entre as culturas. Supõe-se que há uma “natureza humana” que atravessa todas as culturas, abrigando sob si os indivíduos de todos os povos e nações da Terra. Segundo esse ponto de vista, embora diferentes em seus costumes e hábitos, sob um aspecto decisivo os seres humanos pertencem todos a uma mesma categoria, designada pelo termo abstrato “humanidade”. O resultado disso, podemos resumi-lo assim: em seu significado mais geral, a natureza se opõe à cultura; no entanto, como que em resposta às diferenças entre os indivíduos e à diversidade de culturas, postulou-se como válido um outro significado para “natureza”, a saber, o de uma natureza humana, que abarca todos os seres humanos, independentemente da cultura a que pertencem, do credo que professam ou da condição social em que se encontram.

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• “Comércio de negros (Comércio de África). Consiste na compra de negros que é feita por europeus nas costas da África, para utilizar estes infelizes em suas colônias na condição de escravos. Essa compra de negros, para reduzi-los à escravidão, é um negócio que viola a religião, a moral, as leis naturais, e todos os direitos da natureza humana. [...] Se um comércio desse gênero puder ser justificado por um princípio moral, não há mais crime, por atroz que possa ser, que não se possa então legitimar. Os reis, os príncipes, os magistrados não são os proprietários de seus súditos e não se encontram, portanto, no direito de dispor de sua liberdade e de vendê-los como escravos.” (Extraído do

meiro dos Direitos da “Declaração dos Direitos da Virgínia”, 12 de junho de 1776. Tradução nossa. Edição de referência: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents, op. cit., 1989, p. 70)

M. L. Joseph, L’Assemblée législative. Museu Carnavalet, Paris

verbete “Liberdade natural”, redigido por Louis de Jaucourt para a Enciclopédia, organizada por Denis Diderot e Claude D’Alembert entre 1751 e 1772. O verbete citado data de 1766. Tradução nossa. Edição de referência: A. Monchablon [org.] L’esprit de 1789 et les droits de l’homme. Textes et documents. Paris: Larousse, 1989, p. 37)

do social, privar nem despojar sua posteridade por nenhum contrato; a saber, o direito de gozar da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir os bens e de buscar obter a felicidade e a segurança.” (Pri-

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reito de propriedade” (Extraído do

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página 33 Este texto integra a única, mas monumental obra de Montaigne, Ensaios. Esta obra teve três edições importantes no século XVI: 1588; 1589; 1595. Há diferenças e variantes entre essas três edições. Hoje em dia, a edição mais utilizada e de maior prestígio é aquela que foi organizada pelo estudioso francês Pierre Villey e publicada pela primeira vez em 1930. Há três traduções brasileiras dos Ensaios de Montaigne que recomendamos. A primeira delas é de Sérgio Milliet, publicada na Coleção Os Pensadores, da Abril Cultural. A outra, mais recente, é de Rosemary Costhek Abílio e saiu pela Martins Fontes, em 2000; conta com a totalidade dos Ensaios (à diferença das outras edições aqui indicadas, que são seleções). A terceira tradução é a de Rosa F. D’Aguiar, pela Penguin/Companhia das Letras (2010). Todas são de leitura proveitosa. A edição da Martins Fontes traz um aparato crítico mais completo, incluindo a “Nota” de P. Villey à edição dos Ensaios organizada e publicada por ele em 1930. A edição da Penguin/Companhia das Letras inclui a apresentação do texto de Montaigne por Erich Auerbach (1892-1957), importante filólogo e crítico literário alemão.

Dirigindo nossa atenção para a história das ideias, constatamos que o postulado universalista na base da convicção de que a humanidade abarca todos os seres humanos é quase tão antigo quanto as doutrinas que buscaram separar os indivíduos entre “homens” e “bárbaros”. Se, por um lado, a civilização greco-romana destituía da plena condição de humanidade uma parte considerável dos seres humanos (escravos, mulheres, estrangeiros, crianças), de outro lado, concepções ligadas a grandes religiões, como o budismo, o cristianismo e o islamismo, por exemplo, já professavam, bem antes dos tempos modernos, que todos os seres humanos se encontram sob uma mesma idêntica condição. Essas duas tendências opostas coexistiram de forma mais ou menos conflituosa. Desde seus primórdios, por exemplo, o pensamento ligado ao cristianismo buscou definir como sua comunidade todas as pessoas que tivessem sido batizadas. Ao contrário de certas concepções mais tradicionalistas do judaísmo, que apregoam uma linhagem genealógica para seus membros, todo e qualquer homem ou mulher que aceitasse os seus preceitos podia se tornar um membro da comunidade cristã. Aliás, o termo “católico” vem do grego katholikós, que quer dizer “geral”, “universal”, “que vale para todos”. No entanto, durante a Idade Média europeia, muitos judeus, embora tivessem suas vidas poupadas, foram destituídos dos direitos de que gozavam os cristãos. Assim também, nas cruzadas dos sécu-

los XI a XIII, os Estados e a Igreja católica postularam a retomada de Jerusalém das mãos daqueles a quem chamavam de “infiéis”, dessa forma “demonizados” pelos europeus que os foram combater. Com a expansão marítima e o contato dos europeus com os povos ameríndios, a partir do século XVI, a questão foi recolocada. Diante das civilizações pré-colombianas ou das nações indígenas da América e da Oceania, cuja organização, religião e mentalidade eram tão diferentes das concepções dos colonizadores, as questões em torno desse tema ganharam um novo impulso. Como reporta o antropólogo Claude Lévi-Strauss[+], as incertezas e perplexidades trazidas pelo contato de culturas tão diversas eram percebidas de um lado e de outro. No século XVI, por exemplo, os espanhóis formaram comissões para determinar se os povos que habitavam as Antilhas tinham ou não alma. Por sua vez, e na mesma época, indígenas imergiam brancos capturados por longo período, a fim de descobrir se seus corpos se putrefaziam ou não. Era mesmo de se esperar que a época dos “grandes descobrimentos” instigasse muitos a examinar o significado e a extensão do conceito de humanidade. Mas talvez fosse menos previsível outro desdobramento desse mesmo fenômeno. Os “descobrimentos” conduziram pensadores europeus a relativizarem e questionarem o conceito de “civilização” forjado na própria Europa – realizando, desse modo, uma espécie de autocrítica.

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Nos tempos que se seguiram aos grandes “descobrimentos”, surge na Europa uma reflexão autocrítica que relativiza a noção de que os europeus fossem, afinal, tão “civilizados” como há tanto era comum afirmar-se. Exemplo disso encontramos em um ensaio de Michel de Mon-

taigne (1533-1592), que traz o sugestivo título “Dos canibais”. Há uma curiosidade em torno deste ensaio. Montaigne discorre sobre os nativos trazidos do sul do Brasil para a França, numa expedição comandada por Nicolas D. de Villegagnon em 1557. O ensaísta

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O ensaio de Montaigne sobre os canibais também admite ser comentado

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© Daderot [CC0], via Wikimedia Commons

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como ocasião na qual a reflexão filosófica e o curso da história humana exibem uma articulação evidente, pois a reflexão desenvolvida por Montaigne nesse ensaio, embora pautada por uma orientação cética inspirada em suas leituras do ceticismo antigo (veja sobre isso o boxe “O neopirronismo de Oswaldo Porchat”, na Unidade Dúvida e certeza), está inequivocamente associada ao fenômeno dos grandes descobrimentos, que marcou a consciência europeia do século XVI. A leitura do ensaio, por isso, é propícia para apontar de que maneira o pensamento europeu assimilou a descoberta de que existiam culturas muito diversas da sua. Após ressaltar esse aspecto, você pode, eventualmente, aprofundar o debate em torno do fenômeno da diversidade de culturas, instigando os estudantes a refletir sobre a atualidade das questões levantadas anteriormente. Várias possibilidades se apresentam aqui. Por exemplo: se, para Montaigne e seus contemporâneos, os desafios em torno da diversidade de culturas foram trazidos à ordem do dia por conta dos grandes descobrimentos, quais são, nos dias de hoje, os acontecimentos e fenômenos que exigem repensar essa diversidade e os problemas que ela implica? Nessa direção, é interessante explorar o nexo entre as questões que estamos examinando aqui e o debate em torno do “multiculturalismo”, que ganhou relevo nos anos 1980 e permanece muito atual. Da mesma forma, também é interessante propor uma reflexão sobre o tema da diversidade de culturas a partir de textos do noticiário sobre toda sorte de conflitos entre Arte... “primitiva”? Figura antropozoo-

morfa Malagan, coleção Papua, Nova

Guiné (Museu de Etnografia, Estocolmo, Suécia).

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que tiveram larga difusão a partir do Iluminismo europeu do século XVIII.

Em vista disso, o fato de que Montaigne enalteça o “natural” e o “primitivo” adquire outro sentido. Seu intuito parece ser menos o de idealizar a “natureza” – como quem propusesse abandonar a civilização para retornar àquela natureza ideal – do que o de advertir seus semelhantes para a observação de que, na verdade, a “civilização” é atravessada por inúmeras barbáries. Pois, como nos diz Montaigne no fim do ensaio, é no mundo dito “civilizado” que prevalece a avareza, a inveja; é nele que se pratica a tortura e se queimam vivos em praça pública, todos aqueles que forem considerados hereges, “bruxas”, “anormais”. Ao recordar práticas tão atrozes e ao mesmo tempo tão familiares a seus semelhantes europeus, Montaigne sugere-lhes que é preciso rever e alterar seus princípios. A referência aos canibais do

Novo Mundo tem por objetivo despertar a consciência crítica não dos ameríndios, mas dos próprios europeus, contemporâneos de Montaigne. Afinal de contas, ele escreve e destina seus ensaios para leitores com os quais partilha língua, valores, práticas e princípios. Logo, a referência a outras culturas como a dos povos ameríndios, com seus costumes e práticas tão “exóticos” à primeira vista, tem por propósito relativizar as “verdades” e “certezas” de sua própria cultura. A filosofia se investe, desse modo, de alcance questionador e crítico. Montaigne propôs sua reflexão filosófica como um instrumento para auxiliar a compreender melhor a cultura a que pertencia. Tendo em mente o ensaio de Montaigne sobre os canibais, podemos concluir que a referência ao Outro (no caso, a outra cultura, diversa da nossa) pode ser um instrumento valioso para medir, criticar e transformar nossas próprias certezas e “verdades”. Nessa direção, é interessante ressaltar o uso dialético que Montaigne faz do par “natureza × cultura”. Afinal, como mostrou nossa análise de texto, Montaigne recorre a um significado de “natureza” para criticar a cultura a que ele mesmo pertence. Desse modo, ele inaugura (ao menos nos tempos modernos) um tipo de crítica da cultura que terá desdobramentos significativos em pelo menos dois momentos do pensamento filosófico moderno. O primeiro é o Iluminismo do século XVIII. O segundo, na assim chamada “Escola de Frankfurt”, do século XX, a linha de pensamento crítico em que se inscreve o livro de Theodor Adorno e Max Horkheimer, A dialética do esclarecimento, publicado originalmente em 1947 (tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985). O ensaio de Montaigne antecipa elementos decisivos da crítica ao “etnocentrismo”, como, por exemplo, o do europeu Robinson Crusoé que busca “civilizar” o nativo Sexta-Feira no romance de Daniel Defoe.

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“Grandezas naturaisâ€? e “grandezas estabelecidasâ€? pĂĄgina 39 Uma Ăłtima forma de trabalhar em aula as relaçþes entre natureza e cultura ĂŠ ler e analisar um pequeno texto de Blaise Pascal (1623-1662) que constitui o segundo dos “TrĂŞs discursos sobre a condição dos poderososâ€?. Esses discursos foram reunidos por AndrĂŠ Comte-Sponville em 1992 e traduzidos para o portuguĂŞs por Paulo Neves (veja-se o volume de Blaise Pascal, Pensamentos sobre a polĂ­tica. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 1994). Na realidade, a redação dos “Discursosâ€? tal como chegou a nĂłs nĂŁo ĂŠ de Pascal, mas se deve a seu amigo Pierre Nicole, que os presenciou na ocasiĂŁo em que Pascal os proferiu para um futuro mem-

bro da corte francesa. Acredita-se que o destinatĂĄrio do texto tenha sido o Duque de Luynes, futuro duque de Chevreuse. As passagens utilizadas no exercĂ­cio de leitura e anĂĄlise proposto a seguir constituem quase todo o “Segundo Discursoâ€? de Pascal. Omitimos apenas o Ăşltimo parĂĄgrafo. Recomendamos que vocĂŞ consulte – eventualmente os alunos tambĂŠm – o volume indicado da editora Martins Fontes, pois este fornece a tradução de diversos pensamentos de Pascal sobre polĂ­tica. A articulação entre o ensaio de Montaigne sobre os canibais (abordado noutro mĂłdulo desta Unidade) e o “Segundo discurso aos poderososâ€?, de Pascal, reside em que este Ăşltimo aprofunda o alcance crĂ­tico da oposição entre natureza e cultura. Tal ĂŠ o elemento de ligação entre os dois textos e, por isso, ĂŠ sobre ele que apoiamos nossa apresentação e interpretação de Pascal. Note de partida que Pascal nĂŁo utiliza o termo “culturaâ€?. Apesar disso, podemos decerto assimilar o significado das “grandezas estabelecidasâ€?, de que nos fala seu texto, a instituiçþes de ordem cultural. Logo, a distinção entre “grandezas naturaisâ€? e “grandezas estabelecidasâ€? pode ser tomada como a interpretação que Pascal faz da oposição geral entre natureza e cultura. Por outro lado, a questĂŁo da cultura, tal como estĂĄ presente no “Discursoâ€? de Pascal, ĂŠ indissociĂĄvel da polĂ­tica.

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culturas diversas – como ĂŠ o caso dos grupos urbanos (significativamente denominados como “tribos urbanasâ€?) ou, em uma escala mais ampla, das relaçþes entre Ocidente e Oriente. Isso sem esquecer, ĂŠ claro, das questĂľes levantadas pela permanĂŞncia de povos indĂ­genas no Brasil, o que motiva grande interesse. Todos esses eventuais desdobramentos favorecem o debate entre a filosofia e a antropologia, cujas noçþes elementares certamente serĂŁo apresentadas ao estudante na disciplina de Sociologia. Para o multiculturalismo, a referĂŞncia central ĂŠ a obra do canadense Charles Taylor (1931 - ). Um livro cuja consulta constitui boa introdução ao tema ĂŠ: C. Taylor, Multiculturalismo. Tradução: M. Machado. Lisboa: Instituto Piaget, s/d.

No pensamento filosĂłfico moderno, o acreditaram, com razĂŁo, ser preciso par natureza/cultura ĂŠ utilizado como honrar certas condiçþes e associar a instrumento de crĂ­tica da civilização. O elas determinados respeitos. SĂŁo desensaĂ­sta Michel de Montaigne, no sĂŠculo se gĂŞnero os tĂ­tulos e a nobreza. Num XVI, faz referĂŞncia Ă diversidade de culpaĂ­s, honram-se os nobres; noutro, os turas a fim de chamar a plebeus; neste aqui, os atenção de seus pares euanciĂŁos; naquele ouropeus sobre os valores e tro, os jovens. E isso costumes de sua prĂłpria por quĂŞ? Porque assim cultura. Ele chega a afirquiseram os homens. “Se o senhor fosse mar que, por estarem A coisa era indiferente duque sem ser mais prĂłximos da natuantes da convenção: homem honesto, [...] reza, os “selvagensâ€? posdepois dela, ela se torsuem hĂĄbitos e costumes na justa, porque ĂŠ ineu nĂŁo deixaria de mais puros do que aquejusto transtornĂĄ-la. nutrir pelo senhor les da cultura ocidental. As grandezas natuo desprezo interior Montaigne nĂŁo foi o rais sĂŁo aquelas indeĂşnico a empregar o par pendentes da fantasia devido Ă sua baixeza conceitual natureza/culdos homens, porque de espĂ­rito.â€? tura com intuitos crĂ­ticos. consistem em qualiEncontramos um exemdades reais ou efetivas plo semelhante na obra da alma ou do corpo, de Blaise Pascal (1623que tornam este e 1662), filĂłsofo francĂŞs muito importante aquela mais dignos de estima, como as do sĂŠculo XVII. Vamos, abaixo, nos deter ciĂŞncias, a luz do espĂ­rito, a virtude, a sobre um discurso de Pascal, intitulado saĂşde, a força. “Segundo discurso aos poderososâ€?, publicaDevemos algo a uma e a outra desdo pela primeira vez em 1662. Nele, Pascal sas grandezas; mas, como elas sĂŁo de retoma o par natureza e cultura sob a dinatureza diferente, assim tambĂŠm ferença entre “grandezas naturaisâ€? e “granlhes devemos respeitos diferentes. dezas estabelecidasâ€?. Essa conceituação de Ă€s grandezas estabelecidas, nĂłs Pascal proporciona Ă oposição natureza/ devemos respeitos de estabelecicultura um alcance polĂ­tico. Eis o texto: mento, ou seja, determinadas cerimĂ´nias exteriores que, entretanto, â€œĂ‰ bom que saiba, senhor, o que lhe devem ser acompanhadas, de acordo ĂŠ devido, de modo que nĂŁo queira exicom a razĂŁo, de um reconhecimento gir dos homens aquilo que nĂŁo lhe ĂŠ de interior de que essa ordem ĂŠ justa, direito; pois isto ĂŠ uma evidente injussem que nos levem a conceber altiça: e no entanto ela ĂŠ muito comum guma qualidade real naqueles que nos homens da sua condição, porque honramos dessa maneira. Aos reis, ĂŠ eles ignoram sua prĂłpria natureza. preciso falar de joelhos; nos aposenHĂĄ no mundo dois tipos de grandetos dos prĂ­ncipes, ĂŠ preciso manter za: grandezas estabelecidas e grandezas a postura ereta. Rejeitar-lhes esses naturais. As grandezas estabelecidas deveres ĂŠ uma estupidez e uma baidependem da vontade dos homens, que xeza de espĂ­rito.

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“Grandezas naturais� e “grandezas estabelecidas�

Sob determinado aspecto, estamos muito prĂłximos dos problemas examinados na Unidade Realidade e aparĂŞncia, de modo que vocĂŞ pode propor aos alunos questĂľes que se beneficiem do que ĂŠ ali apresentado. Mas note esta peculiaridade: o texto de Pascal nĂŁo diz que as grandezas de estabelecimento sĂŁo “aparentesâ€?, no sentido de nĂŁo se-

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rem “reais”. Pascal afirma apenas que elas não são naturais. Ao mesmo tempo em que diz isso, ele reconhece que elas possuem eficácia. Disso se pode concluir que, para Pascal, o artifício também engendra realidade – a saber, a realidade dos costumes, dos

dezas estabelecidas” – são menos reais. rece residir nisto: como compreender a A base sobre a qual se fundam as granrealidade de algo que não é natural – isto dezas estabelecidas não é natural, mas é, que possui uma realidade artificial? humana. “E isso por quê? Porque assim Os exemplos de grandeza natural talvez quiseram os homens.” possam nos ajudar aqui: “as ciências, a luz Entretanto, uma vez que os homens tedo espírito, a virtude, a saúde, a força”, eis nham estabelecido algo, “aquilo se torna o que, conforme Pascal, constitui as “qualijusto”. Esse ponto é importante. Ele nos dades reais ou efetivas da alma ou do correvela que Pascal retoma a questão da dipo”. Não é difícil imaginar o que Pascal quer versidade de culturas. Aquilo que é justo dizer com isso: qualidades como essas não em um país pode não ser justo em outro. seriam convencionadas, nem estabelecidas. Mas o reconhecimento de que as culElas exprimem diferenças existentes entre turas são diversas não os homens que não deconduz Pascal a concluir pendem dos costumes, que os valores de uma mas da natureza. cultura determinada não A diferenciação en“As ciências, a luz do devam ser respeitados, tre esses dois tipos de espírito, a virtude, pois, uma vez que uma grandeza é efetuada a saúde, a força”, lei ou costume tenha se por Pascal não para reestabelecido, passa a exiduzir a importância de são exemplos de gir nosso respeito e obeuma delas e enaltecer grandeza natural, diência: “torna-se justo”, a da outra. Seu objeque constituem as como diz o texto. tivo é apenas mostrar Logo em seguida, Pasque cada um desses “qualidades reais ou cal explica o que devemos tipos de grandeza reefetivas da alma ou entender por “grandezas quer uma atitude esdo corpo”. naturais”. Ele começa pecífica. Grandezas contrapondo as grandeestabelecidas merecem zas naturais àquelas que um tipo de considerase fundam na “fantasia ção; grandezas naturais, dos homens”. Isso nos leva a concluir que outro. Que tipo de respeito cada forma de as grandezas estabelecidas, que se contragrandeza pode esperar? põem às naturais, se fundam nas convenEm que consistem os “respeitos de esções, quer dizer, na imaginação ou fantatabelecimento”, devidos às “grandezas sia dos homens. Já as grandezas naturais estabelecidas”? Em “cerimônias exteriores” “consistem em qualidades reais ou efetique, embora não sejam falsas nem vazias, vas da alma ou do corpo”. não devem ser tomadas como o reconheNote bem: qualidades “reais ou efeticimento de qualquer qualidade real nos vas”... Se as grandezas naturais são reais, indivíduos assim homenageados. O exemnão deveríamos interpretar as grandeplo é muito claro e contundente: diante zas estabelecidas, que se opõem a elas, de alguém “superior”, como um rei ou um como grandezas irreais, superficiais, príncipe, temos de ser humildes e respeitoirrelevantes? Mas já observamos que as sos. Mas isso – Pascal insiste sobre o ponto grandezas estabelecidas também são, – não significa que esse rei ou esse príncipe a seu modo, “reais”; elas se fundam em seja naturalmente superior a nós. Afinal de convenções humanas, mas nem por isso contas, ser rei ou ser príncipe não é uma deixam de possuir realidade, de serem condição natural, mas estabelecida pelos efetivas. Toda a dificuldade do texto paseres humanos, com base em convenções

unidade

razão e paixão

Dom Quixote, chamado “o cavaleiro da

triste figura”, e Sancho Pança, seu fiel escudeiro, são célebres criações de Miguel de Cervantes (1547-1616).

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o romance de Cervantes, logo nos damos conta de que, a rigor, não há como separar a nobreza de caráter de Quixote de sua loucura, de sua paixão pelos ideais de cavalaria e, por fim, pelo seu desejo de agir como se fosse um cavaleiro. Também no caso de Medeia, embora de modo indireto, a paixão se vincula ao prazer, o prazer de se vingar de Jasão. Antes disso, sua paixão de ódio é marcada pelo desprazer, pelo sofrimento de se ver traída. Dom Quixote, por sua vez, apesar de passar por dezenas de sofrimentos físicos, vive em constante prazer. Tal é seu prazer, que a imaginação sempre é guiada para ele: tudo se torna ocasião para ser um nobre cavaleiro, todos os motivos da realidade, tal como ela é, são transfigurados para que o ideal persista. Nesse sentido, o mundo ideal de Dom Quixote também tem uma lógica interna, uma lógica da ilusão. No entanto, independentemente do ponto a que chega Dom Quixote, sua paixão se vincula ao prazer como qualquer paixão. Pelo menos, essa é uma caracte-

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rística muito frequentemente associada ao conceito de paixão. Para muitos filósofos, não é possível pensar a paixão sem os sentimentos de prazer e desprazer. Talvez seja este o motivo por que a razão, como capacidade de conhecer a verdade e de agir de maneira boa, tem dificuldades diante das paixões. Associadas com sofrimento ou com prazer, elas se impõem a toda força, pois a dor perturba e o prazer produz bem-estar. Vamos agora fixar alguns resultados dessas considerações sobre razão e paixão. Vimos que a razão é há muito tempo classificada como uma das características que definem o ser humano. Porém, dado que o ser humano pode agir e pensar de maneira irracional, essa característica significa, antes de tudo, uma certa faculdade, uma certa capacidade de agir e pensar, que nem sempre está em completa atividade. Enquanto capacidade, a razão às vezes não se exerce. Vimos então que as paixões humanas podem ser um dos principais motivos para isso, já que suas exigências podem não estar de acordo com a racionalidade e que são suficientemente fortes para superar a razão. As paixões podem afetar a razão em pelo menos dois sentidos: impedindo que ela se exerça na escolha da ação mais correta, considerada boa, ou impedindo que ela exerça sua capacidade de conhecer as coisas como são, fazendo com que o ser humano crie ilusões a respeito do mundo e de si mesmo. Dessa maneira, a razão agrupa faculdades que podem se exercitar de maneira divergente: é possível que um indivíduo aja de maneira correta e seja, no entanto, incapaz de conhecer a realidade; como, inversamente, é possível que ele conheça a realidade ao redor de si mesmo, mas aja de maneira incorreta. Por fim, vimos que a paixão está ligada a sentimentos de prazer e desprazer, e talvez tire daí sua força sobre a razão.

Virtude e paixão página 54 A Ética a Nicômaco é a principal obra de Aristóteles sobre ética e, certamente, uma das mais importantes sobre o assunto na história da filosofia. O título da obra, porém, continua incerto, pois, como em outros tratados desse filósofo, ele foi dado posteriormente por aqueles que tentaram catalogar a obra aristotélica. É possível que Aristóteles tenha dedicado o livro a seu filho, Nicômaco, e daí o título. Mas é provável também que o livro tenha sido chamado assim porque seu filho o editou. Uma pesquisa aprofundada sobre a obra e seus conceitos fundamentais pode ser

Estudiosos reconhecem na formação (paideía) o valor de base dos gregos antigos.

que assumimos diante das paixões é boa ou má. Por exemplo, diante da cólera, nossa atitude é má, se a sentimos de forma violenta ou excessivamente fraca. Boa, porém, se a sentimos de forma moderada. E assim também no que concerne às demais paixões. Nem as virtudes, nem os vícios são paixões, já que ninguém afirma que somos bons ou maus por causa de nossas paixões, mas por causa de virtudes ou vícios. Ninguém é louvado ou censurado devido às paixões que possui [...], mas pelas suas virtudes e vícios recebe louvores e censuras efetivas. Em contrapartida, não está em nossa escolha sentir cólera ou medo. Já as virtudes são tipos de escolha, ou envolvem escolha. Acrescente-se que com relação às paixões se diz que somos movidos, já com relação às virtudes e aos vícios não se diz que somos movidos, mas que possuímos tal ou tal disposição. Por isso também, virtudes não são faculdades, já que ninguém é considerado bom ou mau, nem louvado ou censurado apenas por ser capaz de sentir paixões. Dispomos das facul-

Museu Nacional Arqueológico, Atenas. Album/Dea Picture Library/Latinstock

Esta apresentação introdutória dos conceitos de razão e paixão não pretende ser exaustiva. Para muitos filósofos, por exemplo, a razão não diz respeito somente às faculdades de conhecer, pensar logicamente ou de agir de maneira correta. Ela pode se referir também à capacidade de julgar a beleza, seja das coisas naturais, seja das coisas criadas pelos seres humanos, como as obras de arte. E pode se referir, sobretudo, à faculdade de o indivíduo criticar tanto o mundo como a si mesmo. Isto é, a razão se apresenta também na forma de uma crítica da razão: raciocinar é pôr a si mesmo em questão, ser capaz de autocrítica. Tampouco a relação entre razão e paixão foi sempre concebida como uma relação de oposição. Alguns filósofos razão e paixão

Estátua Don Quixote Plaza. Plaza de Espana, Madrid | James Mc Quarrie/123RF

página 51

veem na razão um tecido de paixões, outros veem na paixão a forma de realizar a razão. Um desses filósofos, Georg F. Hegel (1770-1831) chegará a dizer: “Nada de grande se faz sem paixão”.

razão e paixão

Uma espécie que se diz racional

valores, das regras de conduta, que podem variar muito de povo para povo, de cultura para cultura. Por isso, uma promissora articulação entre o comentário a esse trecho de Pascal e a Unidade Realidade e aparência consiste em atentar para o fato de que, conforme Pascal, a aparência também possui eficácia – ponto este a que é dedicado o último módulo da Unidade Realidade e aparência, intitulado “A realidade da aparência”.

dades que temos por natureza. Entretanto, ninguém se torna bom ou mau por natureza [...]. Logo, uma vez que as virtudes não são nem paixões, nem faculdades, só resta uma possibilidade: que sejam disposições de caráter” (Aristóteles, Éti-

ca a Nicômaco. Livro II, cap. 5 [1105b]. Tradução nossa)

As paixões nos seres humanos Vejamos em que esse trecho de Ética a Nicômaco nos esclarece sobre a posição de Aristóteles a respeito do par “razão” e “paixão”. Note que Aristóteles busca dar uma primeira definição do que é virtude, aquilo que torna um ser humano bom e digno de ser elogiado em algum aspecto. Como você pode perceber, ele conclui que a virtude, assim como seu oposto, o vício, é antes de tudo uma disposição de caráter. Para chegar a essa conclusão, ele faz uma enumeração das coisas que se apresentam no interior da alma, e em seguida busca eliminar aquelas que não podem ser chamadas de virtude. As três coisas que se encontram na alma são as paixões, as faculdades, ou ca-

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No entanto, nada disso acontece se não houver escolhas, e as escolhas ligadas às virtudes são escolhas baseadas em pensamentos e reflexões. Dito de outro modo, são baseadas na razão humana. Dessa maneira, as virtudes estão intimamente relacionadas com a racionalidade. Um homem virtuoso é um homem racional: um homem que escuta sua razão. A racionalidade do homem virtuoso se

razão e paixão

Desenvolvimento individual por escrito

xar enganar pelas alegrias e pelos prazeres. Em vez de buscar essas alegrias, é

Arthur Schopenhauer (1788-1860) foi um importante filósofo alemão, que riva-

preciso renunciar à vontade de viver que está na base de todo sofrimento. Por

lizava com Georg W. F. Hegel (1770-1831) e exerceu influência sobre autores como

isso, Schopenhauer valoriza as técnicas hinduístas e cristãs de ascese, isto é, de

Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939). Em sua obra mais importante, O mundo como vontade e como

negação dos prazeres. Ao contrário da ética aristotélica, Schopenhauer não defende uma moderação

representação (Tradução: Jair Barboza. São Paulo: UNESP, 2005), Schopenhauer tece

das paixões e dos desejos. Antes, ele propõe agirmos de tal modo que possamos

considerações significativas sobre a ética, que podem servir como elemento de comparação com a posição de Aristóteles.

nos tornar indiferentes às alegrias (sempre falsas) que a realização dos desejos proporciona. O homem virtuoso, afirma

Segundo Schopenhauer, a ética dos gregos, com exceção de Platão, é uma éti-

Schopenhauer, “cessa de querer algo, evita atar a sua vontade a alguma coisa, pro-

ca que busca uma vida feliz, ao passo que a ética dos cristãos e a ética dos hindus

cura estabelecer em si a grande indiferença por tudo” (A. Schopenhauer, O mundo

são em geral éticas que buscam a renúncia aos desejos, exercitando até mesmo, em algumas práticas ascéticas, a renúncia

como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, pp. 482-483).

à vontade de querer viver. Schopenhauer prefere as duas últi-

• Tendo em vista esses dois pontos de vista tão distintos sobre a ética, elabore

mas àquela dos gregos, em que se destaca a aristotélica. Para Schopenhauer, a satisfação, a felicidade, é sempre algo

uma redação de aproximadamente uma ou duas páginas, procurando desenvolver seu próprio ponto de vista sobre o assun-

negativo, equivalendo à ausência de sofrimento. A realização dos desejos é, no

to: a vida feliz reside em saber ordenar as paixões pela razão (Aristóteles) ou em su-

fundo, a supressão momentânea do sofrimento que causou esses desejos. Ora,

primir as paixões (Schopenhauer)? Ou nem uma, nem outra dessas opções? Ou ambas,

se é assim, então não podemos nos dei-

se é que podem ser conciliadas?

A rejeição das paixões página 62 Provavelmente, a severidade com que Sêneca examina as paixões pode causar certa surpresa e perplexidade entre os alunos. Mas você pode propor examinar com eles se, apesar de poder causar essa reação, a posição estoica de Sêneca não seria bem mais presente na cultura moderna do que se imagina. Pense, por exemplo, na disciplina imposta pelo trabalho fabril ou mesmo por atividades ligadas à produção artística como a música, que exige uma aplicação diária, muita concentração e estudo. Da mesma forma, indivíduos orientados para a acumulação de bens têm de reprimir as paixões ligadas aos sentidos, sem o que usufruiriam de seu capital, ao invés de poupá-lo. Essa questão é também discutida por Gérard Lebrun no ensaio “O conceito de paixão”, in: A filosofia e sua história. São Paulo: Cosacnaify, 2006. 3. Se não podemos evitar a existência das paixões, então não podemos controlar seu grau de intensidade. Em outras palavras, se a causa da paixão não está sob nosso controle, então temos ainda menos controle sobre a intensidade que ela adquire. Ela pode se intensificar por conta própria, unicamente conforme sua causa. Por fim, Sêneca acrescenta um último argumento: 4. Tudo que é nocivo não pode ter uma justa medida, uma medida equilibrada. Logo, por mais fracas

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Aurélio (121-180), imperador romano que foi adepto do estoicismo.

que sejam de início, as forças da doença acabam se desenvolvendo. Este último argumento está intimamente ligado ao segundo. As paixões são tomadas como “forças da doença” pois elas estão na origem das “doenças do espírito”. Porém, é mais fácil combater a doença no seu começo do que depois de desenvolvida. Assim, para combater os vícios, é preciso combater sua origem, as paixões. É preciso eliminar as paixões logo quando aparecem, porque, depois, já é tarde demais. E é tarde demais quando se pretende “atenuá-las”. Uma vez instaladas na alma, dificilmente se poderá moderá-las. É possível que você se pergunte: como refrear e eliminar as paixões, mesmo em estado inicial, se suas causas não estão sob o nosso controle? A resposta de Sêneca, como a de muitos outros que defendiam essa compreensão de virtude e de paixão (os pensadores chamados estoicos) consiste justamente no desprezo pelas causas exteriores das paixões. Segundo essa linha de pensamento, seria preciso desprezar aquilo que suscita as paixões, como os bens materiais em relação à ambição, e os perigos em relação ao medo. Se não dermos nenhum valor a essas coisas fora de nós, elas já não poderão suscitar as paixões. Esse desprezo pelas coisas exteriores deve ser incondicional, do contrário elas podem tornar mais frequentes as paixões, as quais se convertem em vícios. Por sua vez, os vícios tendem a exagerar o valor atribuído à causa exterior, dificultando mais e mais o desprezo por ela. É dessa maneira que o vício atua como doença: faz atribuir um grande valor a coisas de pouco ou nenhum valor, levando o indivíduo a persistir no erro. Sendo incondicional logo de início, o desprezo pela causa exterior da paixão faz dissipar a própria paixão, e a alma se livra de uma doença.

livro do professor

No entanto, é possível pensar que não dominamos as causas das paixões, causas que estão fora de nós e que, portanto, são independentes da nossa vontade. Essa é uma suposição que estaria bem próxima daquela concepção de paixão defendida por Aristóteles. Sêneca a aceita, mas isso lhe permite levantar um terceiro argumento contra a tentativa de moderar as paixões:

Cópia em bronze de estátua de Marco

Os alunos podem perguntar ou você mesmo pode levantar a questão de como saber reconhecer e escolher o meio termo adequado para cada situação. Para Aristóteles, não é uma questão fácil de responder, pois não há uma regra geral independente da situação. É preciso deliberar em cada caso, e a deliberação correta depende de uma virtude intelectual que se chama “prudência”. Um estudo bastante aprofundado sobre o tema da

apresenta, por outro lado, na maneira como ele lida com as paixões. Ele não busca evitá-las. Isso seria impossível, diria Aristóteles. Ele busca moderá-las, agindo de maneira equilibrada. Assim, a atitude ética racional – a virtude – não se opõe à paixão. Antes, ela é fruto da educação da mente ou alma para lidar de maneira equilibrada com as paixões.

Schopenhauer, crítico de Aristóteles

razão e paixão

página 58

prudência foi realizado por Pierre Aubenque: A prudência em Aristóteles. Tradução de Marisa Lopes. São Paulo: Discurso Editorial, 2003. Para uma visão de conjunto sobre o conceito de paixão na história da filosofia, mas que tem Aristóteles como principal foco, recomendamos ainda o ensaio de Gérard Lebrun, “O conceito de paixão”, publicado no livro A filosofia e sua história. São Paulo: Cosacnaify, 2006.

Roma, Piazza del Campidoglio. Foto: Jean-Pol Grandmont. CC-sa-3.0

encontrada no livro de Marco Zingano, Estudos de ética antiga, São Paulo: Discurso Editorial, 2007. Vale a pena também consultar a introdução e os comentários que Marco Zingano acrescenta à tradução que fez dessa obra: Ethica Nicomachea I 13 – III 8. São Paulo: Odysseus Editora, 2008. Na Unidade Lógica e argumentação, módulo “A arte de persuadir“, você encontra o quadro com informações sobre a vida de Aristóteles e indicação de algumas de suas obras traduzidas para o português. Convém observar que Aristóteles não separa o estudo da ética do estudo da política. Há várias razões para isso: primeiramente, como escreve Aristóteles em sua Política, o homem só realiza verdadeiramente sua natureza no Estado. Um passo em que Aristóteles afirma isso com todas as letras é discutido na Unidade Ordem e caos, módulo “A ordem política”. Por outro lado, a constituição do Estado, tema da política, se vincula à ética: os governantes devem se preocupar com a formação de cidadãos bons, e as boas leis dependem de governantes virtuosos. Dessa maneira, sugerimos também a leitura de dois livros sobre a política em Aristóteles, nos quais são comentados temas da ética. São eles: Aristóteles e a política, de Francis Wolff (São Paulo: Discurso Editorial, 2001) e O animal político: estudos sobre justiça e virtude em Aristóteles de Marisa Lopes (São Paulo: Esfera Pública, 2008).

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A razão a serviço das paixões página 63

A razão a serviço das paixões As noções de razão e paixão, que foram problematizadas no pensamento filosófico antigo, atravessaram a Idade Média e animaram a reflexão ética moderna. Como já ocorrera na Grécia, também na modernidade muitas vezes este par conceitual surgiu sob a forma de uma alternativa: razão versus paixões. Uma contribuição decisiva para esse debate foi fornecida por David Hume[+] (1711-1776), célebre filósofo escocês, cuja obra se tornou muito debatida na segunda metade do século XVIII. Hume tornou-se conhecido por seus ensaios, foi historiador e manteve laços profundos com os intelectuais franceses que participaram da filosofia das Luzes (também designada como “Iluminismo” ou “Esclarecimento”). Hume também é discutido em outras Unidades do livro que você tem em mãos, como Dúvida e certeza (módulo “Os limites da dúvida ao garantir a certeza”) e Princípio e temporalidade (módulo “A regularidade da experiência”). Aqui vamos nos ater a um aspecto do pensamento de Hume: a abordagem que ele propõe ao tema “razão versus paixão”. A posição de Hume é muito inovadora em relação a autores da Antiguidade, como Aristóteles[+] ou Sêneca[+]. A novidade é que, para Hume, a razão está a serviço das paixões. Vejamos, por partes, alguns trechos do Tratado da natureza humana (1739-1740), em que Hume expõe suas principais ideias filosóficas.

se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princípio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares, que essa suposta primazia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falácia de toda essa filosofia, procurarei provar, primeiramente, que a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade.” (Hume, Tratado da natureza

Há ótima tradução brasileira, feita por Débora Danowski, da qual lançamos mão aqui (São Paulo: Editora da Unesp, 2009, pp. 450-452). É interessante registrar que, a despeito das grandes expectativas de Hume em relação ao Tratado à época de sua publicação, o livro não teve quase nenhuma repercussão. Hume só começaria a ser conhecido como filósofo com a publicação da Investigação sobre o entendimento humano, de 1748. Esta obra, que obteve grande sucesso, é baseada no Livro I do Tratado.

“Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando

São Paulo: Editora da Unesp, 2009, pp. 448-449)

Você pode notar, já no primeiro parágrafo desse texto de David Hume, que ele tem dois objetivos, que concernem diretamente ao tema desta Unidade. Ele quer mostrar que não faz sentido falar em um combate entre razão e paixão e, por isso, que não faz sentido falar que a razão deve ser superior à paixão, nem que a paixão deve obedecer à razão. Com isso, Hume vai contra boa parte da filosofia moral, que trata das questões sobre as virtudes humanas, sobre o bem e o mal. Para alcançar seu duplo objetivo, Hume adverte seu leitor de que irá

razão e paixão

Combate entre razão e paixão? Iniciemos pela leitura de um trecho do Tratado, de Hume:

humana. Tradução: Daniela Danowski.

página 68, Situação de aprendizagem Caso considere oportuno, você pode suplementar essa atividade recomendando que os alunos consultem o início da obra mencionada de M. Horkheimer, Eclipse da razão. Tradução: Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Centauro, 2002, pp. 9-10.

meio, a venda da bicicleta. Esses exemplos são exagerados, mas o que importa aqui é o papel da razão. Ela não contraria as paixões, mas apenas suas suposições e seus cálculos. Nenhuma preferência pode ser racionalmente justificada

O último passo da argumentação é somente uma explicitação do que vinha antes. Você pode notar que Hume usa exemplos drásticos: não é contrário à razão que eu prefira a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo, e assim por diante. Posso até mesmo escolher algo que sei ser menos proveitoso para mim do que algo muito mais proveitoso. Com esses exemplos, Hume quer

enfatizar o que estava em jogo desde quando mostrou a incapacidade da razão em influenciar a vontade. Preferência é preferência, e não pode ser justificada racionalmente. A única coisa que resta à razão é mostrar que algumas preferências são irrealizáveis. A razão nada decide

Vejamos, para terminar, a conclusão de Hume: “As consequências disso são evidentes. Como uma paixão não pode nunca, em nenhum sentido, ser dita contrária à razão, a não ser que esteja fundada em uma falsa suposição ou

razão e paixão

Eclipse da razão, de Horkheimer

livro do professor

Análise de texto e desenvolvimento indivi-

é uma racionalidade corporificada nas re-

dual por escrito

Pode-se concluir, do exame de Hume, que ele

lações entre os seres humanos, no mundo social e mesmo na natureza. Para Horkheimer, a primeira é essencialmente uma ra-

sustenta que a razão é um instrumento para as

zão instrumental, que lida apenas com os meios mais eficazes para alcançar fins da-

paixões: cabe-lhe calcular os meios exigidos para a realização de fins que ela

dos, não importando quais fins sejam esses. Já para a razão objetiva, importa antes de tudo fundamentar os fins.

não escolhe. Essa concepção, que foi recusada por

Ainda segundo Horkheimer, a razão subjetiva e instrumental se impôs na épo-

muitos autores, também foi interpretada como um sinal dos tempos, como

ca moderna como a racionalidade predominante. Com isso, os seres humanos acabaram se tornando objetos, coisas, para si

se ela expressasse determinada visão sobre como nos situamos no universo – uma

e para os outros, já que sua razão se limita a calcular e encontrar meios para fins que

concepção que, como dirão alguns filósofos, privilegia os aspectos instrumentais da razão. É este, por exemplo, o ponto de vista de

ela mesma não define. • Articule, elaborando um texto de no máximo duas páginas, os pontos de vista

Max Horkheimer (1895-1973). Em Eclipse da

de Hume e de Horkheimer. Um caminho

razão (1947), uma de suas obras mais conhecidas, Horkheimer compara dois tipos de razão. Uma, subjetiva, outra, objetiva. A razão subjetiva é a faculdade de conhe-

natural é seguir esse roteiro: (1): caracterizar a posição de Hume; (2): expor a objeção de Horkheimer; (3): exprimir sua própria posição a respeito dos problemas

cimento e de raciocínio lógico. A objetiva

levantados nos pontos (1) e (2).

página 69

A posição de Hume contraria certamente muitas concepções enraizadas na cultura ocidental a respeito da razão. Pois, ao argumentar que a razão não pode influenciar as paixões e deve, em vez disso, estar a seu serviço, ele retira do conceito de racionalidade as implicações morais que comumente lhe são associadas. As-

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sim, as distinções morais, bom e mau, virtude e vício, não têm mais a razão como seu terreno primeiro, mas antes o âmbito dos sentimentos. O significado da razão se restringe, em Hume, às capacidades de descobrir a verdade ou a falsidade, descobrir se nossas ideias estão de acordo com os fatos, de raciocinar e de fazer demonstrações lógicas. As implicações desse posicionamento são tratadas na Situação de aprendizagem proposta neste módulo, em que a tese de Hume é comparada com a posição de M. Horkheimer sobre o que ele classifica como “a razão instrumental”.

História, razão e paixões página 69 Na Unidade Natureza e cultura, módulo: “A diversidade das culturas”, são examinadas questões decorrentes do contato entre culturas diversas. Do colonialismo à retórica anti-imperialista, passando pelo etnocentrismo ou, mais simplesmente, pela perplexidade por vezes suscitada pela presença do que não nos é familiar, há todo um conjunto de discursos e problemas abordados, com especial atenção, pela antropologia. Mas podemos reencontrar questões próximas àquelas com que lidam os antropólogos em outro domínio do saber, o dos conhecimentos históricos. Com efeito, a descontinuidade entre culturas também se verifica no tempo, o que é notório no estudo de épocas muito remotas, que dão testemunho de civilizações ou culturas pautadas por ideias e valores muito diversos dos atuais. A argumentação de Friedrich Schiller, discutida na continuação deste módulo, parte da existência de uma diferença radical entre a Antiguidade e a Modernidade. A relação entre paixões e razão é abordada por Schiller como algo que se diferencia no tempo, na história humana. Na época moderna, sustenta

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Como você pode perceber, Hume reitera que, no combate entre as paixões, a razão nada decide. Uma paixão é simplesmente mais forte do que a outra e se impõe em determinadas circunstâncias. Mas será que somos realmente tão caprichosos ou formidáveis, a ponto de preferirmos uma coisa de pouco valor a outra de muito valor, ou mesmo a própria destruição? O próprio Hume não

pensa assim. A questão, ele alega, é que confundimos a razão com algumas paixões que estão tão arraigadas em nós, que são tão sólidas e calmas, que mal as notamos no seu caráter de paixões. Por exemplo, o amor à vida. Ele é uma paixão tão firmemente enraizada em nós, que não o consideramos como o que é, uma paixão, mas sim como algo próprio da razão. E por isso dizemos que é irracional desejar a própria destruição, como se isso estivesse fundado na razão, e não na paixão. Mas é um modo equivocado de falar, segundo Hume, porque não é a razão que está sendo prejudicada, mas uma outra paixão bem enraizada em nossa natureza humana: nosso amor pela vida.

História, razão e paixões

A consciência dividida da Modernidade Vamos discutir essas questões tomando como ponto de partida dois versos de um poema escrito no fim do século XVIII:

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“entre prazer dos sentidos e paz de alma só resta ao homem a angustiante escolha”

(Friedrich Schiller, “O ideal e a vida” , versos 7-8. Tradução nossa. Edição de referência: Sämtliche Werke. Munique: Hauser, 1962, vol. 1, p. 201)

O autor destas linhas é o famoso poeta, dramaturgo e filósofo alemão Friedrich Schiller (1759-1805), que refletiu profundamente sobre as questões morais levantadas pelo par “razão e paixões”. Nos versos citados acima, os dois conceitos, como já advertimos, são confrontados entre si. O homem, diz o poema, vê-se muitas vezes diante da escolha entre o prazer sensual (os sentidos, as paixões) e a paz da alma. Esta última evoca a serenidade que o estoicismo antigo converteu em ideal de sabedoria, que equivale ao domínio da razão sobre as paixões. Qual dos dois lados você negligenciaria: a razão ou os sentidos? E qual caminho toma nosso poeta-filósofo: o da razão ou o da sensualidade das paixões? Ou será que

razão e paixão

As paixões humanas não são imutáveis. Elas estão inscritas em um percurso histórico. Podemos dizer que a história da humanidade é também a história das nossas paixões. Elas, assim como a razão, evoluem no decorrer dos tempos. Por isso, a relação entre a razão e as paixões é dinâmica, ela se altera no tempo. Em um momento, pode haver certo equilíbrio entre elas. Em outro, esse equilíbrio pode ser rompido, para depois, talvez, ser recomposto. Se as paixões possuem historicidade (isto é: se elas se alteram conforme o contexto histórico da sociedade em questão), como, então, elas se apresentam nos tempos modernos? Haverá diferenças importantes entre a Antiguidade e a Modernidade? Podemos explicar essas diferenças com base nas maneiras como cada etapa da história humana articula paixões e razão?

Dentre os pensadores que questionaram o valor moral do desenvolvimento das artes e das ciências e, de modo geral, do progresso da civilização, destaca-se Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), que exerceu forte influência sobre F. Schiller. No Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens (in: Rousseau – Coleção Os Pensadores. Tradução: Lourdes S. Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 215-282) publicado primeiramente em 1755, Rousseau considera que a instituição da propriedade privada e da divisão do trabalho foram as principais responsáveis pela alienação em que se viu lançada a espécie humana, na qual se encontraria até os dias de hoje. A leitura dessa obra pode servir para uma aproximação entre Rousseau e a apreciação que Schiller faz dos tempos modernos. Rousseau, em alguns passos, interpreta o advento dos tempos modernos como decadência moral. Schiller parece menos “pessimista”. Ocorre que, mesmo na obra de Rousseau, esse tema é mais complexo do que aparenta ser de início. Rousseau em momento algum propôs um retorno (que sabia impossível) à vida selvagem, ou coisa semelhante. O que fez, e nisto antecipou a abordagem de Schiller, foi problematizar sua própria época, como uma época em que o ser humano se tornou estranho a si mesmo, entre outras coisas por buscar satisfazer paixões completamente artificiais e supérfluas. A ponto de Rousseau afirmar que o único sentimento inato ao homem é a “piedade natural” (cf. “1ª Parte” do Discurso sobre a desigualdade, Museo Thyssen-Bornemisza, Madrid.

por um dos lados que constituem nosso ser – a sensibilidade ou a razão? De acordo com Schiller, contornar essa alternativa entre razão ou sensibilidade é o grande desafio da filosofia. A tarefa filosófica por excelência reside, conforme Schiller, em superar a alienação que pesa sobre a condição humana moderna. Nos dicionários, “alienação” significa: (i) “cessão de bens, venda”; (ii) “perturbação mental”; (iii) “indiferença em relação ao que se passa em volta; alheamento” (Dicionário Unesp do português contemporâneo. São Paulo: Editora da Unesp, 2004). Alienar-se significa também tornar-se estranho a si mesmo. É neste sentido que o termo “alienação” tem a ver com as questões discutidas aqui por Schiller. O ser humano, na Modernidade, alienou-se, tornou-se estranho a si próprio. Já sabemos o porquê:

Degas, um dos expoentes do impressionismo, retratou a dança em inúmeros

quadros e esculturas (Edgar Degas [18341917], Bailarinas em verde, 1877-79).

o desenvolvimento das ciências e das artes, os avanços tecnológicos, a sofisticação da vida, a divisão do trabalho – todos esses fenômenos romperam a unidade, existente na Grécia antiga, entre razão e sensibilidade. A consciência moderna é uma consciência dividida, cindida, entre os dois opostos que a constituem. A arte: ponte entre sensibilidade e razão Que solução dar para a alienação moderna? Em uma obra publicada em 1795, Schiller formula explicitamente esse problema, ao indagar-se o seguinte: “como reconstituiremos a unidade da natureza humana, que parece completamente suprimida por esta oposição originária e fundamental?” (Schiller, Cartas sobre a educação estética do homem. Tradução de R. Schwarz e M. Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1990, p. 71). Para isso, é preciso levar em conta que o ser humano não é apenas razão e tampouco apenas paixão. Contentar-se com uma ou outra dessas duas características da humanidade corresponderia, diz Schiller, a uma visão parcial do ser humano. Ao contrário, é preciso considerar as duas exigências que pesam sobre o ser humano: a da sensibilidade e a da razão. A única maneira de lidar com essa dupla exigência é promover a reaproximação entre os sentidos e a razão, o que pode ocorrer pelo cultivo de sentimentos nobres. “O caminho para o intelecto precisa ser aberto pelo coração”, diz Schiller (Cartas, VIII). Somente desse modo paixões e razão podem se ver novamente reunidas e em harmonia. A solução para o problema da alienação moderna, conclui Schiller, está em cultivar os sentimentos estéticos. É mediante eles que os seres humanos, a meio caminho entre o ser e o dever ser, entre a natureza e a razão, poderão se tornar tudo aquilo que podem e até devem ser idealmente. Só assim poderão reaver a unidade entre na-

livro do professor

que escolha meios insuficientes para o fim pretendido, é impossível que razão e paixão possam se opor mutuamente ou disputar o controle da vontade e das ações.” (D. Hume, Tratado da natureza humana. Tradução: D. Danowski, op. cit., p. 452)

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razão e paixão

Schiller, paixões e razão se tornaram distantes, pois foi perdida aquela unidade interna à humanidade, de que a Antiguidade daria testemunho. Assinalamos, no Livro do Aluno, o fato de que Schiller, assim como outros pensadores de sua geração, fez um retrato em boa parte idealizado da Grécia clássica. Isso, entretanto, não altera o fato de que, mediante essa representação da Antiguidade que não poderia mais ser revivida, Schiller tenha problematizado a época em que se encontrava, como um período no qual a relação entre a razão e as paixões exigiria uma nova formulação, capaz de responder à alienação produzida pelos tempos modernos. Sob esse aspecto, Schiller forneceu uma contribuição importante à reflexão sobre as relações entre a razão e a paixão e, além disso, sobre as características próprias da racionalidade moderna. Com efeito, este tema será muito visitado ao longo dos séculos XIX e XX. A divisão social do trabalho, de que trata Karl Marx (1818-1883); o surgimento de uma burocracia impessoal e a “dominação racional”, sobre as quais se ocupa Max Weber (1864-1920); o aprofundamento da especialização e o aparecimento da técnica, temas de interesse de Georg Lukács (1885-1971) – todos esses fenômenos podem ser vistos como ligados por uma origem comum, que remete à questão sobre a alienação moderna, da qual Schiller nos fornece uma das primeiras abordagens. Não por acaso, Jürgen Habermas (1929 - ) dedica a esse pensador um ensaio na reconstrução que faz do pensamento moderno. Cf. J. Habermas, O discurso filosófico da modernidade. Tradução: L. Repa e R. Nascimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 65-72.

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pág. 252 e ss. da edição citada, da Abril Cultural). Esse ponto, aliás, presta-se a uma eventual articulação com o que A. Schopenhauer, citado no primeiro módulo desta Unidade, fala sobre o

3

unidade

lógica e argumentação

O líder dos direitos civis Martin Luther King (1929-1968) discursa na Marcha sobre Washington (28/08/1963), no Lincoln Memorial.

livro do professor

Racionalidade e emoção ................. 77 A arte de persuadir.................

82

Premissas e conclusões ..............

86

Falácia e argumento ..............

97

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rgumentos estão por toda a parte. Quando queremos convencer alguém de alguma coisa, quase sempre lançamos mão de um argumento. Acontece nos negócios, nas relações familiares, no trabalho, na política, nos tribunais, nos livros, nos cultos religiosos – onde houver seres humanos reunidos, certamente haverá discordância, debate, argumentação. Mas o que vem a ser um argumento? Falando de maneira geral, poderíamos dizer que um argumento é um tipo de discurso cuja finalidade é dar razões capazes de convencer alguém a respeito de algo. No entanto, apesar de ser uma boa aproximação, essa definição talvez seja excessivamente ampla. Ela coloca num mesmo grupo coisas que talvez devêssemos distinguir.

Racionalidade e emoção página 77 A melhor maneira de introduzir a esquematização proposta do argumento é por meio de perguntas à classe. A discussão pode ser iniciada com uma pergunta do seguinte tipo: “O cartaz afirma que pessoas que dirigem sozinhas estão dirigindo com Hitler. O que isso quer dizer?” Na reconstrução do argumento (a seguir, no Livro do Aluno), as sentenças 3 e 5 correspondem às duas sentenças estampadas no cartaz. Elas são apresentadas como conclusões de dois argumentos parciais. Na aula, você deve enfatizar um elemento implícito nesse cartaz, e que era óbvio para qualquer cidadão norte-americano daquela época: os EUA tinham de poupar gasolina internamente para usá-la nos campos de batalha. É esse dado que não está explícito no carRacionalidade e emoção

O que diferencia, por exemplo, um argumento bom de um argumento ruim? Será correto dizer que um argumento é bom quando ele é convincente? Ou será que existem argumentos que, apesar de convincentes, não são bons? Um argumento bom é sempre convincente? Ou será que existem argumentos que, apesar de serem bons, falham na hora de nos convencer? Vamos pensar um pouco a respeito da mensagem veiculada neste cartaz confeccionado nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial:

tível. Foram criados, então, os “clubes de caroneiros” ou “clubes de carona solidária”. Esses clubes, patrocinados pelo governo norte-americano, reuniam pessoas que não se conheciam, mas moravam no mesmo bairro e trabalhavam na mesma região. A ideia era que os membros dos clubes se comprometessem a dar carona uns aos outros, economizando gasolina. Cartazes como esse tinham o objetivo de incentivar as pessoas a ingressarem nesses clubes. O que nos interessa, aqui, é o fato de que há um argumento implicitamente contido nesse cartaz. Você seria capaz de explicitá-lo? Há diversas maneiras de identificar esse argumento. Eis aqui uma possibilidade: 1) Se faltar combustível nos EUA, Hitler será favorecido. 2) Se as pessoas dirigirem sozinhas, haverá falta de combustível nos EUA. 3) Portanto, quem dirige sozinho está fazendo um favor a Hitler. 4) Quem não se associa a um clube de carona solidária dirige sozinho. 5) Portanto, quem não faz favores a Hitler associa-se a um clube de carona solidária.

SOZINHO, Quando você dirige você dirige com Hitler! clube Junte-se HOJE a um de caroneiros!

Como você pode ver, trata-se de um discurso que tem o objetivo de convencer o leitor de uma determinada tese, dando-lhe certas razões para tanto. Em 1943, os EUA estavam em guerra contra a Alemanha nazista, e era preciso economizar combus-

Como se disse anteriormente, esta é apenas uma das maneiras possíveis de explicitar o argumento contido naquele cartaz de propaganda. Ela nos servirá, porém, para estabelecer algumas distinções e conceitos importantes. Observe em primeiro lugar a ocorrência da palavra “portanto” nas sentenças 3 e 5. Ela é, talvez, a palavra mais importante num argumento. É ela que marca o momento em que uma determinada conclusão é tirada a partir de determinadas premissas. A sentença 3 é apresentada como uma consequência das sentenças 1 e 2.

lógica e argumentação

Central Press/Getty Images

O objetivo desta Unidade é proporcionar ao aluno uma introdução à noção geral de argumento, de início, sem entrar em detalhes a respeito das diferentes formas de argumentação. Será dada alguma ênfase à distinção entre componentes racionais e emocionais de um argumento, bem como à distinção entre verdade e validade. Embora sejam utilizados gráficos na verificação da validade de argumentos, não se unidade 3 lógica e oferece nenhum traargumentação A tamento sistemático da representação de silogismos em diagramas. Afinal, o aluno será pouco confrontado, na vida cotidiana, com argumentos que estejam postos na forma de um silogismo. Por isso, é interessante fazê-lo reconhecer argumentos em seus contextos originais de uso, como propagandas, editoriais jornalísticos, textos filosóficos e assim por diante, aprendendo a separar os apelos emocionais do embasamento racional que se procura dar a esta ou aquela tese. O professor deve tomar o cuidado de não passar a ideia (sem dúvida falsa) de que apelos emocionais devem ser evitados a qualquer custo. A ênfase deve recair sempre no reconhecimento da presença desse apelo,

nos contextos em que ele é aceitável ou mesmo necessário, e nos eventuais abusos a que sua utilização pode dar lugar. A escolha de peças de propaganda norte-americanas da metade do século XX visa favorecer a aproximação com a disciplina de inglês e da história mundial.

Weimer Pursell, 1943. World War II Poster Collection Database. Northwestern University

página 76

sentimento da compaixão (ver, a esse propósito, A. Schopenhauer, O mundo como vontade e como representação. Tomo I. Trad. Jair Barboza. São Paulo: Unesp, 2005, p. 477).

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Não faz sentido, porém, dizer que um argumento é “verdadeiro”, ou que ele é “falso”. Argumentos não são nem verdadeiros nem falsos. Eles podem ser bons ou ruins. Quando um argumento é bom, dizemos que ele é válido. Quando é ruim, dizemos que é inválido. Mas, o que caracteriza um argumento válido? Embora possa parecer estranho, o que torna um argumento válido não é o fato de que sua conclusão é verdadeira, ou o fato de o argumento possuir premissas verdadeiras. Um argumento pode ser válido e, mesmo assim, ter tanto as premissas quanto a conclusão falsas. Considere o seguinte exemplo: Quem gosta de comer pipoca também gosta de ouvir música clássica. Quem não toma banhos demorados gosta de comer pipoca. Portanto, quem não gosta de ouvir música clássica toma banhos demorados.

Pode parecer estranho, mas este argumento está perfeitamente ordenado. É um argumento válido. Para ver isso, basta examinar o seguinte gráfico:

A área vermelha representa aqui as pessoas que gostam de música clássica. Toda a área cinzenta do retângulo, exterior à área vermelha, representa as pessoas que não gostam de música clássica. A área laranja representa as pessoas que gostam de comer pipoca. A inclusão da elipse laranja dentro da vermelha serve,

página 82 Um modo simples de convencer a classe da validade do argumento é di-

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Faça uma campanha você mesmo Atividade em equipe e debate em sala de aula Em dupla com um colega, bolem uma peça publicitária (cartaz, painel, anúncio em revista, ou o conjunto desses elementos) com o objetivo de estimular os motoristas de automóvel a respeitar a faixa de pedestres. Em seguida, apresentem a “campanha” para os demais colegas de classe.

A arte de persuadir

lógica e argumentação

Em muitos tipos de discursos argumentativos, encontramos elementos de apelo emocional ao lado de elementos racionais. O caso extremo é aquele em que a emotividade toma conta de todo o discurso, não deixando lugar para ponderações racionais. Pense no caso de alguém se afogando e pedindo socorro. Ou, então, numa paquera. Nessas situações, buscamos atingir o outro emocionalmente, sem que nenhum tipo de argumento intervenha no processo. A pessoa que está se afogando procura expressar seu desespero, na esperança de provocar compaixão naquele que o está ouvindo.

Numa paquera, buscamos atrair a pessoa que nos interessa, usando para isso diversos tipos de recursos: vamos bem vestidos a um local em que sabemos que a outra pessoa estará nos vendo, procuramos passar uma boa imagem de nós mesmos, procuramos falar aquilo que achamos que a outra pessoa está querendo ouvir, e assim por diante. É comum que peças publicitárias ou de propaganda misturem a argumentação racional com o apelo emocional. Considere este cartaz a seguir, confeccionado durante a Segunda Guerra Mundial:

A arte de persuadir página 83 A Retórica de Aristóteles foi traduzida em diversas línguas. Há uma boa edição em português: Aristóteles, Retórica. Tradução e notas de Manuel Alexandre Jr., Paulo F. Alberto e Abel do Nascimento Pena. São Paulo: Martins Fontes, 2012. Indicamos a seguir alguns livros úteis para explorar as estratégias argumentativas em geral; em particular os apelos à emotividade. Os dois primeiros capítulos do livro de Introdução à Lógica (São Paulo: Mestre Jou, 1978) de Irving Copi possuem uma boa discussão a respeito da natureza geral dos argumentos. As seções 4-6 do segundo capítulo contêm uma discussão das relações entre emoção e argumentação em diversos contextos. Os abundantes exercícios do livro fornecem um material precioso para o professor que queira demorar-se mais tempo no assunto. Igualmente úteis são os três primeiros capítulos do livro Educando para a argumentação (Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2010), de Patrícia del Nero Velasco. AGORA

AJUDE-OS A GOLPEAR OS NAZISTAS

Das Praias para Berlim

5º EMPRÉSTIMO DE GUERRA

COMPRE MAIS BÔNUS DE GUERRA

Vamos analisar o cartaz. Você não encontrará nenhum tipo de argumento implícito. O apelo, aqui, é muito mais direto. É como se o cartaz gritasse o seguinte às pessoas: “Por favor, doem dinheiro! Mais um pouco, e a guerra estará ganha. Nossos soldados precisam mais do que nunca de sua ajuda!”. Repare na cena retratada graficamente. Um soldado vai atirar uma granada numa casa tipicamente europeia, cheia de soldados inimigos. Numa das janelas, vemos o cano de um fuzil, pronto para atirar. O soldado tem que se arriscar, expondo-se a levar um tiro a qualquer momento. Ele precisa de ajuda. No entanto, os inimigos estão visivelmente acuados dentro da casa. Apesar do risco, vencê-los é uma questão de tempo. As janelas da casa estão quebradas. Se o soldado conseguir acertar a granada numa delas, a casa será tomada. Note que o apelo é totalmente emocional. Nem por isso deixa de ser eficaz e de convencer. Muitas pessoas compraram os bônus de guerra motivados por cartazes como esse.

Democracia e retórica As relações entre argumento e emoção foram estudadas pelos filósofos desde a Antiguidade. O primeiro texto a se demorar longamente nesse assunto foi a Retórica de Aristóteles (384-322 a.C.). Em Atenas, cidade em que ele viveu grande parte da vida, as principais decisões eram tomadas por assembleias. Um cidadão, para defender seus pontos de vista, deveria ser capaz de persuadir os membros da assembleia. A retórica serve exatamente para isso: ela é a arte de persuadir. Devido à utilidade dessa arte na vida do cidadão, havia muitos professores de retórica em Atenas. No começo do seu livro, Aristóteles faz uma crítica dos métodos recomendados por muitos desses professores. Leia este trecho, e tente determinar que críticas são essas: “Os estudiosos que compilaram os atuais manuais de retórica nos apresentaram apenas de uma pequena parte dessa arte. Pois os meios de persuasão racional são os únicos elementos genuínos da retórica. Tudo o

livro do professor

Isso quer dizer uma coisa muito simples. Uma pessoa que aceite a verdade das premissas deveria, em princípio, ser levada a aceitar a verdade da conclusão. Se alguém aceita que Hitler é favorecido pela falta de combustível nos EUA (primeira premissa), e também aceita que haverá falta de combustível caso as pessoas dirijam sozinhas (segunda premissa), esse alguém terá boas razões para acusar aqueles que dirigem sozinhos de estarem colaborando indiretamente com o inimigo (conclusão). Mas a história não para aí. Como vimos, a conclusão desse primeiro argumento é, por sua vez, utilizada como premissa de um outro argumento, que vem logo abaixo. Com efeito, a conclusão tirada na sentença 5 se baseia nas sentenças 3 e 4, sendo que, como acabamos de ver, a sentença 3 já é a conclusão de um argumento anterior. Temos, portanto, dois argumentos articulados entre si. Tratemos de analisá-los. A primeira coisa que devemos compreender é que argumentos não são nem verdadeiros nem falsos. Isto é fundamental. O que pode ser verdadeira ou falsa é uma sentença tomada isoladamente. As premissas de um argumento são sentenças. A conclusão é uma sentença. Elas podem ser verdadeiras ou falsas. A quarta premissa, por exemplo, afirma que toda pessoa que não se associa a um clube de carona dirige sozinha. Isso pode ser verdadeiro, mas pode também ser falso. Pode acontecer, por exemplo, de muitas pessoas não se associarem a nenhum clube e, no entanto, darem e pegarem carona todos os dias, ou de simplesmente dirigirem acompanhando parentes ou amigos. Tome-se, ainda, o caso da conclusão: “Quem não faz favores a Hitler associa-se a um clube de carona.” Podemos imaginar a existência de pessoas que não colaboraram nem direta nem indiretamente com Hitler e que, no entanto, não se associaram a nenhum clube. Neste caso, a conclusão seria falsa.

Pense a respeito daquilo que acontece com você mesmo, em seu cotidiano. Suponha que você, no fim de semana, esteja querendo sair à noite, mas seus pais não estejam gostando dessa ideia. Você terá de argumentar com eles. Irá procurar convencê-los. Você diria que essa argumentação é puramente racional? Ou será que ela vem envolta numa boa dose de emotividade, e busca não apenas convencer racionalmente, mas também seduzir?

lógica e argumentação

Durante a aula, recomendamos que você vá inserindo um a um os elementos do gráfico seguinte, explicando seu significado. Primeiro, desenhe o retângulo, e explique que ali estão representadas todas as pessoas do mundo. Em seguida, desenhe a área vermelha, das pessoas que gostam de música clássica. O aluno deve compreender que, fora daquele círculo, estão as pessoas que não gostam de música clássica. Aí, a área amarela é introduzida, e cada uma das regiões é interpretada por você: a região das pessoas que gostam tanto de pipoca quanto de música clássica, a das que gostam de música clássica, mas não de pipoca, e as que não gostam de nenhuma das duas coisas. O mesmo procedimento deve ser repetido em relação ao losango. Um bom exercício de fixação de ideia é repetir o procedimento a partir do losango, em direção ao exterior. O aluno deve tomar consciência de que aquele gráfico representa uma situação imaginária: a situação retratada nas premissas do argumento.

Você cria o primeiro habitante careca; cria o segundo com apenas um fio de cabelo; o terceiro, com apenas dois fios; o quarto, com três; e assim por diante. Quando chegar aos 5 milhões de habitantes, fará um ser humano com 4.999.999 fios de cabelo. O seguinte terá 5 milhões de fios, que é o número máximo de fios de cabelo. Portanto, quando criar o habitante seguinte, terá de necessariamente criá-lo com um número de fios de cabelo idêntico ao de alguém que você já criou antes. Não tem jeito, portanto. Se as premissas desse argumento forem verdadeiras, a conclusão também será. O argumento, portanto, é válido. A enunciação desse argumento, no entanto, não lançou mão de nenhum apelo emocional. Só a conexão racional entre as premissas e a conclusão foi levada em conta. E essa conexão, em determinados contextos, é suficiente. Não é o que acontece, porém, na maior parte das situações de nossa vida. Um artigo de jornal, por exemplo, mesmo apelando fortemente para a nossa razão, será quase sempre escrito de modo a conquistar a nossa simpatia, ressaltando determinados aspectos da questão e pondo outros na penumbra. A mesma coisa irá acontecer com um advogado defendendo seu cliente diante de um juiz.

Duke University Libraries - Digital Collection

lógica e argumentação

página 78

minuir os números envolvidos. Peça a todos que imaginem um mundo no qual as pessoas tivessem, no máximo, 5 fios de cabelo. Se houvesse 7 pessoas nesse mundo, necessariamente duas delas teriam o mesmo número de fios de cabelo.

The Hartman Center for Sales, Advertising & Marketing History /

taz, mas era perfeitamente compreendido por qualquer pessoa que o lesse. Após chegar à conclusão de que “dirigir com Hitler”, nesse contexto, quer dizer “ajudar Hitler a chegar aonde ele quer” (ou, mais simplesmente, “ajudar Hitler”), deve-se perguntar por que dirigir sozinho era uma forma de ajudar Hitler. Só depois de esse contorno contextual estar suficientemente claro, o segmento inicial do argumento, com as sentenças 1, 2 e 3, deve ser escrito na lousa.

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O ideal é dedicar uma aula toda para discutir o texto de Aristóteles, que oferece alguma dificuldade. Você pode, antes de tudo, contextualizar a passagem, falando a respeito do sistema político ateniense e, em particular, sobre os debates constantes dos quais participavam os cidadãos da democracia ateniense. Em seguida, pode conduzir uma análise em grupo de cada um dos parágrafos do texto, estruturando a leitura dos alunos através de uma série de perguntas estrategicamente formuladas. A Situação de aprendizagem é pensada com esse intuito. Ainda em torno da citação de Aristóteles, proponha aos alunos a seguinte reflexão: que tipo de regra ele está sugerindo adotarmos? Discuta a metáfora utilizada na última sentença do texto. Note que o carpinteiro representa o juiz que deve formar sua opinião a partir das razões apresentadas pelos oradores. Essas razões, quando são boas, funcionam como a régua usada pelo carpinteiro, garantindo a existência de uma proporção correta

mais é meramente acessório. Apesar disso, esses estudiosos nada dizem a respeito dos argumentos, que são o corpo da persuasão racional; eles se ocupam muito mais de coisas que não dizem respeito ao assunto. Apelar para os preconceitos, para a compaixão, para o ódio e emoções desse tipo nada tem a ver com aquilo que é essencial à retórica. Provocar essas emoções é só um meio de manipular a pessoa que irá decidir uma questão. Daí que muitos professores e livros de retórica já não teriam mais nenhuma utilidade, se fossem sempre aplicadas as regras a esse respeito que existem em certas cidades, especialmente nas bem governadas. No fundo, todos acham que essas regras deveriam existir. Mas ocorre que apenas em alguns lugares essas regras são seguidas, como acontece no Areópago, onde não é permitido falar de coisas que não sejam essenciais à discussão do caso em pauta. Esse é um decreto e um costume muito sadio. Não é correto atrapalhar o discernimento de quem julga provocando raiva, inveja ou compaixão. Fa-

zer isso é como entortar a régua que será usada pelo carpinteiro.” (Aristóte-

les, Retórica, 1354a. Nossa versão indireta a partir da tradução inglesa de J. H. Freese. Cambridge; Londres: Harvard University Press; Heinemann, 1926)

Você é capaz de convencer um júri?

lógica e argumentação

Foto: CC-BY-SA-3.0 Joanbanjo

Análise de texto e debate em sala de aula

livro do professor

O Aerópago era um conselho existente na Atenas antiga, formado por aristocratas que desempenhavam funções políticas. A retórica tinha papel crucial nos debates.

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• Analise o trecho da Retórica aqui citado. Conduza sua análise procurando responder a essas questões: – Qual a opinião de Aristóteles a respeito do ensino da retórica em sua época? – Que críticas ele dirige aos autores de livros de retórica? – Quais são, segundo Aristóteles, os elementos essenciais da retórica? – De outro lado, quais são os elementos que não são essenciais a ela? • Em seguida, formando um par com um(a) colega, discutam juntos a seguinte situação: imaginem que vocês vivem em Atenas à época da democracia antiga, em que as audiências eram realizadas no Tribunal, ao ar livre, congregando muitos cidadãos. Suponham que um homem está sendo acusado de roubo e vocês estão tentando condená-lo. Vocês não têm provas de que ele é culpado, mas irão apelar para coisas que nada têm a ver com o roubo em si, de modo a fazer os jurados sentirem raiva desse homem. Como vocês poderiam fazer isso? Suponham então que, inversamente, vocês estão tentando absolver esse homem, mas todas as provas parecem incriminá-lo. O que vocês podem fazer para que os jurados sintam compaixão desse homem, e acabem por absolvê-lo ou ao menos atenuem a sua pena? • Apresentem aos demais colegas de classe os seus resultados.

Aristóteles Nasceu na cidade de Estágira, na Macedônia, em

página 85

Obras de Aristóteles e sua edição crítica

384 a.C., e morreu em Atenas em 322 a.C. Foi, du-

Para a localização precisa de textos de Aris-

rante algum tempo, responsável pela educação do

tóteles, a comunidade de pesquisadores con-

jovem Alexandre, filho do rei Filipe da Macedônia,

vencionou tomar como referência a edição de

que iniciou um domínio sobre os Gregos que seu

August Immanuel Bekker das obras do filósofo.

filho iria expandir, obtendo o mais vasto império até

O motivo é simples: o filólogo alemão Bekker

então conhecido, que alcançou a Índia.

(1785-1871) foi o primeiro a realizar uma edição

Antes disso, com cerca de dezoito anos, Aristóteles viajou a Atenas e logo entrou para a Academia,

crítica dessas obras, a qual serviu de base para as posteriores.

escola fundada por Platão (428-348 a.C.). Nela per-

O que significa “edição crítica”? Basicamente,

maneceu por vinte anos, deixando-a apenas após a

que numa edição dessas são confrontadas e anota-

morte do mestre. Depois de retirar-se de Atenas por

das todas (ou as principais) fontes documentais de

Em português, crescem em quantidade e qualidade as traduções dos textos de Aristóteles. A Universidade Estadual de Campinas vem publicando traduções de importante especialista, Lucas Angioni, de livros da Física e da Metafísica, com comentários: • Aristóteles, Metafísica, Livros IV e VI, trad. L. Angioni. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n. 14. IFCH – UNICAMP, Setembro de 2007. • Aristóteles, Metafísica, Livros VII e VIII, trad. L. Angioni. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n. 11. IFCH – UNICAMP, Setembro de 2005. • Aristóteles, Metafísica, Livros IX e X, trad. L. Angioni. Clássicos da Filosofia: Cadernos de Tradução n. 9. IFCH – UNICAMP, Novembro de 2004. • Aristóteles, Metafísica, Livro XII, trad. L. alguns anos, retorna e funda sua própria escola, o

que dispomos de determinado texto. Como você

Liceu, no qual ensina até o fim de sua vida.

pode imaginar, pode ser bastante trabalhoso o

A filosofia de Aristóteles consiste numa tentati-

processo de confrontar essas fontes, para localizar

va de pensar questões e problemas filosóficos her-

diferenças de um documento a outro (chamadas

dados do platonismo, mas por vias e por meio de

variantes: acréscimos, supressões, discrepâncias e

soluções que frequentemente se

variações de ortografia e gramáti-

distanciam desse mesmo plato-

ca etc.). Feito isso, o editor crítico

nismo. Assim como seu mestre,

terá de decidir, com base em uma

Aristóteles foi um autêntico fun-

pesquisa mais abrangente, quais

dador de temas filosóficos, não

dessas variantes o texto principal

somente em áreas que ainda

deve seguir no corpo da página;

hoje consideramos como tipica-

as outras variantes são anotadas

mente filosóficas, como metafí-

em pé de página. Voltando à edição de Bekker

sica, lógica, ética, como também

em assuntos que posteriormente ganharam autonomia científica, como a física ou a biologia. Al-

guns de seu principais escritos

para as obras de Aristóteles: a numeração ali utilizada, e que depois virou padrão nas referências às obras do filósofo, com-

são: Metafísica, Ética a Nicômaco, Primeiros analíticos,

põe-se de três elementos: o número da página,

Segundos analíticos, Partes dos animais, Física.

a coluna (a ou b) e a linha. Assim, para o seguinte

A influência exercida por Aristóteles na Anti-

trecho (citado no corpo desta Unidade): “[...] é proi-

guidade tardia, na Idade Média (especialmente a

bido falar de coisas que não sejam essenciais à dis-

partir da recuperação de importantes livros seus,

cussão do caso em pauta. Esse é um costume muito

à época desconhecidos no Ocidente, conservados

sadio. Não é correto atrapalhar o discernimento de

por pensadores árabes) e no início da Modernidade

quem julga provocando raiva, inveja ou compaixão”,

foi extraordinária, provavelmente inigualada. Sua

a referência é 1354a 14-18.

metafísica e seu pensamento moral forneceram

“1354”: essa página pertence ao livro da Retóri-

elementos analíticos e conceituais para a teologia

ca (aliás, é a primeira, uma vez que, na edição de

cristã durante a Idade Média, e os principais pensa-

Bekker, o livro vai dessa página à página 1419);

dores da Modernidade nele tiveram seu grande adversário, no intuito de propor uma nova concepção

de ciência. Sua ética ainda é vivamente debatida por pensadores contemporâneos.

Cabeça de Aristóteles em mármore . Kunsthistorisches Museum, Viena/The Bridgeman Art Library/Keystone

página 84, Situação de aprendizagem

entre as diversas partes do móvel que ele está construindo. O juiz também deve manter uma “proporção” correta entre as diversas sentenças dadas no tribunal. Uma retórica enganadora, que lance mão de fatores que nada têm a ver com o caso em exame, faz com que ele incorra em erro e seja injusto. Se você quiser aprofundar com os alunos o início desta história acerca da importância da argumentação na Grécia clássica, um texto muito útil e bastante introdutório é o capítulo escrito por Marcelo P. Marques, “Os sofistas: o saber em questão”, no livro Filósofos na sala de aula 2 (São Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 2007, pp. 11-45). O autor reconstitui a origem das técnicas de argumentação utilizadas pelos sofistas da Antiguidade, inscrevendo seu desenvolvimento no contexto social e política das cidades-Estado gregas.

lógica e argumentação

Lógica informal (São Paulo: Martins Fontes, 2012) de Douglas Walton é outro livro que pode ser usado por você para se aprofundar no assunto e extrair numerosos exemplos para uso em sala de aula. O quarto capítulo, intitulado “Apelos à emoção”, é especialmente útil para discutir o texto da Retórica que citamos, pois examina casos concretos de apelo à piedade, à ameaça e aos preconceitos que são usados para induzir pessoas e auditórios a aceitarem determinadas teses.

“a” indica que o texto referido está na primeira

coluna da página.

“14-18” indica as linhas da coluna em que se

encontra o trecho citado.

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página 90, Situação de aprendizagem Esta Situação de aprendizagem foi pensada para ser desenvolvida em classe. Ela serve para fixar aquilo que foi estudado até aqui e também para discutir as diversas formas que temos em nossa língua para expressar os quatro tipos de sentenças do diagrama. Sugerimos que você dê ênfase às variantes possíveis, tomando sempre cuidado para não modificar o sentido das sentenças originais. Damos, a seguir, algumas ideias para a

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que não fui, é falso dizer que fui. Se é verdade que exatamente esse pedaço do chão está molhado, é falso dizer que não está. Se é verdade que não está molhado, é falso dizer que está. Uma sentença e sua negação sempre devem ter valores de verdade opostos. Não é isso o que acontece, porém, com as sentenças: Algum contador tem boa memória.

vá criar o mundo novamente. Você quer criar um mundo no qual seja falso que algum contador tenha boa memória. Nesse mundo, nenhum contador poderia ter boa memória. Por outro lado, num mundo no qual é verdadeiro que existe pelo menos um contador dotado de boa memória, é falso que nenhum contador tenha memória boa. Isso nos mostra que a negação de: Algum contador tem boa memória

Algum contador não tem boa memória.

Note que estas sentenças podem perfeitamente ser verdadeiras ao mesmo tempo. Como questão de fato, aliás, é bem provável que haja contadores dos dois tipos: os que têm boa memória e os que não têm. Se é assim, então devemos concluir que a segunda sentença não é a negação da primeira. Nesse caso, não basta acrescentar um “não” à sentença para obtermos a sua negação. Temos que recorrer a algum outro meio. Para descobrir qual é a negação das duas sentenças acima, vamos imaginar que você

Exercício individual em sala de aula

Veja se consegue determinar qual é a negação das seguintes sentenças: 1) Todo cantor que está iniciando sua carreira gosta de ser aplaudido. 2) Algum dos convidados não estava presente. 3) Há pelo menos um jogador que não irá receber a medalha. 4) Ninguém gosta de ser traído. 5) Alguém não trouxe os documentos que pedi. 6) Carlos chegará da Inglaterra amanhã ao meio-dia. 7) Todos estão ansiosos com as provas. 8) Nem tudo que reluz é ouro. 9) Quem desdenha quer comprar. 10) Há males que vêm para o bem.

não é

Algum contador não tem boa memória

mas sim

Nenhum contador tem boa memória

Da mesma forma, a negação de

Algum contador não tem boa memória

é

Todo contador tem boa memória;

pois a única forma de criar um mundo no qual seja falso que exista um contador com boa memória é criar um mundo no qual todos tenham. Temos, portanto, quatro tipos de sentenças a considerar. Elas se opõem duas a duas: Todo contador tem boa memória.

Nenhum contador tem boa memória.

Algum contador tem boa memória.

Algum contador não tem boa memória.

A cruz no meio desse diagrama indica as proposições que se contradizem, isto é, que são a negação uma da outra. Utilizando a terminologia que acabamos de adotar, chegaremos ao seguinte gráfico:

livro do professor

Premissas e conclusões

discussão de cada um desses exemplos em classe. 1) A negação é “Algum cantor que está iniciando sua carreira não gosta de ser aplaudido”. Essa ideia poderia também ser expressa por meio da sentença “Existe pelo menos um cantor em início de carreira que não gosta de ser aplaudido”. 2) A negação é “Todos os convidados estavam presentes”. 3) Neste caso, é melhor primeiro converter a sentença para a forma canônica (“Algum jogador não irá receber a medalha”), para só então, usando o quadrado da x oposição, chegar à negação: “Todos os jogadores receberão a medalha”. 4) A dificuldade, aqui, é o uso da palavra “ninguém”. Faça primeiro a tradução da proposição para a forma canônica: “Nenhuma pessoa gosta de ser traída”. A contraditória seria: “Alguma pessoa gosta de ser traída”. A forma mais natural (mas não a única) de expressar essa ideia em português é usando o plural: “Há pessoas que gostam de ser traídas”. 5) A negação é: “Todos trouxeram os documentos que pedi”. O uso da palavra “alguém” deve ser tematizado. “Alguém” quer dizer “alguma pessoa”. Portanto, a sentença original poderia ser expressa da seguinte forma: “Alguma pessoa não trouxe os documentos que pedi”. A negação é “Todas as pessoas trouxeram os documentos que pedi”, ou, mais simplesmente, “Todos trouxeram os documentos que pedi”. 6) Aqui, temos uma sentença singular ou individual. Sentenças desse tipo não estão no quadrado da oposição, lógica e argumentação

Angioni. Cadernos de História e Filosofia da Ciência. CLE – UNICAMP, série 3, v. 15, n. 1. jan – jun 2005. • Aristóteles, Física I-II. Prefácio, introdução, tradução e comentário de L. Angioni. Campinas: Editora da Unicamp, 2009. Marco Zingano, outro conhecedor da filosofia aristotélica, publicou, pela Editora Odysseus, partes de dois livros da Ética a Nicômaco, com comentários: • Aristóteles, Ethica Nicomachea I 13 – III 8 – Tratado da virtude moral. Tradução, notas e comentários de M. Zingano. São Paulo: Odysseus, 2008. Outras traduções de importantes escritos podem ainda ser encontradas. Há ainda textos de comentários a obras aristotélicas que merecem destaque: • M. Zingano (org.), Sobre a Metafísica de Aristóteles (textos selecionados). São Paulo: Odysseus, 2005. • M. Zingano (org.), Sobre a Ética Nicomaqueia de Aristóteles (textos selecionados). São Paulo: Odysseus, 2010. Do mesmo especialista, há excelente texto introdutório: • M. Zingano, “A metafísica de Aristóteles”, in: Filósofos na sala de aula – vol. 3. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2009, pp. 12-53.

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livro do professor

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Você pode, neste ponto, explorar os diagramas, pondo lado a lado os diagramas de proposições contraditórias, para

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que o aluno perceba que um está “negando” o que o outro “diz”. O diagrama da proposição universal negativa, por exemplo, diz que existe pelo menos um elemento na região de S que não é P, ao passo que o diagrama de sua negação – a proposição universal afirmativa – diz que essa mesma região está vazia. Será útil selecionar três ou quatro das dez sentenças questionadas na Situação de aprendizagem à página 90 e substituir as letras “S” e “P” pelas expressões correspondentes. Por exemplo, a sentença “nem tudo que reluz é ouro” poderia ser simbolizada assim: Finalmente, para dizer que “Algum S não é P”, poremos o “x” na região de S que é exterior a P, indicando que existe pelo menos um elemento que está incluído em S, mas não em P:

Usando esses diagramas, podemos testar um grande número de argumentos que estão baseados no uso das palavras “todo”, “algum”, “nenhum” e “não”. Vamos voltar ao argumento que estudamos no início deste módulo e ver como ele poderia ser simbolizado com o auxílio de nossos diagramas. O argumento era o seguinte: Todo contador tem uma boa memória. Há pelo menos um atleta que não tem uma boa memória.

Portanto, há pelo menos um atleta que não é contador.

Utilizando as letras “C”, “M” e “A” para representar respectivamente as expressões “contador”, “pessoa com boa memória” e “atleta”, teríamos um argumento com a seguinte forma:

mos, então, de uma figura na qual existem três círculos entrelaçados: A

C

M

Agora, devemos representar as premissas do argumento nesse diagrama. Por onde começar? Pela primeira premissa ou pela segunda? Normalmente, tanto faz. No entanto, como existe aqui uma premissa particular e uma universal, é sempre melhor (e causa menos problemas) começar pela representação da universal. Representemos, então, a primeira premissa, afirmando que todo contador (C) tem boa memória (M). Os círculos que nos interessam são apenas os círculos de C e de M. Para dizer que todo C é M, devemos pintar de cinza toda a região de C que está fora de M. O resultado será este: A

C

Todo C é M.

Algum A não é M.

Portanto, algum A não é C.

lógica e argumentação

e sua negação é feita pela simples introdução da palavra “não”: “Carlos não chegará da Inglaterra amanhã ao meio-dia”. 7) Lembrar que “todos”, neste caso, refere-se a todas as pessoas de um certo grupo – os alunos de uma classe, os alunos de uma escola, os alunos que irão prestar vestibular etc. Somente o contexto pode determinar que grupo é esse. Em cada caso, teremos uma negação: “Algum aluno da classe não está ansioso com as provas”; “Algum aluno da escola não está ansioso com as provas” etc. Poderíamos usar uma forma também indeterminada de negação: “Alguém não está ansioso com as provas”. Mas é preciso que o mesmo grupo continue subentendido pela palavra “alguém”. 8) Fazer primeiro a tradução para a forma canônica: “Alguma coisa que reluz não é feita de ouro”. Em seguida, passar para a negação canônica: “Toda coisa que reluz é feita de ouro”. Finalmente, traduzir a sentença obtida para uma formulação mais usual: “Tudo que reluz é ouro”. 9) Fazer a tradução para a forma canônica: “Toda pessoa que desdenha quer comprar”. Utilizar a palavra “nem” (tematizada no exercício anterior) para obter uma negação imediata dessa sentença: “Nem toda pessoa que desdenha quer comprar”. Mostrar que esta forma é equivalente à forma canônica: “Alguma pessoa que desdenha não quer comprar”. 10) Forma canônica: “Algum mal vem para o bem”. Negação: “Nenhum mal vem para o bem”. Forma mais arredondada dessa negação: “Não há males que venham para o bem”.

coisas que reluzem

Sabemos como representar a primeira premissa. Sabemos como representar a segunda premissa. E também sabemos como representar a conclusão. Cada uma dessas sentenças corresponde a um dos diagramas que acabamos de examinar. Como poderíamos, porém, representar as duas premissas ao mesmo tempo? Elas não envolvem dois círculos apenas. Envolvem três: o círculo dos contadores (C), o círculo das pessoas com boa memória (M), e o círculo dos atletas (A). Partire-

M

Agora, vamos representar a segunda premissa – uma sentença particular negativa – nesse mesmo diagrama. Ela diz que existe pelo menos um atleta (A) que não tem boa memória (M). Tudo o que temos a fazer é ir até o círculo dos atletas e pôr uma letra “x” na região que está fora do círculo das pessoas que têm boa memória.

coisas que são de ouro

O aluno deve adquirir uma boa familiaridade com estes diagramas simples, antes de passar aos mais complicados, introduzidos logo a seguir.

página 94, Situação de aprendizagem 1) Comece discutindo com a classe a primeira premissa. Você deve mostrar que ela é equivalente à sentença “Todo médico competente é estudioso”. A partir daí, um diagrama simples mostrará que o argumento não é válido. 2) A função deste exercício é mostrar o quanto um pequeno detalhe nas premissas pode ser decisivo. O argumento é válido. 3) Os alunos devem perceber que a palavra “embora” não introduz nenhum

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A

C

Argumentos vĂĄlidos?

Desenvolvimento individual por escrito.

M

Como a premissa nĂŁo diz nada, devemos adotar uma solução neutra: poremos o nosso “xâ€? em cima da linha, indicando que nĂŁo sabemos se ele estĂĄ dentro ou fora do cĂ­rculo dos contadores: A

C

M

lógica e argumentação

Pronto. Agora, temos uma boa representação de nossas duas premissas. A pergunta que devemos fazer ĂŠ a seguinte: se isso que o grĂĄfico representa fosse verdadeiro, seria possĂ­vel que a conclusĂŁo fosse falsa? A resposta ĂŠ claramente “simâ€?. A conclusĂŁo afirma que existe pelo menos um contador que tem boa memĂłria. Nosso grĂĄfico estĂĄ afirmando isso? É claro que nĂŁo. Nosso grĂĄfico nos mostra exatamente o contrĂĄrio: estamos em dĂşvida a respeito disso. As premissas nĂŁo nos obrigam a posicionar o “xâ€? no interior do cĂ­rculo dos contadores. O “xâ€? pode tanto estar dentro daquela regiĂŁo, quanto fora dela. Portanto, ĂŠ perfeitamente possĂ­vel que as premissas sejam verdadeiras e a conclusĂŁo seja falsa. O argumento nĂŁo ĂŠ vĂĄlido.

Vamos agora testar a validade dos seguintes argumentos: 1) NĂŁo hĂĄ mĂŠdico competente que nĂŁo seja estudioso. Nenhum mĂŠdico que trabalha nesse hospital ĂŠ competente. Portanto, nenhum mĂŠdico que trabalha nesse hospital ĂŠ estudioso. 2) NĂŁo hĂĄ mĂŠdico estudioso que nĂŁo seja competente. Nenhum mĂŠdico que trabalha nesse hospital ĂŠ competente. Portanto, nenhum mĂŠdico que trabalha nesse hospital ĂŠ estudioso. 3) Todos os rios desta regiĂŁo estĂŁo poluĂ­dos, embora nem todos sejam perigosos. Pode-se concluir daĂ­ que nenhum rio poluĂ­do desta regiĂŁo ĂŠ perigoso. 4) NĂŁo hĂĄ rio que seja seguro, embora alguns sejam fascinantes. Isso mostra que nem tudo que ĂŠ fascinante ĂŠ tambĂŠm seguro. 5) Todos os policiais que faziam a ronda da cidade a cavalo despertavam o orgulho de seus familiares. Todo aspirante que se classificava entre os dez melhores alunos do curso passava a fazer a ronda da cidade a cavalo. Pode-se concluir daĂ­ que todo policial que despertava o orgulho de seus familiares havia se classificado entre os dez melhores alunos do curso. 6) Nem tudo que reluz ĂŠ de ouro, e nem tudo que ĂŠ de ouro nos traz felicidade. Portanto, nem tudo que reluz nos traz felicidade.

pĂĄginas 95-96 O intuito dessa breve introdução aos conectivos lĂłgicos e Ă s correspondentes tabelas de verdade ĂŠ muito mais apresentar essa maneira de dispor proposiçþes e apontar para a utilidade da linguagem artificial – mas nĂŁo propriamente oferecer uma seção sobre lĂłgica formal. Esse ĂŠ um material adicional, e vocĂŞ deve ponderar

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atÊ que ponto serå oportuno desenvolvê-lo em classe; o box não interfere no seguimento desta Unidade. Para chamar a atenção quanto à utilidade da linguagem formal, você pode fazer um paralelo com a linguagem que utilizamos na ålgebra, por exemplo. A Situação de aprendizagem a seguir pode ser uma boa forma de mostrar aos estudantes como, conhecendo ou não lógica formal, nos valemos desses conectivos no cotidiano, por exemplo em consultas à internet.

ALGUNS PRINCĂ?PIOS DE LĂ“GICA FORMAL

A lógica contemporânea desenvolveu-se a

Uma caracterĂ­stica dessas linguagens artifi-

partir dos trabalhos de autores como Gottlob

ciais ĂŠ possuir sĂ­mbolos especiais corresponden-

Frege (1848-1925) e Bertrand Russell (1872-1970),

tes a palavras e expressĂľes da linguagem coti-

que criaram linguagens artificiais para codificar os

diana que sĂŁo fundamentais para entendermos

processos de inferência. Sentenças da linguagem

os processos de inferĂŞncia. Abaixo estĂŁo algu-

cotidiana podem ser reescritas nessas linguagens

mas das principais palavras desse tipo e alguns

artificiais – adquirindo um aspecto um pouco es-

dos sĂ­mbolos usados nas linguagens artificiais

tranho para nĂŁo especialistas, mas muito Ăştil para

da lĂłgica para representĂĄ-las. Vejamos como

se testar se uma inferĂŞncia ĂŠ vĂĄlida ou nĂŁo. Nome

formal

funciona cada um desses símbolos. Interpretação na

SĂ­mbolo

Negação

Conjunção

linguagem comum

ÂŹ â‹€

“nĂŁoâ€? “eâ€?

Disjunção

â‹

“ou�

Condicional

â&#x;ś

“se... entĂŁoâ€?

Bicondicional

â&#x;ˇ

“se e somente se�

Negação (“nĂŁoâ€?)

Conjunção (“eâ€?)

É a operação que inverte o valor de verdade de

A a palavra “eâ€? tambĂŠm ĂŠ importante para a lĂłgica.

uma proposição. Se p for uma proposição qualquer,

Uma proposição na qual duas outras proposiçþes

então, se p for verdadeira, p serå uma proposição

falsa; se p for falsa, ÂŹp serĂĄ verdadeira. Podemos representar o funcionamento desse sĂ­mbolo lĂłgico por meio de uma tabela de verdade:

estĂŁo unidas pela palavra “eâ€? ĂŠ chamada na lĂłgica de “conjunçãoâ€?. Uma conjunção sĂł ĂŠ verdadeira caso as duas proposiçþes conectadas pela palavra “eâ€? forem verdadeiras. Um dos sĂ­mbolos comumente usados pelos lĂłgicos para simbolizar a conjunção ĂŠ

â‹€. Eis a tabela de verdade de uma conjunção:

p

ÂŹp

V

F

p

q

F

V

pâ‹€q

V

V

V

V

F

F

A tabela nos mostra o funcionamento do

F

V

F

sĂ­mbolo ÂŹ, que como vimos corresponde Ă pa-

F

F

F

lavra “nĂŁoâ€? da linguagem cotidiana. Na coluna da esquerda, listamos os dois valores de ver-

Como se vĂŞ, a conjunção “p â‹€ qâ€? sĂł ĂŠ verda-

dade que a proposição p pode possuir: ou ela

deira na primeira linha, quando tanto p quanto

ĂŠ verdadeira (V), ou ĂŠ falsa (F). Na coluna da

q sĂŁo verdadeiras. Em todas as outras linhas, a

direita, você vê o valor que a negação assume

conjunção Ê falsa.

em cada caso: falsa quando p ĂŠ verdadeira, e

Vamos imaginar que no lugar da letra “p� te-

nhamos a proposição “5 ĂŠ um nĂşmero primoâ€?

verdadeira quando p ĂŠ falsa.

ALGUNS PRINCĂ?PIOS DE LĂ“GICA FORMAL

e que no lugar da letra “qâ€? tenhamos a proposição “9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€?. A conjunção p â‹€ q

corresponderia à sentença:

“5 ĂŠ um nĂşmero primo â‹€ 9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€?

Recorrendo mais uma vez a nosso exemplo,

obteremos a proposição:

“5 ĂŠ um nĂşmero primo â&#x;ś 9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€? Esta ĂŠ uma proposição falsa, pois “5 ĂŠ um nĂş-

que ĂŠ falsa, pois a proposição correspondente Ă

mero primoâ€? (o antecedente) ĂŠ uma proposição

letra “qâ€? ĂŠ falsa. Temos, portanto, o caso corres-

verdadeira e “9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€? (o consequente)

pondente Ă segunda linha da tabela.

Ê uma proposição falsa. Se invertermos a posição do antecedente e do consequente, porÊm, tudo

Disjunção (“ouâ€?)

Para que uma disjunção seja verdadeira,

basta que apenas um dos elementos conectados seja verdadeiro.

muda. A proposição:

“9 ĂŠ mĂşltiplo de 2 â&#x;ś 5 ĂŠ um nĂşmero primoâ€?

ĂŠ verdadeira, pois tem antecedente falso e consequente verdadeiro, o que corresponde Ă

p

q

pâ‹ q

V

terceira linha de nossa tabela. Note que, se tivermos duas proposiçþes

V

V

falsas, o condicional serĂĄ verdadeiro, como se

V

F

V

pode ver consultando a Ăşltima linha da tabela.

F

V

V

F

F

F

Assim, muito embora isso pareça estranho, a proposição:

“A Lua ĂŠ de queijo â&#x;ś 2+3=77â€?

Ê uma proposição verdadeira, pois tem antece-

Colocando as mesmas proposiçþes no lugar

dente falso e consequente falso.

das letras “pâ€? e “qâ€?, obterĂ­amos agora a proposição “5 ĂŠ um nĂşmero primo â‹ 9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€?

que Ê uma proposição verdadeira, conforme se pode verificar na segunda linha da tabela.

Bicondicional (“se e somente seâ€?) Um bicondicional sĂł serĂĄ verdadeiro se

o valor das duas sentenças conectadas for o mesmo.

Condicional (“se... entĂŁoâ€?)

Um enunciado condicional tem a forma “se p,

então q�, e Ê simbolizado nas linguagens artificiais da lógica por meio do símbolo

â&#x;ś. A pro-

posição que Ê posta antes desse símbolo Ê cha-

x

y

xâ&#x;ˇy

V

V

V

mada de “antecedenteâ€?; a que ĂŠ posta depois ĂŠ

V

F

chamada de “consequenteâ€?. Um condicional sĂł

F

V

F

ĂŠ falso caso seu antecedente seja verdadeiro e

F

F

V

F

seu consequente seja falso. Em todos os outros casos, o condicional ĂŠ verdadeiro. Vejamos isso numa tabela de verdade:

Note que a proposição

p

q

pâ&#x;śq

V

V

V

V

F

F

F

V

V

F

F

V

“5 ĂŠ um nĂşmero primo

â&#x;ˇ 9 ĂŠ mĂşltiplo de 2â€?

ĂŠ falsa, pois a primeira proposição ĂŠ verdadeira e a segunda ĂŠ falsa. JĂĄ a proposição “A Lua ĂŠ de queijo â&#x;ˇ 2+3=77â€?

Ê verdadeira, pois as duas proposiçþes têm o mesmo valor de verdade (ambas são falsas).

pĂĄgina 97, Situação de aprendizagem Nem todos os motores de busca mais populares da internet, como Google, Yahoo!, UOL etc., continuam utilizando com rigor a sintaxe lĂłgica, como costumavam fazer atĂŠ a dĂŠcada de 2000 (ĂŠ possĂ­vel que alguns tenham deixado de fazĂŞ-lo para assim gerar mais resultados a cada pesquisa). AlĂŠm disso, o complexo programa que controla os resultados exibidos – o chamado “algoritmo de buscaâ€? – costuma ser alterado sem aviso prĂŠvio. Por isso, recomendamos que vocĂŞ realize testes em alguns diferentes sites de busca e bancos de dados poucos dias antes de propor a Situação de aprendizagem aos alunos. Em geral, bancos de dados de instituiçþes reconhecidas, notadamente pĂşblicas ou universitĂĄrias – como catĂĄlogos online de bibliotecas e outros acervos – costumam seguir essas convençþes (no caso, a sintaxe booleana, assim chamada

livro do professor

... ou dentro dele:

elemento relevante para a validade do argumento. Um ponto final separando as duas premissas funcionaria da mesma forma. O argumento não Ê vålido. 4) O argumento Ê vålido. Lembre-se de simbolizar primeiramente a premissa universal do argumento e depois a particular. 5) O argumento não Ê vålido. Deve-se tomar cuidado na hora de simbolizar. Aqui, mais ainda que nos outros casos, Ê importante usar letras esquemåticas na simbolização, pois os termos do argumento são longos e podem causar confusão. Planeje o uso da lousa. Se possível, escreva os termos do argumento usando cores diferentes. 6) Argumento invålido. Leitura complementar Caso você deseje conhecer melhor a doutrina do silogismo, pode consultar o sexto capítulo do livro Introdução à lógica, de Irving Copi (São Paulo: Mestre Jou, 1978). Você encontrarå ali tambÊm numerosos exercícios para serem trabalhados com seus alunos em sala de aula. Uma excelente introdução histórica pode ser encontrada no segundo capítulo de O desenvolvimento da lógica, de Martha Kneale e William Kneale (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991).

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em razão das pesquisas em álgebra do matemático inglês George Boole, 18151864). Listamos abaixo alguns endereços eletrônicos de bancos de dados que permitem busca booleana: • Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro, Brasil) – catálogos de livros, discos, partituras, materiais visuais: http://bn.br • Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (Universidade de São Paulo, Brasil) – livros, manuscritos, mapas, periódicos, imagens: http://www.brasiliana.usp.br • Portal do Professor do Ministério da Educação (Brasil): http://portaldoprofessor.mec.gov.br/ recursos.html • Banco Internacional de Objetos Educacionais (seção Brasil sob coordenação dos Ministérios da Educação e da Ciência e Tecnologia): http://objetoseducacionais2.mec.gov.br/ Quanto à primeira atividade proposta, é preciso convencionar os elementos que serão utilizados na pesquisa: p = pandeiro m = melodia j = Jackson (Não é preciso seguir essa convenção, podemos chamar “pandeiro” de a e “melodia” de x, como quisermos: o que importa é como esses elementos serão encadeados, e não as letras que os designam... desde que sejam utilizadas com coerência, é evidente.) • A pesquisa digitada sem quaisquer operadores em um motor de busca comercial costuma equivaler à seguinte expressão formal: p⋀ m É preciso que tanto p quanto m sejam verdadeiros, quer dizer: a rigor, que os resultados contenham ambos os termos e não apenas um deles. • A pesquisa:

pandeiro OR(melodia) é traduzida em linguagem formal como p⋁m Ela trará, portanto, todos os resultados onde p é verdadeiro (os resultados correspondentes ao termo “pandeiro”), e também todos os resultados em que m é verdadeiro (os resultados correspondentes ao termo “melodia”). • A pesquisa pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson) equivale à expressão lógica p ⋀ m ⋀¬j Há aqui três condições: 1) p deve ser verdadeiro, 2) m deve ser verdadeiro e 3) j deve ser falso (ou melhor: a negação de j deve ser verdadeira). • Quanto a expressões de pesquisa envolvendo “mangueira”, há diversas possibilidades. Por exemplo: mangueira NOT(árvore) ou samba AND(mangueira) NOT(fruta) Como se vê, as expressões “escola” e “samba” podem ser omitidas (ou incluídas em disjunção), o que privilegiará resultados que as contenham, mesmo que a pesquisa retorne outros resultados onde esses termos não são encontrados.

Expressões lógicas no nosso cotidiano

Quando fazemos pesquisas na internet ou em outros bancos de dados, muitas vezes usamos expressões lógicas. Digamos que você queira lembrar o nome de uma canção de Luiz Melodia cuja letra inclui a palavra “pandeiro”, ou conhecer gravações dela. Se, num site de buscas ou banco de dados, você digitar pandeiro OR(melodia) encontrará milhares de resultados que não lhe interessam. Isso porque o motor de busca utilizou a disjunção, o operador “ou” (⋁), e trará resultados que tenham qualquer dos dois, ou pandeiro ou melodia. Você pode direcionar melhor sua pesquisa, por exemplo digitando no campo de busca: pandeiro AND(melodia) ou pandeiro +melodia O que significa essa expressão? Que estamos interessados em todos resultados que tragam, juntos, os dois termos pesquisados. Não queremos registros que tragam apenas um deles, só “pandeiro” sem “melodia”, nem apenas “melodia” sem “pandeiro”.

Falácia e argumento

livro do professor

De acordo com a noção mais geral de “argumento”, toda pessoa que argumenta está sempre tentando persuadir um determinado “auditório”. Esse auditório pode ter dimensões muito diferentes e ser composto por pessoas dos mais variados perfis. Pode ser composto por

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Avançando mais um passo, digamos que nesse momento você não está mesmo interessado no grande artista paraibano Jackson do Pandeiro (nome artístico de José Gomes Silva, 1919-1982), e portanto gostaria de restringir ainda mais os resultados de sua busca, por meio da expressão: pandeiro AND(melodia) NOT(Jackson) ou pandeiro +melodia -Jackson • No exemplo acima, que operadores lógicos foram utilizados? Tente “traduzi-lo” para a linguagem lógica formal, utilizando os operadores e símbolos explicados no box sobre conectivos lógicos. (Um aviso: motores de busca da internet não costumam reconhecer esses símbolos; o objetivo é somente compreender quais são esses conectivos e como podem ser utilizados em uma situação prática.) • Em seguida, construa outras expressões de busca, mais complexas. Por exemplo: você está interessado em resultados que tenham a ver com “mangueira”, que podem ser ou não referentes à escola de samba carioca, mas que não tenham a ver diretamente com a árvore frutífera do gênero Mangifera. Como deveríamos formular a expressão de busca? Há mais de um modo de fazê-lo? Experimente formular, por escrito, duas outras pesquisas, utilizando, cada uma, de 3 a 5 elementos com diferentes operadores.

apenas uma pessoa – tome como exemplo um vendedor que tenta convencer você a comprar um determinado produto numa loja. O auditório de quem argumenta pode também ser composto por um pequeno grupo de pessoas – é o que acontece quando o professor de matemática

lógica e argumentação

Pesquisa em banco de dados e desenvolvimento individual por escrito

Outras possíveis pesquisas com vários elementos Para a última etapa, não é necessário recorrer a um motor de busca: o mais importante é exercitar a capacidade de formulação da expressão desejada. O que procuramos estimular nos educandos é 1) a concatenação de conectivos lógicos como uma maneira de realizar pesquisas mais eficazes e 2) mais generalizadamente, a explicitação lógica de sentenças. Digamos que procuramos por alguma passagem em que o escritor Machado de Assis mencione o rio São Franciso. Mas

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demonstra um teorema na lousa. E pode Portanto, se o que as premissas dizem é também ser composto por milhões e miverdadeiro, o que a conclusão diz deve lhões de pessoas – pense, por exemplo, ser verdadeiro também – o saldo de Antôem campanhas políticas ou publicitárias. nio deve ser superior ao de Vicente. Em todos esses casos, temos uma pesCompare esse argumento que acabasoa (ou um grupo de pessoas) tentando mos de examinar com este outro: “Todos convencer seus ouvintes (ou leitores) a os que foram à estreia da companhia de respeito de alguma coisa, e via de regra teatro puderam formar uma opinião bem quem procura convencer lançará mão de fundamentada a respeito do desempeargumentos: tentará levar seu auditório a nho dos atores. Alguns críticos não foram aceitar uma determinada conclusão tendo à estreia. A opinião de alguns críticos, como base determinadas premissas. portanto, não está bem fundamentada.” As premissas são as sentenças de que O que você acha? Este argumento é tanto eu quanto o meu bom? É fácil mostrar auditório partimos. A que não. conclusão é a sentenSuponhamos que seça a que pretendo fazer ja mesmo verdade que Nem todo argumento meu auditório chegar. A todos os que foram à que parece bom questão, porém, é que estreia puderam formar realmente é. Muitas nem todo argumento é uma opinião bem funbom, e nem todo bom damentada a respeito vezes pensamos argumento tem a mesma do desempenho dos atopoder chegar a força. Um argumento é res. É claro que isto não certa conclusão bom caso suas premisprecisa ser verdadeiro. sas efetivamente levem à Alguém pode ir à estreia pelas premissas, conclusão desejada. e dormir durante todo o mas na verdade não O problema é que nem espetáculo, ou pode ter podemos. todo argumento que pareuma ligação afetiva tão ce bom é realmente bom. forte com um dos atores Há argumentos que nos que se mostre incapaz enganam. Muitas vezes, de formar uma opinião somos levados a pensar que estamos autominimamente isenta. Suponhamos, enrizados pelas premissas a chegar a uma certretanto, que a premissa seja verdadeita conclusão, mas na verdade não estamos. ra – suponhamos que todas as pessoas Vejamos como isso acontece. que foram à estreia saíram do teatro em Considere, em primeiro lugar, o secondições de formar uma opinião funguinte argumento: “O saldo bancário de damentada a respeito do desempenho Carlos, embora positivo, é metade do dos atores. Suponhamos que a segunda premissa saldo de Antônio. O saldo de Vicente é também seja verdadeira e que alguns crí1/3 superior ao de Carlos. É óbvio, porticos teatrais não tenham ido à estreia da tanto, que o saldo de Antônio é superior peça em questão. Novamente, é claro que ao de Vicente.” isto pode ser falso. Supondo, no entanto, O argumento é irretocável. Se é verdaque as duas premissas sejam verdadeiras, de que o saldo de Carlos, embora positiserá que a conclusão tem que ser verdavo, é metade do saldo de Antônio, então deira também? É claro que não. Supoo saldo de Vicente teria de ser o dobro do nhamos que os críticos a que se refere a saldo de Carlos para alcançar o de Antôconclusão sejam idênticos àqueles mennio. Como é só 1/3 superior, não alcança.

página 98

Para um tratamento abrangente da noção de “auditório”, consultar a primeira parte do Tratado de argumentação: A nova retórica, de Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca (Tradução: Maria Ermantina Galvão G. Pereira). São Paulo: Martins Fontes, 2005.

Falácia e argumento página 108 Na realidade, a frase disparada pelo vigário não é exatamente uma citação bíblica (embora tenha relação com Jeremias 17,18 e Isaías 12,2). O efeito, para quem fala francês, repousa num “falso cognato”, isto é, palavras ou expressões em línguas diferentes que, embora sejam sonoramente próximas, têm significados parcial ou completamente diversos, como nesse caso – o verbo francês pavimenter (“pavimentar”) e o latim pavere (“estar apavorado”; “temer”; “re-

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cear”). Bastou ao vigário enunciar uma frase em latim, como se a tivesse extraído da Bíblia, para conseguir seu objetivo de não ser obrigado a pavimentar a rua diante de sua casa. O livro Como vencer um debate sem precisar ter razão, de Arthur Schopenhauer, com introdução, notas e comentários de Olavo de Carvalho, pode ser usado como texto complementar na preparação das aulas (Rio de Janeiro: Topbooks, 1997). Um tratamento mais aprofundado pode ser encontrado nos capítulos 6 e 7 de Douglas Walton: Lógica informal (São Paulo: Martins Fontes, 2012). No livro de Irving Copi, Introdução à Lógica (São Paulo: Mestre Jou, 1978), há uma enorme quantidade de exemplos e exercícios adicionais.

cipais.” (Schopenhauer, “A arte de sustentar a razão”. Tradução nossa. Edi-

rua diante de sua casa como tinham de fazer todos os demais cidadãos, citou um provérbio bíblico: paveant illi, ego non pavebo [i.e., “eles temem, eu não temerei”]. Isto bastou para persuadir as autoridades muni-

ção de referência: Der handschriftliche Nachlass [O espólio manuscrito], Manuscritos de Berlim, 1818-1830. Frankfurt: Kramer, 1970, p. 689)

Uma outra lógica: Newton da Costa Um dos princípios lógicos mais impor-

p ⋀ ¬p

tantes é o princípio de não-contradição. Ele

diz que nenhuma proposição pode ser ao

esse dilema, e dizendo algo que lhe parece ser correto naquela circunstância e (mais

negação, jamais pode acontecer de ambas

importante ainda) que poderia mesmo ser

serem verdadeiras. A validade desse princí-

correto. Pode haver obrigações morais que

pio pode ser exibida numa tabela de verda-

são contrditórias, de tal modo que deva-

de. Dizer que tanto uma proposição quanto

mos fazer duas coisas que não se conciliam

sua negação são verdadeiras corresponderia

entre si.

a afirmar a conjunção

p ⋀ ¬p

Traduzindo: que uma sentença e sua nega-

ção, sejam juntas verdadeiras. Isso contraria o princípio de não-contradição que, mesmo

sem o uso das tabelas de verdade, foi aceito desde a Antiguidade. No entanto, há determinadas situações que parecem oferecer

contraexemplos a ele. Suponha que você esteja numa guerra, e um general lhe dê a ordem para bombardear uma cidade. Suponha que p seja a proposição

“Eu devo obedecer às ordens do general” Nesse caso, ¬p será a proposição

“Eu não devo obedecer às ordens do general”

lógica e argumentação

Pode acontecer de, numa situação como

você estará simplesmente expressando

mesmo tempo verdadeira e falsa. De acordo com ele, se tomarmos uma proposição e sua

O professor Newton da Costa, nascido

em 1929, é um brasileiro que criou sistemas de lógica nos quais as contradições são permitidas, ou seja, sistemas nos quais as tabelas de verdade são muito diferentes daquelas apresentadas em nosso boxe sobre conectivos. Essas lógicas, chamadas de “lógicas paraconsistentes”, permitem lidar com situações como a que descrevemos acima, estudando que tipo de consequência essas “contradições” trariam para as teorias nas quais elas fossem admitidas. Se utilizamos uma lógica “clássica”, na qual vale o princípio de não-contradição, os dilemas morais têm de ser “negados” de algum modo. Se utilizamos uma lógica paraconsistente, é possível admiti-los e lidar com eles no interior de uma teoria sem maiores problemas.

essa, você ficar diante do que chamamos

O professor Newton da Costa publicou

de um “dilema moral”. Você não sabe o que

diversos livros e artigos a respeito de suas

deve fazer. Por um lado, você reconhece que

lógicas paraconsistentes e tornou-se inter-

deve obedecer às ordens de um superior;

nacionalmente reconhecido por esse traba-

por outro, não lhe parece correto destruir

lho. Quem desejar conhecer algo da sua pro-

vidas de civis ao bombardear aquela cidade.

dução, pode consultar o livro Ensaio sobre os

Nessa situação, é possível argumentar que,

fundamentos da Lógica (São Paulo: Hucitec,

se você disser a proposição

1994), de sua autoria.

página 109, Situação de aprendizagem 1) A junção dos predicados na conclusão não pode formar uma nova ideia que não estava presente nas premissas. Compare esse argumento (falacioso, sem dúvida) com este outro, que está em perfeita ordem: Este cachorro é bravo. Este cachorro é grande. Portanto, este cachorro é grande e bravo. Aqui, a conclusão realmente se segue das premissas, pois ela não está atribuindo ao cachorro nada que as premissas já não atribuíssem. Da mesma forma, seria perfeitamente legítimo raciocinarmos da seguinte maneira: Este cachorro é seu. Este cachorro é pai. Portanto, este cachorro é pai e é seu.

livro do professor

lógica e argumentação

não procuramos resultados envolvendo o personagem histórico São Francisco de Assis (Assis é uma cidade italiana, na região da Úmbria, em que o religioso cristão nasceu e viveu, no século XIII); nem do município de Assis, no Estado de São Paulo; nem do município Assis Brasil, no Acre: +Machado +Assis +rio +Francisco -Úmbria ou +Machado +Assis -Acre -Itália Atenção: este é somente um exemplo hipotético, para explicar como pesquisas em bancos de dados e na internet podem ser complexas, e saber formulá-las adequadamente será de grande ajuda. É possível que Machado de Assis jamais tenha escrito uma linha sobre o “Velho Chico”!

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Todo o problema no raciocínio original vinha do fato de juntarmos as palavras “seu” e “pai” para formarem um novo composto – “seu pai” – que não estava presente nas premissas. 2) Ao dizer que era preciso “fazer alguma coisa”, o presidente não estava querendo dizer que era preciso fazer “qualquer coisa”, independentemente de qual coisa fosse essa. O sentido de suas palavras era outro. Ela queria dizer que as pessoas não podiam ficar “de braços cruzados” – que era necessário achar uma solução para os problemas da empresa. Em nenhum momento ele disse que qualquer coisa contaria como solução para esses problemas. As pessoas deveriam pensar em soluções, que seriam então analisadas, comparadas entre si, até que houvesse um consenso a respeito de qual a melhor decisão a ser adotada. O funcionário conclui algo muito diferente. Afirma que, como tem em mãos um plano, e como esse plano “é alguma coisa”, esse plano é melhor do que nada e, portanto, precisa ser implementado. O que o presidente havia dito, porém, é que a empresa precisava de alguma coisa que fosse de fato uma solução, e não simplesmente de algo que apenas se apresentasse como solução. 3) Considerado em si mesmo, o argumento é fraquíssimo. Alguém pode perfeitamente ser confiável para determinadas coisas e não para outras. Além disso, é muito difícil concluir que, por não ter sido fiel no casamento com Fulano, essa mulher não seria uma esposa fiel em outras circunstâncias. No entanto, apesar de não ter nenhum apelo racional, o argumento tem um apelo emocional fortíssimo, especialmente numa sociedade machista como a nossa, que tende a usar dois pesos e duas medidas para avaliar o comportamento amoroso de homens e mulheres.

4) Este é um tipo muito comum de argumento ad hominem, conhecido como “tu quoque”, que em latim quer dizer “você também”. Ele é usado para desqualificar o argumento apresentado por alguém mediante a lembrança de que essa pessoa faz exatamente o contrário daquilo que está pregando. É a situação retratada no dito popular: “Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Que valor tem um argumento desse tipo? Depende muito do contexto. Quando o assunto é estritamente ético, o argumento pode ter um valor alto. Uma pessoa sabidamente desonesta, se pregasse a necessidade de sermos honestos, poderia ser submetida a uma objeção do tipo “tu quoque”. Uma resposta do tipo: “Quem é você para me dizer que devo ser honesto? Você mesmo é desonesto...” tem um apelo emocional forte, mas também um valor racional independente. Em alguma medida, nosso comportamento deve espelhar os valores éticos que consideramos corretos. Peça à classe para considerar duas situações imaginárias e compará-las entre si (as seguintes situações são mencionadas na “Conferência sobre ética” pronunciada em 1929 por Ludwig Wittgenstein [1889-1951]): Alguém está jogando xadrez sozinho e move o bispo de maneira incorreta. Outra pessoa vê aquilo e o repreende: “Não é assim que se move o bispo no xadrez”. Ao que o jogador responde: “Eu sei que não é assim que se move o bispo, mas mesmo assim quero movimentá-lo dessa forma. É problema meu”. Alguém está fazendo algo que consideramos moralmente incorreto, e lhe dizemos: “Não é assim que uma pessoa deve ser comportar”. A outra pessoa responde: “Concordo que as pessoas não devem se comportar desse modo, mas

Identificação de falácias

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6) “Especialistas disseram a este telejornal que a única maneira de o Brasil crescer a taxas elevadas é baixando os impostos para favorecer o investimento privado.” 7) Minha professora de Geografia disse que o rio Indo tem a maior parte de sua extensão em território indiano.

• Forme par com um colega e analisem a argumentação implícita na peça publicitária fictícia abaixo. Em seguida, apresente os resultados para os de mais alunos da classe, em forma de seminário.

Ilustração: Najla Bunduki com imagem de Anderm/Can Stock

Para “ganhar traquejo”, como se diz, discuta em equipe os seguintes argumentos, procurando dizer quais são falaciosos, e por quê. 1) Esse cachorro é seu. Esse cachorro é pai. Portanto, esse cachorro é seu pai. 2) O presidente da companhia abriu a reunião dizendo: “Precisamos fazer alguma coisa”. Um de seus funcionários apontou para o plano que ele próprio havia elaborado e emendou: “Isto é alguma coisa. Portanto, precisamos fazer isso”. 3) “É público e notório que essa mulher nunca foi fiel no casamento. Se ela não merece a confiança do próprio marido, como pode pretender ter a sua confiança, caro eleitor?” Reflita sobre esse argumento: ele procede racionalmente? Se mudarmos os gêneros de seus termos (“mulher” para “homem”; “marido” para “esposa”), ele permanece soando idêntico aos ouvidos do auditório? Por quê? Fundamente a sua resposta e discuta com os colegas. 4) “Quem é você para me dizer que refrigerante faz mal à saúde? Você também toma um montão...” 5) “Quem é você para me dizer que refrigerante faz mal à saúde? Você não é médico nem nutricionista...”

lógica e argumentação

Debate em sala de aula e apresentação de seminário

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Em primeiro lugar, porque a informação de que o consumo desenfreado de alimentos altamente calóricos faz mal à saúde está amplamente disponível na sociedade de hoje. Basta ler jornais ou assistir à televisão. Essa informação é em larga medida confiável, já que diversos especialistas vão aos jornais e às emissoras de televisão falar sobre o assunto. Isso não acontece no caso dos antibióticos. A informação disponível nos meios de comunicação de massa não é suficiente para sabermos que tal e tal remédio é indicado para tal e tal caso. Muito pelo contrário: a recomendação geral, seja das entidades de saúde pública, seja dos médicos, é combater a automedicação. Mas há um segundo motivo para dizermos que o argumento envolvendo o antibiótico é bom, ao passo que o argumento envolvendo o refrigerante é ruim. Se alguém seguisse meu conselho de não tomar refrigerantes em excesso, não estaria prejudicando sua saúde mesmo que eu estivesse errado, isto é, mesmo que refrigerantes não trouxessem qualquer potencial dano à saúde. No caso do antibiótico, não. Se eu estiver errado em meu “diagnóstico”, posso causar sérios danos à saúde da pessoa, e é por isso que os argumentos têm um peso muito diferente num caso e no outro. A resposta ao argumento mencionado na questão poderia ser a seguinte: “Não sou médico, mas diversos médicos atestam que tomar refrigerante em excesso faz mal à saúde. Não preciso ser astrônomo para saber que a Lua não é feita de queijo. Pelo mesmo motivo, não preciso ser médico para saber dos males causados pelo consumo excessivo de alimentos calóricos.” 6) Argumento muito comum nos meios de comunicação de massa. Para justificar uma determinada tese, recorre-se à opinião de especialistas no assunto. Ou seja, recorre-se ao argumento ad

livro do professor

quero continuar me comportando assim. Não me importo de me comportar de forma eticamente condenável”. Sentimos que há alguma coisa errada na segunda situação, e é isso que dá à argumentação “tu quoque” uma força relativamente grande em discussões de caráter ético. A ética não é um jogo (como o xadrez) que possamos jogar durante duas horas e depois escolher um outro jogo. As regras éticas têm de ter uma validade geral, não podem ora valer, ora não. Se eu digo uma coisa e faço outra, sem ver nada de errado nisso, ou estou sendo insincero a respeito dos valores éticos que aceito para mim e para os outros, ou então a regra em questão não tem nenhum valor para mim, e não tenho razão para tentar convencer os outros a segui-la. A “Conferência sobre a ética”, de L. Wittgenstein, não possui tradução para o português. O texto em inglês encontra-se em L. Wittgenstein, The Philosophical Review vol. 74 (1965), pp. 3-12. Ela traz o título “A Lecture on Ethics” e foi pronunciada em Cambridge em 1929. 5) Você deve fazer a classe perceber com clareza a diferença existente entre este argumento e o anterior. Não se trata aqui de uma resposta do tipo “tu quoque” e nem, de modo mais geral, de um argumento ad hominem. O que está envolvido, aqui, é uma variante do argumento ad verecundiam. Ao invés de justificar uma tese citando a autoridade de alguém, o argumentador está descartando uma tese ao considerar que a pessoa que a defende não está qualificada para opinar sobre o assunto. Como sempre, é preciso estudar a situação caso a caso. Suponha a seguinte variante do mesmo argumento: “Quem é você para me receitar este antibiótico? Você não é médico...” Aqui, o argumento parece bom. Por quê? Basicamente, por dois motivos.

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verecundiam, o que é perfeitamente legítimo e normal em determinadas circunstâncias. Se não temos conhecimento suficiente a respeito de um determinado tema, o mais sensato é mesmo procurar a opinião de um especialista. O problema começa quando a emissora de rádio ou televisão consulta apenas especialistas que têm uma determinada visão da economia, ou da política ou de outro assunto que seja, não dando espaço para que outras opiniões se manifestem com o mesmo destaque e a mesma frequência. Nesse caso, o uso do argumento ad verecundiam é claramente falacioso. Não se pode atribuir aos “especialistas” em geral uma opinião que é sabidamente compartilhada apenas por alguns especialistas. No mínimo, é preciso deixar claro que não estamos diante de uma opinião unânime, e que há divergências a respeito. 7) Uso perfeitamente normal do argumento ad verecundiam – mesmo

unidade

dúvida e certeza

livro do professor

página 111

Este módulo aproxima comparativamente realidades distintas: de um lado a dúvida corriqueira, um componente da vida cotidiana de todos nós; de outro, a dúvida com implicações mais profundas – por exemplo existenciais, morais, filosóficas, sociais. O que interessa é chamar a atenção para o fato de que, para além das diferenças não desprezíveis entre elas, pode-se conceber por trás de umas e outras um elemento de base do pensamento humano: o questionamento.

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Vivemos cercados de dúvidas

Variam as maneiras de lidarmos com as dúvidas, varia mais ainda o alcance das consequências envolvidas. Entretanto, parece haver algo compartilhado pelos tantos tipos diferentes de dúvidas formuladas por nós. (Além disso, às vezes até mesmo uma situação aparentemente banal pode dar origem a questionamentos de maior profundidade.) Essa compreensão será de grande proveito para uma aproximação introdutória da filosofia. Há dúvidas que podemos solucionar se lembrarmos o que fizemos, como: “Fechei a janela do quarto?”. Mas há outras que não conseguimos resolver recorrendo à nossa memória. Uma dúvida dessa poderá ter efeitos diferentes em cada um de nós. Alguns, mesmo sem concluir se fecharam ou não a janela, deixarão a dúvida de lado, ainda que saibam que a chuva poderá molhar o quarto, e levarão seus pensamentos para assuntos mais importantes. Outros, porém, poderão passar o dia pensando nisso, enquanto estudam, trabalham ou se divertem, ansiosos para voltar para casa e descobrir. Outros ainda, se não estiverem muito longe de casa, chegarão a dar meia volta, entrar em casa de novo e verificar se fecharam ou não a janela (descobrindo, muitas vezes, que a tinham fechado).

Machado de Assis (1839-1908), considerado um dos maiores escritores

brasileiros, é autor de romances como

Dom Casmurro e Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Vários outros exemplos poderiam ser dados além desse para ilustrar casos comuns e banais de dúvidas que nos ocorrem. Há também, digamos assim, dúvidas mais sérias e importantes, que nos acompanham durante muito tempo, às vezes durante anos, porque estão relacionadas ao nosso futuro e à nossa felicidade. Por exemplo, é muito natural que um estudante que está terminando o Ensino Médio se pergunte: “Que profissão devo seguir? Aquela que meus pais gostariam que eu seguisse ou aquela de que gosto?”. Ou então: “Será que conseguirei passar no vestibular sem fazer cursinho?”. Ou mesmo uma dúvida ainda mais geral: “Será que terei uma vida feliz?”. Também nesses casos, as pessoas reagem de modos diferentes a essas dúvidas, de acordo com suas próprias personalidades. Para certas pessoas, a dúvida é um estímulo para encarar novos desafios; para outras, pode ter um efeito paralisante, até que novas circunstâncias permitam ultrapassá-la. Essas reações mostram que estamos agora diante de casos mais importantes de dúvidas. Nossas decisões sobre como enfrentá-las terão profundo impacto em nosso futuro. E não podemos solucioná-las tão fácil e rapidamente como no caso da janela do quarto. Na verdade, muitas vezes passamos nossas vidas convivendo com elas. Mas há também outro tipo de dúvida, talvez mais complicada, que muitos de nós podemos ter. Certamente não são todas as pessoas que formulam esse tipo de dúvida, e mesmo os que o fazem, não o fazem com frequência. Mas alguns podem dar muita importância a elas. Alguns exemplos: “Deus existe?” – “O universo terá fim?” – “Qual foi sua origem?” – “Por que devemos respeitar regras morais e leis?”... Essas dúvidas podem ser chamadas de “filosóficas”.

dúvida e certeza

Vivemos cercados de dúvidas

Insley Pacheco. Coleção particular

4

se o rio Indo, que de fato nasce na Índia, tem a maior parte de sua extensão em território paquistanês. Para sustentar sua afirmação, o(a) aluno(a) recorre àquilo que lhe foi dito por sua professora de Geografia. Deve-se usar o exemplo para discutir (i) a inevitabilidade do uso do argumento de autoridade em nossa vida; e também (ii) a provisoriedade desse argumento. Aquilo que é dito por um professor pode estar errado. Mas teremos que nos valer da opinião de uma outra autoridade para contestar a autoridade do professor – o autor de um livro renomado ou de um artigo científico, por exemplo. No caso, a afirmação da professora está errada. O rio Indo nasce na Índia, mas tem a maior parte de sua extensão em território paquistanês. Será uma boa oportunidade para convidar os alunos a fazerem uma pesquisa na internet ou em um atlas atualizado e de boa qualidade.

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O Teeteto, um dos mais extensos e importantes diálogos de Platão, pretendeu, desde seu início, responder à pergunta “o que é conhecimento”. Após uma primeira tentativa frustrada dos personagens do diálogo, na qual Teeteto propôs a Sócrates que conhecimento fosse “sensação” (Platão, Teeteto, 151e-187a), surge uma segunda possibilidade: conhecimento é “opinião verdadeira” (Platão, Teeteto, 187b-201c). Contudo, nossos investigadores, logo no início da análise dessa resposta, se perguntam: se o conhecimento for opinião verdadeira, como distingui-lo da opinião falsa, visto que esta também pode existir? A partir deste momento, a investigação se volta para a explicação sobre como é possível haver opinião falsa, para finalmente concluir que, para sabê-lo, é preciso antes compreender o que é o próprio conhecer. Nesse ponto, após várias páginas de análises e tentativas de explicação, encontramos a fala de Sócrates que inicia nossa passagem: é preciso retomar o caminho do qual a investigação se afastou. É o que Sócrates propõe a seguir: “Então, para começar tudo de novo, o que alguém dirá ser o conhecimento?”.

diferenças entre seus conteúdos, tenham tudo isso em comum com as dúvidas de Bentinho e com aquelas sobre a janela. Também elas têm que lidar

com os mesmos tipos de dificuldades, e o modo como as abordamos podem possuir consequências significativas em nossas vidas.

A primeira coisa a levar em conta, quando abandonamos as dúvidas mais comuns, aquelas que surgem diariamente, e passamos para o âmbito da filosofia, reside no fato de que, com isso, a dúvida adquire novo significado e valor. Por um motivo simples: em filosofia, a dúvida também pode revelar-se um importante instrumento da investigação. Há um texto que põe essa novidade bem diante de nossos olhos. Trata-se de uma passagem de um dos diálogos mais importantes de Platão[+] (427-347 a.C.), denominado Teeteto. Nesse diálogo, Platão coloca em cena o filósofo Sócrates e seu interlocutor, Teeteto, ambos em busca do significado do conhecimento. De início, porém, ao invés de fixarem sua atenção sobre o significado de conhecimento, desviam-se dele para investigar o que é a falsidade. Logo esse desvio revela-se uma má escolha. Pois como seria possível conhecer o que é a falsidade, antes de sabermos exatamente no que consiste... “o conhecer”? Como poderíamos conhecer algo sem previamente ter definido o que é conhecimento? Vejamos a passagem: “Sócrates: Então, meu jovem, nosso argumento com razão nos censura e mostra que investigamos erroneamente, quando abandonamos o conhecimento para investigar antes a opinião falsa? Ora, é impossível que alguém a conheça antes de compreender suficientemente o que é o conhecimento. Teeteto: Sócrates, agora é mesmo preciso pensar como você diz. S.: Então, para começar tudo de novo, o que alguém dirá ser o conhe-

cimento? Não vamos desistir ainda, não é? T.: Absolutamente, a não ser que seja você quem desista. S.: Diga então, o que diremos dele, sem que entremos nós próprios em contradição? T.: Aquilo mesmo que tentamos há pouco, Sócrates, pois eu não sei dizer mais nada. S.: O quê? T.: Que a opinião verdadeira é conhecimento. Ao menos é sem erro dar opinião verdadeira, e tudo o que surge disso vem a ser belo e bom. S.: Teeteto, diz o condutor do rio que o próprio rio mostra o caminho. Se investigarmos seguindo em frente, talvez aquilo que investigamos se manifeste diante de nós, mas, se permanecermos parados, nada se manifestará. T.: Você está certo. Vamos em frente, ao exame. S.: Certamente é caso de um exame breve, já que uma arte inteira mostra a você que o conhecimento não é aquilo. T.: Como, e qual é essa arte? S.: Aquela dos maiores em matéria de sabedoria, que são chamados de oradores e advogados. Por meio de sua arte própria persuadem, não pelo ensino, mas fazendo os outros opinarem como eles desejam. Ou você acha que existem professores tão hábeis que consigam ensinar satisfatoriamente a verdade dos fatos, no pouco tempo que possuem, a quem não testemunhou um roubo ou outra violência?

dúvida e certeza

A dúvida, base da investigação

página 121 O expediente de personificar o lógos já aparecia num outro diálogo de Platão, denominado Protágoras. Nele, Sócrates e Protágoras iniciam seu diálogo perguntando-se sobre a possibilidade

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refere à investigação que ele e Teeteto estão fazendo como “nosso argumento”. Isso significa que a investigação de Sócrates e Teeteto a respeito do saber e do conhecimento deve procurar, digamos assim, obedecer ao lógos, ser racional. E esse lógos, diz Sócrates, deve impor-se às nossas vontades pessoais. Não escolhemos, diz Sócrates a Teeteto, investigar primeiro o que é conhecer, para só então responder à pergunta sobre a opinião falsa. A anterioridade da primeira questão em relação à segunda é inevitável em virtude de seus próprios conteúdos, porque ela é uma anterioridade “lógica”. Platão tem uma maneira bem interessante de comunicar a seu leitor a força dessa necessidade: ele personifica o lógos, como vimos na fala de Sócrates. É como se o lógos, na condição de uma personagem, dirigisse uma “censura” aos dialogantes, resultando na dificuldade em que ambos se encontram. Essa personificação é a forma encontrada pelo filósofo para expressar a inevitabilidade do lógos e de suas regras. E também, para quem se dispõe a investigar a verdade e encontrar definições, o quão superior ele é, se comparado a vontades individuais e interesses próprios daqueles que investigam.

Razão, justiça e conhecimento A mesma forma de conceber o poder do lógos se apresenta em alguns momentos daquele que provavelmente é o mais importante e influente diálogo escrito por Platão: A república. Nele, Sócrates e seus interlocutores investigam e tentam responder à pergunta “o que é a justiça”, e a investigação os levará a tentar compreender o que são um Estado justo e um indivíduo justo. Diante de manifestações de seus jovens interlocutores, que se reconhecem em dificuldade para levar adiante uma investigação tão difícil e importante, o experiente filósofo lembra-lhes de um procedimento metodológico importante, em pelo menos dois trechos do diálogo, que

A palavra lógos

A palavra lógos indica um tipo de pensamento e de linguagem que aspira a ser “lógica”. Também podemos dizer, usando outro termo muito empregado para traduzi-la, que a palavra aponta para o esforço de elaboração de um discurso racional sobre determinado tema ou assunto. Lógos se traduz, muitas vezes, por razão, porque expressa o esforço de dizer as coisas segundo regras de pensamento sistemáticas e plenamente inteligíveis. Isso explica também sua presença em quase todas as palavras que indicam propostas de compreensão sistemática e científica de diferentes objetos e temas: “psicologia” (um lógos sobre a alma, ou psiquê), “sociologia” (um lógos sobre a sociedade), “biologia” (um lógos sobre a vida), “antropologia” (um lógos sobre o homem) etc.

vale a pena registrar: “Mas não deve ser assim, como nosso argumento (lógos) nos indicava há pouco, e devemos obedecê-lo, até que alguém nos convença com outro, melhor” (Platão, República, 388e, tradução nossa); e “Não sei ainda, mas por onde o argumento (lógos) nos conduzir, como o vento, para lá deveremos ir” (Platão, República, 394d, tradução nossa). Não se engane: o fato de que o argumento nos conduz “como o vento” não significa que vamos para qualquer lugar, porque o vento sopraria de maneira sempre imprevista, resultando daí que a

livro do professor

página 117

de a virtude ser ou não ensinada, passando então a investigar o tema. De início, Sócrates entende que a virtude não pode ser ensinada, enquanto Protágoras pensa o contrário. Após muito especular e debater, acabam trocando de posição, dando-se conta disso já no fim de uma longa jornada, e Sócrates então observa que toda essa calorosa discussão que tiveram, e que quase foi interrompida por causa das divergências entre ambos, girava, sem que percebessem, em torno da questão sobre o que é a virtude. Fica sugerida aí situação semelhante àquela que encontramos em nossa passagem do Teeteto: como saber se a virtude pode ou não ser ensinada, sem antes saber o que é a virtude? No instante em que reconhece o fracasso da investigação, isto é, de que chegaram a uma aporia, diz Sócrates a Protágoras: “E parece-me que o resultado de nossos argumentos [lógoi, plural de lógos] como se fosse um homem, nos acusa e ri de nós. Se tivesse voz, diria: ‘Sócrates e Protágoras, que estranhos vocês são... Você, dizendo anteriormente que a virtude não é ensinável, agora se esforça para se contradizer... Protágoras, por outro lado, antes supondo que a virtude é ensinável, agora parece aplicar-se em favor do contrário...’” (Platão, Protágoras, 316a-361c, tradução nossa). Havia, portanto, uma necessária ordem de investigação, que obrigava os dois investigadores a se perguntarem primeiro sobre o que é a virtude, para então, de posse desse conhecimento, se perguntarem se ela pode ou não ser ensinada. Neste caso, não foram “censurados” pelo lógos, foram “acusados” e “ridicularizados” por ele.

dúvida e certeza

A dúvida, base da investigação

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Raimondi (c. 1480-1534), A eloquência, a filosofia e a ciência – Será que essas três figuras sempre

dúvida e certeza

se entendem?

livro do professor

Gravura. Biblioteca Nacional, Paris

Marcantonio

Note que a maneira como se compreende a investigação, colocando em segundo plano as vontades e até mesmo convicções mais pessoais dos participantes, em favor de uma necessidade racional que pode ultrapassá-las, aparece de forma clara nesse mesmo diálogo, A república, no início do Livro II, quando Glauco, personagem que dialoga com Sócrates junto com seu irmão Adimanto, afirma que vai retomar a tese desenvolvida no Livro I pelo sofista Trasímaco, segundo a qual a justiça consiste no interesse do mais forte. A Unidade Realidade e aparência, no módulo “Ser e parecer justo”, empreende a análise dessa passagem, destacando que Glauco deixa claro a Sócrates que não concorda com Trasímaco, mas que vai retomar sua tese e propor uma razão em seu favor, para que Sócrates possa melhor refutá-la. Com base nessa passagem do diálogo, a relação entre as duas Unidades pode e talvez mesmo deva ser feita, até porque as relações filosóficas entre “dúvida e certeza” e “realidade e aparência” são incontestáveis: quando tentamos afastar uma dúvida e encontrar certezas, estamos, afinal, procurando superar algum tipo de aparência, em favor da realidade.

investigação não teria rumo certo. Tratase de uma metáfora que indica que nós, os investigadores, somos conduzidos por caminhos que não escolhemos, definidos pela necessidade interna à argumentação. Voltemos agora ao trecho citado do diálogo Teeteto. Sócrates e Teeteto constatam o equívoco que haviam cometido. Tentaram descobrir o que pode ser opinião falsa, sem antes saber o que é conhecimento. O motivo: passaram a investigar o que é opinião falsa, porque foi afirmado que o conhecimento se define como opinião verdadeira; para saber o que é opinião verdadeira, a investigação julgou necessário investigar também o que seria opinião falsa. Mas como saber o que é opinião falsa, se não se sabe ainda o que seria o conhecimento? A investigação parece andar em círculo – está, portanto, condenada ao erro. Eis por que, diz Sócrates, é preciso “começar de novo”. Observe a metáfora do rio para expressar a ideia de que quem nos conduz, de fato, é o caminho traçado pelo próprio rio, e não um caminho que nós vamos criar. Assim como no caso do vento na passagem de A república, aqui seremos conduzidos pela força da correnteza do rio – pela força da correnteza do lógos. Sem saber o que mais dizer, Teeteto insiste na resposta anterior: “conheci-

mento” é “opinião verdadeira”. Sócrates então vai mostrar-lhe que essa definição não é satisfatória.

Sobre método e definições Segundo Sócrates, a arte da oratória, empregada nos tribunais, mostra que a definição de Teeteto não é boa. Por quê? Antes de tentarmos compreender como isso se dá, é necessário ter em mente algumas ideias que parecem pressupostas em todo esse raciocínio, que dizem respeito ao modo como Platão, neste diálogo e em alguns outros, parece compreender o que está em jogo quando nos propomos a dar uma definição de algo. Se respondo à pergunta: “o que é conhecimento?”, afirmando que “conhecimento” é “opinião verdadeira” (em outras palavras, dando uma definição de “conhecimento”), então estou afirmando que “opinião verdadeira” contém algo sem o que “conhecimento” não seria “conhecimento”. Mas será correto concluir que (1) sempre que houver “conhecimento”, haverá “opinião verdadeira”, e (2) sempre que houver “opinião verdadeira”, haverá “conhecimento”? A estratégia de Sócrates, com o exemplo dos oradores e advogados, consistirá em mostrar que a exigência (2) não é satisfeita: há casos em que se adquire “opinião verdadeira” sem com isso adquirir “conhecimento”, o que mostra que “conhecimento” e “opinião verdadeira” não são a mesma coisa – e era isso que estava por trás da ideia de uma definição. Assim, se Sócrates puder mostrar que é verdade que se pode adquirir “opinião verdadeira” sem adquirir “conhecimento”, “opinião verdadeira” não será mais uma definição adequada para “conhecimento”, por não satisfazer a exigência (2). Eis então como Sócrates argumenta: 1. No tribunal, um orador ou advogado precisa, em pouco tempo, produzir nos juízes uma opinião favorável ao que ele defende.

página 122

Isso significa que, aos olhos de Platão, a resposta dada por uma definição só será realmente bem-sucedida se for capaz de satisfazer certas exigências, entre as quais a seguinte: uma definição de algo terá que me dizer

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alguma característica exclusiva disso que é definido, que só isso possui e que se apresenta somente nele. Assim, responder à pergunta “o que é o conhecimento”, de modo a obter uma definição de “conhecimento”, parece nos colocar diante da seguinte situação, exemplificada agora pela resposta “opinião verdadeira”: se “conhecimento” for “opinião verdadeira”, então (1) sempre que houver “conhecimento”, haverá “opinião “verdadeira”, e (2) sempre que houver “opinião verdadeira”, haverá “conhecimento”. Todavia, nem sempre é esse o caso. Por isso é preciso qualificar melhor a definição de “conhecimento”, como se atesta na sequência desse desenvolvimento. “Conhecimento”, ao fim e ao cabo, será definido como “opinião verdadeira acompanhada de justificação”.

página 124 Embora esta formulação não possa ser encontrada manifestamente no conjunto dos escritos de Platão, esse importante diálogo platônico começa a esboçar uma noção fundamental a respeito do conhecimento, que vai dominar a reflexão filosófica posterior, segundo a qual conhecer algo é conhecer suas causas. Pode-se aqui introduzir, apenas a título de ilustração, a teoria aristotélica das causas e a importância destas, para tal filósofo, como índice de conhecimento – conhecer é conhecer causas. Neste caso, vale a pena recorrer a trechos do início da Física (os livros I e II você encontra em português: Aristóteles, Física I-II. Tradução de Lucas Angioni. Campinas: Editora da Unicamp, 2009) e do início da Metafísica permitem afirmar por que nossa opinião verdadeira é verdadeira. Ora, o fato de que o mesmo lógos norteia a investigação de Sócrates e Teeteto, e é uma exigência indispensável para o conhecimento, sugere que a própria investigação é uma tentativa de encontrar uma “opinião verdadeira, acompanhada de justificação”. Como vimos, trata-se de tentar conhecer o que é conhecer. Portanto, a investigação esteve, todo o tempo, servindo-se de um procedimento que agora se apresenta claramente. O objetivo de afastar a dúvida, em favor da posse de uma certeza, é, afinal, a tentativa de encontrar boas razões para aceitar que algo é verdadeiro. A investigação do filósofo será, por isso, inevitavelmente um procedimento argumentativo, uma procura por razões e justificações. Não basta “ter opiniões verdadeiras”, é preciso saber justificá-las. Eis o que tentam fazer Sócrates e Teeteto. A posse de uma justificação permite, segundo o texto, dar o passo fundamental e estabelecer uma diferença importante, entre estar de posse da verdade e conhecê-la como verdadeira. Eis-nos de volta à distinção entre certeza e verdade. O que nosso texto considera como “posse da verdade pela alma” equivale a uma certeza subjetiva. Somente a presença de uma justificação poderá conferir a essa “verdade” o sentido forte de conhecimento.

A experiência do diálogo

Atividade em equipe e debate em sala de aula 1. Em dupla com um(a) colega, escolha uma questão qualquer extraída do noticiário cotidiano, como um acontecimento político ou cultural, ou um fato que diga respeito a seu dia a dia, como, por exemplo, o comportamento de motoristas e pedestres nos centros urbanos brasileiros, ou a discussão sobre o tema da segurança pública. Em seguida, procurem montar um breve diálogo que contenha uma investigação, inspirada no exemplo do diálogo Teeteto, apresentando-a em sala de aula. 2. Em dois diálogos diferentes, Platão afirma que o pensamento consiste num “diálogo silencioso da alma consigo mesma” (cf. Teeteto, 189e; Sofista, 263e). Partindo disso, procure apresentar uma espécie de diálogo interior, no qual você pode pensar sobre uma questão e construir um conjunto de perguntas e respostas, também inspirados nos diálogos platônicos estudados. Apresente os resultados em dupla, para os demais colegas da classe.

Duvidando para atingir a certeza

dúvida e certeza

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Há situações de investigação em que se busca responder a uma questão, como “o que é conhecimento?”. Pode-se dizer, nesse caso, que havia uma dúvida no início da investigação, que motivava essa investigação e sem a qual a investigação não aconteceria. Toda busca de certeza consiste numa forma de eliminar uma dúvida. A dúvida, então, pode ser vista como um obstáculo a ser transposto, como algo

negativo e indesejado. À primeira vista, ninguém quer ter dúvidas e, quando as temos, todos nós queremos resolvê-las. Contudo, é possível também considerar a dúvida como um caminho para a certeza, fazendo da dúvida um método para encontrar a verdade. Pode parecer estranho, mas, desse ponto de vista, trata-se de procurar a dúvida, de escolher duvidar, exercitando a dúvida deliberadamente.

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página 124 Faça notar aos estudantes a definição de “pensamento” no Teeteto: “discurso ou argumentação (lógos) que a própria alma desenvolve sobre o que examina” (Platão, Teeteto, 189e. Tradução nossa). Algo semelhante se encontra em outro diálogo, denominado Sofista: “pensamento e discurso ou argumentação (lógos) são a mesma coisa, exceto que o pensamento é um diálogo no interior da alma consigo mesma, sem voz” (Platão, Sofista, 263e. Tradução nossa). Podemos então dizer que o diálogo entre Sócrates e Teeteto consiste numa maneira de apresentar o exercício do pensamento. Vale reforçar que Teeteto é um grande exemplo da maneira como Platão conduz suas investigações por meio de diálogos, todos eles contendo conversas com perguntas e respostas em busca de definições de palavras importantes. As personagens representam a atividade de pensar, que se exerce por meio de perguntas e respostas. É como se Platão nos dissesse, então, que quando pensamos a respeito de um assunto qualquer, fazemos a nós mesmos perguntas e procuramos respondê-las; e depois de respondê-las, reavaliamos os resultados e fazemos novas perguntas ou refazemos perguntas anteriores, agora reformuladas. Assim segue o pensamento. Isso não quer dizer que, para Platão, os diálogos que escreveu tenham sido apenas encenações literárias de argumentos elaborados por ele. Para esse filósofo, a filosofia envolve um ensino oral, que produz significativas mudanças no discípulo, ao investi-

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gar junto de seu mestre.

página 124, Situação de aprendizagem A forma como os diálogos de Platão desenvolvem investigações contém certamente algumas possibilidades de exercícios para o estudante. Aqui estão duas delas, a primeira mais simples que a segunda, de modo a aumentar a complexidade das atividades. Examine se, por razões de avaliação, ou para garantir que uma questão adequada e frutífera será explorada, não vale a pena você mesmo propor à classe um tema único; isso possibilitará comentar como os diferentes pares de alunos desenvolveram o mesmo tema, de modo a destacar os pontos positivos e negativos apresentados, além de outras características. Esclareça aos alunos que esse exercício deverá partir de uma questão claramente formulada, devendo todo o diálogo girar em torno dela, como uma tentativa de respondê-la. Em seu comentário, você pode, se for o caso, mostrar aquilo que se observou no diálogo de Platão: que, às vezes, a adequada investigação de uma questão ou conceito pressupõe necessariamente que outra ou outras investigações sejam feitas, a respeito de questões ou conceitos que, por alguma razão, são “logicamente anteriores” à questão inicialmente apresentada. Ou, então, que uma determinada investigação leva os investigadores a se dirigirem para outras, que se mostram também necessárias, procurando-se sempre, na medida do possível, não perder de vista a ligação entre elas e a questão originária. Você pode também delegar a uma parte de seus alunos a tarefa de avaliar se, no diálogo elaborado, eles entendem haver questões desse tipo, e quais seriam.

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(para os dois primeiros livros dessa obra, você pode consultar a tradução de Vincenzo Cocco, publicada na Coleção Os Pensadores: Aristóteles, vol. II, Abril Cultural, 1979).

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“Porque fomos crianças antes de termos nos tornado adultos, e porque julgamos ora bem, ora mal acerca de coisas que se apresentaram a nossos sentidos em uma época na qual não dispúnhamos ainda do inteiro uso de nossa razão, aconteceu que muitos juízos, formados com precipitação, impedem-nos de chegar ao conhecimento da verdade. E o fazem de modo que não há aparência de que possamos nos libertar, salvo no caso de nos dedicarmos a duvidar uma vez em nossas vidas de todas as coisas nas quais encontramos a menor suspeita de incerteza. [...]

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René Descartes (1596-1650)

E será mesmo muito útil rejeitar como falsas todas aquelas coisas nas quais pudermos imaginar a menor dúvida, de modo que, se descobrirmos algumas que, apesar dessa precaução, parecerem-nos manifestamente verdadeiras, consideremos então que são muito certas e as mais fáceis de conhecer.” (Descartes, Princípios da fi-

losofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 107108. Tradução nossa)

Descartes é considerado uma espécie de fundador da filosofia moderna, e uma das razões que justificam essa atribuição está justamente na nova maneira de conceber o papel da dúvida na filosofia. A passagem que lemos nos dá boas indicações dessa nova concepção. Inicialmente, o texto afirma uma característica de nossa condição: desde a infância, estamos habituados a levar em conta privilegiadamente o que percebemos pelos nossos sentidos. Como, nessa época da vida, estamos pouco habituados ao uso de uma razão ainda em formação, naturalmente adquirimos certas convicções que se alojam em nós com muita força, mas que são, na verdade, “juízos formados com precipitação”.

dúvida e certeza

Nesse caso, ela passa a ser um momento indispensável na descoberta da verdade. Aqui, estamos bem longe das situações de dúvida e investigação de nossa vida cotidiana. Quando me pergunto, no meio da rua e debaixo de chuva, se fechei ou não a janela do meu quarto antes de sair de casa, não escolhi essa dúvida, ela se impôs a mim. Do mesmo modo, quando alguém se põe a investigar se foi ou não traído por sua esposa, ele tampouco escolheu essa dúvida. Muito pelo contrário, a pessoa daria tudo para não vivenciar essa experiência. No caso da filosofia, entretanto, as coisas se passam diversamente. Como você logo irá verificar, houve filósofos que sustentaram que a dúvida seria o procedimento que nos garantiria estarmos de posse de verdades incontestáveis. Nesses casos, a dúvida é desenvolvida como um caminho ou método que escolhemos para alcançar a verdade. O filósofo que elevou o papel da dúvida a essa condição de instrumento filosófico indispensável na busca da certeza foi René Descartes (1596-1650). Para compreender como Descartes considerou a relação entre dúvida e certeza, vejamos algumas passagens de sua obra:

Frans Hals. Museu do Louvre, Paris

Os Princípios da filosofia foram publicados em 1644 por Descartes em latim, língua utilizada pelos doutos à época, com o seguinte título: Renati Descartes Principia Philosophiae. Descartes, entretanto, preocupava-se também em atingir um público mais amplo. E, assim como redigiu o Discurso sobre o método em francês, também cuidou para que suas obras em latim fossem traduzidas para a língua vernácula. Daí que os Princípios tenham sido traduzidos para o francês em 1647, pelo abade Picot, amigo e discípulo de Descartes, que revisou a tradução de sua obra. Esta primeira tradução francesa do original em latim corresponde ao texto em que nos baseamos aqui para a tradução em português. • Você também pode consultá-la no acervo eletrônico da Biblioteca Nacional da França, buscando esta referência: Título: Principes de la philosophie: première partie / Descartes; publiée avec une préface et une table de Descartes, une introduction et des notes, par T.-V. Charpentier [...] Autor: Descartes, René (1596-1650) Editor: Hachette (Paris) Data de publicação: 1904 • Você encontra a tradução integral dos Princípios de Descartes em ótima tradução brasileira: René Descartes, Princípios da Filosofia. Coleção Philosophia Analytica Edição Bilíngue. Tradução: Guido A.

página 131 Esta passagem também é citada, juntamente com sua continuação, na Unidade Eu e o Outro, no módulo intitulado “O ‘Eu penso’: Descartes”. Lá, o tema cartesiano do cogito é desenvolvido e explicado tendo por ênfase a questão da egoidade e da alteridade. Mas, cotejando as duas Unidades e os respectivos contextos em que o cogito cartesiano é discutido, você facilmente encontrará pontos de interesse. Um deles é que no momento de obtenção da verdade do cogito tudo o que é outro, que é exterior ao eu, permanece sendo recusado como duvidoso e, portanto, como falso; apenas adiante, a existência do que está fora do ego – o mundo exterior, por exemplo – obterá, também, o estatuto de uma certeza. A mulher da direita representa o prazer; a da esquerda, a difícil via da virtude (Annibale Caracci [1560-1609], A escolha de Hércules. (Óleo sb/ tela, 1596).

conta que todas as coisas que tinham até esse momento entrado em meu espírito não eram mais verdadeiras que as ilusões de meus sonhos” (Descartes, Discurso do método, tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 32). “Fazer de conta” é outra expressão que requer muito cuidado. Estamos acostumados a associá-la a fantasias literárias, romances, contos de fadas, nunca a investigações filosóficas. Mas o que ela quer dizer aqui? Retomemos as dúvidas mencionadas. O fato de que às vezes eu tenha sonhos que me pareçam absolutamente reais me leva a “fazer de conta” que neste momento esteja sonhando – e, de fato, posso estar sonhando o tempo todo. Não importa se creio ou não nisso, o que importa é que consigo “imaginar” essa possibilidade como uma possibilidade razoável. Há uma razão para ela – muitas vezes, sonhamos com fatos reais –, e essa razão é suficiente para que eu, metódica e deliberadamente, “faça de conta” que estou sonhando o tempo todo. Há uma

razão de duvidar, fundamentando esse “imaginar”, esse “fazer de conta”. Assim, a investigação de Descartes vai ampliar o máximo possível essa dúvida, procurando, diante de tudo, uma razão para duvidar, de modo a fazer de conta que tudo o que é duvidoso é também falso. A expressão “fazer de conta”, afinal, indica apenas que essa dúvida não é a expressão de uma situação realmente vivida pelo indivíduo René Descartes em seu cotidiano. Trata-se, isso sim, de apenas uma estratégia de descoberta de uma ou mais verdades indubitáveis, de modo a obter um conjunto sólido e inatacável de conhecimentos. Mas isso não retira dessa dúvida sua força e importância: ao baseá-la em razões, Descartes está justamente dissociando a dúvida de motivações individuais, que digam respeito apenas a si mesmo. Todos nós temos que reconhecer que há uma “dúvida mínima”, uma possibilidade ínfima de que possamos estar agora sonhando. A dúvida é, então, razoável, e isso basta para os propósitos da investigação filosófica.

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de Almeida (coord.), Raul Landim, Ethel Menezes Rocha, Marcos Gleizer e Ulysses Pinheiro. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2002. • Existe também uma tradução portuguesa que merece ser consultada: R. Descartes, Princípios de Filosofia. Tradução Alberto Ferreira. Lisboa: Guimarães, 1984.

Anibale Carracci. Museu Nacional de Capodimonte, Nápoles

Duvidando para atingir a certeza

página 133 Aqui, duas remissões são pertinentes. A primeira delas, e que já mencionamos, consiste em estabelecer uma articulação entre este passo do desenvolvimento do par dúvida e certeza com a Unidade Eu e o Outro, módulo “O ‘Eu penso’: Descartes”, no qual também é apresentado e discutido, sob outro enfoque, o cogito cartesiano. Os dois trechos são complementares,

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reaver aquelas crenças iniciais, acrescidas porĂŠm desta vantagem: agora, a certeza obtida a respeito dessas verdades ĂŠ outra, ĂŠ filosĂłfica e cientĂ­fica... VocĂŞ jĂĄ sabe no que reside a diferença: a certeza, agora, extrai sua garantia de algo que se encontrava presente naquela primeira verdade: “eu sou, eu existoâ€?. Para compreender o que isso quer dizer, vejamos mais uma passagem cartesiana, agora do Discurso do mĂŠtodo: “Considerei em geral o que ĂŠ exigido para que uma proposição seja verdadeira e certa. Pois, visto ter acabado de encontrar uma que sabia ser assim, pensei que devia tambĂŠm saber em que consiste essa certeza. E tendo observado nada haver em tudo isto – eu penso, eu existo – que me assegure que eu diga a verdade, a nĂŁo ser que eu vejo com muita clareza que, para pensar, ĂŠ preciso existir, julguei que poderia erigir como regra geral que as coisas que concebemos com muita clareza e distinção sĂŁo todas verdadeiras, havendo apenas alguma dificuldade em notar quais sĂŁo aquelas

Faça, como exercício momentâneo de reflexão, a seguinte experiência. Adote a perspectiva cartesiana e procure boas razþes para colocar em dúvida suas convicçþes mais fortes. Você não precisa comprometer-se com o conteúdo dessas dúvidas, e sim imaginar razþes para duvidar, e essas razþes devem ser aceitåveis a qualquer um e não apenas a você.

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• Organizando-se em equipes dispondo de trĂŞs a cinco participantes cada uma, busque entĂŁo responder Ă seguinte questĂŁo: atĂŠ onde somos capazes de duvidar de nossas certezas? Sistematize os resultados em forma de redação, apresentando as razĂľes favorĂĄveis e contrĂĄrias, em primeiro lugar, Ă ampliação da dĂşvida e, em segundo lugar, Ă afirmação de certezas que porventura consigam se mostrar resistentes a ela.

dĂşvida e certeza

AtĂŠ que ponto vocĂŞ ĂŠ capaz de resistir Ă dĂşvida? Atividade em equipe e desenvolvimento individual por escrito

pĂĄgina 134 Comente com os alunos, recorrendo ao texto das Meditaçþes, sobretudo as duas primeiras, como a investigação cartesiana estĂĄ repleta de perguntas que o filĂłsofo faz a si mesmo – e a nĂłs, leitores – e respostas que lhe permitem avançar e fazer sua investigação progredir. Faça entĂŁo associação com a afirmação platĂ´nica de que o pensamento consiste em diĂĄlogo interno da alma consigo mesma. Aqui vĂŁo dois exemplos, relacionados a momentos importantes da Segunda Meditação: “Mas o que ĂŠ que sou, entĂŁo? Uma coisa que pensa. O que ĂŠ uma coisa que pensa? É uma coisa que duvida, que concebe, que afirma, que nega, que quer, que nĂŁo quer, que imagina, tambĂŠm, e que sente. Certamente, nĂŁo ĂŠ pouco, se todas essas coisas pertencem Ă minha natureza. Mas por que nĂŁo pertenceriam?â€? (R. Descartes. Meditaçþes metafĂ­sicas, Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Descartes, Oeuvres, Paris: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. IX-1, p. 22); e “Mas, enfim, o que direi sobre esse espĂ­rito, ou seja, sobre mim mesmo? Pois atĂŠ aqui nĂŁo que concebemos distintamente.â€? (R. Descartes. Discurso do mĂŠtodo, IV parte, Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Descartes, Oeuvres. Paris: Vrin [Adam & Tannery], 1982, vol. VI, p. 33)

A expressĂŁo fundamental aqui ĂŠ regra geral. Da Ăşnica verdade conhecida, isto ĂŠ, da Ăşnica certeza absoluta, Descartes extrai uma regra geral que vai permitir saber, de agora em diante, “o que ĂŠ exigido para que uma proposição seja verdadeira e certaâ€?. E a regra geral ĂŠ: “as coisas que concebemos com muita clareza e distinção sĂŁo todas verdadeiras.â€? Essa serĂĄ a regra geral nĂŁo porque o filĂłsofo quis assim, mas porque encontrou essas caracterĂ­sticas – clareza e distinção de concepção – na Ăşnica verdade que possui: eu penso, logo existo. “Clareza e distinçãoâ€? sĂŁo, portanto, critĂŠrio de verdade. Quais pensamentos seus satisfazem esse quesito? É atravĂŠs dessa questĂŁo que Descartes irĂĄ prosseguir em sua investigação. Ao examinar a ideia de Deus, ser infinito, Descartes conclui que ele mesmo seria incapaz de pensĂĄ-la, caso ela nĂŁo fosse produzida por algo fora de sua consciĂŞncia. Afinal, como ĂŠ que um ser finito poderia dispor, sozinho, da ideia do infinito? Por essa via, Descartes obtĂŠm a certeza da existĂŞncia de Deus, uma conclusĂŁo que tambĂŠm satisfaz o critĂŠrio de verdade e que se torna, com isso, uma verdade demonstrada e irrefutĂĄvel. Na sequĂŞncia da investigação, o filĂłsofo deve sempre se perguntar se estĂĄ diante de uma concepção clara e distinta de algo; em caso afirmativo, terĂĄ obtido mais uma verdade. Assim se vai recuperar, agora como um conjunto sistemĂĄtico, o conjunto das verdades fundamentais. Por que, entĂŁo, ĂŠ tĂŁo frequente ouvir-se afirmar que o pensamento de Descartes inaugura a filosofia moderna? Porque agora uma verdade “subjetivaâ€? – eu penso, logo existo – se torna ponto de partida para a descoberta

de verdades realmente objetivas, que tĂŞm valor de conhecimento em sentido forte. DaĂ­ se dizer com frequĂŞncia que, com Descartes, a filosofia se torna uma reflexĂŁo sobre o sujeito do conhecimento, antes de mais nada, e que tal investigação sobre o sujeito do conhecimento traz ganhos para conhecer o prĂłprio mundo, alĂŠm de nos permitir descobrir atĂŠ onde esse conhecimento pode chegar. Vale a pena registrar que, conforme Descartes, a atitude de duvidar de tudo serve a uma finalidade teĂłrica, cognitiva, de “contemplação da verdadeâ€?. Logo, ela nĂŁo deve ser aplicada aos negĂłcios e problemas de nossa vida diĂĄria. Veja o que Descartes diz neste passo dos PrincĂ­pios da filosofia: “Entretanto, ĂŠ preciso observar que nĂŁo penso que devamos nos servir de uma maneira tĂŁo geral de duvidar, a nĂŁo ser quando nos aplicarmos Ă contemplação da verdade. Pois ĂŠ certo que, no que concerne Ă conduta de nossa vida, somos obrigados a seguir muito frequentemente as opiniĂľes apenas verossĂ­meis, visto que a ocasiĂŁo para agir em nossos negĂłcios se perderia quase sempre, antes que conseguĂ­ssemos nos livrar de todas as nossas dĂşvidas. E, se toda vez que nos deparamos com diversas dessas ocasiĂľes concernindo a um mesmo assunto, acontece nĂŁo percebermos, talvez, mais verossimilhança numa delas que nas demais, se a ação nĂŁo admite demora, a razĂŁo exige que escolhamos uma e que, apĂłs tĂŞ-la escolhido, que a sigamos constantemente, como se a tivĂŠssemos julgado muito certa.â€? (Descartes, PrincĂ­pios

da filosofia. Paris: Hachette, 1904, pp. 108-109. Tradução nossa.)

Observe que Descartes nĂŁo propĂľe que essa “maneira tĂŁo geral de duvidarâ€?

livro do professor

so. Assim termina a primeira de suas Meditaçþes. Ao iniciar a segunda, ele constata o seguinte: se duvido, então sou algo enquanto duvido. Só posso duvidar porque existo. Então, estå fora de dúvida que eu sou, eu existo. Essa Ê a primeira verdade que a investigação obtÊm. Por que Ê fora de dúvida que existo? Porque se eu não existisse, não poderia duvidar. A dúvida não pode questionar essa verdade, porque minha existência Ê exigida para que eu duvide. Como duvidar Ê pensar, concluo: penso, logo existo. Dessa primeira verdade, a investigação partirå para a descoberta de novas verdades, que, aos poucos, permitirão a Descartes colocar fora de dúvida muitas crenças båsicas que haviam sido objeto de suspeita, como, por exemplo, que não estou sonhando, que existe um Deus veraz e bondoso, que existe o mundo exterior. Descartes acreditava nisto antes de iniciar o processo dubitativo. Mas se viu obrigado, por decisão própria, a duvidar de tudo isso. Com a obtenção da primeira certeza (o cogito) e, com base nela, a descoberta de outras verdades, Descartes pode

o pensador que inaugura a filosofia moderna, serve-se do procedimento dubitativo de forma decisiva em sua filosofia. Só atravÊs desse procedimento Descartes estabelece suas certezas. Talvez um paralelo entre a dramaturgia (no caso, a tragÊdia de Shakespeare) e a filosofia (o cartesianismo) seja oportuno nesta etapa. Se você aprofundar essa direção, examine tambÊm com os estudantes as características gerais de outro grande herói moderno, ele tambÊm profundamente reflexivo, o Dom Quixote de Cervantes.

dĂşvida e certeza

jĂĄ que o “cogitoâ€? ĂŠ a Ăşnica coisa que resiste Ă dĂşvida metĂłdica instituĂ­da por Descartes. Portanto, o “cogitoâ€? (isto ĂŠ, o pensar, a reflexĂŁo pura) ĂŠ a primeira verdade metafĂ­sica. Prosseguindo nesta via, vocĂŞ tambĂŠm pode tirar proveito dessa remissĂŁo para aprofundar a diferença (que tambĂŠm ĂŠ comentada na Unidade Eu e o Outro, no mesmo mĂłdulo “O ‘Eu penso’: Descartesâ€?) do ponto de partida da filosofia moderna com a filosofia antiga ou com o pensamento cristĂŁo, para os quais a primeira verdade nĂŁo coincide com o pensar, como ĂŠ o caso em Descartes, mas com o ser, concebido, quer como a ideia do bem, em PlatĂŁo; quer como o ser infinito de Deus, para os pensadores medievais. Ambas as soluçþes sĂŁo mencionadas de passagem na Unidade PrincĂ­pio e temporalidade, nos mĂłdulos “PlatĂŁo e o tempoâ€? e “O tempo em Agostinhoâ€? – tendo por referĂŞncia a obra de P. Boehner e E. Gilson, HistĂłria da filosofia cristĂŁ (tradução de Raimundo Vier. PetrĂłpolis: Vozes, 1970). No que diz respeito aos pensadores medievais, a questĂŁo tambĂŠm ĂŠ discutida na Unidade Finito e infinito, no mĂłdulo “O infinito divinoâ€?. Veja tambĂŠm, como leitura complementar para introdução ao perĂ­odo, Alfedo Storck, Filosofia medieval. Coleção Passo-a-Passo. Zahar Editores: 2003. A segunda remissĂŁo ĂŠ interna Ă presente Unidade. VocĂŞ pode religar o passo abordado no mĂłdulo “Vivemos cercados de dĂşvidasâ€? em que se aponta para o carĂĄter moderno de Hamlet: sua virtude parece residir no exercĂ­cio que faz da dĂşvida, uma atitude eminentemente reflexiva. TambĂŠm Descartes, considerado por muitos estudiosos

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Limites da dúvida ao garantir a certeza página 140 Como observamos no Livro do Aluno, Porchat não permaneceu sustentan-

Pereira, “A filosofia e a visão comum

do mundo”, in: Rumo ao ceticismo, São Paulo: Editora da Unesp, 2007, p. 60)

Como se vê, Porchat identifica uma postura negligente de muitas filosofias em face do mundo. O mundo, para essas filosofias, não passa de um ponto de embarque, uma porta de entrada para uma investigação que, logo em seguida, lhe dá as costas. Mesmo quando se utiliza das “verdades comuns”, o discurso filosófico não reconhece nelas nenhuma dignidade própria: elas dispõem de um estatuto apenas provisório. De seu lado, Porchat assume a defesa da visão comum do mundo, recusando

© Robson Mereu

Oswaldo Porchat Pereira (1933- )

como arbitrário e artificial o incessante questionamento que muitas filosofias exercem sobre ele. O que equivale a dizer que Porchat eleva a visão comum do mundo ao nível de um saber filosófico. Ao fazê-lo, Porchat defende um ponto de vista baseado nas certezas mundanas, certezas que situa em um âmbito inalcançável pela dúvida filosófica: “O mundo reconhecido, que não é um problema, será o referencial permanente para a formulação de problemas e a proposição de soluções. Alfa e ômega da filosofia, origem e fim não questionáveis dos questionamentos filosóficos. E a filosofia remeterá constantemente ao Mundo para orientar, aperfeiçoar ou mesmo corrigir suas formulações. O caminhar da filosofia tem agora parâmetros bem fixos que o balizam.” (Porchat Pereira, “A filosofia e a

visão comum do mundo”, op. cit., p. 67)

Para concluir nosso percurso, vale lembrar que Ludwig Wittgenstein (1889-1951), um dos filósofos mais importantes do século XX, formulou reflexões de grande importância a partir das teses de G. E. Moore sobre o ca-

realidade e aparência página 145 “Fallitur visus” (Latim) “Las apariencias engañan” (Espanhol) “Der Schein trügt” (Alemão) “Appearances are deceptive” (Inglês) “L’apparenza inganna” (Italiano)

livro do professor

“Em tais filosofias, na melhor das hipóteses, o Mundo é apenas o ponto de partida que se vai deixando para trás, ou o porto de embarque que se perde logo de vista, na medida em que o discurso filosófico vai tomando forma e a viagem filosófica se processa. Procuram-se formas de expressão, métodos, critérios; buscam-se certezas, verdades, intuições; tudo se empreende, menos recorrer ao que lá atrás se deixou e se desqualifica. Se se utilizam as verdades comuns, é a contragosto e sempre como se fora provisório. Qual verdades em trânsito, sem direitos a um visa de permanência no discurso da filosofia. Verdades cujos préstimos se tolera aproveitar como que acidentalmente, mas a que se recusa conferir a cidadania filosófica.” (Porchat

unidade

Você pode propor aos alunos que pesquisem ou procurem se lembrar de outros provérbios e ditos populares que expressam a separação entre essência e aparência. Ao apresentarem os seus resultados, cada dito ou provérbio deve ser acompanhado de uma justificativa que explique por que o exemplo apresentado é pertinente a essa discussão. Eis algumas possibilidades: “Cão que ladra não morde.” Explica-

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ção: às vezes, é mais perigoso quem não parece sê-lo. “Há males que vêm para bem.” Explicação: o que de início aparenta ser danoso pode se revelar benéfico num segundo momento. Uma justificativa de teor semelhante, mas que aponta para o sentido contrário, teria o seguinte dito: “O barato sai caro” (o que primeiramente parece econômico revela-se afinal mais custoso). “Quem vê cara não vê coração.” Explicação: as pessoas podem ter intenções ocultas, que não aparentam ter. (Também: “Por fora bela viola, por dentro pão bolorento”; inversamente: “Mão fria, coração quente.”) As aparências enganam?

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As aparências enganam?

“idealismo”, acrescenta Porchat – fazem pouco do mundo, menosprezam as evidências e crenças mundanas, trocando o senso comum por uma atitude presumidamente sofisticada. Leiamos um parágrafo do ensaio em questão, no qual Porchat desfere sua crítica a esse comportamento especulativo presente em muitas correntes da filosofia:

Todos conhecemos aquele ditado: “As aparências enganam”... Ele existe em diversas línguas, o que dá a entender que tal opinião é muito comum e circula há muito tempo em nossa cultura. Veja abaixo formulações do ditado conforme o qual devemos desconfiar das aparências em cinco línguas e procure identificar os idiomas correspondentes: “Fallitur visus” “Las apariencias engañan” “Der Schein trügt” “Appearances are deceptive” “L’apparenza inganna”

O que é que tiramos disso? Note que esse provérbio nos faz uma advertência. A ideia é a seguinte: as aparências enganam, porque nos iludem sobre o que seja a verdadeira realidade. Logo, a aparência é como a ilusão, possui o mesmo tipo de existência que ela. Nem por isso, claro, a discussão está encerrada. Falta-nos ainda explicar o que se deve compreender pela existência ou realidade de uma ilusão. Antes, porém, vejamos os motivos pelos quais se afirma que as aparências enganam. Um deles, muito repetido, é a convicção de que as aparências nos apresentam somente o aspecto superficial das coisas, deixando ocultas suas características essenciais. As aparências permanecem na “superfície” das coisas, o que explica o engano promovido por elas, mesmo quando ninguém quer enganar ninguém. As coisas aparecem para nós de um jeito; só que, no “fundo”, são de outro. Captar a realidade, desse modo, exige uma investigação que faça abstração das aparências, já que elas nos fazem crer em coisas que, se melhor examinadas, se revelam diversas do que parecem ser de início. Há um exemplo clássico da história da filosofia que ilustra esse tipo de engano. O pedaço de pau submerso na água aparenta possuir um ângulo, ali onde toca a super-

O horizonte de Chicago: o que é céu, o que é água?

fície. Na realidade, nós o vemos assim por causa do fenômeno óptico da refração. Ou seja, os sentidos nos enganam sobre a realidade, na medida em que nos fornecem aparências que não correspondem aos fatos. É fácil estender essa conclusão sobre a ilusão visual para os demais sentidos: o gosto, o olfato, o tato, a audição. Quando estamos doentes, o doce parece amargo; se nos encontramos indispostos, os odores se acentuam e incomodam. Essas variações já indicam que os sentidos não constituem uma base totalmente segura para descobrirmos quais são as qualidades reais das coisas “por trás” ou “abaixo” da superfície das aparências. Isto é, os sentidos exprimem qualidades subjetivas, que nem sempre correspondem às qualidades objetivas das coisas. E isso pode ser constatado não apenas quando adoecemos, mas também em circunstâncias normais, quando estamos bem dispostos e saudáveis. Deslizo a mão sobre a mesa, ela aparenta ser lisa. Porém, sua superfície, quando examinada microscopicamente, é irregular, porosa e cheia de vincos. A impressão táctil, conclui-se daí, me engana sobre a realidade da superfície da mesa. Os sentidos fornecem apenas uma aparência que não corresponde à estrutura real da natureza.

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do a defesa filosófica da visão comum do mundo. Sua reflexão sobre o tema o conduziu a rever as posições assumidas neste texto, rumo ao “neopirronismo”, como designou sua nova postura filosófica. Há uma coletânea de artigos que discutem os aspectos do pensamento de Oswaldo Porchat sob vários prismas, organizada por Michael B. Wrigley e Plínio J. Smith, intitulada O filósofo e sua história – uma homenagem a Oswaldo Porchat (Campinas: Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, 2003). dúvida e certeza

admito em mim nada além de um espírito. O que hei de pronunciar sobre mim, que pareço conceber com tanta nitidez e distinção este pedaço de cera? Não conheço a mim mesmo, não apenas com bem mais verdade e certeza, como ainda com muito mais distinção e nitidez?” (R. Descartes. Meditações metafísicas, Tradução nossa. Edição de referência: Descartes, Oeuvres. Pairs: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. IX-1, p. 25-26).

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Note que não dispomos de textos diretamente redigidos por Pitágoras, ao contrário do que ocorre com outros filósofos pré-socráticos, dos quais possuímos, ao menos, fragmentos. No caso de Pitágoras, o que se atribui a ele é baseado em fontes indiretas, especialmente textos de outros filósofos gregos, muitos dos quais polemizaram com ele. É este o caso, por exemplo, de Aristóteles, que, ao longo de sua Metafísica, em mais uma ocasião nos apresenta o que entende ser a doutrina pitagórica para, em seguida, refutá-la.

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Leitura recomendada: F.M. Cornford, Antes e depois de Sócrates. Tradução: Valter L. Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001. Eis a seguir o trecho de F. M. Cornford sobre o qual nos baseamos para apresentar essas ideias relativas a Pitágoras. Você pode utilizá-lo em sala de aula, a fim de aprofundar o comentário à doutrina pitagórica que enaltece os números como elementos que permitem desvendar a estrutura última da realidade: constituída de números equivale a dizer que a realidade está além das aparências, além do que nos apresentam imediatamente nossos sentidos. Vale destacar a novidade de Pitágoras no quadro dos primórdios do pensamento filosófico. Filósofos como Tales de Mileto (624-548 a.C) ou Anaxímenes (588-524 a.C) afirmavam que o princípio e essência das coisas residia na água ou no vapor, isto é, postulavam que a essência do ser era sensível. Pitágoras, sustentando que a realidade última das coisas reside em algo incorpóreo (os números), promove diante de seus contemporâneos uma inovação radical, que será retomada no período moderno por muitos cientistas e filósofos. Na história do pensamento, Pitágoras representa o primeiro passo rumo à ideia de que a realidade das coisas não corresponde ao modo sob o qual elas se apresentam a nossos sentidos. Por isso, quando a física atual nos ensina que as leis do movimento se expressam na forma de enunciados matemáticos, ela aprofunda as intuições e o pensamento de Pitágoras. É interessante observar que, ao defender essa noção sobre a “phýsis”, Pitágoras também tinha em conta questões estéticas. Seu ponto principal era sustentar que

Os discos e duas luas de Saturno: para Pitágoras, o “cosmos” designa o universo, belo e ordenado.

o universo dispõe de ordem e que esta última pode ser apreendida pela razão humana. Dito de outro modo, Pitágoras defendia que o universo não é disforme, nem caótico; ao contrário, ele forma um “cosmos”, no sentido básico deste termo. Um grande estudioso norte-americano de filosofia antiga nos ajuda a compreender o que estava aqui em jogo. Conforme assinala Francis. M. Cornford (1874-1943), “cosmos”, em grego, significa “beleza” e “ordem”. Reflita sobre as palavras: “cosmético”, por exemplo, designa produtos ligados ao embelezamento, ao ornamento, às aparências. Sua origem etimológica é a palavra grega “cosmos”, que, à época de Pitágoras, estava associada a estética. Pitágoras, diz Cornford, teria sido o primeiro a empregar o termo “cosmos” para designar o universo. O interesse dos pitagóricos pela música tem tudo a ver com isso. Pois a música reúne sons muito diferentes em harmonias que obedecem à ordem e à medida – uma harmonia, assim, que é estética e matemática. Pitágoras tomou esse modelo para compreender a ordem das coisas na natureza, por trás do aparente caos sob o qual elas se manifestam a nós. Como diz Cornford, isso explica a doutrina pitagórica da física, conforme a qual não é na matéria e no ilimitado que reside o princípio das coisas, mas antes no princípio da forma e da medida. E assim Pitágoras pode compreender a diversidade das manifestações naturais como sendo pautada pela proporção e pelo número. Visto que o número é mensurável, então a natureza, assimilada por Pitágoras ao número, revela ter medida e, assim, pode ser conhecida. A abstração que caracteriza a ciência atual, como se vê, é uma tendência que possui origem nos primórdios da filosofia grega. E isso diz respeito não somente à física, mas abarca também outra disciplina que integra nosso currículo escolar, a química.

“Em grego, ‘cosmo’ significa beleza e também ordem, e dizem que Pitágoras foi o primeiro a chamar o universo de cosmo. Pois, se o caótico amontoado de sons que assedia nossa audição pode ser reduzido, pelo princípio simples de limitação da medida, à ordem harmoniosa da arte e, finalmente, a proporções numéricas, não poderia toda ordem da Natureza, com sua reconhecida beleza, ser regulada por um princípio análogo ou idêntico? Se este pensamento seguir uma direção física, ele nos levará à doutrina pitagórica de que a realidade das coisas

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Outra fonte importante é Diógenes Laércio, autor das Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres (tradução de M. G. Kury. Brasília: Editora da UnB, 2014, 2ª ed.; há uma tradução espanhola em domínio público: <http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/bk000431.pdf>, acesso a 19 de janeiro de 2015). Para uma consideração em português (avançada mas bastante clara) sobre a doutrina de Pitágoras e as dificuldades com que seu estudo se confronta, veja-se Gabriele Cornelli, O pitagorismo como categoria historiográfica. São Paulo: Annablume, 2011.

©Foto: NASA/JPL/Space Science Institute

“A barba não faz o filósofo.” Explicação: mesmo que alguém pareça deter certa qualidade ou autoridade – moral, acadêmica, social –, isso não significa que ele de fato a possua. (Veja-se também: “Muito inventa quem não sabe”; “Nem tudo o que reluz é ouro” etc.) “À mulher de César não basta ser honesta; tem de parecer honesta.” (Veja contextualização no box sobre Júlio César, nessa Unidade, módulo: “Ser e parecer justo”). Se bem justificados, também valem exemplos contrários, ou seja, que expressem uma coerência entre realidade e aparência (p. ex.: “O hábito faz o monge”): importa, em primeiro lugar, pôr o assunto em pauta – no caso, mediante fórmulas populares ou popularizadas. Em seguida, como se fará ao longo desta Unidade, fomentar o questionamento crítico do senso comum, incentivando e dando subsídios a uma atitude que poderíamos chamar filosófica. Se assim julgar mais conveniente, você pode apresentar esses e outros exemplos de forma expositiva, em vez de propor aos alunos uma Situação de aprendizagem. Alternativamente, pode ainda apresentar apenas os exemplos e pedir que eles individualmente formulem justificativas pertinentes, oralmente ou por escrito.

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F. M. Cornford evidencia a dívida que a ciência moderna possui com a ciência pitagórica. Essa dívida reside no caráter conceitual do conhecimento científico. “Conceitual”, aqui, se opõe diretamente a “sensível”. Se você julgar interessante aprofundar esse aspecto da oposição entre “realidade” e “aparência”, um recurso interessante é fornecido pelo comentário que Georg W. F. Hegel (1770-1831) faz da novidade e da ousadia especulativa de Pitágoras, em suas Lições sobre a história da filosofia (a primeira edição é de 1833). Hegel parafraseia a máxima

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página 149 Você pode estabelecer uma ponte entre este debate e a disciplina de química, pelo recurso a um texto muito útil, que recomendamos aqui. Trata-se do livro de Alvaro Chrispino, O que é química (Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 1989). O autor não apenas esclarece, com simplicidade e interesse, aquilo do que trata a química, como discute e aprofunda questões em torno da tabela periódica, da energia atômica, enveredando por uma interessante discussão sobre a tecnologia e as questões políticas que envolvem as ciências. Por isso, embora o livro tenha sido redigido já há algum tempo, merecendo ser atualizado aqui e ali, assim mesmo ele é recomendado Ao se debruçar sobre a estrutura da matéria, o químico sabe que ela é constituída de elementos atômicos tais como o hidrogênio, o zinco, o carbono etc. – nenhum deles podendo ser percebido pelo olhar humano. Árdua tarefa, a do professor de química: seu ensino passa por nos mostrar de início que... a natureza da matéria não é como vemos, como imaginamos! Por isso, quem ensina química solicita que deixemos de lado as imagens, que abandonemos as percepções imediatas fornecidas pelos sentidos, já que, se permanecermos atrelados a elas, não seremos capazes de atingir a real estrutura da matéria que nos cerca e da qual também somos feitos. Assim como os físicos de hoje em dia, os químicos contemporâneos também refizeram os passos de um caminho já trilhado por pensadores gregos, que, na linha de Pitágoras, insistiram em afirmar que os sentidos enganam sobre a natureza da realidade. Conforme esse argumento, os sentidos nos revelam apenas aparências. A verdadeira realidade das coisas (ou sua “realidade última”, como também se diz em filosofia) escapa aos sentidos e só pode ser apreendida pela razão. Logo, a fim de atingir o conhecimento da realidade, é preciso fazer abstração do que ensinam os sentidos. Graças a microscópios eletrônicos, hoje sabemos que essa antiga convicção estava certa. A tecnologia de que dispomos nos dias de hoje possibilita verificar, por exemplo, que a matéria realmente possui uma estrutura atômica. Mas a primeira formulação da teoria de que a realidade da matéria é constituída de átomos data de uma época na qual não havia nada de semelhante ao mais rudimentar microscópio. Filósofos da Grécia antiga, na linha aberta por Pitágoras, já haviam elaborado a teoria do átomo sem qualquer recurso a instrumentos desse tipo. Claro que a invenção desses aparelhos representou um acontecimento decisivo no âmbito das ciências. Entretan-

FILÓSOFOS OU CIENTISTAS?

Quando mencionamos pensadores gregos como Leucipo (primeira metade do século V a.C) e Demócrito (460-370 a.C.) – considerados os defensores do atomismo – é comum referi-los como filósofos

pré-socráticos.

Ou seria mais adequado chamá-los de cientistas? Hoje em dia, costumamos distinguir esses dois ramos de investigação: de um lado, as ciências; de outro, a filosofia. Mas nem sempre foi assim.

Na Grécia antiga, antes

mesmo do período em que viveu Sócrates (470399 a.C.), mestre de Platão, homens dedicaram suas vidas ao pensamento sobre a natureza, o universo e a sociedade. Na sua visão, tratar de temas tão amplos exigia possuir, em grande medida, afinco e curiosidade, espanto e sabedoria. Não lhes passava pela cabeça, entretanto, definir suas pesquisas conforme a alternativa entre filosofia ou ciência, que se tornou habitual muito depois. Entendiam fazer as duas coisas de uma só vez, porque compreendiam o estudo da natureza

Gravura de Demócrito. Coleção particular

F.M. Cornford, Antes e depois de Sócrates. Tradução: Valter L. Siqueira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, pp. 60-61).

da filosofia pitagórica assim: “o número é a essência de todas as coisas e […] a organização do universo em suas determinações é afinal um sistema harmônico de números e suas relações”. Embora a linguagem e o estilo de Hegel não sejam lá muito fáceis, toda essa passagem das Lições pode se prestar a uma análise em aula. Você pode reter os principais subsídios trazidos pela interpretação hegeliana, esclarecendo, por meio dela, os pontos levantados pelo exame da filosofia de Pitágoras. Sublinhe que, segundo a interpretação de Hegel, a novidade fundamental de Pitágoras residiu em ele ter deslocado o que se compreendia pela essência dos seres do âmbito do sensível para aquele do pensamento. A referência do texto hegeliano é: Georg W. F. Hegel, Lições sobre a história da filosofia, “O sistema dos números” [parte I, seção 1, cap. 1, item B 1].

como investigação pertencente ao âmbito da filosofia. Assim, a explicação da estrutura da natureza era orientada pela especulação filosófica sobre a origem e o princípio da realidade.

to, a hipótese de que a estrutura da matéria é atômica, hipótese que terminou sendo confirmada por esses aparelhos, pôde ser estabelecida sem tal tecnologia, apenas com base na especulação filosófica sobre a natureza que nos cerca. Com efeito, Leucipo e Demócrito, filósofos gregos que viveram depois de Pitágoras e antes de Sócrates, se tornaram conhecidos na história da filosofia e das ciências como “atomistas”, isto é, como defensores da ideia de que tudo são átomos. Através dos tempos, e nem sempre por linhas retas, essa doutrina chegou à modernidade.

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não está no princípio desordenado e indefinido da matéria (o ilimitado), mas no princípio oposto e limitador da forma e da medida, da proporção e do número. Todas as coisas que vemos e tocamos representam ou incorporam um número. Sob este aspecto da quantidade mensurável, o mundo da Natureza pode ser conhecido e entendido. Na astronomia, as velocidades e distâncias dos corpos celestes são regidas pelas proporções de uma harmonia que mais tarde veio a ser conhecida como harmonia das esferas. As formas ou superfícies que limitam os corpos tangíveis representam as figuras tangíveis da geometria; e as leis destas figuras podem finalmente ser reduzidas a relações entre números. Esta descoberta – de que a chave da ciência física está na matemática – é uma daquelas intuições de gênio que datam da infância da especulação filosófica e ainda servem como princípios condutores para a ciência. Os físicos de nossa geração dizem-nos que as leis da substância material devem ser expressas por equações matemáticas.” (Extraído de

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para uma abordagem interdisciplinar (filosofia e química).

A revolução filosófica e científica moderna

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Galileu disse ter

passado em Pádua

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Museu Nacional, Cidade do México

os anos mais felizes de sua vida (Felix

Parra [1845-1919], Galilei na Escola

de Pádua. Óleo sb/ tela, 1873).

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A concepção que Aristóteles elaborou acerca da natureza – isto é, da phýsis –, em especial, não dá à matemática a importância que ela possuía aos olhos de Pitágoras e de Platão. Isso não significa que Aristóteles ignorasse o valor das matemáticas. Mas, do seu ponto de vista, as matemáticas constituem uma ciência à parte, cuja aplicação ao universo natural é inadequada, porque a natureza que nos cerca não admite a precisão e a certeza dos números. A natureza, diz Aristóteles, é constituída pela “matéria”, e esta última não obedece aos parâmetros exatos que caracterizam o saber matemático. Por isso, segundo Aristóteles, buscar aplicar as matemáticas à natureza é cometer um equívoco sobre o objeto investigado, é ignorar sua verdadeira característica. A física dos corpos terrestres, segundo Aristóteles, não pode ser matemática. Querer matematizá-la equivale a impor à física um modelo que não corresponde à sua realidade. Veja como Aristóteles assume uma posição oposta àqueles que, na linha iniciada por Pitágoras, procuraram matematizar a phýsis: “A precisão das matemáticas não deve ser exigida em todos os casos, mas apenas no caso de coisas que não possuem matéria. Assim, o método das matemáticas não coincide com o método da ciência natural; pois presumivelmente o conjunto da natureza possui matéria. Logo, temos primeiramente de pergun-

tar o que a natureza é, pois assim também veremos do que trata a ciência da natureza (e se pertence a uma ou mais ciências investigar as causas e os princí-

pios das coisas).” (Aristóteles, Metafísica, Livro II, 995a. Tradução nossa)

Quem, entretanto, venceu esta disputa? Ao longo da Idade Média, a concepção pitagórico-platônica foi muito influente por um longo período, até meados do século XII. Conheciam-se poucas obras de Aristóteles, às quais, naquele contexto, não era dado grande relevo. Foi então que universidades europeias, como a de Bolonha e a de Paris, tomaram contato com os pensadores árabes, que haviam redescoberto e preservado os textos de Aristóteles. Influenciados pelos matemáticos e cientistas árabes, os doutores das universidades europeias quase abandonaram o platonismo em troca do aristotelismo recém redescoberto. No século XIII, Tomás de Aquino (1225-1274) reuniu, no âmbito da especulação metafísica, a filosofia de Aristóteles e a teologia cristã. Essa concepção se tornou dominante na Europa até o momento em que pensadores como Nicolau Copérnico (14731543), Johannes Kepler, Galileu Galilei e René Descartes elaboraram novamente hipóteses matemáticas sobre a phýsis e o universo. Só então, no século XVII, a natureza foi outra vez concebida como sendo essencialmente matemática. Por

O filósofo e escritor Giordano

Bruno (1548-1600) é um caso célebre de pensador que, por

não se retratar frente às autoridades, terminou pagando pela

heterodoxia de suas ideias com a própria vida.

Ser e parecer justo página 158, Situação de aprendizagem Eis alguns temas que podem ser trabalhados na situação proposta. Naturalmente, você não precisa se ater aos temas aqui sugeridos, mas pode e deve considerar outros que sejam mais adequados à realidade de seus alunos. Fases 1 e 2: o essencial é escolher temas que se prestem a mais de um ponto de vista, de forma a propiciar o seu desenvolvimento dialético. Eis algumas sugestões: • O jornalismo online é capaz de abordar os temas de interesse da sociedade com a mesma profundidade e agilidade que o impresso? • O que é pior para a sociedade: um governante virtuoso, mas incapaz de

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analogamente como, muito antes deles, já havia feito Pitágoras. A explicação para isso está no fato de que o legado de Pitágoras não foi vitorioso em comparação com as ideias que outros filósofos e cientistas da Antiguidade formaram sobre a natureza. Embora tenha gozado de prestígio entre muitos de seus contemporâneos, Pitágoras ficou em segundo plano durante um longo período da história da ciência. A causa disso reside no enorme prestígio obtido pela filosofia e pela física de Aristóteles[+] (384322 a.C.), que seguiu uma direção diversa daquela de Pitágoras. Vamos reconstruir essa história em seus momentos decisivos. Sabe-se que a compreensão matemática da natureza inaugurada por Pitágoras influenciou profundamente Platão, no século IV a.C. Essa influência se reflete em trechos da obra platônica que conferem grande importância ao estudo da matemática para a compreensão da natureza e do universo. Ocorre que o ensino platônico foi objeto de uma profunda reinterpretação por parte de Aristóteles. Após ingressar na Academia platônica e estudar com Platão, Aristóteles elaborou sua própria filosofia, que, sob muitos aspectos decisivos, representou uma objeção ao platonismo e uma ruptura com ele.

Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “Quando e como algo muda?”), mencionamos a peça teatral de B. Brecht sobre o processo a que se viu submetido Galileu Galilei no momento em que passou a difundir sua convicção sobre a verdade do heliocentrismo, contrariando, assim, as concepções então vigentes, e apoiadas pela Igreja católica, que sustentavam o geocentrismo. Você pode propor uma abordagem articulada entre as duas Unidades no que toca a esse aspecto.

Ettore Ferrari (1845-1929), O julgamento de G. Bruno. Relevo em bronze. Campo dei Fiori, Roma Foto: Marie-Lan Nguyen.

A revolução científica representada pelo advento da moderna ciência da natureza foi largamente comentada pela literatura especializada. Um livro muito instigante, que constitui um clássico sobre o assunto, é a obra de Edwin A. Burtt, As bases metafísicas da ciência moderna, publicado pela primeira vez nas primeiras décadas do século XX e traduzido para o português por José Viegas Filho e Orlando Araújo Henriques, em edição da Editora da Universidade de Brasília (1983). Outro autor que fez investigações decisivas sobre esse fenômeno foi Alexander Koyré, cuja obra Do universo fechado ao horizonte infinito (1957) foi traduzida por D. M. Garschagen para a EDUSP/Editora Forense Universitária, Rio de Janeiro, 1979. Koyré defende, em um texto publicado pela primeira vez em 1943 sob o nome de “Galileu e Platão”, depois reunido em livro intitulado Études d’histoire de la pensée scientifique (Estudos de história do pensamento científico, Paris: Gallimard, 1973, pp. 166-195), que a concepção galiláica do universo retoma o espírito matematizante presente na filosofia platônica, que foi contestada por Aristóteles, como sugerimos aqui. Por fim, há um livro muito instigante, embora com grau maior de dificuldade, publicado por Jean-Luc Marion em 1993 e traduzido em Portugal com o nome de Sobre a ontologia cinzenta de Descartes: ciência cartesiana e saber aristotélico nas Regulae (Lisboa:

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Pensadores gregos da Antiguidade, como Pitágoras, Demócrito e Leucipo, mesmo sem os recursos tecnológicos de que dispomos hoje em dia, já haviam enveredado por esse caminho. Seria engano, porém, concluir daí que a ciência atual é uma simples continuação da concepção de natureza elaborada por Pitágoras e pelos atomistas gregos. A história do pensamento científico não é como uma estrada que corta em linha reta um terreno sem acidentes. Ela se assemelha mais a um percurso cheio de curvas, voltas, rupturas e retomadas. No lugar de uma linearidade, o desenvolvimento científico é marcado por revoluções, como, aliás, defende um importante filósofo da ciência do século XX, Thomas Kuhn[+]. Uma verdadeira revolução na história da ciência aconteceu entre os séculos XVI e XVII. Confrontando o ensino da época, pensadores como Johannes Kepler (15711630), Galileu Galilei (1564-1642) e René Descartes[+] (1596-1650) estabeleceram os alicerces do grande edifício que se tornou a ciência moderna. O interessante nessa história é que esses homens tiveram de enfrentar o ensino difundido em sua época para matematizar a física e, juntamente com ela, o universo,

Editora Instituto Piaget, 1997), no qual o advento da ciência cartesiana é apresentado como uma revolução metafísica diante da concepção aristotélica sobre o cosmos.

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realizar projetos de relevância, ou um governante cheio de vícios, mas eficiente? • A produção artística deve ser a mais acessível possível, contemplando o gosto das massas, ou deve eleger para si um papel à parte, independente dele? • Se no Brasil a idade mínima facultativa para votar é de 16 anos, deveríamos pensar em reduzir a idade mínima para obtenção da Carta Nacional de Habilitação? Você não deve poupar esforços em frisar para seus alunos que não se trata absolutamente, aqui, de defender as posições ou crenças pessoais de cada um; mas, ao contrário, de tentar descobrir e desenvolver argumentativamente novos pontos de vista, com os quais podemos até discordar. Dê-lhes o exemplo da posição de Glauco no Livro II da República de Platão, abordada neste módulo. Para a Fase 3, será melhor reservar um tempo adicional e não desenvolvê-la na mesma aula das fases precedentes. Aqui vão algumas sugestões de trechos de textos (todos em tradução nossa) a serem retrabalhados por escrito pelos alunos. Mais uma vez, você pode propor outras alternativas além destas:

apresenta seu pensamento. A leitura dos diálogos platônicos mostra que nem sempre a atividade filosófica se resume a apresentar teses, demonstrá-las ou abandoná-las. Por vezes, a filosofia reside em pôr em cena um debate entre interlocutores – e também ocorre que esse debate não atinja um termo, uma conclusão satisfatória, uma verdade definitiva. A escolha de Platão pela forma do diálogo, por isso, já define uma posição filosófica do autor. Por meio das personagens pos-

“Não existem absolutamente fenômenos morais, mas apenas uma interpretação moral de fenômenos...” (Nietzsche, Além de bem e mal, IV, 108) “O que é feito por amor sempre ocorre para além de bem e mal.” (Além de bem e mal, IV, 153) “Tudo o que é perspicaz já foi pensado, só é preciso tentar pensá-lo mais uma vez.” (Goethe, Máximas e reflexões, seção 1) “Todo ser humano precisa pensar à sua maneira, pois seguindo o próprio caminho sempre encontra algo verdadeiro, ou um tipo de verdadeiro que lhe ajuda ao longo da vida; só não pode é deixar-se levar; precisa controlar-se; o mero instinto nu não convém ao ser humano.” (Goethe, Máximas e reflexões, seção 1.) “Não seria fácil encontrar um homem que se tornou infeliz por não ter observado o que se passa na alma de um outro; mas quem negligencia observar atentamente as emoções de sua própria alma, é inevitável que caia na infelicidade.” (Marco Aurélio, Considerações para mim mesmo, I, 8) “Um homem sábio se esforça, levando todas as circunstâncias em consideração, em fazer conjecturas e formular uma conclusão; mas, quando o menor dos acidentes intervém (e no decurso das atividades é impossível prever tudo), este produz tais reviravoltas e mudanças que afinal [o homem sábio] está tão tomado de dúvidas a respeito dos acontecimentos quanto a pessoa mais ignorante e inexperiente.” (Jonathan Swift, Reflexões sobre vários assuntos) “Algumas pessoas cuidam mais de ocultar sua sabedoria do que sua insensatez.” (Swift, Reflexões sobre vários assuntos)

tas em cena e do debate que protagonizam, o leitor é apresentado a questões que mobilizam divergências e pontos de vista antagônicos. Seu interesse está menos na solução do problema que na exposição de seus diferentes aspectos. Como a opção de Platão pela forma dialógica se exprime em A república? Nessa obra, Sócrates conduz a investigação sobre a natureza da justiça. Ele refuta seus interlocutores e, diferentemente de diálogos que hesitam em apontar

Praticando as diferentes formas do filosofar

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Atividade em equipe, elaboração conjunta de texto e desenvolvimento individual por escrito

A seguinte situação de aprendizagem, a ser desenvolvida em três etapas, tem antes o intuito de fomentar a atenção para a forma da argumentação do que para o tema desta Unidade. Para começar, divida-se a classe em quatro grupos. Fase 1 – Cada grupo produzirá um texto de pequena extensão (de 1 a 2 páginas no máximo), desenvolvendo um tipo específico de argumentação a partir de um assunto dado pelo(a) professor(a). Cada grupo tem como ponto de partida um tema diferente. a. O grupo 1 o fará na forma diálogo (dois interlocutores, um rebatendo o outro); b. o grupo 2, um parágrafo como de um pequeno ensaio; c. o grupo 3, um aforismo ou um pequeno conjunto de aforismos (cada um contendo de 1 a 5 frases); d. o grupo 4, como simpósio (4 a 5 inter-

final dessa fase, cada grupo lê o resultado de sua produção textual para o restante da classe. Note: escolher uma forma mais sintética, como a do aforismo, não é necessariamente vantajoso – pois é muito difícil expressar ideias sofisticadas numa simples frase! Fase 2 – Cada grupo retém o seu tema, mas muda de forma, e redige um pequeno texto sobre o mesmo assunto anteriormente proposto, mas agora explorando outro gênero textual: quem começou pelo ensaio, agora fará aforismo ou diálogo, assim por diante. Fase 3 – Atividade individual. Cada estudante desenvolve, por escrito: a. um breve diálogo a partir de um aforismo; b. um parágrafo ensaístico a partir de um trecho de diálogo filosófico; c. um aforismo a partir de um parágrafo de ensaio. Dica: especialmente nos casos do diálogo e do simpósio (mas também, defensavelmente, no do ensaio), você

locutores com posições diferentes e

pode lançar mão de elementos fictícios

complementares). Cada grupo se reúne e discute suas ideias; em seguida, as põe por escrito. Ao

– sempre que pertinentes ao assunto –, de forma a ajudá-lo a desenvolver a forma textual.

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a) Desenvolver um breve diálogo a partir de aforismo – escolher apenas um; ou fornecer 3 ou 4 possibilidades aos alunos, para que eles próprios escolham uma e a desenvolvam. Eis algumas possibilidades, todas em tradução nossa:

“Ameaça do discurso à liberdade de espírito – Toda palavra é um preconceito.” (Nietzsche, Humano, demasiado humano, II, II, 55) “Inimigos da verdade – Persuasões são inimigas mais perigosas da verdade do que mentiras.” (Nietzsche, Humano, demasiado humano, I, IX, 483)

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b) Desenvolver um parágrafo ensaístico a partir de trecho de diálogo (trecho extraído da obra de Denis Diderot, O sobrinho de Rameau, tradução nossa): “Ele: O senhor proporciona mestres à sua filha. Eu: Ainda não; é a mãe dela quem se ocupa da sua educação; pois, em casa, é preciso ter paz [...] Ele: Que idade tem sua filha? Eu: Que diabos! deixemos de lado minha filha e sua idade, e voltemos aos mestres que ela terá. Ele: Por Deus! não conheço nada tão teimoso quanto um filósofo. Suplicando-lhe muito humildemente, poder-se-ia saber do senhor filósofo que idade, mais ou menos, poderia ter a senhorita sua filha? Eu: Suponha que ela tenha oito anos. Ele: Oito anos! Há quatro anos ela já deveria estar com os dedos sobre as teclas [de um instrumento musical]. Eu: Mas pode ser que eu não tenha me preocupado demais em introduzir no plano de sua educação um estudo que toma tanto tempo e serve para tão pouca coisa.” c) Desenvolver um aforismo a partir de parágrafo de ensaio. Para a escolha do trecho a ser retrabalhado, voltar aos autores tradicionalmenre lembrados pela escrita ensaística é sempre uma boa opção, mas não é única. Eis um

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exemplo extraído dos Ensaios civis e morais de Francis Bacon (1561-1626): “Estudos servem para deleite, para ornamento e para habilidade. Seu principal uso para o deleite está na privacidade e na reserva; para o ornamento está no discurso; e para a habilidade está no julgamento e na disposição dos negócios. Pois homens treinados podem executar, talvez julgar, coisas particulares uma a uma; mas quanto a conselhos gerais, tramas e domínio dos negócios, são melhores os daqueles que são instruídos. Gastar tempo demais nos estudos é preguiça; usá-los em demasia para o ornamento é afetação; julgar inteiramente por suas regras é o humor de um especialista. [Os estudos] aperfeiçoam a natureza, e são aperfeiçoados pela experiência: pois as habilidades naturais são como as plantas naturais, que precisam de podas, por parte do estudo; e por sua vez os estudos emanam direções demais, exceto quando são atados pela experiência. Homens habilidosos condenam os estudos, homens simples os admiram e homens sábios os utilizam; pois [os estudos] não ensinam como devem ser utilizados; mas isto é uma sabedoria independente deles, e acima deles, conquistada pela observação.” (Francis Bacon, Ensaios civis e morais, parágrafo inicial do ensaio “Sobre os estudos”. Tradução nossa)

Ao avaliar a produção dos alunos, convém considerar: i) foi respeitado, em termos gerais, o gênero textual escolhido? A forma está expressa claramente? – ii) como está desenvolvida a argumentação? O leitor/ouvinte ganha algo após o contato com o texto? Note que a argumentação não precisa necessariamente levar a uma solução, mas

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“Se um homem me faz manter distância, o consolo é que ao mesmo tempo ele mantém a sua.” (Swift, Reflexões sobre vários assuntos)

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página 159 Na passagem que a seguir é proposta para exame, Glauco toma a palavra, após o momento em que Sócrates refutou Trasímaco, que definira a justiça como “a conveniência do mais forte”. Glauco era o irmão mais velho do próprio Platão. Na estrutura dramática do diálogo, Glauco acompanhou Sócrates até Pireu para juntos assistirem a celebrações religiosas. Ele não tem qualquer antipatia por Sócrates. Ao contrário, é seu amigo e discípulo. Mas sustenta uma argumentação oposta à dele para forçá-lo a refutá-la, de modo a contestar Trasímaco pela razão e não pela retórica.

uma conclusão, defende uma posição bem rigorosa sobre o assunto em pauta. Mas não é disso que trataremos. Queremos, aqui, chamar a atenção para o início do debate, no segundo dos dez livros que compõem o diálogo, ali onde Glauco e Adimanto fazem uso da palavra, e Sócrates se contenta em responder. O tema da discussão, como dissemos, é a natureza da justiça, e, como você irá perceber, é nesta discussão que surge a oposição entre realidade e aparência. O passo é muito importante, porque grande parte de A república reside na resposta que Sócrates fornecerá às questões levantadas aqui. Quais são as questões levantadas por Glauco no Livro II de A república? Trata-se de um argumento muito elaborado. A breve fala de Glauco contém uma tese de fôlego, difícil de refutar. Ele inicia sua argumentação distinguindo três classes de coisas boas (República, 357b-358a): 1. aquelas que gostaríamos de obter pelo que possuem de bom em si mesmas (a alegria, os prazeres inocentes); 2. aquelas que são boas em si mesmas e nos resultados que produzem (a inteligência, a vista, a saúde); 3. aquelas que, embora sejam em si mesmas desagradáveis, são benéficas (o tratamento das doenças, os meios de se obter dinheiro).

livro do professor

A questão em jogo é clara, mesmo que a resposta seja difícil: em qual dessas classes incluir a justiça? Eis a pergunta que Glauco faz a Sócrates. Sócrates defende a tese de que a justiça se situa entre as coisas do grupo (2), que são as coisas que proporcionam a verdadeira felicidade. Glauco, de seu lado, defenderá que a justiça se encontra, na verdade, entre as coisas do grupo (3), que são desagradáveis em si mesmas, mas úteis para nós. Segundo Glauco, se pudéssemos dispensar a justiça, não hesitaríamos em

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Adotamos abaixo uma divisão do discurso de Glauco (República, Livro II) em três partes. Em primeiro lugar, ele apresenta a tese conforme a qual

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os homens que praticam a justiça o fazem a contragosto, tendo em vista tão somente suas consequências (como ocorre com a ingestão de remédios amargos). Se isso for correto, nesse caso a justiça deve ser deslocada da segunda para a terceira classe de coisas boas, aquelas assim consideradas apenas por sua utilidade (República, II, 358e-359b). Em seguida, Glauco lança mão de um mito, que narra a história do anel de Giges, a fim de corroborar essa tese. (República, II, 359b-360d). Em terceiro e último lugar, Glauco faz uma comparação entre o homem justo e o homem injusto, considerados idealmente, e conclui que o injusto é mais feliz que o justo (República, II, 360d-361d). É exatamente neste ponto que surge o par realidade e aparência. Glauco sustenta que é melhor “ser injusto e parecer justo” do que “ser justo e parecer injusto”. Assinale logo de início a peculiaridade da situação de Glauco aos alunos. Se ele deseja ser refutado por Sócrates, é porque detestaria descobrir que ele mesmo está com a razão. O problema é que não enxerga alternativa alguma à argumentação que apresenta em favor da ideia que gostaria de contrariar. E como Glauco é “amigo da verdade” (isto é, “filósofo”), está disposto a defender e até mesmo admitir como verdadeiro algo que contraria suas convicções pessoais mais profundas. Há duas boas traduções do texto platônico em português: • Platão, República. Tradução: Anna Lia A. de Almeida Prado. Revisão técnica e introdução: R. Bolzani Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2006. • Platão, República. Tradução: Maria He-

dar as costas para ela. Esta é uma posição de consequências importantes. Caso a aceitemos, aceitaremos também que a conduta justa é exercida não por seu valor intrínseco, mas para atender a um ou mais interesses. Assim como ingerimos um remédio amargo com o intuito de restabelecer a saúde, assim também, conforme o argumento de Glauco, agimos com justiça apenas porque desejamos viver em paz com os demais. Se não fosse por isso, seríamos injustos.

A justiça: um mal necessário? Vamos reconstruir, agora, uma passagem do texto de Platão, a fim de discutir a argumentação de Glauco mais detalhadamente. O primeiro momento dessa argumentação corresponde ao trecho citado a seguir: (Glauco:) “Pelo que se diz, por natureza, fazer injustiça é um bem e sofrê-la, um mal. Mas sofrê-la aparece mais, pois o mal que há em sofrê-la supera o bem que há em fazê-la. Desse modo, quando os homens, nas relações que mantêm, fazem injustiças e dela são vítimas, sentem o gosto de uma e outra; e, caso não sejam capazes de evitar uma e realizar a outra, parece-lhes útil fazer um contrato que os proíba a todos de fazer injustiça e sofrê-la. E foi a partir desse momento que os homens passaram a instituir suas leis e convenções e chamar legal e justo o que fosse prescrito pela lei. Eis a origem e essência da justiça, situada entre o ótimo, que é fazer injustiça e não ser punido, e o péssimo, que é ser vítima da injustiça e não poder vingar-se. A justiça está entre esses dois extremos e é estimada não como um bem, mas como algo que é reconhecido por falta de ânimo de fazer injustiça, pois quem o pudesse fazer e fosse realmente um homem não firmaria com ninguém convenção alguma que o proibisse

realidade e aparência

pode, ao contrário, optar por uma via “sem saída” – aporia –, justamente para denunciar uma dificuldade inerente ao tema. O que importa é fazê-lo de maneira compreensível para os ouvintes/ leitores. – iii) no que diz respeito à Fase 3: seria conveniente que o texto retrabalhado guardasse o essencial que estava expresso no texto original, mesmo que, por motivos formais, venha a lhe acrescentar algo que não estava lá (uma situação fictícia, por exemplo). Para concluir o ciclo, você pode fomentar a discussão em torno da adequação/inadequação entre forma e questão abordada: todas as questões se prestam igualmente às variadas expressões formais? A forma é indiferente? Ou existem formas que “casam” melhor com certos assuntos?

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página 160 Neste momento, você pode fazer proveito do debate para fazer ver aos alunos que muita coisa que foi escrita depois de Platão já havia sido, de um ou outro modo, pensada por ele. A história da filosofia envolve retomar e desenvolver ideias do passado, que adquirem assim novas formulações, conforme o contexto favoreça esta ou aquela direção. É bem esse o caso da argumentação apresentada por Glauco no Livro II de A república. Não é de espantar seu prestígio na história da filosofia – em especial, no que toca à reflexão política. O contratualismo de Thomas Hobbes (1588-1679), para lembrar um exemplo célebre que data do século XVII, poderia sem grandes riscos ser interpretado como uma variante conceitual da argumentação posta por Platão nas palavras de Glauco. Senão, vejamos. Glauco estabelece que as leis e convenções a permitir a vida política são resultado de um acordo, baseado em um cálculo de custos e benefícios. Em sua obra mais conhecida, o Leviatã (1651), Hobbes dirá que na base das leis e convenções se encontra um contrato social, um pacto, motivado por um cálculo sobre possibilidades: em termos de custo e benefício, a realização de todas as intenções de cada agente é contraproducente para cada indivíduo, uma vez que seus desejos entrariam em rota de colisão com os desejos dos demais. Com base nesta reflexão, acrescenta Hobbes, os homens consentem a se submeter a um poder imparcial e comum, o Estado.

de fazer injustiça e de sofrê-la. Isso seria loucura. Pois bem, Sócrates, eis a natureza da justiça e sua origem, pelo que se diz.” (Platão, República, II, 358e-359b. Tradução nossa.)

realidade e aparência

Como se vê, logo de início Glauco evoca o que diz ser a opinião geral sobre a natureza e a origem da justiça. É comum, afirma Glauco, definir a justiça como o meio termo entre dois extremos: de um lado, o bem máximo, que reside em praticar impunemente a injustiça; de outro, o pior dos males, que equivale a sofrer injustiças sem poder fazer nada. Se Glauco estiver correto, então a justiça é fruto de um cálculo. Entre o que desejo fazer (a injustiça) e o que posso sofrer (novamente, a injustiça), é melhor ser prudente e adotar... um meio termo. O raciocínio é, essencialmente, o seguinte: não exercerei de modo absoluto minha vontade e com isso, em troca, não correrei o risco de ser exposto aos mandos e desmandos dos outros. Assim, Glauco também aponta qual seria o fundamento da ordem social: cada um de nós, que vivemos juntos num Estado, calcularia os prós e contras e concluiria ser mais vantajoso abrir mão de obter o bem máximo (= praticar impunemente a injustiça), a fim de não se expor ao pior dos males (= sofrer injustiças sem nada poder fazer).

O anel de Giges Logo após expor desse modo a tese de que a justiça seria apenas um mal necessário, não um bem em si mesmo, Glauco recorre à fábula, a fim de corroborar, com ela, seu argumento. Trata-se da história de Giges, um pastor que servia ao então governante da Lídia. Descendo por uma fenda que fora aberta por um terremoto, Giges encontra um cavalo de bronze, oco por dentro. Através de uma porta, enxerga, em seu interior, um cadáver, que possuía um anel de ouro. Leva consigo o anel e pouco depois descobre, sem querer, seus poderes: ao girar o

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A justiça – um bem?

Atividade em equipe e debate em sala de aula

• Em dupla com um colega, reflitam sobre o argumento de Glauco e pro-

curem elementos que corroborem ou refutem sua tese – conforme a qual, se cada um de nós se atém à justiça, não é porque a consideramos um “bem em si

mesmo”, mas apenas devido à impossibilidade de cometer a injustiça impunemente. Pense sobre as consequências sociais e políticas dessa tese. Caso ela seja verdadeira, o que se pode concluir

a partir dela sobre nossa vida em sociedade? Estamos pensando no seguinte: se Glauco estiver correto, por que respeitamos regras sociais, ao invés de simplesmente fazer o que bem en-

tendermos? Glauco tem uma resposta para isso. Procurem compreendê-la, desenvolvendo por conta própria o argumento proposto por ele.

anel para um lado, torna-se invisível; ao voltá-lo para sua posição inicial, visível. Daí em diante, a vida de Giges muda completamente. Invisível, Giges entra no palácio, mata o rei, casa-se com a rainha, torna-se o governante. Eis a conclusão de Glauco: “Se existissem dois anéis como esse, e o homem justo colocasse em seu dedo um deles, o injusto o outro, não haveria quem fosse tão resoluto a ponto de perseverar na justiça e tão resistente que se mantivesse longe dos bens alheios e deles não se apropriasse, estando livre para, sem temor algum, pegar no comércio o que quisesse, adentrar nas casas e aí conviver com quem entendesse, matar e libertar quem quisesse e fazer

O poder político, assim, surge como a única instância capaz de regular a vida social, mediante a previsão de punições que inibam quem quiser transgredir o pacto que dá origem ao corpo social. A natureza aritmética com que essa teoria sobre a formação das sociedades políticas investe o Estado nos deixa prever o lugar que reserva para o homem: é preciso que ele sublime sua vocação instintiva, caso queira superar a guerra de todos contra todos que caracteriza o estado pré-político. A mediação instauradora da ordem será, na versão de Hobbes, a espada do “Leviatã”– isto é, o Estado.

página 162 Boa parte do diálogo A república consiste na refutação de Glauco por Sócrates. Este último, como já sabemos, sustentará a tese de que a justiça é um bem em si mesmo, desejável em si. Não examinaremos detalhadamente a fala de Sócrates. Isso implicaria percorrer todos os demais livros de A república. Vale a pena, em todo caso, você apresentar uma ideia geral do caminho tomado por Sócrates para refutar Glauco. Eis um esquema sintético desta refutação, em cinco passos: Vimos que Glauco sustenta que a justiça é fruto de um cálculo, o mesmo cálculo evocado no inicio do trecho analisado: queremos ser injustos, mas sê-lo traz mais prejuízos que benefícios. Por isso, adotamos uma conduta justa. A justiça é como um remédio cujo gosto é detestável, mas que ingerimos para nosso próprio bem. As aparências, como se vê, possuem grande importância no argumento de Glauco. É a consideração do que os outros pensam de nós, de nossa representação para eles, o que termina decidindo a questão. A fábula do anel de Giges e a comparação entre as duas figuras do

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lena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2010.

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livro do professor

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A crítica da aparência por Sócrates Vimos a questão levantada por Glauco no Livro II de República: quem é mais feliz, o justo que parece injusto, ou o injusto que parece justo? Na verdade, essa é uma pergunta retórica, pois Glauco já direciona a resposta conforme a maneira que formulou a questão. Bastará imaginar o destino reservado a ambos para responder que o injusto será mais feliz que o justo. Como acrescenta o próprio Glauco, aquele que aparenta ser virtuoso será recoberto de glória e admiração, embora, na verdade, seja injusto; o verdadeiramente justo, ao contrário, sofrerá “açoites e torturas”, e só ao fim da vida “compreenderá que não importa ser jus-

Os tipos e seu exagero característico Debate em sala de aula e apresentação de seminário

A literatura, o cinema e o teatro es-

tão cheios de tipos, de personagens que encarnam de maneira exagerada

determinadas características. E o que dizer, então, das telenovelas? Você certamente já viu, na tevê, tipos semelhantes ao homem injusto que parece ser justo, apresentado dialeticamente por Glauco. A personagem de Flora, representada por Patrícia Pillar em A favorita (2008-2009), telenovela criada por João Emanuel Carneiro, é apenas um exemplo dentre tantos outros.

• Em uma equipe de três a quatro integrantes, pesquisem, em sala de aula ou em casa, exemplos de tipos como aquele proposto por Glauco. Após sua caracterização, examinem se personagens assim são de fato possíveis na vida real. Caso a resposta seja positiva, apre-

sentem exemplos que comprovem suas conclusões. Caso seja negativa, examinem esta última questão: por que, então, as novelas, os romances, o cinema e o teatro sempre recorrem a essas caracterizações exacerbadas?

to, mas apenas aparentar sê-lo” (A república, II, 361e -362a, tradução nossa). Essa última conclusão de Glauco confirma a lição que ele havia extraído da história do anel de Giges. Trata-se de um elemento complementar, coerente com a argumentação sustentada por Glauco, e que podemos resumir assim: caso possamos ser injustos sem parecê-lo, seremos felizes. Ou seja, só somos justos, porque

A realidade da aparência página 167 Além de versão online (veja o sítio “Domínio público”), há tradução impressa desse texto publicada na Coleção “Os pensadores”: • J.-J. Roussseau, “Discurso sobre as ciências e as artes”.

Um importante autor do século XVIII se deu conta disso logo cedo em sua vida. Referimo-nos a Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Nascido em Genebra, Rousseau se tornou conhecido em Paris, onde chegou aos 30 anos. Na segunda metade do século XVIII, Paris se tornara a capital da cultura e da civilização europeias: música, teatro, artes, o espírito de conversação, as festas nos grandes salões, tudo isso chama a atenção de todos que podem afluir para lá. Rousseau tampouco fica indiferente aos brilhos e à pompa dos costumes parisienses. Só que, ao invés de aderir a eles, torna-se pouco a pouco seu crítico ferrenho. A crer em Rousseau, a sofisticação dos costumes, o brilho da civilização, o decoro e os bons modos não apenas são dissociados da virtude, como também, muitas vezes, são adversários dela. Rousseau apresenta essas ideias em uma obra publicada em 1750, o Discurso sobre as ciências e as artes. O texto responde a uma questão levantada pela Academia de Dijon (França), que indagava se, tudo somado, o desenvolvimento das ciências e das artes promove ou não o aperfeiçoamento moral da humanidade. Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “ ‘Perfectibilidade’ e ‘desenvolvimento’”), você é apresentado ao conceito de “perfectibilidade”, tal como entendido por J.-J. Rousseau. Se quiser aprofundar sua compreensão de como Rousseau concebe a mudança histórica, recorra àquele trecho, articulando-o com a presente discussão sobre realidade e aparência. O que agora examinaremos é um ponto mais específico. Interessa-nos a avaliação negativa feita por Rousseau quanto ao desenvolvimento da civilização. Por que negativa? Porque, como ele escreve, o desenvolvimento das ciências e das artes, a sofisticação de nossos costumes, a busca pelo luxo e o requinte dos modos modernos – tudo isso fez com que uma distância insuperável se interpuses-

Warner Bros/Everett Collection/Keystone

realidade e aparência

Após a caracterização desses dois tipos, Glauco lança-nos a questão decisiva: qual deles você diria ser o mais feliz – o injusto que aparenta ser justo, ou o justo que aparenta ser injusto? Não é difícil notar que essa questão e a argumentação que a prepara constituem uma variante da narrativa do anel de Giges, apresentada por Glauco pouco antes. Só que, em lugar da fábula de Giges descobrindo o anel mágico que o torna invisível, Glauco agora nos propõe imaginarmos uma oposição de tipos cujas características são definidas sem recurso à fabulação e ao mito. Você bem pode indagar se, na vida real, existe alguém que seja tão perfeitamente injusto que pareça a todos o mais justo dos homens. Mas o essencial, aqui, é a caracterização de um tipo, o do homem injusto que sabe fazer com que suas ações tenham a aparência enganosa da virtude. Note que a apresentação desse tipo possui uma função conceitual. É pensando no fato de que os exageros podem auxiliar na abordagem e compreensão de um problema que Glauco, personagem de Platão em A república, lança mão desses dois homens fictícios: o perfeitamente justo e o perfeitamente injusto.

Sugira-lhes que imaginem fazer parte do diálogo redigido por Platão, participando do debate em torno da natureza da justiça. Peça-lhes que suponham estar de acordo com Glauco. Que considerem, por conta própria, outros argumentos que corroboram a tese conforme a qual a justiça é fruto de um cálculo. Faça-os enumerar esses argumentos e, em seguida, identificar o estatuto de cada uma das contribuições que imaginaram a favor de Glauco. Trata-se de um caso verídico que ilustra a tese defendida por ele? Ou de uma fábula ou história que, assim como a alegoria do anel de Giges, reforça a conclusão de que a justiça é resultado de um cálculo? Possivelmente os estudantes encontrem na sua própria experiência de vida motivos favorecendo a posição de Glauco. Peça-lhes, então, que deem a esses motivos a formulação mais ampla possível, de modo a conferir à lembrança ou situação evocadas um valor exemplar, isto é, que também possua validade para os demais. Veja também se os argumentos que eles imaginaram a favor da tese de Glauco não admitem uma formulação impessoal, a mais geral possível.

John Malkovich encarna o sedutor Visconde de Valmont em Ligações perigosas (Direção de S. Frears. EUA:1988), filme baseado no romance homônimo de P. C. de Laclos (1741-1803).

se entre o que somos realmente e nossa aparência exterior. Com isso, a sociedade atual criou um abismo entre ser e parecer. A aparência se tornou estranha à virtude, diz Rousseau. Nem sempre foi assim, ele acrescenta em seguida. Nos tempos primitivos, quando não havia a preocupação em parecer ser o que não se é, os indivíduos exibiam sua natureza mais íntima: “Antes que a arte tivesse polido nossas maneiras e ensinado a nossas paixões a falar uma linguagem artificial, nossos costumes eram rústicos, porém naturais. E a diferença no comportamento anunciava, imediatamente, a diferença dos caracteres. No fundo, a natureza humana não era melhor. Mas os homens encontravam sua segurança na facilidade de se perceberem reciprocamente, e essa vantagem, da qual não conhecemos mais o preço, lhes economizava muitos vícios.” (J.-J. Rousseau, Discurso sobre as ciências e

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injusto que parece ser justo e do justo que parece injusto vão nesse sentido. A diferença entre ser e parecer justo se articula em torno do peso que possui, na vida dos homens, a opinião que fazemos uns dos outros. Parecemos justos ou injustos aos olhos dos demais. Segundo Glauco, é o juízo feito sobre nossas ações o que, em última análise, decide sobre nossa felicidade. Quanto melhor o juízo que se fizer de um homem, mais estimado e honrado ele será, e vice-versa. Se, portanto, o homem injusto souber esconder sua verdadeira natureza e parecer justo, será feliz. Como diz Glauco, a argumentação que ele expõe reflete “a opinião da maioria” (República, II, 358d). A refutação que Sócrates empreende do argumento de Glauco consistirá em defender que a felicidade não se subordina à representação que os demais fazem de nós. Sócrates terá de mostrar que a “opinião” (dóxa, em grego) é um critério instável para decidir sobre a moralidade dos homens. Se a “opinião” não é o conhecimento da verdade, como, então, apoiar-se nela para decidir sobre a justiça e a felicidade humanas? Nessa direção, Sócrates irá concluir que, embora o injusto possa construir a aparência da virtude, a aparência, enquanto simulacro, diferencia-se da verdade tanto quanto o erro. Ou seja, parecer justo não assegura felicidade a ninguém. É preciso, ao contrário, ser realmente justo, para poder alcançar a verdadeira felicidade. E, para ser justo, é preciso conhecer a justiça e imitá-la, mesmo que isso contrarie as expectativas da “opinião” sobre nossa conduta. Com base nesse esquema do argumento que será apresentado por Sócrates no decurso de A república, você pode propor aos alunos a seguinte atividade.

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Tradução: Lourdes S. Machado. SĂŁo Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 321-352). arrisca a colar sobre a superfĂ­cie do suporte pedaços de objetos externos – trechos de jornal ou tecido –, esses objetos nĂŁo sĂŁo imitados, mas transpostos materialmente para a tela, como a tinta propriamente dita.â€? (Schapiro, “A pintura abstrataâ€?. Tradução: Betina Bischof, in: Mondrian – A dimensĂŁo humana da arte abstrata. SĂŁo Paulo: Co-

Se você avaliar que serå proveitoso aprofundar o assunto, estimule a discussão em aula do trecho citado do texto de Meyer Schapiro. Em primeiro lugar, façam uma anålise coletiva do trecho, divindo-

O abstracionismo na pintura moderna Atividade em equipe e debate em sala de aula

deste tipo ĂŠ apresentado pela pintura de Alberto da Veiga Guignard (Nova

Em equipes de trĂŞs ou quatro inte-

Friburgo, 1896 - Belo Horizonte, 1962), cujas paisagens sĂŁo propositadamente

grantes, realize pesquisa na internet ou em biblioteca, buscando artistas que

nĂŁo realistas. Da mesma maneira, a trajetĂłria artĂ­stica de Lasar Segall (Vilnius,

podemos classificar como “abstratosâ€?. HĂĄ inĂşmeros exemplos de pintores no Brasil que, embora tenham tambĂŠm re-

Lituânia, 1891 - São Paulo, 1957), Iberê Camargo (Restinga Seca, 1914 - Porto Alegre, 1994), Milton Dacosta (NitÊroi,

alizado uma obra figurativa, exploraram com profundidade aspectos ligados Ă

1915 - Rio de Janeiro, 1988) e Arcangelo Ianelli (SĂŁo Paulo, 1922 - SĂŁo Paulo,

pintura abstrata. O caso de Alfredo Volpi (Lucca, ItĂĄlia, 1896 - SĂŁo Paulo, 1988) ĂŠ, a propĂłsito, de grande interesse. Vol-

2009), dentre outros, ilustram a ruptura com elementos figurativos, presentes de inĂ­cio em suas pinturas, em favor de

pi possui um conjunto de pinturas que o pĂşblico costuma identificar como a

poĂŠticas influenciadas pelo construtivismo e tendĂŞncias afins.

representação de pequenas bandeiras. Ele mesmo não apreciava esta designa-

• Após o levantamento de artistas abstratos (construtivistas, neoexpres-

ção, pois o essencial, nesses quadros, não Ê a imitação das figuras, mas o fato de que a referência às formas trian-

sionistas ou minimalistas), apresentem os resultados obtidos sob a forma de seminĂĄrio em classe. Procurem mos-

gulares possibilita explorar composiçþes cromåticas especiais. Outro caso

trar reproduçþes das obras selecionadas, discutindo os aspectos abordados

de grande interesse para um debate

nesse mĂłdulo.

unidade

espĂ­rito e letra

pĂĄgina 175 Note que, mesmo em um autor como Immanuel Kant, comprometido com os ideais de emancipação e de autonomia caracterĂ­sticos do Esclarecimento, a forma de expressĂŁo ĂŠ, por vezes, dura e, como alguĂŠm poderia classificar hoje em dia, “politicamente incorretaâ€?. NĂŁo ĂŠ comum nos depararmos atualmente com um filĂłsofo de destaque que declare que a falta da faculdade de julgar – ou, mais simplesmente, a falta de juĂ­zo – equivale Ă estupidez... Menos ainda acrescentar que, contra isso, nĂŁo hĂĄ remĂŠdio. Essa forma de expressĂŁo, direta e por vezes rude, torna-se cada vez mais rara, especialmente se inserida em um contexto pedagĂłgico e de formação, como ĂŠ o caso do Ensino MĂŠdio. Ocorre que Kant, como jĂĄ assinalamos, ĂŠ reconhecidamente um dos principais pensadores do Esclarecimento ou Filosofia das Luzes. E isso nos faz pensar que a rudeza algumas vezes assu-

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as situaçþes envolvendo a aplicação de um conjunto de regras. Foi o que perceberam filósofos como Immanuel Kant[+] (1724-1804). Hå uma nota de rodapÊ na Crítica da razão pura (1787) em que Kant comenta um ponto muito semelhante ao que estamos discutindo. Nestas linhas reproduzidas a seguir, Kant não estå pensando em esporte algum, ele apenas faz consideraçþes gerais sobre o que Ê necessårio para uma pessoa servir-se de regras. Eis o texto:

mida em sua forma de expressĂŁo, assim como em outros autores do perĂ­odo que tambĂŠm se encontravam claramente voltados para a realização de ideias progressistas, pode representar excelente ocasiĂŁo para debater com os alunos questĂľes como estas: 1) devemos reprovar, de um ponto de vista moral e polĂ­tico, um autor ou autora do passado que se serviu de expressĂľes que atualmente consideramos “politicamente incorretasâ€?, mesmo no caso em que este autor ou autora tenha sido visto por seus contemporâneos como politicamente progressista? “A falta da faculdade de julgar ĂŠ o que se chama tolice, e em relação a esse defeito, nĂŁo hĂĄ o que fazer. Uma cabeça obtusa ou limitada, Ă qual apenas falte o grau conveniente de entendimento e de conceitos que lhe sĂŁo prĂłprios, ĂŠ sim capaz de ganhar com o estudo e mesmo alcançar a erudição. Mas, como hĂĄ ainda, habitualmente, falha na faculdade de julgar [...], nĂŁo ĂŠ raro encontrar homens muito instruĂ­dos que habitualmente deixam ver, no uso de sua ciĂŞncia, essa falta irreparĂĄvel.â€? (Kant, CrĂ­tica da razĂŁo pura, B 172/173. Tradução nossa)

O que designamos acima como a experiĂŞncia necessĂĄria para interpretar bem, Kant define como o bom uso da faculdade de julgar. Diante do exemplo do futebol, Kant diria que nĂŁo basta ao ĂĄrbitro conhecer de cor as regras do jogo; ele tem de ter juĂ­zo para saber como aplicĂĄ-las durante o jogo. Na nota acima, entretanto, Kant vai um pouco mais longe. Releia o texto. Pode-se depreender daĂ­ que hĂĄ pessoas que simplesmente sĂŁo incapazes de aplicar bem regras a casos, mesmo que tenham muita familiaridade com a matĂŠria em pauta. A capacidade de servir-se bem das regras e, desse modo, evitar sua mĂĄ aplicação, ĂŠ considerada por Kant como “um dom da naturezaâ€?. Com isso, ele nĂŁo entende que a natureza tenha reservado esse dom a poucas

Como se aprende a aplicar regras?

Desenvolvimento individual por escrito • Em um texto de aproximadamente trĂŞs parĂĄgrafos a ser discutido em classe, procure refletir acerca da passagem citada de Immanuel Kant. VocĂŞ concordaria com a avaliação deste autor, quando ele afirma que a capacidade de julgar, necessĂĄria para aplicar regras a casos, ĂŠ uma espĂŠcie de talento natural, inexistente em algumas pessoas? Ou, ao contrĂĄrio, vocĂŞ acredita que todos nĂłs, sem exceção, podemos aprender a julgar bem, que ĂŠ apenas uma questĂŁo de tempo e exercĂ­cio? Se vocĂŞ defende a segunda posição, procure entĂŁo responder a mais uma pergunta: como ĂŠ que aprendemos isso? Certamente, nĂŁo hĂĄ um manual de regras que, uma vez consultado, nos ensine a como aplicar regras. Talvez possamos aprender a julgar, isto ĂŠ, aprender a aplicar regras a casos. Mas o curioso ĂŠ que se este aprendizado for mesmo possĂ­vel, ele nĂŁo residirĂĄ em decorar novas regras. Pois nĂŁo bastaria decorar essas novas regras, o problema principal permaneceria intocado: como, afinal, aplicar as regras?

pessoas, mas apenas que, caso alguns de nós sejamos desprovidos dele, não haverå o que fazer. Quem não for capaz de fazer bom uso da faculdade de julgar jamais serå capaz de interpretar bem a aplicação das regras aos casos. Vamos reter, do que falamos atÊ aqui, alguns pontos: 1. Uma coisa Ê o enunciado da regra; outra, sua aplicação.

2) A defesa do pensamento politicamente correto, ainda que seja motivada pelas melhores razþes, não pode, em alguns casos, redundar em controle e censura em relação a

livro do professor

Interpretar as regras do jogo

espĂ­rito e letra

6

sacnaify, 2001, pp. 10-11)

Desse modo, Schapiro torna a atividade artĂ­stica uma produção da realidade‌ sob a forma de aparĂŞncia. Como vocĂŞ pode perceber, Schapiro nĂŁo concordaria com a tese defendida

por J.-J. Rousseau, conforme a qual as aparĂŞncias representam um obstĂĄculo intransponĂ­vel para penetrarmos no Ă­ntimo das pessoas. Ao contrĂĄrio, no entender do historiador da arte norte-americano, apenas ao lidar com as aparĂŞncias poderemos transpor o isolamento de nossas paixĂľes, sentimentos e juĂ­zos, compartilhando-os com nossos semelhantes. Vimos, todavia, que talvez Rousseau termine sua abordagem a esse problema admitindo que, jĂĄ que temos de lidar com as aparĂŞncias, o melhor a fazer ĂŠ cuidar de tornĂĄ-las melhores. Sob esse Ăşltimo aspecto, Rousseau e Schapiro parecem mais prĂłximos um do outro.

realidade e aparĂŞncia

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-o de acordo com as principais ideias apresentadas. Em seguida, peça para os alunos se posicionarem em relação ao que Ê ali discutido, conforme suas próprias concepçþes acerca da arte. Por fim, estimule que percebam possíveis relaçþes (de proximidade, de contraposição) frente a outros autores, por exemplo J.-J. Rousseau.

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de reiteradas decisões dos tribunais num mesmo sentido) – serão capazes de expressar, como possível, um “espírito” que é múltiplo e complexo? Que tipo de implicações políticas existem por trás dessa pergunta? Questionamentos dessa ordem nos lembram que, ao formarmos opinião sobre questões de legislação, especialmente aquelas que envolvem pontos delicados (assim como, digamos, as questões da união civil ou da redução da maioridade penal), é crucial mobilizar a capacidade de uma argumentação racional, e não simplesmente opinar com base em pré-julgamentos e motivações unicamente emocionais. A atividade de interpretação da lei é da maior importância. A lei nem sempre exprime com clareza o seu alcance, a sua abrangência. Daí, então, a atividade que se diz “integrativa” do Poder Judiciário, por meio da jurisprudência: os tribunais interpretam o texto legal para revelar seu alcance e sua abrangência. Eles o fazem com a atenção voltada principalmente para os princípios gerais de Direito – as regras básicas, éticas, que permeiam todo o sistema jurídico.

O estatuto jurídico das relações homoafetivas

Discussão em classe e desenvolvimento individual por escrito

deria reivindicar o direito de herança assegurado aos casais heterossexuais, protegidos

A relação entre a letra e o espírito da lei

pela lei. Entretanto, em 2008 o Supremo Tribunal

está em permanente mudança. Prova-o o fato de que, de 1988 para cá, a discussão sobre a

de Justiça decidiu que um fundo de pensões deveria incluir como seu beneficiário o par-

“união estável” adquiriu novos contornos. Vamos examinar essas mudanças, recorrendo a uma questão atual que tem alimentado o

ceiro de um homem falecido, com quem ele vivera em “união estável” por 15 anos. O ar-

debate jurídico e, com frequência, aparece no noticiário. Trata-se do que os juristas cha-

3) Se esta regra imparcial for um ideal, isso não se deve ao fato de que o espírito de um texto (e de sua letra) se altera no curso da história, conforme a perspectiva específica de cada geração de leitores que se volta para ele? Este último aspecto é significativo para as questões levantadas no curso desta Unidade e será retomado no módulo “Traduzir e interpretar”, onde se discutem os aspectos interpretativos que atravessam nossa relação (sempre renovada e dinâmica) com o passado.

Mudar a “letra” para manter o “espírito”

livro do professor

página 181

Do ponto de visto teórico e num sentido mais profundo, nas democracias representativas e em outras formas do Estado de Direito, a lei já é ela mesma reflexo de um espírito (a vontade e os interesses soberanos do corpo social), o qual deve ser expressado pelo legislador. O ponto merece atenção. O bom funcionamento do Estado de Direito pressupõe que a relação entre a letra da lei e esse “espírito” – que, no mais das vezes, é algo de difícil apreensão e objeto de discussão permanente – seja o quanto possível uma relação que não distorça ou falseie aquele espírito, mas que ao contrário o represente. A questão inevitável da democracia é que o corpo social é composto de muitos agentes diferentes, que tantas vezes dispõem de interesses diferentes e até mesmo contraditórios. Sendo assim, em que medida uma letra – a legislação vigente –, amparada pela sua interpretação em dado momento histórico – a jurisprudência (o resultado

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mam as “relações homoafetivas”, isto é, as relações entre indivíduos do mesmo sexo. Com esse intuito, releia, antes de prosse-

guir, o parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição Brasileira, citado acima. Verifique o se-

guinte: a letra desse parágrafo 3 reconhece que apenas constitui uma entidade familiar que seja equivalente ao casamento a união estável entre um homem e uma mulher. Em outras palavras, a letra do artigo 226 da Constituição Brasileira não reconhece a união estável entre duas pessoas do mesmo

sexo. Por isso, conforme o texto constitucional, casais homossexuais que, na prática, vivem de modo estável, como ocorre com um casal heterossexual, não possuem os direitos e deveres que o artigo 226 assegura ao

regime de união estável entre um homem e uma mulher. O fato de que a união estável entre duas pessoas do mesmo sexo não seja reconhecida pelo artigo 226 da Constituição

Federal torna este tipo de união inexistente do ponto de vista legal. Por isso, quando, por exemplo, um dos membros de uma união estável homoafetiva falece, o outro não po-

oficial à união estável entre um homem e uma mulher. Afinal, se “união estável” e “casamento civil” são equivalentes, é natural que se apliquem a ambos os mesmos direitos e atribuições.

gumento apresentado na justificativa dessa decisão inédita da justiça brasileira foi a de que a Constituição Federal institui direitos e deveres para todos os cidadãos, independentemente de raça ou sexo. Assim, argumentava-se que uma relação estável com parceiros do mesmo sexo deveria ser considerada pela lei como equivalente a uma relação estável com parceiros de sexos diferentes. Por isso, hoje em dia, aqueles que defendem que homossexuais devem ter os mesmos direitos de que gozam os casais heterossexuais brigam para modificar a letra do parágrafo 3 do artigo 226 da Constituição Federal. • Forme uma dupla com um(a) colega e discuta esse assunto, pesquisando, por meio de consultas ao noticiário, o debate em torno das “relações homoafetivas”. Como trabalho fora da sala de aula, consulte a biblioteca ou a internet a fim de examinar qual o estatuto das relações homoafetivas em outros países, como a Argentina, os Estados Unidos e o Reino Unido, por exemplo. Em seguida, formule em uma redação de aproximadamente duas páginas os resultados de sua pesquisa, levando sempre em conta a correlação aqui examinada entre letra e espírito da lei.

Essa equivalência não é o resultado de uma simples constatação, mas, sim, de uma interpretação conforme a qual as duas coisas comparadas – a “união estável” e o “casamento com registro civil”

espírito e letra

nossa tradição cultural? Em quais casos? A partir de que regra julgá-los sem parcialidade?

Traduzir e interpretar página 184 Se você achar útil, pode passar aos estudantes uma terceira versão do mesmo passo da Ilíada, a tradução feita por Carlos Alberto Nunes, contemporâneo de Haroldo de Campos, e publicada pela Ediouro. Eis a referência completa: • Homero, Ilíada, XXV, versos 471-480: Tradução Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 539.

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um trecho pequeno, no qual é narrada a chegada de Príamo, pai de Heitor, à tenda de Aquiles. São uns poucos versos, mas, como você logo irá perceber, sua leitura será suficiente para nos conduzir ao coração da questão anunciada anteriormente. Questão que podemos formular também da seguinte maneira: o que exatamente se passa quando lemos a tradução de um texto que foi escrito originalmente noutra língua? Note que estamos às voltas com o par que dá nome a esta Unidade. O texto original de Homero representa, de um lado, a letra do poema épico intitulado Ilíada; de outro, seus tradutores, que conhecem o idioma grego, buscam verter o espírito do poema em seus idiomas, ou seja, buscam traduzir o espírito homérico em outra letra – o idioma português, por exemplo – que nem mesmo existia na época em que a obra foi criada. Aos textos, então! Por precaução, tenha um dicionário a seu alcance. Após a leitura, voltaremos a nossas considerações sobre o espírito e a letra. O primeiro dos textos é extraído da tradução da Ilíada por Odorico Mendes (1799-1864), intelectual e literato maranhense muito ativo na metade do século XIX. O primeiro verso transcrito abaixo fala da chegada de Príamo no acampamento dos inimigos gregos:

espírito e letra

“Seguiu direito; achou de Jove o aluno Dentro sentado, à parte os sócios, menos Alcimo e Automedon, ramos de Marte, Que a mesa diligentes o serviam, Onde satisfizera a sede e a fome. Não visto passa o corajoso velho, Até que prosternado, humilde beija A mão terrível que imolou seus filhos”

(Homero, Ilíada. Tradução de Odorico Mendes, publicada postumamente em 1874.

Reedição com prefácio e notas de Sálvio Nienkötter. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas: Editora da Unicamp, 2008, pp. 855-857)

Agora leia a descrição do mesmo episódio, noutra versão, contemporânea a

nós, feita pelo poeta, ensaísta e tradutor Haroldo de Campos (1929-2003), um dos pioneiros da poesia concretista no Brasil:

“O ancião rumou direto para a morada onde Aquiles, caro a Zeus, sentava-se habitualmente. Estava ele no interno desta. À parte, os companheiros se sentavam. Dois somente, Automedonte e Alcimo, raça-de-Ares, se apressuravam junto dele: terminara, há pouco, de comer e beber, mas a mesa seguia posta. Esquivando-se dos outros, Príamo acerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terríveis mãos, mãos assassinas, que lhes mataram tantos filhos.” (Homero, Ilíada, XXIV, versos 471481. Tradução de Haroldo de Campos. São Paulo: Arx, 2002, p. 467)

Comparemos as duas traduções, a fim de identificar quais diferenças existem entre elas. A versão de Odorico Mendes é mais circunspecta e com uma sintaxe mais rebuscada que a de Haroldo de Campos. Esta última, por sua vez, soa mais adjetivada e parece querer realçar a dramaticidade da cena. Compare, especialmente, os últimos versos, quando Príamo beija as mãos de Aquiles, o assassino de seu filho Heitor. Enquanto Haroldo de Campos escreve “Esquivando-se dos outros, Príamo acerca-se de Aquiles, e lhe abraça os joelhos, beijando-lhe as terríveis mãos, mãos assassinas, que lhes mataram tantos filhos”

Odorico Mendes se contenta com o seguinte: “Não visto passa o corajoso velho, Até que prosternado, humilde beija A mão terrível que imolou seus filhos”

Como explicar essas diferenças, se os dois textos são traduções do mesmo original? Você dirá: mas são traduções diferentes do mesmo original... Só que isso não é

Questões de interpretação página 189

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Muito antes da invenção e difusão do papel

(no Ocidente, por volta do séc. VIII), os egípcios usavam as fibras entrelaçadas da haste de uma planta aquática (Cyperus papyrus) para escrever e desenhar.

tradução e das questões de interpretação que essa prática revela, nossa relação com a tradição e a história ganha destaque e ocupa o primeiro plano da reflexão filosófica. Não por acaso, a partir da segunda metade do século XIX e especialmente no curso do século XX, autores como Friedrich Nietzsche (1844-1900), Martin Heidegger (1889-1976) e Hans-Georg Gadamer (19002002) enfatizaram a articulação existente entre interpretação e consciência histórica. Examinaremos agora três momentos desse tipo de reflexão, cada um deles correspondendo aos autores mencionados. Apropriar-se da tradição: Nietzsche Iniciaremos com um trecho de A gaia ciência, obra que Nietzsche publicou em 1882, em uma fase muito produtiva de sua trajetória filosófica. O livro é todo ele

espírito e letra

ca, de cultura para cultura e mesmo de indivíduo para indivíduo, o espírito das obras desses filósofos se modifique. Pode bem acontecer, enfim, que o sentido das obras de Platão e Aristóteles dependa sobretudo do ponto de vista adotado pelo leitor que trava contato com elas. Como este leitor varia, assim também varia o sentido do texto em questão. De certo modo, o mesmo vale para o céu, no qual a ciência moderna já não reconhece aquelas divindades que certas culturas antigas enxergavam nele. Isso nos ensina duas coisas importantes sobre o nosso tema. Primeiro, que o espírito de um “texto” (seja uma obra filosófica, seja o mapa celeste) jamais se encontra dissociado de uma interpretação determinada. Segundo, que a diferença entre essas interpretações aparentemente se explica pela relação que cada cultura e cada época instituem com a tradição a que pertencem tais textos. Deixando agora o céu de lado e considerando apenas o caso das obras de Platão e Aristóteles, podemos afirmar que são “clássicos” da filosofia, na medida em que permanecem sempre atuais – bastando, para isso, que sejam lidos por nós. Já sabemos no que reside essa atualidade: no fato de que continuam possibilitando leituras as mais diversas, conforme a situação histórica e cultural de seus intérpretes. A essa altura, você já deve ter se dado conta do fato de que os problemas levantados pela tradução e interpretação de textos – e ligados, portanto, àquilo que se convencionou designar a partir de Schleiermacher [+] (1718-1834) por hermenêutica – conduzem a um tema filosófico de primeira grandeza: a questão da temporalidade. Se traduzir é relacionar pessoas de épocas diferentes, depreende-se daí que toda atividade de tradução envolve aspectos históricos. Toda tradução realiza escolhas diante do texto a ser traduzido e, com base nelas, reanima e atualiza o espírito do que pertence ao passado. Através da atividade de

SSPL/Getty Images

Na Unidade Realidade e aparência, módulo “As aparências enganam?”, abordamos aspectos da história da cosmologia que você pode articular com o tema em discussão aqui. Naquela Unidade, a visão matematizante do universo – que, embora já se encontrasse em Pitágoras, jamais foi consensual na Antiguidade grega, tendo se afirmado no Ocidente de fato a partir dos séculos XVI e XVII – é comentada. Noutro módulo daquela mesma Unidade (“A revolução filosófica e científica moderna”), a discussão desse tema inclui a apresentação de um trecho de O ensaiador, de Galileu Galilei (1564-1642), que exprime com clareza e contundência a ideia moderna de que o universo deve ser lido matematicamente. É essa ideia, que prevaleceu no campo das ciências a partir

da Modernidade, que você pode contrastar com interpretações que viam no céu a residência privilegiada das divindades.

página 191 Talvez caiba aqui uma consideração sua, no sentido de esclarecer que as objeções de Nietzsche não invalidam o princípio geral segundo o qual a investigação histórica deve procurar reaver o significado autêntico do passado que se propõe examinar. O aspecto sobre o qual Nietzsche é enfático é que é ilusório pensar ser possível efetuar uma leitura dos acontecimentos culturais que seja completamente isenta de interesses extemporâneos ao período em análise. A simples escolha por se debruçar sobre este ou aquele período da história em detrimento de outros já exprime aspectos da subjetividade do investigador. Do mesmo modo, as formas de abordagem, assim como o que cada uma dessas formas põe em destaque, variam conforme os interesses teóricos, culturais, políticos e morais de cada período da história. Quando Nietzsche afirma que os romanos apropriam-se da tradição cultural grega sem hesitação alguma, quer dizer, com isso, que a atitude de reler o passado é sempre um ato do presente, e que isso não deve ser considerado um obstáculo para o senso histórico. A seguir, você verá que M. Heidegger e de H.-G. Gadamer apresentam ideia semelhante: não existe saber do passado que não seja mediado por concepções da atualidade.

página 191 Eis a referência do texto original de Heidegger mencionado por nós: Gesamtausgabe, II. Abteilung: Vorlesungen, Bd. 56/57, “Zur Bestimmung der Philosophie”. Frankfurt: Klostermann, 1987. Na Unidade Natureza e cultura (módulo “A diversidade das culturas”), são examinadas questões próximas ao ponto aqui levantado por Heidegger. A

livro do professor

Se a atividade de comparar traduções diversas de um mesmo texto mostrar-se profícua, você pode lançar mão de outros textos e exemplos. É claro que eles não precisam ser extraídos da tradição antiga clássica. Ao ponderar que exemplos poderiam ser utilizados em aula, ou mesmo em uma atividade para ser realizada autonomamente pelos alunos, você pode efetuar uma pesquisa e conferir se a biblioteca de sua escola possui livros que tragam duas ou mais traduções diferentes de uma mesma obra.

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propôs uma interpreta-

cogitou ser pastor. Seu contato com a filosofia,

ção muito original dos

entretanto, o afastou da teologia. Fez estudos

filósofos pré-socráticos

de filologia clássica na Universidade de Bonn e,

e de Sócrates e Platão,

em seguida, na Universidade de Leipzig. Nesse

na qual as investigaçòes

período, toma contato com a obra de Arthur

morais são articuladas

Schopenhauer (1788-1860), que o impressiona e

com a atenção de um

o influencia muito.

filólogo. No século XX,

Com apenas 24 anos, Nietzsche torna-se pro-

sua

obra

influenciou

fessor na Universidade da Basileia (Suíça), onde

diversos autores, em

leciona até 1879, quando problemas de saúde o

especial Michel Foucault

obrigam a renunciar à carreira acadêmica. Esses

(1926-1884).

problemas marcarão, daí em diante, a vida de

Há inúmeras obras de Nietzsche traduzidas

Nietzsche, a ponto de que, a partir 1889 até sua

para o português. Duas traduções são especial-

morte, ter de ficar aos cuidados de sua mãe e sua

mente recomendadas:

irmã, em um estado de grande desequilíbrio psí-

F. Nietzsche, Obras incompletas – Coleção Os

quico. Nietzsche falece em Weimar, Alemanha,

Pensadores. Tradução: Rubens R. Torres Filho.

em 25 de agosto de 1900.

São Paulo: Abril Cultural, 1978.

A obra de Nietzsche, pouco reconhecida du-

Mais recentemente, a editora Companhia das

rante sua vida, obteve enorme prestígio após sua

Letras publicou uma série de obras de Nietzsche

morte. Suas posições sempre polêmicas produzi-

traduzidas por Paulo César L. de Souza. O con-

ram reações violentas, em especial por parte de

junto também está disponível em livros de bolso.

se torna atual a cada vez que nos apropriamos dele com base em nossos interesses teóricos, práticos e morais.

Modos de vivência: Heidegger A fim de aprofundarmos nosso assunto, vejamos agora uma ideia apresentada por Martin Heidegger em uma conferência intitulada “A ideia da filosofia e o problema da concepção de mundo”, que ele ministrou na Universidade de Friburgo em 1919. A certa altura, ele compara duas perspectivas – ou, como ele diz: duas “vivências” – bastante diversas sobre uma mesma coisa, uma científica e outra, digamos, pré-científica, “apenas” interpretativa. A primeira dessas vivências corresponde àquela dos cientistas da atualidade. Pense em um astrônomo, por exemplo, que analisa o nascer do sol como sendo um processo

de ordem simplesmente natural. Para fazê-lo, ele tem de se tornar indiferente ao que percebe com seus sentidos, ao que enxerga com seus olhos, para ater-se a uma descrição abstrata do fenômeno observado. Ora, essa vivência nada tem que ver com aquela experimentada por indivíduos que endeusam o astro solar. Heidegger dá como exemplo dessa segunda vivência o que experimentam os anciãos de Tebas que representam o coro na tragédia Antígona, de Sófocles (496-406 a.C.). Observando o céu logo no início da manhã, os anciãos, comemorando o êxito dos tebanos em defender sua cidade do ataque do exército de Argos, exprimem-se assim: “Ó raio de sol, que para Tebas das sete portas luziu/ enfim o mais belo esplendor”

página 194

livro do professor

Conforme Heidegger, a diferença entre ciências exatas (lógica, matemática, física, astronomia) e interpretação histórica (filologia, história, religião) é uma diferença entre modos de comportamento face ao mundo. Tais modos ou maneiras de se comportar face ao uni-

verso que nos cerca se mostram irredutíveis um ao outro. Decidir entre eles com base no critério da objetividade ou em algum sentimento “subjetivo” seria tomar de antemão o partido de um contra o outro. Mas isso não quer dizer que ciência e história, ou melhor, interpretação científica e interpretação histórica sejam ambas ilusórias. Ao contrário, a irredutibilidade de uma à outra pode querer dizer, por exemplo, que o sol consegue ser tanto o centro de um sistema solar entre incontáveis outros, para uma época e uma cultura determinadas, quanto uma divindade protetora, para outros povos e culturas. Dito de outro modo, o mundo é tão complexo quanto são múltiplas as suas interpretações. Gadamer

Hans-Georg Gadamer

AFP

nasceu em 11 de fevereiro de 1900, em Mar-

burgo, na Alemanha. Seu pai era professor

catedrático de química.

Estudou filosofia, filologia clássica, história da arte, literatura e teo-

logia nas universidades

de Breslau, Munique, Friburgo e Marburgo, onde foi aluno de M.

Heidegger, cujo pen-

samento se tornou uma influência decisiva para ele. Em 1933, tornou-se professor de estética e de ética na Universidade de Marburgo.

Depois, ensinou em várias universi-

dades na Alemanha, tendo sido reitor da

Universidade de Leipzig logo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Faleceu em 13 de março de 2002.

Sua obra mais importante é Verdade e

método – Traços fundamentais de uma her-

menêutica filosófica (1960), na qual se vê a dívida de Gadamer com as ideias de Heidegger. Dispomos da obra em portugês:

H.-G. Gadamer, Verdade e método – Tra-

ços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução: Flávio P. Meurer. Petrópo-

espírito e letra

lis: Vozes: 1998.

pensamento, abstratamente, as suas propriedades físicas. A atitude científica requer do investigador que ele procure se isentar de toda relação pessoal com o que investiga (o que, evidentemente, não significa que ele não possa afirmar que “ame” o que faz). Todavia, não é necessário avaliar esse conflito de maneira apenas negativa, como se tivéssemos que escolher uma

vivência em detrimento da outra. Isso seria o mesmo que declarar impossíveis a coexistência entre culturas distintas e até mesmo as tensões internas a uma mesma época ou cultura. Seria o mesmo que ignorar que o sentido de alguma coisa ou o espírito de um discurso podem variar – enquanto a sua imagem ou a sua letra permanecem as mesmas – conforme as diferentes épocas e culturas, bem como entre sociedades e indivíduos dentro de uma mesma época ou cultura. A distância do passado: Gadamer Examinaremos agora a posição de Hans-Georg Gadamer, que, apropriando-se das reflexões de Schleiermacher e de Heidegger, sistematizou e aprofundou o campo filosófico da hermenêutica. Seu livro mais conhecido, Verdade e método, publicado em 1960 na Alemanha, é uma obra de grande importância para os estudos hermenêuticos. Gadamer alinha-se a teses que já examinamos anteriormente, como, por exemplo, a ideia de que a interpretação do passado sempre finca raízes no presente. O “historicismo”, contra o qual já se levantara Nietzsche, será criticado por Gadamer exatamente porque os “historicistas” creem que a distância temporal que nos separa do passado deve ser suprimida, como se ela pudesse desaparecer. Mas, dirá Gadamer, não podemos suprimir o tempo que nos separa do passado; nem, tampouco, deveríamos nos esforçar por fazê-lo, uma vez que só há sentido no passado a partir das leituras que o presente efetua sobre ele. Nesse aspecto, Gadamer se aproxima bastante da posição defendida por Nietzsche, discutida acima. Com efeito, as objeções que Nietzsche levantara à “consciência histórica” reaparecem em Verdade e método. Gadamer dirige uma crítica a quem pretende ser neutro diante do passado e da tradição. Pois essa suposta “neutralidade”

página 195 Para a abordagem à hermenêutica de H.-G. Gadamer, o texto em destaque é Verdade e método, publicado pela primeira vez em 1960. No Brasil, há tradução de Flávio P. Meurer (Petrópolis: Editora Vozes, 1998). Baseamo-nos especialmente no trecho intitulado “O significado hermenêutico da distância temporal” que, na tradução referida, se encontra entre as páginas 436 e 448. conduz a um resultado inesperado e contrário: ela ignora que qualquer apropriação do passado é sempre marcada pela perspectiva atual do historiador. Embora possua motivos que Gadamer reconhece serem bem intencionados, a tentativa de neutralidade por parte do historicismo termina por conduzir a uma ideia equivocada sobre nossa relação com a tradição. Por que o historicismo é tão difundido e arraigado? Por exprimir uma ideia muito familiar. Conforme essa ideia, apenas o distanciamento aberto pela passagem de tempo confere isenção a nossos juízos. E uma coisa é verdade: apenas o tempo, reconhece Gadamer, pode nos fazer abandonar certos preconceitos, que distorcem as avaliações que efetuamos acerca de tudo o que é recente ou atual. Gadamer fornece como exemplo disso nossa avaliação da arte moderna e contemporânea. Você sabia, por exemplo, que os pintores impressionistas e, depois deles, os pintores do cubismo, que hoje em dia são muito reconhecidos e cujas telas passaram a valer uma fortuna, foram mal compreendidos e mesmo desprezados em sua época? Gadamer é ciente disso, e reconhece que os preconceitos da moda, por exemplo, muitas vezes comprometem a formação de um juízo adequado sobre o objeto em questão. Por isso também Gadamer compreende (embora critique) a atitude “historicista”, conforme a qual apenas a distância confere objetividade a nossos juízos. Ocorre que o sentido verdadeiro de um texto ou obra de arte, diz Gadamer, jamais se esgota, sendo, antes, um processo infinito. Com isso, Gadamer se contrapõe à tendência do “historicismo”. Seu argumento é o de que nossa relação com a tradição, com o passado, jamais chega

a um ponto fixo determinado, jamais atinge uma forma definitiva. E isso, simplesmente pela razão de que recriamos o passado, toda vez que nos debruçamos sobre ele. Eis o que significa dizer, como faz Gadamer em Verdade e método, que a “distância do tempo... se movimenta e se expande sem cessar”. O passado vai se alterando, conforme se altera o presente. Eis algo que se pode constatar olhando para si mesmo. Nossa trajetória pessoal não é avaliada por nós de modos distintos, a depender do momento em que nos encontramos? Isso, que já vale para o indivíduo, é tanto mais válido quando o assunto é o conjunto de relações existentes entre culturas e épocas diferentes. Também no interior de nossa cultura há maneiras diversas de interpretar os fenômenos. Pense, por exemplo, no enfoque oferecido a nós pelas ciências. Dificilmente você dirá que, por exemplo, a matemática e a história se orientam segundo a mesma compreensão dos fenômenos que abordam. A matemática, assim como outras ciências não por acaso denominadas ciências exatas, busca uma exatidão e objetividade que seria vão esperar das investigações históricas. Mas isso não significa que a história seja menos rigorosa do que a matemática. Há uma diferença entre elas, já que a ideia de rigor das ciências exatas não se aplica às assim chamadas ciências humanas. Como observou Heidegger, a matemática não é mais rigorosa do que a história, e sim apenas mais estreita do que ela. E note que a matemática é “mais estreita” não por ser deficiente, mas porque para encontrar acesso aos seus objetos precisa deixar fora de jogo “o ponto de vista do observador”, sob o qual as coisas podem mudar de sentido e fazer história.

espírito e letra

intelectuais ligados ao cristianismo. Nietzsche

cia da família luterana, Nietzsche inicialmente

Friedrich Nietzsche, 1882. Gustav Schultze. Coleção particular

Friedrich Nietzsche nasceu em Röcken, Ale-

manha, em 15 de outubro de 1844. Sob influên-

espírito e letra

Nietzsche

descoberta de costumes e formas de vida diversos daqueles existentes na Europa ocidental na época dos grandes descobrimentos, por exemplo, ao invés de levar ao reconhecimento de que havia culturas diversas da europeia, ocasionou a convicção, difundida por parte de muitos europeus, de que estavam diante de “primitivos” ou “bárbaros”. Mesmo sem entrarmos no debate sobre o valor presumivelmente “inferior” ou “superior” que se atribui àquilo que é diferente ou estranho a nossos olhos (atribuição esta que, com muita frequência, exprime um preconceito), a questão da diferença ou alteridade permanece apresentando desafios para a reflexão. E o ponto comum que atravessa a questão da cultura e da tradução, assim como o das diferenças entre modos de perceber o universo e decifrá-lo, é o problema da irredutibilidade (questões que acompanham esse problema, quando o assunto é a diferença entre as concepções antiga e moderna do universo, são discutidas na Unidade Realidade e aparência).

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7

unidade

eu e o outro

Hanna Arendt (1906-1975), aluna de Martin Heidegger (1889-1976) e de Karl Jaspers (18831969), tem várias de suas obras traduzidas para o português. Segue uma relação não exaustiva, a título de sugestão bibliográfica para utilização no curso de filosofia: • H. Arendt, Entre o passado e o futuro [1954]. Tradução: Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1988. • H. Arendt, A condição humana [1958]. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. • H. Arendt, Eichmann em Jerusalém [1963]. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. • H. Arendt, As origens do totalitarismo. [1951]. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. • H. Arendt, Homens em tempos sombrios [1968]. Tradução: Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Arendt possui um estilo claro e ao mesmo tempo muito instigante e sempre deu provas de grande ousadia intelectual, abordando temas de ordem política, moral e metafísica. Uma de suas inquietações principais é a condição humana na época moderna, marcada pela técnica e pelas filosofias do sujeito. Arendt examina também de que modo acontecimentos característicos do século XX, tais como os sistemas totalitários, obrigam nossa reflexão a um confronto

fim, o professor marcou uma reunião de todo o grupo para que fosse anunciado o verdadeiro líder, o líder nacional, daquele movimento. Ele iria aparecer em um filme. Você já deve ter adivinhado quem apareceu na tela: o próprio Hitler. Esta foi a resposta do professor à questão de como todo um povo pode ser cúmplice do extermínio de milhões de pessoas. Essa experiência do professor, bastante radical, ilustra como é possível que, em casos extremos, cada um sacrifique sua individualidade em favor do grupo, ao mesmo tempo em que o grupo se forma na diferenciação em face de outros grupos. Cada um passa a ser valorizado porque é igual aos demais membros do grupo, e o grupo inteiro é valorizado internamente porque difere dos outros. O que há de comum ao “eu” e ao “outro” Igualdade ou identidade de um lado, diferença ou alteridade de outro. Observe,

Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images

Arendt

Hannah Arendt (1906-1975)

o indivíduo desaparece no

foi uma das filósofas mais

grupo social que o envolve.

importantes do século XX. Foi

Arendt assinala que o nacio-

aluna de Martin Heidegger na

nal-socialismo, que imperou

Universidade de Marburgo e

na Alemanha entre 1933 e

de Karls Jaspers na Universi-

o fim da Segunda Guerra

dade de Heidelberg.

Mundial, buscou aniquilar a

Com a ascensão do nazismo,

individualidade característi-

Arendt, assim como tantos

ca dos seres humanos.

intelectuais alemães de ori-

eu e o outro

gem judaica, viu-se obrigada a fugir para proteger a pró-

pria vida. Emigrou primeiro para a França, depois para

porém, que a diferença, no caso do filme A onda, é pensada em termos de hierarquia social: o grupo arroga-se superioridade e a impõe pela força, beneficiando-se da passividade e da não-organização da comunidade em que se encontra inscrito. Visto que resistências individuais a um grupo organizado e violento costumam ser ineficazes, a ideologia violenta do grupo termina prevalecendo sobre os demais, tanto no filme quanto, às vezes, na vida real. Porém, é possível ser igual e diferente dos outros ao mesmo tempo, e sem a prevalência de hierarquias? A pergunta também pode ser colocada a partir da perspectiva do outro: o outro pode ser igual e diferente de mim ao mesmo tempo, sem que esteja em jogo quem é melhor? Em que sentido podemos ser iguais aos outros? Podemos ser iguais em diversos aspectos. Se o outro é um membro da mesma família, é evidente que há aí uma igualdade ou uma comunidade

Em última análise, é essa

ideologia o que, segundo

Arendt, explica por que os prisioneiros (em sua grande maioria, judeus) dos

os Estados Unidos, onde viveu e lecionou a

campos de extermínio nazistas quase não

partir de então.

reagiam a seus algozes, mesmo sabendo

Arendt refletiu profundamente sobre o fe-

que nada tinham a perder: eles já haviam

nômeno do totalitarismo. O totalitarismo,

sido destituídos de sua personalidade in-

conforme a autora, é o fenômeno mais

dividual, sem a qual nenhuma ação ou re-

radical e violento dentre os casos em que

ação humana é possível.

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página 203 Na Unidade Natureza e cultura, módulo “A ideia de natureza humana”, são discutidos os aspectos conceituais envolvidos na ideia de uma natureza comum a todos os seres humanos – ideia a partir da qual foram formulados os “direitos humanos”, direitos dos quais todos nós, seres humanos, somos igualmente titulares. Apoiando-se nas considerações tecidas naquela Unidade, você pode enriquecer o debate em torno das relações entre o “eu” e o “outro” – em especial quando se trata de pensar o que há de “comum” entre eles. A desaparição do eu na coletividade

Desenvolvimento individual por escrito

A relação entre o indivíduo e o grupo do qual ele é parte pode assumir uma forma negativa, ameaçando aquilo que singulariza uma pessoa em comparação com as demais. De fato, um grupo habitualmente exige que nos comportemos como todos os indivíduos que participam dele, contrariando nossas vontades particulares em favor de um comportamento coletivo, de “massa”. Até certo grau, isso é aceitável e constitui um elemento da vida em sociedade. Entretanto, há situações extremas, em que as pessoas se sentem destituídas de sua individualidade por se encontrarem no interior de uma massa de indivíduos. • Produza um texto de pequena extensão comentando essas situações extremas, em que o eu “desaparece”, por assim dizer, no grupo. O trecho abaixo trata diretamente deste assunto, investigando o que certamente representa a situação mais radical do desaparecimento do eu em uma coletividade. Trata-se de um trecho de As origens do totalitarismo (1951), de Hannah Arendt (1906-1975). Uma alternativa na elaboração da redação consiste em tomar o caso dos campos de extermínio nazistas, analisado por Arendt, e apontar o conjunto de práticas ali instituídas que conduziram, na visão

de família. Se o outro é um brasileiro, há uma igualdade ou uma comunidade de cidadania, de cultura, de língua etc. Se o outro é um ser humano, há uma igualdade na humanidade comum a ambos. Você já pôde perceber pelos seus livros de História que nem sempre os seres humanos se entenderam como iguais, possuidores dos mesmos direitos e deveres. Na Ida-

da autora, à destruição da personalidade individual dos prisioneiros. Eis o texto de Hannah Arendt: “É possível que se descubram leis da psicologia de massa que expliquem por que milhões de seres humanos se deixaram levar, sem resistência, às câmaras de gás, embora essas leis nada venham a explicar senão a destruição da individualidade. Mais importante é o fato de que os que eram condenados individualmente quase nunca tentavam levar consigo um dos seus carrascos, de que raramente havia uma revolta séria e de que, mesmo no momento da libertação [pelos aliados que derrotaram a Alemanha na Segunda Guerra Mundial, em 1945], houve poucos massacres espontâneos de homens da SS [o comando de elite nazista, que dirigia os campos de extermínio]. Porque destruir a individualidade é destruir a espontaneidade, a capacidade do homem de iniciar algo novo com os seus próprios recursos, algo que não possa ser explicado à base da reação ao ambiente e aos fatos. Morta a individualidade, nada resta senão horríveis marionetes com rostos de homem, todas com o mesmo comportamento do cão de Pavlov, todas reagindo com perfeita previsibilidade mesmo quando marcham para a morte.” (Arendt, As origens do totalitarismo. Tradução: Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 506)

de Média, por exemplo, as sociedades eram fortemente estratificadas. Um nobre não podia ser tratado da mesma maneira que um camponês ou um trabalhador da cidade. Os direitos de cada um eram bem diferentes. A ideia de que todos os seres humanos são pessoas dotadas dos mesmos direitos demorou para surgir na História, e isso só se deu com muitos conflitos.

livro do professor

página 202

com fenômenos inéditos para a tradição moral e política do Ocidente. Há diversos estudos sobre H. Arendt no Brasil. Relacionamos a seguir duas obras, uma de natureza introdutória, a segunda, mais aprofundada sobre o seu pensamento: • Adriano Correia, Hannah Arendt. Coleção Passo-a-Passo. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. • André Duarte, O pensamento à sombra da ruptura. Política e filosofia em Hannah Arendt. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

eu e o outro

O enigma do Eu e do Outro

O “Eu penso”: Descartes página 205 Observe que o início dessa passagem é citado na Unidade Dúvida e certeza, no módulo “Duvidando para atingir a certeza”, em que é discutido o cogito cartesiano. Naquele contexto, nosso comentário

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notando que essa verdade – eu penso, logo eu existo – era tĂŁo firme e assegurada que nem as mais extravagantes suposiçþes dos cĂŠticos poderiam abalĂĄ-la, julguei que podia aceitĂĄ-la sem receios como sendo o primeiro princĂ­pio da filosofia por mim buscado.â€? (Descartes,

Discurso do mÊtodo. Tradução nossa. Edição de referência: Pairs: Vrin [Adam & Tannery] 1982, vol. VI, p. 32)

Ilustração do Tratado do homem

(1664), de Descartes. AlĂŠm do eu como

pensamento, Descartes tambĂŠm refletiu

sobre o eu como alma unida a um corpo.

AlĂŠm disso, para dizer que “Deusâ€? ou “corpoâ€?, ou ainda “naturezaâ€?, “mundoâ€?, ou qualquer outro ser seja a razĂŁo de minha existĂŞncia, eu precisaria provar que esse outro ser existe. E para provar isso, primeiramente sĂł posso recorrer aos meus prĂłprios pensamentos. Com isso, Descartes estabelece, antes de tudo, um caminho para refletir sobre qualquer coisa. Esse caminho ĂŠ dado por esse “euâ€?. E o começo desse caminho tem de ser a certeza de que o “euâ€? existe, quer dizer, que “eu existoâ€?. Conforme Descartes, ĂŠ apenas provando minha existĂŞncia, antes de tudo, que posso, em um segundo momento, provar a existĂŞncia de outras coisas e outros seres. Vejamos agora como ele chega a essa primeira certeza, essa primeira verdade. No inĂ­cio da Quarta Parte do Discurso do mĂŠtodo, lemos: “Decidi fazer de conta que todas as coisas que tinham atĂŠ esse momento entrado em meu espĂ­rito nĂŁo eram mais verdadeiras que as ilusĂľes de meus sonhos. Mas, imediatamente em seguida, percebi que, enquanto queria pensar que tudo era falso, era necessĂĄrio que eu, que assim pensava, fosse alguma coisa. E,

A exclusĂŁo provisĂłria do “outroâ€? por parte do “euâ€? Eis aqui o contexto do famoso “penso, logo existoâ€?. Em latim, diz-se: cogito ergo sum. Com o “cogitoâ€?, com o “eu pensoâ€?, Descartes demonstra a impossibilidade, para alguĂŠm que duvida de todas as coisas, de colocar em dĂşvida a sua prĂłpria existĂŞncia. Usando o pronome pessoal da primeira pessoa singular, “euâ€?, Descartes afirma aqui trĂŞs coisas importantes: 1. sua decisĂŁo em duvidar de toda realidade, que ele considera nĂŁo sendo “mais verdadeiraâ€? que o sonho; 2. ao fazĂŞ-lo, porĂŠm, Descartes se dĂĄ conta de que a convicção de que “tudo era falsoâ€? supĂľe pelo menos uma verdade: a de que eu, enquanto penso que tudo ĂŠ falso, existo ao pensĂĄ-lo; 3. assim, minha existĂŞncia enquanto pensamento equivale ao “primeiro princĂ­pio da Filosofiaâ€?, expresso pelo enunciado “eu penso, logo existoâ€?. Pois ĂŠ verdadeiro que existe algo que pensa (= eu), mesmo se for apenas para pensar que tudo ĂŠ falso.

Na consideração de Descartes, o “euâ€? significa, portanto, a coisa que ĂŠ primeiramente conhecida, quando se tenta conhecer algo “com firmeza e certezaâ€?. HĂĄ um ponto interessante nesse argumento. A crer em Descartes, a primeira verdade sĂł pode ser obtida na ocasiĂŁo em que se duvida de todas as coisas. A Ăşnica exceção reside no prĂłprio eu, que nĂŁo pode colocar a si mesmo em dĂşvida.

eu e o outro

Ilustração da obra de Descartes. Paris: Angot, 1664

pĂľe em relevo a resolução de Descartes no sentido de “fazer de contaâ€? que as coisas que ele presumia conhecer nĂŁo sĂŁo mais verdadeiras que os sonhos. VocĂŞ pode tirar proveito de uma comparação entre os desenvolvimentos propostos nestas duas Unidades. Caso vĂĄ nessa direção, utilize, alĂŠm do Discurso do mĂŠtodo, outro texto tambĂŠm discutido naquela Unidade, os PrincĂ­pios da filosofia (1644). A posição filosĂłfica de Descartes ĂŠ, essencialmente, a mesma nas duas obras: a Ăşnica proposição capaz de superar a dĂşvida universal ĂŠ o “penso, logo existoâ€?.

Pascal, Ĺ’uvres complètes [ed. Lafuma] Paris: Seuil, L’IntĂŠgral, 1963, § 564). Perceba que, por mais que divirjam totalmente ao apreciar a natureza do eu (um tomando-a como verdade primeira, e o outro como injustiça tirânica), Descartes e Pascal partilham de um mesmo pressuposto no modo de pensar a relação entre o eu e o outro: a ideia de que eles existem em separado, um ao lado do outro, como margens opostas de um abismo. Nesse sentido, ambos concebem o eu como sendo efetivamente capaz de se liberar, seja pela dĂşvida ou pelo amor-prĂłprio, dos laços que o atam a outrem. Mas serĂĄ mesmo possĂ­vel ao “euâ€? existir sem os outros?

pĂĄgina 206

pĂĄgina 206, Situação de aprendizagem Lembre aos alunos que Pascal considera uma injustiça o fato de que o eu se proponha como centro de todas as coisas ou, nos termos de Descartes, como “primeiro princĂ­pioâ€?. Pascal entende ser caracterĂ­stico de cada eu querer submeter tudo e todos a si mesmo. Nesse sentido, o conhecimento de si, que Descartes assume como verdade fundamental, ĂŠ apreciado por Pascal como forma de tirania e “amor-prĂłprioâ€? que impediria o encontro e o vĂ­nculo entre os homens. É como se ele dissesse: se se parte do cogito, jamais se poderia chegar ao outro, pois o eu ama a si mesmo acima de tudo. Por isso, de maneira drĂĄstica, Pascal assevera que “a verdadeira e Ăşnica virtude reside em odiar a si mesmoâ€? (Blaise Pascal. Pensamentos. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia:

Entre os alunos, isso pode soar bastante abstrato e talvez arbitrĂĄrio. Contudo, o cogito cartesiano jĂĄ hĂĄ muito tempo se consolidou na cultura ocidental como um ponto de transformação decisivo na histĂłria da filosofia. Em termos esquemĂĄticos, pode-se afirmar que, antes de Descartes, o conhecimento era concebido como dispondo de um princĂ­pio externo ao eu: a natureza, o cosmos ou Deus. Com Descartes, por sua vez, esta relação passa a ser presidida pelo sujeito, que antecede toda e qualquer instância objetiva e dela prescinde para, em um primeiro momento da investigação, firmar o princĂ­pio do saber e, em seguida, debruçar-se sobre os objetos e a natureza em geral. Isso significa que o “euâ€? – ou, para usar um conceito normalmente atrelado a este: a “subjetividadeâ€? – tornou-se a instância primeira a partir da qual justificamos nosso saber e nossas açþes no mundo. E com isso ela se apresenta como

A crĂ­tica de Pascal ao eu cartesiano

Desenvolvimento individual por escrito

Atente para o fato de que Pascal critica o

desejo do “euâ€? de ser o centro de tudo. Ao fazĂŞ-lo, Pascal volta-se contra o “penso, logo existoâ€? cartesiano. Considere, entretanto, as razĂľes de Descartes: se o “euâ€?

“O eu ĂŠ detestĂĄvel. Ele possui duas caracterĂ­sticas: ĂŠ em si injusto, por se colocar no centro de tudo; ĂŠ incĂ´modo aos outros, por querer subjugĂĄ-los, pois cada eu ĂŠ o inimigo e desejaria ser o tirano de

livro do professor

eu e o outro

todos os outrosâ€? (Blaise Pascal. Pensamentos. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Pascal, Oeuvres complètes [ed. Lafuma] Paris: Seuil, L’IntĂŠgral, 1963, § 597)

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påginas propondo uma comparação entre Pascal e Descartes em relação a esse tema.

Leia a seguir uma passagem de Blaise

Pascal (1623-1662) a respeito do “euâ€? e sua relação com os outros:

nĂŁo corresponde ao primeiro princĂ­pio do saber, o que mais – isto ĂŠ, qual “alteridadeâ€? – poderia substituĂ­-lo neste papel? • Examine alternativas, tome uma posição pessoal sobre o assunto. Leve tambĂŠm em conta a seguinte questĂŁo: se o primeiro

• Com base nessa passagem e naquilo

princĂ­pio do saber reside em um “outroâ€?, o que poderia ser dele, caso nĂŁo fosse reconhecido pelo “euâ€?? E, se o “outroâ€? depende

que examinamos acerca do “euâ€? de Descartes, redija um texto de no mĂĄximo duas

do “eu� para ser reconhecido, qual dos dois possui, de fato, primazia?

Nessa experiĂŞncia de pensamento, o eu ĂŠ para si mesmo o mais indubitĂĄvel e certo. Mais ainda, a conquista dessa primeira verdade, que ĂŠ a da existĂŞncia do prĂłprio eu, exige como uma de suas condiçþes a dĂşvida dirigida contra tudo que nĂŁo ĂŠ o “euâ€?, ou seja, a exclusĂŁo (ao menos provisĂłria) de todo outro possĂ­vel. NĂŁo que Descartes vĂĄ duvidar sempre que esse outro (ou todo outro ser) exista. O importante ĂŠ que sĂł posso ter certeza primeiramente da minha prĂłpria existĂŞncia. Posso duvidar, de inĂ­cio, que tudo mais nĂŁo exista – Deus, mundo, todos os outros seres humanos. Mas nĂŁo posso duvidar de que eu exista, pois como poderia duvidar disso, se para duvidar ĂŠ necessĂĄrio que eu exista? Como duvidar significa pensar, entĂŁo sĂł resta afirmar: “penso, logo existoâ€?. Sob essa perspectiva, a descoberta da primeira verdade ĂŠ uma experiĂŞncia solitĂĄria. Esse “euâ€? que prova sua existĂŞncia ĂŠ absolutamente solitĂĄrio. Tudo que se pos-

tulava existir antes – Deus, mundo, todos os outros seres humanos – pôde ser afastado do pensamento como mera ilusão, como sonhos, pois posso perfeitamente duvidar da existência deles. Isso significa dizer que eu não preciso de nenhum outro, semelhante a mim (um outro ser humano) ou diferente de mim (Deus), para provar minha existência. AlÊm disso, eu não preciso deles para saber o que eu sou. Pois se tenho certeza de minha existência na medida em que penso, então, antes de tudo sou uma coisa pensante, um ser cuja essência Ê o próprio pensamento. Assim, a primeira verdade da filosofia cartesiana e o primeiro conhecimento que o eu tem de si mesmo estão intimamente ligados à experiência de um eu absolutamente solitårio, que independe dos outros para comprovar sua existência. O eu estå sozinho – e nem podemos dizer que estå sozinho no mundo, pois a existência do mundo não foi ainda demonstrada.

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O Eu com o Outro pågina 210, Situação de aprendizagem Se você desejar aprofundar esse debate por meio da referência a outro autor, eis a seguir uma possibilidade. Segundo Ludwig Wittgenstein (1889-1951), o uso da linguagem privada não Ê possível. Pois usar uma linguagem significa, para ele, seguir regras para o emprego das palavras. Se uma pessoa inventou uma palavra para designar uma dor, ela inventou tambÊm uma regra para empregar essa palavra. Sempre que ela tem essa dor, ela usarå essa palavra inventada. Mas como alguÊm sozinho pode saber que estå seguindo corretamente a regra que permite aplicar a palavra inventada para a sensação de dor? Se ela se baseia apenas na memória da dor para a qual foi inventada aquela palavra, ela simplesmente acredita estar usando a regra para o emprego da palavra. Nos termos de Wittgenstein:

com o outro. Contra ou a favor da intenção mais própria de Descartes, o cogito seria, portanto, um diålogo. Podemos agora formular com mais clareza a diferença entre a posição de Merleau-Ponty e a de Descartes quanto ao

modo de pensar a relação entre o eu e o outro. Para Merleau-Ponty, o eu sempre se dirige a outrem, ele se constitui na relação com o outro. Diferentemente de Descartes, que pensa a partir de uma oposição radical entre o eu e o outro, Merleau-Ponty

A linguagem privada

pos de dores que jå sentiu? As sensaçþes

Um aspecto decisivo da crĂ­tica que

sĂŁo normalmente difĂ­ceis de comunicar porque elas nĂŁo sĂŁo tĂŁo identificĂĄveis

Merleau-Ponty dirige ao isolamento do cogito cartesiano estĂĄ no fato de que, para Merleau-Ponty, os indivĂ­duos coexistem

quanto os objetos exteriores, como uma caneta, um caderno etc. Suponha, entĂŁo, que para cada tipo de dor vocĂŞ inventa

unidos pela linguagem e por um mundo

uma palavra inteiramente nova. Nesse

comum. A linguagem, conforme Merleau-Ponty, ĂŠ essencialmente intersubjetiva, o que significa que, atravĂŠs dela, cada um

caso, vocĂŞ teria inventado uma linguagem privada, absolutamente pessoal, desde que nĂŁo fosse compartilhada com

de nós estå sempre em relação com os demais, sem que se possa, por isso, en-

absolutamente ninguĂŠm. Mas ĂŠ mesmo possĂ­vel usar uma lin-

contrar uma experiĂŞncia completamente individual e subjetiva, na qual o “euâ€? esteja destituĂ­do de toda relação com o ex-

guagem privada? Os registros dessa linguagem, caso descobertos, poderiam ser decifrados? Em caso afirmativo, o que isso

terior e, assim, com o “tu� e o “ele� que o atravessam.

implicaria? E em caso negativo? • Debata a hipótese do uso de uma

Vejamos, entĂŁo, este ponto mais de perto. VocĂŞ jĂĄ tentou alguma vez escrever em um cĂłdigo secreto, de modo que ninguĂŠm

linguagem privada com seus colegas. Investigue com eles, por exemplo, se os parâmetros aplicados à linguagem habi-

mais pudesse entender o que vocĂŞ escreveu? Por exemplo, um diĂĄrio cuja escrita

tual poderiam ser transpostos para essa linguagem privada hipotĂŠtica. Como, por

ninguĂŠm mais entenderia alĂŠm de vocĂŞ. Nesse caso, vocĂŞ teria inventado uma linguagem prĂłpria. Mas ĂŠ provĂĄvel que vocĂŞ

exemplo, saberĂ­amos apontar para o uso adequado ou nĂŁo dos termos nessa linguagem?

eu e o outro

tenha apenas inventado novas palavras ou utilizado de modo diverso as palavras da sua lĂ­ngua. AĂ­, vocĂŞ apenas traduziu a sua lĂ­ngua materna, o portuguĂŞs, para seu cĂłdigo pessoal. Por exemplo: em vez de “estou em casaâ€?, vocĂŞ escreve no diĂĄrio “toues

me sacaâ€?. PorĂŠm e se em vez desse cĂłdigo de tradução vocĂŞ realmente inventou pala-

tomava notas criptografadas em seu diĂĄrio, que

vras novas, por exemplo, para todos os ti-

concurso organizado com esse fim

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O escritor hĂşngaro GĂŠza GĂĄrdonyi (1863-1922) sĂł foi decifrado em 1965, por ocasiĂŁo de um

GĂĄrdonyi GĂŠza EmlĂŠkmĂşzeum

Debate em sala de aula

“Seguir uma regra, fazer um comunicado, dar uma ordem, jogar uma partida de xadrez sĂŁo costumes (usanças, instituiçþes). Entender uma frase quer dizer entender uma lĂ­ngua. Entender uma lĂ­ngua quer dizer dominar uma tĂŠcnica.â€? (Ludwig Wittgenstein, Investigaçþes filosĂłficas. Tradução nossa. Edição de referĂŞncia: Philosophische Untersuchungen [Philosophical investigations]. Oxford: Blackwell, 2001, 3ÂŞ ed., § 199)

Wittgenstein acrescenta uma explicação suplementar logo adiante, na mesma obra: “Por isso ‘seguir a regra’ ĂŠ uma prĂĄxis. E acreditar seguir a regra nĂŁo ĂŠ seguir a regra. E por isso nĂŁo se pode seguir a regra privatim [i.e., Ă parte, separadamente], porque, de outra maneira, acreditar seguir a regra seria o mesmo que seguir a regra.â€? (Ludwig Wittgenstein, Investigaçþes filosĂłficas. Tradução nossa, op. cit., § 202)

Você pode utilizar essas reflexþes de Wittgenstein para estimular o debate entre os alunos. Conforme o tema da Unidade, a questão em pauta Ê discutir se a linguagem pode ser instituída de maneira absolutamente individual, independentemente dos outros. Note que existe certo alinhamento entre a posição de Wittgenstein e de Merleau-Ponty: ambos levantam objeçþes à tese de que possa haver linguagem privada.

livro do professor

uma instância de crítica e de liberdade frente à sociedade e aos seus valores. Essas consideraçþes podem ser utilizadas, caso você considere conveniente, para explicar aos alunos que o cogito cartesiano Ê bem mais presente em nosso mundo cultural do que eles talvez imaginem. Para uma visão de conjunto da filosofia cartesiana, recomendamos a introdução de Franklin Leopoldo e Silva: Descartes: a metafísica da modernidade. São Paulo: Moderna, 2005. Outra abordagem introdutória bastante esclarecedora Ê A filosofia de Descartes, de John Cottingham (Lisboa: Ediçþes 70, 1989).

pĂĄgina 212 Na Unidade DĂşvida e certeza, mĂłdulo “Limites da dĂşvida ao garantir a certezaâ€?, ĂŠ apresentada e discutida a posição filosĂłfica adotada na dĂŠcada de 1980 por Oswaldo Porchat (1933- ) – posição esta que, sob aspectos importantes, converge com as

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eu e o outro

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento

Para Descartes[+] (1596-1650), o eu pode ter certeza sobre sua existĂŞncia e sobre o mundo independentemente dos demais. Esta existĂŞncia ĂŠ atestada pelo “eu pensoâ€?, de modo que Descartes conclui que a essĂŞncia do “euâ€? ĂŠ o pensamento. Para Merleau-Ponty[+] (1908-1961), ao contrĂĄrio, ele sĂł pode relacionar-se consigo mesmo, ter uma consciĂŞncia de si e um conhecimento de si porque estĂĄ desde o inĂ­cio em contato com os outros. Ele tem uma histĂłria, vive em um mundo, pensa segundo uma linguagem que nĂŁo poderia existir independentemente dos outros.

PorÊm, Ê possível perguntar: o que se passaria se não existisse essa história comum, se não existisse esse mundo comum, se não existir nem mesmo uma linguagem comum, como se o outro falasse uma língua nunca ouvida antes? Enfim, e se outro não for nada próximo de mim, qual seria a relação que eu teria com ele? Esse cenårio Ê um tanto improvåvel, mas assim mesmo ele serve como ponto de partida para Georg Wilhelm Friedrich Hegel[+] (1770-1831), um dos maiores filósofos da Era Moderna, examinar como dois indivíduos absolutamente certos de si mesmos e totalmente

Eu contra Outro: luta pelo reconhecimento pĂĄgina 213 As passagens comentadas sĂŁo de obras das quais possuĂ­mos tradução em portuguĂŞs: • G. W. Hegel, Fenomenologia do espĂ­rito. Tradução: Paulo Meneses. PetrĂłpolis e Bragança Paulista: Editora Vozes e USF, 2002. • G. W. Hegel, EnciclopĂŠdia das ciĂŞncias filosĂłficas, vol. III. Tradução: Paulo Meneses. SĂŁo Paulo: Loyola, 1995.

A certeza de si mesmo vem do desejo Procuremos entĂŁo analisar os principais momentos dessa luta pelo reconhecimento, a partir de trechos de dois livros de Hegel: Fenomenologia do espĂ­rito (1807) e EnciclopĂŠdia das ciĂŞncias filosĂłficas (1817). Como vocĂŞ irĂĄ logo perceber, Hegel utiliza um vocabulĂĄrio difĂ­cil, um dos mais difĂ­ceis da histĂłria da filosofia. Tome fĂ´lego, portanto. “A consciĂŞncia de si ĂŠ certa de si mesma, somente porque suprime o outro que se lhe apresenta como ser vivo independente: ela ĂŠ desejo. Certa da nulidade desse outro, [‌] ela aniquila o ser vivo independente e dĂĄ a si mesma, com isso, a certeza de si mesma como

verdadeira certeza, como uma certeza que veio a ser para ela de maneira obje-

tiva.â€? (Hegel, Fenomenologia do espĂ­rito. Tradução nossa. TĂ­tulo original: Phänomenologie des Geistes. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, p. 143)

Ao contrĂĄrio de Descartes, Hegel pensa que o indivĂ­duo consciente de si mesmo sĂł estĂĄ certo de si mesmo porque ele ĂŠ, antes de tudo, um ser que deseja, que nĂŁo chega Ă certeza de si mesmo porque ele pensa, mas porque deseja e busca satisfazer seu desejo. Isso significa que o indivĂ­duo ĂŠ compreendido de inĂ­cio como um ser vivo, que se depara com outros seres vivos, objetos de seu desejo. Esses seres vivos nĂŁo sĂŁo, ainda, outros indivĂ­duos e outras consciĂŞncias, mas entes (animais e vegetais) que ele consome para satisfazer seu desejo. Desse modo, ĂŠ somente ao aniquilar o outro para a satisfação do desejo que o indivĂ­duo consciente de si mesmo tem uma certeza objetiva a respeito de sua existĂŞncia, de sua liberdade e de sua independĂŞncia. Trata-se, portanto, nĂŁo de uma certeza subjetiva (como, por exemplo, no caso de uma mera crença a respeito de si mesmo). Porque o indivĂ­duo aniquila outros seres vivos, ele se mostra independente e poderoso. Vejamos o que diz Hegel sobre este momento da relação do eu com o que o cerca: “A relação do desejo com o objeto ĂŠ ainda completamente a relação do destruir egoĂ­sta. [‌] Como o objeto do desejo e o prĂłprio desejo, a satisfação do desejo ĂŠ tambĂŠm necessariamente algo pontual, transitĂłrio, que cede ao desejo que sempre desperta de novo.â€?

eu e o outro

estranhos entre si entram em relação um com o outro. Antes de examinarmos o desenvolvimento que Hegel confere a esse problema, note que o filĂłsofo o interpreta como sendo tambĂŠm um problema ĂŠtico e polĂ­tico. Isso porque a certeza sobre si mesmo nĂŁo se refere somente Ă existĂŞncia do eu. Ela se refere tambĂŠm Ă liberdade, Ă certeza de se ser totalmente independente. A questĂŁo examinada por Hegel, assim, ĂŠ a seguinte: como dois seres humanos que se julgam absolutamente independentes e livres se relacionariam entre si? VocĂŞ, com razĂŁo, se pergunta por que tudo isso, jĂĄ que ĂŠ tĂŁo improvĂĄvel uma situação assim. Como Merleau-Ponty, Hegel quer demonstrar que o indivĂ­duo sĂł pode ter uma relação consigo mesmo a partir do outro, mas, ao mesmo tempo, quer assinalar que a relação com o outro ĂŠ conflituosa desde o inĂ­cio, e que esse conflito vai estabelecer as primeiras relaçþes humanas, que sĂŁo relaçþes de dominação. O mais importante, para Hegel, ĂŠ que os indivĂ­duos lutam entre si porque eles querem o “reconhecimentoâ€? do outro a respeito de sua existĂŞncia livre.

(Hegel, EnciclopÊdia das ciências filosóficas. Tradução nossa. Título original: Enzyklopädie der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, § 428, adendo)

O desejo, conforme a anĂĄlise de Hegel, ĂŠ destrutivo, egoĂ­sta e, pior, insistente:

livro do professor

pĂĄgina 218

O tema do reconhecimento recĂ­proco pode servir para introduzir um conceito bastante discutido na filosofia contemporânea, a exemplo do texto de Merleau-Ponty abordado no mĂłdulo “O Eu com o Outroâ€? desta Unidade. Trata-se do conceito de intersubjetividade. A relação entre o eu e o outro pode ser vista como a relação entre dois indivĂ­duos que se for-

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(Hegel, EnciclopÊdia das ciências filosóficas, op. cit., § 433. Tradução nossa)

Assim, para Hegel, a vida comum entre os homens surge de uma luta por reconhecimento, cujo resultado inicial Ê a relação de dominação. Mas se trata somente de um começo violento do Estado e da vida política. Como o resultado alcançado não Ê um reconhecimento recíproco, o Estado e a sociedade vão evoluir

no sentido de que todos os indivĂ­duos sejam reconhecidos em sua liberdade. Dessa maneira, sempre conforme Hegel, a histĂłria humana serĂĄ marcada por uma contĂ­nua luta por reconhecimento. Nesse processo longo e conflituoso, os indivĂ­duos vĂŁo aprendendo aos poucos a se respeitarem e a se reconhecerem; eles aprendem, sobretudo, a reciprocidade do reconhecimento: “SĂł assim a verdadeira liberdade se realiza. Uma vez que a liberdade consiste na identidade de mim com o outro, entĂŁo eu sĂł sou verdadeiramente livre quando o outro tambĂŠm ĂŠ livre, e ĂŠ reconhecido por mim como tal.â€? (He-

Abu Simbel, Templo de RamsÊs II (sÊc. XIII a.C.) ŠFoto: bbc-bve

entende que o encontro Ê anterior à seque, ao contrårio, a relação entre o eu e o paração entre eles e que essa separação, outro frequentemente deriva para formas pressupondo sempre o encontro, jamais assimÊtricas, desequilibradas, de relação inpoderia extremar-se na forma do isolaterindividual. No âmbito do conhecimento, mento total. hå lugar para o livre exercício da dúvida; Por essa razão, não hå, mas tambÊm hå casos segundo Merleau-Ponty, de submissão a formas conhecimento de si mesde autoritarismo. E isso mo fora da coexistência ocorre tanto no mundo Para Merleau-Ponty, com o outro. Experimendo saber, quanto na vida o encontro Ê anterior tar a própria existência em sociedade. à separação entre individual jå Ê uma forma Em todo caso, a conde posicionar-se em face cepção de Merleau-PonEu e Outro; por isso, de outrem, de coexistir ty ao menos demonstra ela nunca leva a um socialmente. O eu e o ouque a alternativa entre isolamento total. tro são os polos de uma o conhecimento de si e relação que Ê anterior a a vida em comum não Ê cada um deles em separanecessåria. Adotando o do. O outro não Ê objeto ponto de vista desse fique gravita em torno de um eu, situado lósofo, pode-se dizer, contrariando Descarno centro de tudo. Hå, pelo contrårio, um tes, que não Ê preciso isolar-se dos outros equilíbrio båsico entre os polos, que vem para encontrar-se consigo. Para conhecerda impossibilidade de o eu e o outro sub-se a si mesmo, cada homem deve ir ao ensistirem cada qual em separado, jå que são contro dos outros homens, pois uma indiessencialmente recíprocos. vidualidade não consiste senão num modo Merleau-Ponty sabe que nem sempre se de coexistência. Como diria Merleau-Ponverifica, na pråtica, esse equilíbrio. Ele sabe ty, o eu Ê com o outro.

mam como sujeitos, que criam uma identidade prĂłpria, com uma personalidade prĂłpria, a partir da relação com o outro. HĂĄ pelo menos dois filĂłsofos contemporâneos que partem dos textos de Hegel para pensar a relação intersubjetiva. Um deles ĂŠ JĂźrgen Habermas (1929 - ). Um texto em que ele interpreta a luta por reconhecimento como relação intersubjetiva se chama “Trabalho e interaçãoâ€?, publicado no livro TĂŠcnica e ciĂŞncia como “ideologiaâ€? (Tradução de Artur MorĂŁo. Lisboa: Ediçþes 70, 1997). O outro filĂłsofo ĂŠ Axel Honneth (1949 - ), em seus livros Luta por reconhecimento (Tradução de Luiz Repa. SĂŁo Paulo: Editora 34, 2002) e Sofrimento de indeterminação (Tradução de RĂşrion Melo. SĂŁo Paulo: Esfera PĂşblica, 2007). A luta por reconhecimento ĂŠ um dos conceitos centrais de Hegel, conforme a interpretação original de Alexandre Kojève (1902-1968) em sua obra Introdução Ă leitura de Hegel (Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002). Para Kojève, Hegel teria descoberto a essĂŞncia do desejo humano: o desejo ĂŠ o desejo de ser objeto do desejo do outro. É um conceito de desejo que influenciarĂĄ bastante a psicanĂĄlise de Jacques Lacan (1901-1981). Caso vocĂŞ tenha interesse em realizar a leitura da Fenomenologia do espĂ­rito, de Hegel, um texto de apoio muito Ăştil ĂŠ o livro de Jean Hyppolite, GĂŞnese e estrutura da Fenomenologia do EspĂ­rito de Hegel. Tradução de SĂ­lvio Rosa Filho. SĂŁo Paulo: Discurso Editorial, 1999. AlĂŠm disso, listamos abaixo algumas obras de carĂĄter introdutĂłrio ao pensamento hegeliano: • L. Konder, Hegel – a razĂŁo quase enlouquecida. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991.

gel, EnciclopÊdia das ciências filosóficas, op. cit., § 431. Tradução nossa)

Na arte egípcia, uma convenção bastante utilizada era retratar o

retorno bem sucedido de expediçþes

militares com um cortejo de populaçþes escravizadas.

A verdadeira liberdade só Ê alcançada com o reconhecimento recíproco: só sou livre se sou reconhecido por um outro como livre. E o outro só Ê livre quando ele Ê reconhecido por mim como livre. Cada um se relaciona consigo mesmo a partir do outro. Mas, como foi dito, essa reciprocidade não Ê alcançada logo de início, ela Ê obtida por uma história marcada por lutas em busca do reconhecimento.

A defesa da tolerância

eu e o outro

ideias de Merleau-Ponty assinaladas aqui. Porchat tambĂŠm levanta objeçþes a filosofias como o cartesianismo que, embora apenas momentaneamente, acreditam ser possĂ­vel suspender todas as certezas mundanas na solidĂŁo da reflexĂŁo. VocĂŞ pode servir-se da abordagem proposta ali para enriquecer o debate em torno das crĂ­ticas de Merleau-Ponty ao isolamento filosĂłfico do “euâ€? cartesiano.

Georg W. F. Hegel[+] (1770-1831) considerava que um indivíduo só poderia ter certeza a respeito de si mesmo, de suas qualidades, se um outro o reconhecesse como possuidor delas. Cada um luta, assim, pela conquista do reconhecimento do outro. Mas hå conflitos entre indivíduos, grupos e mesmo entre naçþes inteiras, em que o outro representa uma diferença de opinião e de crença que Ê percebida como intoleråvel pelas partes envolvidas. Apa-

rentemente, nesses casos as partes não pretendem obter reconhecimento umas das outras, mas antes reprimir, expulsar ou mesmo aniquilar a parte supostamente contråria. Ou ainda, fazer com que a parte contråria abandone suas convicçþes, o que significa abandonar suas diferenças. Conflitos dessa índole foram e são muito comuns nas sociedades de todo o mundo. Eles motivaram alguns pensadores a realizar defesas da tolerância entre os seres

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pĂĄgina 220

Voltaire

VocĂŞ pode comentar o estatuto do direito natural, para Voltaire, de acordo com o que ĂŠ exposto na Unidade PrincĂ­pio e temporalidade, mĂłdulo “Elogio de Kant a PlatĂŁoâ€?, onde se examina a dimensĂŁo normativa que a ideia de virtude assume para Kant. HĂĄ uma semelhança entre o papel que Kant atribui Ă ideia de virtude e o modo como Voltaire utiliza o conceito de direito natural. O direito natural possui, aos olhos do filĂłsofo francĂŞs, o estatuto de fundamento normativo (isto ĂŠ, de critĂŠrio) para julgar se as leis positivas, aquelas que sĂŁo vĂĄlidas em um ou outro paĂ­s, sĂŁo ou nĂŁo legĂ­timas do ponto de vista da razĂŁo. HĂĄ casos em que a lei positiva contradiz a razĂŁo, em que o direito positivo se opĂľe ao direito natural. É o que ocorre, por exemplo, quando nos de-

Biblioteca Russian State, Moscou.

François Marie Arou-

et, conhecido como

Voltaire (1694-1778), foi possivelmente o filĂłsofo mais lido na Europa

no

sĂŠculo

XVIII, tendo sido, ao lado de Denis Dide-

rot (1713-1784), Jean Le Rond D’Alembert

(1717-1783) e Jean-Jacques

Rousseau

(1712-1778), um dos

maiores expoentes do Iluminismo.

Este movimento, tambĂŠm chamado de Fi-

losofia das Luzes ou Esclarecimento, carac-

terizou-se por combater formas de superstição, despotismo e de opressão vigentes

no Antigo Regime. No âmbito da filosofia, este clamor pela liberdade se expressou

na grande diversidade de formas utilizadas

pelos iluministas para difundir suas ideias. Diferentemente da maioria dos filĂłsofos do sĂŠculo precedente, que escreveram suas obras na forma de tratados sistemĂĄticos, os

iluministas recorreram a expedientes literĂĄrios tais como a fĂĄbula, o conto, o roman-

ce e o drama, ampliando as possibilidades formais da reflexĂŁo filosĂłfica. Voltaire, por

exemplo, redigiu tragÊdias com forte apelo moral, alÊm de narrativas que se tornaram mundialmente conhecidas, como Zadig ou o destino (1748) e Cândido ou o otimismo

(1759). TambÊm empreendeu a redação e

publicação de um Dicionårio filosófico (1764),

Para Voltaire, o “direito humanoâ€?, o direito feito pelos seres humanos, deve se fundar no direito natural. Isso significa que eles possuem o mesmo princĂ­pio, aquele segundo o qual cada um nĂŁo deve fazer ao outro o que nĂŁo deseja para si mesmo. Observe que se trata de uma obrigação, de um dever, um imperativo: “nĂŁo faças‌â€?. O direito natural, assim como o direito criado pelos homens, envolve nĂŁo apenas a liberdade de fazer isso ou aquilo, mas tambĂŠm a lei que restringe essa liberdade, de modo que cada um limita a sua liberdade para nĂŁo prejudicar o outro. Cada um sabe naturalmente o que pode prejudicar o outro, pois cada um sabe o que poderia prejudicar a si mesmo. Em seguida, Voltaire indica que todos os princĂ­pios da intolerância sĂŁo incompatĂ­veis com esse grande princĂ­pio, que ĂŠ o mesmo no direito natural como no direito criado pelos homens. Voltaire nĂŁo estĂĄ dizendo que nĂŁo hĂĄ leis opostas Ă quele princĂ­pio, pois as leis podem ser intolerantes. Trata-se de apontar que, se elas sĂŁo intolerantes, vĂŁo contra o princĂ­pio do direito natural e, com isso, do direito humano, que se funda naquele e tem em seu cerne o mesmo princĂ­pio. Se uma lei exige que alguĂŠm morra – ou se torne alvo de abominação – por nĂŁo comungar da mesma religiĂŁo da maioria, ĂŠ evidente que tal lei contraria aquele princĂ­pio, uma vez que o eventual defensor de semelhante lei certamente nĂŁo concordaria em ser assassinado ou vilipendiado em razĂŁo de suas prĂłprias crenças.

eu e o outro

com o qual buscou popularizar a filosofia.

Eis uma boa edição de seus contos filosóficos: Voltaire, Micromegas e outros contos. Tradução: G. Marcolin. São Paulo: Hedra, 2007.

simples: os filhos devem respeitar os pais, porque estes os educaram e criaram; os seres humanos podem ter o direito de propriedade sobre os resultados de seu trabalho; as promessas devem ser cumpridas.

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A intolerância poderia ser direito de alguns? Voltaire acrescenta um segundo argumento, que consiste em aceitar a hipótese de que a intolerância Ê um direito humano, que os seres humanos poderiam adotå-la legitimamente, para então verificar quais seriam suas consequências. Observe que se trata de uma mera hipótese, descolada do argumento anterior, jå que este funda

para com os intolerantes em nome da prĂłpria tolerância? Voltaire considera que sim, que hĂĄ casos em que a intolerância ĂŠ razoĂĄvel, na medida em que combate os intolerantes: “Para que um governo nĂŁo tenha o direito de punir os erros dos homens, ĂŠ necessĂĄrio que esses erros nĂŁo sejam crimes; eles sĂł sĂŁo crimes quando perturbam a sociedade; perturbam a sociedade a partir do momento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens comecem por nĂŁo ser fanĂĄticos para me-

recer a tolerância.â€? (Voltaire, Tratado sobre a tolerância, op. cit., p. 105)

O governo nĂŁo deve punir os “errosâ€?, isto ĂŠ, certas doutrinas e crenças, a nĂŁo ser que elas fomentem o fanatismo, e, com isso, os crimes. Como o fanatismo leva ao crime, ĂŠ preciso ser intolerante com ele. Os limites da tolerância coincidem assim com aquilo que protege os tolerantes da ação dos intolerantes. Dito de outro modo, a aceitação das diferenças pressupĂľe recusar aqueles que nĂŁo aceitam as diferenças, os quais Voltaire designa como “fanĂĄticosâ€?.

A ORIGEM DO PODER NAZISTA

eleitorado. Mas esse quadro iria

ram ao poder na Alemanha sem

se alterar rapidamente.

que, para isso, tivessem promovido

Em novembro de 1932, o partido

qualquer ruptura da ordem cons-

nazista obteve apoio de 37% do

titucional? De modo paradoxal, o

eleitorado. Isso fez com que Hitler

sistema democrĂĄtico alemĂŁo, exis-

se tornasse chanceler da Alemanha

tente apĂłs a Primeira Guerra Mun-

em janeiro de 1933. DaĂ­ em diante,

dial (1914-1918) e conhecido com

Fred Stein Archive/Archive Photos/Getty Images

o nome de “RepĂşblica de Weimarâ€?,

os nazistas, sob a liderança de Hi-

Thomas Mann

tler, suprimiram todo tipo de mani-

possibilitou que um movimento

festação que não professasse sua

polĂ­tico contrĂĄrio Ă democracia che-

ideologia. Naquele mesmo ano de

gasse pacificamente ao poder.

1933, foram reprimidas reuniĂľes do

O movimento nazista, liderado por

Partido Comunista da Alemanha e

Adolf Hitler (1889-1945), surgiu

do Partido Social-Democrata da Ale-

como um partido político – o Par-

manha, e em apenas duas semanas

tido Nacional-Socialista, fundado

foram presos 10 mil comunistas ale-

em 1920. Hitler e seus correligio-

mĂŁes, assim como lĂ­deres dos social-

nĂĄrios tentaram tomar o poder

atravÊs da força em novembro de

-democratas.

Bertold Brecht

Diversos intelectuais e cientistas

1923, mas a iniciativa fracassou

de renome, como Thomas Mann

e Hitler foi julgado e condenado

(1875-1955), Bertold Brecht (1898-

Ă prisĂŁo, onde permaneceu por

1956) e Albert Einstein (1879-1955),

pouco mais de um ano. Em segui-

pressentindo que a ditadura iria

da, Hitler voltou Ă s atividades polĂ­-

recrudescer, deixaram o paĂ­s no

ticas e buscou ampliar a populari-

ano de 1933. Os nazistas sĂł foram

dade do partido nazista, que, toda-

desalojados do poder em maio

via, obteve resultados medĂ­ocres

de 1945, com a vitĂłria dos aliados

nas eleiçþes de 1928 na Alemanha, com menos de 3% de apoio do

eu e o outro

Corbis/Latinstock

VocĂŞ sabia que os nazistas chega-

sobre a Alemanha, no tĂŠrmino da

Albert Einstein

Segunda Guerra Mundial.

pĂĄgina 223 Para os alunos, pode soar paradoxal que a tolerância implique uma dose de intolerância. Na verdade, Voltaire menciona poucos casos em que a intolerância ĂŠ conforme ao direito humano, como aquele de impedir uma seita que matava bebĂŞs recĂŠm-batizados porque eles teriam glĂłria eterna. E cabe notar que a tolerância irrestrita tambĂŠm teria consequĂŞncias paradoxais, jĂĄ que iria aceitar o seu oposto. De toda maneira, trata-se de um assunto delicado. Na ĂŠpoca de Voltaire, os exemplos de fanatismo religioso eram bastante recorrentes. Hoje em dia, quando alĂŠm de conflitos religiosos ocorrem tambĂŠm conflitos polĂ­ticos, sociais e culturais, a expressĂŁo “fanĂĄticoâ€? pode tambĂŠm ser utilizada por intolerantes que pretensamente defendem a tolerância, uma vez que, algumas vezes, os defensores dela assumem posiçþes passĂ­veis de serem consideradas intolerantes, baseadas em uma visĂŁo restrita da sociedade. Isso tudo significa que o conceito mesmo de tolerância pode ser objeto de conflito. Mesmo o texto analisado de Voltaire ĂŠ passĂ­vel de crĂ­tica, por refletir concepçþes particulares de direito.

livro do professor

A defesa da tolerância

paramos com leis que admitem ou mesmo estimulam a intolerância. No entender de Voltaire, tais leis sĂŁo arbitrĂĄrias, uma vez que contradizem o princĂ­pio de toda legalidade: o direito natural. É isso aproximadamente o que pensa Kant sobre a ideia da virtude: embora muitas vezes nossas açþes a contradigam, sabemos que ela ĂŠ a medida – o critĂŠrio normativo – de nossa prĂĄtica, de modo a nos possibilitar ao menos reconhecer que agimos contra a razĂŁo quando nĂŁo seguimos a virtude. Biblioteca do Congresso, Washington DC

• D. Rosenfield. Hegel. Coleção Passo-a-Passo. Rio de Janeiro: Zahar, 2002. • Paulo R. AraĂşjo, “Hegel e a formação da consciĂŞnciaâ€?, in: V. Figueiredo (org.), FilĂłsofos na sala de aula – vol. 3. SĂŁo Paulo: Berlendis & Vertecchia Editores, 2009, pp. 127-157. • P. Menezes, Hegel & a Fenomenologia do espĂ­rito. Coleção Passo-a-Passo. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. A relação de dominação ĂŠ para Hegel tambĂŠm uma relação de trabalho, pois o escravo trabalha para o senhor e assim se forma, pois recalca em si mesmo o desejo e se distancia do ciclo imediato da vida. Sobre esse tema, vocĂŞ pode conferir o texto esclarecedor de JosĂŠ Henrique Santos, Trabalho e riqueza na Fenomenologia do EspĂ­rito de Hegel. SĂŁo Paulo: Loyola, 1993.

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Alguns autores contemporâneos, como John Rawls e Jßrgen Habermas, consideram que, para evitar um conceito restritivo de tolerância, Ê necessårio que nas sociedades democråticas todos possam discutir os princípios que organizam a convivência social, garantindo liberdades iguais a todos. NinguÊm pode ser chamado de intolerante se for impedido de participar da discussão. A tolerância

8

unidade

liberdade e necessidade A tragĂŠdia de Édipo pĂĄgina 226 Usamos aqui o exemplo do mito de Édipo por ele ser tĂŁo contundente – as pessoas envolvidas sabem que algo terrĂ­vel vai acontecer e, mesmo fazendo de tudo para evitĂĄ-lo, nĂŁo sĂŁo capazes de mudar o que foi predestinado. Todavia, ĂŠ preciso observar que hĂĄ mais de um aspecto ligado a destino que ĂŠ mobilizado pela tragĂŠdia de SĂłfocles. Vejamos como ĂŠ possĂ­vel pensĂĄ-lo no contexto da Antiguidade clĂĄssica. Uma coisa sĂŁo as compreensĂľes racionais, filosĂłficas do destino (ver, entre tantos outros, o exemplo do estoicismo, noutro mĂłdulo desta Unidade). Outra coisa ĂŠ o mito. Ainda um terceiro aspecto importante ĂŠ perceber o texto de SĂłfocles na sua particularidade de criação literĂĄria. Cada um desses aspectos abriga, na verdade, diversas facetas. Quanto ao mito: nas mitologias grega e romana, a noção de destino estĂĄ ligada a diversas entidades. Ă€s vezes, ela

seu pai, e que a esposa dele, Jocasta, com quem Édipo depois se casou e teve filhos, ĂŠ sua mĂŁe. A maldição foi cumprida. Diante da desgraça, Édipo fura os prĂłprios olhos e deixa a cidade, exilado. Vale a pena focar um trecho da peça, logo apĂłs a funesta revelação. Nele, o coro (grupo de atores que representa os anciĂŁos da cidade de Tebas) e Édipo lamentam os acontecimentos: “Coro: Que coisas terrĂ­veis vocĂŞ fez, que ousadia destruir seus olhos assim? Qual dos deuses o moveu? Édipo: Amigos, ĂŠ obra de Apolo, ĂŠ Apolo o executor destes meus males, destes meus sofrimentos. Mas sĂł eu e ninguĂŠm mais, com minhas mĂŁos, ousei fazĂŞ-lo, infeliz que sou. Por que eu deveria ver, se nada agradĂĄvel havia aos olhos para ver?â€? (SĂłfocles. Édipo

liberdade e necessidade

rei, versos 1327-1334. Tradução nossa. Edição de referência: Sophoclis fabulae. Oxford Classical Texts. Oxford University Press, 1987)

livro do professor

envolveria assim um direito a justificar na esfera pública as próprias posiçþes. Para uma visão de conjunto das diversas concepçþes de tolerância, e para a discussão desses dois últimos autores, recomendamos a leitura do livro Justiça e democracia: ensaios sobre John Rawls e Jßrgen Habermas, de Denilson Luis Werle, especialmente a parte 3 (São Paulo: Esfera Pública, 2008).

Observe que o coro acredita que Édipo sĂł pode ter se cegado por ordem de algum deus. HĂĄ aqui uma importante relação entre as ordens divinas e uma espĂŠcie de necessidade: para o coro, Édipo nĂŁo teria furado seus olhos se nĂŁo tivesse sido obrigado, forçado por uma ordem divina. Sendo os deuses superiores aos homens, o que eles determinam deverĂĄ necessariamente acontecer. De fato, lembre-se que aquela maldição lançada sobre a famĂ­lia de Édipo havia sido determinada pelos deuses e que, por mais que Édipo e seus pais tenham tentado fugir dela, ela se cumpriu. Quando Édipo abandonou a cidade de Corinto pensando assim escapar ao seu destino, na verdade ele corria em direção a ele. JĂĄ estava entĂŁo determinado de antemĂŁo que Édipo mataria o pai e teria filhos com a mĂŁe? Uma coisa ĂŠ certa: todos os seus esforços para evitar que isso acontecesse foram inĂşteis. Édipo estava, di-

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gamos assim, destinado Ă desgraça e era impotente para evitĂĄ-la, embora nĂŁo soubesse disso. Essa ideia de destino ĂŠ muito importante na cultura dos gregos antigos, pois eles entendiam que os acontecimentos estavam, de algum modo, anteriormente determinados. AtĂŠ mesmo os deuses estavam sujeitos ao destino. Isso levava os gregos a interpretar os grandes fatos com base nessa ideia. Voltemos um instante ao trecho de SĂłfocles citado hĂĄ pouco. Observe bem a resposta de Édipo ao coro. Chama a atenção que Édipo reconheça que sua desgraça foi causada pela vontade de um deus e que, por isso, ele nĂŁo tinha nem teria poder para evitĂĄ-la. Mas Édipo tambĂŠm afirma que a decisĂŁo de se cegar foi, essa sim, de sua inteira responsabilidade. EntĂŁo, podemos concluir que dependeu exclusivamente dele a decisĂŁo de furar seus olhos, embora ele nĂŁo fosse livre para desfazer aquela maldição a que foi destinado. De inĂ­cio, ele acreditava ser livre tambĂŠm para isso. Mas vem depois a descobrir que nunca possuĂ­ra outra opção alĂŠm dessa. AĂ­ estĂĄ o que torna essa tragĂŠdia tĂŁo poderosa: durante a maior parte de sua trajetĂłria, Édipo se julgava capaz de fazer o que quisesse – para entĂŁo descobrir que suas tentativas de escapar da maldição estavam fadadas ao fracasso, independentemente de sua vontade. Édipo se sentia livre quando fugia de seus falsos pais e achava que estava evitando a maldição, assim como se sentiu livre ao se cegar. Mas descobriu que sĂł foi realmente livre nessa Ăşltima escolha... Talvez essa diferença esteja presente tambĂŠm em situaçþes corriqueiras, experimentadas por nĂłs. Quando digo a mim mesmo: “sou livre para fazer o que quiser, atĂŠ mesmo abandonar meus compromissos e sair viajando pelo mundoâ€?, expresso um sentimento de liberdade, uma espĂŠcie de desejo de ser livre. Mas

ĂŠ representada pela vontade de Zeus ou em geral dos deuses. Mas mesmo Zeus, chefe do deuses olĂ­mpicos, ĂŠ obrigado a obedecer a uma potĂŞncia superior, o destino ou moira (tambĂŠm usada ĂŠ a palavra grega anĂĄnke, que pode significar tanto o destino tal qual o que governa os rumos da vida quanto a ideia de necessidade, por exemplo causal ou lĂłgica.) Nas religiĂľes itĂĄlicas como a romana, isto ĂŠ associado ao Fato. Ligado a essa noção um tanto impessoal do destino estĂĄ o mito das Moiras, frequentemente trĂŞs velhas (apenas uma em Homero, porĂŠm) que fiam e cortam os fios correspondentes Ă vida e Ă morte de cada mortal – expressando com isso a noção de que governam tudo o que acontece aos seres humanos. Entre os romanos, destaca-se ainda a deusa Fortuna, que representa a boa sorte e a mĂĄ sorte dos homens e do Estado. Esta divindade foi aliĂĄs objeto de importante culto oficial na Roma antiga. (Uma ideia afim Ă roda da Fortuna romana pode ser sugerida pelo dito popular: “A vida ĂŠ cheia de altos e baixosâ€?.) Essas sĂŁo apenas algumas simbolizaçþes do destino na mitologia greco-romana; existem ainda outras, como NĂŞmesis, Tiche etc. Mas o mito vai alĂŠm das personificaçþes. Ele tambĂŠm se caracteriza por um determinado “funcionamentoâ€?, que per-

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GrĂŠcia antiga ĂŠ Jean-Pierre Vernant. Dele, hĂĄ diversas obras publicadas no Brasil, como: • J.-P. Vernant. O universo, os deuses, os homens. Tradução: Rosa Freire D’Aguiar. SĂŁo Paulo: Companhia das Letras, 2000. • _____. As origens do pensamento grego. Tradução: Isis B. da Fonseca. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010. • _____. Mito e pensamento entre os gregos. Tradução: H. Sarian. SĂŁo Paulo: Paz e Terra, 2008.

Estoicismo e a necessidade do universo pĂĄgina 227 VocĂŞ pode, nesta etapa do desenvolvimento de nosso problema, aproveitar a ocasiĂŁo para assinalar a existĂŞncia de elementos comuns entre diferentes religiĂľes. Comece observando que a convicção de que as coisas acontecem de forma sistemĂĄtica e necessĂĄria ĂŠ muito antiga na histĂłria da humanidade. É sobre isso que se discorre na continuação dessa Unidade, quando passamos a examinar como essa questĂŁo foi formulada pelo estoicismo grego. Os estoicos atribuĂ­am uma atuação “inteligenteâ€? aos deuses. Aqui se encontra a ponte para o aprofundamento sugerido acima. Pois, de maneira anĂĄloga aos estoicos, tambĂŠm judeus, cristĂŁos e muçulmanos atribuem a Deus a razĂŁo Ăşltima dos acontecimentos que nos causam tanto bens quanto males, embora muitas vezes nĂŁo saibamos compreender suas razĂľes. Caso vocĂŞ julgue pertinente realizar essa aproximação, tire o que garante que eu realmente possa fazer isso? NĂŁo estarei, muitas vezes, em situação semelhante Ă de Édipo? É claro que posso abandonar tudo que estive fazendo atĂŠ agora e fazer algo diferente (mesmo que nĂŁo consiga sair viajando pelo mundo), enquanto, na peça, Édipo nĂŁo podia evitar sua desgraça. Mas ĂŠ frequente que nossos sentimentos ou desejos de liberdade encontrem uma sĂŠrie de obstĂĄculos, que muitas vezes terminam nos fazendo deixĂĄ-los de lado. E isso aponta para uma conclusĂŁo importante. NĂŁo ĂŠ por que me sinto livre que sou livre. O caso de Édipo ilustra bem a distância que pode haver entre uma coisa e outra. Sentir-se livre foi, para ele, uma grandiosa ilusĂŁo, porque algo mais poderoso do que esse sentimento se impĂ´s Ă sua existĂŞncia, como uma necessidade. Isso nos conduz entĂŁo a uma pergunta: nesse sentido de liberdade, que nĂŁo ĂŠ nem jurĂ­dico, nem polĂ­tico, mas que estĂĄ tĂŁo

Édipo: responsåvel ou não?

Debate em sala de aula

Aprofunde seu conhecimento sobre a tragĂŠdia de SĂłfocles. HĂĄ mais de uma tradução da obra para o portuguĂŞs e vocĂŞ pode encontrar algumas delas na internet, com livre acesso (procure, por exemplo, no site www.dominiopublico.gov.br, mantido pelo MinistĂŠrio da Educação). • Depois disso, e em colaboração com um(a) colega, discuta na sala de aula essa questĂŁo: Édipo, em sua opiniĂŁo, ĂŠ ou nĂŁo responsĂĄvel pelos atos que cometeu, assassinar seu pai e casar-se com sua mĂŁe?

presente em nossas vidas, pode haver realmente uma liberdade de fato, que não seja apenas uma sensação que tenho em mim?

Estoicismo e a necessidade do universo

principal responsĂĄvel pelo que ocorre ao redor de mim e atĂŠ comigo. SĂł que, ao mesmo tempo, percebo que os acontecimentos ocorrem de uma forma sistemĂĄtica, com mais ou menos ordem, o que sugere a presença de algum tipo de organização neles. Em vista da aceitação dessas premissas, uma pergunta irĂĄ se colocar de forma quase espontânea: quem, afinal, organiza o universo, de modo que as coisas aconteçam assim e nĂŁo assado? Se nĂŁo sou eu, ĂŠ quem? Na histĂłria da filosofia, a primeira grande tentativa de atribuir a todos os acontecimentos uma inevitĂĄvel necessidade, com base na existĂŞncia de uma racionalidade divina que administra o mundo, foi feita pelo pensamento estoico. Os estoicos – assim chamados porque o fundador da escola, um certo ZenĂŁo, originĂĄrio da ilha de Chipre, estabeleceu

livro do professor

Diante de uma catĂĄstrofe natural de grandes proporçþes, ĂŠ comum que as pessoas tenham reaçþes como essa: “Era mesmo para acontecer, nĂŁo havia nada a fazer quanto a isso.â€? A convicção de que o acontecimento se deveu a uma vontade alheia a nĂłs, superior e inquestionĂĄvel, ajuda-nos a suportĂĄ-lo. “Estava escrito, era mesmo para acontecerâ€?, isso, de algum modo, consola e conforta, dando uma resposta Ă pergunta: “Por que isso aconteceu comigo?â€?. Esse tipo de raciocĂ­nio possui inclusive um alcance mais amplo. Uma vez que, de antemĂŁo, considero essas razĂľes superiores a mim e mais poderosas do que qualquer atitude que eu pudesse tomar para alterĂĄ-las, posso atĂŠ mesmo ignorar as causas dos acontecimentos em pauta. Nesse caso, nĂŁo me vejo como sendo o

liberdade e necessidade

cebemos em maneiras privilegiadas de religar os acontecimentos de uma narrativa. No caso de Édipo rei e de tantos outros nĂşcleos mĂ­ticos gregos, a noção mais importante ĂŠ a da maldição do clĂŁ, fortemente associada Ă ideia de uma falta, um erro – em grego, hamartĂ­a, com “hâ€? aspirado – que ocasiona consequĂŞncias graves, duradouras e inevitĂĄveis. É preciso reconhecer a importância da hamartĂ­a no pensamento e na literatura da GrĂŠcia antiga. Lembremos que todo o Ciclo Troiano (isto ĂŠ: o grande nĂşcleo de narrativas mitolĂłgicas que inclui, entre as obras mais conhecidas, os dois poemas ĂŠpicos de Homero, a IlĂ­ada e a Odisseia) ĂŠ, no mito, desencadeado por uma sĂŠrie dessas faltas, cometidas por Atreu e seu irmĂŁo Tiestes, e que envolvem sacrilĂŠgio, fratricĂ­dio e antropofagia. Atreu ĂŠ pai dos futuros lĂ­deres AgamĂŞnon e Menelau, personagens homĂŠricos centrais para o desenrolar da guerra de Troia. É caracterĂ­stico dessa maldição predestinada arrastar-se por vĂĄrias geraçþes. (Quanto Ă famĂ­lia de Atreu, a maldição sĂł serĂĄ aplacada na terceira geração, por Orestes, filho de AgamĂŞnon e protagonista de outras importantes tragĂŠdias gregas.) Para a noção do erro que origina maldição do clĂŁ (hamartĂ­a), ĂŠ Ăştil consultar a valiosa obra em trĂŞs volumes do mitĂłlogo Junito de Souza BrandĂŁo (vocĂŞ encontra facilmente as passagens pertinentes pelos Ă­ndices analĂ­ticos, procurando por “faltaâ€?, “erroâ€? e “hamartĂ­aâ€?): • Junito de Souza BrandĂŁo. Mitologia grega. PetrĂłpolis: Vozes, 2011, 3 vols. Um livro clĂĄssico sobre a questĂŁo do destino entre os gregos ĂŠ: • Eric Robertson Dodds. Os gregos e o irracional. Tradução: Paulo Domenech Oneto. SĂŁo Paulo: Editora Escuta, 2002. Outro autor bastante lido e que apresenta uma interessante articulação entre pensamento mĂ­tico e filosĂłfico na

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pĂĄgina 230 Esse argumento serĂĄ mais tarde denominado de “argumento do desĂ­gnio divinoâ€? e serĂĄ objeto de bastante controvĂŠrsia por parte de vĂĄrios filĂłsofos no correr dos sĂŠculos. Seja como for, note-se que ĂŠ com base nas açþes humanas que se pode concluir algo a respeito dos eventos naturais. A tese estoica de que existe uma divindade racional presente na natureza, explicando-nos por que essa natureza ĂŠ dotada de ordem e regularidade, nĂŁo surge do nada, mas sim de uma anĂĄlise relacionada ao comportamento humano. O modelo ĂŠ o artesĂŁo que produz algo a partir de uma ideia prĂŠvia. Aplicado Ă natureza, esse modelo conduz Ă ideia de um artesĂŁo supremo, uma inteligĂŞncia que cuidou para que o cosmos manifestasse ordem e coerĂŞncia em todas as suas partes.

proporção, mĂŠtodo e ordem de todas as coisas, nĂŁo pode julgar que foram feitas sem causa, mas sim compreende que existe alguĂŠm que as dirige e submete, ainda mais, a respeito dos monumentais movimentos, dos muitos procedimentos ordenados de tantas coisas gigantescas, nas quais nunca o mais remoto e incontĂĄvel passado em nada foi desmentido, ĂŠ necessĂĄrio que ele conclua que tamanhos movimentos naturais sĂŁo governados por algum intelectoâ€? (CĂ­cero, Sobre a natureza dos deuses, II, 4-15. Tradução nossa)

sente em todos os eventos naturais, e o homem ĂŠ componente da natureza, seus atos tambĂŠm estĂŁo, digamos assim, “destinadosâ€? a ocorrer de certo modo. Assim, para os estoicos, hĂĄ uma ĂŠtica a ser seguida pelo homem que conhece a natureza, o “sĂĄbioâ€?, que nada mais ĂŠ do que uma conduta natural, que obedece ao prĂłprio modo como a natureza se comporta. Na linguagem tĂŠcnica da filosofia, essa concepção do estoicismo antigo dĂĄ origem

liberdade e necessidade

livro do professor

mais notĂĄveis do perĂ­odo

que marcou o fim da RepĂş-

blica Romana. Advogado, orador, homem polĂ­tico e

filĂłsofo: ĂŠ atĂŠ difĂ­cil defini-lo de acordo com suas tantas (e tĂŁo influentes) atividades na vida pĂşblica de Roma. Tendo chegado ao

mais alto cargo da repĂşbli-

ca (cĂ´nsul, em 63 a.C.), em

Gunnar Bach Pedersen Thorvaldsens Museum, Copenhagen

43 a.C.) foi um dos homens

A origem da ideia de necessidade HĂĄ uma sĂŠrie de elementos que permitem determinar o problema da relação entre necessidade e liberdade, transformando-o de dificuldade pontual em um autĂŞntico problema filosĂłfico. E quando dizemos isso, pensamos nĂŁo sĂł na filosofia antiga (especialmente no estoicismo), mas tambĂŠm no pensamento filosĂłfico moderno e contemporâneo. “Parece evidente que, se todas as cenas da natureza alterassem-se continuamente de tal maneira que jamais dois acontecimentos tivessem qualquer semelhança um com o outro, e cada objeto fosse sempre inteiramente novo, sem nenhuma similaridade com qualquer coisa que se tivesse visto antes, jamais terĂ­amos chegado, nesse caso, a formar a menor ideia de necessidade, ou de uma conexĂŁo entre esses objetos [...] A relação de causa e efeito teria de ser absolutamente desconhecida pela humanidade [...] Portanto, nossa ideia de necessidade e causação provĂŠm inteiramente da uniformidade que se observa nas operaçþes da natureza, nas quais objetos semelhantes estĂŁo constantemente conjugados, e a mente ĂŠ levada pelo hĂĄbito a inferir um deles a partir do aparecimento do outro. Nessas duas circunstâncias esgota-se toda a necessidade que atribuĂ­mos Ă matĂŠria. Fora da conjunção constante de obje-

tos semelhantes, e da consequente inferĂŞncia de um ao outro, nĂŁo temos a menor ideia de qualquer necessidade

ou conexĂŁo.â€? (Hume, Investigação sobre o entendimento humano, seção 8: “Da liberdade e necessidadeâ€?. Tradução J. O. de Almeida Marques. SĂŁo Paulo: Editora da UNESP, 2004, pp. 121-122)

Nessa passagem, David Hume[+] (1711-1776) pretende responder a uma questão muito clara: como chegamos a formar a ideia de necessidade? Dito de outro modo, e para usar um vocabulårio típico de Hume e de filósofos modernos, qual Ê a origem da ideia de necessidade? Para Hume, qualquer questão de natureza filosófica só pode ser bem pensada e resolvida se partimos dessa pergunta. Isso porque, para ele, a resposta a essa pergunta Ê fundamental e prÊvia a todas as outras. Dela extraímos consequências importantes sobre o tipo e alcance do conhecimento que podemos obter a respeito de qualquer assunto. O caso das noçþes de liberdade e necessidade, como veremos, Ê ilustrativo dessa ideia. Note como jå essa forma de abordar o tema distancia Hume do estoicismo (ver box à påg. 228). Para os estoicos, hå uma verdade metafísica inconteståvel, que deve nos orientar em nossa investigação: a realidade, o mundo em que vivemos, tudo estå subordinado a uma razão superior e divina, presente no próprio mundo, como

A origem da ideia de necessidade

mana tomou para si o papel de seu defensor. Sua relação com Caio JĂşlio CĂŠsar – que viria a se tornar ditador vitalĂ­cio de Roma, abrindo

caminho para o futuro sistema de governo do

impĂŠrio – foi marcada por atitudes ambĂ­guas, aproximaçþes e rivalidades. Da extensa obra

de CĂ­cero, sĂŁo muito lidos e estudados o seu

livro sobre a retĂłrica, suas cartas (alĂŠm de do-

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cumentos histĂłricos, tambĂŠm apreciadas en-

quanto literatura), os discursos polĂ­ticos e os li-

vros filosĂłficos, em que expressa o pensamento estoico romano. Dentre estes, encontramos

os livros Sobre os deveres, Sobre o destino, Sobre a natureza dos deuses e diversos outros.

Note que a ideia de que o homem deve “viver de acordo com a naturezaâ€? pode ser explorada por meio de uma relação com a Unidade Natureza e cultura. A visĂŁo estoica do relacionamento entre o homem e a natureza configura um caso paradigmĂĄtico de harmonia e continuidade en-

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O ponto não Ê concordar ou não com o filósofo, e sim observar que ele introduz uma questão filosófica de måxima importância: pode-se garantir a liberdade humana, com tudo o que hå de positivo ou negativo nisso, se a pensamos com base na necessidade presente na natureza? Filósofos posteriores dedicarão muita atenção a esse tema.

muitos momentos crĂ­ticos da democracia ro-

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a comentårios de outros autores, Crisipo parece ter defendido que mesmo quando agimos por livre e espontânea vontade seguimos uma necessidade inevitåvel. Isso lhe basta para garantir que não estamos autorizados a fazer qualquer coisa ou a dizer que não faz diferença agir bem ou mal.

CĂ­cero

Marco TĂşlio CĂ­cero (103-

O argumento parece ser o seguinte: nĂłs sabemos, com base em nossas prĂłprias criaçþes artificiais (como uma construção, por exemplo), que hĂĄ nas produçþes humanas um plano inteligente, uma finalidade preestabelecida. Uma construção bem feita, com proporção e ordem, ĂŠ sinal de um criador dotado de inteligĂŞncia e racionalidade. Ora, diz o argumento, se olharmos para os eventos naturais – por exemplo, os movimentos e fenĂ´menos celestes –, notaremos que eles apresentam ordem e proporção. Portanto, deve haver um ser inteligente que ĂŠ sua causa e que os torna possĂ­veis e reais. Para os estoicos, somente somos capazes de compreender a natureza quando tomamos a nĂłs mesmos como ponto de partida, justamente porque somos uma parte da natureza, ou seja, porque nĂŁo poderĂ­amos nos compreender a nĂłs mesmos senĂŁo como seres naturais. Os estoicos defendiam o lema “viver de acordo com a naturezaâ€?, que entendiam como idĂŞntico a “viver de acordo com a virtudeâ€?. As açþes humanas tambĂŠm estĂŁo associadas a essa grande racionalidade divina que governa o mundo, elas sĂŁo tambĂŠm uma parte de um todo mais amplo. Se hĂĄ um “destinoâ€? pre-

tre dois universos, o humano e o natural, e não de ruptura entre eles. No estoicismo, o conhecimento que o homem Ê capaz de obter sobre a natureza e sobre si mesmo consiste numa espÊcie de reconhecimento, de tomada de consciência de seu lugar no sistema da natureza. E isso jamais corresponde a uma forma de dominå-la, à maneira de concepçþes posteriores, típicas da modernidade, e associadas a uma visão instrumental e experimental da ciência, como se pode perceber, por exemplo, em Francis Bacon (15611626) e RenÊ Descartes (1596-1650).

liberdade e necessidade

proveito da Unidade Princípio e temporalidade, na qual o platonismo, de um lado, e a tradição judaico-cristã, de outro, são aproximados tendo em vista a convicção de que hå uma instância divina (em Platão, a ideia ou forma do bem; no judaísmo e no cristianismo, Deus) que opera como princípio da ordem a que nós, seres humanos, nos encontramos submetidos.

Aqui serĂĄ certamente Ăştil e relevante fazer uma relação com a Unidade Eu e o Outro, na parte relativa ao cartesianismo, de modo a apontar a semelhança com a atitude tĂ­pica do mĂŠtodo cartesiano, ainda que, como se sabe, existam muitas diferenças entre Descartes e Hume. Apontar que um “empiristaâ€? como Hume pode ser “cartesianoâ€? em matĂŠria de abordagem “subjetivaâ€? ajuda a relativizar esses rĂłtulos (“empirismoâ€?, “racionalismoâ€? etc.), tĂŁo difundidos e frequentemente superestimados. Basta atentar para o tĂ­tulo da obra de Hume – Uma investigação sobre o entendimento humano – para constatar que, embora chegando a resultados por vezes opostos Ă queles atingidos por Descartes, Hume compartilha com este Ăşltimo a convicção de que a investigação filosĂłfica concerne principalmente Ă maneira pela qual o sujeito (a “menteâ€?, o “espĂ­ritoâ€?

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pĂĄgina 238 Para acentuar o diĂĄlogo crĂ­tico com o estoicismo, vocĂŞ pode lançar mĂŁo das crĂ­ticas que Hume fez ao chamado argumento do desĂ­gnio em seus DiĂĄlogos sobre a religiĂŁo natural. HĂĄ uma boa tradução dessa obra em portuguĂŞs: • David Hume, DiĂĄlogos sobre a religiĂŁo natural. Tradução: J. O. de Almeida Marques. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 1992.

uma ideia de necessidade, baseada, nos dois casos, nas mesmas razþes. E isso lhe parece suficiente para concluir que não hå motivo para imaginar qualquer sentido em que se excluam liberdade e necessidade. Por isso, ele entende que o tema tem sido objeto de equívocos, e que Ê perfeitamente possível reconciliar liberdade e necessidade. E como se daria essa reconciliação? Ao invÊs de afirmar que a necessidade dos acontecimentos naturais e das açþes humanas são diversas uma da outra, Hume

toma outra direção. Ele descarta que sejamos capazes de conhecer as causas pelas quais os eventos são realmente portadores de causas necessårias, que os fazem ser como são. Aqui, o que faz toda a diferença são os limites do conhecimento humano, uma característica muito importante de seu pensamento. Para esse filósofo, não conhecemos as causas metafísicas da realidade e devemos nos conformar com isso. Mas não precisamos nos preocupar com a liberdade e a necessidade de nossos atos, pois estão ambos garantidos.

Necessidade natural e liberdade humana

pĂĄgina 238 liberdade e necessidade

Caso vocĂŞ precise de apoio no texto de Hume para promover um debate mais aprofundado sobre essa questĂŁo, examine o trecho a seguir, que contĂŠm a resposta (um tanto ousada, pode-se dizer) que Hume fornece para esse problema:

Ciências da natureza e ciências humanas A despeito das diferenças significativas entre essas duas posiçþes, note que hå algo que ambas admitem e compar-

“Tenho refletido vĂĄrias vezes sobre qual poderia ser a razĂŁo pela qual toda a humanidade, embora tenha sempre e sem hesitação ad-

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tilham. Tanto os estoicos quanto Hume não estabelecem qualquer diferença relevante entre eventos humanos e não humanos. Nenhum deles reconhece a existência de marcas específicas que separem as açþes humanas dos acontecimentos do mundo natural. Para os estoicos, toda

Nova York, EUA). Vespasian/Alamy/Glow images

Assim como tantas outras questþes de relevo, o par necessidade e liberdade foi abordado das mais distintas maneiras pelos autores de filosofia. Hå quem defenda que todos os acontecimentos, humanos ou não, são eventos que se encontram igualmente submetidos a uma ordem necessåria. Essa posição corresponde à filosofia do estoicismo, por exemplo (ver box à påg. 228). Conforme os estoicos, tudo se encontra determinado e segue uma única necessidade, que eles interpretam como sendo ordem divina do cosmos. Cabe ao såbio submeter-se a ela e admirå-la. Mas hå autores que pensam de maneira diversa. Conforme David Hume[+] (1711-1776), por exemplo, necessidade e liberdade são ideias que somente possuem um estatuto subjetivo. São apenas representaçþes que formamos em nossas mentes com base no modo como interpretamos a experiência. Hume conclui que Ê impossível decidir se algo exterior e objetivo realmente corresponde a elas.

mitido a doutrina da necessidade em toda sua pråtica e raciocínio, mostra tamanha relutância em expressar verbalmente essa admissão, e demonstre, em todas as Êpocas, uma inclinação para defender a opinião contråria. Penso que isso pode ser explicado da seguinte maneira. Se examinarmos as operaçþes dos corpos e a produção de efeitos a partir de suas causas, descobriremos que nossas faculdades, todas elas, jamais podem conduzir-nos, no que diz respeito ao conhecimento dessa relação, alÊm da simples observação de que objetos particulares estão constantemente conjugados uns aos outros, e que, quando do aparecimento de um desses objetos, a mente Ê levada por uma transição habitual à crença no outro. Mas embora essa conclusão referente à ignorância humana seja o resultado do mais cuidadoso exame do assunto, as pessoas ainda têm uma forte propensão a acreditar que penetram mais profundamente nos poderes da natureza, e que percebem algo como uma conexão necessåria entre a causa e o efeito. Quando, então, elas dirigem suas reflexþes para as operaçþes de suas próprias mentes, e não sentem uma conexão desse tipo entre o motivo e a ação, são por isso levadas a supor que hå uma diferença entre os efeitos que resultam de uma força material e os que provêm do pensamento e da inteligência. Mas, uma vez que nos convencermos de que nada sabemos acerca de qualquer tipo de causação alÊm da simples conjunção constante de objetos e a consequente inferência de um

“New School For Social Researchâ€?, instituição famosa por acolher

livro do professor

liberdade e necessidade

ou mesmo a “razĂŁoâ€?, compreendida em um sentido amplo) se posiciona diante do que se apresenta como objeto ou mundo para ele. Sob essa perspectiva, nĂŁo apenas ĂŠ legĂ­timo aproximarmos Hume de Descartes, como tambĂŠm, e talvez mais surpreendentemente, de Immanuel Kant (1724-1804), cuja principal obra tambĂŠm revela jĂĄ em seu tĂ­tulo a orientação subjetiva e reflexiva que verificamos estar presente em Hume. Pois a CrĂ­tica da razĂŁo pura, publicada por Kant em 1781, nĂŁo se direciona tambĂŠm para a “razĂŁoâ€?, a “menteâ€?, o “sujeitoâ€??

uma alma estĂĄ presente em um corpo. A por concluir que os eventos se repetirĂŁo regularidade dos acontecimentos e o fato sempre assim. de que tudo deve ter uma causa levou os estoicos a defenderem a tese de que exisRegularidade e uniformidade te uma racionalidade interna Ă natureza, Eis o que, segundo Hume, explica que conferindo-lhe um comportamento sispossamos pensar a ideia de necessidatemĂĄtico e infalĂ­vel. TĂŁo de. É fĂĄcil perceber que infalĂ­vel que determina isso ĂŠ bem diferente de inclusive nossas prĂłprias dizer que essa necessidaaçþes, jĂĄ que fazemos de estĂĄ presente nas coiPodemos imaginar parte da natureza. Um sas, como poderes secreque a regularidade exemplo? Se vocĂŞ estĂĄ tos que as comandam. lendo isso agora, ĂŠ porEsse passo, nĂŁo estamos entre os fenĂ´menos que estava determinado autorizados a dar, diz exprime uma que seria assim. Hume. Podemos imaginecessidade objetiva. Hume chegarĂĄ a connar, e de fato imaginaclusĂľes bem diferentes. mos que a regularidade SĂł que, de verdade, Mas isso porque o ponto entre os fenĂ´menos exnada pode nos de partida tomado por prime uma necessidaassegurar sobre isso, ele nada tem a ver com de objetiva. SĂł que, de o ponto do qual partiam verdade, nada pode nos argumenta Hume. os estoicos. A abordaassegurar sobre isso, argem se altera radicalgumenta Hume. mente. Quando se perQuais as consequĂŞngunta: “como chegamos a formar a ideia cias dessa constatação, para pensar a de necessidadeâ€?, “qual a origem em nossa relação entre liberdade e necessidade? mente da ideia de necessidadeâ€?, Hume ApĂłs algumas anĂĄlises sobre o compornĂŁo estĂĄ falando diretamente sobre a reatamento dos homens em geral, Hume lidade, mas sobre o que acontece em nosconcluirĂĄ: sa mente. Seu enfoque ĂŠ, digamos assim, “subjetivoâ€?, voltado para o sujeito do co“Reconhecemos, assim, uma uninhecimento, e nĂŁo “objetivoâ€?, como nos formidade nas açþes e motivaçþes huestoicos, que tiram conclusĂľes a respeito manas de forma tĂŁo pronta e univerde como as coisas realmente sĂŁo, indesal como o fizemos no caso das operapendentemente de como as percebemos. çþes dos corpos [...] Parece, entĂŁo, nĂŁo Os estoicos chegaram Ă sua conclusĂŁo apenas que a conjunção entre motivos sobre a necessidade universal obser vando e açþes voluntĂĄrias ĂŠ tĂŁo regular e que os eventos naturais se dĂŁo sempre oruniforme como a que existe entre caudenadamente e numa sequĂŞncia repetisa e efeito em qualquer parte da natuda. DaĂ­ tiraram sua conclusĂŁo metafĂ­sica. reza, mas tambĂŠm que essa conjunção Ora, Hume tambĂŠm observa essa mesma regular tem sido universalmente recoordem e regularidade nos eventos, mas, nhecida pela humanidade, e nunca foi ao colocar a questĂŁo do ponto de vista esobjeto de disputa, seja na filosofia, tritamente mental, do ponto de vista do seja na vida ordinĂĄria.â€? (Hume, Investigação sobre o entendimento humano, sujeito do conhecimento, ele sĂł admite seção 8: “Da liberdade e necessidadeâ€?. que hĂĄ uma conjunção constante e reguTradução J. O. de Almeida Marques. lar dos eventos. E nada mais. PorĂŠm, visto op. cit., pp. 124; 128-129) que nos habituamos a isso, terminamos

investigadores voltados para as ciĂŞncias humanas e sociais.

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Sem negar que nossas açþes sejam voluntĂĄrias e, portanto, livres, Hume afirma que elas tambĂŠm sĂŁo motivadas e conduzidas por um tipo de necessidade. Mas nĂŁo hĂĄ razĂŁo para imaginar que estejamos aĂ­ diante de um problema, como se liberdade e necessidade fossem inconciliĂĄveis, quando passamos a compreender corretamente o sentido da ideia que temos de necessidade. Para Hume, a dificuldade para admitir um tipo de necessidade presente em nossas açþes voluntĂĄrias se deve ao fato de nĂłs julgarmos – para Hume, erroneamente – que estarĂ­amos lidando com um sentido de necessidade tĂ­pico dos eventos naturais, que nos indicaria uma conexĂŁo necessĂĄria e poderes secretos presentes nos objetos que explicariam suas relaçþes causais. Em outras palavras, nĂŁo aceitamos que se diga que, quando decidimos agir, somos conduzidos a isso por uma causa anĂĄloga Ă quela que faz uma pedra cair. Parece haver uma causa especial, algo que seria a “liberdadeâ€?. Mas o problema, ao ver de Hume, estĂĄ em que nĂŁo temos acesso a tal necessidade oculta, a tais causas secretas. Apenas somos capazes de observar as constantes conjunçþes entre fatos – uma pedra solta no ar sempre ĂŠ seguida de uma queda; quando desejo mover meu

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Necessidade natural e liberdade humana pĂĄgina 241 Vamos chamar de determinismo uma famĂ­lia de doutrinas que submetem os fenĂ´menos humanos a leis que os determinam, eliminando a possibilidade de qualquer comportamento alternativo. VocĂŞ pode observar aos alunos que, entre os epistemĂłlogos contemporâneos, o determinismo, muito mais do que uma posição unânime, motiva um debate amplo sobre a natureza dos enunciados cientĂ­ficos – debate no qual o determinismo estĂĄ longe de representar consenso. Basta pensar no seguinte. Pode-se atĂŠ admitir que a lei cientĂ­fica deva possibilitar a previsĂŁo de fenĂ´menos; mas isso nĂŁo requer tomĂĄ-la como o retrato de uma necessidade natural, isto ĂŠ, de uma necessidade inerente Ă s coisas. Podemos fornecer um exemplo disso remetendo-nos a um autor discutido em outra parte deste livro (veja a

CC-BY-SA-3.0 - Friedrich Petersdorff

o entendimento humano, seção 8: “Da liberdade e necessidadeâ€?. Tradução J. O. de Almeida Marques. SĂŁo Paulo: Editora da UNESP, 2004, pp. 132-133)

braço, ele se move – e disso pensamos uma “necessidadeâ€? e uma “liberdadeâ€?, mas que nĂŁo nos diz nada sobre aqueles poderes secretos. Assim como pensamos saber por que a pedra cai, assim tambĂŠm pensamos conhecer a necessidade nas açþes, nos comportamentos e no carĂĄter moral. NĂŁo hĂĄ por que pensar que as açþes percam seu valor moral por causa desse tipo de necessidade, desde que se deixem de lado as pretensĂľes – segundo Hume, equivocadas – de falar sobre poderes ocultos na natureza (como, por exemplo, a racionalidade divina dos estoicos).

Wilhelm von Humboldt (1767-1835) foi o fundador da Universidade de Berlim, hoje chamada pelo seu nome. A pedagogia de Humboldt estå na base da estrutura universitåria moderna. De inspiração humanista, Humboldt defendia a união entre ensino e pesquisa.

necessidade que prevalece nas ciências exatas. Fosse assim, os fenômenos observados pelos historiadores ou pelos economistas, por exemplo, seguiriam um comportamento rígido e inflexível, como o que ocorre com a ågua, que necessariamente entra em ebulição ao atingir a temperatura de 100º Celsius em um ambiente sob pressão = 1 atm. O determinismo das ciências naturais tambÊm estaria presente nas ciências humanas. Só que, como talvez você jå tenha adivinhado, isso levanta um problema filosófico de peso. Afinal, caso defendamos que as açþes humanas admitem a mesma necessidade que os fenômenos naturais, como poderemos afirmar que essas açþes são livres? Veja onde fomos parar. Se aplicarmos a noção rígida de lei, tal como presente nas ciências da natureza, no campo das açþes humanas, não ameaçaremos a liberdade que reivindicamos para nossos atos? Suponha que nossos desejos e vontades sejam tão previsíveis quanto

os fenômenos naturais, como ocorre no exemplo da ebulição da ågua. Nesse caso, não pesaria sobre nós a mesma necessidade inflexível a que obedecem os eventos estudados pelas ciências naturais? Hå boas razþes para admitir que o ser humano Ê capaz de escolhas e reaçþes diversas e atÊ inesperadas diante do mundo. Nem por isso, Ê claro, o ser humano deixa de participar do mundo natural. O ser humano possui uma realidade dupla: de um lado, produz o universo da cultura; de outro, permanece um ser vivo, um organismo natural, um corpo que se encontra, juntamente com os demais corpos, submetido a um conjunto de determinaçþes que as ciências naturais procuram desvendar. Hå, portanto, uma dupla condição que caracteriza a humanidade: a natureza e a cultura. O que concluir disso? Não Ê difícil notar que existe uma correspondência entre essa primeira divisão, entre natureza e o da cultura, e uma outra, entre o âmbito da necessidade e o âmbito da liberdade. De fato, a natureza parece caracterizar-se por

liberdade e necessidade

ao outro realizada pela mente, e descobrirmos que essas duas condiçþes sĂŁo universalmente admitidas como tendo lugar nas açþes voluntĂĄrias, seremos mais facilmente levados a reconhecer que essa mesma necessidade ĂŠ comum a todas as causas.â€? (Hume, Investigação sobre

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pĂĄgina 243 Aqui vocĂŞ pode introduzir em sala de aula um tema de grande atualidade, o debate em torno das “polĂ­ticas afirmativasâ€? ou de açþes de “discriminação positivaâ€?, como tambĂŠm sĂŁo conhecidas. Nos anos mais recentes, esse debate ganhou destaque no Brasil, por conta da discussĂŁo sobre a implementação de cotas para negros em instituiçþes pĂşblicas, especialmente nas universidades. HĂĄ inĂşmeras instituiçþes de ensino pĂşblico superior que passaram a adotar o sistema de cotas, motivados pela preocupação de assegurar a grupos tradicionalmente delas excluĂ­dos o acesso aos bens materiais e simbĂłlicos proporcionados pela vida universitĂĄria. Note que esse debate permanece atual, tendo sido inclusive objeto de apreciação pelo Supremo Tribunal Federal e de disputas no Congresso Nacional, com repercussĂŁo na mĂ­dia etc. VocĂŞ pode propor aos alunos uma pesquisa a respeito. Ao explorar esses eventuais aprofundamentos, nĂŁo deixe de assinalar o gancho existente entre esse debate e o assunto examinado neste momento da Unidade. Esse gancho nos parece muito palpĂĄvel. Se, no processo de seu aprendizado (nĂŁo pensamos apenas na escola, mas no âmbito mais amplo que engloba a famĂ­lia, as mĂ­dias, os costumes, as instituiçþes etc.), uma criança ĂŠ investida de papĂŠis sociais determinados de acordo com classe, cor ou gĂŞnero com que se identifica, nĂŁo ĂŠ de se esperar que ela, ao se tornar adolescente e adulta, se incline a operar escolhas sempre no interior dos parâmetros fixados socialmente vida. AlguĂŠm poderia atĂŠ dizer, avançando nesta direção, que o prĂłprio repertĂłrio de escolhas varia conforme a posição de partida que o indivĂ­duo ocupa no corpo social...

Liberdade e seus limites Por aí você jå pode perceber que seria ingênuo imaginar que nossa liberdade opera de forma ilimitada, como se estivesse sempre a nosso alcance pensar ou mesmo desejar uma coisa qualquer. Curiosamente, queremos certas coisas, não outras – e, dentre as coisas que queremos, muitas

constituem tambÊm os objetivos de pessoas próximas a nós, que se encontram sob circunstâncias semelhantes às nossas. Talvez isso não seja mera coincidência. Pode acontecer que aquilo que queremos, assim como as alternativas com que nos defrontamos na vida, estejam em alguma medida predeterminadas pelo que somos socialmente. Procuremos formular essas dúvidas de modo mais qualificado. Vamos supor que nossa faculdade de querer Ê livre, e assim exerçamos nossa liberdade. Por um lado,

Instinto versus espontaneidade

SeminĂĄrio em duplas

diatamente recolherĂĄ a mĂŁo, evitando

O universo da cultura abarca as artes, as ciĂŞncias, a tecnologia. Tudo isso nos torna capazes de modificar a na-

queimar-se. Ao lado de reaçþes instintivas, todavia, hĂĄ tambĂŠm um conjunto de atitudes que sĂŁo “espontâneasâ€?, no sentido de que sua realização pode ou

tureza. Mesmo assim, permanecemos

nĂŁo transcorrer, a depender de nossa

integrando o mundo natural. Os seres humanos dispþem de uma dupla condição: por um lado, somos parte da

vontade ou consciência. Essas atitudes espontâneas parecem assinalar que somos seres dotados de liberdade. Pois,

natureza; por outro, nossa condição racional nos permite modificar o curso

embora sob condiçþes normais não sejamos livres para nos afastar de algo

da natureza de acordo com objetivos que transcendem nossas necessidades biolĂłgicas.

que produz uma dor intensa, somos livres para, por exemplo, reagir desse ou daquele modo a uma agressĂŁo fĂ­sica ou

pla condição surge pela diferença entre as reaçþes instintivas aos estímulos externos e nossas criaçþes espontâneas. Hå um conjunto de reaçþes que são

verbal. Podemos inclusive ignorĂĄ-la. • Forme uma dupla com um colega e, juntos, procurem separar o âmbito das questĂľes relacionadas com a “espontaneidadeâ€? daquelas realizadas por

“automĂĄticasâ€?, isto ĂŠ, que nĂŁo depen-

“instinto�. Primeiro, demarquem essas

dem de nossa vontade ou consciência. Tome como exemplo o caso da ågua que ela entra em ebulição a 100º C sob a pressão de 1 atm: assim tambÊm, se

duas classes de atuação dos seres humanos. Em seguida, procurem fundar essa diferença em uma explicação que singularize cada uma das classes de

qualquer um de nós em condiçþes fi-

atuação diante da outra. Apresentem

siolĂłgicas normais tocar com a mĂŁo a chaleira onde hĂĄ ĂĄgua fervendo, ime-

os resultados aos demais colegas em forma de seminĂĄrio.

livro do professor

Uma ocasiĂŁo de comentar essa du-

liberdade e necessidade

Unidade PrincĂ­pio e temporalidade, mĂłdulo “A noção de progresso cientĂ­ficoâ€?): Karl Popper (1902-1994), por exemplo, compreende a “lei cientĂ­ficaâ€? como um enunciado que organiza tanto os fenĂ´menos abordados pela ciĂŞncia, quanto a prĂłpria teoria e as prĂĄticas cientĂ­ficas. Por isso, Popper assinala que a caracterĂ­stica principal da lei cientĂ­fica ĂŠ o fato de que ela pode ser refutada pela experiĂŞncia. Quando isso ocorre, ĂŠ necessĂĄrio rever uma parte ou atĂŠ mesmo todo o conjunto dos enunciados cientĂ­ficos em vigor, o que costuma motivar novas sistematizaçþes dos fenĂ´menos em questĂŁo. Assim, na visĂŁo de Popper, a lei cientĂ­fica ĂŠ mais um instrumento de ordenação da realidade pelos cientistas do que, exatamente, a expressĂŁo da estrutura essencial do real. Em direção semelhante, Thomas Kuhn (1922-1996) – ao qual se faz referĂŞncia na Unidade Realidade e aparĂŞncia, mĂłdulo “As aparĂŞncias enganam?â€? – reivindica de modo ainda mais radical o significado instrumental ou metodolĂłgico da “lei cientĂ­ficaâ€?. Segundo Kuhn, os enunciados cientĂ­ficos exprimem uma atitude e uma visĂŁo de mundo prĂłprios da comunidade cientĂ­fica; e, visto que esta comunidade se modifica no curso do tempo, visto que, com o tempo, tambĂŠm se alteram os instrumentos de controle e observação dos fenĂ´menos, ĂŠ mesmo de se esperar que tambĂŠm se alterem os padrĂľes de compreensĂŁo da realidade expressos pela ciĂŞncia. A necessidade da ciĂŞncia, sob esse enfoque, nĂŁo corresponde a uma caracterĂ­stica das coisas tomadas por si mesmas, antes respondendo aos marcos que os membros da comunidade cientĂ­fica instituem e reconhecem como parâmetros para nosso conhecimento da natureza.

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página 243, Situação de aprendizagem Na Unidade Razão e paixão, mencionam-se os casos enquadrados no Código Penal como motivados por “forte emoção”. Se você achar oportuno, traga para esse debate as atitudes classificadas como tendo sido motivadas por “forte emoção”. Um eventual desenvolvimento reside em questionar se tais atitudes poderiam ou não ser aproximadas do “instinto”. Um elemento importante nesta abordagem consiste em recordar que, ao contrário das reações fisiológicas, como é o caso de nossa reação diante de um objeto que queima, por exemplo, atitudes que o jargão jurídico considera como sendo motivadas por “forte emoção” poderiam ser evitadas. Basta recordar que nem todos reagem da mesma forma diante das mesmas circunstâncias, ao contrário do que ocorre, por exemplo, quando se toca em uma chaleira com água quente. Ao que tudo indica, nossas paixões diferem de sim-

vida. Alguém poderia até dizer, avançando nesta direção, que o próprio repertório de escolhas varia conforme a posição de partida que o indivíduo ocupa no corpo social... Liberdade e seus limites Por aí você já pode perceber que seria ingênuo imaginar que nossa liberdade opera de forma ilimitada, como se estivesse sempre a nosso alcance pensar ou mesmo desejar uma coisa qualquer. Curiosamente, queremos certas coisas, não outras – e, dentre as coisas que queremos, muitas

constituem também os objetivos de pessoas próximas a nós, que se encontram sob circunstâncias semelhantes às nossas. Talvez isso não seja mera coincidência. Pode acontecer que aquilo que queremos, assim como as alternativas com que nos defrontamos na vida, estejam em alguma medida predeterminadas pelo que somos socialmente. Procuremos formular essas dúvidas de modo mais qualificado. Vamos supor que nossa faculdade de querer é livre, e assim exerçamos nossa liberdade. Por um lado,

Instinto versus espontaneidade

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O universo da cultura abarca as artes, as ciências, a tecnologia. Tudo isso nos torna capazes de modificar a natureza. Mesmo assim, permanecemos integrando o mundo natural. Os seres

diatamente recolherá a mão, evitando queimar-se. Ao lado de reações instintivas, todavia, há também um conjunto de atitudes que são “espontâneas”, no sentido de que sua realização pode ou não transcorrer, a depender de nossa vontade ou consciência. Essas atitudes

humanos dispõem de uma dupla con-

espontâneas parecem assinalar que so-

dição: por um lado, somos parte da natureza; por outro, nossa condição racional nos permite modificar o curso da natureza de acordo com objetivos

mos seres dotados de liberdade. Pois, embora sob condições normais não sejamos livres para nos afastar de algo que produz uma dor intensa, somos li-

que transcendem nossas necessidades

vres para, por exemplo, reagir desse ou

biológicas. Uma ocasião de comentar essa dupla condição surge pela diferença en-

daquele modo a uma agressão física ou verbal. Podemos inclusive ignorá-la. • Forme uma dupla com um colega

tre as reações instintivas aos estímulos externos e nossas criações espontâne-

e, juntos, procurem separar o âmbito das questões relacionadas com a “es-

as. Há um conjunto de reações que são “automáticas”, isto é, que não dependem de nossa vontade ou consciência.

pontaneidade” daquelas realizadas por “instinto”. Primeiro, demarquem essas duas classes de atuação dos seres hu-

Tome como exemplo o caso da água que ela entra em ebulição a 100º C sob

manos. Em seguida, procurem fundar essa diferença em uma explicação que

a pressão de 1 atm: assim também, se qualquer um de nós em condições fisiológicas normais tocar com a mão a

singularize cada uma das classes de atuação diante da outra. Apresentem os resultados aos demais colegas em

chaleira onde há água fervendo, ime-

forma de seminário.

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liberdade e necessidade

Seminário em duplas

ples reações fisiológicas, porque aquelas envolvem algum tipo de liberdade, inexistente nessas.

página 245 Na pág. 303 (Unidade Continuidade e ruptura, módulo “Perfectibilidade e desenvolvimento”, Situação de aprendizagem: “O antagonismo gerando progresso: Kant e Marx”), citamos um trecho de Marx em que ele expõe sua concepção de história. Essa filosofia da história de Marx se baseia numa hipótese: que o desenvolvimento das formas de produção obedece ao princípio da luta entre classes que mutuamente se opõem no interior de cada uma dessas formas de organização econômica, política e social. Assim, nesta concepção, o feudalismo caracterizou-se por um conflito entre nobreza de um lado, burguesia e campesinato de outro. Tal conflito deu origem à sua própria superação – na forma do capitalismo moderno, correspondente a uma estrutura social e política que opõe, essencialmente, burguesia e proletariado. Você pode se beneficiar dessa exposição para aprofundar os aspectos do presente debate, por exemplo tocando em questões afins à História.

do Marx e Engels, a “consciência” é sempre determinada por condicionamentos materiais, relativos a um certo modo de produção de riquezas. Se é assim, como um indivíduo ou uma classe de indivíduos podem agir livremente sobre o mundo ao seu redor? Se aceitarmos o argumento de Marx e Engels, veremos a noção de liberdade restringir-se de maneira radical. Você pode até imaginar que, como indivíduo que age aqui e agora, é livre, fazendo escolhas de acordo com seus parâmetros de mentalidade, suas representações da vida e do mundo. Entretanto, a crer nesses dois filósofos, o leque de representações de que “A moral, a religião, a metafísica você dispõe para optar por isso ou aquilo e demais ideologias, tanto quanto as já se encontra condiformas de consciência cionado pela realidade que lhes correspondem, material que pesa sobre perdem, assim, sua Para Marx e Engels, você e sobre o meio em aparência de autoque você se insere. nomia. Elas não poso que diferencia os Quem contestaria suem história, nem seres humanos dos que ser livre não é igual tampouco desenvolvianimais é o fato de a poder fazer qualquer mento; mas são os hocoisa a qualquer momenmens que, modificando produzirem uma “vida to? Até aqui, o raciocínio sua produção material material”, na busca de de Marx e Engels limita e seu comércio matemeios que garantam o alcance da liberdade rial, modificam com sem chegar a ameaçá-la. sua realidade tamsua sobrevivência. Mas isso não é tudo. bém seu pensamento Essa é apenas a prie os produtos de seu meira consequência da pensamento. Não é a análise materialista de Marx e Engels. O consciência que determina a vida, mas argumento desses filósofos possui uma a vida que determina a consciência.” implicação mais profunda para as relações (Marx & Engels, A ideologia alemã. Traentre necessidade e liberdade. Para dução nossa. op. cit., p. 27) compreendê-la, devemos atentar para o Note que esta “vida” que determina a que já anunciamos antes: a história huma“consciência” – isto é, nossas represenna engendra formas de produção de riquetações, ideias e valores – não consiste de za diferentes umas das outras. condicionamentos fisiológicos. Trata-se, Além disso, as formas de produção sob isso sim, da vida já modificada pelos seas quais a sociedade se organiza evoluem, res humanos, a maneira como os indivítransformam-se (pense, por exemplo, em duos de uma sociedade asseguram suas sociedades de coletores; caçadores; agricondições de existência. cultores: as formas de produção influem Eis aí um ponto importante para nossa sobre a própria conformação social). A discussão. Pois, como você já viu, segunargumentação materialista de Marx e

feudal ou a economia burguesa moderna – é que elas condicionam o conjunto de representações que os indivíduos de cada época possuem: representações sobre si mesmos, sobre os outros, sobre o mundo. “Condicionar” equivale em certo sentido a “determinar”. A tese sustentada por Marx e Engels, portanto, é a de que o conjunto de representações, ideais e valores que os indivíduos de uma dada época ou sociedade possuem é ditado pelas condições materiais, pela forma de produção de riqueza daquela época ou sociedade. Veja a conclusão que eles então extraem daí:

liberdade e necessidade

para os indivíduos daquele determinado segmento? Para ficarmos com apenas um exemplo, aliás muito prosaico: por que, até há algum tempo, muitas meninas sonhavam em se tornar aeromoças, enquanto muitos meninos sonhavam em se tornar pilotos, e não o contrário? Há inúmeros aspectos simbólicos envolvidos nessa discussão. Um caso recente e muito significativo, por exemplo, foi o que representou para a comunidade afro-norteamericana a eleição de Barack Obama (1961- ) para a presidência dos Estados Unidos da América.

página 245 Observe aos alunos que o marxismo dá significativa importância ao conceito de “materialismo histórico”. Não se trata aqui de entendermos o termo “materialismo” em seu uso corrente. O termo tem um sentido mais preciso: por “materialismo histórico” entende-se uma relação entre a forma de

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recomendamos um livro que o discute de modo aprofundado e claro: • A. Codato e R. Perissinotto, Marxismo como ciência social. Curitiba: Editora da UFPR, 2011.

página 246

Greve de operários em São Paulo em 1907. Muitos

deles eram imigrantes italianos em busca de um futuro melhor nas Américas.

Engels leva a entender essas mudanças no modo de produção como fatores que modificam as formas de pensamento. Sob a perspectiva do materialismo de Marx e Engels, o moderno desenvolvimento da forma de produção capitalista cria uma nova divisão social do trabalho – trabalhadores de um lado, proprietários dos meios de produção de outro – e intensifica as trocas comerciais em um nível que abarca todo o globo terrestre. Diante disso, os autores apontam o que lhes parece uma consequência esperada do desenvolvimento do capitalismo: “O comércio, que nada mais é do que a troca dos produtos de diferentes indivíduos e países por meio da relação da oferta e da procura, domina o mundo inteiro – uma relação que [...] paira sobre a terra como o destino antigo, e com mão invisível distribui a felicidade e a desgraça entre os homens, que faz povos surgirem e outros desaparecerem.” (Marx & Engels, A ideologia alemã. Tradução nossa. Op. cit., p. 35)

Veja que o trecho citado retoma um ponto central explorado em outro módulo desta Unidade. Pois o “destino antigo” mencionado aí nada mais é do que a neces-

sidade universal de que falavam os filósofos estoicos! Mas claro que, ao constatarem a presença do “destino antigo” no modo de produção capitalista, Marx e Engels não estão querendo dizer que tudo seja necessário e que a liberdade humana seja ilusória. Não é isso que eles afirmam, a começar porque dizem apenas que a lógica do mercado funciona como se fosse o destino antigo, com sua necessidade inflexível – sugerindo, por outro lado, que isso não precisa ser sempre assim. A conclusão que Marx e Engels tiram daí é a seguinte: enquanto não for ultrapassada a etapa do capitalismo, os seres humanos não poderão ser efetivamente livres, pois esse sistema econômico-social se caracteriza pela dominação de uma classe – a burguesia – sobre todos os demais grupos da sociedade. Para os dois filósofos materialistas, mesmo que o Estado moderno possa assumir a forma da democracia representativa, fazendo crer que um povo soberano decide os rumos a serem tomados por sua nação – isso, concluem os autores, não passa de ilusão. O Estado, a organização política é somente a expressão da dominação da burguesia sobre a classe operária. Pois o capitalismo corresponde, segundo esse argumento, ao estágio histórico no qual a política é determinada pelos capitalistas. Como superar essa situação? Marx e Engels só enxergavam uma saída: a revolução proletária, isto é, a tomada do poder pelo classe trabalhadora. De acordo com seu pensamento, somente desse modo o comércio e a acumulação de riquezas capitalistas seriam eliminados, dando ocasião ao surgimento de uma sociedade na qual todos os seres humanos poderiam exercer sua liberdade de fato. Marximos para além de Marx Durante sua vida, Karl Marx e Friedrich Engels viram sua obra adquirir um alcance não apenas no meio intelectual, mas também fora dele. Suas investigações se tornaram um destacado instrumento analítico da

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Revista Ilustração Brasileira

Marx e Engels analisaram sua própria época segundo esse modelo de compreensão das mudanças históricas. Eis, em linhas gerais, o resultado dessa análise: No capitalismo, que tem início na Idade Moderna, o antagonismo central opõe duas classes sociais. De um lado, a burguesia, cujo interesse se funda na acumulação do capital. De outro, a classe trabalhadora, cujo interesse se encontra na valorização do trabalho. De acordo com Marx e Engels, há uma contradição entre esses dois interesses, e a realização de um exclui a realização do outro. Todavia, é uma característica do pensamento marxista propor a possibilidade da solução desse conflito. Isto passa pela superação da estrutura econômica que separa capital e trabalho: o próprio capitalismo. Uma comparação pode ser útil aqui. Segundo o pensamento liberal, o conflito no interior do corpo social é positivo, produz riqueza. Na compreensão de Marx e Engels, porém, a única vantagem do conflito é que ele conduz a uma crise e à superação do modelo econômico representado pelo capitalismo. A política viria a ser, justamente, o movimento que retarda ou precipita essa ruptura. Na compreensão de Marx e Engels, o conflito leva não só ao fim da partida, mas a uma mudança completa no jogo. A política vem a ser, justamente, o movimento pelo qual se rompe com o capitalismo. liberdade e necessidade

vida concreta pela qual o ser humano produz seu mundo, seu campo de ação concreta e as categorias que ele usa para pensar esse mundo assim produzido. A produção, aqui, implica a realização, a materialização de uma força produtiva em uma coisa do mundo (a produção de objetos úteis ou dotados de um valor, por exemplo). Essa produção é social, o que significa que ela subentende um vínculo real entre todos aqueles envolvidos no processo de produção. Ora, se porventura admitíssemos que essa relação é a de causa e efeito (se admitirmos, assim, que o fato de pensarmos de uma certa forma é efeito de produzimos de uma certa forma), abrimos espaço para supor que a forma de produzir nosso mundo impõe leis causais à nossa forma de pensar. Em outras palavras, desde que nos encontramos situados em uma determinada forma de produção, não poderíamos pensar diferente, senão por meio de uma crítica posterior à nossa forma imediata de interpretar o mundo. Mais que isso, se o processo de produção, distribuição e consumo for apresentado como o esquadrinhamento de uma atividade econômica, pura e simplesmente, então serão as leis econômicas que determinarão causalmente nossa forma de pensar. Uma crítica a isso constituiria uma forma de crítica a essa atividade econômica, adquirindo, assim, seu alcance político. Note que essa interpretação de Marx e Engels não exprime unanimidade e que há autores que reconstroem no marxismo o problema da relação entre economia e política, de forma a descartar a hipótese do determinismo (conforme a qual a economia, como base e infraestrutura, determina a política e as demais manifestações ideológicas, que pairam na superfície do universo social: a “superestrutura”). Se você tiver interesse em aprofundar esse aspecto,

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unidade

ordem e caos A bagunça do meu quarto

Johann Moritz Rugendas. Biblioteca Nacional, RJ

página 256 Na Unidade Continuidade e ruptura (módulo “Como e quando algo muda?”), são discutidos três casos que ilustram a transformação de uma determinada ordem: a história da pintura no Ocidente, a teoria heliocêntrica defendida por Nicolau Copérnico (14731543) e Galileu Galilei (1564-1642) e a Revolução de Julho de 1830, na França. Você pode extrair daí elementos para aprofundar os aspectos que estamos discutindo nesta Unidade, relativos à ordem e ao caos, especialmente nos casos em que uma determinada ordem vigente (de estilo, ideias e concepções, ou uma ordem social e política) é convulsionada por aspirações e ideais revolucionários. Um caso bastante emblemático, de estudo na disciplina de História, é a dissolução do Antigo Regime realizada pela Revolução Francesa de 1789. Johann Moritz Rugendas

permaneceu no Brasil entre 1822 e 1825 e publicou

em 1835 suas imagens em

Viagem pitoresca através do Brasil (1835).

Em todos esses casos, tomados como eventos caóticos, tende-se a ressaltar o aspecto negativo do caos, a indicar que, em nossa compreensão usual da relação entre ordem e caos, subentendemos a ordem como mais valiosa. No entanto, no exemplo anterior sobre a formação da identidade nacional, destaca-se a ideia de que, em boa medida, o caos também pode ser a ocasião da ordem.

De um lado, há situações em que a tentativa de impor uma ordem a qualquer custo termina produzindo desordem e caos. De outro, há situações em que da desordem surge uma ordem. Extraímos disso uma conclusão importante: a de que ordem e caos são noções correlatas, imbricadas uma na outra. Seria possível separá-las completamente?

ordem e caos

A origem do mundo

À pergunta sobre a origem do mundo os homens respondem de inumeráveis formas, diversas e antagônicas: a ordem do mundo tem origem exterior ao mundo; a ordem do mundo é autossuficiente; o mundo é ordenado e racional; e, até mesmo, o mundo é caos e acaso. Todas essas, e outras mais, são respostas possíveis a questões de caráter cosmológico. Particularmente interessante, pelo desafio que abre para a nossa compreensão, é a “resposta” que encontramos em um dos textos mais antigos do pensamento ocidental, a Teogonia (“O nascimento dos deuses”) de Hesíodo, poeta grego que viveu entre os os séculos VIII e VII a.C. O poema de Hesíodo pretende narrar “desde o princípio” (ex arkhês) a geração dos

primeiros elementos, dos primeiros deuses e dos homens a partir dos deuses. Os deuses olímpicos (Zeus, Apolo, Ares, Hermes etc.) formam apenas uma das gerações narradas no mito. Após um preâmbulo dedicado a louvar as Musas, o poeta começa a narrativa da gênese dos deuses assim: E quem primeiro surgiu foi Kháos, mas logo a seguir / Terra de amplo peito, sempre firme assento de todos / os imortais que habitam os picos do nevado Olimpo; / [então] sombrio Tártaro no âmago do solo de largos caminhos, / e Amor, o mais belo dentre os deuses imortais,/

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A origem do mundo página 256

Como vale para muitos autores antigos (Homero é um grande exemplo disto), a cronologia, e a até mesmo a existência de Hesíodo é sujeita a controvérsia. É possível aquele que chamamos de Hesíodo seja, na verdade, uma ficção histórica. Admitindo sua existência, os estudiosos situam o transcurso de sua

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vida entre os séculos VIII e VII antes de Cristo. O pai de Hesíodo, segundo informações contidas em seu próprios poemas (ver Os trabalhos e os dias) migrou para uma região da Grécia chamada Boécia, na qual Hesíodo passou sua vida. É de grande importância a sua Teogonia, reconhecida por seus leitores gregos posteriores. Hesíodo não apenas poetiza uma genealogia, mas também recorre a uma distribuição de funções, imagens, formas ou mitos relacionados aos principais deuses do panteão clássico. Sua obra serviu de base e autoridade para a fixação das figuras poéticas dos deuses tradicionais. Um exemplo do Renascimento: Sandro Botticelli (14451510) inspirou-se em Hesíodo ao pintar seu Nascimento de Vênus. (óleo sb/ tela. 1483. Galleria degli Uffizi, Florença; ver reprodução à pág. 257).

A ordem política página 260 Conforme alguns pensadores, a essência da política é a busca pela ordem indispensável à vida em sociedade. A ideia de que partem é simples: a vida política define-se como vida social organizada. O principal fim da política, considerada sob este aspecto, é organizar a vida em sociedade. Mas muito se debateu sobre o princípio da ordem social e da política. Segundo a doutrina do direito divino, muito difundida no Antigo Regime (especialmente no século XVII), esse princípio reside em Deus, do qual os reis seriam os representantes na Terra. Em contraste com eles, pensadores chamados jusnaturalistas consideram que a ordem político-social deve

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ção que busca superar o conflito potencial ou real entre interesses particulares. O diálogo é o fim natural da condição humana, pensada como propensa à política. Na Era Moderna, em contrapartida, a dimensão conflitiva da política ganha destaque. Niccolò Machiavelli (ou Maquiavel, 1469-1527), por exemplo, em seu conhecido livro O Príncipe (redigido em 1513, mas publicado apenas em 1532) defende que a ordem política é, essencialmente, o resultado de um equilíbrio obtido pelo Príncipe – entenda-se, pelo governante – entre os “fortes” e o “povo”. Para assegurar esse equilíbrio e, desse modo, perpetuar a ordem política, o Príncipe, conforme Maquiavel, não só pode, como muitas vezes deve lançar mão da violência. Ele tem de se fazer temido e respeitado por seus súditos. É o preço da ordem política. No século XVII, Thomas Hobbes aprofunda a ideia de Maquiavel. Hobbes vivenciou a guerra civil causada pela reforma religiosa no Reino Unido. Muitos intérpretes associam seu pensamento político com os acontecimentos de sua época, e o Leviatã (1651), sua obra mais conhecida, pode ser lida como uma resposta à desordem civil que assolava seu país. Diante da luta interna entre seitas e facções diversas, a solução imaginada por Hobbes reside na instituição de um poder absoluto, capaz de unificar, pelo prestígio e pela força, as partes da nação. A teoria da soberania absoluta, elaborada mais ou menos à mesma época por Jean Bodin (1530-1596) na França e T. Hobbes na Inglaterra, é contemporânea às guerras civis e ao absolutismo monárquico, que suplantou os conflitos e deu origem ao Estado-Nação moderno. Contudo, seria incorreto e precipitado reduzir a teoria da soberania absoluta elaborada por Hobbes a uma justificativa do absolutismo real, característico do século XVII europeu. Isso porque elementos decisivos da

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ordem e caos

ser deduzida das leis da natureza. Já para autores como Michel de Montaigne (15331592) e Blaise Pascal (1623-1662), a organização da vida política se funda sobre os costumes de um povo ou de uma nação, podendo, por isso, diferir de um lugar para outro. No entender destes dois autores, cada povo organiza-se conforme sua tradição local. Você irá encontrar, nas páginas 466 e 467, um roteiro de leitura para, se assim lhe parecer útil, aprofundar nos respectivos textos as questões tocadas aqui. Já no desenvolvimento proposto em seguida, insiste-se sobre um ponto específico, que é apresentado através da comparação entre Aristóteles (384-322 a.C.) e Thomas Hobbes (1588-1679). Este ponto pode ser formulado nos seguintes termos: a ordem política requer ou não o recurso à força e à violência, a fim de assegurar a vida civil? Dito de outra maneira: a ordem requer ou não a força? Sem a força estaríamos condenados ao caos em sociedade? De acordo com Aristóteles – e também segundo parte significativa do pensamento clássico –, a política atende a uma vocação natural da humanidade. Logo, os seres humanos realizam sua essência somente na medida em que participam da vida civil. A ordem política representa o fim natural para o qual tendem os homens. Desse modo, Aristóteles não concebe que seja necessária a força e a coerção a fim de fundar e manter a associação política. Reunimo-nos politicamente porque isso atende à realização de nossa perfeição, que requer o diálogo; mas este mesmo diálogo, por seu lado, é buscado pela natureza política dos seres humanos. O diálogo em questão, por isso, não é visto por Aristóteles como uma espécie de negocia-

No caso da reflexão sobre a política, xão política também se alterasse em funnão há como evitar esta questão. Pois a ção das modificações por que passaram os política, em seu sentido mais imediato, é fenômenos políticos ao longo da história. o conjunto de códigos e regras com base Selecionamos para exame duas resnos quais indivíduos postas à pergunta pela interagem socialmenorigem e finalidade da te. É com base em reordem política. A prigras, normas e leis que meira delas é a solução, Para Aristóteles, o os indivíduos constipor assim dizer, “clásser humano é o mais tuem uma coletividasica” formulada por político de todos de mais ampla do que, Aristóteles[+] (384-322 a.C.) na Grécia antiga por exemplo, a unidaos animais, porém e que permaneceu válide familiar. é o discurso ou a da, em grandes linhas, Qual a natureza linguagem o que o durante a Idade Média. desses códigos e desA segunda é a resposta sas regras? Sobre que diferencia dos outros fornecida por Thomas bases as normas da animais. Hobbes (1588-1679), vida política se enconcuja obra constitui o tram fundadas? São ponto de partida princom indagações como cipal da filosofia políessas que nos depatica moderna. Como ramos quando nos será fácil perceber, estas duas respostas pomos a pensar acerca da nossa própria diferem substancialmente uma da outra. existência na sociedade. A diferença entre elas nos instrui sobre o Isso explica por que parte importanque separa os antigos dos modernos. te da filosofia política tenha se dedicado a refletir sobre a origem da vida civil ou O animal político política. Indagar pela origem ou princípio Leiamos com atenção o trecho abaixo: da vida política equivale a indagar pelas razões do ordenamento político sob o qual “Que o homem seja um animal polívivem os indivíduos e, por extensão, pela tico em grau superior que uma abelha finalidade da vida civil. A pergunta pelo qualquer ou de todo outro vivente em princípio, na política, é a pergunta pela estado gregário, isso é evidente. A naorigem da ordem política e dos fins realitureza, com efeito, segundo pensamos, zados por ela. nada faz em vão: e somente o homem, E qual seria a resposta a essa perdentre todos os animais, possui a palagunta? Melhor dizendo, quais seriam as vra. Ora, enquanto a voz só serve para respostas? Como se verifica em outras indicar a felicidade e a dor, e pertence áreas da filosofia, também neste caso por conta disso igualmente aos outros há mais de uma resposta para a mesma animais (pois sua natureza experipergunta. A história da filosofia política menta as sensações do prazer e da dor apresenta mais de uma solução para a pere chega a significá-los uns aos outros), gunta pela origem ou princípio da ordem o discurso serve para exprimir o útil e social. Mas esta diversidade não deve nos o nocivo e, por consequência, o justo e assustar. Afinal, as formas de organizao injusto. Pois é o caráter próprio do ção política da sociedade se modificaram homem, em comparação com os outros profundamente no curso do tempo. Era animais, de ser o único a possuir o senmesmo de esperar, por isso, que a refle-

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página 265 Os estudantes poderão indagar: mas por que esse pessimismo todo em relação à humanidade? Pois haveremos de convir que o retrato que Hobbes nos oferece de nós mesmos não é lá grande coisa. “O homem é o lobo do homem”: este provérbio latino terminou associado ao pensamento de Hobbes, para o qual a condição natural da humanidade corresponde à guerra de todos contra todos. É interessante notar que o próprio Hobbes parece ter antecipado esta objeção e ter se precavido dela no Capítulo XIII do Leviatã, como mostra o trecho abaixo, que você pode também utilizar em classe: não há vida política possível, é a guerra de todos contra todos. Ao contrário do que você pode ter sido levado a pensar, a tese de Hobbes, embora tenha sido formulada no século XVII à época do Antigo Regime, não vale apenas para uma monarquia absoluta, mas também para as formas atuais da democracia. Pois também na ordem democrática percebe-se claramente a presença do que Hobbes designava “um poder comum capaz de manter a todos em respeito”. Há formas bem concretas para atestá-lo. Basta um cidadão pretender sonegar seus impostos, por exemplo, para sentir concretamente o poder do Leviatã. E isso é tão sabido de todos, que no Brasil o imposto de renda é chamado coloquialmente de... “leão”! Assim também, mesmo se de forma mais sutil, o Estado (o Leviatã hobbesiano) mostra todo seu poder ao configurar-se como a única instância de reconhecimento legal da união matrimonial entre indivíduos. É o Estado quem outorga o direito de propriedade da terra; também é o Estado quem define quais são os beneficiários de suas políticas de inclusão social e assim por diante. Mesmo ali onde a soberania emana do povo (ou seja, numa democracia), é o Estado soberano quem, em última instância, reconhece os indivíduos como cidadãos, dotados de direitos e deveres. Conforme Hobbes, é a busca de proteção e segurança o que faz com que os homens ingressem na sociedade política. Contrariamente ao que pensava Aristóteles, Hobbes defende que a vida política responde principalmente ao desejo dos indivíduos de se assegurarem frente aos interesses abusivos dos outros. A união faz a força e dá segurança a cada um dos indivíduos reunidos em um corpo político. Mas note que essa união só é realizável na medida em que todos os indivíduos reconhecem um indivíduo ou um grupo de indivíduos como seu(s) governante(s).

O PENSAMENTO ANARQUISTA É difícil dizer quando exatamente surgiu o ide-

ário do anarquismo. Os anarquistas viram com muita simpatia J.-J. Rousseau, que defendia que o ser humano é naturalmente bom e que a sociedade o corrompe. Certo é que o primeiro a declarar-se “anarquista” foi Pierre-Joseph Proudhon (18081865), filósofo e político francês. Ele afirmava que o Estado era um mal desnecessário e que os trabalhadores deveriam associar-se em comunidades livres de propriedade privada. Seu livro mais importante chama-se O que é a propriedade? Pesquisa sobre o princípio do direito e do governo, de 1840. Ao lado dele, o principal teórico anarquista é o russo Mikhail A. Bakunin (1814-1876), que se tornou conhecido por sua oposição à ideia de ditadura do proletariado, defendida por Karl Marx. Por acreditarem que os governantes de modo

geral querem exercer um controle total sobre os indivíduos, muitos anarquistas defenderam a desobediência civil. Nos Estados Unidos, alguns anarquistas se recusaram a pagar impostos para o governo, alegando que, com isso, estariam contribuindo para fortalecer algo contrário à liberdade. Alguns anarquistas chegaram a se auto-exilar em regiões desabitadas, construindo suas próprias casas e vivendo em um regime de subsistência. Outros lutaram para introduzir na constituição norte-americana uma emenda que permitisse ao contribuinte assinalar o destino de seus impostos. No Brasil, o anarquismo foi difundido a partir

de imigrantes italianos que aqui chegaram no fim do século XIX e início do século XX. No Paraná, no município de Palmeira, foi fundada em 1890 a Colônia Cecília, sob a liderança do anarquista italiano Giovanni Rossi (1859-1943). A Colônia chegou a contar com 250 indivíduos, que viviam da lavoura de

ordem e caos

teoria hobbesiana são igualmente válidos para as demais formas de governo, como a democracia. Nas democracias contemporâneas, por exemplo, a ordem política encontra-se fundada no reconhecimento, por parte dos cidadãos, de um poder constituído, o Estado, que detém o monopólio do uso legítimo da violência. É este monopólio que define o poder político, segundo o sociólogo alemão Max Weber (18641920). Ao menos sob este aspecto, é indiferente que os ocupantes dos cargos e funções no interior do aparelho do Estado sejam ou não eleitos. O relevante é que, como sustentava Hobbes, a vida política se funda na presença de um poder capaz de assegurar a ordem social, inclusive se ele tiver de recorrer à força. Um bom expediente para propor a comparação entre os passos aqui selecionados – e, a partir deles, entre Aristóteles e Hobbes – reside em salientar para os estudantes os elementos textuais que marcam a diferença entre os dois universos de ideias que cada um deles representa. Nesta direção, enquanto Aristóteles não faz menção alguma à coerção no trecho sobre a política que propomos para exame, Hobbes, de seu lado, diz claramente que não há “paz sem sujeição”. Dito da forma que Hobbes empregava, precisamos nos sujeitar e obedecer a um poder comum que mantenha a todos em respeito, se quisermos viver em paz uns com os outros. Sem isso, conclui Hobbes, a vida civil é impossível. Sugira aos estudantes que considerem a posição de Aristóteles e em seguida a de Hobbes, e que apontem a principal novidade do texto hobbesiano em relação à abordagem clássica. Auxilie-os a fazê-lo assinalando as palavras no trecho de Hobbes que exprimem esta novidade, tais como “força”, “respeito” e “sujeição”.

milho. Diante de inúmeras dificuldades, entretanto, os membros se dispersaram e a Colônia Cecília findou em 1894.

Alguns livros sobre anarquismo em português: Proudhon, A propriedade é um roubo e outros

escritos anarquistas. Tradução: Suely Bastos. Porto Alegre: L&PM Pocket, 1998. Disponível em e-book. Bakunin, O princípio do Estado e outros ensaios.

Tradução: Plínio A. Coelho. São Paulo: Hedra, 2008.

“Poderá parecer estranho a alguém que não tenha medido bem estas coisas que a natureza tenha assim dissociado os homens, tornando-os capazes de se atacarem e destruírem uns aos outros. E poderá portanto talvez desejar, não confiando nesta inferência feita a partir das paixões, que ela seja confirmada pela experiência. Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; quando vai dormir fecha as suas portas; mesmo quando está em casa tranca os seus cofres, embora saiba que existem leis e servidores públicos armados, prontos a vingar qualquer dano que lhe possa ser feito. Que opinião tem ele dos seus compatriotas, ao viajar armado; dos seus concidadãos, ao fechar as suas portas; e dos seus filhos e criados, quando tranca os seus cofres? Não significa isso acu-

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Hobbes, LeviatĂŁ ou matĂŠria, forma e poder de uma repĂşblica eclesiĂĄstica e civil. Tradução: JoĂŁo Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 2008, CapĂ­tulo XIII [“Da condição natural da humanidadeâ€?], pp. 109-110)

pågina 266, Situação de aprendizagem No concerto das naçþes, sempre se previram medidas e açþes voltadas para restabelecer a ordem onde a normalidade institucional tenha sido rompida. A promoção da missão da ONU no Haiti, iniciada em 2004 e coordenada pelas forças armadas brasileiras, foi motivada por esse mesmo propósito. A intervenção promovida pela ONU tem origem nas eleiçþes presidenciais haitianas de 1990, que, se supôs à Êpoca, trariam um fim ao período de grande instabilidade, por conta da ditadura precedente. Contrariando todas as expectativas otimistas, porÊm, Jean-Bertrand Aristide, eleito presidente com 67% dos votos, foi demovido do poder pelas forças armadas do país, que restauraram a ditadura. Diante do caos que se seguiu a ela, a ONU realizou a intervenção internacional. Conforme a ONU, tal intervenção se justificou pelo propósito de assegurar a vigência de uma ordenação social mínima, capaz de oferecer à população serviços como distribuição de ågua e alimentos, atendimento hospitalar e medicamentos etc. O projeto da ONU no Haiti foi o de restabelecer a ordem para,

ordem e caos

A tragĂŠdia do Haiti

DiscussĂŁo em grupo e desenvolvimento individual por escrito

polĂ­tica, a despeito de dois presidentes terem sido eleitos. A crise prosseguiu atĂŠ

Abaixo, vocĂŞ encontrarĂĄ um possĂ­vel desenvolvimento dos tĂłpicos abordados

2004, motivando nova resolução do Conselho de Segurança da ONU, determinando o envio de uma Força Multinacional

atÊ aqui, para discussão com seus colegas de classe e redação de aproximadamente

Interina, liderada pelo Brasil. Em junho de 2004, as forças internacionais assumiram

duas pĂĄginas. Apresentamos a seguir um caso real para discutirmos uma questĂŁo conceitual.

o poder por longo tempo, visto que Ă crise polĂ­tica somaram-se todos os infortĂşnios trazidos pelo terremoto de 12 de janeiro

Ela concerne Ă discussĂŁo sobre a questĂŁo

de 2010, que arrasou o paĂ­s, tirando a vida

da ordem política segundo Hobbes. Trata-se de um fato tirado da história contemporânea, envolvendo a política internacional, a crise político-social do Haiti. O exame

de mais de 200 mil pessoas. Ao discutir a histĂłria recente do Haiti, atente para a seguinte questĂŁo: atĂŠ que ponto a noção de “normalidadeâ€? equi-

desse caso possibilitarĂĄ compararmos a

vale à vigência de uma ordem? É possível

tese de Hobbes, segundo o qual sĂł hĂĄ paz em sociedade se o Estado for um poder coercitivo “que mantĂŠm a todos em res-

alcançar uma necessåria estabilidade do corpo social sem que haja um poder reconhecido como tal? A crise política e

peito�, e aqueles que defendem o oposto, os anarquistas (ver box à påg. 267). Para o

a tragĂŠdia causada pelo terremoto no Haiti ĂŠ um caso extremo, mas represen-

anarquismo, o Estado Ê uma invenção dos governantes para exercerem um controle excessivo sobre os indivíduos.

ta uma situação que poderia abater-se sobre qualquer povo. Note, por outro lado, que um simpati-

Em dezembro de 1990, Jean-Bertrand Aristide foi eleito presidente do Haiti. Em

zante do anarquismo poderia protestar e dizer que o caso do Haiti nĂŁo ĂŠ adequado

setembro de 1991, ele foi deposto por um golpe de Estado promovido por militares. Organizaçþes internacionais como a Or-

para esse debate, jå que a situação que mergulhou o povo haitiano na crise jå possuía causas ligadas ao mal represen-

ganização dos Estados Americanos (OEA)

tado pelo Estado e os governantes.

e a Organização das Naçþes Unidas (ONU) protestaram e pediram sua recondução ao poder. ApĂłs breves negociaçþes fracassadas, os militares empossaram Émile

• Em grupos de três, realize uma pesquisa (internet, jornais, revistas) e consulte bibliografia sobre os fatos transcorridos. Procure apontar a origem da crise,

Jonassaint, marcando eleiçþes para feve-

seu aprofundamento conforme as etapas

reiro de 1995. Sob liderança dos Estados Unidos da AmÊrica, a ONU não apenas contestou a legitimidade do poder de Jo-

que os observadores identificaram nesse processo, atÊ o momento em que as forças armadas de outros países foram

nassaint, como autorizou uma intervenção militar no país, que teve início em

convocadas para integrar uma missão da ONU. Com essas informaçþes em mãos,

setembro de 1994. Entre 1994 e 2000, o Haiti mergulhou em uma profunda crise

faça uma reflexão sobre as ideias de ordem e caos no âmbito da filosofia política.

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com base nela, promover eleiçþes gerais (ocorridas em novembro de 2010) e reintroduzir, juntamente com governos eleitos democraticamente, as instituiçþes que caracterizam a “normalidadeâ€? jurĂ­dico-institucional de um paĂ­s. VocĂŞ pode expor aos estudantes as objeçþes levantadas contra a ação da ONU no Haiti. Como toda intervenção internacional, ela traz enormes riscos, a começar pelo fato de nĂŁo conseguir dialogar com as forças polĂ­ticas locais e, consequentemente, ser incapaz de criar condiçþes para que o povo haitiano decida seu prĂłprio rumo. Outra crĂ­tica aponta que a intervenção internacional favoreceria o interesse de grupos estrangeiros atuando no Haiti. Seja como for, o drama do povo haitiano foi ainda enormemente agravado pelo terremoto de 2010 que destruiu completamente o paĂ­s. Essa singular conjunção de circunstâncias representa um desafio para a reflexĂŁo polĂ­tica: como agir em um momento no qual os indivĂ­duos sĂŁo incapazes de discernir normas regulando as relaçþes existentes entre eles? Como interagir com os nossos pares, nesta espĂŠcie de “vĂĄcuo normativoâ€?? A noção de ordem, vĂŞ-se por aĂ­, possui enorme relevância para a filosofia e para a prĂĄtica polĂ­ticas. Mesmo se, como defendem os anarquistas, a ordem vigente for o objetivo a combater.

pĂĄgina 267 É didaticamente muito Ăştil a comparação das exposiçþes da polĂ­tica de AristĂłteles com a de Thomas Hobbes, porque nos permite compreender as reformulaçþes por que passou a compreensĂŁo da vida polĂ­tica da Antiguidade Ă Modernidade. Hobbes nos deixou uma obra de profunda importância, que goza de grande prestĂ­gio e ĂŠ uma referĂŞncia decisiva na filosofia polĂ­tica.

livro do professor

sar tanto a humanidade com os seus atos como eu faço com as minhas palavras?â€? (ExtraĂ­do de Thomas

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Mas, como era de se esperar, as mudanças trazidas pela Modernidade não se limitaram ao campo da filosofia política. Noutra Unidade desse livro, são estudadas as implicações dessa mudança para a relação entre o Eu e o Outro (módulo “O Eu penso: Descartes”). Lá se aponta para o fato de que o principal resultado aí trazido pela Modernidade foi nada menos que a elaboração da noção de sujeito do conhecimento, por oposição aos objetos exteriores, à natureza, à alteridade. No módulo referido da Unidade Eu e o Outro, examina-se como a filosofia de Descartes levou à elaboração da ideia de que no âmbito do conhecimento a “primeira certeza” é encontrada pelo Eu no exame de si mesmo, de sua interiodade: o “penso, logo existo”. Por fim, é preciso ter em vista que o advento da Modernidade trouxe consequências profundas também para outros campos da reflexão filosófica. Pensemos um instante no âmbito da ética. Na Unidade Razão e paixão, você encontra exposições de alguns importantes momentos percorridos pela reflexão ética, da Antiguidade aos tempos modernos: – A tese do estoicismo de que as paixões devem estar subordinadas à razão; – Aristóteles, que procura conciliar razão e paixão, ao definir a virtude como o bom uso das paixões; – David Hume, para quem a razão é “escrava das paixões”. Nessa perspectiva, a Modernidade, se comparada aos tempos anteriores, aparece como momento em que a força das paixões em nossas vidas adquire um reconhecimento inédito. Além das obras utilizadas de Aristó-

O pacto que funda a sociedade civil, por isso, é um pacto de sujeição à instância que irá monopolizar o uso legítimo da força. E isso é indispensável para que cada indivíduo persiga seus próprios objetivos. Assim, enquanto Aristóteles defendia que a vida política é o fim último dos homens e que, portanto, a Cidade-Estado realiza a essência da humanidade, na me-

dida em que só na vida política os indivíduos convergem em torno de valores comuns, Hobbes, de seu lado, sustenta que o Estado é o único modo seguro para que os homens possam satisfazer seus fins particulares com segurança e tranquilidade. Fora da vida civil, somos condenados a viver na condição da guerra de todos contra todos. O caos, ao invés da ordem.

Da ordem do irracional

O filósofo político Thomas Hobbes[+] (1588-1679) concebeu a reunião dos humanos em sociedade como um conflito permanente, remediável apenas por meio do estabelecimento do Estado, instituição que detém poder e que pode fazer uso legítimo da força, a fim de assegurar a paz civil. Abandonada a si mesma, a sociedade dos seres humanos seria um eterno conflito de interesses e de paixões. O Estado hobbesiano, ao conter e ordenar esses interesses e paixões conflitantes, promove a ordem política, a ordem civil. Por isso, segundo

Hobbes, o Estado é expressão da razão. Mas e se, diferentemente do que pensou Hobbes, as paixões resistissem com sucesso à função ordenadora da razão? Nesse caso, só restaria à razão impor-se às paixões pela força. Mas isso não contradiria a própria noção de razão, compreendida por oposição ao que é arbitrário? Além disso, talvez as paixões disponham, nelas mesmas, de uma ordem... Se essa suposição for válida, teríamos de nos ver com o que parece ser um paradoxo: uma “ordem do caos”. Vamos examinar mais de perto essa alternativa?

Em seu livro A anatomia da melancolia, o inglês Robert Burton

(1577-1640) “dissecou”

as patologias da psiquê humana segundo um

esquema de categorias. Ele dividiu os assuntos,

ordem e caos

Filadelfia; Nova York: Moore; Wiliey, 1850. Internet Archive / Google Books / Universidade de Michigan

Um esquema da melancolia

por exemplo, de acordo com suas causas, seus

sintomas, suas possíveis curas. Seu esquema busca compreender o caos das paixões

humanas segundo uma

livro do professor

ordem racional.

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teles e Hobbes, outros títulos, não citados aqui, são de utilidade para eventuais desenvolvimentos de nosso tópico ou para simples consulta por parte do professor. Abaixo, você encontrará referências que poderão complementar e enriquecer sua compreensão do assunto. • T. Hobbes, Do cidadão (São Paulo: Martins Fontes, 1992), tradução de Renato Janine Ribeiro. Dentre os estudos introdutórios ao pensamento político de Hobbes, sugerimos: • Maria I. Limongi, Hobbes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002 (Coleção Passo-a-Passo). • Yara Frateschi, “Hobbes: a instituição do Estado”, in: V. Figueiredo (org.), Filósofos na sala de aula – vol. 2. São Paulo: Berlendis e Vertecchia, 2007, pp. 46-76. Como estudos mais avançados, elencamos duas obras de referência dentre nós, ambas de autoria de Renato Janine Ribeiro: • A marca do Leviatã. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. • Ao leitor sem medo. Belo Horizonte: editora da UFMG, 1999, 2ª ed. Além delas, recomendamos dois outros mais recentes, que também podem ser lidos por não-especialistas: • Yara Frateschi, A física da política: Hobbes contra Aristóteles. Campinas, Editora da Unicamp, 2008. • Maria I. Limongi, O homem excêntrico. São Paulo: Loyola, 2008. Uma excelente análise das diferenças entre antigos e modernos, no que concerne à caracterização da política, você poderá encontrar em: • Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro. Tradução: Mauro B. de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 2000. Os resultados de Arendt são reapresentados de uma forma provocadora e instigante em um livro breve, mas excelente, escrito para a coleção Primeiros Passos por Gérard Lebrun (1930-1999):

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nossas ações, como se ditassem o que deAlfonso também sucumbe ao amor, amvemos fazer. É este evidentemente o caso bos decidem casar-se. de dom Alfonso, protagonista do romanMas, quando ambos tornam-se noivos, ce Zaíde. O mesmo assunto é discutido ao Alfonso começa a ser possuído pelo mais longo da Unidade Razão e paixão. Você violento ciúme. Tudo o que Belasira faz inslogo se dará conta do motivo para o abortiga sua alucinada desconfiança. E o pior de darmos aqui. tudo é que dom Alfonso sabe que seu ciúme Não há mistério. A reflexão promovida não possui qualquer fundamento real. A por esses pensadores franceses da segunda certo momento, ele diz: “Percebia muito metade do século XVII traz à luz que nem bem que tinha errado; mas não depentoda ordem assumida por nós na vida prádia de mim ser razoável” (Madame de La tica é pautada pela razão. Frequentemente, Fayette, “Zaïde”, in: La Princesse de Clèves aliás, ocorre o contrário. No romance de et autres romans. Paris: Gallimard, 1995, p. Madame de La Fayette, por exemplo, dom 88. Tradução nossa). Alfonso sabe que está cego pelo ciúme. No Logo em seguida, acrescenta: “Percebia muito bem que violava as fronteiras da raentanto, não é capaz de resistir a ele. Toda zão; mas tampouco acresua ação, do início ao ditava merecer ser infim do caso de amor teiramente condenado, com Belasira, é deterÀs vezes, as senão por estar amanminada por uma únido Belasira” (Madame ca coisa: a paixão do paixões organizam de La Fayette, op. cit., ciúme. Eis uma forma nossas ações e p. 89. Tradução nossa). de ilustrar que a orordenam nossa Mas, embora percebendem de nossas ações, do muito bem que estade nossa conduta nos conduta – por mais va sendo enganado pela assuntos mais imporque, aos olhos da paixão do ciúme, dom tantes, pode assumir e razão, o resultado Alfonso simplesmente muitas vezes assume não conseguia evitá-la. um princípio passional. beire o caos. Começa então a inferniE isso, a ponto de ser zar de tal modo a vida de mais apropriado conBelasira, que ela desiste cluir que, por vezes, as do casamento. Isso seria apenas dramátipaixões organizam nossas ações e nelas se co, mas o romance acaba em tragédia, pois situa o princípio de ordenação de nossa condom Alfonso, tomado de paixão e ciúme, duta – por mais que, aos olhos da razão, o segue até onde Belasira se encontra no resultado beire o caos. início de uma noite escura, depara com Em vista disso, não é muito adequado um homem que saía de sua casa e termina dizer simplesmente que as paixões, que assassinando-o. Descobre, depois, que era geralmente são vistas como arbitrárias e seu melhor amigo, que buscava convencer impetuosas, promovem a desordem. O Belasira a reatar com Alfonso. Ela então fenômeno aqui é diverso e merece outra parte para um convento, decidida a jamais formulação, mais adequada. Na verdade, revê-lo, e ele sucumbe ao arrependimento. o que ocorre no romance de Madame Madade de La Fayette, assim como oude La Fayette é que a ordem das paitros escritores e pensadores do período, xões se sobrepõe à ordem da razão, como La Rochefoucauld e Blaise Pascal, desorganizando-a, promovendo conduapontaram para o fato de que nossas paitas que a razão vê como caos. Mas o que xões por vezes assumem a direção de a razão interpreta como caótico é o fato

Como perceberão os leitores de Machado de Assis, o argumento do livro de La Fayette é bastante próximo ao de um notório romance brasileiro: o Dom Casmurro (filosoficamente explorado, por sinal, noutra Unidade do presente livro, Dúvida e certeza). Pode ser interessante remeter, durante a discussão, ao romance de Machado. Mas isto não é obrigatório: e a aproximação dos dois romances não deveria dar a entender que um e outro livro ofereçam exatamente o mesmo tratamento do assunto, o que seria uma inverdade. É algo que cabe a você avaliar. Se você decidir fazê-lo, vale a pena contextualizar devidamente cada obra. É possível, aliás, que essa semelhança não escape aos olhos de seus alunos, sem precisarem ser lembrados disso.

ordem e caos

Da ordem do irracional

página 273 Se você desejar aprofundar os conhecimentos em torno da psicanálise freudiana e seus desdobramentos, há em português uma extensa literatura. A começar pelas obras traduzidas de Freud, até biografias dele, passando por inúmeros estudos sobre suas obras, não faltam bons títulos para compreender, em grandes linhas, o que se designa como o “campo da psicanálise”. A seguir, relacionamos umas poucas obras, como indicação de leituras introdutórias ou de teor mais filosófico. Freud

Sigmund Freud (1856-1939) nasceu em Prí-

Josef Breuer (1842-1925), que adotava a prática

bor, uma cidade que à época pertencia ao Impé-

da hipnose e dava importância à fala dos pa-

rio Austríaco. Quando tinha quatro anos, sua fa-

cientes histéricos, a fim de curá-los. Após

algum

tempo,

Freud

nazistas para a Inglaterra. (Quatro de suas irmãs

Breuer, que não concor-

distanciou-se

de

não tiveram a mesma sorte e foram assassina-

dava com a tese de que,

das nos campos de concentração nazistas.)

na origem dos sintomas

sidade de Viena em 1881, Freud foi trabalhar no Hospital Geral da capital imperial. Graças

a uma licença, Freud segue para Paris, onde

acompanha os trabalhos de Jean-Martin Char-

histéricos, haveria sempre

um trauma de natureza

sexual. Com a publicação de A interpretação dos

sonhos (1899) e com sua

cot (1825-1893), importante psiquiatra francês

atuação na primeira déca-

dedicado ao estudo da histeria. De retorno a

da do século XX, Freud tor-

Viena, Freud aprofunda o tratamento de pa-

na-se conhecido pela sua

cientes histéricos – isto é, vítimas de perturba-

teoria sobre o inconsciente.

ções de ordem psicológica que se manifesta-

As obras de Freud compõem mais de vinte

vam em sintomas como paralisia, descontrole

volumes. No Brasil, são encontradas em edi-

motor, surdez, cegueira etc. A etapa seguinte é

ções da editora Imago e, mais recentemente,

a colaboração com o amigo e neurofisiologista

da editora Companhia das Letras.

luz – cuja origem ou princípio é psicológico, mental: fisiologicamente, aqueles pacientes não apresentavam qualquer disfunção motora ou oftalmológica. Esse princípio era desconhecido pelos próprios pacientes, isto é: agia no seu insconsciente. A hipnose mostrou-se um método parcialmente eficaz para trazer à tona a causa inconsciente dos distúrbios que se manifestavam fisicamente. Uma vez descoberta essa causa psíquica inconsciente, em alguns casos o paciente se via livre do sintoma. Restava, entretanto, explicar por que razão causas poderosas assim, capazes até mesmo de paralisar nossos movimentos, permaneceriam ignoradas por nós. Freud procurou responder a essa pergunta por meio de outra: por que certas representações psíquicas são excluídas do consciente, se algum dia estiveram em sua superfície? Convencido de que nossa vida psíquica não é constituída apenas de representações conscientes, procurou

livro do professor

Tendo se formado em medicina na Univer-

Ferdinand Schmutzer. Coleção particular

mília mudou-se para a capital, Viena, onde permaneceu até 1938 – ocasião em que fugiu dos

descobrir por que certas representações são conscientes, outras, inconscientes. O conceito de “repressão” lhe deu uma chave para a resposta. Leiamos o seguinte trecho de uma importante obra de Freud, publicada em 1923: “[...] Chegamos ao termo e ao conceito de inconsciente [...] pela elaboração de experiências nas quais a dinâmica mental é significativa. Descobrimos, isto é, tivemos de admitir que existem processos ou representações mentais muito fortes, [...] as quais podem implicar, para a vida mental, todas as consequências que possuem as representações ordinárias – até mesmo consequências que podem se tornar conscientes, novamente na qualidade de representações –, as quais, entretanto, permanecem elas mesmas não conscientes. Não é necessário repetir detalhadamente aqui o que já foi ex-

ordem e caos

• G. Lebrun, O que é poder. São Paulo: Brasiliense, 1995. Merecem eventual consulta, para aprofundamentos em relação à noção moderna de “poder”, a obra de Nicolau Maquiavel, que mencionamos anteriormente. Também as de Immanuel Kant (1724-1804) e Max Weber (1864-1920), cujas referências listamos abaixo. Recorde-se do que já apontamos: Maquiavel é importante por ter sido o primeiro filósofo a conceber a política como campo dotado de uma lógica própria, emancipada da reflexão moral. Kant, embora articule moral e política, concebe esta última como dispondo de um elemento coercitivo. “O homem necessita de um senhor”, declara Kant em Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita, de 1784. Afirmá-lo é reconhecer, na linha já sustentada por Hobbes, que a política inclui o constrangimento ou a força como um de seus elementos necessários. Max Weber, fundador da moderna sociologia, define o Estado moderno como instância que detém o monopólio do uso legítimo da violência, em seu livro Economia e sociedade. Eis a relação das obras mencionadas, todas editadas em português: • Nicolau Maquiavel, O Príncipe. (Tradução de Antonio D’Elia). São Paulo: Cultrix, 1977. • Immanuel Kant, Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita. (Tradução Ricardo Terra e Rodrigo Naves). São Paulo: Martins Fontes, 2010. • Max Weber, Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Volume 1. (Tradução de R. Barbosa e K. Barbosa. Revisão de Gabriel Cohn). Brasília: Editora da UnB, 1993. • Max Weber, Economia e sociedade. Fundamentos da sociologia compreensiva. Volume 2. (Tradução de R. Barbosa e K. Barbosa. Revisão de Gabriel Cohn). São Paulo: Editora da UnB/Imprensa Oficial, 2004.

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essa, chamada justamente Sobre os sonhos – são uma resposta residual aos estímulos antes recebidos pelos sentidos. Assim como

to a Aristóteles [+]. Numa obra de pequena ex-

um objeto impulsionado por outro continua

Quanto aos diferentes princípios de ordenação das representações psíquicas no sonho e na vigília, você pode criar ligações com a Unidade Lógica e argumentação, especialmente na seção que trata dos argumentos que apelam não para a razão, mas para recursos emotivos (módulo “Racionalidade e emoção”). Você também pode explorar o dilema da percepção no sono e na vigília, tal como formulado por Descartes e, contrastivamente, por Pascal (Unidade Dúvida e certeza, módulo “Duvidando para atingir a certeza”). tensão, intitulada Sobre o sono e a vigília, Aris-

a se mover mesmo quando não está mais em

tóteles se pergunta: o que é o sono e o que é

contato com aquele objeto que originou seu

a vigília? Parecem ser propriedades diferen-

movimento; ou como a imagem brilhante

tes do mesmo “órgão”, ligado à percepção dos sentidos, uma vez que “vemos” e “ouvi-

que continuamos a enxergar depois de mirar o sol, em seguida desviando o olhar dele.

mos” coisas quando sonhamos. No entanto,

quando estamos dormindo não recebemos

Voltando a Freud, veremos que sua

teoria explica tudo isso de uma maneira

percepções exteriores através de nossos

completamente diversa. Para ele, não é so-

cinco sentidos. Além disso, se o sonho e a

mente um “órgão” (para usar a linguagem

percepção exterior são propriedades do

aristotélica) que governa nossa vida mental

mesmo “órgão”, por que às vezes lembramos

na vigília e no sono, mas pelo menos dois:

dos nossos sonhos e outras vezes, não? Aris-

o consciente e o inconsciente. Então, já não

tóteles desenvolve seu raciocínio de maneira

se pode descrever esses diferentes regimes

estritamente lógica – a mais explícita expres-

como um caos contraposto a uma ordem,

são de uma ordem, portanto. Se a um dado

mas antes como duas ordens diferentes (ainda

momento existe percepção sensorial, isto

que tantas vezes conflitantes). Por meio de

implica que quem percebe esteja acordado e

sua teoria e prática psicanalítica, Freud foi

não dormindo. O sono é então definido como

capaz de responder àquela velha pergunta

ausência da percepção dos sentidos. Os so-

de Aristóteles: por que às vezes lembramos

nhos – dirá Aristóteles noutra obra ligada a

de nossos sonhos, outras vezes, não?

Ocorre que nem sempre a vigilância exercida pela consciência é eficaz, e o inconsciente então irrompe, seja na forma de atos falhos, seja nos sonhos, seja na forma de comportamentos neuróticos etc. No exemplo, Hugo desejava muito ser reconhecido pela sua colega, pois nutria por ela uma paixão. Além disso, vamos dizer que algo nela lembrasse o temperamento da mãe de Hugo, cujo reconhecimento ele sempre buscou, sem jamais tê-lo recebido satisfatoriamente. O conceito de “repressão”, assim, deu a Freud uma explicação dos motivos que levam certas representações a mergulharem no inconsciente e lá permanecerem, até reaparecem sem aviso, a qualquer momento. No exemplo hipotético do semi-

nário e do ato falho envolvendo “Maria”, se Hugo fosse submeter-se a uma terapia analítica, ele possivelmente descobriria, em algum momento, por que disse o que disse no encerramento do debate. E se tornaria consciente das dificuldades que cercam as relações com sua mãe, dificuldades que fazem parte de sua história individual. Por isso, na psicanálise, a aplicação da teoria para fins de cura precisa atentar para a individualidade de cada paciente. Pense, por exemplo, no tratamento de uma doença infecciosa. O protocolo, como dizem os médicos, é essencialmente o mesmo para todos os pacientes. No caso da psicanálise, não. Pois o objetivo de tornar o paciente consciente de suas representações inconscientes

continuidade e ruptura

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A história da arte dá muitos exemplos de continuidade e ruptura, como é o caso aqui: Marcel Duchamp (1887-1968) fez sua L.H.O.O.Q baseando-se na Mona Lisa

de Leonardo da Vinci (1452-1519).

Transformação e permanência Trata-se aqui apenas de exemplos de como as noções de continuidade e ruptura podem se inserir em contextos bastante diversos de significados. A pintura, a música, a teoria heliocêntrica e a Revolução de Julho de 1830 podem ser estudados e discutidos de muitas outras maneiras. Entretanto, apesar dessa diversidade de contextos e significados, apesar da diversidade de palavras que expressam as noções de continuidade ou ruptura, estas apresentam o mesmo sentido básico: continuar o que já existe ou romper com isso e dar início a outra coisa. A pintura já existia, já tinha um passado e uma história antes de o Renascimento pretender defender sua continuidade de uma certa maneira, sem repeti-la tal e qual. Galileu, por sua vez, quis romper com o que já existia, uma teoria que já durava cerca de dois mil anos, e dar início a algo inteiramente novo. E os revolucionários pintados por Delacroix quiseram romper com o que já existia, mas para retomar a Revolu-

ção Francesa, que havia sido interrompida pela Restauração. A Revolução Francesa representava, por sua vez, uma ruptura com séculos de domínio de reis e aristocratas. Em todos esses casos, as noções de continuidade e ruptura se referem a algo que já existe ou existia, que, portanto, já tinha um certo tempo de existência. Continuidade e ruptura se referem, nesses casos e em tantos outros, a algo que se dá no tempo e que, portanto, possui um passado, um presente e... um futuro? Bem, depende se esse algo continuará a existir ou não. Mas há outro ponto em comum entre nossos exemplos iniciais. Tal artista quis defender a continuidade da pintura, um cientista quis começar algo inteiramente novo, os revolucionários quiseram, de novo, instaurar a república. Esses três exemplos mostram a atitude daqueles que participam dos acontecimentos, a atitude de quem julga, avalia e quer influenciar os acontecimentos, seja para dar continuidade a algo, seja para começar algo diferente do que havia antes.

continuidade e ruptura

Eis, de forma sistematizada e em linhas gerais, o percurso deste módulo: Os termos que expressam continuidade e ruptura são diversos e empregados em vários campos, como a arte, a ciência, a política etc., e que ganham sentidos específicos, conforme o campo da cultura que recorrem a eles. Tradicional, conservador, novo, moderno, revolucionário ou reformista são alguns desses termos.

No entanto, tais termos apresentam o sentido comum de pretender dar continuidade ou de recusar o que já existe a favor de algo diferente. Posições intermediárias são igualmente possíveis. Desse modo, continuidade e ruptura se referem geralmente a algo que já existe no tempo e implicam as noções de passado, presente e futuro. 1503-1506. Louvre, Paris

página 283 livro do professor

O MUNDO DOS SONHOS: ARISTÓTELES E A PSICANÁLISE Para compreendermos como a novidade de Freud é radical, vamos aumentar mais

ainda o contraste, regressando um momen-

unidade

Como e quando algo muda?

página 275

1919. Coleção Particular

10

livro de grande interesse e leitura agradável é: • Elisabeth Roudinesco, Jacques Lacan. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ordem e caos

Biografias: • Ernest Jones, A vida e a obra de Sigmund Freud. 3 volumes. Rio de Janeiro: Imago, 1989. • Peter Gay, Freud: uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. Estudos introdutórios: • Richard T. Simanke, “Freud ou as razões do inconsciente”, in: V. Figueiredo, Filósofos na sala de aula – vol. 2. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2007, pp. 197-228. • Richard Wollheim, As ideias de Freud. São Paulo: Cultrix, s/d. Estudos de interesse filosófico: • Betty Fuks, Freud e a cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. • Luciano Elia, O conceito de sujeito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2010. • A. Godino Cabas, O sujeito na psicanálise de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. Se você tiver interesse na obra de Jacques Lacan, talvez o mais influente renovador da teoria freudiana, um

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página 289 Na Unidade Finito e infinito (módulo: “Filosofia grega e infinito”), Livro do Professor, é apresentada de forma resumida a oposição entre Heráclito e Parmênides com relação à mudança, ao movimento e à discórdia. Para Heráclito, esses são os princípios que animam o cosmos. Já para Parmênides, são mera aparência. Aristóteles elabora uma alternativa a essa oposição: ele busca conciliar a estabilidade do princípio (que chamará o Primeiro Motor) com o reconhecimento de que o movimento e a mudança integram o universo que nos cerca. Essa solução é apresentada a seguir,

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1642), em Evangelista Torricelli (1608tante delas – são a passagem dessa potên1647), em Johannes Kepler (1571-1630). cia para uma nova situação, que o filósofo Para Aristóteles, a palavra “movimendenomina “ato”. to” (em grego, kínesis, palavra presente Uma semente vira árvore, portanto, em termos modernos, como “cinema”) porque deixa de ser uma “árvore em potênse refere a alguns tipos cia” para se tornar uma distintos de mudança, “árvore em ato”, e essas de alteração. alterações podem então Nos textos de Arisser consideradas como Em Aristóteles, tóteles, a geração de um um processo de “atualia palavra objeto, seu nascimento zação” dessa potência. “movimento” se e surgimento, seu “vir O termo “potência” a ser”, é um tipo de mo(em grego, dýnamis) refere a vários tipos vimento. A mudança significa “capacidade”, de mudança – o de lugar também o é. “poder”. A semente é “vir a ser” de um As alterações em gecapaz de se tornar árral por que passam os vore, traz em si esse objeto é um tipo de seres naturais, como poder. E quando olharmovimento. o envelhecimento, são mos para uma árvore, também movimento. E diremos, conforme o o aumento ou diminuivocabulário de Aristóção de algo também são teles, que ali está uma chamados de movimento por Aristóteles. árvore “atual”, que “atualizou” as potenVeja como o emprego da palavra é bem cialidades que continha, quando era semais amplo do que aquele que se tornou mente, para ser uma árvore. comum entre nós. De modo geral, essas distintas formas “Forma” e “matéria”, segundo de movimento, de transformação e muAristóteles dança, se articulam de forma unificada, faAo conceitualizar vários tipos distintos zendo parte de uma explicação sistemática. de mudança, Aristóteles está procurando Para Aristóteles, o deslocamento do uma saída para um impasse que seu mesfogo, para cima e não para baixo, se explica tre Platão[+] havia formulado. Para este, o conhecimento deve ser imutável, deve ser porque o “lugar natural” do fogo é o alto. sempre o mesmo. Uma pedra cai porque seu “lugar natural” Ora, justamente por isso, raciocinava é a terra. Como explicar que um ser naPlatão, o conhecimento não pode ter por tural, como uma árvore, passe por tantas objetos os seres da natureza, que estão transformações, desde sua existência inisempre mudando. Isso levou Platão, em cial como simples semente? Ou que uma alguns de seus diálogos, a afirmar que o criança recém-nascida, gerada também a conhecimento diz respeito a realidades partir de um tipo de semente, se transforque não se apresentam na natureza e que me em um indivíduo adulto? não estão sujeitas a nenhum tipo de muA resposta de Aristóteles é, basicamendança, denominando-as de “ideias” ou te, que a semente é uma árvore “em potên“formas”, que seriam seres dotados de cia”, assim como a criança é um adulto “em existência, conhecidos apenas pelo pensapotência”. No caso da semente vegetal, ela mento – sem o auxílio dos sentidos – e que traz em si algo que a torna potencialmenexistem fora da natureza, numa espécie de te uma planta, e as transformações que “lugar suprassensível” (fora do alcance da sofre – não todas, mas uma parte impor-

página 292 Por que Aristóteles considera pertinente comparar esses dois acontecimentos – um artificial, outro natural? Examine os dois trechos do autor, extraídos da Física, que comentamos a seguir. Se você julgar adequado, poderá discuti-los em aula, como item complementar à abordagem da doutrina aristotélica do movimento. Como fica claro no primeiro trecho, um importante princípio do pensamento aristotélico é que devemos conhecer partindo do que é “mais cognoscível para nós”, para chegar ao que é “mais cognoscível por natureza”. Tomar os produtos humanos, elaborados pelas técnicas e artes, como ponto de apoio para falar dos eventos naturais, é uma aplicação dessa ideia. E há, para Aristóteles, uma garantia de que esse procedimento é legítimo, porque o filósofo afirma também que “a arte imita a natureza”. Como vimos, a arte ou técnica chega a aperfeiçoar o natural. O que isso quer dizer?

livro do professor

O “movimento” segundo Aristóteles

em comparação com a posição de Platão. Mas as razões que motivam Aristóteles a assumi-la são as mesmas que o levam a formular uma refutação dos paradoxos de Zenão, apresentada na Unidade Finito e infinito. Pois Zenão pretendia mostrar o caráter paradoxal do movimento, revelando as dificuldades trazidas pela admissão de sua realidade. Aristóteles o refuta, por estar convencido de que o movimento também possui realidade, assim como o Primeiro Motor. Por conta dessas afinidades, a discussão nesta Unidade pode ganhar muito com a abordagem feita lá, e vice-versa.

continuidade e ruptura

A continuidade de uma coisa no tempo supõe que a coisa sempre seja a mesma em seu essencial, de modo que tal continuidade se apresenta como uma sequência de instantes em que ela é sempre o que era antes. A ruptura é a quebra dessa sequência e o surgimento de uma nova sequência. Por fim consideramos que, dependendo de como se define o essencial da coisa, podem surgir diversas maneiras de apresentar continuidade e ruptura. Isso se aplica tanto àqueles que participam dos acontecimentos, como também àqueles que querem apenas descrever os acontecimentos. Não pretendemos que você assuma essa breve sistematização como um conjunto de verdades incontestáveis. Trata-se apenas de alguns questionamentos de que você pode lançar mão para organizar as atividades em torno do tema Continuidade e ruptura. Nos demais módulos desta Unidade, são apresentadas diferentes abordagens dessas duas noções por parte de autores centrais da história da filosofia.

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Kartos/Dreamstime

Atentemos para o exemplo dado pelo filósofo: o exemplo da casa, um de seus preferidos para falar sobre esse tema. Afinal de contas, o que é uma casa? Como teria surgido ao homem a ideia de construir uma casa? Aqui entra o princípio de que a técnica imita ou aperfeiçoa a natureza: a casa se encontra na natureza em estado bruto, numa caverna, por exemplo, que os homens e animais se habituam a utilizar como abrigo contra tempestades, para se proteger do sol ou simplesmente descansar. A casa é um produto artificial (é importante observar que a palavra “artificial” significa literalmente algo como “feito com arte”), inspirado na caverna, mas muito mais eficiente para executar as funções desejadas pelo homem, com mais conforto etc. Assim, aquilo que é “mais cognoscível para nós” seriam os produtos da técnica, cuja elaboração é de nossa autoria, enquanto aquilo que é “mais cognoscível por natureza” seriam os seres e eventos naturais, que não são de autoria humana. Para Aristóteles, a relação entre o que é natural e a técnica é de completa harmonia, sendo o homem também um ser natural, e as técnicas não constituem produções que violentam a natureza, mas na verdade dependem dela. De modo que o argumento de Aristóteles poderia ser formulado mais ou menos assim: continuidade e ruptura

transformação de certas peças de madeira visando um objetivo previamente estabelecido – por exemplo, construir uma mesa –, a semente também inicia seu próprio processo de alteração com uma finalidade já presente nela: tornar-se árvore. Tanto na construção da mesa quanto no crescimento da árvore, há uma finalidade já definida, que vai nortear todo o processo de transformação. O carpinteiro, diante de um tronco, sabe o que deve fazer para torná-lo uma mesa, e aplica esse conhecimento no seu trabalho. E a semente se torna espontaneamente uma árvore de forma natural, sem procedimentos artificiais como os do carpinteiro. Por causa dessa doutrina, Aristóteles costuma ser considerado o fundador da teleologia natural (a palavra contém o termo télos, que significa “fim” ou “finalidade”). O termo “teleologia” significa, de modo geral, um discurso sobre os fins (do universo, da criação, da humanidade). A explicação aristotélica para o movimento e a mudança passa por uma teleologia, cujas linhas gerais foram aqui apresentadas. Eis uma das várias ideias importantes que esse pensador introduziu na filosofia.

livro do professor

“Em tudo o que há finalidade, é em vista disso que se executa o que vem antes e o que vem depois. Então, o modo como se produz algo é o mesmo em que

1. O homem, com suas técnicas, imita ou aperfeiçoa a natureza; 2. Estudando o que acontece nessas técnicas e artes, seus procedimentos e características, poderemos tirar conclusões a respeito de como se comporta a natureza; 3. Nas técnicas, como na construção de casas, por exemplo, constatamos

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que há processos de transformação de matéria orientados por uma finalidade última, que explica inclusive por que há etapas anteriores e posteriores nessa produção; 4. Podemos então concluir que algo semelhante ocorre na natureza, que seus processos de transformação contêm finalidades; 5. Há, assim, finalidade nos processos naturais de mudança e alteração. Por isso, o filósofo pôde sugerir que, se uma casa fosse um objeto natural, surgiriam inicialmente seus alicerces, para que no final aparecesse o telhado, mais ou menos como ocorre com uma árvore, cujas raízes e tronco precisam ter surgido para que os frutos possam aparecer. Em ambos os casos, trata-se daquele esquema anteriormente comentado: uma forma se atualizando em matéria. Quando um construtor de casas começa a trabalhar, o que ele faz? Para Aristóteles, ele aplica a “forma da casa”, que é uma ideia em seu intelecto, numa certa porção de matéria (madeira, tijolos etc.). Ao transformar essa matéria, que até então era apenas uma “casa em potência”, ele vai “atualizando” aquela forma que estava em sua mente, de modo que, no fim da construção, esteja ali uma “casa em ato”, um composto em que uma determinada matéria recebeu as características que a tornam uma casa. Ora, lembremo-nos da primeira passagem que lemos, na qual se diz que a semente “produz tal como os produtos da arte”: os seres naturais não precisam de um “construtor” que modifique sua matéria, eles já trazem em si esse princípio de mudança, por causa da presença da forma em potência neles. É por isso, aliás, que são naturais, e não artificiais. Para o pensamento aristotélico, a atividade do

artesão pode ser comparada aos

processos naturais de mudança e movimento.

surgem os seres naturais, e o modo como esses seres naturalmente vêm a ser é o mesmo em que se produz algo, se não houver impedimento. E se produz tendo uma finalidade; portanto, é também com uma finalidade que se dão os processos naturais. Por exemplo, se uma casa surgisse naturalmente, surgiria tal como agora é feita pela arte. Geralmente, a arte aperfeiçoa o que a natureza é incapaz de completar e a imita. Se, então, os produtos da arte têm finalidade, evidentemente também têm finalidade os seres naturais.” (Aristóteles, Física, Livro II, capítulo 8. Tradução nossa)

Aristóteles desenvolve aqui uma postura característica, de grandes consequências. Uma coisa é o ser como ocorre no mundo; outra, tendo em vista a compreensão desta, é o conhecimento que podemos alcançar. “O caminho da investigação começa naturalmente com o que é mais cognoscível e claro para nós, na direção do mais claro e cognoscível por natureza – pois não é a mesma coisa o mais cognoscível para nós e o mais cognoscível em absoluto. Por isso, é necessário partir do que é mais claro para nós, para chegar ao que é mais claro e cognoscível por natureza.” (Aristóteles, Física, Livro I, capítulo 1. Tradução nossa)

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referência: Vorlesungen über die Philosophie der Geschichte. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1970, pp. 75-76)

continuidade e ruptura

obra

filosófica

de

Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831) é enciclopédica. Hegel pre-

Alte Nationalgalerie, Berlim. Foto: Anagoria. CC-PD

A

“[...] nada de novo sob o sol”: Vale conferir, e se for o caso constrastar a este, outro tratamento filosófico/teológico da mesma passagem bíblica (Eclesiastes 1, 9), em um texto de Agostinho de Hipona: Livro do professor, Unidade Princípio e temporalidade, módulo “O tempo em Agostinho”, pp. 478-479.

da história. Tradução nossa. Edição de

página 294

Hegel Jakob Schlesinger (1792-1855). O filósofo G. F. W. Hegel, óleo sb/ tela, 1831.

infinitas e diversas que sejam, mostram apenas um ciclo que se repete sempre. Na natureza nada de novo acontece sob o sol. [...] Apenas nas transformações que ocorrem no campo espiritual sobrevém o novo. Esse fenômeno do espiritual torna visível que no homem há uma determinação diferente da que existe nas coisas meramente naturais [...], a saber, uma capacidade real de transformação, mais exatamente, um impulso para a perfectibilidade. [...] O princípio do desenvolvimento contém algo mais amplo [...]. O organismo natural produz a si mesmo: ele faz de si mesmo o que ele é em si. Igualmente, o espírito é apenas o que ele faz de si mesmo, e ele faz de si mesmo o que ele é em si. O desenvolvimento na natureza se dá de maneira imediata, sem oposição nem obstáculo. [...] No espírito, porém, tudo se passa diferentemente. [...] O desenvolvimento, que na natureza é uma produção calma, é no espírito uma luta infinita e árdua contra si mesmo. [...] Além disso, o desenvolvimento do espírito tem uma finalidade: a liberdade.” (Hegel, Preleções sobre a filosofia

Segundo Hegel, pode-se pensar as mudanças históricas de mais de uma maneira. Uma delas vê as mudanças a partir do princípio da perfectibilidade (capacidade de aperfeiçoamento); outra, a partir do princípio do desenvolvimento. Esses princípios podem ser pensados a partir de duas comparações entre a “natureza” e o que ele chama de campo espiritual ou “espírito”, que corresponde ao universo simbólico da cultura. O princípio da perfectibilidade é visto como uma maneira de explicar uma dife-

tendeu erigir um sistema

filosófico em que praticamente todo saber humano acumulado até a

sua época encontrasse

uma posição adequada: a ética, o direito, a política, a estética, a reli-

gião e toda a história do

mundo. Além disso, tentou unificar todo esse saber por meio de um método, a dialética. Para ele, a dialética não é um método dialó-

gico, como era nos filósofos antigos e medievais, mas a exposição do desenvolvimento do saber e dos objetos do saber, desenvolvimen-

to esse que se dá na forma de contradições. Atualmente, sua filosofia é retomada em grande parte por causa do seu conceito de reconhecimento recíproco, o qual é inserido na discussão sobre os movimentos sociais e sobre os conflitos culturais. Eis algumas das obras de G. W. Hegel em português:

Cursos de estética. Tradução: M. A. Werle.

São Paulo: Edusp, 2000-2005. 5 vols.

Discursos sobre a educação. Lisboa: Coli-

bri, 1994.

Enciclopédia das ciências filosóficas em

compêndio. Tradução: Paulo Meneses. São Paulo: Loyola, 1995-1997. 3 vols.

Fé e saber. Tradução: O. Tolle. São Paulo:

Hedra, 2007.

Fenomenologia do espírito. Tradução:

Paulo Meneses. Petrópolis: Vozes, 2007.

rença fundamental entre natureza e espírito: o novo. E ele explica o novo porque o homem, incluído no terreno espiritual, tem uma capacidade real de mudar, e de mudar para melhor. Haveria no homem um impulso para se aperfeiçoar, para melhorar constantemente.

página 297, Situação de aprendizagem Rousseau entende a perfectibilidade como uma faculdade do homem, tanto do indivíduo quanto da espécie, de se aperfeiçoar, e nesse sentido ela é condição para o progresso. Porém, como esse progresso significa um afastamento da ordem natural e uma tirania do homem sobre si mesmo e sobre a natureza, a perfectibilidade pode ser vista como a fonte de todos os males, especialmente por conta da divisão social do trabalho, da instituição do luxo e do supérfluo que se associam ao desenvolvimento das ciências e das artes. Condorcet, por sua vez, vê no progresso a condição para a felicidade humana e por isso avalia positivamente a perfectibilidade, já que ela promove o homem. Uma vez que é indeterminada e cumulativa, a perfectibilidade é a garantia de progresso sempre contínuo e nunca reversível, o qual só tem limites dados pela duração da Terra e das “leis gerais do sistema”. Assim, a ideia de Condorcet sobre perfectibilidade é certamente a que mais corresponde ao texto de Hegel: um progresso indefini-

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do para o melhor, explicado pela perfectibilidade. Ao recorrer a essas referências, você pode eventualmente realizar uma primeira discussão entre os alunos sobre o progresso e a perfectibilidade. Algumas questões podem orientar a discussão: os seres humanos se aperfeiçoam sempre em todas as direções, nas ciências, na ética, nas artes etc.? Os seres humanos e as sociedades atuais são melhores que as antigas? Quais são os critérios para julgar alguma melhora ou piora? Essa última questão, como você verá a seguir, é posta também por Hegel.

página 297, Situação de aprendizagem Não é difícil notar a convergência entre o significado dessas linhas de Rousseau e o tipo de crítica que Max Horkheimer e T. Adorno desferem contra a razão ocidental em: Dialética do esclarecimento, publicada originalmente em 1947 (Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985). Esta obra é mencionada em Natureza e cultura (módulo “O limite entre dois universos”). Você pode articular esses dois pontos, examinando de que modo a noção de “perfectibilidade”, apresentada por Rousseau, aproxima-se da razão instrumental, criticada por Adorno e Horkheimer.

página 298 Há vários estudos introdutórios e aprofundados acerca do pensamento kantiano publicados em português. Um livro de introdução à Crítica da razão pura é: • V. Figueiredo, Kant & Crítica da razão pura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005. Merece consulta o livro: • Gilles Deleuze, A filosofia crítica de Kant. Lisboa: Edições 70, 2012. E, como obra de apoio, não deixe de ver:

livro do professor

“Perfectibilidade” e “desenvolvimento”

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• H. Caygill, Dicionário Kant. Tradução de A. Cabral, Rio de Janeiro: Zahar, 2000. Caso você possua interesse pela reflexão jurídica, não deixe de consultar o livro introdutório: • Ricardo Terra, Kant & o direito. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. Se quiser aprofundar suas leituras, consulte a página da Sociedade Kant Brasileira, que traz informações sobre encontros, bibliografia e notícias acerca dos estudos sobre Kant no Brasil (e também fora dele): • htt p://www.socied adekant .org/ category/sociedade-kant-brasileira (acesso em 27/03/2016). Com o mesmo intuito, recomendamos também as seguintes páginas: – a da Seção Campinas da Sociedade Kant Brasileira: • http://www.kant.org.br/ e a do Centro de Investigações Kantianas (CIK), que traz excelente bibliografia sobre Kant: • http://www.cik.ufsc.br/biblioteca/ obras-de-kant/ (acesso em 27/03/2016).

Objeções à perfectibilidade É mesmo razoável defender inteiramente o princípio de perfectibilidade para entender as mudanças históricas? Ou, ao invés disso, a ideia de perfectibilidade se expõe a objeções e críticas? Note que o princípio da perfectibilidade faz da mudança uma lei, como se houvesse uma lei na história da humanidade que submete tudo à mudança para o melhor. É uma posição defensável. Porém, assumi-la gera alguns problemas, que examinaremos a seguir. Para começo de conversa, muitas mudanças ocorrem para pior, como, aliás, não deixa de observar J.-J. Rousseau[+] (1712-1778). Além disso, como saber se uma coisa é melhor ou pior que outra, se, como nos indica a experiência, a avaliação

Lebrecht/Keystone

Kant Immanuel

Kant

sobre melhoras e pioras difere muito, de acordo com a perspectiva e as circunstâncias? Voltemos a Hegel um instante. A objeção que ele faz à “perfectibilidade” reside exatamente no fato de que, a seus olhos, ela é um princípio indefinido. E para Hegel, sem definir o que é o “perfeito”, o objetivo, as mudanças acabam valendo por si mesmas, sem nenhum critério de avaliação. Desse modo, Hegel, que foi leitor de Rousseau e Condorcet, tenta resolver esse problema de falta de finalidade lançando mão do princípio de desenvolvimento. Com esse objetivo, Hegel recorre novamente a uma comparação entre natureza e espírito. Desta vez, porém, trata-se não de toda a natureza, mas apenas da natureza orgânica, isto é, do campo dos seres vivos, dos organismos biológicos. Por que essa

(1724-

Note-se que possuímos duas

1804) nasceu em Königsberg,

boas traduções brasileiras da

uma cidade importante da

Crítica da razão pura:

Prússia Oriental, à época um

Crítica da razão pura. Tra-

reinado que teve, como seu

dução: V. Rohden e U. Moos-

monarca mais famoso, Frede-

burguer. São Paulo: Abril Cul-

rico II, o Grande (1712-1786).

tural, 1983.

Kant teve uma infância rela-

Crítica

tivamente modesta e desde

gressou como professor regular em 1770. Já era

conhecido do universo cultural alemão quando

pura.

Há uma outra boa tradução de M. P. dos

publicou a Crítica da razão pura (1781), com que

Santos e A. F. Morujão, pela Fundação Calouste Gulbenkian (1994).

(1788), a Crítica da faculdade de julgar (1790) e a

continuidade e ruptura

razão

Paulo; Petrópolis; Bragança

Paulista: Vozes & Ed. Univer-

sitária São Francisco, 2012.

promoveu “a revolução copernicana em filoso-

fia”. A ela, seguiram-se a Crítica da razão prática

Metafísica dos costumes (1797), além de outras

obras que se tornaram centrais na trajetória do pensamento ocidental em áreas como o direi-

Ademais, você também pode consultar as

seguintes obras de Kant em português:

Crítica da razão prática. Tradução: V. Rohden.

São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Crítica da faculdade do juízo. Tradução: V. Ro-

to, a política, a epistemologia, a moral e a es-

hden e A. Marques. Rio de Janeiro: Tempo Brasi-

tética. Não por acaso, Kant é, nos dias de hoje,

leiro, 1993.

um dos autores mais estudados da história da

da

Tradução: F. C. Mattos. São

cedo lecionou na Universida-

de de Königsberg, onde in-

Fundamentação da metafísica dos costumes.

filosofia. Dispomos de boas traduções de suas

Tradução: G. de Almeida. São Paulo: Discurso

obras no Brasil. Eis uma relação das principais.

Editorial;Barcarolla, 2009.

livro do professor

páginas 300-301, Situação de aprendizagem

Kant considera que essa organização da natureza humana pode ser pensada como algo querido pela natureza ou por um sábio criador. Trata-se de uma ideia da razão humana e não de uma constatação de fato. A razão humana, dotada de moralidade, vê inicialmente na história apenas um cenário desalentador de caprichos, tolices, maldades e vandalismos. Porém, o filósofo pode tentar descobrir no “curso absurdo das coisas humanas”, diz Kant, “um propó-

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sito da natureza que possibilite todavia uma história segundo um determinado plano da natureza para criaturas que procedem sem um plano próprio”. Com essa ideia de um propósito da natureza, altera-se a avaliação sobre os males da história. O que aparece como imoral passa a estar ligado a um propósito oculto que, por fim, corresponde em parte aos anseios morais da razão, pois o desenvolvimento de todas as disposições naturais só será possível no interior de uma sociedade com leis justas, garantindo a máxima liberdade para todos e, com isso, permitindo o antagonismo geral de seus membros, sem que esse antagonismo leve à dissolução da sociedade. Já segundo Marx, as grandes transformações da história não podem ser compreendidas, se se atém somente à consciência que a época em transformação tem de si mesma. Essa consciência, o conhecimento, as ideias, normas e valores da época, é chamada por Marx de “ideologia”. Ela tende mais a ocultar do que expressar claramente o que realmente determina a transformação: o conflito, a contradição ou o antagonismo entre as forças produtivas e as relações de produção da sociedade. Por forças produtivas, Marx entende basicamente as forças empregadas no trabalho de produção material: a produção de alimentos, habitação, roupas, até artigos de luxo, conforme as necessidades naturais e as necessidades criadas pela sociedade em questão. As forças produtivas mais importantes são a ciência, a técnica e sobretudo o trabalho, isto é, a forma de organizar os trabalhadores com a finalidade de produzir. As relações de produção capitalista são fundamentalmente as relações de propriedade. A combinação de forças produtivas e relações de produção constitui um determinado modo de produção.

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Hegel entende que o desenvolvimento histórico tem começo, meio e fim. O fim é a realização do que estava contido no começo, só que de maneira não desenvolvida. Assim, se o princípio de perfectibilidade explica e une as mudanças pela ideia de aperfeiçoamento, formando uma série contínua, progressiva e indefinida de eventos, o princípio hegeliano de desenvolvimento explica as mudanças por meio de rupturas (conflitos e contradições) e as une como etapas de realização da finalidade, formando uma série de desenvolvimento conflituosamente contínuo, progressivo e definido.

dominar! Sem eles todas as excelentes disposições naturais da humanidade permaneceriam sem de-

parece antes que todas as forças produtivas estejam desenvolvidas, para as quais ela é mais do que

Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito

dem regulada por leis desta sociedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade

senvolvimento num sono eterno. O homem quer a concórdia, mas a natureza sabe mais o que é me-

suficiente, e relações de produção mais novas e elevadas nunca surgem em seu lugar antes que as

Hegel não foi o primeiro filósofo a ver no

dos homens, ou seja, sua tendência a entrar em sociedade que está ligada a uma oposição geral que

lhor para a espécie: ela quer a discórdia. Ele quer viver cômoda e prazerosamente, mas a natureza

condições materiais de existência destas tenham sido incubadas por si próprias no seio da velha so-

conflito um aspecto determinante do progresso histórico. Antes dele, o filósofo alemão Im-

ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Esta disposição é evidente na natureza humana. O

manuel Kant (1724-1804) já havia proposto a ideia de que, se o ser humano deve progredir continuamente e desenvolver todas as faculda-

homem tem uma inclinação para associar­se porque se sente mais como homem num tal estado, pelo desenvolvimento de suas disposições natu-

quer que ele abandone a indolência e o contentamento ocioso e lance­se ao trabalho e à fadiga, de modo a conseguir os meios que ao fim o livrem

ciedade. É por isso que a humanidade só se lança a tarefas que possa resolver, pois, a um exame mais atento, sempre se descobrirá que a tarefa só vem

inteligentemente dos últimos. Os impulsos naturais que conduzem a isto, as fontes da insociabilidade e

à tona ali onde as condições materiais de sua resolução já se encontrem presentes ou, pelo menos,

des de que foi dotado por natureza, esse progresso só pode se efetuar por um antagonismo

rais. Mas ele tem também uma forte tendência a isolar-se, porque encontra em si ao mesmo tempo

entre os indivíduos. Depois de Kant e Hegel, a ideia do antagonismo como gerador de progresso foi desenvolvida também por Karl Marx

uma qualidade insociável que o leva a querer conduzir tudo simplesmente em seu proveito, esperando oposição de todos os lados, do mesmo modo

da oposição geral, de que advêm tantos males, mas que também impelem a uma tensão renovada das forças e a um maior desenvolvimento das dispo-

sejam apreensíveis no processo de seu devir. Em linhas gerais, os modos de produção asiáticos, antigos, feudais ou burgueses modernos podem ser

sições naturais, revelam também a disposição de um criador sábio.” (Immanuel Kant, Ideia de uma

descritos como épocas progressivas da conformação social econômica. As relações de produção bur-

(1818-1883). • Faça uma pequena análise dos textos de

que sabe que está inclinado a, de sua parte, fazer oposição aos outros. Esta oposição é a que, des-

história universal de um ponto de vista cosmopolita. Tradução: Ricardo Terra e Rodrigo Naves. São Pau-

guesas são a última forma antagônica do processo de produção social, antagônica não no sentido do

Kant e Marx reproduzidos na sequência, tendo em vista principalmente o que afirmam a res-

pertando todas as forças do homem, o leva a superar sua tendência à preguiça e, movido pela busca

lo: Martins Fontes, 2004, pp. 8-9)

peito da noção de antagonismo. Em seguida, exponha em uma redação de duas páginas os pontos mais importantes para cada um desses

de projeção, pela ânsia de dominação ou pela cobiça, a proporcionar-se uma posição entre companheiros que ele não atura mas dos quais não

Agora, o trecho de Marx:

antagonismo individual, mas de um antagonismo alimentado pelas condições de vida dos indivíduos. Entretanto, as forças produtivas desenvolvidas no

autores, destacando suas diferenças. Eis o trecho de Kant:

pode prescindir. Dão­se então os primeiros verdadeiros passos que levarão da rudeza à cultura, que

“O meio de que a natureza se serve para realizar o desenvolvimento de todas as suas disposi-

consiste propriamente no valor social do homem [...]. Agradeçamos, pois, à natureza a intratabili-

ções é o antagonismo delas na sociedade, na medida em que ela se torna, ao fim, causa de uma or-

dade, a vaidade que produz a inveja competitiva, pelo sempre insatisfeito desejo de ter e também de

O antagonismo gerando progresso: Kant e Marx

mens, há contradição com aquilo que ele é segundo sua finalidade, o seu “germe”, e as tentativas de resolver essa contradição impulsionam o progresso. Assim, o conceito de desenvolvimento de Hegel apresenta as mudanças históricas como progresso para o mais perfeito, mas, ao contrário do princípio de perfectibilidade, esse progresso tem uma finalidade, um estágio último de realização da liberdade. Além disso, o desenvolvimento histórico se realiza por meio de conflitos e contradições, e não por um impulso humano para se aperfeiçoar indefinidamente.

“Assim como não se julga o que um indivíduo é a partir do que ele pensa a respeito de si mesmo,

seio da sociedade burguesa criam também as condições materiais para a solução desse antagonis-

tampouco se pode julgar uma época revolucionária como essa a partir de sua consciência, mas é preciso, ao contrário, explicá­la a partir das con-

mo. Portanto, é com essa conformação social que se encerra a pré­história da sociedade humana.” (Karl Marx, Para a crítica da economia política. Pre-

tradições da vida material, do conflito presente entre as forças produtivas sociais e as relações de

fácio. Tradução nossa. Edição de referência: Zur Kritik der politischen Ökonomie, in: Marx & Engels.

produção. Uma conformação social nunca desa-

Werke. Berlim: Dietz, 1971, vol. 13, 7ª ed., p. 9)

o antagonismo do processo social de produção. Em que sentido, então, se poderia falar em progresso? O progresso diz respeito antes de tudo ao modo de produção burguês, que cria as condições materiais para um modo de produção não antagônico (em outros contextos, Marx chama esse modo de produção de comunismo, caracterizado pela propriedade coletiva dos meios de produção). O progresso seria, então, o começo da história da sociedade humana, até então marcada pelos conflitos causados pelos modos de produção. Dessa maneira, pode-se dizer que, enquanto Kant explica o antagonismo entre os indivíduos a partir da natureza humana, Marx o pensa como um antagonismo social provocado por dois fatores determinantes relacionados ao trabalho, as forças produtivas e as relações de produção, fatores estes que se transformam a cada etapa do processo histórico. Por outro lado, pode-se dizer também que, pelas mesmas razões, a tendência ao antagonismo sempre permanece, sendo importante impedir que ele dissolva a sociedade, enquanto em Marx o antagonismo, ou pelo menos o antagonismo provocado pelas condições materiais de existência, pode acabar historicamente. Na Unidade Liberdade e necessidade, você encontra, além de uma breve biografia, referências da obra de Marx e de estudos a seu respeito.

livro do professor

por sua luta contra si mesmo, e, como diz Hegel, pela contradição interna a tudo aquilo que ainda é imperfeito, vale dizer, tudo aquilo que não realizou inteiramente a liberdade. Dessa maneira, se Hegel conclui que o desenvolvimento é um progresso que vai do imperfeito para o mais perfeito, esse progresso só se dá porque há contradição e conflito do espírito consigo mesmo. A contradição é a forma por meio da qual se realiza o progresso. Sempre que o espírito não é ainda livre, sempre que a história não apresenta a liberdade de todos os ho-

continuidade e ruptura

se desenvolver, ele pode mesmo se alienar e pode se satisfazer com algo que não corresponde à sua finalidade, a liberdade. Para usar um exemplo sempre citado por Hegel, houve povos na história que não conheceram a ideia de que todos os indivíduos são livres, mas apenas um deles (como os povos asiáticos antigos que aceitavam um déspota como governante) ou apenas alguns (exemplos disso são os gregos antigos, que admitiam a escravidão, assim como no Brasil durante quase todo o período imperial). Por isso, o desenvolvimento do espírito é marcado

continuidade e ruptura

Assim, por exemplo, o modo de produção burguês, ou capitalista, é caracterizado pela contradição entre as relações de propriedade privada dos meios de produção e o caráter coletivo da produção, em que participam o emprego constante de técnicas novas, a socialização e a especialização crescente do trabalhador no interior do sistema industrial. A burguesia detém a propriedade privada dos meios de produção, tudo aquilo que é necessário para a produção: maquinaria, terra, matéria-prima etc. O trabalhador, por sua vez, é um proletário, ele detém apenas sua força de trabalho, as energias de seu próprio corpo, como propriedade sua, e precisa vendê-la para o burguês em troca de salário. Convém observar aos alunos que, em outros textos de Marx, o antagonismo entre forças produtivas e relações de produção se vincula também a um antagonismo ou luta entre as classes sociais. No caso do capitalismo, entre a burguesia e o proletariado. A razão de ser dessa luta é justamente a propriedade privada dos meios de produção, a qual, segundo Marx, cria uma massa crescente de proletários que são cada vez mais explorados pela burguesia. Cabe observar ainda que, de acordo com esse pensador, as relações de produção são o elemento conservador do processo histórico, enquanto as forças produtivas constituem o elemento inovador, o qual provoca a revolução social. Mas uma revolução só surge de maneira eficaz se as forças produtivas correspondentes estão suficientemente desenvolvidas. Dessa maneira, cada modo de produção desenvolve dentro de si mesmo as condições de surgimento de um novo modo de produção. O novo é criado a partir do velho. Nesse texto, Marx lista uma série de modos de produção, porém ele sublinha que todos eles têm em comum

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página 304 O módulo apresenta a interpretação feita por Thomas Kuhn da ciência moderna e de sua teoria partindo de uma comparação inicial com o âmbito das artes plásticas. Nas artes, é possível perceber um entendimento geral, segundo o qual o gosto artístico altera-se no curso do tempo. E não apenas o gosto artístico: escolhemos como exemplo duas obras que retratam figuras femininas, para chamar a atenção para o fato de que o gosto concerne aos padrões de beleza, que também se modificam. À época do Renascimento, o ideal de beleza feminina era muito diverso daquele da época de Marilyn Monroe, nos anos 1960. Esse é um processo de permanente mudança. Da época de Marilyn Monroe para os dias de hoje, a moda, o gosto e os ideais de beleza já se modificaram. Mas isso valeria também para a ciência? Essa é a questão que a comparação com o gosto explora de forma provocativa. Pois a compreensão corrente continuidade e ruptura

que é certo ou errado, verdadeiro ou falso. A rigor, portanto, verdade e falsidade não existem. Existem apenas diferentes modos de julgar se uma determinada afirmação é verdadeira ou é falsa, e nenhum desses modos é melhor ou superior aos outros.”

livro do professor

11

E agora? Você acha que esta opinião é tão razoável quanto a que examinamos há pouco, sobre o gosto? Será que as coisas, na ciência, se passam mais ou menos da mesma forma que na arte? Ou será que os padrões daquilo que é verdadeiro ou falso são universais e válidos para toda e qualquer época? Ao contrário do que acontece no caso dos valores estéticos, a maioria das pessoas tende a pensar que, quando o assunto é ciência, os padrões são absolutos. Ouvimos coisas do tipo: “Ptolomeu achava que a Terra estava parada no centro do universo, e que o Sol se movia ao redor dela. Copérnico afirmava o oposto: a Terra gira ao redor do Sol, e não o contrário. Ptolomeu certamente achava que estava correto, mas estava errado. Numa discussão com um cientista moderno, ele certamente levaria a pior”. Será mesmo? Um filósofo estadunidense chamado Thomas Kuhn (19221996) diria que não. Em 1962, ele publicou um livro chamado A estrutura das revoluções científicas, que procurava mostrar que a história da ciência não é tão diferente assim da história da arte, e que a noção de progresso científico, na medida em que é sustentável, tem que ser submetida a uma profunda revisão. Um dos casos que ele analisou é exatamente esse que acabamos de citar: o da astronomia copernicana em oposição à astronomia ptolomaica. Todos os dias vemos o Sol nascer num determinado ponto do horizonte, traçar uma curva no céu ao longo do dia e se pôr no outro lado daquele em que nasceu. O que vemos, portanto, é o Sol

Kuhn

Thomas

Kuhn

(1922-

1996) nasceu em Cincinnati,

EUA.

Lecionou

na

Universidade de Princeton e no MIT (Massachusetts

Institute of Technology). É

reconhecido como um dos precursores da teoria do conhecimento e da episte-

mologia contemporâneas.

Sua obra modificou signifi-

cativamente o modo como concebemos a produção e os rumos da ciência.

Obras publicadas em língua portuguesa: A estrutura das revoluções científicas. Tradução: B. V. Boeira e N. Boeira. São Paulo: Perspectiva, 2006.

A revolução copernicana. Lisboa: Edições 70, 1990.

O caminho desde a estrutura. Tradução: C. Mortari. São Paulo: Editora da Unesp, 2006.

girando em torno da Terra, e não a Terra girando em torno do Sol. Além disso, a Terra parece estar realmente parada. Em seu livro Almagesto, Ptolomeu (90168) propõe que façamos um teste. Se você não acredita que a Terra esteja parada, ele dizia, basta ir até uma muralha, ficar de frente para ela e dar um pulo. Se a Terra estiver se movendo a muralha deve vir de encontro ao nosso nariz. Se não vier, é porque está parada. Como resistir a um argumento como esse? Na verdade, a teoria de Ptolomeu encontrava algumas dificuldades – algumas “anomalias” de que não conseguia dar conta. A principal delas dizia respeito ao movimento dos planetas. Se observarmos o céu todas as noites a uma determinada hora (digamos, à meia-noite) e anotarmos a posição em que está o planeta Marte, ou o planeta Júpiter, ao final de um ano nós teremos uma surpresa. Ao contrário do Sol e das estrelas, que têm um movimento ra-

unidade

princípio e temporalidade A diferença entre fundamento e início página 315

afirma que a ciência é um campo no qual os conhecimentos vão se somando uns aos outros, de modo cumulativo: os erros vão sendo corrigidos, os acertos permanecem e se juntam a novas descobertas. A originalidade da concepção de Thomas Kuhn está em contrariar essa noção corrente do progresso e do aprimoramento científico. Conforme Kuhn, a ciência é muito mais próxima do fenômeno do gosto do que estaríamos dispostos a crer de partida. Pois os conceitos que definem o que é válido cientificamente, assim como os conceitos utilizados para definir os fenômenos, variam de período a período. É por isso que Kuhn afirma que a concepção que os antigos possuíam do movimento, por exemplo, é irredutível àquela que foi formada no curso da revolução científica do século XVII. Kuhn designa o quadro teórico-conceitual que orienta a ciência de uma época determinada de “paradigma”. E conclui que, entre paradigmas diversos, não há medida possível para afirmar que houve “progresso”. Trata-se, a seu ver, de outra forma de ver o mundo. Bill Pierce/Time Life Pictures/Getty Images

As revoluções científicas

Investigamos a diferença entre o conceito de origem ou princípio e a noção de começo ou momento inscrito na ordem do tempo a partir da análise de três textos. Dois foram extraídos do Antigo

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Testamento, um da obra de Euclides da Cunha sobre a história de Canudos. O uso das palavras, como vimos, admite sentidos diferentes. É assim que, no texto sobre Canudos, “princípio” significa um instante no curso do tempo – o começo da viagem que conduziu muitos indivíduos a Antonio Conselheiro. Na primeira oração do livro do “Gênesis”, a palavra princípio também significa início temporal, auto-

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1. Primeiro, vimos que a palavra “princĂ­pioâ€? possui ao menos dois significados bem distintos: a. “princĂ­pioâ€? = “começoâ€?, “inĂ­cioâ€?. b. “princĂ­pioâ€? = “origemâ€?, “fundamentoâ€?, “causaâ€?. 2. Segundo, que hĂĄ um sentido explĂ­cito e outro implĂ­cito nos textos. Vejamos o trecho citado do “GĂŞnesisâ€?. Embora a palavra “princĂ­pioâ€? apareça na primeira oração como sinĂ´nimo de “começoâ€?, a continuação do passo e sua leitura em conjunto com a citação de “Hebreusâ€? revela que a BĂ­blia atribui Ă palavra divina o estatuto de princĂ­pio do mundo, entendido como sua “origemâ€?, sua “causaâ€? ou “razĂŁo de serâ€?. O mesmo texto de “GĂŞnesisâ€?, portanto, abriga

O princípio da explicação nos estudos de História

desse modo, vocĂŞ estarĂĄ apresentando princĂ­pios explicativos para um fenĂ´me-

Realize em bibliotecas ou na internet pesquisa acerca da histĂłria de Antonio

Conselheiro (1830-1897) e da comunidade liderada por ele, Canudos (BA), que foi duramente atacada pelo exĂŠrcito brasileiro no episĂłdio que se tornou conhecido

como a “Guerra de Canudos� (1896-1897).

no histĂłrico, o que ĂŠ bem diferente de contentar-se em localizĂĄ-lo na ordem dos acontecimentos (cronologia). A explicação da origem de um fenĂ´meno remete ao princĂ­pio de algo, que podemos diferenciar do seu começo no tempo. • Compare, em aula, as razĂľes levanta-

• Após enumerar os principais acon-

das em sua pesquisa para o surgimento de Canudos com as razĂľes pesquisadas

tecimentos que cercam esse episĂłdio, redija um texto de uma ou duas pĂĄginas relacionando as principais razĂľes ou cau-

pelos seus colegas. Note que, embora os historiadores concordem com a datação da maior parte dos acontecimentos que

sas que, segundo os historiadores, explicam a origem da comunidade liderada

cercam Canudos, eles costumam divergir bastante sobre as causas ou princĂ­-

por Antonio Conselheiro. Observe que,

pios que explicam sua existĂŞncia.

princĂ­pio e temporalidade

Desenvolvimento individual por escrito e debate em sala de aula

Urostom/Shutterstock

pågina 316 Na Unidade Espírito e letra aborda-se esse mesmo problema relativo à interpretação de um texto por leitores que partem de perspectivas diversas. Com esse intuito, são comparadas duas traduçþes brasileiras de aproximadamente dez versos da

O tema do princĂ­pio e da origem, como indica o passo examinado de Hebreus, articula-se

com a oposição entre realidade e aparência.

o significado de “princĂ­pioâ€? = “começoâ€? (sentido explĂ­cito) e de “princĂ­pioâ€? = “origemâ€? (sentido implĂ­cito). Esse segundo significado torna-se apreensĂ­vel tanto pela referĂŞncia Ă criação, que naturalmente requer um princĂ­pio, quanto pela oração intermediĂĄria, em que se lĂŞ:

buscando identificar o sentido das palavras nele empregadas, sempre o faz de uma perspectiva particular, de um ponto de vista determinado. O mesmo texto pode evocar ideias diferentes para seus diferentes leitores, a depender da perspectiva adotada. DaĂ­ porque a anĂĄlise, por mais criteriosa que seja, sempre possui um viĂŠs, jamais ĂŠ completamente neutra. A anĂĄlise jĂĄ traz consigo uma interpretação. Isso tambĂŠm explica por que o sentido que damos por meio das palavras Ă s coisas que nos cercam pode ser revisto, questionado e atravessado por novas indagaçþes. Sob esse aspecto, deter-se sobre as ideias e noçþes presentes nos discursos – polĂ­ticos, ĂŠticos, estĂŠticos e cientĂ­ficos – ĂŠ uma maneira de se posicionar diante do senso comum, como tambĂŠm das ideias legadas pela tradição a que pertencemos.

princĂ­pio e temporalidade

“E disse Deus: Haja luz; e houve luz.�

Embora aĂ­ nĂŁo apareça a palavra “princĂ­pioâ€?, percebe-se a presença do seu significado como “origemâ€?, “causaâ€? da luz: bastou que Deus dissesse “haja luzâ€?, para que o mundo se iluminasse. 3. A terceira conclusĂŁo ĂŠ mais geral e diz respeito aos textos, aos discursos, Ă s palavras. Visto que as palavras abrigam mais de um significado, a compreensĂŁo de uma frase, de um texto ou de um discurso exige anĂĄlise para que se esclareçam os sentidos em que elas sĂŁo empregadas. Nem sempre a anĂĄlise conduz a uma resposta exata e definitiva, e isso por duas razĂľes. Primeiro, porque as palavras nem sempre admitem ser tratadas como corpos a serem dissecados pelos leitores; uma anĂĄlise de texto nĂŁo ĂŠ apenas uma anatomia da linguagem. Em segundo lugar, hĂĄ o fato de que quem realiza a anĂĄlise de um discurso,

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Uma parĂĄfrase de ‘GĂŞnesis’

AnĂĄlise de texto e desenvolvimento individual por escrito

• Procure reescrever o texto citado

do “GĂŞnesisâ€? com as suas prĂłprias palavras. VocĂŞ realizarĂĄ, assim, um exercĂ­cio de parĂĄfrase de texto. Busque marcar bem, pela escolha dos termos, a diferença existente entre os dois sig-

nificados da palavra “princĂ­pioâ€?. • Pesquise diferentes concepçþes

sobre a criação do universo. Dicas: hinduísmo, Corão, Antiguidade greco-romana etc. Produza um breve texto (entre um e três parågrafos) comentando se estas apresentam ou não o mesmo tipo de

ambiguidade entre “princĂ­pioâ€? e “inĂ­cioâ€? que observamos no “GĂŞnesisâ€?.

IlĂ­ada de Homero (ver mĂłdulo “Traduzir e interpretarâ€?), uma feita por Odorico Mendes (1799-1864), outra por Haroldo de Campos (1929-2003). Nos mĂłdulos “Traduzir e interpretarâ€? e “QuestĂľes de interpretaçãoâ€? sĂŁo expostas as ideias de F. Schleiermacher (1768-1834), F. Nietzsche (1844-1900), M. Heidegger (18891976) e H.-G. Gadamer (1900-2002) sobre questĂľes acerca das prĂĄticas do traduzir e do interpretar e, de maneira mais ampla, acerca do que se tornou conhecido como “hermenĂŞuticaâ€?.

PlatĂŁo e o tempo pĂĄgina 318 VocĂŞ pode se apoiar nas anĂĄlises realizadas na Unidade Realidade e aparĂŞncia (mĂłdulo: “Ser e parecer justoâ€?) a fim de aprofundar e enriquecer o debate em torno do platonismo. Naquele mĂłdulo, parte do Livro II de A repĂşblica ĂŠ discutida com o intuito de apresentar as dificuldades ligadas ao par “realidadeâ€? e “aparĂŞnciaâ€? em ĂŠtica. Glauco, interlocutor de SĂłcrates no diĂĄlogo de PlatĂŁo, apresenta a tese de que ser justo e nĂŁo parecĂŞ-lo ĂŠ pior do que ser injusto e parecer justo. A refutação que SĂłcrates efetua dessa tese ocupa todo o restante de A repĂşblica, inclusive o Livro VII, que se inicia pela alegoria da caverna, de que nos ocupamos aqui. Logo, PlatĂŁo concebeu uma articulação clara entre os problemas que estamos apresentando em duas Unidades diferentes, por conta da diferença de ĂŞnfase que caracteriza cada parte do livro que vocĂŞ tem em mĂŁos. Assim, embora pelos motivos apresentados a alegoria da caverna constitua O significado de “alegoriaâ€?

“Alegoriaâ€? ĂŠ uma figura de lin-

ligadas ao tema que ĂŠ apresenta-

guagem que apresenta uma coi-

do no desfile por aquela escola de

sa para fornecer a ideia de outra.

samba. No caso que nos interessa

Quem jĂĄ viu ao vivo ou na televisĂŁo

discutir aqui, platĂŁo se serve de

um desfile de carnaval pode for-

uma alegoria ou mito para expli-

mar uma ideia de como isso fun-

car como SĂłcrates, o personagem

ciona: as “alegorias� das escolas

principal de A repĂşblica, compreen-

são figuras concretas, que exprimem ideias ou concepçþes gerais,

visĂŁo estivesse fraca e antes que seus olhos estivessem bem – e esse tempo de acomodação seria muito curto –, serĂĄ que nĂŁo seria motivo de riso? NĂŁo diriam dele que, tendo ido lĂĄ para cima, tinha voltado com os olhos lesados e que nĂŁo valia a pena nem mesmo tentar ir lĂĄ? E a quem tentasse libertĂĄ-los e conduzi-los lĂĄ para cima, se de alguma forma pudessem segurĂĄ-lo com suas mĂŁos e matĂĄ-lo, eles nĂŁo o matariam?â€? (PlatĂŁo, A repĂşblica, Livro VII, 516e-517a. Tradução: Anna Lia Amaral de Almeida Prado. SĂŁo Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 270)

Hå inúmeros sentidos nessa famosa alegoria inventada por Platão. Um deles, talvez o mais óbvio, tem a ver com o par realidade e aparência, que discutimos em outra Unidade deste livro. Pois a alegoria da caverna Ê, em primeiro lugar, uma alegoria sobre a confusão entre o real e o aparente. O protagonista da história, o homem que escapa da caverna, descobre que o que acreditara atÊ ali ser real era aparente. Tenta convencer disso seus companheiros, sem ter sucesso. Aprendemos, pela continuação do texto, que o homem que saiu da caverna representa o filósofo. Ou seja, a alegoria da caverna fala tanto da relação do filósofo

de o papel do filósofo e sua relação com aqueles que o cercam.

com o saber, quanto da relação do saber filosófico com a opinião comum, que anima as convicçþes da maior parte dos homens. Conforme a alegoria, Ê por ter descoberto a verdade e graças ao fato de que esta verdade se choca com o que pensa a maioria das pessoas, que o filósofo corre o risco de terminar sendo excluído da vida comum. Segundo Platão, a maior parte da humanidade se habituou a viver na ignorância da verdade e, por isso, se recusa a crer no que tem a lhe dizer o filósofo. O temporal como domínio do erro Como observamos, porÊm, hå outros sentidos alÊm desse, presentes na alegoria da caverna e no contexto que a cerca. A imagem do sol que tudo ilumina Ê utilizada por Platão como uma metåfora do princípio que torna compreensível toda a realidade, alÊm de tornå-la existente. Esse princípio, diz Sócrates, Ê a ideia do bem. Por isso, a alegoria da caverna tambÊm admite ser lida e discutida a partir da distinção entre princípio e temporalidade. Numa passagem da mesma obra, situada um pouco antes da apresentação da alegoria da caverna, Platão pþe em destaque essa noção de princípio. Leia o trecho abaixo, no qual Sócrates dialoga com Glauco. O narrador Ê o próprio Sócrates:

livro do professor

palavra divinas são a origem, o princípio do mundo. Vamos sistematizar essas consideraçþes?

princĂ­pio e temporalidade

rizando-nos a parafrasear o texto assim: “No inĂ­cio, Deus criou os cĂŠus e a terraâ€?. Entretanto, vimos tambĂŠm que um texto pode conter significados implĂ­citos, cuja identificação requer uma anĂĄlise de conjunto. Considerando a passagem do livro do “GĂŞnesisâ€? em sua totalidade, identificamos aĂ­ o conceito ou ideia de princĂ­pio, ainda que o termo “princĂ­pioâ€? nĂŁo ocorra nele, senĂŁo na primeira oração, com o significado de “inĂ­cioâ€?. O texto relata a criação do mundo e nos diz que a luz surgiu quando Deus disse: “haja luzâ€?. Ou seja, a palavra divina ĂŠ o princĂ­pio da luz, aquilo a que a luz deve sua existĂŞncia. “PrincĂ­pioâ€?, nesta acepção, difere de um acontecimento ou momento no tempo; ĂŠ a origem de algo, e nĂŁo o momento em que algo ocorre no tempo. Como explorado tambĂŠm nos demais mĂłdulos desta Unidade, a ideia de que o princĂ­pio das existĂŞncias temporais ĂŠ em si mesmo atemporal (situado fora do tempo) nĂŁo ĂŠ defendida apenas pela BĂ­blia. TambĂŠm a encontramos, embora sob uma forma diferente, na GrĂŠcia antiga, solo no qual o pensamento filosĂłfico ocidental tem sua origem e seu inĂ­cio.

pelo Deus judaico-cristĂŁo. Os dois textos dizem a razĂŁo dessa criação: segundo a BĂ­blia, foi porque Deus quis, que o mundo passou a existir. Foi atravĂŠs de suas palavras que o mundo ganhou existĂŞncia. Conforme a anĂĄlise global dos dois passos citados acima, portanto, podemos concluir que a BĂ­blia afirma que a razĂŁo de ser do mundo reside na palavra divina. DaĂ­ ela ser considerada, na concepção judaico-cristĂŁ, princĂ­pio do mundo. JĂĄ o texto sobre Canudos extraĂ­do de Os sertĂľes nĂŁo contĂŠm nada de semelhante a esse significado de “princĂ­pioâ€?. Euclides da Cunha afirma apenas que agrupamentos de indivĂ­duos, que inicialmente estavam isolados, se encontravam a caminho de Canudos, e terminavam chegando lĂĄ juntos. NĂŁo hĂĄ nenhuma explicação sobre a “causaâ€? ou “princĂ­pioâ€? que levou Ă formação de Canudos, diferentemente do que vimos acontecer na BĂ­blia, que sustenta que a vontade e a

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Você pode assinalar aos estudantes este aspecto, ressaltando que as diversas filosofias testemunhadas pela história do pensamento resultam de escolhas desse tipo. É, aliás, porque todo grande pensador tem de fazer escolhas e tomar decisões conceituais que o conjunto das vertentes filosóficas é tão interessante e diverso. Uma ideia, se você desejar seguir por esta direção, é solicitar aos estudantes, na ocasião da análise do texto acima citado, que identifiquem o ponto no qual Platão articula estes dois eixos distintos: aquele do par realidade e aparência (aqui: “luz” × “sombra”) e aquele outro, o do par princípio e temporalidade. A situação de aprendizagem: “O tempo: um obstáculo ao conhecimento da verdade?” já segue nessa direção, de modo que você pode aprofundar, com base nela, a discussão sobre o aspecto abordado agora: o das escolhas efetuadas por um grande filósofo. Como dissemos, esta articulação é, no limite, arbitrária: repousa sobre uma escolha do autor, Platão, de quem Sócrates é, aqui, o porta-voz. Suas implicações, não obs-

O tempo: obstáculo ao conhecimento da verdade?

livro do professor

princípio e temporalidade

Análise de texto e desenvolvimento individual por escrito

Procuremos compreender melhor o que exatamente Sócrates contrapõe à luz e ao saber. Releia o texto reproduzido à página 319 e identifique os elementos que Sócrates associa à “escuridão” e à “falta de clareza”. Note que encontraremos a questão dessa Unidade, o par princípio e temporalidade, sob a forma de uma oposição entre esses conceitos. De fato, a primeira coisa mencionada nessa direção são as “centelhas noturnas”. Contemplá-las é quase não enxergar nada, posto que a luz está ausente. Mas, logo em seguida, ao passar para a analogia do “ver” com o “conhecer”, Sócrates afirma que, na ausência da luz (quando a alma se apoia “em algo que se mistura com a escuridão”), nossa visão se embaça e se turva. Como a visão é a metáfora do conhecimento, isso significa que, na falta de luz, nosso saber se torna

Juntamente com isso, o texto acrescenta outro elemento, que também é imediatamente associado à ausência de luz e à deficiência do conhecimento: “aquilo que vem a ser e perece”… Ora, tudo aquilo que “vem a ser e perece” pertence à ordem temporal, situa-se sob o regime da temporalidade. Logo, podemos afirmar sem hesitação que, nessa passagem de A república, o Sócrates de Platão interpreta a temporalidade como fator que nos afasta do conhecimento da verdade. • Em um texto de aproximadamente uma página, procure relacionar quais motivos poderiam ter levado Platão a associar o que transcorre no tempo com o erro. Lembre-se de que você pode apresentar razões que expliquem a posição de Sócrates sem, para fazê-lo, ter de concordar com essas razões. Por isso, se entender oportuno, após apresentar aquelas que poderiam ser as razões que motivam Sócrates a dizer o que diz, redija também um parágrafo expondo seu próprio ponto de vista sobre o assun-

instável, cambiante. Como diz o texto, va-

to. Guie-se pela questão: o tempo é neces-

mos mudando de opinião “numa e noutra direção”.

sariamente um obstáculo para o conhecimento, ou seria sua condição?

organismos, virem a ser e perecerem? Vir a ser, transformar-se, perecer são processos orgânicos que transcorrem tanto no clarão da luz, quanto na escuridão. Por que, então, o Sócrates posto em cena por Platão associa o “vir a ser e o perecer”, dimensões da temporalidade, apenas à sombra e à escuridão? Pense nisto: o que significa afirmar, como aqui faz luz, Sócrates, que “o que vem a sol ser e perece” mistura-se com a “escuridão”? A não ser que sombras, Sócrates associe a ausência escuridão de luz e a falta de clareza no

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conhecimento a tudo o que transcorre no tempo? Sim, no tempo: afinal, “o que vem a ser e perece” é o que está submetido à ação do tempo, é o que se situa no regime da temporalidade. Logo, o conjunto do passo de A república que estamos discutindo admite ser analisado conforme duas linhas em oposição, conforme este diagrama:

contemplação da ideia do bem

inteligência, conhecimento

princípio do conhecimento e do ser

ignorância sobre a ideia do bem

opinião cambiante

temporalidade, o que vem a ser e perece

O tempo em Agostinho página 321 Para melhor compreender a interação encontrada em alguns importantes pensadores cristãos, é de interesse um exame comparativo entre duas interpretações do conceito de princípio: a do Antigo Testamento e a de Platão. Você encontra subsídios para isso também no primeiro módulo desta Unidade (“A diferença entre fundamento e início”). – Em certos casos, os termos “princípio”, “início” e “começo”, podem ser usados como sinônimos. Ainda assim, é preciso compreender a diferença que eles exprimem. Ela corresponde à diferença entre a origem de algo, seu fundamento (o princípio), de um lado; e, de outro, um instante na ordem temporal (seja ou não o início). Mediante uma análise de trechos extraídos de A república, de Platão, observa-se que para Platão a ideia do bem é o princípio de realidade e inteligibilidade de todas as coisas. Além disso, a ideia do bem se situa fora do regime temporal (associado por Platão à “escuridão”). Aí está: em Platão, a ideia do bem, embora seja atemporal, é o princípio de tudo, até mesmo das coisas que transcorrem ao redor de nós e que se encontram submetidas a mudanças (como, de resto, nós mesmos). Se quisermos, podemos sistematizar assim os resultados de nossa análise do trecho de Platão: o princípio do conhecimento da realidade, já o sabemos, é a ideia do bem. Como a luz do sol que, no mundo físico, torna as coisas visíveis, a ideia do bem torna as coisas inteligíveis (por referência a ela, podemos conhecer a realidade, para além das aparências). Platão considera estável esse princípio: ele não oscila, como oscilam as nossas opiniões. Toda vez que a alma se distancia desse princípio estável (a ideia do bem) e faz recurso “a algo que se mistura com a

escuridão”, termina por se assemelhar “a alguém que não tem inteligência”. Em terceiro lugar, vimos que esta instabilidade da opinião, característica da ignorância e da escuridão, associa-se com o que transcorre no tempo. O texto o afirma, sem, contudo, fornecer maiores explicações a respeito. Deixe de lado, por um instante, a questão de saber se você assinaria ou não embaixo dessa tese. Tomando-a tal e qual, note que ela implica o seguinte: o princípio do conhecimento deve estar fora do regime do tempo – ou seja, deve ser atemporal.

O tempo em Agostinho

A difusão do cristianismo no Ocidente provocou grandes mudanças nos rumos de sua história. No plano do pensamento filosófico, isso também é perceptível. Entretanto, existem muitos pontos de contato entre doutrina cristã e certas concepções da filosofia antiga, particularmente aquelas que se desenvolveram a partir da obra de Platão[+] (428/7-348/7 a.C.). Adotando uma perspectiva comparativa, o que poderíamos apontar como semelhanças e diferenças entre o platonismo e a concepção judaico-cristã sobre a origem do mundo? Para Platão, o princípio de inteligibilidade e realidade se situa em um plano atemporal. Mas isso não quer dizer que esse princípio não atue sobre as coisas temporais. Pelo contrário: tudo o que ocorre no curso do tempo tem seu princípio de realidade e de inteligibilidade no reino das ideias e, especialmente, na ideia do bem. Há aqui um ponto de convergência: platonismo e cristianismo instituem, cada qual a seu modo, uma diferença entre eternidade e temporalidade. O princípio dos seres temporais se situa fora do tempo; logo, é eterno. Essa convergência, aliás, foi o que favoreceu a assimilação da filosofia platônica pelos primeiros pensadores do cristianis-

Orígenes de Alexandria é um dos primeiros teólogos a formular a doutrina

Anônimo (c.1800). Dicionário histórico Crabbes. 1825. Coleção particular

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tante, são inúmeras e profundas, tanto para a filosofia de Platão, quanto de seu legado na história do pensamento ocidental. Associar “temporalidade” e “ilusão” é, para dizer o mínimo, sugerir que a verdade transcende o plano temporal. Por outras palavras, é sugerir que a verdade se situa no âmbito da eternidade.

cristã. Foi fortemente influenciado pelo platonismo.

mo. Do ponto de vista da história do cristianismo, a assimilação de elementos da doutrina platônica das ideias foi precoce, sendo atestada pelos pensadores cristãos dos primeiros séculos de nossa era. É o que observamos, por exemplo, nas obras de Justino (início do século II); de Clemente de Alexandria (c. 150-215); e de Orígenes de Alexandria (c. 185-c. 255).

princípio e temporalidade

excelente ocasião para discutir a oposição entre realidade e aparência, no contexto da presente Unidade é sublinhado outro aspecto, geralmente deixado em segundo plano: o fato de que, como assinalamos adiante, Platão assimila as coisas temporais e o próprio tempo àquilo que é aparente, derivado e secundário em relação às “ideias” ou “formas”, dentre as quais se destaca a ideia ou forma do bem.

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página 322, Situação de aprendizagem A obra de P. Boehner e E. Gilson, A história da filosofia cristã (tradução: Raimundo Vier. Petrópolis: Vozes, 1970) constitui instrumento de grande valia, caso você deseje aprofundar os aspectos desta assimilação do platonismo pelos primeiros padres da Igreja católica. P. Boehner e E. Gilson também sublinham as semelhanças, sem deixar de apontar também as diferenças, entre as posições de Platão e Aristóteles, de um lado, e os dogmas do Antigo Testamento, de outro. Grosso modo, pode-se dizer que as semelhanças residem na admissão, por Platão e Aristóteles, de um ser supremo (respectivamente, a ideia do bem; o primeiro motor imóvel). A grande diferença reside em que nem uma, nem outra dessas noções corresponde exatamente àquela de um Deus pessoal, que, por sua vez, se encontra articulada com o conceito judaico-cristão de criação. De fato, há pontos de contato importantes entre o platonismo e o cristianismo. Isso, claro, não deve nos fazer perder de vista as diferenças que subsistem entre eles. Uma dessas diferenças, talvez a mais importante, reside em que o cristianismo atribui uma significação central para a criação do mundo por Deus e para a vinda do messias na pessoa de Jesus. A primeira dessas ideias, a de criação, chega a surgir na obra platônica (no diálogo intitulado Timeu), mas sem que Platão tenha dispensado a ela uma abordagem rigorosa. A segunda ideia, a da remissão dos pecados humanos pela vinda de Jesus, não encontra correspondente algum no texto platônico.

Isso é o que explica por que certas noções fundamentais da filosofia e do pensamento grego, presentes no platonismo, permaneceram tendo grande prestígio à medida que se expandia o cristianismo – o qual, por sua vez, teve um papel central nos rumos históricos e simbólicos do Ocidente. Contudo, tais tendências de pensamento também guardam as suas divergências. E a diferença entre o pensamento grego, que encontra em Platão um de seus expoentes, e, de outro lado, a religião cristã, pode ser assinalada nos textos. Sua leitura permite identificar os pontos de aproximação e de distanciamento entre o Deus bíblico e a ideia do bem concebida por Platão. Vejamos, com este intuito, o que diz um dos mais importantes pensadores do cristianismo, Aurélio Agostinho, bispo de Hipona, conhecido como Santo Agostinho.

Se há semelhanças, há também diferenças importantes entre essas duas concepções tão importantes para o pensamento ocidental. Note que os elementos que diferenciam o cristianismo em relação à filosofia de Platão exprimem uma diferença mais ampla, entre os pensamentos da filosofia grega e da religião cristã, em torno de questões decisivas para a discussão desta Unidade. Como observa o historiador da filosofia francês Émile Bréhier (1876-1952), muitos estudiosos assinalaram que o cristianismo representou uma revolução mental diante das concepções gregas, especialmente porque “o Cosmos dos gregos é um mundo, por assim dizer, sem história, uma ordem eterna, na qual o tempo não possui qualquer eficácia” (Émile Bréhier, Histoire de la philosophie – L’antiquité et le le moyen age. Paris: PUF, 1948, p. 490. Tradução nossa). Assumir a “eficácia do tempo” de que fala E. Bréhier implica admitir e reforçar a ideia de que existem mudanças radicais, iniciativas absolutas, “rupturas”, “invenção”, “progresso” – noções que são muito familiares a nós, mas alheias às filosofias da antiga Grécia. Por aí já se vê que a ideia cristã de “história” representa uma contribuição original da concepção cristã à filosofia. Isso decorre do fato de que a divindade cristã, princípio e origem de tudo, se interessa de perto por sua criação. O Deus cristão, ao contrário da ideia platônica do bem ou do “motor imóvel” de Aristóteles, não é impassível e indiferente diante do que se passa no plano temporal. Ao contrário: o Deus cristão não apenas criou o mundo, como enviou seu filho a ele para redimir a humanidade do pecado. Dado que, para o cristianismo, o criador do mundo se interessa pelo que decorre nele, a história

No trecho escolhido para análise, Agostinho interpreta o livro de “Gênesis”, mencionado em outro módulo desta Unidade. Repare, ao longo da leitura, como há elementos comuns e elementos heterogêneos em relação à posição platônica: “E assim, senhor – tu que não és às vezes uma coisa e outras vezes algo diferente, mas este mesmo, o mesmo e o mesmo: santo, santo, santo, Deus onipotente –, no princípio, isto é, de ti, em tua sabedoria nascida de tua substância, foste tu que fizeste algo, e o fizeste a partir do nada. Com efeito, fizeste céu e terra; não extraídos de ti, porque não há nada que seja igual ao teu filho único, portanto igual a ti. Não se admite de modo algum que algo seja igual a ti se não é feito de ti. E não havia outra coisa antes de ti da qual o terias feito, Deus, una trindade e tripla unidade:

Eternidade e mortalidade

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Observe que, ao menos sob o aspecto analisado aqui, o platonismo se aproxima não apenas do cristianismo, como também das outras duas grandes religiões monoteístas – o judaísmo e o islamismo. O ponto comum reside neste elemento que acabamos de comentar: a ideia de que é legítimo e mesmo necessário diferenciar eternidade e temporalidade. Essa diferenciação é a premissa sem a qual não se pode discernir dois tipos de ser ou duas formas de existência, a cada uma delas correspondendo um registro (eternidade ou temporalidade). Por haver tal diferença, a separação entre divindade

e seres mundanos se torna vigente no interior desses discursos. Os seres eternos não estão submetidos às mudanças de que padecem todos os outros seres, cuja existência se dá no tempo. Além disso, o que se passa no tempo – “o que vem a ser e perece”, como diz o texto de A república – tem seu princípio de ser e de conhecimento no que está fora do tempo, na eternidade. • Pesquise na biblioteca e na internet os princípios e dogmas centrais de uma determinada religião. Identifique, na doutrina em que essa religião se baseia, como é elaborada a relação entre o plano da divindade e o plano em que transcorre a existência dos seres humanos.

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princípio e temporalidade

Estudo dirigido

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humana adquire contornos de um verdadeiro drama, para o qual é decisiva a liberdade dos seres humanos em inovar e mudar o curso das coisas. Esse aspecto dramático da criação do mundo será essencial à reflexão de um dos mais importantes pensadores do cristianismo, Santo Agostinho (354-430).

A polêmica de Agostinho com os partidários da doutrina do eterno retorno encontra-se em uma passagem de A cidade de Deus (obra escrita entre 413 e 426), que, embora não seja fácil, possui grande interesse. Eis o trecho em questão: “Além disso, os filósofos desse mundo julgaram não poder ou dever resolver a controvérsia de outro modo, senão introduzindo ciclos temporais, nos quais a natureza das coisas sempre fosse se renovando e repetindo. Eles até afirmaram, portanto, que assim se sucederiam os conjuntos dos séculos que vêm e que vão, sem cessar. Estes ciclos ocorreriam em um mundo que permanece. Ou então, dizem também que o mundo, nascendo e terminando a intervalos determinados, apresentaria os mesmos eventos passados e futuros como novos. Desse engano, em resumo, tais filósofos não conseguem poupar nem a alma imortal, de modo que a alma, mesmo quando apreendesse a sabedoria, voltaria sem cessar para a falsa felicidade e para verdadeira miséria, ininterruptamente. Como pode haver verdadeira felicidade, se nunca se confia na eternidade dela? Ou a alma desconhece a miséria vindoura, ignorando a verda-

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Masaccio. Galleria Naionale di Capodimonte, Nápoles

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Compreendendo não só os processos que interpretamos hoje como estritamente naturais, mas também tudo o que sucede à alma humana e que costumamos ligar à cultura, a “ordem da natureza” seria composta, em sua totalidade, de ciclos de tempo. Seguindo o tempo cíclico da natureza, que se divide nas quatro estações, todas as coisas surgiriam, se desenvolveriam e se corromperiam para tornar a fazê-lo repetidamente (por exemplo, à maneira do processo de geração e corrupção que se constata nos seres vivos de uma mesma espécie natural). Pois bem, a que ideia de princípio corresponde essa concepção filosófica do tempo como “ordem da natureza”, sustentada pelos partidários antigos do “eterno retorno”? Se tudo na natureza se repete desde sempre, nascendo e perecendo e ressurgindo incessantemente, não se pode dizer que as coisas tenham começado originalmente em algum momento do tempo, pois elas já teriam surgido e desaparecido incontáveis vezes. Sendo pensado como circular e cíclico, o tempo não ad-

Contra os defensores do eterno retorno, Agostinho afirma que Cristo morreu uma única vez e então deixou de morrer. (Masaccio [1401-1428], Crucificação. Óleo sb/ madeira, 1426)

de; ou do contrário se atemoriza, na mais infeliz das bem-aventuranças. Mas se a alma, saindo da miséria para nunca mais voltar a ela, ruma para felicidade, nesse caso surge algo novo no tempo, que não se esgota com o tempo. Se é assim, por que não ocorreria o mesmo com o mundo, também? E por que não também com o homem, criado no mundo? Que se evitem, pela sã doutrina e através de uma reta via, sabe lá que falsos ciclos, descobertos por sábios falsos e enganadores. Em relação a isto, sustentam alguns o que se lê no livro de Salomão chamado Eclesiastes: O que é aquilo que foi? O mesmo que será. O que é o que foi feito? A mesma coisa que será feita; não há nada recente sob o sol. Quem é que pode dizer e asseverar: ‘Aqui está uma coisa nova’? Ela já existiu nos séculos que se passaram antes de nós [Ecl 1, 8-10] – e defendem que o que se disse deva ser compreendido no sentido daqueles ciclos que reconduzem todas as coisas e voltam a chamá-las à existência. Nisto, ele [Salomão, então tido como autor do Eclesiastes] se refere às coisas que vinha dizendo antes, isto é, às gerações, umas que vão e outras que vêm, às revoluções do sol, ao fluir dos rios; ou enfim a todas as coisas geradas, que nascem e terminam. Pois houve homens antes de nós, há homens conosco, e também haverá homens depois de nós. O mesmo vale para quaisquer animais e plantas. Até mesmo as coisas assombrosas, surgidas de maneira inusitada, porquanto sejam diferentes entre si e se costume dizer que algumas delas tenham ocorrido uma única vez,

mite um começo absoluto das coisas, nem um fim definitivo para as mesmas. Podemos assim perceber por que os pensadores cristãos rejeitaram a doutrina do “eterno retorno”. Não há lugar, nesta concepção, para a ideia de criação, nem tampouco para a ideia de Juízo final. Mas não é só isso. Como observa Agostinho, a ideia de que tudo sempre retorna traz consigo a ideia de que nada começa ou acaba de uma vez por todas. Se admitirmos a ideia do eterno retorno, teremos de admitir também que todas as conquistas da alma humana, por exemplo, são relativas a um determinado momento no curso do tempo, momento esse que adiante irá dar vez ao momento que o antecedeu. Digamos que a alma era ignorante, mas adquiriu sabedoria e beatitude. Conforme a doutrina do eterno retorno, observa Agostinho, a alma se tornará novamente ignorante e deixará de ser beata, tão logo o ciclo do tempo se complete e volte a se repetir. Em resumo, a ideia de que tudo sempre retorna, sem jamais começar ou acabar de uma vez só, valeria também para a “alma imortal” que aprendeu a sabedoria. Como

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página 327 Você pode comentar essas afirmações, assinalando aos alunos que Agostinho concebe a vida terrena como uma peregrinação dos seres humanos rumo à pátria da qual fomos exilados pelo peca-

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verdade também que essa sua imortalidade consiste em viver, desaparecer e ressurgir, como o restante dos seres e coisas submetidos ao ciclo temporal. Conforme essa concepção, portanto, a alma sobrevive, desaparece e ressurge no tempo, e assim por diante, indefinidamente. Mas há uma grande diferença entre, de um lado, durar, perecer e retornar no tempo (concepção do “eterno retorno”) e, de outro, atravessá-lo para, então, existir definitivamente fora dele, na eternidade (concepção cristã).

Duração ≠ atemporalidade Note que estamos às voltas aqui com dois sentidos de imortalidade, dos quais apenas um é aceito por Agostinho. Há (i) a imortalidade da alma que sempre retorna temporalmente e (ii) a imortalidade da alma que ultrapassa o próprio

Fabio Colombini

tudo o que nasce está destinado a perecer e a retornar eternamente, nenhuma coisa, nem mesmo a alma humana, seria capaz de se furtar ao ciclo natural. E isso Agostinho não pode admitir. Pois nesse caso não haveria permanência nem salvação possíveis para a alma do homem. Tendo experimentado a felicidade, ela estaria fadada, conforme a ordem da natureza, a reincidir na desgraça; tendo se tornado sábia, voltaria, em virtude do tempo cíclico, a cair na ignorância. Condenado a sempre transmigrar entre os estados mais diversos e opostos, o ser humano nunca conseguiria interromper o ciclo da natureza, o assim chamado destino. Todas as coisas nasceriam e pereceriam para retornar incontáveis vezes, excluindo a possibilidade da morte única de cada homem e, principalmente, a de uma vida humana sobre a qual a morte não já não possui mais domínio. É fácil perceber, agora, por que Agostinho polemiza com os defensores do eterno retorno. É que essa doutrina contraria um dos dogmas centrais do cristianismo, representado pela ressureição de Cristo. Afinal, como afirma Agostinho, “só uma vez Cristo morreu pelos nossos pecados; ao surgir dos mortos deixa de morrer, e a morte já não tem mais poder sobre ele” (Agostinho, A cidade de Deus [De civitate dei], livro XII, capítulo 14. Tradução nossa. Edição de referência: Corpus Christianorum, Series latina vol. XLVIII parte XIV, 2. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1955, p. 369). A concepção cíclica do eterno retorno, assim, põe em questão dois dogmas fundamentais do cristianismo: a ideia de criação e a ideia da imortalidade da alma humana, tal com concebida pelos cristãos. Com efeito, se a alma participa da ordem da natureza, que não foi criada uma primeira vez, mas sempre se repete, neste caso a alma já nasceu e morreu e voltará a nascer e morrer infinitas vezes, necessariamente. Se é verdade que, em seu “eterno retorno”, ela nunca se extingue de todo e por isso se torna, em certo sentido, imortal, é

Borboleta-monarca - Danaus plexippus - saindo do casulo. Pantanal-MT, 2009. Agostinho, pensador cristão, afirma que tomar o ciclo da natureza como modelo do universo é ignorar aquilo que o transcende, seu princípio criador: Deus.

Elogio de Kant a Platão página 333 Caso você avalie que isto é pertinente, este é um momento propício para pôr em destaque aspectos que dizem respeito à “história das ideias”. Platão, na República, expõe a ideia do bem como princípio atemporal de tudo o que se vê submetido ao tempo. Cuidamos de assinalar que esta tese platônica, por mais complexa que seja, nos é mais familiar do que parece. Afinal, a noção de divindade das três grandes religiões

livro do professor

tinho, A cidade de Deus [De civitate dei], livro XII, capítulo 14. Tradução nossa. Edição de referência: Corpus Christianorum, Series latina vol. XLVIII parte XIV, 2. Turnhout [Bélgica]: Brepols, 1955, pp. 368-369)

do original. Ao invés de estar condenado a transmigrar entre opostos indefinidamente, o ser humano percorre, ao ver de Agostinho, outro movimento: o de retorno à vizinhança com Deus. Há um artigo muito elucidativo e de interesse sobre o assunto, com acesso aberto na internet: • Moacyr Novaes, “As trajetórias de Agostinho”, in: Revista Cult, São Paulo, número 64, pp. 22-26, dezembro de 2002. Outro aspecto a eventualmente aprofundar aqui é a noção estoica de destino, que é exposta na Unidade Liberdade e necessidade (módulo “Estoicismo e a necessidade do universo”). Conforme o estoicismo, o cosmos é regido por uma inexorável necessidade que encontra sua origem na divindade que cabe ao sábio contemplar. Você pode conferir um tratamento mais sistemático ao assunto, apontando para a articulação aí existente entre os aspectos metafísicos (eterno retorno), éticos (necessidade e responsabilidade moral) e teológicos (a natureza divina do princípio ordenador das coisas mundanas).

princípio e temporalidade

ainda assim, no tocante a que coisas admiráveis e espantosas em geral são, elas por suposto também foram e serão. Se nasce um assombro sob o sol, nem por isso se trata de coisa nova e recente. Seja como for, alguns compreendem aquelas palavras desta maneira: que na predestinação de Deus todas as coisas já foram feitas, e ele, na sua sabedoria, quis que fossem assim compreendidas, daí que não haja nada recente sob o sol. Longe de nós, de reta fé, acreditarmos que essas palavras de Salomão queiram indicar esses ciclos, nos quais, segundo avaliam, se repetiria o mesmo conjunto dos tempos e das coisas temporais. Por exemplo: assim como em seu século o filósofo Platão, na cidade de Atenas e na escola chamada Academia, ensinou aos discípulos, do mesmo modo por inumeráveis séculos recuando no tempo, a intervalos muito longos, mas obrigatoriamente, que o mesmo Platão, a mesma cidade, a mesma escola e os mesmos alunos se tenham repetido e devam repetir-se ainda por séculos inumeráveis. Longe de nós acreditarmos nisso. Com efeito, Cristo morreu uma única vez pelos nossos pecados; ao surgir dos mortos deixa de morrer, e a morte já não tem mais poder sobre ele” (Agos-

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monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – possui como característica comum a crença de que Deus, embora se situe na eternidade, é causa e princípio de inteligibilidade de toda a mudança. Isso nos permitiu assinalar aos estudantes as circunstâncias que favoreceram que, na história do pensamento ocidental, alguns dos elementos da filosofia platônica fossem incorporados pelo cristianismo dos primeiros séculos de nossa era. A comparação entre Platão e Kant, por sua vez, demonstra que certas noções capitais da filosofia antiga permaneceram sendo matéria de reinterpretação e foram retomadas na trajetória da tradição filosófica ocidental, e não apenas, como já foi indicado, na ocasião do advento e expansão do cristianismo. Kant, como se sabe, recebeu na infância por parte de sua mãe uma educação pietista (uma corrente da fé protestante muito influente na Alemanha do período), mas é difícil determinar até que ponto essa orientação influenciou de modo decisivo a formação de sua filosofia. Em todo caso, Kant representa uma nova figura de filósofo, que surgiu nos séculos XVII e XVIII e é bem mais familiar a nós – a do professor universitário, que não depende diretamente de ordens religiosas para seguir sua vida e construir sua obra. Kant lecionou por mais de trinta anos na Universidade de Königsberg, na antiga Prússia Oriental. Vimos que esse filósofo também subscreve (embora não integralmente) a tese que identificamos em A república e que, em seguida, foi incorporada pelo pensamento cristão. Isso atesta que a ideia de prin-

seja um adepto do platonismo. Há, aliás, outras passagens da mesma Crítica da razão pura (a obra da qual extraímos o trecho analisado) em que Platão é criticado. O elogio que Kant faz a Platão exprime, assim, uma concordância pontual com ele. Só que é um ponto muito importante: o que está em jogo é nada menos que a noção de princípio e sua relação com a temporalidade. Assim como já o fizera Platão, Kant afirma que o conceito de virtude é uma norma ou princípio atemporal, do qual nos servimos para julgar as condutas que se inscrevem no tempo. Mesmo nós, considerados como seres que agem neste mundo, temos de nos pautar por este ideal, ainda que saibamos ser impossível realizá-lo plenamente na vida. E isso porque a vida se desenvolve no tempo. Como, então, esperar realizar

O elogio de Kant

a Platão exprime

uma concordância parcial. Só que é

muito importante: o que está em jogo é

a noção de princípio e sua relação com a temporalidade.

plenamente no curso temporal da vida um princípio de natureza atemporal?

livro do professor

Em diversos contextos da história da filosofia, da Antiguidade grega ao século XVIII passando pelos primórdios da era cristã, a ideia de que há um princípio atemporal que explica a ordem do tempo e das coisas temporais recebeu formulações importantes. Mas não haveria outro modo de pensar a relação entre o princípio e a temporalidade, diverso da posição platônica e cristã – que é apropriada, na época moderna, por Immanuel Kant[+]? Ou, na falta de alternativa, só nos restaria adotar a solução que, de Platão[+] a Kant e passando pelo advento da filosofia cristã, faz recurso a um princípio extratemporal para explicar os seres temporalizados? Será que, abandonado a si mesmo, o regime da temporalidade realmente nos conduz, como eles afirmam, a uma base incerta sobre a qual não poderíamos jamais formar um juízo razoável

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nem, muito menos, construir qualquer saber? Dito de outro modo, o tempo necessariamente remete à “instabilidade”, à “variação”, à “incerteza”, não podendo, por isso, contribuir para a elaboração de normas que sirvam como princípios, seja da moral, seja da ciência? A história da filosofia não cessa de nos revelar um horizonte de respostas muito diversificadas. Difícil não encontrar, na leitura de grandes autores, soluções diferentes para problemas e questões comuns. E isso, mesmo quando se trata de uma tese bem estabelecida e cuja história acaba por se mesclar com convicções arraigadas no senso comum, como tantas vezes é o caso quando o assunto é princípio e temporalidade. Não há tese que não tenha sua antítese, nem filósofo que não encontre adversários, que discordarão dele e seguirão um caminho próprio. Isso parece

princípio e temporalidade

Regularidade da experiência

cípio presente na Antiguidade reaparece, após reinterpretações significativas, no fim do século XVIII, como base para concepções que orientam a filosofia iluminista (e moderna) acerca da “norma” prática, as quais são muito difundidas inclusive nos dias de hoje. Uma maneira instigante e polêmica de assinalar a linha de continuidade que une noções platônicas a dogmas religiosos e que finda nas teses de um autor moderno, como é o caso de Kant, é utilizar-se de textos de Friedrich Nietzsche (1844-1900). Este filósofo, como é sabido, desferiu uma violenta crítica à “moral cristã” e aos esquemas conceituais que ele identificou como próximos dela, dentre os quais dá destaque ao “platonismo”. Nietzsche oferece um retrato irônico, por vezes sarcástico, de Sócrates e Platão. Noutros textos, põe em evidência o que lhe parece constituir a dívida conceitual (que ele interpreta como representando, também, um alinhamento em matéria de moral) dos pensadores modernos com o “platonismo”. Um exemplo disso você encontrará em uma passagem intitulada “História de um erro”, incluída em Crepúsculo dos ídolos, publicado pela primeira vez em 1889. Há ótima tradução brasileira, de Rubens Torres Filho: Friedrich Nietzsche – Obras incompletas (São Paulo: Editora 34, pp. 339-340). Este texto é especialmente útil, pois nele Nietzsche alinha platonismo, cristianismo e filosofia kantiana, muito embora, como dissemos, sob um intuito claramente polêmico.

Regularidade da experiência página 334 A perspectiva explorada neste módulo contrasta radicalmente com as dos módulos precedentes, que poderia ser resumida na concordância entre

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“Não há ninguém tão jovem e inexperiente que não tenha formado, a partir da observação, muitas máximas gerais e corretas relativas aos assuntos humanos e à conduta da vida; mas deve-se confessar que, quando chega a hora de pô-las em prática, um homem estará extremamente propenso a erros até que o tempo e experiências adicionais venham a expandir essas máximas e ensinar-lhe seu adequado uso e aplicação. Há em todas as situações ou ocorrências, um grande número de ciscunstâncias peculiares e aparentemente minúsculas que tendem a ser de início ignoradas mesmo pelo homem mais

Museu Fitzwilliam, Universidade de Cambridge

Willian Blake (1757-1827), Frontispício de Canções de experiência (Gravura e tinta, prancha 28, c. 1815-26). A

experiência leva a inocência nos ombros, como se procurasse protegê-la no caminho da vida.

talentoso, embora delas dependa por completo a justeza de suas conclusões e, em consequência, a prudência de sua conduta. Para não mencionar que, no caso de um jovem principiante, as máximas e observações gerais nem sempre lhe vêm à mente nas ocasiões apropriadas, nem podem ser aplicadas de

princípio e temporalidade

AS FILOSOFIAS EMPIRISTAS

Hume foi muitas vezes classificado como

que questionam o papel preponderante dado

representante do empirismo. “Empirismo”

à razão pelos assim chamados “racionalistas”

é um termo classificatório que agrupa es-

ou “noologistas”.

colas filosóficas que dão valor central à experiência.

Etimologicamente,

É assim que Immanuel Kant, classifica

“empiris-

como filósofos empiristas Aristóteles (384-322

mo” remete a “empiria” que, por sua vez,

a.C.), a quem opõe Platão (c.427-c.347 a.C.).

tem origem no termo grego ”empeiría”

Nos tempos modernos, Kant denomina empi-

(= experiência). É comum encontrarmos o

rista John Locke (1632-1704), em oposição ao

conceito de “empirismo” designando filosofias

“noologismo” de Gottfried Leibniz (1646-1716).

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“Não resta dúvida de que todo o nosso conhecimento começa pela experiência; efetivamente, que outra coisa poderia despertar e pôr em ação a nossa faculdade de conhecer senão os objetos que afetam os sentidos e que, por um lado, originam por si mesmos as representações e, por outro lado, põem em movimento a nossa faculdade intelectual e levam-na a compará-las, ligá-las ou separá-las, transformando assim a matéria bruta das impressões sensíveis num conhecimento que se denomina experiência? Assim, na ordem do tempo, nenhum conhecimento precede em nós a experiência e é com esta que todo o conhecimento tem o seu início. Se, porém, todo conhecimento se inicia com a experiência, isso não prova que todo ele se derive da experiência. Pois bem poderia o nosso próprio conhecimento por experiência ser um composto do que recebemos através das impressões sensíveis e daquilo que a nossa própria capacidade de conhecer (apenas posta em ação por impressões sensíveis) produz por si mesma, acréscimo esse que não distinguimos dessa matéria-prima, enquanto a nossa atenção não despertar por um longo exercício que nos torne aptos a separá-los. Há pois, pelo menos, uma questão que carece de um exame mais atento e que não se resolve à primeira vista; vem a ser esta: se haverá um conhecimento assim, independente da experiência e de todas as impressões dos sentidos. Denomina-se a priori esse conhecimento e distingue-se do empírico, cuja origem é a posteriori, ou seja, na experiência”. (Kant, Crítica da razão pura. Tradução: Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2008, pp. 36-37 [KrV: B 1-2])

livro do professor

Kant e Platão quanto à noção de que o princípio da conduta humana é ideal e não está sujeito à passagem do tempo. Caso você entenda que esta é uma boa ocasião para aprofundar em classe a articulação existente entre os temas discutidos neste módulo, uma maneira de fazê-lo é a de comparar a posição de D. Hume e, de modo geral, do empirismo, com aquela de I. Kant. Kant se alinha a Platão na defesa do valor de um princípio exterior à experiência e independente dela, que sirva como regra de nossa conduta moral. Ora, compreender esta opção filosófica de Kant possibilita a compreensão do significado que este autor confere à noção de conhecimento a priori, tão central para a Crítica da razão pura. Afinal, a noção de conhecimento a priori exprime que há noções e princípios em nossa razão que independem da experiência, contra o que afirmam os adeptos do empirismo. Abaixo, acrescentamos os três primeiros parágrafos da “Introdução” redigida por Kant para a segunda edição da Crítica da razão pura (1787). Você pode desenvolver uma atividade de leitura e interpretação dessa passagem em classe. Nela, Kant diferencia entre o começo e a origem de nosso conhecimento. Embora admitindo que todo nosso conhecimento comece com a experiência, Kant logo em seguida adverte que isso não significa que ele tenha origem na experiência. A existência de um conhecimento a priori (ou seja, que não possui origem empírica) é mencionada como uma hipótese que Kant irá procurar demonstrar no curso de sua obra. Com base nesses elementos iniciais, você pode desenvolver uma atividade de leitura e interpretação desta passagem em classe:

fazer parte do jogo do pensamento. Por isso, é de se esperar que também a concepção platônica de princípio, elogiada por Kant na época moderna, tenha sido questionada por outros filósofos, dentre os quais um que foi praticamente contemporâneo de Kant. Leia o texto abaixo, que integra uma obra muito conhecida de David Hume[+] (1711-1756), filósofo escocês que viveu no século XVIII, um pouco antes de Kant. E procure, no curso desta primeira leitura, assinalar em que Hume se opõe à posição platônica (que é retomada por Kant, como discutido no módulo precedente desta Unidade):

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página 340 Na Filosofia da Ciência contemporânea, firmou-se uma postura face à temporalidade que contradiz abertamente a concepção platônica do conhecimento. Para Platão, o verdadeiro conhecimento aproxima-se do ser em sua essência – ora, no platonismo, o ser real é atemporal, e o conhecimento aspira a essa mesma atemporalidade. Já na filosofia

op. cit., p. 97)

Vamos analisar esse trecho parte a parte. De início, Popper afirma que jamais teremos certeza de ter atingido a verdade. Em ciência, não há como “atingir algo definitivo”. Popper justifica esta conclusão recorrendo à história: “aprendemos no passado”... Ele quer dizer com isso que o passado nos mostrou que teorias consideradas verdadeiras foram refutadas por novas descobertas, associadas a novas teorias. Foi assim que, por exemplo, a teoria de Ptolomeu deu vez à teoria de Copérnico para explicar o sistema solar. Assim também, a teoria física de Newton foi em parte substituída, no século XX, pela teoria da relatividade e pela teoria quântica, para compreender a dinâmica de nosso universo. Conforme Popper, portanto, a história da ciência é a história da substituição de teorias científicas consagradas durante um período por novas teorias científicas, que contradizem alguns aspectos das teorias precedentes. É com base nisto que, na segunda parte do texto, Popper declara que, embora jamais possamos dizer que tenhamos chegado à verdade definitiva, podemos ao menos adotar teorias cada vez melhores para compreender o universo. Nisso reside o progresso da ciência. Mas esse progresso, como podemos adivinhar, não chega a um término. É o que conclui Popper na terceira parte do trecho acima: jamais chegaremos “a algo definitivo ou certo”. E isso equivale a dizer que a ciência é hipotética: “nossas teorias científicas devem manter-se como hipóteses”. As hipóteses concorrem entre si para explicar melhor os fenômenos, e quanto maior for o número de fenômenos que uma teoria possibilita prever e compreender,

10 de novembro de 1919 se referia à confirmação oficial da teoria einsteiniana da relatividade pela Sociedade Real e pela Sociedade Astronômica Real do Reino Unido

finito e infinito página 344

horas por dia, com um milhão de máquinas de escrever de vários tipos. Os capatazes analfabetos reuniriam as folhas escurecidas e as compilariam em volumes. Após um ano, esses volumes conteriam cópias exatas de livros de todos os tipos e de todas as línguas, armazenados nas bibliotecas mais ricas do mundo.” A criptografia (técnica para codificar e decodi-

ficar informações) é usada militarmente desde a Antiguidade. Na Segunda Guerra Mundial,

O conto de J. L. Borges explora uma ideia matemática importante que concerne à estatística, comumente conhecida como o “teorema do macaco infinito”. Nesta versão, supõe-se a seguinte situação: um macaco que estivesse diante de um teclado e digitasse aleatoriamente por um tempo infinito necessariamente terminaria por criar qualquer texto que conhecemos, como, digamos, o Dom Casmurro de Machado de Assis. Veja, a seguir, sua formulação por Émile Borel (1871-1956), um matemático francês que forneceu uma importante contribuição para a teoria da probabilidade: “Imaginemos que tenhamos reunido um milhão de macacos, todos batendo aleatoriamente teclas de máquinas de escrever; imaginemos que, sob a supervisão de capatazes analfabetos, esses macacos datilógrafos trabalhem duro, dez

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finito e infinito

utilizaram-se máquinas criadas para esse fim.

livro do professor

“Deu no New York Times” : “A teoria de Einsteim triunfa!”. A manchete de

unidade

A biblioteca de Borges

Coleção particular.

tipos de definições”, in: Popper – Textos escolhidos. Tradução de Vera Ribeiro,

Foto: Rama CC-by-sa-2.0-fr

12

de Popper, quanto ao conhecimento humano o tempo só tem a ajudar. De fato, a premissa é o caráter hipotético e provisório de toda teoria científica. Assim sendo, o tempo leva à superação de aspectos que a teoria não era capaz de explicar suficientemente. Só no tempo, portanto, pode haver progresso científico. princípio e temporalidade

A noção de progresso científico

com 200 páginas legíveis. É dificílimo encontrar um livro assim numa das estantes – muito mais difícil do que ganhar na loteria. Mesmo assim, é possível. Concorda? Na verdade, é mais do que possível. Se imaginarmos que a biblioteca contém todas – absolutamente todas – as combinações possíveis de 25 caracteres distribuídos por 410 páginas, então não apenas é “possível” que encontremos dentro dela qualquer livro que possamos imaginar, como também é necessário que isso aconteça. Cedo ou tarde, toparemos com qualquer livro – desde que esse livro tenha menos que 411 páginas. Como narra Borges, a Biblioteca conteria uma história detalhada do futuro, o catálogo descrevendo os livros da própria Bilioteca, também catálogos falsos, comentários sobre textos bíblicos, e ainda comentários a esses comentários... Mais: a Biblioteca imaginada por Borges conteria também relatos sobre nossas vidas, como, por exemplo, o registro exato de como você nasceu, viveu e morreu. O mais interessante, porém, é que a Biblioteca possui todas as gramáticas e dicionários que você possa imaginar. Tanto gramáticas e dicionários de línguas exis-

tentes, como o português, o inglês e o tagalog (uma das línguas faladas nas Filipinas), quanto gramáticas e dicionários de línguas que jamais foram faladas por ninguém. Assim, livros que aparentemente não têm sentido nenhum, quando “lidos” segundo as regras de certas gramáticas da Biblioteca ficam perfeitamente compreensíveis. Mais ainda: haverá sistemas de códigos muito complicados capazes de mudar completamente o sentido de uma mensagem. Este livro que você está lendo, por exemplo, estaria numa das estantes da Biblioteca. Em outras estantes, no entanto, você encontraria livros que o ensinariam a “ler” este livro como se ele estivesse escrito em código. Quando “decifrado” segundo um código complicadíssimo, este livro poderia ser, por exemplo, a autobiografia de um monge budista que viveu no século XVIII numa aldeia do Japão. Isso quer dizer uma coisa muito simples. Você lê as sentenças deste livro aplicando a elas as regras do português. À palavra “livro” você associa um determinado objeto, ao verbo “ler” você associa uma determinada atividade, e assim por diante. Se as lesse, porém, aplicando as regras de um código muito diferente, poderia enxergar nestes mesmos sinais de tinta sentidos muito diferentes desses que você está apreendendo neste exato instante. Leria um outro livro, embora estivesse diante dos mesmos sinais... Como todos os livros possíveis e imagináveis estão contidos na Biblioteca imaginada por Borges, ela conteria livros que nos ensinam a interpretar qualquer livro de qualquer maneira que você consiga imaginar. Mais ainda: todos os livros da biblioteca fariam sentido – mesmo aqueles que aparentemente não fazem sentido nenhum. Vamos recordar aquela linha inserida na página 327 de um certo livro:

crftttherddfssrrteeeedlouco amor azul drtghyhyhyuioihdrtyafrtseree

(Émile Borel, “Mécanique statistique et irréversibilité,’’ Journal de Physique, 5ª série, vol. 3, 1913, pp. 189-196. Tradução nossa)

Filosofia grega e infinito página 347 Um modo privilegiado para se aproximar da concepção clássica do infinito é examinar o debate que, na Grécia Antiga, opôs os filósofos quanto à re-

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alidade ou irrealidade do movimento. Vejamos, em linhas gerais, o quadro no qual este debate transcorreu. Nossa história inicia com dois grandes representantes da filosofia pré-socrática, Heráclito de Éfeso e Zenão de Eleia. Heráclito (c. 540-470 a.C.) nasceu em Éfeso, cidade da Grécia antiga. Escreveu em forma de prosa uma obra intitulada Sobre a natureza, na qual expõe suas ideias sobre a unidade do ser e a multiplicidade dos seres da natureza. Sua posição acerca disso foi imortalizada pela sua afirmação de que é impossível banhar-se duas vezes num mesmo rio, pois nem o indivíduo, nem o rio, permaneceriam sendo os mesmos: “No mesmo rio não é possível entrar duas vezes” (Heráclito, Fragmento 30. Nossa versão indireta a partir de tradução italiana. Eraclito, Angelo Tonelli [org.]. Edição bilíngue. Milão: Feltrinelli, 2007, p. 78). Refletindo sobre esses contrários, Heráclito sustentava que a harmonia do todo reside na tensão entre as partes. Só há equilíbrio, portanto, onde há contrariedade de elementos. Parmênides de Eleia insurgiu-se contra essas ideias. Temos poucas informações sobre sua vida e as fontes nas quais podemos nos basear são divergentes. O que é certo é que Parmênides viveu entre o fim do século VI a.C. e a metade do século V a.C. Há rumores de que, quando deixou Eleia para visitar Atenas, Parmênides se encontrou com Sócrates, então com aproximadamente 20 anos. Calcula-se, com base nisso, que Parmênides tenha nascido em torno de 440 a.C. Na Unidade Realidade e aparência mencionamos Pitágoras (c. 580-495 a.C.), que defendia que a realidade são

Se, durante os dois primeiros minutos, você desceu todos os infinitos degraus, acho que você concordará que, no terceiro minuto, já não haverá degrau nenhum para você descer. Você estará parado, portanto. Mas, em que degrau? No último? Se estiver parado no último degrau, você deve concordar que a escada não era infinita. Se ainda estiver descendo degraus,

números. Parmênides – que, conforme Diógenes Laércio, iniciou sua carreira filosófica com um discípulo de Pitágoras, chamado Aminia (é o que diz Diógenes Laércio, apud: H. Diels & W. Kranz, 28,1) – aprofundou a intuição de Pitágoras sobre a diferença entre realidade e aparência em um sentido próprio. Conforme Parmênides, o todo do universo é eterno e imóvel; o devir, ou a mudança, não passa de “falsa opinião”, isto é, de aparência. Desse modo, Parmênides se situava em um campo oposto ao de Heráclito, que, como mencionamos, dava grande ênfase ao conflito, à discórdia e à tensão entre os contrários em sua explicação do mundo. Enquanto Heráclito concebia o ser como indissociável da mudança, do vir-a-ser, Parmênides, de seu lado, afirmava que a única realidade residia no ser como tal: a mudança e o vir-a-ser não passariam de aparência. Essa disputa entre Heráclito e Parmênides é de grande importância não apenas para o pensamento grego, como também para toda a história da filosofia que se seguiu a ambos. Encontramos repercussões suas já nas obras de Platão e Aristóteles. Em dois de seus diálogos maduros, Platão discute detidamente as teses de Parmênides. Um deles leva o nome do grande filósofo: Parmênides. Outro intitula-se Sofista. Neste último, quem protagoniza o debate é o “Estrangeiro de Eleia”, personagem fabricado por Platão para expor as doutrinas de Parmênides. Consultar esta obra é estratégico, pois revela as objeções que o próprio Platão, por meio das personagens do diálogo, levanta à doutrina de Parmênides. A principal delas é que se formos seguir à risca o lema de Parmênides, “o Ser é, o Não-Ser não é”, encontraremos

concordará que ainda não havia (apesar de seus superpoderes) descido todos os degraus. E agora? Como sair dessa situação? O infinito, como você pode ver, é mais complicado do que parece. Esse exercício de raciocínio pode ser comparado com um problema que já era conhecido na Grécia Antiga: o argumento de Aquiles.

A tartaruga pede a Aquiles que lhe dê dez

metros de vantagem.

Aquiles corre a dez metros por segundo. A

tartaruga anda dez centímetros por segundo. Após um segundo, Aquiles terá chegado

ao lugar de que a tartaruga partiu. A tartaruga, porém, terá andado um centímetro. Aquiles, portanto, ainda não alcançou a tar-

taruga. Para alcançá-la, deverá percorrer mais

tempo, a tartaruga terá percorrido uma dis-

tância ainda mais minúscula que a distância

para podermos acompanhar seus passos.

anterior.

a tartaruga terá percorrido uma distância tam-

Aquiles, portanto, ainda não terá alcançado a tartaruga.

bém minúscula. Ponhamos uma lupa sobre a

Quantas vezes Aquiles terá que chegar ao

pista, para percebermos a distância que a tar-

lugar em que a tartaruga “estava”, antes de

taruga percorreu.

Aquiles, portanto, ainda não alcançou a

alcançá-la? Qual foi o último lugar em que ele “esteve” antes de ultrapassar a tartaruga?

tartaruga. Para alcançá-la, terá que percorrer

Este raciocínio foi chamado de “argumento

aquela distância minúscula que observávamos

de Aquiles” porque o guerreiro Aquiles, prota-

com uma lupa. Isso tomará uma fração mais

gonista da Ilíada de Homero, era conhecido por

minúscula ainda de seu tempo.

sua grande velocidade.

Filosofia grega e infinito A dificuldade oferecida por raciocínios envolvendo o infinito é notável. Vejamos um exemplo de como a noção foi desenvolvida filosoficamente na Grécia antiga. Este exemplo tem mais de dois mil anos, mas guarda enorme atualidade. Seu autor

é Zenão de Eleia (489-431 a.C.), que foi discípulo de Parmênides. Ao que parece, o filósofo Sócrates chegou a conhecê-lo, quando, ainda muito jovem, teve a oportunidade de ouvir Zenão por ocasião de uma visita que este fez a Atenas.

livro do professor

Nessa fração minúscula de tempo, porém,

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Nessa fração ainda mais minúscula de

cula de tempo. Imaginemos essa fração minúscula de tempo sendo exibida em câmera lenta,

finito e infinito

um centímetro, o que fará numa fração minús-

©Ilustração: Tom B

AQUILES E A TARTARUGA

Aquiles, um veloz guerreiro da Grécia, é de-

safiado por uma tartaruga para uma corrida.

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dificuldade, dentre outras coisas, em dar uma explicação sobre algo tão trivial quanto nossos enunciados falsos. Pois, se o discurso falso fala de algo que não é, como explicá-lo, se nos ativermos ao lema parmenideano, conforme o qual o Não-Ser absolutamente não existe? O Estrangeiro de Eleia, protagonista do diálogo, conclui, por isso, ser preciso abandonar a rigidez do princípio de Parmênides: “Nós seremos forçados a colocar em questão a tese de Parmênides, nosso pai, e utilizar da violência e provar que, sob uma certa relação, o Não-Ser existe e que, em contrapartida, o Ser, de seu lado, de alguma maneira não existe.” (Platão,

livro do professor

Sofista, 241 d. Tradução nossa)

Aristóteles, por seu turno, aprofunda as objeções que Platão já havia levantado a Parmênides e seus discípulos, a quem chama de “partidários do imobilismo do todo” (ver H. Diels & W. Kranz, fragmento 28 A 26 e Platão, Teeteto, 181 a) e de “não-naturalistas”. Esta última designação explica-se porque a “natureza” era considerada por Aristóteles princípio do movimento; como Parmênides pretendera eliminar este último, afirmando que o Ser é eterno e imóvel, Aristóteles concluía que Parmênides era contra a natureza. Note que nem Platão, nem Aristóteles proclamam a vitória de Heráclito contra Parmênides. O que cada um deles fez, a seu modo, foi relativizar o teor das afirmações de Parmênides, a fim de dar conta daquilo que este último se recusava a explicar, por considerar simples ilusão: o movimento, a mudança, o vir-a-ser. Platão e Aristóteles procuram acomodar o vir-a-ser em suas filosofias, sem, todavia, tornarem-se partidários de Heráclito, para o qual a discórdia entre os elementos representa a origem do equilíbrio. Basta pensarmos nas

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Ideias de Platão ou no Primeiro Motor de Aristóteles para evitarmos assimilar um e outro ao partido de Heráclito. Ao invés de terem pretendido dar as costas para Parmênides, Platão e Aristóteles parecem ter buscado tornar suas intuições mais adequadas ao conhecimento de uma natureza complexa, no interior da qual a mudança teria de ter vez. Este é o contexto em que surgem os paradoxos de Zenão e sua refutação por Aristóteles. Zenão, como se registra em seguida, foi discípulo de Parmênides, que, como já vimos, negava a realidade do movimento em prol da tese de que o Ser é uno, imóvel, eterno. Esta tese – que o filósofo F. Nietzsche comentaria como resultado do apreço de Parmênides pelo rigor lógico do pensamento, contra tudo o que nos mostram os sentidos – encontrou opositores que lançavam objeções contra a escola parmenideana. É em sua defesa que Zenão formula o paradoxo que comentaremos abaixo. Um excelente material sobre o pensamento de Heráclito de Éfeso e Parmênides de Eleia você encontra no volume da coleção Os Pensadores intitulado Pré-socráticos, organizado por José Cavalcante de Souza (São Paulo: Abril Cultural, 1978). Essa edição traz fragmentos das obras desses e de outros pensadores da Grécia Antiga, a maior parte deles tendo por base o texto de H. Diels & W. Kranz, porém com acréscimos significativos sob o título de “Crítica moderna”, em que são apresentados leituras, interpretações e comentários de grandes autores aos textos dos filósofos pré-socráticos. A menção que fizemos acima a F. Nietzsche refere-se à obra A filosofia na época trágica dos gregos, texto redigido por ele em 1873, mas publicado apenas postumamente. Você pode encontrar passos desta obra em excelentes traduções: “A filosofia na época trágica dos gregos”, tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, in: Friedrich Nietzsche –

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Obras incompletas. SĂŁo Paulo: Editora 34, 2014, pp. 47-60. “A filosofia na ĂŠpoca trĂĄgica dos gregosâ€?, tradução de Carlos A. Ribeiro de Moura, in: PrĂŠ-socrĂĄticos, organizado por JosĂŠ Cavalcante de Souza (SĂŁo Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 146-154).

caracterĂ­sticas de uma determinada linguagem. Sem defender a tese extrema de que a filosofia ĂŠ apenas uma atividade de descoberta linguĂ­stica ou de anĂĄlise da linguagem, mostre que os filĂłsofos partem de uma linguagem dotada de uma semântica prĂłpria, para dela extrair consequĂŞncias filosĂłficas que jĂĄ a ultrapassam. O caso da terminologia do “infinitoâ€? pode ser aqui um exemplo relevante.

O sigNiFicaDO etimOlĂłgicO De “iNFiNitOâ€?

Cabe lembrar que o termo grego que se

pĂĄgina 350 finito e infinito

Observe aos estudantes como uma reflexĂŁo filosĂłfica pode estar associada a

Na origem, entĂŁo, “infinitoâ€? expressa ausĂŞncia

traduz por “infinitoâ€?, ĂĄpeiron, ĂŠ dotado de sig-

de fim ou limite. Mas essa ideia tambĂŠm podia

nificado amplo. Na lĂ­ngua grega, a vogal “aâ€? (Îą:

ser compreendida no sentido da ausĂŞncia de

“alphaâ€?), colocada no inĂ­cio de uma palavra,

determinação, da “indeterminaçãoâ€?, porque

muitas vezes expressa negação ou privação.

“determinarâ€? algo ĂŠ dar-lhe um limite ou fim –

O portuguĂŞs incorporou esse significado em

pense na ideia de “determinar o tamanho de

termos como “amoralâ€? e “atemporalâ€?. Ă peiron

um terrenoâ€?, isto ĂŠ, estabelecer seus “limitesâ€?. E

significa ausência ou privação de pÊras, termo

observe tambĂŠm que determinar os limites de

que quer dizer “limite�, “fim�. O latim diz infinitus,

algo ĂŠ demarcar seu “fimâ€? no sentido de “definirâ€?

porque o prefixo “inâ€? com frequĂŞncia expressa

esse algo. Uma “determinaçãoâ€? sobre algo per-

ausĂŞncia ou privação – pense, no portuguĂŞs, em

mite “defini-loâ€?. HaverĂĄ, assim, uma associação

palavras como “incrĂ­velâ€?, “inaceitĂĄvelâ€? ou “inde-

importante entre “infinitoâ€? e “indefinĂ­velâ€?, que

cente�. Finis, em latim, significa “fim� ou “limite�.

terĂĄ consequĂŞncias importantes.

mostra-se que nĂŁo ĂŠ possĂ­vel dividir infinitamente uma magnitude finita. Parece ser essa a maneira como AristĂłteles denuncia o absurdo do argumento de ZenĂŁo, pelo que lemos na sequĂŞncia de seu texto: “A afirmação de que aquilo que estĂĄ na frente nĂŁo ĂŠ ultrapassado ĂŠ falsa. De fato, quando estĂĄ na frente nĂŁo ĂŠ ultrapassado; contudo, ele serĂĄ ultrapassado se for aceito que se percorre uma distância finitaâ€? (AristĂłteles, FĂ­sica, VI, 9, 239b. Tradução nossa). A solução parece simples e, em certo sentido, ĂŠ mesmo, jĂĄ que a seu favor estĂĄ a evidĂŞncia dos fatos. Por que, entĂŁo, falar disso? Por que perder tempo com um mero paradoxo, que nĂŁo se sustenta diante de nossos olhos? A resposta a essa pergunta nos levaria a um estudo profundo das anĂĄlises que AristĂłteles, em sua FĂ­sica, faz sobre o conceito de infinito, particularmente no livro III dessa obra. Trata-se de pĂĄginas filosoficamente profundas e complexas, nas quais o filĂłsofo estĂĄ interessado em mostrar os problemas que surgem quando se investiga a natureza tomando o “infinitoâ€? como um possĂ­vel princĂ­pio explicativo.

A seguinte passagem expressa bem o tipo de objeção que AristĂłteles tem contra essa pretensĂŁo: “HĂĄ certamente uma investigação mais ampla sobre isso, sendo possĂ­vel o infinito nas matemĂĄticas, na esfera do pensamento e no que nĂŁo possui magnitude. Mas neste estudo, investigamos sobre os objetos dos sentidos, se hĂĄ ou nĂŁo corpo infinito em extensĂŁoâ€? (204a-204b). NĂŁo se deve misturar o “infinitoâ€? relativo Ă s matemĂĄticas, um infinito conceitual, que pode ser pensado, com um “infinitoâ€? real. Este, para AristĂłteles, nĂŁo deve ser tomado como princĂ­pio de explicação da realidade, porque, a bem dizer, nĂŁo existe o “Infinitoâ€?, como uma entidade dotada de realidade prĂłpria. Conforme AristĂłteles, nada que existe pode, em sentido rigoroso, “ser infinitoâ€?. AristĂłteles defende essa afirmação porque entende que tudo que tem realidade tem determinaçþes, portanto, limites e fins. Um homem qualquer, por exemplo, ĂŠ “umâ€?. Isso o limita e determina. Ele possui vĂĄrias outras determinaçþes: ĂŠ animal, racional, tem um aspecto, uma altura, um peso etc. Tudo isso impede que se fale dele como “infinitoâ€? ou como originado de algo “infinitoâ€?. E o mesmo vale para todo ser.

pĂĄgina 351, Situação de aprendizagem É interessante orientar os alunos a elaborarem, antes do grĂĄfico, uma tabela nos seguintes moldes: Pedrinha (etapa)

Posição de Aquiles [v=20m/s], em metros percorridos

Posição de à jax [v=10m/s], em metros

Distância entre eles, em metros

0

0

20

20

1

20

30

10

2

30

35

5

3

35

37,5

2,5

4

37,5

38,75

1,25

...

...

...

...

Pedrinha (etapa)

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Posição de Aquiles

outra. Para Aquiles chegar à posição de 20 m, ele leva 1 segundo. Para chegar à posição correspondente à etapa seguinte (=30 m), ele leva 1,5 s, e assim por diante. Poderíamos então complementar a tabela acima com uma coluna correspondente ao tempo:

Posição de à jax

Distância entre eles

livro do professor

Note que a posição de à jax numa determinada etapa Ê sempre a posição de Aquiles na etapa seguinte: Ê o lugar preciso onde o primeiro deixa cair a pedrinha da vez. Isso levaria os alunos a pensar no tempo que transcorre de uma etapa a

Tempo (s)

0

0

20

20

0

1

20

30

10

1

2

30

35

5

1+½

3

35

37,5

2,5

1+½+Ÿ

4

37,5

38,75

1,25

1+½+Âź+â…›

...

...

...

...

...

6/30/17 11:23 AM


15 10 5 0

1

2

3

4

5

6

7

8

livro do professor

Etapas (pedrinhas)

Note que o gráfico assim elaborado não corresponde à representação das distâncias percorridas por Ájax e por Aquiles desde o início da corrida. É por isso que, contrariamente ao senso comum (e à representação apropriada das distâncias absolutas) o segundo parece nunca alcançar o primeiro. Se fôssemos representar simplesmente os percursos dos dois corredores – o que, repetimos, não é o objetivo da atividade proposta – o gráfico seria o seguinte:

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50 40 30 20 10 0 1

2

3

Tempo (s)

(Aquiles, tendo percorrido 40 m, alcança Ájax, que percorreu 20 m, depois de 2 segundos e... infinitas “etapas”.) A diferença, observe, é que neste último gráfico a abscissa representa o tempo em segundos, e não as “etapas” ou “pedrinhas”, de acordo com as quais marcávamos as distâncias discretas entre um e outro corredor no primeiro gráfico acima (aquele que os alunos devem procurar desenhar ou esboçar). São essas distâncias discretas que, de acordo com o argumento de Zenão de Eleia, parecem-nos infinitamente divisíveis. A discrepância entre um e outro cálculo, assim como suas respectivas representações gráficas, provém de uma conceituação anterior a eles: ao formular seu paradoxo, Zenão trata o tempo não como uma grandeza contínua, mas como uma grandeza “discreta”, isto é, como se fosse constituído de inúmeros pontos isolados e não de um fluxo linear. Aristóteles, de sua parte, rebate que o infinito não é qualidade possível para seres reais, podendo ser pensado apenas para entidades matemáticas. Note que o real objetivo dessa Situação de aprendizagem não é tanto obter Percorrendo e traçando

Desenvolvimento individual por escrito

No início da corrida (p0), Ájax tem 20 m de vantagem sobre Aquiles. Então marcamos o primeiro ponto do gráfico com x=0 (etapa

Dois lendários guerreiros gregos, Aquiles e Ájax, vão apostar uma corrida. Ájax é conhecido como “o corredor”, já Aquiles recebeu o apelido de “pés-velozes”... Também, pudera: é o homem mais rápido da Grécia

zero: o número de pedrinhas no chão desde o início da corrida) e y=20 (a distância, em metros, que naquele mesmo instante separa Aquiles de Ájax). Na etapa seguinte p1 – isto é, tendo Aquiles

antiga. Suponhamos que Aquiles corra a uma

velocidade constante de 20 m/s – o dobro da velocidade de Ájax (10 m/s). Por causa disso, Ájax recebe uma “colher de chá” e pode ini-

percorrido aqueles primeiros 20 m – Ájax, que nesse meio tempo avançou 10 m, deixa

ciar a corrida 20 metros à frente de Aquiles. • Seguindo o esquema do argumento de

cair a primeira pedrinha. Agora, a distância que separa Aquiles de Ájax é de 10 metros. Então marcamos, no nosso gráfico: x=1 (uma

Zenão de Eleia, procure fazer o seguinte gráfico. Comece desenhando um plano coordenado cartesiano. A abscissa representará “eta-

pedrinha, ou etapa 1 da corrida), y=10 (a distância, em metros, entre a posição atual de

pas” da corrida (num sentido que examinaremos abaixo); a ordenada representará a dis-

Aquiles e a posição atual de Ájax). • Após preencher algumas etapas seguindo esse procedimento, procure responder:

tância que, a cada uma dessas etapas, separa Aquiles de seu oponente. Imagine que em cada “etapa” Ájax deixa cair uma pedrinha no

Que tipo de linha os pontos desse gráfico irão esboçar? Essa linha irá tocar na abscissa em

chão, no exato lugar onde se encontra. Você vai marcar, no gráfico, a distância que naquele

alguma etapa? Justifique a sua resposta com um breve comentário por escrito. Dica: a pergunta aqui não é pela represen-

momento separa Aquiles daquela pedrinha. Ájax corre olhando para trás, prestando atenção em seu oponente. Quando Aquiles

segunda pedrinha no chão. Quando Aquiles chega nesse lugar, Ájax deixa cair a terceira

tação gráfica da velocidade de cada um dos corredores, nem da distância total percorrida por eles desde a largada. O que buscamos é um gráfico da distância que separa os competidores a cada “etapa” da corrida, ou seja, a

pedrinha, e assim por diante. Assim, cada segmento de nossa abscissa representa

cada pedrinha que cai no chão. Uma boa ideia é iniciar a atividade calculando as distâncias

uma etapa, ou seja, uma pedrinha que Ájax deixa cair para marcar a sua posição atual. Aqui está o começo de nosso gráfico:

percorridas por Aquiles e Ájax a cada etapa, em seguida a diferença entre uma e outra, e

alcança a primeira pedrinha, Ájax, que já está um pouco mais adiante, deixa cair a

então anotar os resultados em uma tabela.

finito e infinito

Distância entre os corredores (m)

20

60

Distância percorrida (m)

Para tanto, você pode estimular uma atividade interdisciplinar envolvendo professores de Matemática e Física. Não forneça aos alunos as tabelas aqui exemplificadas, mas apenas as suas duas primeiras linhas: deixe-os tentar encontrar por si mesmos o raciocínio por trás do cálculo. Após calcularem as posições correspondentes a algumas etapas (digamos quatro ou cinco), eles terão melhor condição de representar esses resultados graficamente. Respondendo à pergunta formulada aos alunos: Assim colocado o problema, em nosso gráfico, a linha que religaria os diferentes pontos (correspondentes a cada “etapa” da corrida) será uma curva. Esta curva (ver pág. seguinte) é um tipo de hipérbole – ou, mais precisamente: um segmento de curva de tipo hiperbólico. Essa curva jamais toca o eixo da abscissa: como se diz em matemática, a distância tende a zero, mas nunca será nula. (É portanto uma curva assintótica.)

20

Distância entre os corredores (m)

15 10 5 0

1

2

3

4

5

6

7

8

Etapas (pedrinhas)

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O infinito divino página 352 A fim de introduzir a discussão em torno da noção de infinidade divina, convém chamar a atenção dos alunos para a historicidade característica dos temas e problemas filosóficos. Nesta direção, convém observar que a polêmica em torno do paradoxo de

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Aquiles e a tartaruga (ver módulo “Filosofia grega e infinito”) ultrapassa o interesse filosófico particular, seja da posição de Zenão, seja da de Aristóteles. Ela nos ensina algo mais abrangente sobre o contexto no interior do qual a questão do infinito surgiu no pensamento filosófico da Grécia antiga. Este contexto foi eminentemente metafísico, remontando ao debate inicial que opôs Parmênides de Eleia a Heráclito de Éfeso. Em seguida, essa disputa aprofundou-se, produzindo reações importantes em outros grandes pensadores dos primórdios da filosofia, como Zenão e Platão, até chegar a Aristóteles. No que toca a todos esses filósofos, vimos que a questão sobre o infinito aparece no quadro da polêmica sobre a realidade ou não do movimento. E esta questão, por sua vez, articula-se com as investigações acerca da natureza do ser: este é imóvel ou admite a mudança? Esta orientação metafísica na abordagem do infinito prossegue no período helênico, inaugurado com a conquista da Grécia por Alexandre, o Grande (356-323 a.C.). E aqui entra a observação de natureza histórica, levantada há pouco, e que se reveste de grande importância para melhor compreendermos os percalços por que passou o par de conceitos que dá nome a esta Unidade. Estamos comentando qual foi, em termos gerais, a orientação que pautou o debate sobre o infinito na filosofia da Grécia Antiga. Pois bem, as coisas mudarão de figura no momento em que a infinitude se tornar uma questão essencialmente teológica, o que irá ocorrer com o advento e a expansão do cristianismo, a partir dos séculos I e II de nossa era. Sugerimos a você assinalar a novidade representada pela noção de infinitude divina, e isso por uma razão simples, de ordem conceitual e histórica: foi essa uma das questões mais caras à es-

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resultados corretos, e sim, muito mais exercitar o raciocínio. Por isso, como a atividade pode oferecer alguma dificuldade, não se precoupe tanto com respostas e números precisos. Pode ser que os alunos tragam soluções diferentes, conflitantes ou não: tanto melhor. O “incômodo” provocado pelo cálculo e feitura desse gráfico “sem-fim” proporcionará aos alunos experienciar, em alguma medida, o próprio debate sobre o infinito que envolveu grandes pensadores gregos, entre eles, como vimos, Zenão de Eleia e Aristóteles. Isto, aliás, pode ser utilizado – caso você julgue ser oportuno – também para estimular uma aproximação crítica da argumentação. É comum aceitarmos como “verdadeiros” sentenças e gráficos que se apresentam à semelhança de demonstrações matemáticas (ver Unidade Lógica e argumentação, módulo “Falácia e argumento”, tópico “Argumento ad verecundiam”). Assim, alguém que apresentasse um gráfico como o aqui elaborado poderia argumentar: “Vê? Aquiles jamais alcança o seu oponente. Mostrei isso matematicamente”. Na realidade, porém, por trás do argumento da autoridade da linguagem científica (matemática, no caso), esconde-se um problema conceitual bem mais complexo. No exemplo desta Situação de aprendizagem, o gráfico apenas aparenta ser uma “demonstração”, sem sê-la com consistência.

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página 352 Esclareça aos alunos que não há consenso neste debate, como, de resto, é de se esperar quanto a um assunto tão complexo. Seria prolixo examinarmos cada uma das posições assumidas no curso dessas controvérsias, que constituem os momentos decisivos do pensamento medieval. Aqui apenas examinaremos as implicações gerais advindas do fato de que, com o cristianismo, o infinito se tornou uma questão de ordem teológica. Correndo o risco de simplificar as coisas mais do que o desejável, pode-se resumir o que há de substancial neste sinuoso debate à questão seguinte: podemos nós, seres finitos, conhecer pela luz natural da razão o ser infinito de Deus?

O infinito divino

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O infinito no Antigo Testamento Como compreender as mudanças por que passou a ideia de infinito, em consequência da cristianização do Ocidente? O cristianismo é uma religião que se funda na aceitação da verdade das Escrituras. O que, então, as Escrituras dizem sobre o infinito? Uma passagem do Antigo Testamento foi repetidamente apontada pelos pensadores cristãos como base para a afirmação da infinidade de Deus. Vejamos essa

passagem e, em seguida, assinalemos suas consequências. O texto encontra-se no livro do Êxodo, que narra o momento em que Moisés é interpelado por Deus. Este lhe ordena retirar do Egito o povo de Israel. Moisés, então, indaga o seguinte:

PATRÍSTICA E ESCOLÁSTICA

“Patrística” designa o conjunto das refle-

xões efetuadas pelos “Pais da Igreja”, isto é,

por aqueles que, no início de nossa era até aproximadamente o século V, deram uma forma organizada e doutrinal aos dogmas do cristianismo primitivo. “Escolástica”, por sua vez, designa o pensamento ligado aos

ensinamentos cristãos transmitidos pelas

universidades medievais a partir do século XI até o século XV. Embora seja muito rico,

englobando diversas correntes, o pensa-

mento escolástico possui por característica

comum a tentativa de articular a filosofia helênica, especialmente a filosofia de Aristóteles, com os princípios da religião cristã.

A partir do século XV, a Escolástica tornou-se cada vez alvo de críticas, primeiro, pelos humanistas do Renascimento, em seguida, pelos reformadores do Cristianismo, a começar por Martinho Lutero (1483-1546).

Universum - C. Flammarion, xilogravura, Paris 1888, Colorizada: Heikenwaelder Hugo, Viena 1998.

finito e infinito

Para um dos mais importantes filósofos da Antiguidade, Aristóteles[+], o infinito a rigor não existe, ao menos não como uma entidade dotada de realidade própria. Este é um ponto no qual Aristóteles faz coro com quase todos os filósofos da Antiguidade grega. Com efeito, de modo geral pode-se dizer que a infinitude soa à mentalidade grega como algo irracional. Não por acaso, o ideal estético e moral dos gregos é ligado à ordem, à medida e à proporção. Tudo mudará de figura a partir do momento em que o Ocidente se tornar cristão. Por uma razão que você já pode adivinhar: para os teólogos cristãos, Deus é infinito. Partindo daí, o desenvolvimento da especulação filosófica ligada ao cristianismo (o que inclui, por um longo período, o conjunto da reflexão filosófica ocidental) tomou uma direção inédita em relação à Antiguidade grega – uma vez que o infinito passou a ser considerado como uma entidade dotada de realidade própria, a realidade suprema, divina. Iniciou-se, então, um debate que se estende por mais de mil anos, sobre a natureza de Deus e sua infinitude. Um debate que não termina com o fim da Escolástica, mas segue adiante, envolvendo autores da Filosofia Moderna, como René Descartes[+] (1596-1650), Nicolas Malebranche (1638-1715) e Gottfried W. Leibniz (1646-1716), entre outros.

Exemplo de uma representação do mundo finito, muito difusa na Idade Média

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Essa interpretação foi realizada por vários pensadores cristãos no curso da

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Filosofia Medieval, desde seu início, com os assim chamados “padres gregos”, até o auge do pensamento escolástico, no século XIII. Gregório de Nazianzo (329-390), Gregório de Nissa (335-394), Hilário de Poitiers (c. 300-368), entre os primeiros; Tomás de Aquino (c. 1225-1274), Duns Scot (1265-1308), Boaventura (1221-1274), entre os representantes da alta Escolástica, são exemplos de pensadores cristãos que afirmaram a infinitude de Deus com base nas Escrituras. Nem todos esses autores tiveram suas obras traduzidas para o português. Dispomos, em todo caso, da tradução de alguns dos textos essenciais do pensamento patrístico e escolástico, em boas edições como, por exemplo, a coleção da Editora Paulus, intitulada “Patrística”, ou a Suma Teológica, de Tomas de Aquino, publicado pela Editora Loyola. Abaixo, algumas referências, a título de ilustração: • Gregório de Nissa. A criação do homem; A alma e a ressureição; A grande catequese. Tradução: Bento S. Santos. São Paulo: Editora Paulus, 2011. • Tomás de Aquino, cuja obra principal se encontra traduzida em português: Suma Teológica. Edição Bilíngue. São Paulo: Loyola, 2001 e ss. (9 volumes). “Então disse Moisés a Deus: Eis que quando eu for aos filhos de Israel, e lhes disser: O Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me perguntarem: Qual é o seu nome? O que lhes direi? Respondeu Deus a Moisés: EU SOU O QUE SOU. Disse mais: Assim dirás aos filhos de Israel: EU SOU me enviou a vós.” (“Êxodo”, 3, 13-14, in: A Bíblia

Sagrada. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro: Imprensa Bíblica Brasileira, 1986).

Vejamos como esse famoso texto foi interpretado pela maioria dos pensadores cristãos. Ao instruir Moisés a dizer aos filhos de Israel que EU SOU o enviou a eles, Deus, conforme a interpretação cristã (e também certas correntes de pensamento judaico), quis dizer que o seu nome é o ser. E isso significa que o ser de

Deus é o ser em puro ato, aquilo que exclui de si todo não-ser, toda ausência de ser. Ora, isso precisamente não equivale a dizer que o ser de Deus é... infinito? Se não há nenhum ser fora de Deus, se Deus contém em si, como ser em ato, todo o ser, conclui-se daí que Deus é infinito.

Totalidade do ser Com base nisso, já podemos arriscar uma explicação da novidade trazida pelo advento do cristianismo para a reflexão em torno do infinito. No entender de Aristóteles, o infinito é apenas potencial ou virtual, não real. E, se é assim, o infinito então se define como aquilo fora do que sempre se encontra algo. Posso não chegar ao término da série dos números naturais, por exemplo, e concluir daí que ela é “infinita”. Mas isso, aos olhos de Aristóteles e de quase todos

A PERFEIÇÃO POSSUI LIMITES OU É INFINITA?

Na Unidade Razão e paixão (módulo “His-

está presente na noção antiga de “cosmos”,

tória, razão e paixões”), examina-se como, no

compreendido como “beleza” e “ordem”. Veja, a

curso do século XVIII, autores como Friedrich

este respeito, a Unidade Realidade e aparên-

Schiller (1759-1805) sublinharam os aspectos

cia, módulo “As aparências enganam?”.

que, no entender deles, separam a Grécia an-

Com isso, compreendemos melhor o por-

tiga da época moderna. Conforme tal interpre-

quê de os gregos entenderem a “perfeição”

tação, os gregos possuíam uma atitude diante

como algo dispondo de limites. Afinal, sem

da natureza muito diversa daquela assumida

esses limites, como poderíamos identificar a

por nós, modernos.

medida das coisas e do todo? Esse privilégio da

A atitude grega, escreve Schiller, é “ingê-

ordem, do equilíbrio, da medida e da finitude

nua”, e não “sentimental” – querendo dizer com

se exprime igualmente nas concepções morais,

isso que os gregos antigos se sentiam em união

políticas e estéticas da Antiguidade.

com a natureza, e não em oposição a ela. Esta

Para você ter uma ideia do contraste entre

ideia de união entre humanidade e natureza

essa atitude e a dos modernos, imagine a rup-

se refletia também na convicção da existência

tura representada pela ideia judaico-cristã de

de uma harmonia entre a razão e as paixões. E

que a perfeição e infinitude são ambas carac-

essa harmonia, por sua vez, dependia de os hu-

terísticas da divindade: a perfeição de Deus,

manos serem capazes de encontrar uma medi-

conforme o cristianismo, passa pelo fato de

da entre a razão e as paixões e, além dela, uma

que ele é infinito. E, se ele é infinito, em que

medida entre a humanidade e o cosmos em

medida nós, seres finitos, podemos ter algo

que ela se encontra. Essa mesma ideia, aliás,

em comum com ele?

finito e infinito

peculação filosófica no período que se estende dos primórdios de nossa era até a filosofia moderna, atravessando toda a Patrística (o termo vem dos “pais da Igreja”, isto é, todos aqueles que, a partir do cristianismo primitivo, sistematizaram a doutrina cristã, até aproximadamente o século VIII) e a Escolástica (o termo vem de “escola” e designa os estudos realizados nas primeiras universidades europeias a partir da metade do século XI até o século XV). Em resumo, não há como aproximar-se do universo filosófico da Idade Média sem levar em consideração a ideia da infinitude divina e de sua relação com a finitude da humanidade e das coisas criadas.

página 356 Um exemplo dessa abordagem, conforme a qual só conhecemos a infinitude de Deus negativamente, é fornecido por um dos primeiros pensadores cristãos, chamados de “padres gregos” e que pertencem ao período denominado de “Patrística”. Gregório de Nazianzo (329-390), Doutor da Igreja, foi bispo de Constantinopla no período inicial da propagação do cristianismo.

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página 357, Situação de aprendizagem De modo geral, os dicionários contentam-se em apresentar o “infinito” como sinônimo do “não-finito”. Tome, por exemplo, a definição de “infinito” fornecida pelo Dicionário Unesp de por-

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nismo podem e devem ser conhecidos pela “razão natural”. Blaise Pascal, de seu lado, irá opor-se completamente a Descartes. Segundo Pascal, seria uma enorme insensatez pretender conhecer pela razão os mistérios que cercam a criação do mundo por Deus e, mais ainda, a própria infinitude de Deus. Há uma passagem, em seus Pensamentos, muito instrutiva a esse respeito, na qual, com grande ironia, Pascal questiona a capacidade de os filósofos, servindo-se apenas de sua razão, chegarem

a alguma descoberta relevante: “O maior filósofo do mundo em cima de uma tábua mais larga do que o necessário, se houver abaixo dele um precipício, por mais que a razão o convença de que está em segurança, a sua imaginação prevalecerá” (Pascal. Pensamentos. Tradução: Mário Laranjeira. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 13). Ora, conclui Pascal, se a razão humana mal consegue fazer frente à nossa imaginação, como poderia ela pretender descortinar os princípios da criação e de Deus?

Como o finito pode compreender o infinito?

Pesquisa em grupo

• Reúna-se em equipe de três a cinco pessoas e, juntos, imaginem que vocês estivessem em uma universidade europeia do século XIV, e que fossem responsáveis pelos debates teológicos e filosóficos acerca da infinitude de Deus. Investiguem a seguinte questão: a essência de Deus é ou não inatingível ao entendimento e à razão humanas? Procurem formular argumentos tanto para uma, como para a outra posição. Revejam a passagem do Êxodo, que citamos há pouco. Eis, em termos sucintos, a dificuldade que ela parece impor a esta questão: se o nome de Deus é o ser total, se ele se faz

chamar pelo “EU SOU”, então como nós, que dispomos de nomes e conceitos de seres determinados, poderíamos ser capazes de nomeá-lo? • Em seguida, consulte, juntamente com os demais membros da equipe, alguns dicionários, a fim de identificar como eles definem o infinito. Consulte também, se possível, o termo equivalente em dicionários em outras línguas. Após a consulta, busquem resolver o seguinte desafio: vocês seriam capazes de fornecer, ou ao menos encontrar em alguma fonte consultada, uma caracterização positiva do infinito, isto é, que não se contente em dizer que ele equivale ao que “não é finito”?

Quem é finito não pode conceber o sem-fim Sendo o infinito algo de tão difícil apreensão, como será que um pensador empirista – alguém para quem tudo o que concebemos provém das sensações – poderia admitir que o infinito esteja ao alcance de nossas capacidades de conhecimento, se tudo o que nossos sentidos nos dão a conhecer possui limites no espaço ou no tempo?

Dá-nos um exemplo desse raciocínio Thomas Hobbes[+] (1588-1679), filósofo que também é discutido na Unidade Ordem e caos, na ocasião em que é examinada a instituição da ordem política nas sociedades humanas. Assim como naquela Unidade, aqui também tomaremos um trecho da obra mais conhecida de

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Vimos, há pouco, a passagem do Êxoria de fé. A razão poderia, na melhor das do, no Antigo Testamento, sobre a qual hipóteses, esclarecer e promover a verdase basearam muitos pensadores cristãos, de das Escrituras. a fim de assinalar a infinitude de Deus. Ao lado dessa vertente, e que surgiu Há um outro passo da Escritura que foi ao mesmo tempo que ela, houve uma oumuito relido por todos aqueles que refletra maneira de interpretar a afirmação de tiram sobre as relações entre a fé e a razão Isaías. Pensadores igualmente ligados ao como vias diferentes para apoiar a reflecristianismo levantaram suspeitas mais xão religiosa cristã. Trata-se de uma senfortes quanto ao poder de compreensão tença do Livro de Isaías, também ele no das verdades da religião por parte de nosAntigo Testamento: “Mas se não crerdes so entendimento. Conforme essa outra / não subsistireis” (“Isaías”, 7,9; tradução vertente, nosso entendimento e nossa de Frederico Dattler. Bíblia, mensagem de razão natural seriam incapazes de forneDeus. São Paulo: Loyola, 1994, p. 761). cer explicação para os temas fundamenEssa sentença foi intais da religião cristã. terpretada já pelos priA primeira interpretameiros padres da Igreja, ção colaborou para o apaDesde muito cedo, denominados os “padres recimento de autores de gregos”, como significanorientação “racionalista”, vários pensadores do que a nossa capacidacomo é o caso de Anselcristãos buscaram de de compreensão dos mo (1033-1109), Tomás apoiar-se na razão temas que cercam a criade Aquino (1225-1274) e ção do universo, a natuDuns Scot (1266-1308). para esclarecer, reza da alma e a existênA segunda foi representacomentar e cia de Deus dependem da da por pensadores como confirmar a fé, muito mais do que da Agostinho[+] (354-430) e, de uma forma mais radirazão e do entendimenrevelação. cal, pelos defensores da to. A sentença de Isaías mística cristã. foi interpretada, porÉ interessante notanto, nesses termos: “se tar que o debate que reuniu essas duas não crerdes, não compreendereis”. vertentes permaneceu ativo até mesmo Como se vê, a fé passou a ser considerano seio da Filosofia Moderna, no século da condição da compreensão das questões XVII. É o que atesta a comparação enmais decisivas aos seres humanos, como tre dois grandes pensadores do período, seu lugar no universo, sua natureza, o que René Descartes[+] (1596-1650) e Blaise é capaz de conhecer e o que deveria fazer. Pascal (1623-1662). Se você consultar Abandonada a si mesma, a razão não seria a carta que Descartes escreveu aos tecapaz de atingir essas verdades mais proólogos da Universidade de Sorbonne, fundas e decisivas. Isso não significa que na França, a fim de conseguir seu apoio o pensamento cristão tenha concebido a para publicar suas Meditações metafísirazão como sua adversária. Desde muito cas, identificará facilmente o elemento cedo, vários pensadores cristãos buscaracionalista que anima esse autor. Logo ram apoiar-se na razão para esclarecer, code início, Descartes afirma que cabe à fimentar e confirmar a revelação. Mas nem losofia, mais do que à teologia, demonsmesmo os que mais se aprofundaram nestrar a existência de Deus e a imortalidade sa via questionaram que as verdades acerda alma. Conforme Descartes, portanto, ca da alma, da criação do mundo e de Deus esses dois dogmas essenciais ao cristiaconstituíssem, antes de mais nada, maté-

tuguês contemporâneo: o “infinito” é um adjetivo que significa, em primeiro lugar, o que “não tem limites; imenso”. Na mesma direção, o Dicionário de português online Michaelis fornece a definição para o infinito: “1. Que não é finito, que não tem limites, nem medida.” “2. Sem fim, eterno”. (cf. http://michaelis.uol.com.br/ moderno/portugues/index.php). E as similaridades não param por aí. Idêntica compreensão você irá observar em outras línguas. Consulte dicionários de língua estrangeira, e veja por si mesmo. Um exemplo: um dos dicionários mais conhecidos da língua francesa apresenta como primeira definição do infinito “aquilo que não possui limite” e “em que não observamos nem concebemos qualquer limite” (Le Nouveau Petit Robert. Paris: Dictionnaires Le Robert, 1993, verbete: “infini”). Já o dicionário Oxford da língua inglesa também define o infinito como o oposto do finito, pois começa esclarecendo que o infinito é “o que não possui limite ou fim em espaço, extensão ou tamanho; o que é impossível de medir ou calcular” (Cf. http://oxforddictionaries.com/). Essa dificuldade em definir positivamente o infinito é muito antiga, bem anterior aos dicionários que apenas fazem seu registro. E essa dificuldade explica por que a infinidade de Deus passou a ser considerada por muitos pensadores cristãos como uma propriedade que só conhecemos negativamente, isto é, por oposição à finitude do mundo criado e dos seres humanos. Como se, na verdade, só fôssemos capazes de saber o que Deus não é. Caso se aceite isso, será preciso então concluir que

finito e infinito

finito e infinito

Ele defendia só sermos capazes de saber o que Deus não é. Não por acaso, Gregório foi considerado o autor de uma “teologia negativa”, que seria aprofundada por pensadores cristãos ulteriores. O que nos ensina esta “teologia negativa”? Ela parte da ideia de que Deus transcende tudo o que podemos compreender. Eis uma tese importante: se a aceitarmos, seremos forçados a renunciar a toda e qualquer caracterização positiva de Deus, assim como de sua essência e de suas propriedades. No que concerne ao infinito, atributo de Deus, isso significa que só poderemos determiná-lo como não-finito, como não dispondo de começo nem fim, quer no tempo, quer no espaço. Outro pensador importante da Patrística que também segue nesta direção é Dionisio Pseudo-Areopagita, de quem pouco se sabe, mas cujas obras datam do fim do século V e início do século VI. Um excelente apanhado do pensamento cristão durante a Patrística e a Escolástica é oferecido por P. Boehner e E. Gilson, História da filosofia cristã. Tradução: R. Vier. Petrópolis: Editora Vozes, 2009. Também sugerimos, como obra para consulta, E. Gilson, O espírito da filosofia medieval. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

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dando para atingir a certeza”.) Sei que sou finito e, ao mesmo tempo, disponho da ideia de um ser infinito. Conforme a argumentação de Descartes, um ser finito não pode ser a causa da ideia de um ser infinito: pois, embora disponha da ideia de substância, acrescenta Descartes, não possuiria a ideia de uma substância infinita, senão sob a condição de que uma substância infinita a tivesse colocado em mim (ver R. Descartes, Meditações metafísicas, III). Quanto a Pascal, consulte os seus Pensamentos, tradução de Mário Laranjeira, São Paulo: Martins Fontes, 2001. Um trecho dentre tantos outros que você pode apresentar em aula e discutir com os alunos é o pensamento número 199 (de acordo com a edição de Lafuma), que, na tradução mencionada, se encontra nas páginas 78-86. Nele, Pascal se indaga sobre o que, afinal, somos nós dentro do infinito que nos cerca. Por fim, uma atividade que você também pode propor aos estudantes, a fim de incentivá-los a pensar como estas duas vertentes sobre a capacidade ou não de a razão humana compreender Deus permanecem ativas no curso do século XVII, consiste em assistir e debater com os alunos dois filmes realizados por Roberto Rosellini: Pascal (Itália: 1971) e Descartes (Itália: 1974). Nos dois filmes, o diretor italiano dá uma ideia da vida e do pensamento dos autores em pauta.

Quem é finito não pode conceber o sem-fim Ver Leviatã, Livro I, Cap, 1: “Da sensação”. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria B. Nizza dsa Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 15.

Hobbes, o Leviatã (1651). Vamos extrair dela uma passagem inicial, inscrita no trecho em que Hobbes defende que todas as nossas concepções têm por origem alguma sensação. É isso o que faz com que Hobbes seja considerado um partidário do empirismo, isto é, da doutrina conforme a qual todas as representações e ideias que possuímos provêm da experiência. Leiamos o trecho no qual Hobbes expõe as implicações que seu posicionamento filosófico possui em relação ao infinito: “Tudo que imaginamos é finito. Portanto, não existe nenhuma ideia, ou concepção de algo que denominamos infinito. Nenhum homem pode ter no seu espírito uma imagem de magnitude infinita, nem conceber uma velocidade infinita, um tempo infinito, ou uma força infinita, ou um poder infinito. Quando dizemos que alguma coisa é infinita, queremos apenas dizer que não somos capazes de conceber os limites e fronteiras da coisa designada, não tendo concepção da coisa, mas da nossa própria incapacidade. Portanto, o nome de Deus é usado não para fazer concebê-lo (pois ele é incompreensível e a sua grandeza e poder são inconcebíveis), mas para que o possamos honrar. Também porque tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos, de uma vez só, ou por partes, pois o homem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação. Nenhum homem, portanto, pode conceber uma coisa qualquer, mas tem de a conceber em algum lugar, e dotada de uma determinada magnitude, e susceptível de ser dividida em partes.” (Hobbes, Leviatã, Parte I, “Do Homem”, Cap. 3, “Da sequência ou cadeia de imaginações”. Tradução: João Paulo Monteiro

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e Maria B. Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2008, pp. 28-29)

Pois bem: com base em que razões Hobbes alega que não podemos conceber, sob hipótese alguma, o infinito? Veja a primeira sentença do texto: “Tudo que imaginamos é finito”. Ora, apenas com base nela não é possível concluir que seja impossível conceber o infinito, como faz Hobbes, a não ser que acrescentemos a ela um outro elemento, que, no trecho em debate, aparece um pouco mais à frente. É preciso acrescentar que “tudo o que concebemos foi primeiro percebido pelos sentidos” para, partindo da afirmação inicial de que tudo o que imaginamos é finito, extrair, então, a conclusão de que não podemos conceber o infinito. A razão disso é simples. Suponha que possuíssemos ideias ou noções que não vêm dos sentidos; neste caso, mesmo admitindo que tudo que imaginamos seja finito, poderíamos ainda assim alegar que concebemos o infinito por outra via, diversa da imaginação (o intelecto puro, por exemplo). Mas, como o conjunto do trecho que estamos discutindo deixa claro, Hobbes não admite que possamos

Gerald Raab. Staatsbibliothek Bamberg - Msc.Bibl.140, fo. 24v

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tudo o que sabemos de Deus é que ele... não é finito. A infinitude, ao menos para seres finitos como nós, só se deixaria apreender como o contrário da finitude. Como procuramos indicar, encontramos autores que buscaram ultrapassar esta definição negativa do infinito. Dois deles são especialmente esclarecedores desta vertente: Anselmo e Descartes. Caso você deseje aprofundar este ponto, recomendamos um estudo que discute as provas da existência de Deus e as objeções que se levantaram a elas, abordando um amplo conjunto de autores (Anselmo, Boaventura, Tomás, Descartes, Malebranche, Espinosa, Leibniz, Kant, entre outros, até F. Schelling): • F. Tomatis, O argumento ontológico – A existência de Deus de Anselmo a Schelling. Tradução: Sérgio J. Schirato. São Paulo: Editora Paulus, 2003. Quanto às fontes primárias, pode ser de serventia consultar Anselmo, Descartes e Pascal. Para o primeiro deles, a referência é: • Anselmo de Cantuária, “Proslógio”, in: Santo Anselmo de Cantuária, Pedro Abelardo (Coleção Os Pensadores). Trad. de A. Ricci. São Paulo: Abril Cultural, 1973. A obra já citada de P. Boehner e E. Gilson, História da filosofia cristã, oferece um bom comentário à demonstração aí efetuada por Anselmo. Quanto a Descartes, consulte sua “Terceira Meditação” (das Meditações metafísicas), que apresenta uma prova da existência de Deus com base na noção de infinitude divina, na linha já antecipada por Anselmo. A demonstração de Descartes assume a validade do cogito (“penso, logo existo”), estabelecido na Segunda Meditação, e investiga as noções que encontro em mim mesmo enquanto substância pensante. (Para outras aproximações do cogito, ver Unidade Eu e o Outro, no módulo “O ‘Eu penso’: Descartes”; Unidade Dúvida e certeza, “Duvi-

Nesta bela cena de um Apocalipse (séc. XI), encontramos uma representação pictórica da revelação: o anjo soando a trombeta.

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acessar ideias ou concebê-las sem que, antes, a realidade que elas designam tenha sido percebida pelos sentidos. Ou, nos termos do trecho sob exame: “o homem não pode ter nenhum pensamento representando uma coisa que não esteja sujeita à sensação”. Aqui entra em cena o empirismo de Hobbes: só representamos aquilo que foi, de início, percebido pelos sentidos, aquilo que foi primeiro matéria para a imaginação. Ora, se admitirmos isso, admitiremos sem dificuldades a afirmação inicial de que não podemos formar ideia do infinito. Afinal, como nos recorda Hobbes mais para o fim do trecho em debate, toda coisa pensada por nós, na medida em que é algo sujeito à sensação, tem de ser uma coisa determinada. A coisa representada pelo pensamento, assim, é sempre “dotada de uma determinada magnitude”, “suscetível de ser dividida em partes” etc. Logo, jamais concebemos algo indeterminado e sem limites, como é o caso do infinito. Conclusão de Hobbes: quando falamos que algo é “infinito”, com isso não qualificamos a coisa em pauta, mas, sim, nossa própria incapacidade de compreendê-la. O infinito, conclui Hobbes, situa-se além de nossa compreensão. Mas isso significa que Hobbes rejeita completamente a existência do infinito, ou a existência de um ser que disponha de qualidades infinitas? Note que, no trecho citado, Hobbes assimila sem rodeios a infinidade a Deus. Nisso, Hobbes agiu como todos os pensadores de seu tempo: a questão do infinito, após a cristianização do Ocidente, passou a concernir diretamente ao ser de Deus. Pois, como vimos há pouco, Deus foi tradicionalmente caracterizado como dispondo de predicados infinitos (“bondade infinita”, “poder infinito”, “sabedoria infinita”, etc.). Entretanto, o trecho que estamos discutindo faria de Hobbes um pensador ateu, que nega a existência de Deus, associado que está à representação do infinito?

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Desafiamos você a identificar, na passagem citada, uma prova que nos permita afirmar que Hobbes nega a existência divina. Reexamine o texto uma última vez. O que nele é afirmado é que não podemos conceber o infinito – e nem conceber, por isso, Deus. Mas uma coisa é afirmar que um ser é inconcebível; outra, que ele não existe... No trecho citado, Hobbes afirma que o nome de Deus é usado “para que o possamos honrar”. Isto é, Hobbes aceita e mesmo defende que honremos a Deus, embora não possamos compreendê-lo. E, uma vez que Deus e a infinidade estão assimilados entre si no argumento de Hobbes, o mesmo, segue-se daí, vale para o infinito: não podemos de fato compreendê-lo, embora possamos atribuí-lo como predicado da sabedoria ou bondade de Deus. Talvez possa parecer estranha a você a ideia de que possamos – e, conforme Hobbes, até mesmo devamos – honrar aquilo que ultrapassa nossa compreensão. Mas essa não é uma convicção isolada. Hobbes alinha-se a muitos outros pensadores que defendem, eles também, que a existência e o significado da infinitude não dependem de nossa capacidade de compreendê-la. Essa tese de Hobbes, aliás, se inscreve em uma vertente que remonta aos primeiros séculos de nossa era. Isso é especialmente o caso ali onde a infinitude se encontra assimilada à ideia cristã da divindade. Uma postura semelhante é encontrada nos textos de outro célebre pensador empirista, o escocês David Hume. O trecho abaixo é extraído de Investigação sobre o entendimento humano, e nele Hume aceita claramente a tese empirista de que nossas representações têm por origem as impressões sensíveis: “[...] quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos ou grandiosos que sejam, sempre verificamos que eles se decompõem

livro do professor

David Hume (1711-1776), autor que discutimos em outros trechos deste livro, viveu quase um século após Hobbes e, sob inúmeros aspectos, diverge das posições do autor do Leviatã. Entretanto, Hume, nisto aprofundando elementos da filosofia hobbesiana, também defende que a origem de nossas ideias é a experiência. O contexto em que se insere o trecho de Hume proposto para análise em sala de aula é o da demonstração da tese empirista, apresentada logo no início da seção II. Hume lança mão de dois argumentos. O primeiro deles corresponde ao parágrafo abaixo. Nele Hume nos adverte que todos os nossos pensamentos e ideias, quando devidamente analisados, resultam em ideias simples, que têm por origem “uma sensação ou sentimento anterior”. A ideia de Deus aparece então, a fim de dar exemplo deste tipo de análise. O segundo argumento, que dá continuação ao passo citado, propõe nossa conjectura sobre um indivíduo incapaz de qualquer sensação, para então indagar: poderia ele dispor das ideias correspondentes? Assim como o cego não possui ideia da cor, diz Hume, assim também o surdo ignora a ideia dos sons. Esses dois argumentos, previne Hume antes de apresentá-los, “são suficientes” para provar a verdade da tese empirista. O que sugerimos a você destacar no trecho citado é a semelhança entre o resultado obtido por Hume e a afirmação, levantada por Hobbes, de que não podemos fazer nenhuma ideia positiva de Deus. Hume, ao argumentar que as características divinas nada mais são do que uma ampliação de características humanas, recusa que possamos

compreender em si mesma a infinidade de Deus. Ora, isso é o mesmo que afirmar que não dispomos de uma noção adequada do infinito, pois sempre o pensamos por aumento de características finitas. Se você quiser aprofundar este debate, uma oportunidade para isso reside em analisar os argumentos apresentados por Hume contra a tese da imortalidade da alma. Eles se encontram em um ensaio relativamente pequeno, intitulado “Da imortalidade da alma”, do qual dispomos de excelente tradução (ver D. Hume, A arte de escrever ensaio. Trad. Márcio Suzuki e Pedro P. Pimenta. São Paulo: Iluminuras, 2009, pp. 271-278). Nesse texto, Hume examina a tese de que, sem a imortalidade da alma, não haveria punição e recompensa eternas. Contra-argumento de Hume: como poderíamos adivinhar os parâmetros morais utilizados por Deus para julgar os homens? Presumir que Deus julgue os homens com base em padrões morais humanos não é atribuir-lhe nosso próprio modo de compreensão das ações, traindo, desse modo, um prejuízo antropomórfico? As circunstâncias que cercam a publicação de “Da imortalidade da alma” dão ideia da disputa que opôs, no curso do século XVIII, livres pensadores – como é o caso de Hume – e partidários da ortodoxia religiosa. Inicialmente, Hume cogitara publicar esse ensaio em uma obra intitulada Cinco dissertações. Distribuiu algumas cópias do volume impresso a conhecidos seus, que o convenceram de recolher a edição devido ao caráter antieclesiástico desse ensaio. O “Da imortalidade da alma” só viria a ser publicado em 1777, no ano seguinte à morte de Hume. finito e infinito

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O objetivo dessa Situação de aprendizagem não é fornecer uma resposta simples ou positiva (como a encontrada no corpo do texto, no parágrafo seguinte), mas exercitar a capacidade de análise e disposição de argumentos: o que mais interessa é o processo de se debruçar sobre o texto, e tentar compreendê-lo mais a fundo, do que chegar a um resultado “correto”. Analisando O Leviatã

Análise de texto em equipe

to. Privilegie as conjunções explicativas (“porque”, “pois” etc.) e conclusivas (“por-

Vamos ler com atenção o trecho do Leviatã (ver p. 360) que traz importantes

tanto”, “logo”, “por conseguinte” etc.). Isso possibilitará a você enxergar a estrutura

consequências para a relação entre finito e infinito. Façamos primeiramente uma

argumentativa da passagem em discussão, apontando o que é afirmado e com

análise gramatical. • Em equipe, realize uma primeira leitura, sublinhando as palavras que ope-

base em que razões. • Faça, juntamente com sua equipe, um esquema da estrutura argumentativa

ram como conectivos do discurso desenvolvido pelo autor. Identifique com os co-

desse trecho e apresente em classe, comparando com o resultado obtido pelas

legas as conjunções que ocorrem no tex-

outras equipes.

O infinito atual nas matemáticas

tencem a ele. Considere, por exemplo, o conjunto dos múltiplos de 3 que são maiores que 4 e menores que 10. Naturalmente, esse conjunto é formado por dois elementos – o 6 e o 9. Podemos representar esse conjunto da seguinte forma: {6 , 9}

Considere agora o conjunto dos divisores de 18 que são maiores que 3 e menores que 18. É fácil perceber que esse conjunto é idêntico ao primeiro. Não importa que estejamos nos referindo a esse conjunto por meio de duas caracterizações diferentes. Importa apenas o fato de que os elementos são exatamente os mesmos. Conclusão idêntica valeria para o caso de o conjunto ser “vazio”, isto é, de não ter nenhum elemento. O conjunto dos presidentes dos Brasil nascidos em Botucatu é idêntico ao conjunto dos peixes que sabem assobiar o Tico-tico no fubá. Em ambos os casos, temos um conjunto que não contém elemento nenhum, e que é chamado por isso de “conjunto vazio”. Pouco importa como nos referimos

finito e infinito

O infinito, por sua própria caracterização conceitual, sempre foi uma noção que oferece dificuldade para ser apreendida. Contudo, no final do século XIX, a noção de infinito sofreu uma verdadeira reviravolta. Pela primeira vez, foi dada uma definição matemática da ideia de “infinitude” – uma definição que parecia finalmente colocar o infinito atual a salvo das críticas que lhe eram feitas desde os tempos de Aristóteles[+]. Uma série de matemáticos chegou a essa nova concepção do infinito mais ou menos ao mesmo tempo, e há controvérsias a respeito de sua paternidade. Os dois principais nomes associados a essa revolução conceitual são os de Georg Cantor (1845-1918) e Richard Dedekind (1831-1916). As teorias que eles formularam são bastante complicadas, mas a ideia de infinito que elas incorporam é relativamente simples. Você deve ter estudado nas aulas de matemática algumas noções de teoria dos conjuntos. Vamos nos lembrar de algumas delas. Um conjunto é determinado única e exclusivamente pelos elementos que per-

O infinito atual nas matemáticas página 365, Situação de aprendizagem A maneira mais simples de fazê-lo é tomar a série e eliminar elementos intermediários. Desde que os intervalos entre os elementos sejam regulares, tanto faz se os “saltos” são de 4 em 4, de 8 em 8, de 1024 em 1024: sempre será possível corelacionar biunivocamente cada elemento a um número natural. Ora, isto quer dizer que o conjunto tem o mesmo número de elementos que o seu subconjunto – justamente a definição de conjunto infinito elaborada por matemáticos como Cantor.

A = {1 , 5 , 9 , 13 , 17 , etc.}

Trabalho por escrito individual

Prove que o conjunto A = {1, 5, 9, 13, 17, etc.} é mesmo infinito, isto é, ache

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uma correspondência biunívoca entre A e uma parte própria de A.

Como ele era uma parte própria do conjunto dos números ímpares, nós éramos levados a dizer que “o número de elementos de A < o número de elementos de I”, e isso acabava nos levando a um beco sem saída. Lembra-se disso? Pois bem. Agora, com nossa definição, o fato de A ser “parte própria” de I já não nos dá razão para dizer que I é “maior” ou “mais numeroso” que A. Ambos têm exatamente o mesmo tamanho. Eles são infinitos, pois existe uma correspondência biunívoca entre eles e certas partes próprias deles mesmos, e também são equinuméricos, pois existe uma correspondência biunívoca entre eles: 1

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Há inúmeros modos de fazê-lo (infinitos, para ser mais preciso). Vejamos

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A associação produzida por essa regra pode ser representada da seguinte forma:

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... etc.

Até aqui, tudo corre às mil maravilhas. O problema surge quando temos dois conjuntos infinitos e não sabemos se existe ou não uma regra para estabelecer a correspondência biunívoca entre seus elementos. Seja, por exemplo, o conjunto dos números naturais e o conjunto dos números racionais. Números racionais, você sabe, são aqueles que podem ser expressos por uma fração: 1⁄1, ½, 37⁄241 etc. E agora? Será que existe uma correspondência biunívoca entre os naturais e os racionais, ou não? Não existe nenhuma regra óbvia a ser aplicada neste caso. Se tentarmos colocar as frações em ordem crescente, veremos que entre duas frações quaisquer sempre existe uma terceira. Na verdade, entre quaisquer duas frações sempre existem infinitas outras. Será que isso é motivo para dizermos que não é possível estabelecer uma cor-

Trabalho por escrito individual • Para você verificar isso com seus próprios meios, ache uma fração F1 entre 0 e ½. Em seguida, ache uma fração F2 entre 0 e F1; e assim por diante. Após o terceiro ou quarto caso, responda se este procedimento pode ou não ser repetido indefinidamente, e por quê.

respondência biunívoca entre os naturais e os racionais? Isso é motivo para dizermos, enfim, que o conjunto dos racionais, apesar de ser infinito como o conjunto dos naturais, não contém o mesmo número de elementos que este último? Se não fosse possível estabelecer a correspondência biunívoca entre os dois conjuntos, essa seria certamente a conclusão a ser tirada. No entanto, Cantor descobriu uma maneira simples de estabelecer uma correspondência biunívoca entre os naturais e os racionais. Imaginemos uma fileira infinita na qual nós poremos todas as frações com numerador 1; imaginemos uma segunda fileira com todas as frações com numerador 2; uma terceira com todas as frações com numerador 3; e assim por diante: 1⁄1 , ½ , ⅓ , ¼ , 1⁄5 , ... 2⁄1 , 2⁄2 , ⅔ , 2⁄4 , 2⁄5 , ... 3⁄1 , 3⁄2 , 3⁄3 , ¾ , 3⁄5 , ... ... Eliminando as frações que expressam números repetidos, 1⁄1 , ½ , ⅓ , ¼ , 1⁄5 , ... 2⁄1 , 2⁄2[=1⁄1], ⅔ , 2⁄4[=½], 2⁄5 , ... 3⁄1 , 3⁄2 , 3⁄3[=1⁄1], ¾ , 3⁄5 , ... ...

obtemos a seguinte lista infinita de listas infinitas de números racionais:

página 370 Se você considerar que vale a pena pormenorizar a objeção de Wittgenstein a Cantor, isso constituirá uma excelente ocasião para promover um trabalho conjunto entre as disciplinas de Filosofia e Matemática. Vejamos, então, em suas linhas principais, a crítica de Wittgenstein à solução fornecida por Cantor, que examinamos acima. Comecemos voltando à prova de Cantor. Supusemos que houvesse uma correspondência biunívoca entre os números naturais e as expansões decimais entre 0 e 1. Representamos essa correspondência por meio do seguinte diagrama:

... etc.

Pronto. O paradoxo se dissolveu.

Infinitos maiores que outros Vamos resumir aquilo que fizemos até aqui. Estávamos lidando com uma noção vaga de “infinito”, e com um critério vago para dizer quando um conjunto tem o mesmo número de elementos que outro. Diante do conjunto dos números naturais e do conjunto dos números pares, nossa primeira reação era dizer que, apesar de ambos serem “infinitos”, o conjunto dos pares aparentava não ter “o mesmo número de elementos” que o conjunto dos naturais, já que aquele é uma parte própria deste último. O conjunto dos naturais tem todos os elementos que pertencem ao conjunto dos pares e outros mais. Isso nos levava a becos sem saída (ou, como se diz em lógica, nos levava a “paradoxos”). O que nós fizemos? Decidimos (isso mesmo: decidimos) que, em nossas discussões, quando dizemos que um conjunto tem o mesmo número de elementos que outro, estamos dizendo que

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há uma correspondência biunívoca entre eles. A partir desta decisão, fica estabelecido que o conjunto dos naturais e o conjunto dos pares têm o mesmo número de elementos, apesar de um ser parte própria do outro. A existência dessa correspondência biunívoca, neste caso, pode ser evidenciada por meio de uma regra de correspondência. A regra é a seguinte. Associamos a cada número natural o número par – ao 0 associamos o 0; ao 1 associamos o 2; ao 2 associamos o 4; ao 3 associamos o 6; e assim por diante. Essa regra pode ser expressa da seguinte forma:

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finito e infinito

rais, que contém todos os números ímpares e, além disso, todos os números pares, tenha o mesmo tamanho que o conjunto dos números pares sozinho?” Seu estranhamento é compreensível. No caso de um conjunto finito, isso jamais acontece. Se um conjunto finito está contido em outro, então ele não pode mesmo ter o mesmo tamanho desse outro. Por que não pode? Porque, pela nossa definição, dois conjuntos têm o mesmo tamanho (isto é, são equinuméricos) caso exista uma correspondência biunívoca entre eles, e essa correspondência jamais vai existir entre dois conjuntos finitos quando um é parte própria do outro. Só que isso não vale para conjuntos infinitos. Se o conjunto é infinito, então ele pode perfeitamente ter o mesmo tamanho que uma de suas partes próprias, como acontece no caso dos naturais e dos ímpares. Foi isso que permitiu aos matemáticos do final do século XIX elaborar uma definição rigorosa do infinito – algo que não tinha sido feito até então. A definição é muito simples: Um conjunto é infinito se (e somente se) for equinumérico a alguma parte própria de si mesmo. Ser infinito, então, quer dizer justamente isso: ter o mesmo tamanho que certas partes próprias de si mesmo. Com essa definição, todas as contradições que surgiam quando falávamos do infinito desaparecem completamente. Lembre-se do conjunto A:

qual seria um procedimento simples para obtenção de progressivas novas frações intermediárias: basta multiplicar o denominador do número mais alto por qualquer_ fator (p. ex.:1 ou √ 2 ou 2 ou π...). Toma-se então a nova fração e repete-se o mesmo procedimento (o nosso algoritmo). finito e infinito

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0, a11, a12, a13...

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5 → etc.

0, a61, a62, a63...

O que nos engana aqui, diz Wittgenstein, são as reticências postas no final de cada uma das expansões e a expressão “etc.”, que se encontra depois do quinto membro dessa lista. As re-

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Conforme for avaçando no sorteio dos dígitos de suas expansões, ele usará sempre essa tabela para ir anotando os resultados. Ele sorteia, então, o primeiro dígito da primeira expansão. Suponhamos que ele sorteie o 6. Lúcio escreve: 0,6... etc. Repare que as reticências não estão

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sendo usadas aqui para simbolizar um número infinito de dígitos que “não estamos vendo”, mas que “devem estar em algum lugar” – elas são usadas apenas para ressaltar o fato de que a expansão não termina nesse ou em qualquer outro sorteio. A expressão “etc.”, por sua vez, não indica a existência de uma série infinita de expansões semelhantes a essa que iniciamos; indica apenas que a série de expansões não terminou aí, e que ela deve pois continuar. Após ter escrito “0,6...” sobre o papel, Lúcio sorteia o segundo dígito da primeira expansão (suponhamos, o 3). Ele anota: 0,63... Sorteia, então, o primeiro dígito da segunda expansão. O dado cai com o número 1 para cima. Lúcio anota: 0,63... 0,1... etc. Digita, então, o terceiro dígito da primeira expansão: 0,633... 0,1... etc. O segundo da segunda: 0,633... 0,15... etc. O primeiro da terceira: 0,633... 0,15... 0,2... etc. E continua procedendo assim indefinidamente, sempre seguindo o esquema inicial. Suponha, agora, que Renata, uma amiga de Lúcio, esteja acompanhando o processo e resolva produzir uma expansão que seja diferente de qualquer expansão que Lúcio venha a escrever. Para isso, ela adota a seguinte estratégia. Quando Lúcio escreve o primeiro dígito do primeiro

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ticências nos fazem pensar que podemos estar diante de uma totalidade infinita de dígitos; a expressão “etc.” nos faz pensar que podemos estar diante de uma lista infinita de números. Se considerarmos que uma “totalidade infinita” é uma contradição em termos, seremos levados a olhar para essa mesma prova de um outro modo. Suponha que o Lúcio de nosso exemplo na ilha resolva escrever não uma única expansão infinita, mas infinitas expansões. Para isso, ele utiliza um método semelhante ao de Cantor. Ele desenha um gráfico semelhante ao que usamos acima, quando construímos a prova de que o conjunto dos naturais é equinumérico ao conjunto dos racionais. Ele marca nesse gráfico a ordem em que escreverá os dígitos de suas sequências de expansões infinitas. Ele escreverá os dígitos na seguinte ordem:

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número (ou seja, 6), Renata escreve o primeiro dígito de seu número (suponhamos, 1): 0,1... Quando Lúcio escreve o segundo dígito do segundo número (isto é, 5), Renata escreve um dígito diferente daquele na segunda posição (digamos, 6): 0,16... Quando, daqui a alguns sorteios, Lúcio escrever o terceiro dígito da terceira expansão, Renata escreverá um dígito diferente na terceira posição de sua expansão, e assim por diante. O que a prova de Cantor demonstra, na verdade, é que, não importa o quão longe Lúcio resolva avançar na construção de sua série de expansões, Renata sempre poderá escrever uma expansão que, até aquele ponto, difere de todas as expansões escritas por Lúcio em pelo menos um dígito. Você poderá objetar: “Mas que resultado mais idiota. É óbvio que Renata pode, a qualquer momento, escrever um número diferente de todos os números que Lúcio escreveu até ali. Basta olhar para os números que Lúcio escreveu, e escrever um número que não esteja na lista!”. Se pensou assim, você tem toda finito e infinito

Para compreender isso, vamos imaginar a seguinte situação. Suponha que um homem chamado “Lúcio” resolva passar o resto de sua vida sorteando os números de uma expansão decimal. Lúcio não usa nenhuma espécie de algoritmo. Ele sorteia os algarismos com um dado. Sua expansão decimal, portanto, só contém algarismos de 1 a 6. Ele chama essa expansão de “expansão de Lúcio”, e estabelece que ela nunca estará completa. Quando ele morrer, a expansão de Lúcio poderá ser continuada por qualquer pessoa que queira jogar aquele dado e anotar mais um dígito no papel. Você acha que faz algum sentido falar em “todos os algarismos da expansão de Lúcio”? Não faz sentido nenhum. Essa expansão se caracteriza exatamente pelo fato de que ela jamais contém “todos” os seus algarismos. Ela contém apenas os algarismos que foram sorteados até agora. Não faz sentido supor que a expansão de Lúcio tenha sido escrita “até o infinito”. Mesmo que Lúcio fosse imortal, e que nunca mais parasse de escrever a sua expansão, ele jamais chegaria ao final dela. Estaria sempre sorteando um novo algarismo. A mesma coisa, diz Wittgenstein, vale para a expansão decimal correspondente a 5. Podemos ir até onde quisermos. Jamais poderemos falar em “todos” os algarismos componentes dessa expansão, mas apenas dos primeiros 100 algarismos, ou do primeiro trilhão de algarismos, dá na mesma. Teremos sempre um segmento inicial da expansão, jamais a expansão “toda”. É contraditório, nesse caso, falarmos na totalidade dos dígitos dessa expansão, pois se trata de uma expansão que não possui totalidade. Está sempre incompleta, sempre aberta, sempre desenvolvida apenas até um certo ponto. Wittgenstein e a tartaruga A crítica que Wittgenstein endereça a Cantor retoma aspectos importantes

que cercam a discussão filosófica sobre o infinito... desde a Antiguidade grega! Afirmar que jamais atingimos senão um valor para o qual sempre se pode encontrar um valor superior, como Wittgenstein objeta a Cantor, é reaver a ideia de que a infinidade (compreendida como totalidade absoluta da série) é inalcançável para nós. Foi pela teologia cristã que a noção de infinidade positiva, estranha ao universo conceitual do pensamento grego, entrou na história da filosofia. Esse ingresso, porém, não foi feito sem dificuldades. A afirmação da infinitude de Deus produziu, em linhas gerais, duas consequências importantes. De um lado, muitos autores, dentre os quais alguns dos mais antigos e influentes pensadores cristãos, insistiram na impossibilidade de nós, seres humanos, enquanto seres finitos, compreendermos positivamente a essência infinita de Deus. De outro, também houve quem defendesse que nossa finitude não impede que ao menos concebamos a infinitude de Deus. Por isso, propuseram-se a fornecer uma prova ou demonstração dessa existência. Santo Anselmo (c.1034-1109) e Descartes[+] (1596-1650) fornecem exemplos disso. Com Cantor e Dedekind – grandes filósofos da matemática do século XIX –, o debate sobre o infinito recebeu novo impulso. Recorrendo à noção de conjuntos equinuméricos, foi possível atingir uma definição positiva do infinito atual. Se aplicássemos esse resultado ao universo conceitual da Antiguidade, é como se o argumento de Cantor e Dedekind desse vantagem a Zenão diante de Aristóteles. Porém, como acabamos de ver, Wittgenstein levantou uma objeção de peso a Cantor: jamais podemos realmente compreender uma “totalidade infinita”... Terá dessa forma o debate chegado a seu termo ou, ao contrário, ele – como a reflexão que o anima – também é infinito?

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a razão. De fato, o resultado é mesmo, por assim dizer, profundamente idiota. Mas, segundo Wittgenstein, é isso que resta da prova de Cantor quando nos livramos da ideia contraditória de uma “totalidade infinita”. O resultado é verdadeiro, sem dúvida. Mas já não tem nenhum interesse. É um resultado trivial, ao qual nenhuma pessoa séria prestaria muita atenção. Nossa reação diante disso é dizer a mesmíssima coisa que você pensou: “Mas quem jamais duvidou que Renata pudesse escrever coisas diferentes daquelas que Lúcio escreveu?”. Esse estilo de fazer filosofia é característico de Wittgenstein. Note que ele não “refutou” a prova de Cantor, nem propôs outra teoria em seu lugar. Ele se limitou a analisar em detalhe aquilo que nós dissemos que estava sendo provado, fazendo-nos ver que o que se provou foi, na verdade, uma outra coisa – uma coisa muito menos profunda e sem a menor importância. Com isso, paramos de projetar sobre a prova de Cantor algo que, na verdade, nunca esteve lá. A prova é reduzida às suas devidas proporções e para de nos sugerir uma profundidade filosófica que, na verdade, ela não tem.

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