Macunaíma, Mário de Andrade

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MÁRIO DE ANDRADE

MACUNAÍMA – O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER

Macunaíma – o herói sem nenhum caráter (1928) é a obra-prima de Mário de Andrade, considerado o espírito mais vasto, o mais versátil e culto do Modernismo brasileiro. Na sua construção, o autor recriou mitos e cantigas indígenas, contos populares, rituais amazônicos e afro-brasileiros. Como escreve Noemi Jaffe no posfácio para esta edição, “Macunaíma é uma das obras mais significativas para os jovens de hoje. Se o herói sem nenhum caráter puder ser pensado como uma metáfora para o Brasil e os brasileiros, então o livro terá cumprido seu destino de estrela”. Além do texto integral e de ilustrações deslumbrantes da artista Mariana Zanetti, o leitor encontrará 520 notas e 706 verbetes de glossário, que contribuem para a compreensão de uma das obras mais instigantes da literatura brasileira.

ISBN 978-85-96-00567-8 9

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Ilustrações MARIANA ZANETTI Posfácio e notas NOEMI JAFFE



MACUNAÍMA O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER



MÁRIO DE ANDRADE MACUNAÍMA O HERÓI SEM NENHUM CARÁTER Ilustrações  MARIANA ZANETTI Posfácio e notas  NOEMI JAFFE

1ª edição

São Paulo – 2016


Copyright © Editora FTD, 2016 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-XX-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br Diretora editorial Ceciliany Alves

Gerente editorial Isabel Lopes Coelho Editora Débora Lima Editor especialista Luís Camargo Editora assistente Agueda C. Guijarro del Pozo Preparadora Marta Lúcia Tasso Revisão técnica Renata Nakano Supervisora de arte Karina Mayumi Aoki Projeto gráfico e diagramação Luciana Facchini Designer assistente Nathália Navarro Diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno

O texto desta edição tomou como base a edição crítica, Paris, Association Archives de la Littérature latino-américaine, des Caraibes et africaine du XXe siècle, Brasília, DF, CNPq, 1988, Coleção arquivos, v. 6. Em respeito ao estilo do autor, foram mantidas as preferências ortográficas do texto original, modificando-se apenas os vocábulos que sofreram alterações nas reformas ortográficas dos anos 1943 e 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Andrade, Mário de, 1893-1945.

Macunaíma – o herói sem nenhum caráter / Mário de

Andrade; ilustrações Mariana Zanetti; posfácio e notas Noemi Jaffe. – 1. ed. – São Paulo: FTD, 2016.

isbn 978-85-96-00567-8

1. Literatura juvenil 2. Romance brasileiro I. Zanetti,

Mariana. II. Jaffe, Noemi. III. Título. 16-05960 cdd-028.5 Índice para catálogo sistemático: 1. Romance : Literatura juvenil 028.5

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MACUNAÍMA

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MAIORIDADE

3

CI, MÃE DO MATO

24

4

BOIUNA LUNA

30

5

PIAIMÃ

40

6

A FRANCESA E O GIGANTE

52

7

MACUMBA

64

8

VEI, A SOL

74

9

CARTA PRAS ICAMIABAS

84

10

PAUÍ-PÓDOLE

97

11

A VELHA CEIUCI

106

12

TEQUE-TEQUE, CHUPINZÃO

123

14

E A INJUSTIÇA DOS HOMENS

13

A PIOLHENTA DO JIGUÊ

134

14

MUIRAQUITÃ

142

15

A PACUERA DE OIBÊ

156

16

URARICOERA

168

17

URSA MAIOR

184

EPÍLOGO

195

POSFÁCIO

199

Pensamenteando sobre o herói de múltiplos caracteres NOEMI JAFFE

NOTAS POR NOEMI JAFFE

205

BIBLIOGRAFIA

236

SOBRE O AUTOR

243

SOBRE AS COLABORADORAS

245



7


1 MACUNAÍMA

No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma1, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas2 pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma. Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não falando. Si3 o incitavam a falar exclamava: – Ai! que preguiça!4… e não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados5 por causa dos guaiamuns diz-que habitando a água-doce por lá. No mocambo si alguma cunhatã se aproximava dele pra fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacororô a cucuicogue6, todas essas danças religiosas da tribo.

Retinto que é muito carregado na cor. Uraricoera rio do estado de Roraima, um dos formadores do rio Branco. Tapanhuma do tupi tapuy-úna, negro. O povo indígena Tapayuna vivia originariamente na região do rio Arinos, próxima ao município de Diamantino, no Mato Grosso. Sarapantar causar espanto; espantar. Jirau cama de varas. Paxiúba palmeira que tem raízes fora da terra e cresce em áreas alagadas.

Saúva espécie de formiga que é uma verdadeira praga agrícola. Apesar de serem importantes na reciclagem de nutrientes e na fertilização do solo, possuem um alto poder de destruição. Guaiamum espécie de caranguejo do litoral brasileiro. Mocambo casa pequena, de construção simples, coberta de palha ou capim; mocambo. Cunhatã mulher; cunhã. Murua, poracê (poracé), torê (toré), bacororô, cucuicogue danças de vários povos indígenas.


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Quando era pra dormir trepava no macuru pequeninho sempre se esquecendo de mijar. Como a rede da mãe estava por debaixo do berço, o herói mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem7. Então adormecia sonhando palavras-feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar. Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto era sempre as peraltagens do herói. As mulheres se riam, muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de pequeno já traz ponta8”, e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói era inteligente. Nem bem teve seis anos deram água num chocalho9 pra ele e Macunaíma principiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca ralando na cevadeira e levasse ele10 passear no mato. A mãe não quis porque não podia largar da mandioca não11. Macunaíma choramingou dia inteiro. De-noite continuou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que a mãe principiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear. A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora, companheira de Jiguê, que levasse o menino. A companheira de Jiguê era bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta vez Macunaíma ficou muito quieto sem botar a mão na graça de ninguém. A moça carregou o piá

Macuru berço indígena. “São duas rodelas de cipó unidas uma a outra por cordéis, cobertas de algodão, formando como que um cesto, que é suspenso a um caibro da casa por uma corda, ficando distante da terra só a altura necessária para que a criança metida nela possa tocar com os pés o chão, e assim pelo movimento das pernas por si se embalar.” Pajelança ritual de cura realizado por um pajé; pajelança de caboclo: conjunto de práticas de cura xamanística, com origem em crenças e costumes dos antigos índios Tupinambás, sincretiza-

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dos pelo contato com o branco e o negro, desde pelo menos a segunda metade do século XVII. Rei Nagô um deus bom da pajelança da Amazônia, segundo Mário de Andrade no seu livro Música de feitiçaria no Brasil. Paneiro cesto amazônico trançado, feito de talas de guarimã, guarumã ou arumã. Guarumá-membeca espécie de guarumã (arumã ou guarimã), planta de até 4 metros de altura. A haste da planta é utilizada na confecção de paneiros e outros tipos de trançado.

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nas costas e foi até o pé de aninga na beira do rio. A água parara pra inventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe estava bonito com muitos biguás e biguatingas avoando na entrada do furo. A moça botou Macunaíma na praia porém ele principiou choramingando, que tinha muita formiga!12… e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame do morro lá dentro do mato. A moça fez. Mas assim que deitou o curumim nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo e ficou um príncipe lindo13. Andaram por lá muito. Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Era que o herói tinha brincado14 muito com ela… Nem bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê já chegava de pescar de puçá e a companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos deu nela muito. Sofará aguentou a sova sem falar um isto. Jiguê não desconfiou de nada e começou trançando corda com fibra de curauá. Não vê que encontrara rasto fresco de anta e queria pegar o bicho na armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê falou que aquilo não era brinquedo de criança. Macunaíma principiou chorando outra vez e a noite ficou bem difícil de passar pra todos. No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer armadilha e enxergando o menino tristinho falou: – Bom-dia, coraçãozinho dos outros. Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo. – Não quer falar comigo, é? – Estou de mal. – Por causa? Então Macunaíma pediu fibra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio e mandou a companheira arranjar fio pro menino. A moça fez. 15 Macunaíma

Aninga planta que cresce na periferia de manguezais. Javari espécie de palmeira. Biguá ave aquática que mergulha em busca de peixes e que pode permanecer um bom tempo debaixo da água. FURO canal estreito. Derrame encosta. Tiririca planta considerada daninha às plantações e de difícil erradicação. Tajá erva de folha grande que, quando cortada e cozida, serve como verdura; taioba.

Trapoeraba espécie de planta medicinal. Serrapilheira camada superficial do solo de florestas e bosques, feita de folhas e ramos em decomposição, misturados à terra. Botar corpo adquirir tamanho de adulto. Piá criança. Enquizilar sentir quizila (desgosto). Curauá espécie de bromélia cujas folhas dão fibras para cordas, redes e cestos; curuatá; carauá; craguatá.


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agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda pra ele e assoprasse bem nela fumaça de petum. Quando tudo estava pronto Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o caxiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra que “estava às ordens”. E foi no mato com o piá nas costas. Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilheira, o pequeno foi crescendo foi crescendo e virou príncipe lindo. Falou pra Sofará esperar um bocadinho que já voltava pra brincarem e foi no bebedouro da anta armar um laço. Nem bem voltaram do passeio, tardinha, Jiguê já chegava também de prender a armadilha no rasto da anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê ficou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará aguentou a coça com paciência. No outro dia a arraiada inda estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!… Porém ninguém não acreditou e todos principiaram o trabalho do dia. Macunaíma ficou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma chegadinha no bebedouro só pra ver. A moça fez e voltou falando pra todos que de-fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda a tribo foi buscar a bicha, matutando na inteligência do curumim. Quando Jiguê chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça, ajudou. E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma, só tripas. O herói jurou vingança.16 No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e ficaram no mato até a boca-da-noite. Nem bem o menino tocou no folhiço e virou num príncipe fogoso. Brincaram. Depois de brincarem três feitas, correram mato fora fazendo

Petum tabaco. Caxiri bebida fermentada à base de mandioca. Caruru prato feito com planta de mesmo nome, ou com quiabos, além de camarões secos, peixe, azeite de dendê, pimenta, amendoim, entre outros.

Sororoca planta nativa das Guianas e do Brasil. Coça surra. Arraiada ato de arraiar, raiar; nascer do sol. Folhiço cobertura de folhas sobre o chão.


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festinhas um pro outro. Depois das festinhas de cotucar, fizeram a das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram com fogo de palha, isso foram muitas festinhas. Macunaíma pegou num tronco de copaíba e se escondeu por detrás da piranheira. Quando Sofará veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo num trapézio de cipó e aos pulos atingiu num átimo o galho mais alto da piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fininho vergou oscilando com o peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles brincaram outra vez balanceando no céu. Depois de brincarem Macunaíma quis fazer uma festa em Sofará17. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas não pôde continuar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói se estatelou de medo e fechou os olhos pra ser comido sem ver. Então se escutou um risinho e Macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era a moça. Macunaíma principiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará gritava de excitação tatuando o corpo dele embaixo com o sangue espirrado. Afinal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes. Ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu com o corpo todo, uivando de prazer. E brincaram mais outra vez. Já a estrela Papa-ceia18 brilhava no céu quando a moça voltou parecendo muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfiando seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito

Copaíba copaibeira; nome de várias árvores que produzem óleo medicinal e madeira avermelhada muito usada em marcenarias. Piranheira árvore grande com os ramos bem desenvolvidos, em geral parcialmente submersos nas margens dos rios da Amazônia. Seus frutos e sementes servem como alimento para piranhas e outros peixes dos rios da região. Tope a parte mais alta. Ao emboléu sem rumo; boléu ou emboléu quer dizer queda estrondosa; pelo contexto, o autor

utiliza a locução com o sentido de “aos trancos”, isto é, aos saltos, aos solavancos. Sapituca desmaio. Em riba em cima. Suçuarana onça-parda, do tupi coóáçú-arana, “o que se assemelha a veado, o que tem cor de veado”. Felino, Puma concolor, da América do Norte, Central e do Sul, que vive em montanhas, florestas tropicais e cerrados.


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bobo.Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou o tamanhão da noite e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra. Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a capoeira, mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e dormiu folgado na rede.

Cardeiro cacto comum em praticamente todo o Nordeste brasileiro. Sua raiz é utilizada no tratamento de distúrbios renais, digestivos, respiratórios e hepáticos; mandacaru (Cereus jamacaru).


2 MAIORIDADE

Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunhã. Era a companheira nova dele e chamava Iriqui19. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido na maçaroca dos cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e todas as manhãs passava coquinho de açaí nos beiços que ficavam totalmente roxos. Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com preto de acariúba e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.20 Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mocambo. Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo cunauaru chamado Maraguigana21 pai do boto ficou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não, era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma isca de jabá. Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou pros manos que inda tinha muita piaba muito jeju muito matrinxão e jatuaranas, todos esses peixes do rio, fossem bater timbó22! Maanape disse: – Não se encontra mais timbó.

Araraúba pequiá-marfim; árvore madeireira. Encarnado vermelho. Sapo cunauaru sapo-cunauaru; cunauaru; pequeno batráquio, de coloração bruna, olhos vermelhos e cujo cantar assemelha-se aos vocábulos cu-mau, que, em tupi, significam meu irmão. Crueira fragmentos de mandioca ralada que não

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passam nas malhas da peneira onde se apura a massa que se converte em farinha. Moquear assar no moquém, que é uma grade de madeira sobre brasas. TIMBÓ tipo de cipó que libera uma substância (a rotenona) que deixa os peixes tontos.

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Macunaíma disfarçando secundou: – Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo de timbó. – Então venha com a gente pra mostrar onde que é. Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam enlameados até os dentes, degringolando juque!23 nos barreiros ocultos pela inundação. E pulapulavam24 se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se agachava e gemia de fadiga. – Deixe de trabucar assim, piá! Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com os pés n’água espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos piuns maruins arurus tatuquiras muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas,25 toda essa mosquitada. Quando foi de-tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói teve medo e disfarçou:

Despotismo grande quantidade. Mamorana árvore originária da Amazônia muito empregada na arborização de ruas. O fruto possui grande semente de sabor semelhante ao do cacau; cacau-selvagem. Candiru pequeno peixe, da bacia do Amazonas, que tem o hábito de introduzir-se nas cavidades

e aberturas do corpo humano com violência e rapidez, abrindo depois as barbatanas, o que torna dolorosa e difícil sua extração. Campear procurar (animais, especialmente gado), percorrendo campo, a pé ou a cavalo. Trabucar trabalhar.


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– Acharam? – Que achamos nada! – Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já foi gente um dia que nem nós… Presenciou que andavam campeando ele e soverteu. Timbó foi gente um dia que nem nós… Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra maloca. Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia falou pra velha: – Mãe, quem que26 leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim. A velha fez. Macunaíma pediu para ela ficar mais tempo com os olhos fechados e carregou tejupar marombas flechas picuás sapicuás corotes urupemas redes, todos esses trens pra um aberto do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha abriu os olhos estava tudo lá e tinha caça peixes, bananeiras dando, tinha comida por demais. Então foi cortar banana. – Inda que mal lhe pergunte, mãe, por que a senhora arranca tanta pacova assim! – Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape que estão padecendo fome. Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha: – Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio no banhado, quem que leva? Pergunta assim! A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em que estavam de já-hoje no mondongo inundado. Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar de dantes, vizinhando com os tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram roncando de fome outra vez.

Soverter desaparecer. Teso parte alta do terreno que em uma superfície inundada fica acima do nível das águas. Tejupar tijupá; abrigo de palha menor que a oca. Maromba vara usada por equilibristas para ajudar a manter a estabilidade na corda bamba. PIcUÁ, SAPIcUÁ sacos para levar roupa ou outras coisas.

Corote pequeno barril, geralmente usado para o transporte de água. Urupema peneira grande, feita de palha, usada na cozinha. Pacova banana. Mondongo terreno baixo, pantanoso, geralmente coberto de plantas.


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Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na cintura e partiu. Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó do Judas27. Andou légua e meia nele, nem se enxergava mato mais, era um coberto plano apenas movimentado com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim no campo onde ele podia crescer mais não e falou: – Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer mais não28. E desapareceu. Macunaíma assuntou o deserto e sentiu que ia chorar. Mas não tinha ninguém por ali, não chorou não. Criou coragem e botou pé na estrada, tremelicando com as perninhas de arco. Vagamundou29 de déu em déu semana, até que topou com o Currupira30 moqueando carne, acompanhado do cachorro dele Papamel. E o Currupira vive no grelo do tucunzeiro e pede fumo pra gente. Macunaíma falou: – Meu avô,31 dá caça pra mim comer? – Sim, Currupira fez. Cortou carne da perna moqueou e deu pro menino, perguntando: – O que você está fazendo na capoeira, rapaiz! – Passeando. – Não diga! – Pois é, passeando… Então contou o castigo da mãe por causa dele ter sido malévolo pros manos. E contando o transporte da casa de novo pra deixa onde não tinha caça deu uma grande gargalhada. O Currupira olhou pra ele e resmungou: – Tu não é mais curumi, rapaiz, tu não é mais curumi não… Gente grande que faiz isso… Macunaíma agradeceu e pediu pro Currupira ensinar o caminho pro mocambo dos Tapanhumas. O Currupira estava querendo mas era comer o herói, ensinou falso:

CAFUNDÓ lugar desabitado, distante e de difícil acesso. Guaxe  ave comum na América do Sul, de plumagem negra, base da cauda vermelha e bico amarelo-esverdeado. Faz ninhos em forma de bolsa pendurada nos ramos das árvores altas. PAPAMEL papa-mel, mamífero de corpo esguio e musculoso, cauda longa e orelhas pequenas e

redondas. Pode apresentar corpo escuro e cabeça e pescoço cinzas ou corpo, cabeça e pescoço branco-amarelados; irara. Segundo João Barbosa Rodrigues, o Currupira “tem consigo sempre um cão chamado Papa-mel”. Grelo primeira folha que sai da semente; broto. Tucunzeiro espécie de palmeira; tucum.


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– Tu vai por aqui, menino-home, vai por aqui, passa pela frente daquele pau, quebra a mão esquerda, vira e volta por debaixo dos meus uaiariquinizês. Macunaíma foi fazer a volta porém chegado na frente do pau, coçou a perninha e murmurou: – Ai! que preguiça!…32 e seguiu direito. O Currupira esperou bastante porém curumim não chegava… Pois então o monstro amontou no viado, que é o cavalo dele, fincou o pé redondo na virilha do corredor e lá se foi gritando: – Carne de minha perna! carne de minha perna! Lá de dentro da barriga do herói a carne respondeu33: – Que foi? Macunaíma apertou o passo e entrou correndo na caatinga porém o Currupira corria mais que ele e o menino isso vinha que vinha acochado pelo outro. – Carne de minha perna! carne de minha perna! A carne secundava34: – Que foi? O piá estava desesperado. Era dia do casamento da raposa e a velha Vei, a Sol35, relampeava nas gotinhas da chuva debulhando luz feito milho. Macunaíma chegou perto duma poça, bebeu água de lama e vomitou a carne. – Carne de minha perna! carne de minha perna! que o Currupira vinha gritando. – Que foi? secundou a carne já na poça. Macunaíma ganhou os bredos pro outro lado e escapou. Légua e meia adiante por detrás dum formigueiro escutou uma voz cantando assim: “Acuti pitá canhém…”36 lentamente. Foi lá e topou com a cotia farinhando mandioca num tipiti de jacitara.

Uaiariquinizês testítulos, na língua dos indígenas Nambikwara. Bredo erva de folha comestível.

Tipiti de jacitara cesto de palha de uma espécie de palmeira em que se coloca a mandioca ralada para ser espremida.


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– Minha vó,37 dá aipim pra mim comer? – Sim, cotia fez. Deu aipim pro menino, perguntando: – Que que você está fazendo na caatinga, meu neto? – Passeando. – Ah o quê! – Passeando, então! Contou como enganara o Currupira e deu uma grande gargalhada. A cotia olhou pra ele e resmungou: – Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não… Vou te igualar o corpo com o bestunto. Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá.38 Macunaíma agradeceu o feito e frechou cantando pro mocambo nativo. A noite vinha besourenta enfiando as formigas na terra e tirando os mosquitos d’água. Fazia um calor de ninho no ar. A velha tapanhumas escutou a voz do filho no longe cinzado e se espantou. Macunaíma apareceu de cara amarrada e falou pra ela: – Mãe, sonhei que caiu meu dente. – Isso é morte de parente, comentou a velha. – Bem que sei. A senhora vive mais uma Sol só. Isso mesmo porque me pariu. No outro dia os manos foram pescar e caçar, a velha foi no roçado e Macunaíma ficou só com a companheira de Jiguê. Então ele virou na formiga quenquém e mordeu Iriqui pra fazer festa nela. Mas a moça atirou a quenquém longe. Então Macunaíma virou num pé de urucum. A linda Iriqui riu, colheu as

Bestunto cabeça.

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sementes se faceirou toda pintando a cara e os distintivos. Ficou lindíssima. Então Macunaíma, de gostoso, virou gente outra feita e morou com a companheira de Jiguê. Quando os manos voltaram da caça Jiguê percebeu a troca logo, porém Maanape falou pra ele que agora Macunaíma estava homem pra sempre e troncudo. Maanape era feiticeiro. Jiguê viu que a maloca estava cheia de alimentos, tinha pacova tinha milho tinha macaxeira, tinha aluá e caxiri, tinha maparás e camorins pescados, maracujá-michira ata abio sapota sapotilha, tinha paçoca de viado e carne fresca de cutiara, todos esses comes e bebes bons… Jiguê conferiu que não pagava a pena brigar com o mano e deixou a linda Iriqui pra ele. Deu um suspiro catou os carrapatos e dormiu folgado na rede.39 No outro dia Macunaíma depois de brincar cedinho com a linda Iriqui, saiu pra dar uma voltinha. Atravessou o reino encantado da Pedra Bonita em Pernambuco40 e quando estava chegando na cidade de Santarém topou com uma viada parida. – Essa eu caço! ele fez. E perseguiu a viada. Esta escapuliu fácil mas o herói pôde pegar o filhinho dela que nem não andava quase, se escondeu por detrás duma carapanaúba e cotucando o viadinho fez ele berrar. A viada ficou feito louca, esbugalhou os olhos parou turtuveou e veio vindo veio vindo parou ali mesmo defronte chorando de amor. Então o herói flechou a viada parida. Ela caiu esperneou um bocado e ficou rija estirada no chão. O herói cantou vitória. Chegou perto da viada olhou que mais olhou e deu um grito, desmaiando. Tinha sido uma peça do Anhanga41… Não era viada não, era mas a própria mãe tapanhumas que Macunaíma flechara e estava morta ali, toda arranhada com os espinhos das titaras e mandacarus do mato.42 Quando o herói voltou da sapituca foi chamar os manos e os três chorando muito passaram a noite de guarda bebendo oloniti e comendo carimã com peixe.

Aluá bebida fermentada feita com a casca de frutas ou farinha de arroz ou de milho. Mapará espécie de peixe da Amazônia. Atualmente, sua pesca atrai milhares de pessoas para a região das ilhas do baixo Tocantins, no Pará. Camorim espécie de peixe do litoral do Nordeste. Ata fruta de casca rugosa, cheia de caroços envolvidos em polpa; fruta-do-conde; pinha. Abio fruta amarela e arredondada, doce e refrescante; abiu.

Sapota árvore que produz o sapoti e da qual se extrai uma substância para se fazer chiclete; sapoti; sapotizeiro; sapotilha. Paçoca alimento preparado com carne assada e farinha de mandioca esmagados numa espécie de pilão. Tornou-se o farnel dos bandeirantes por ser próprio para as viagens pelo Sertão. Cutiara espécie de cutia, típica da Amazônia, menor e com rabo mais desenvolvido; cutia-de-rabo; cutiaia. ►


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Madrugadinha pousaram o corpo da velha numa rede e foram enterrá-la por debaixo duma pedra no lugar chamado Pai da Tocandeira. Maanape, que era um catimbozeiro de marca maior, foi que gravou o epitáfio. E era assim:

Jejuaram o tempo que o preceito mandava e Macunaíma gastou o jejum se lamentando heroicamente. A barriga da morta foi inchando foi inchando e no fim das chuvas tinha virado num cerro macio. Então Macunaíma deu a mão pra Iriqui, Iriqui deu a mão pra Maanape, Maanape deu a mão pra Jiguê e os quatro partiram por esse mundo.

► Carapanaúba árvore de grande porte de madeira pardo-amarelada encontrada frequentemente na Floresta Amazônica. Turtuvear ficar perturbado; perturbar-se; turbar-se; turvar-se. Oloniti olóniti; bebida fermentada, feita com o polvilho torrado da mandioca brava, servida durante as festas dos indígenas Paresí, de Mato Grosso e Rondônia.

Carimã farinha de mandioca; massa de mandioca fermentada na água; bolo feito com essa massa. Tocandeira tucandeira; espécie de formiga da Amazônia utilizada em um ritual de passagem dos indígenas Sateré Mawé. Provoca dor excruciante e envenenamento com manifestações sistêmicas mesmo com uma única picada. Catimbozeiro que pratica catimbó (feitiçaria).




3 CI, MÃE DO MATO

Uma feita os quatro iam seguindo por um caminho no mato e estavam penando muito de sede, longe dos igapós e das lagoas. Não tinha nem mesmo umbu no bairro e Vei, a Sol, esfiapando por entre a folhagem, guascava sem parada o lombo dos andarengos. Suavam como numa pajelança em que todos tivessem besuntado o corpo com azeite de piquiá, marchavam. De repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio com um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém Macunaíma sussurrou: – Tem coisa. Deixaram a linda Iriqui se enfeitando sentada nas raízes duma samaúma e avançaram cautelosos. Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunhã dormindo. Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas43 parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pelo Nhamundá. A cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com jenipapo. O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria44. Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pajeú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer

Umbu fruto do umbuzeiro. Guascar bater com guasca, isto é, chicote de couro cru. ANDARENGO pessoa que anda muito; andarilho. Piquiá fruto do pequizeiro; pequi. O óleo pode ser extraído da polpa ou da semente. Samaúma árvore frondosa, nativa da América do Sul e da África, com flores brancas e cápsulas co-

mestíveis quando verdes, com sementes de que se extrai óleo, envoltas por filamentos sedosos, a paina, com vários usos. Nhamundá rio do Amazonas. Pajeú punhal ou faca pontiaguda, com cabo de chifre.


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sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba45 não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas46 porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos: – Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato! Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou47 com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas araras-vermelhas tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o novo Imperador do Mato-Virgem48. E os três manos seguiram com a companheira nova. Atravessaram a cidade das Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade, tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros da Venezuela. Foi de lá que Macunaíma imperou sobre os matos misteriosos, enquanto Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas. O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas taiocas, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava49 cantando

Txara arma de três pontas dos indígenas Kaxinawá, do Acre. ICAMIABA Amazona. Murucu lança de haste vermelha, enfeitada com penas, cuja ponta, de outra madeira, costuma ser decorada. Tuim a menor ave da família dos papagaios e periquitos no Brasil. Corica espécie de papagaio de cabeça preta, típico da Amazônia; curica. Marupiara indivíduo forte ou feliz, que tem su-

cesso em tudo que empreende, seja na caça, na pesca ou no jogo. Taioca espécie de formigas nômades, que migram em grandes colônias, e, dependendo da espécie, devoram tudo o que encontram no caminho, tanto insetos e larvas quanto pequenos animais; saca-saia; formiga-de-fogo; lava-pés, guaju-guaju; murupeteca. Chupitar chupar ou beber bem devagar, repetidas vezes. Pajuari bebida indígena fermentada de frutas.


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acompanhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins.50 De-noite Ci chegava rescendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava na rede que ela mesmo tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam rindo um pro outro. Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma tinha tonteiras de moleza. – Puxa! como você cheira, benzinho! que ele murmuriava gozado. E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois convidava o companheiro pra mais brinquedo.51 Morto de soneira, infernizado, Macunaíma brincava para não desmentir a fama só, porém quando Ci queria rir com ele de satisfação: – Ai! que preguiça!… que o herói suspirava enfarado. E dando as costas pra ela adormecia bem. Mas Ci queria brincar inda mais… Convidava convidava… O herói ferrado no sono. Então a Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando grandes gargalhadas estorcegando de cócegas. – Faz isso não, oferecida! – Faço! – Deixa a gente dormir, seu bem… – Vamos brincar. – Ai! que preguiça!… E brincavam mais outra vez. Porém nos dias de muito pajuari bebido, Ci encontrava o Imperador do Mato-Virgem largado por aí num porre mãe. Iam brincar e o herói esquecia no meio.

Cotcho viola de cocho; instrumento musical produzido nos estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, fundamental nos gêneros musicais cururu e siriri.

Macota importante, superior, poderoso. Enfarado aborrecido.


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– Então, herói! – Então o quê! – Você não continua? – Continua o quê! – Pois, meus pecados, a gente está brincando e vai você para no meio! – Ai! que preguiça… Macunaíma mal esboçava de tão chumbado. E procurando um macio nos cabelos da companheira adormecia feliz. Então pra animá-lo Ci empregava o estratagema sublime. Buscava no mato a folhagem de fogo da urtiga e sapecava com ela uma coça coçadeira no chuí do herói e na nalachítchi dela. Isso Macunaíma ficava que ficava um lião querendo. Ci também. E os dois brincavam que mais brincavam num deboche de ardor prodigioso. Mas era nas noites de insônia que o gozo inventava mais. Quando todas as estrelas incendiadas derramavam sobre a Terra um ólio calorento que ninguém não suportava de tão quente, corria pelo mato uma presença de incêndio. Nem a passarinhada aguentava no ninho. Mexia inquieta o pescoço, voava pro galho em frente e no milagre mais enorme deste mundo inventava de supetão uma alvorada preta, cantacantando que não tinha fim. A bulha era tremenda o cheiro poderoso e o calor inda mais. Macunaíma dava um safanão na rede atirando Ci longe. Ela acordava feito fúria e crescia pra cima dele. Brincavam assim. E agora despertados inteiramente pelo gozo inventavam artes novas de brincar. Nem bem seis meses passaram e a Mãe do Mato pariu um filho encarnado. Isso, vieram famosas mulatas da Baía, do Recife, do Rio Grande do Norte e da Paraíba, e deram pra Mãe do Mato um laçarote rubro cor de mal, porque agora ela era mestra do cordão encarnado em todos os Pastoris de Natal.52 Depois

Chuí  pênis, na língua dos indígenas (Matsés), do Amazonas. NALACHÍTCHI vagina.

Bulha barulho.


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foram-se embora com prazer e alegria, bailando que mais bailando, seguidas de futebóleres53 águias pequenos xodós seresteiros, toda essa rapaziada dorê.54 Macunaíma ficou de repouso o mês de preceito porém se recusou a jejuar. O pecurrucho tinha cabeça chata e Macunaíma inda a achatava mais batendo nela todos os dias e falando pro guri: – Meu filho, cresce depressa pra você ir pra São Paulo ganhar muito dinheiro.55 Todas as icamiabas queriam bem o menino encarnado e no primeiro banho dele puseram todas as joias da tribo pra que o pequeno fosse rico sempre. Mandaram buscar na Bolívia uma tesoura e enfiaram ela aberta debaixo do cabeceiro porque sinão Tutu Marambá vinha, chupava o umbigo do piá e o dedão do pé de Ci. Tutu Marambá veio, topou com a tesoura e se enganou: chupou o olho dela e foi-se embora satisfeito. Todos agora só matutavam no pecurrucho. Mandaram buscar pra ele em São Paulo os famosos sapatinhos de lã tricotados por dona Ana Francisca de Almeida Leite Morais56 e em Pernambuco as rendas “Rosa dos Alpes”, “Flor de Guabiroba” e “Por ti padeço” tecidas pelas mãos de dona Joaquina Leitão mais conhecida pelo nome de Quinquina Cacunda57. Filtravam o milhor tamarindo das irmãs Louro Vieira58, de Óbidos, pro menino engolir no refresco o remedinho pra lombriga. Vida feliz, era bom!… Mas uma feita jucurutu pousou na maloca do Imperador e soltou o regougo agourento. Macunaíma tremeu assustado espantou os mosquitos e caiu no pajuari por demais pra ver si espantava o medo também. Bebeu e dormiu noite inteira. Então chegou a Cobra Preta59 e tanto que chupou o único peito vivo de Ci que não deixou nem o apojo. E como Jiguê não conseguira moçar nenhuma das icamiabas o curumim sem ama chupou o peito da mãe no outro dia, chupou mais, deu um suspiro envenenado e morreu60. Botaram o anjinho numa igaçaba esculpida com forma de jabuti e pros boitatás não comerem os olhos do morto o enterraram mesmo no centro da taba com muitos cantos muita dança e muito pajuari.61

Jucurutu espécie de coruja. Igaçaba urna funerária indígena. Regougo ato de regougar, soltar a voz. Boitatá cobra de fogo, de mboi, “cobra”, e ta’tá, Agourento de mau agouro, isto é, que sugere “fogo”. que algo ruim vai acontecer. Apojo o leite mais grosso que se tira da vaca, depois de tirado o primeiro, o qual é pouco espesso.


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Terminada a função a companheira de Macunaíma, toda enfeitada ainda, tirou do colar uma muiraquitã62 famosa, deu-a pro companheiro e subiu pro céu por um cipó. É lá que Ci vive agora nos trinques passeando, liberta das formigas, toda enfeitada ainda, toda enfeitada de luz, virada numa estrela. É a Beta do Centauro. No outro dia quando Macunaíma foi visitar o túmulo do filho viu que nascera do corpo uma plantinha. Trataram dela com muito cuidado e foi o guaraná. Com as frutinhas piladas dessa planta é que a gente cura muita doença e se refresca durante os calorões de Vei, a Sol63.

Muiraquitã objeto de pedra com forma de sapo, rã ou perereca, confeccionado principalmente em pedra verde, utilizado pelos povos Tapajó, Santarém e Conduri do Baixo Amazonas, dizimados pelos colonizadores europeus. Era utilizado como

amuleto, símbolo de poder e objeto de troca. Em sua confecção eram utilizados, entre outros, os seguintes minerais: tremolita, actinolita, talco e pirofdita. Mário de Andrade utiliza a palavra muiraquitã como substantivo feminino.


4 BOIUNA LUNA

No outro dia bem cedo o herói padecendo saudades de Ci, a companheira pra sempre inesquecível, furou o beiço inferior e fez da muiraquitã um tembetá. Sentiu que ia chorar. Chamou depressa os manos, se despediu das icamiabas e partiu. Gauderiaram gauderiaram por todos aqueles matos sobre os quais Macunaíma imperava agora. Por toda a parte ele recebia homenagens e era sempre acompanhado pelo séquito de araras-vermelhas e jandaias64. Nas noites de amargura ele trepava num açaizeiro de frutas roxas como a alma dele e contemplava no céu a figura faceira de Ci. “Marvada!” que ele gemia… Então ficava muito sofrendo, muito! e invocava os deuses bons cantando cânticos de longa duração… “Rudá, Rudá!… Tu que secas as chuvas, Faz com que os ventos do oceano Desembestem por minha terra Pra que as nuvens vão-se embora E a minha marvada brilhe Limpinha e firme no céu!… Faz com que amansem Todas as águas dos rios

TEMBETÁ enfeite labial indígena. Do tupi tembé, lábio inferior, e itá, pedra. Gauderiar  levar vida de gaudério, de vadio, de vagabundo.

RUDÁ deus do amor na mitologia tupi.


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Pra que eu me banhando neles Possa brincar com a marvada Refletida no espelho das águas!…” Assim. Então descia e chorava encostado no ombro de Maanape. Jiguê soluçando de pena animava o fogo da caieira pra que o herói não sentisse frio. Maanape engolia as lágrimas, invocando o Acutipuru o Murucututu o Ducucu, todos esses donos do sono em acalantos assim: “Acutipuru, Empresta vosso sono Pra Macunaíma Que é muito manhoso!…” Catava os carrapatos do herói e o acalmava balanceando o corpo. O herói acalmava acalmava e adormecia bem.65 No outro dia os três estradeiros recomeçavam a caminhada através dos matos misteriosos. E Macunaíma era sempre seguido pelo séquito de araras-vermelhas e jandaias.

Caieira fogueira. Acutipuru denominação amazônica do esquilo.

Murucututu grande coruja de orelhas pretas e face branca, comum em parte do Brasil, México, Paraguai e Argentina.


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Caminhando caminhando, uma feita em que a arraiada principiava enxotando a escureza da noite, escutaram longe um lamento de moça. Foram ver. Andaram légua e meia e encontraram uma cascata chorando sem parada66. Macunaíma perguntou pra cascata: – Que é isso! – Chouriço!67 – Conta o que é. E a cascata contou o que tinha sucedido pra ela. – Não vê que chamo Naipi e sou filha do tuxaua Mexô-Mexoitiqui nome que na minha fala quer dizer Engatinha-Engatinha. Eu era uma boniteza de cunhatã e todos os tuxauas vizinhos desejavam dormir na minha rede e provar meu corpo mais molengo que embiroçu. Porém quando algum vinha eu dava dentadas e contapés por amor de experimentar a força dele. E todos não aguentavam e partiam sorumbáticos. Minha tribo era escrava da boiuna Capei que morava num covão em companhia das saúvas. Sempre no tempo em que os ipês de beira-rio se amarelavam de flores a boiuna vinha na taba escolher a cunhã virgem que ia dormir com ela na socava cheia de esqueletos. Quando meu corpo chorou sangue68 pedindo força de homem pra servir, a suinara cantou manhãzinha nas jarinas de meu tejupá, veio Capei e me escolheu. Os ipês de beira-rio relampeavam de amarelo e todas as flores caíram nos ombros soluçando do moço Titçatê 69 guerreiro de meu pai. A tristura talqualmente correição de sacassaia viera na taba e devorara até o silêncio.70 Quando o pajé velho tirou a noite do buraco outra vez, Titçatê ajuntou as florzinhas perto dele e veio com elas pra rede da minha última noite livre. Então mordi Titçatê.

Embiroçu árvore com 15 a 25 metros de altura, com tronco de 50 cm a 80 cm de diâmetro, comum no Cerrado. Contapé pontapé (infere-se pelo contexto). Sorumbático triste. Boiuna ser mitológico da Amazônia. Ao passar, abre sulcos na terra, formando os igarapés. Habita a parte mais funda do rio e assusta os pescadores com seus olhos, que iluminam como tochas; cobra-grande.

Socava buraco embaixo da terra. Suinara coruja de plumagem branca, comum na América do Sul. Jarina palmeira comum na região Norte do Brasil. Suas sementes são usadas para fazer botões. TALQUALMENTE da mesma forma que; tal qual; tal e qual; como. Correição fila de formigas. Sacassaia saca-saia. Ver taioca, p.25.


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O sangue espirrou na munheca mordida porém o moço não fez caso não, gemeu de raiva amando, me encheu a boca de flores que não pude mais morder. Titçatê pulou na rede e Naipi serviu Titçatê. Depois que brincamos feito doidos entre sangue escorrendo e as florzinhas de ipê, meu vencedor me carregou no ombro me jogou na ipeigara abicada num esconderijo de aturiás e flechou pro largo rio Zangado, fugindo da boiuna. No outro dia quando o pajé velho guardou a noite no buraco outra vez, Capei foi me buscar e encontrou a rede sangrando vazia. Deu um urro e deitou correndo em busca nossa. Vinha vindo vinha vindo, a gente escutava o urro dela perto, mais perto pertinho71 e afinal as águas do rio Zangado empinaram como corpo da boiuna ali.72 Titçatê não podia mais remar desfalecido, sangrando sempre com a mordida na munheca. Por isso que não pudemos fugir. Capei me prendeu, me revirou, fez a sorte do ovo em mim, deu certo e a boiuna viu que eu já servira Titçatê. Quis acabar com o mundo de raiva tamanha, não sei… me virou nesta pedra e atirou Titçatê na praia do rio, transformado numa planta. É aquela uma que está lá, lá embaixo, lá! É aquele mururê tão lindo que se enxerga, bracejando n’água pra mim. As flores roxas dele são os pingos de sangue da mordida, que meu frio de cascata regelou. Capei mora embaixo de mim, examinando sempre se fui mesmo brincada pelo moço. Fui sim e passarei chorando nesta pedra até o fim do que não tem fim, mágoas de não servir mais o meu guerreiro T’çatê73… Parou. O choro pingava nos joelhos de Macunaíma e ele soluçou tremido. – Si… si… si a boboiuna aparecesse eu… eu matava ela!74 Então se escutou um urro guaçu e Capei veio saindo d’água. E Capei era a boiuna. Macunaíma ergueu o busto relumeando de heroísmo e avançou pro monstro. Capei escancarou a goela e soltou uma nuvem de apiacás. Macunaíma bateu que mais bateu vencendo os marimbondos. O monstro atirou uma guascada

IPEIGARA aportuguesamento de ÿpéigára, canoa de casca de árvore, no dialeto tupi do Sul; ubá. Abicado encostado. Aturiá ave conhecida também como catingueira, em função do odor desagradável que exala, resultante da fermentação da matéria vegetal durante a digestão.

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Mururê mururé; nome pelo qual se designam tanto as plantas que flutuam apenas durante a cheia, radicando-se no solo no verão, como aquelas que possuem apenas raízes aquáticas. Guaçu grande, do tupi; aqui, no sentido de alto. Apiacá espécie de marimbondo muito agressivo, temido pela forte ferroada. Guascada ato de açoitar com guasca, chicote de couro cru.

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tirlintando com os guizos do rabo, porém nesse momento uma formiga tracuá mordeu o calcanhar do herói.75 Ele agachou distraído com a dor e o rabo passou por cima dele indo bater na cara de Capei. Então ela urrou mais e deu um bote na coxa de Macunaíma. Ele só fez um afastadinho com o corpo, agarrou num rochedo e juque! decepou a cabeça da bicha.76 O corpo dela se estorceu na corrente enquanto a cabeça com aqueles olhões docinhos vinha beijar vencida os pés do vingador. O herói teve medo77 e jogou no viado mato dentro acompanhado pelos manos. – Vem cá, siriri, vem cá! que a cabeça gritava. Eles chispavam mais. Correram légua e meia e olharam pra trás. A cabeça de Capei vinha rolando sempre em busca deles. Correram mais e quando não podiam de fadiga treparam num bacuparizeiro ribeirinho pra ver si a cabeça continuava pra diante. Mas cabeça parou por debaixo do pau e pediu bacuparis. Macunaíma sacudiu a árvore. A cabeça catou as frutas do chão, comeu e pediu mais. Jiguê sacudiu bacuparis dentro d’água porém a cabeça falou que lá não ia não. Então Maanape atirou com toda a força uma fruta longe e enquanto a cabeça ia buscá-la os manos desceram do pau e se rasparam.78 Correndo correndo, légua e meia adiante deram com a casa onde morava o bacharel de Cananeia. O coroca estava na porta sentado e lia manuscritos profundos. Macunaíma falou pra ele: – Como vai, bacharel? – Menos mal, ignoto viajor.79 – Tomando a fresca, não? – C’est vrai, como dizem os franceses. – Bem, té-logo bacharel, estou meio afobado...80 E chisparam outra vez. Atravessaram os sambaquis do Caputera e do Morrete num respiro. Logo adiante havia um rancho teatino. Entraram e fecharam a porta bem. Então Macunaíma pôs reparo81 que perdera o tembetá. Ficou desesperado por-

Tracuá formiga da região amazônica, Camponotus femoratus, que faz ninho na vegetação, em raízes de bromélias e orquídeas. Siriri saci. Bacuparizeiro árvore que produz o bacupari, típica de matas de restinga, no litoral. Fresca brisa que sopra no começo ou no fim do dia. C’est vrai é verdade, em francês.

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Sambaqui morro de conchas, em tupi. Os sambaquis são sítios arqueológicos com achados de civilizações pré-históricas brasileiras. Assemelham-se a pequenos morros de conchas de ostras e moluscos, contendo ossos de peixes e de pequenos animais, pequenos artefatos e, até, esqueletos humanos. Teatino que não se sabe a quem pertence, sem dono.

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que era a única lembrança que guardava de Ci. Ia saindo pra campear a pedra porém os manos não deixaram. Não durou muito a cabeça chegou. Juque! bateu. – Quê que há? – Abra a porta pra mim entrar! Porém jacaré abriu? nem eles! e a cabeça não pôde entrar. Macunaíma não sabia que a cabeça ficara escrava dele e não vinha pra fazer mal não. A cabeça esperou muito porém vendo que não abriam mesmo matutou no que ia ser. Si fosse ser água os outros bebiam, si fosse ser formiga esmagavam, si fosse mosquito flitavam, si fosse trem de ferro descarrilava, si fosse rio punham no mapa…82 Resolveu: “Vou ser Lua”. Gritou: – Abram a porta, gente, que quero umas coisas! Macunaíma espiou pela fresta e avisou Jiguê já abrindo: – Está solta! Jiguê tornou a fechar a porta. Por isso que existe a expressão “Tá solto!”83 indicando que a gente não faz mesmo o que nos pedem. Quando Capei viu que não abriam a porta principou se lamentando muito e perguntou pra iandu caranguejeira si ajudava a subida pro céu. – Meu fio Sol derrete, secundou a aranha tatamanha. Então a cabeça pediu pros xexéus se ajuntarem e ficou noite escura. – Meu fio ninguém não enxerga de noite, disse a aranha tatamanha. A cabeça foi buscar um cuitê de friagem nos Andes e falou: – Despeja uma gota cada légua e meia, fio branqueia de geada. Podemos ir. – Pois então vamos. A iandu principiou fazendo fio no chão. Com o primeiro ventinho que brisou por ali o fio leviano se ergueu no céu. Então a aranha tatamanha subiu por ele e da ponta lá em riba derramou um bocado de geada. E enquanto a iandu caranguejeira fazia mais fio de lá pra riba, o de baixo branqueava todo. A cabeça gritou: – Adeus, meu povo, que vou pro céu!

Iandu aranha, em tupi. Caranguejeira espécie de aranha que não tece fios nem arma teias, cujo nome em tupi é nhanduaçu, aranha grande. Tem o corpo coberto de pelos que, em contato com a pele, produzem comichão e irritação. Tatamanha Tatámanha, no Pará, nome da mulher do Caapora, segundo João Barbosa Rodrigues

(1842-1909), em Poranduba amazonense (1890). Xexéu espécie de pássaro preto. Imita o canto de outras aves e a voz de outros animais. Faz ninho em forma de bolsa pendurada, geralmente em árvores baixas; japiim. Cuitê vasilha que se faz com a casca do fruto da cabaceira; cuia; cabaça. LEVIANO que tem pouco peso, leve.


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E lá foi comendo fio sobessubindo pro campo vasto do céu. Os manos abriram a porta e espiaram. Capei sempre subindo. – Você vai mesmo pro céu, cabeça? – Uum, ela fez não podendo mais abrir a boca. Quando foi ali pela hora antes da madrugada a boiuna Capei chegou no céu. Estava gorducha de tanto fio comido e muito pálida do esforço. Todo o suor dela caía sobre a Terra em gotinhas de orvalho novo. Por causa do fio geado é que Capei é tão fria. Dantes Capei foi a boiuna mas agora é a cabeça da Lua lá no campo vasto do céu. Desde essa feita as caranguejeiras preferem fazer fio de-noite.84 No outro dia os manos deram um campo até a beira do rio mas campearam campearam em vão, nada de muiraquitã. Perguntaram pra todos os seres, aperemas saguis tatus-mulitas tejus muçuãs da terra e das árvores, tapiucabas chabós matinta-pereras pinica-paus e aracuãs do ar, pra ave japiim e seu compadre marimbondo, pra baratinha casadeira, pro pássaro que grita “Taám!” e sua companheira que responde “Taím!”, pra lagartixa que anda de pique com o ratão,85 pros tambaquis tucunarés pirarucus curimatás do rio, os pecaís tapicurus e iererês da praia, todos esses entes vivos mas ninguém não vira nada, ninguém não sabia de nada.86 E os manos bateram pé na estrada outra vez, varando os domínios imperiais. O silêncio era feio e o desespero também. De vez em quando Macunaíma parava pensando na marvada87… Que desejo batia nele! Parava tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorregando pelas faces infantis do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo a cabecinha: – Qual, manos! Amor primeiro não tem companheiro, não!… Continuava a caminhar. E por toda a parte recebia homenagens e era sempre seguido pelo séquito sarapintado88 de jandaias e araras-vermelhas. Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando, o Negrinho do Pastoreio89 pra quem Macunaíma rezava diariamente, se

Aperema espécie de jabuti da Amazônia. Teju o maior dos lagartos brasileiros; teiú. Muçuã pequena tartaruga de água doce. Tapiucaba espécie de vespa muito peçonhenta. Chabó andorinha migratória; designação dada no interior de São Paulo; taperá. Matinta-perera matintapereira; saci; ave da família do cuco.

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Pássaro que grita “Taám!” tachã ou inhumapoca. Segundo Eurico Santos, no seu livro Da ema ao beija-flor, “Taã, diz o macho, e a esposa, sempre meiga, responde Tain”. Sarapintado que tem pintas de várias cores.

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apiedou do panema e resolveu ajudá-lo. Mandou o passarinho uirapuru. Quando sinão quando o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele. Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o pas­sarinho uirapuru. Nem bem minuto passado escutou de novo a bulha e o passarinho pousou na barriga dele. Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari. Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macunaíma havia de ser marupiara não, porque uma tracajá engolira a muiraquitã e o mariscador que apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra90. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro e baludo lá em São Paulo, a cidade macota lambida pelo igarapé Tietê. Dito isto o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando os manos chegaram da pesca Macunaíma falou pra eles: – Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.91 Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar o tembetá roubado. – … e cascavel faça ninho si eu não topo com a muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa aguento firme no toco. Hei de ir só pra tirar a prosa do passarinho uirapuru, minto! da lacraia. Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram ir com ele, mesmo porque o herói carecia de proteção.

Panema infeliz, que não tem sorte, azarado, vítima de feitiço. TRACAJÁ tartaruga de água doce, que tem mau cheiro; pitiú. Mariscador quem marisca, isto é, apanha mariscos.

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Regatão vendedor ambulante. Baludo rico. NEGACEAR fazer negaças, provocações, provocar. Friúme frio. Costado as costas.

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5 PIAIMÃ

No outro dia Macunaíma pulou cedo na ubá e deu uma chegada até a foz do rio Negro pra deixar a consciência na ilha de Marapatá.92 Deixou-a bem na ponta dum mandacaru de dez metros, pra não ser comida pelas saúvas.93 Voltou pro lugar onde os manos esperavam e no pino do dia os três rumaram pra margem esquerda da Sol. Muitos casos sucederam nessa viagem por caatingas rios corredeiras, gerais, corgos, corredores de tabatinga matos-virgens e milagres do sertão. Macunaíma vinha com os dois manos pra São Paulo. Foi o Araguaia que facilitou-lhes a viagem. Por tantas conquistas e tantos feitos passados o herói não ajuntara um vintém só mas os tesouros herdados da icamiaba estrela estavam escondidos nas grunhas do Roraima lá. Desses tesouros Macunaíma apartou pra viagem nada menos de quarenta vezes quarenta milhões de bagos de cacau94, a moeda tradicional. Calculou com eles um dilúvio de embarcações. E ficou lindo trepando pelo Araguaia aquele poder de igaras, duma em uma duzentas em ajojo que nem flecha na pele do rio. Na frente Macunaíma vinha de pé, carrancudo, procurando no longe a cidade. Matutava matutava roendo os dedos agora cobertos de berrugas de tanto apontarem Ci estrela.95 Os manos remavam espantando os mosquitos e cada arranco dos remos repercutindo nas duzentas igaras ligadas, despejava uma batelada de bagos na pele do rio, deixando uma esteira

Ubá canoa feita de casca de árvore com pontaletes no meio e ajustadas com cipó. Corgo córrego, riacho, rio pequeno. Tabatinga argila mole, com certa quantidade de matéria orgânica. Grunha concavidade nas serras.

Dilúvio grande quantidade. Poder grande quantidade. Igara canoa indígena feita de um tronco inteiriço. Ajojo ajoujo; embarcação utilizada no rio São Francisco, constituída pela reunião de duas ou três canoas ligadas por paus roliços.


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de chocolate onde os camuatás pirapitingas dourados piracanjubas uarus-uarás e bacus se regalavam. Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas96 tão vorazes que de quando em quando, na luta pra pegar um naco de irmã espedaçada, pulavam aos cachos pra fora d’água metro e mais. Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. Abicaram. O herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou inteirinho. Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do Sumé97, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira. Quando o herói saiu do banho estava branco loiro e de olhos azuizinhos, água lavara o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo retinta dos Tapanhumas.98 Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo. Macunaíma teve dó e consolou: – Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso que sem nariz.99

Camuatá, pirapitinga, dourado, piracanjuba, uaru-uará, bacu peixes de água doce.


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Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas. Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água santa. Macunaíma teve dó e consolou: – Não se avexe, mano Maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas! E estava lindíssimo na Sol da lapa os três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus.100 Todos os seres do mato espiavam assombrados. O jacareúna o jacaretinga o jacaré-açu o jacaré-ururau de papo amarelo, todos esses jacarés botaram os olhos de rochedo pra fora d’água. Nos ramos das ingazeiras das aningas das mamoranas das embaúbas dos catauaris de beira-rio o macaco-prego o macaco-de-cheiro o guariba o bugio o cuatá o barrigudo o coxiú o cairara, todos os quarenta macacos do Brasil, todos, espiavam babando de inveja. E os sabiás, o sabiacica o sabiapoca o sabiaúna o sabiá-piranga o sabiá-gongá que quando come não me dá, o sabiá-barranco o sabiá-tropeiro o sabiá-laranjeira o sabiá-gute, todos esses ficaram pasmos e esqueceram de acabar o trinado, vozeando vozeando com eloquência. Macunaíma teve ódio. Botou as mãos nas ancas e gritou pra natureza: – Nunca viu não! Então os seres naturais debandaram vivendo e os três manos seguiram caminho outra vez. Porém entrando nas terras do igarapé Tietê adonde o burbom vogava e a moeda tradicional não era mais cacau, em vez, chamava arame contos contecos mil-réis borós tostão duzentorréis quinhentorréis, cinquenta paus, noventa bagarotes, e pelegas cobres xenxéns caraminguás selos bicos de coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridó bicha e pataracos, assim, adonde até liga pra meia ninguém comprava nem por vinte mil cacaus. Macunaíma ficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói!… Murmurou desolado:

Ururau jacaré-de-papo-amarelo. Catauari  planta medicinal. Guariba espécie de macaco brasileiro; bugio. Citado por Mário de Andrade no seu poema “Lundu do escritor difícil”: “Você sabe o francês ‘singe’ / Mas não sabe o que é guariba? / – Pois é macaco, seu mano, / Que só sabe o que é da estranja”. Cuatá espécie de macaco das florestas da Amazônia e da América Central; macaco-aranha.

Coxiú cuxiú; macaco amazônico de pelagem escura e espessa. Cairara espécie de macaco brasileiro. BURBOM bourbon; tipo de uísque fabricado nos Estados Unidos e também um tipo de café. ARAME, CONTOS... enumeração de várias formas de se referir a dinheiro.


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– Ai! que preguiça!… Resolveu abandonar a empresa, voltando pros pagos de que era imperador. Porém Maanape falou assim: – Deixa de ser aruá, mano! Por morrer um carangueijo o mangue não bota luto não! Que diacho! desanima não que arranjo as coisas! Quando chegaram em São Paulo, ensacou um pouco do tesouro pra comerem e barganhando o resto na Bolsa apurou perto de oitenta contos de réis. Maanape era feiticeiro. Oitenta contos não valia muito mas o herói refletiu bem e falou pros manos: – Paciência. A gente se arruma com isso mesmo, quem quer cavalo sem tacha anda de a-pé… Com esses cobres é que Macunaíma viveu. E foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota de São Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada imperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sarapintado volvendo pros matos do norte. Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricuris ubuçus bacabas mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa101 e banzavam pela cidade. Macunaíma lembrou de procurar Ci. Êh! dessa ele nunca poderia esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos fora tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeou campeou mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: “Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gosto e tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão102, numa maloca mais alta que a

Pago lugar em que se nasceu; querência. Aruá pequeno molusco de água doce encontrado na América do Sul. Inajá, ouricuri, ubuçu, bacaba, mucajá, miriti, tucumã espécies de palmeiras.

Curuatá espécie de bromélia. Aqui, no sentido de cesto feito com as fibras das folhas dessa bromélia. Banzar andar à toa.


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Paranaguara. Depois, por causa daquela rede ser dura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes. A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho de sagui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira… Que mundo de bichos! que despropósito de papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatás nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da mandioca!…103 A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina. De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons104 campainhas apitos buzinas e tudo era máquina. As onças-pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina,105 mais cantadeira que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar. Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses era uma gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era

Papão bicho-papão, papa-figo, ogro. MAUARI mawari; espíritos malfeitores que habitam o interior das serras, na mitologia dos indígenas Taurepang, de Roraima.

Jurupari demônio, espírito mau, ente sobrenatural que visita as pessoas em sonho e causa aflições.


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feita pelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado de ofensa: a pacova106. E foi morar numa pensão com os manos. Estava com a boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noite de amor paulistano. Gemia com as dores e não havia meios de sarar até que Maanape roubou uma chave de sacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupou chupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro. Macunaíma passou então uma semana sem comer nem brincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhos da mandioca com a Máquina. A Máquina era que matava os homens porém os homens é que mandavam na Máquina…107 Constatou pasmo que os filhos da mandioca eram donos sem mistério e sem força da máquina sem mistério sem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidades por si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspenso no terraço dum arranhacéu com os manos, Macunaíma concluiu: – Os filhos da mandioca não ganham da máquina nem ela ganha deles nesta luta. Há empate. Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumado com discursos porém palpitava pra ele muito embrulhadamente muito! que a máquina devia de ser um deus de que os homens não eram verdadeiramente donos só porque não tinham feito dela uma Iara explicável mas apenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhada o pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Os homens é que eram máquinas e as máquinas é que eram homens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeu que estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe. Virou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés encomendando lagosta e francesas.

Sapinho espécie de afta que aparece na parte interna da boca.


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No outro dia estava tão fatigado da farra que a saudade bateu nele. Se lembrou da muiraquitã. Resolveu agir logo porque primeira pancada é que mata cobra. Venceslau Pietro Pietra morava num tejupar maravilhoso rodeado de mato no fim da rua Maranhão108 olhando pra noruega do Pacaembu109. Macunaíma falou pra Maanape que ia dar uma chegadinha até lá por amor de conhecer Venceslau Pietro Pietra. Maanape fez um discurso mostrando as inconveniências de ir lá porque o regatão andava com o calcanhar pra frente e si Deus o assinalou alguma lhe achou110. De certo um mauari malevo… Quem sabe si o gigante Piaimã comedor de gente!… Macunaíma não quis saber. – Pois vou assim mesmo. Onde me conhecem honras me dão, onde não me conhecem me darão ou não! Então Maanape acompanhou o mano. Por detrás do tejupar do regatão vivia a árvore Dzalaúra-Iegue111 que dá todas as frutas, cajus cajás cajás-mangas mangas abacaxis abacates jaboticabas graviolas sapotis pupunhas pitangas guajiru cheirando sovaco de preta, todas essas frutas e é mui alta. Os dois manos estavam com fome. Fizeram um zaiacúti com folhagem cortada pelas saúvas, esconderijo no galho mais baixo da árvore pra flecharem a caça devorando as frutas. Maanape falou pra Macunaíma: – Olha, si algum passo cantar não secunda não, mano, sinão adeus minhas encomendas!112 O herói mexeu a cabeça que sim. Maanape atirava com a sarabatana e Macunaíma recolhia por detrás do zaiacúti a caça caindo. Caça caía com estrondo e Macunaíma aparava os macucos macacos micos monos mutuns jacus jaós tucanos, todas essas caças. Porém o estrondo tirou Venceslau Pietro Pietra do farniente113 e ele veio saber o que era aquilo. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente114. Chegou na porta da casa e cantou feito pássaro:

Zaiacúti zayakoti; escudo que os indígenas Paresí utilizam para se aproximar da caça sem serem percebidos pelo animal. PASSO pássaro.

Sarabatana tubo com o qual se sopra violentamente uma pequena seta; zarabatana. Mutum ave da família do galo e do peru.


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– Ogoró! ogoró! ogoró! parecendo muito longe. Macunaíma secundou logo: – Ogoró! ogoró! ogoró! Maanape sabia do perigo e murmurou: – Esconde, mano! O herói escondeu por detrás do zaiacúti entre a caça morta e as formigas. Então gigante veio. – Quem que secundou? Maanape respondeu: – Sei não. – Quem que secundou? – Sei não. Treze vezes. Daí o gigante falou: – Foi gente. Me mostra quem era. Maanape jogou um macuco morto. Piaimã engoliu o macuco e falou: – Foi gente! Me mostra quem era! Maanape jogou um macaco morto. Piaimã engoliu-o e continuou: – Foi gente! Me mostra quem era! Então enxergou o dedo mindinho do herói escondido115 e atirou um baníni na direção. Se ouviu um grito gemido comprido, juuúque! e Macunaíma agachou com a flecha enterrada no coração. O gigante falou pra Maanape: – Atira a gente que eu cacei! Maanape atirou guaribas jaós mutuns mutum-de-vargem mutum-de-fava mutumporanga urus urumutum, todas essas caças porém Piaimã engolia e tornava a pedir a gente que ele flechara. Maanape não queria dar o herói e jogava as caças. Levaram muito tempo assim e Macunaíma já tinha morrido. Afinal Piaimã deu um berro medonho:

Baníni  banini; espécie de flecha.

Jaó ave de penas coloridas, entoa um canto triste ao anoitecer.


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– Maanape, meu neto, deixa de conversa! Atira a gente que eu cacei que sinão te mato, velho safadinho! Maanape não queria jogar o mano mesmo, pegou desesperado em seis caças duma vez, um macuco um macaco um jacu uma jacutinga uma picota e uma piaçoca e atirou no chão gritando: – Toma seis! Piaimã ficou danado. Agarrou quatro paus do mato, uma acapurana um angelim um apió e um carauá, e veio com eles pra cima de Maanape: – Sai do caminho, porqueira! jacaré não tem pescoço, formiga não tem caroço! comigo é só quatro paus na ponta da unha, jogador de caça falsa! Então Maanape ficou com muito medo e jogou, truque! o herói no chão. Foi assim que Maanape com Piaimã inventaram o jogo sublime do truco. Piaimã sossegou. – Este mesmo. Agarrou o defunto por uma perna e foi puxando. Entrou na casa. Maanape desceu da árvore desesperado. Quando ia pra seguir atrás do defunto mano topou com a formiguinha sarará chamada Cambgique. A sarará perguntou: – O que você faz por aqui, parceiro! – Vou atrás do gigante que matou meu mano. – Vou também. Então Cambgique sugou todo sangue do herói, esparramado no chão e nos ramos e sugando sempre as gotas do caminho foi mostrando o rasto pra Maanape. Entraram na casa atravessaram o hol116 e a sala de jantar, passaram pela copa saíram no terraço do lado e pararam na frente do porão. Maanape acendeu uma tocha de jutaí e puderam descer a escadinha negra. Bem na porta da adega rastejava a última gota de sangue. A porta estava fechada. Maanape coçou o nariz e perguntou pra Cambgique:

Picota ave da família do galo, de penas pretas com pintas brancas; galinha-d’angola. Piaçoca ave pequena de peito avermelhado que prefere lugares perto de rio; jaçanã. Acapurana árvore nativa das várzeas úmidas da Amazônia, de casca verde, madeira de boa qualidade, flores brancas e róseas. Angelim árvore leguminosa, de grande altura, de madeira dura e que não apodrece. APIÓ espécie de árvore nativa da Amazônia e do Cerrado, Agonandra brasiliensis, que tem madeira

de boa qualidade (de exportação) e é usada para pisos e mobília; pau-cetim. Sarará nome popular dado às formigas da espécie Camponotus rufipes e Camponotus renggeri. Os ninhos podem frequentemente ser feitos em ninhos abandonados de cupins, mas na maioria das vezes são montes de palha seca. São onívoras, muito agressivas e territorialistas, mas não possuem ferrão. Sua defesa são as mordidas e os jatos de ácido fórmico que expelem do abdome; formiga-de-cupim; sassará; sassará-de-pernas-ruivas. ►


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– E agora! Então veio por debaixo da porta o carrapato Zlezlegue117 e perguntou pra Maanape: – Agora o quê, parceiro? – Vou atrás do gigante que matou meu mano. Zlezlegue falou: – Está bom. Então fecha o olho, parceiro. Maanape fechou. – Abre o olho, parceiro. Maanape abriu e o carrapato Zlezlegue tinha virado numa chave yale, Maanape ergueu a chave do chão e abriu a porta. Zlezlegue virou carrapato outra vez e ensinou: – Com as garrafas bem de cima você convence Piaimã. E desapareceu. Maanape tirou dez garrafas, abriu e veio vindo um aroma perfeito. Era o cauim famoso chamado quiante118. Então Maanape entrou na outra sala da adega. O gigante estava aí com a companheira, uma caapora velha sempre cachimbando que se chamava Ceiuci e era muito gulosa.119 Maanape deu as garrafas pra Venceslau Pietro Pietra, um naco de fumo do Acará pra caapora e o casal esqueceram que havia mundo. O herói picado em vinte vezes trinta torresminhos bubuiava na polenta fervendo. Maanape catou os pedacinhos e os ossos e estendeu tudo no cimento pra refrescar. Quando esfriaram a sarará Cambgique derramou por cima o sangue sugado. Então Maanape embrulhou todos os pedacinhos sangrando em folhas de bananeira, jogou o embrulho num sapicuá e tocou pra pensão. Lá chegado botou o cesto de pé assoprou120 fumo nele e Macunaíma veio saindo meio pamonha ainda, muito desmerecido, do meio das folhas121. Maanape deu guaraná pro mano e ele ficou taludo outra vez. Espantou os mosquitos e perguntou:

► Jutaí árvore de frutos comestíveis e de casca com resina; jatobá. Cauim bebida alcoólica feita pelos indígenas com mandioca fermentada.

Caapora ser mitológico cuja forma mais comum é de homem coberto de pelos, sempre montando em porco-do-mato e que vive a pedir fogo para seu cachimbo; caipora.


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– O que foi que sucedeu pra mim? – Mas, meus cuidados, não falei pra você não secundar cantiga de passarinho! falei sim, pois então!… No outro dia Macunaíma acordou com escarlatina e levou todo o tempo da febre imaginando que carecia da máquina garrucha pra matar Venceslau Pietro Pietra. Nem bem sarou foi na casa dos ingleses pedir uma smith-wesson122. Os ingleses falaram: – As garruchas inda estão muito verdolengas porém vamos a ver si tem alguma temporã. Então foram embaixo da árvore garrucheira. Os ingleses falaram: – Você fica esperando aqui. Si despencar alguma garrucha então pegue. Mas não deixa ela cair no chão não! – Feito. Os ingleses sacudiram sacudiram a árvore e caiu uma garrucha temporã. Os ingleses falaram: – Essa está boa. Macunaíma agradeceu e foi-se embora. Queria que os outros acreditassem que ele falava o inglês porém não falava nem sweetheart não, os manos é que falavam. Maanape também desejava garrucha balas e uísque. Macunaíma aconselhou: – Você não fala inglês bem, mano Maanape, vai lá e a volta é cruel. É capaz de pedir garrucha e darem conversa. Deixa que eu vou. E foi falar outra vez com os ingleses. Debaixo da árvore garrucheira os ingleses sacolejaram sacolejaram os ramos porém não caiu nem uma garrucha não. Então foram debaixo da árvore baleira, os ingleses sacudiram e despencou um desperdício de balas que Macunaíma deixou cair no chão depois catou.


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– Agora uísque, falou. Foram debaixo da árvore uisqueira, os ingleses sacudiram e despencaram duas caixas que Macunaíma pegou no ar. Agradeceu pros ingleses e voltou pra pensão. Lá chegado escondeu as caixas debaixo da cama e foi falar com o mano: – Falei inglês com eles, mano, porém não tinha nem garrucha nem uísque por causa que passou uma correição de formiga oncinha e comeu tudo. As balas trago aqui. Agora dou minha garrucha pra você e quando alguém bulir comigo você atira123. Então virou Jiguê na máquina telefone, ligou pro gigante e xingou a mãe dele.

Formiga oncinha formiga-oncinha; nome dado a uma família de vespas (Mutillidae) cujas fêmeas

não possuem asas; oncinha; formiga-chiadeira; formiga-feiticeira.


6 A FRANCESA E O GIGANTE

Maanape gostava muito de café e Jiguê muito de dormir. Macunaíma queria erguer um papiri pros três morarem porém jamais que papiri se acabava. Os puxirões goravam sempre porque Jiguê passava o dia dormindo e Maanape bebendo café. O herói teve raiva. Pegou numa colher, virou-a num bichinho e falou: – Agora você fica sovertida no pó de café. Quando mano Maanape vier beber, morda a língua dele! Então pegando num cabeceiro de algodão, virou-o numa tatorana branca e falou: – Agora você fica sovertida na maqueira. Quando mano Jiguê vier dormir, chupe o sangue dele! Maanape já vinha entrando na pensão pra beber café outra vez. O bichinho picou a língua dele. – Ai! Maanape fez. Macunaíma bem sonso124 falou: – Está doendo, mano? Quando bichinho me pica não dói não. Maanape teve raiva. Atirou o bichinho muito pra longe falando: – Sai, praga! Então Jiguê entrou na pensão pra tirar um corte125. O marandová branquinho tanto chupou o sangue dele que até virou rosado.

Papiri abrigo contra chuva, feito de folhas, na floresta, à margem de rios. Puxirão trabalho que muitas pessoas fazem de graça em benefício de uma delas ou de todas; mutirão.

Gorar frustrar-se; malograr-se; deixar de acontecer. Sovertido escondido. Maqueira rede de dormir, geralmente feita com fibras trançadas de tucum.


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– Ai! que Jiguê gritou. E Macunaíma: – Está doendo, mano? Ora veja só! Quando tatorana me chupa até gosto. Jiguê teve raiva e atirou a tatorana longe falando: – Sai, praga! E então os três manos foram continuar a construção do papiri. Maanape e Jiguê ficaram dum lado e Macunaíma do outro pegava os tijolos que os manos atiravam. Maanape e Jiguê estavam tiriricas e desejando se vingar do mano. O herói não maliciava nada. Vai, Jiguê pegou num tijolo, porém pra não machucar muito126 virou-o numa bola de couro duríssima. Passou a bola pra Maanape que estava mais na frente e Maanape com um pontapé mandou ela bater em Macunaíma. Esborrachou todo o nariz do herói. – Ui! que o herói fez. Os manos bem sonsos gritaram: – Uai! está doendo, mano! Pois quando bola bate na gente nem não dói! Macunaíma teve raiva e atirando a bola com o pé bem pra longe falou: – Sai, peste! Veio onde estavam os manos: – Não faço mais papiri, pronto!


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E virou tijolos pedras telhas ferragens numa nuvem de içás que tomou São Paulo por três dias. O bichinho caiu em Campinas. A tatorana caiu por aí. A bola caiu no campo. E foi assim que Maanape inventou o bicho-do-café, Jiguê a lagarta-rosada e Macunaíma o futebol, três pragas127. No outro dia, com o pensamento sempre na Marvada, o herói percebeu que xetrara mesmo duma vez e nunca mais que podia aparecer na rua Maranhão porque agora Venceslau Pietro Pietra já o conhecia bem. Imaginou imaginou e ali pelas quinze horas teve uma ideia. Resolveu enganar o gigante. Enfiou um membi128 na goela, virou Jiguê na máquina telefone e telefonou pra Venceslau Pietro Pietra que uma francesa queria falar com ele a respeito da máquina negócios. O outro secundou que sim e que viesse agorinha já porque a velha Ceiuci tinha saído com as duas filhas e podiam negociar mais folgado. Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a máquina ruge, a máquina meia de seda, a máquina combinação com cheiro de casca-sacaca, a máquina cinta aromada com capim-cheiroso, a máquina decoletê129 úmida de patchuli, a máquina mitenes130, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com azul de pau-campeche os olhinhos de piá que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão paraguaio no patriotismo131 pra evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau Pietro Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente. Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo de tesoura132. Não gostou da caguira não e pensou abandonar o randevu133 porém como promessa é dívida fez um esconjuro e seguiu.

Içá formiga saúva do sexo feminino. Bicho-do-café praga-chave na cafeicultura, causando prejuízos, que podem chegar à ordem de 52%, pela redução da produção em consequência da desfolha que causa nas plantas; Leucoptera coffeellum; bicho-mineiro-do-café; bicho-mineiro-do-cafeeiro. Lagarta-rosada uma das várias pragas que atacam o algodoeiro no Brasil; Pectinophora gossypiella.

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Xetrar fracassar. Mangará ponta do cacho de bananas, que tem a forma de um coração e fica coberta com folhas avermelhadas. Beija-flor com rabo de tesoura beija-flor-tesoura é um dos maiores e mais briguentos beija‑flores. Caguira azar.

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Lá chegado encontrou o gigante no portão, esperando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindíssima com esteios de acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de muirapiranga e pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem no centro havia uma mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada de Breves e cerâmica de Belém134, dispostas sobre uma toalha de rendas tecidas com fibra de bananeira. Numas bacias enormes originárias das cavernas do rio Cunani fumegava tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista vindo dos frigoríficos da Continental135, uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um Porto imitação, de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias de chuva. E inda havia dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados de papel os esplêndidos bombons Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté com desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre136. A francesa sentou numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando. Estava com muita fome e comeu bem. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã! Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas disfarçou bem perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau Pietro Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a francesa pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau Pietro Pietra mais uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a pedra também não.

Salamaleque cumprimento exagerado. Esteio suporte que se coloca para firmar alguma coisa. Tesoura armação de madeira em forma de tesoura, sobre a qual se assentam os telhados. Muirapiranga árvore que produz madeira de cor castanho-avermelhada. Pau-cetim Ver apió, p. 48. RIO CUNANI rio do estado do Amapá, onde Emílio Goeldi descobriu, em 1895, duas cavernas fune-

rárias artificiais com peças de cerâmica muito bem conservadas. Tacacá tapioca diluída em água e fervida. Tucupi sumo extraído da mandioca. Jacarezada  prato feito com carne de jacaré. Caiçuma bebida preparada por vários povos indígenas no Brasil. Cumaté árvore de até 5 metros, nativa da Amazônia, com casca de que se extrai tintura roxa; cumati.


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– Você imagina então que vou cedendo assim com duas risadas, francesa? Qual! – Mas eu estou querendo tanto a pedra!… – Vá querendo! – Pois tanto se me dá como se me dava, regatão! – Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua! Colecionador é que é137! Foi lá dentro e voltou carregando um grajau tamanho feito de embira e cheinho de pedra. Tinha turquesas esmeraldas berilos seixos polidos, ferragem com forma de agulha, crisólita pingo-d’água tinideira esmeril lapinha ovo de pomba osso de cavalo machados facões flechas de pedra lascada, grigris rochedos elefantes petrificados, colunas gregas, deuses egípcios, budas javaneses, obeliscos mesas mexicanas, ouro guianense, pedras ornitomorfas de Iguape, opalas do igarapé Alegre, rubis e granadas do rio Curupi, itamotingas do rio das Garças, itacolumitos, turmalinas de Vupabuçu, blocos de titânio do rio Piriá, bauxitas do ribeirão do Macaco, fósseis calcáreos de Pirabas, pérolas de Cametá, o rochedo tamanho que Oaque o pai do Tucano atirou com a sarabatana lá do alto daquela montanha, um litóglifo de Calamare, tinha todas essas pedras no grajau. Então Piaimã contou pra francesa que ele era um colecionador célebre, colecionava pedras. E a francesa era Macunaíma, o herói. Piaimã confessou que a joia da coleção era mesmo a muiraquitã com forma de jacaré comprada por mil contos da imperatriz das icamiabas lá nas praias da lagoa Jaciuruá. E tudo era mentira do gigante. Vai, ele sentou na rede mui rente da francesa, muito! e falou murmuriando que com ele era oito ou oitenta, não vendia não emprestava a pedra mas porém era capaz de dar… “Conforme…” O gigante estava mas era querendo brincar com a francesa. Quando por causa do jeito de Piaimã o herói entendeu o que significava o tal de “conforme”, ficou muito inquieto. Matutou: “Será que o gigante imagina que sou francesa mesmo!… Cai fora, peruano sem-vergonha!” E saiu correndo pelo jardim. O gigante correu atrás. A francesa

Grajau garajau; espécie de cesto no qual os roceiros conduzem galinhas e outras aves ao mercado. Crisólita pedra preciosa da cor do ouro; crisólito. Pingo-d’água designação dada pelos garimpeiros ao quartzo da cor do vidro e ao topázio incolor. Tinideira situação difícil, especialmente por falta de dinheiro. Grigri gris-gris; amuleto. Ornitomorfo com forma de ave. Itamotinga povoado baiano, às margens do rio São Francisco, cujo nome significa pedra branca.

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Rio das Garças rio que banha o estado de Mato Grosso, onde foram encontrados diamantes. Itacolumito arenito micáceo ou quartzito xistoso com folhas de mica, clorita ou talco entre os grãos de quartzo; itacolomito. Lagoa Jaciuruá lagoa Espelho da Lua, citada no terceiro capítulo. Segundo João Barbosa Rodrigues, é o lugar de origem das muiraquitãs: “Dizem que outrora no lago Yacyuaruá reuniam-se as Amazonas em certa época do ano, em determinada fase da Lua e, depois de dias de expiação, ►

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pulou numa moita pra se esconder porém estava uma pretinha lá. Macunaíma cochichou pra ela: – Caterina, sai daí sim? Caterina nem gesto. Macunaíma já meio impinimado com ela, cochichou: – Caterina, sai daí que sinão te bato! A mulatinha ali. Então Macunaíma deu um bruto dum tapa na peste e ficou com a mão grudada nela. – Caterina, me larga minha mão e vai-te embora que te dou mais tapa, Caterina! Caterina era mas uma boneca de cera de carnaúba posta ali pelo gigante. Ficou bem quieta. Macunaíma deu outro tapa com a mão livre e ficou mais preso. – Caterina, Caterina! me larga minhas mãos e vai-te embora pixaim! sinão te dou um pontapé! Deu o pontapé e ficou mais preso ainda. Afinal o herói ficou inteirinho grudado na Catita138. Então chegou Piaimã com um cesto. Tirou a francesa da armadilha e berrou pro cesto: – Abra a boca, cesto, abra a vossa grande boca! O cesto abriu a boca e o gigante despejou o herói nele. O cesto fechou a boca outra vez, Piaimã carregou-o e voltou. A francesa em vez de bolsa estava armada com o mênie que serve pra guardar as flechinhas da sarabatana. O gigante deixou o cesto encostado na porta de entrada e afundou casa adentro pra guardar o mênie entre as pedras da coleção. Porém o mênie era de pano cheirando pixé de caça. O gigante desconfiou daquilo e perguntou: – Vossa mãe é tão cheirosa e gordinha que nem você, criatura? E revirou os olhos de gozo. Ele estava maliciando que o mênie era filhinho da francesa. E a francesa era Macunaíma o herói. Lá do cesto ele escutou a pergunta e principiou ficando excessivamente inquieto. “Pois então será mesmo que esse tal de Venceslau imagina que passei por debaixo de algum arco-da-velha pra ter mu-

► faziam uma festa dedicada à Lua e à mãe do muiraquitã, que no fundo do lago habitava. Finda a festa, quando as águas estavam límpidas e nelas, como em um espelho, a Lua se refletia, todas as Amazonas se lançavam no lago e iam ao fundo receber das mãos da mãe dos muiraquitãs os mesmos, com as formas que desejavam. Saíam moles, mas em contato com o ar endureciam”.

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Impinimado que tem pinima, isto é, birra, implicância. Mênie estojo para flechas. Pixé mau cheiro.

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dado a natureza139? te esconjuro, credo!” Então assoprou raiz de cumacá em pó que bambeia cordas, bambeou o amarrilho do cesto e pulou pra fora. Ia saindo quando topou com o jaguara do gigante, que chamava Xaréu, nome de peixe pra não ficar hidrófobo. O herói teve medo e desembestou numa chispada mãe parque adentro. O cachorro correu atrás. Correram correram. Passaram lá rente à Ponta do Calabouço140, tomaram rumo de Guajará Mirim141 e voltaram pra leste. Em Itamaracá142 Macunaíma passou um pouco folgado e teve tempo de comer uma dúzia de manga-jasmim que nasceu do corpo de dona Sancha143, dizem. Rumaram pra sudoeste e nas alturas de Barbacena144 o fugitivo avistou uma vaca no alto duma ladeira calçada com pedras pontudas. Lembrou de tomar leite. Subiu esperto pela capistrana pra não cansar porém a vaca era de raça Guzerá muito brava. Escondeu o leitinho pobre. Mas Macunaíma fez uma oração assim: “Valei-me Nossa Senhora, Santo Antônio de Nazaré, A vaca mansa dá leite, A braba dá si quisé!”145 A vaca achou graça, deu leite e o herói chispou pro sul. Atravessando o Paraná já de volta dos pampas bem que ele queria trepar numa daquelas árvores porém os latidos estavam na cola dele e o herói isso vinha que vinha acochado pelo jaguara. Gritava: – Sai, pau! E desviava de cada castanheira, de cada pau-d’arco, de cada cumaru bom de trepar. Adiante da cidade de Serra no Espírito Santo quase arrebentou a cabeça numa pedra com muitas pinturas esculpidas que não se entendia. De certo era dinheiro enterrado… Porém Macunaíma estava com pressa e frechou

Cumacá trepadeira, nativa da Amazônia, de flores brancas ou violáceas e raiz medicinal; cumacaá. Jaguara cão sem raça definida, vira-lata. Itamaracá ilha do estado de Pernambuco. Capistrana calçada formada de lajes de grandes dimensões, no centro das ruas.

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Cumaru árvore própria da mata úmida, de grande porte, casca avermelhada ou amarelada, cujos frutos contêm grandes sementes negras, odoríferas, ricas em cumarina.

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pras barrancas da ilha do Bananal146. Enfim enxergou um formigueiro de trinta metros abrindo um olho no rés do chão bem na frente. Barafustou subindo pelo buraco adentro e se encolheu no alto. O jaguara ficou acuando ali. Então o gigante veio e topou com o jaguara acuando o formigueiro. Bem na entrada a francesa perdera uma correntinha de prata. “Meu tesouro está aqui” murmurou o gigante. Então o jaguara desapareceu. Piaimã arrancou da terra com raiz e tudo uma palmeira inajá e nem deixou sinal no chão. Cortou o grelo do pau e enfiou-o pelo buraco por amor de fazer a francesa sair. Porém jacaré saiu? nem ela! Abriu as pernas e o herói ficou como se diz empalado na inajá. Vendo que a francesa não saía mesmo, Piaimã foi buscar pimenta. Trouxe uma correição das formigas anaquilãs que é pimenta de gigante, botou-as no buraco, elas ferraram no herói. Mas nem assim mesmo a francesa saiu. Piaimã jurou vingança. Pinchou fora as anaquilãs e gritou pra Macunaíma: – Agora que te agarro mesmo porque vou buscar a jararaca Elitê! Quando ouviu isso o herói gelou. Com a jararaca ninguém não pode não. Gritou pro gigante: – Espera um bocado, gigante, que já saio. Porém pra ganhar tempo tirou os mangarás do peito e botou na boca do buraco falando: – Primeiro bota isso pra fora, faz favor. Piaimã estava tão furibundo que atirou os mangarás longe. Macunaíma presenciou a raiva do gigante. Tirou a máquina decoletê, pôs ela na boca do buraco, falando outra vez: – Bota isso pra fora, faz favor. Piaimã inda atirou o vestido mais longe. Então Macunaíma botou a máquina cinta, depois a máquina sapatos e foi fazendo assim com todas as roupas. O gigante isso já estava fumando de tão danado. Jogava tudo longe sem nem olhar o

Barafustar entrar com violência.

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que era. Então bem de mansinho o herói pôs o sim-sinhô147 dele na boca do buraco e falou: – Agora me bote pra fora só mais esta cabaça fedorenta. Piaimã cego de raiva agarrou no sim-sinhô sem ver o que era e atirou sim-sinhô com herói e tudo légua e meia adiante. E ficou esperando pra sempre enquanto o herói lá longe ganhava os mororós. Chegou na pensão tomando a bênção de cachorro e chamando gato de tio148, só vendo! suando esfolado com fogo nos olhos, botando os bofes pela boca. Descansou um pedaço e como estava arado de fome bateu uma fritada de sururu de Maceió, um pato seco de Marajó molhando a janta com mocororó. Descansou. Macunaíma estava muito contrariado. Venceslau Pietro Pietra era um colecionador célebre e ele não. Suava de inveja e afinal resolveu imitar o gigante. Porém não achava graça em colecionar pedras não porque já tinha uma imundície delas na terra dele pelos espigões, nos manadeiros nas corredeiras nas seladas e gupiaras altas. E todas essas pedras já tinham sido vespas formigas mosquitos carrapatos animais passarinhos gentes e cunhãs e cunhatãs e até as graças das cunhãs e das cunhatãs… Pra que mais pedra que é tão pesado de carregar!… Estendeu os braços com moleza e murmurou: – Ai! que preguiça!… Matutou matutou e resolveu. Fazia uma coleção de palavras-feias de que gostava tanto149. Se aplicou. Num átimo reuniu milietas delas em todas as falas vivas e até nas línguas grega e latina que estava estudando um bocado. A coleção italiana era completa, com palavras pra todas as horas do dia, todos os dias do ano, todas as circunstâncias da vida e sentimentos humanos. Cada bocagem! Mas a joia da coleção era uma frase indiana que nem se fala.

Mororó árvore que tem folhas parecidas com as pegadas das patas de boi e de vaca; pata-de-vaca. Sururu molusco marinho comestível. Mocororó suco de caju fermentado.

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Gupiara local de mineração, na encosta dos morros, composto por depósitos de cascalho na parte mais elevada dos rios; guapiara ou grupiara.

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7 MACUMBA 150

Macunaíma estava muito contrariado. Não conseguia reaver a muiraquitã e isso dava ódio. O milhor era matar Piaimã… Então saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal enxergou uma peroba sem fim. Enfiou o braço na sapopemba e deu um puxão pra ver si arrancava o pau mas só o vento sacudia a folhagem na altura porém. “Inda não tenho bastante força não”, Macunaíma refletiu.151 Agarrou num dente do ratinho chamado crô, fez uma bruta incisão na perna, de preceito pra quem é frouxo e voltou sangrando pra pensão.152 Estava desconsolado de não ter força ainda e vinha numa distração tamanha que deu uma topada. Então de tanta dor o herói viu no alto as estrelas e entre elas enxergou Capei minguadinha cercada de névoa. “Quando mingua a Luna não comeces coisa alguma” suspirou. E continuou consolado. No outro dia o tempo estava inteiramente frio e o herói resolveu se vingar de Venceslau Pietro Pietra dando uma sova nele pra esquentar153. Porém por causa de não ter força tinha mas era muito medo do gigante. Pois então resolveu tomar um trem e ir no Rio de Janeiro se socorrer de Exu diabo em cuja honra se realizava uma macumba no outro dia. Era junho e o tempo estava inteiramente frio. A macumba se rezava lá no Mangue no zungu da tia Ciata154, feiticeira como não tinha outra, mãe de santo

Sapopemba raiz chata e grossa de certas árvores, como a samaúma; sapopema. Exu orixá iorubano. Mensageiro dos orixás, é quem leva as oferendas dos fiéis e pune quem ofende os orixás ou falham no cumprimento das obrigações. Neste capítulo é identificado ao diabo cristão.

Macumba nome genérico com que se costuma designar as religiões afro-brasileiras, especialmente a umbanda e o candomblé. Zungu casa de muitos quartos pequenos onde moram famílias com poucos recursos; cortiço. Mãe de santo sacerdotisa-chefe de um terreiro de umbanda ou candomblé.


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famanada e cantadeira ao violão. Às vinte horas Macunaíma chegou na biboca levando debaixo do braço o garrafão de pinga obrigatório. Já tinha muita gente lá, gente direita, gente pobre, advogados garçons pedreiros meias-colheres deputados gatunos, todas essas gentes e a função ia principiando. Macunaíma tirou os sapatos e as meias como os outros e enfiou no pescoço a milonga155 feita de cera de vespa tatucaba e raiz seca de açacu. Entrou na sala cheia e afastando a mosquitada foi de quatro saudar a candomblezeira imóvel sentada na tripeça, não falando um isto. Tia Ciata era uma negra velha com um século no sofrimento, javevó e galguincha com a cabeleira branca esparramada feito luz em torno da cabeça pequetita. Ninguém mais não enxergava olhos nela, era só ossos duma compridez já sonolenta pendependendo pro chão de terra. Vai, um rapaz filho de Oxum, falavam, filho de Nossa Senhora da Conceição cuja macumba era em dezembro, distribuiu uma vela acesa pra cada um dos marinheiros marcineiros jornalistas ricaços gamelas fêmeas empregados-públicos, muitos empregados-públicos!156 todas essas gentes e apagou o bico de gás alumiando a saleta. Então a macumba principiou de deveras se fazendo um sairê pra saudar os santos. E era assim: Na ponta vinha o ogã tocador de atabaque, um negrão filho de Ogum, bexiguento e fadista de profissão, se chamando Olelê Rui Barbosa157.

Meia-colher servente de pedreiro. Tatucaba vespa de coloração azul cujo ninho tem a forma de carapaça de tatu; cabatatu. Açacu árvore da Amazônia, Hura crepitans, cujo látex é muito venenoso; açacuzeiro; árvore-do‑diabo. Candomblezeiro espectador, praticante ou sacerdote do candomblé. Javevó muito alto. Galguincho muito magro. Oxum orixá iorubano das águas doces, da riqueza, da beleza e do amor.

Gamela aquele que trabalha como engenheiro sem ser diplomado. Sairê manifestação cultural composta por elementos religiosos e rituais indígenas; sairé. Ogã no candomblé, título conferido a pessoas prestadoras de relevantes serviços à comunidade do terreiro ou mesmo especialistas nos rituais como músicos, sacrificadores de animais etc. Ogum orixá iorubano do ferro, patrono de todos aqueles que habitualmente usam instrumentos ou ferramentas desse metal. ►


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Tabaque mexemexia acertado num ritmo que manejou toda a procissão. E as velas jogaram nas paredes de papel com florzinhas, sombras tremendo vagarentas feito assombração. Atrás do ogã vinha tia Ciata quase sem mexer, só beiços puxando a reza monótona. E então seguiam advogados taifeiros curandeiros poetas o herói gatunos portugas senadores, todas essas gentes dançando e cantando a resposta da reza. E era assim: – Va-mo sa-ra-vá!158… Tia Ciata cantava o nome do santo que tinham de saudar: – Ôh Olorung! E a gente secundando: – Va-mo sa-ra-vá!… Tia Ciata continuava; – Ôh Boto-tucuxi! E a gente secundando: – Va-mo sa-ra-vá!… Docinho numa reza mui monótona. – Ôh Iemanjá! Anamburucu! e Oxum! três Mães-d’água! – Va-mo sa-ra-vá!… Assim. E quando a tia Ciata parava gritando com gesto imenso: – Sai Exu! porque Exu era o diabo-coxo, um capiroto malévolo, mas bom porém pra fazer malvadezas, era um tormento na sala uivando: – Uúum!… uúum!… Exu! Nosso padre Exu!… E o nome do diabo reboava com estrondo diminuindo o tamanhão da noite fora. O sairê continuava: – Ôh Rei Nagô! – Va-mo sa-ra-vá!…

► Bexiguento  que tem marcas de bexiga (varíola). Fadista pessoa que canta fado, canção popular portuguesa. Aqui, no sentido de músico. Taifeiro profissional responsável pela arrumação, limpeza e cozinha dentro de uma embarcação. Olorung Olorum; uma das divindades iorubás da Criação. Boto-tucuxi na pajelança da Ilha do Marajó, no Pará, o boto é uma das formas que o “encantado”

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pode assumir. O encantado, por sua vez, é um ser sobrenatural, que possui poder de cura ou maldição, e vive no fundo de rios ou no interior das matas. Iemanjá orixá feminino das águas, é reverenciada no Brasil como mãe de todos os orixás. Anamburucu Nanã; orixá feminino, consi­de­ rada a mais velha das mães-d’água, cuja manifestação são as águas profundas.

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Docinho na reza monótona. – Ôh Baru! – Va-mo sa-ra-vá!… Quando sinão quando tia Ciata parava gritando com gesto imenso: – Sai Exu! porque Exu era o pé de pato, um jananaíra malévolo. E de novo era o tormento na sala uivando: – Uúum!… Exu! Nosso padre Exu!… E o nome do diabo reboava com estrondo encurtando o tamanho da noite. – Ôh Oxalá! – Va-mo sa-ra-vá!… Era assim. Saudaram todos os santos da pajelança, o Boto-branco que dá os amores, Xangô, Omulu, Iroco, Oxosse, a Boiuna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar muito, todos esses santos e o sairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda aquela gente suando, médicos padeiros engenheiros rábulas polícias criadas focas assassinos Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe de santo imóvel. Já quase todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de beber. E foi lá que Macunaíma provou pela primeira vez o caxiri temível cujo nome é cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande gargalhada. Depois da bebida, entre bebidas, seguiram as rezas de invocação. Todos estavam inquietos ardentes desejando que um santo viesse na macumba daquela noite. Fazia já tempo que nenhum não vinha por mais que os outros pedissem. Porque a macumba da tia Ciata não era que nem essas macumbas falsas não, em que sempre o pai de terreiro fingia vir Xangô Oxosse qualquer, pra contentar

Baru “orixá citado por João do Rio (As religiões no Rio), sem pormenores de elementos que o identifiquem. Artur Ramos (O negro brasileiro) possibilita ser o mesmo Wari-waru, orixá da varíola”. Jananaíra Jananaura; personagem folclórico da região do Tocantins que costuma vagar pelo mato em matilha como os cães. Oxalá nome pelo qual é mais conhecido, no Brasil, Obatalá – orixá superior iorubano, criador da Terra e dos seres humanos.

Xangô orixá iorubano, senhor do raio e do trovão. Segundo alguns relatos tradicionais, é uma divindade superior, tendo participado da Criação como controlador da atmosfera. Omulu Omolu; orixá que espalha e cura a varíola, muito temido por sua severidade. Iroco orixá da tradição iorubá. Oxosse Oxóssi; orixá iorubano da caça e dos caçadores. ►


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os macumbeiros. Era uma macumba séria e quando santo aparecia, aparecia deveras sem nenhuma falsidade. Tia Ciata não permitia dessas desmoralizações do zungu dela e fazia mais de doze meses que Ogum nem Exu não apareciam no Mangue. Todos desejavam que Ogum viesse. Macunaíma queria Exu só pra se vingar de Venceslau Pietro Pietra. Entre golinhos de abrideira, uns de joelhos outros de quatro, todas essas gentes seminuas rezavam em torno da feiticeira pedindo a aparição dum santo. À meia-noite foram lá dentro comer o bode159 cuja cabeça e patas já estavam lá no peji, na frente da imagem de Exu que era um tacuru de formiga com três conchas fazendo olhos e boca. O bode fora morto em honra do diabo e salgado com pó de chifre e esporão de galo-de-briga. A mãe de santo puxou a comilança com respeito e três pelos-sinais160 de atravessado. Toda a gente vendedores bibliófilos pés-rapados acadêmicos banqueiros, todas essas gentes dançando em volta da mesa cantavam: “Bamba querê Sai Aruê Mongi gongô Sai Orobô Êh!… Ô mungunzá Bom acaçá Vancê nhamanja De pai Guenguê, Êh!…

► Budum bodum; transpiração malcheirosa do bode e da cabra. COTY marca de perfume francês. Pitium cheiro de peixe; pitiú. Pai de terreiro pai de santo: o principal sacerdote de um terreiro.

Peji no candomblé e em outras religiões, local sagrado do terreiro, quarto fechado onde se realizam as cerimônias mais importantes e são guardados os objetos dos cultos. Tacuru pequeno monte de terra fofa, encontrados em campos alagadiços.


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E conversando pagodeando devoraram o bode consagrado e cada qual buscando o garrafão de pinga dele porque ninguém não podia beber no de outro, todos beberam muita caninha, muita! Macunaíma dava grandes gargalhadas e de repente derrubou vinho na mesa. Era sinal de alegrão pra ele e todos imaginavam que o herói era o predestinado daquela noite santa. Não era não. Nem bem reza recomeçou se viu pular no meio da saleta uma fêmea obrigando todos a silêncio com o gemido meio choro e puxar canto novo. Foi um tremor em todos e as velas jogaram a sombra da cunhã que nem monstro retorcido pro canto do teto, era Exu! Ogã pelejava batendo tabaque pra perceber os ritmos doidos do canto novo, canto livre, de notas afobadas cheio de saltos difíceis, êxtase maluco baixinho tremendo de fúria. E a polaca161 muito pintada na cara, com as alças da combinação arrebentadas, estremecia no centro da saleta, já com as gorduras quase inteiramente nuas. Os peitos dela balangavam batendo nos ombros na cara e depois na barriga, juque! com estrondo. E a ruiva cantando. Afinal a espuminha rolou dos beiços desmanchados, ela deu um grito que diminuiu o tamanhão da noite mais, caiu no santo e ficou dura. Passou um tempo de silêncio sagrado. Então tia Ciata se levantou da tripeça que uma mazombinha substituiu no sufragante por um banco novo nunca sentado162, agora pertencendo pra outra. A mãe de terreiro veio vindo veio vindo. Ogã vinha com ela. Todos os outros estavam de-pé se achatando nas paredes. Só tia Ciata veio vindo veio vindo e chegou junto do corpo duro da polaca no centro da saleta ali. A feiticeira tirou a roupa, ficou nua, só com os colares os braceletes os brincos de contas de prata pingando nos ossos. Foi tirando da cuia que ogã pegava o sangue coalhado do bode comido e esfregando a pasta na cabeça da babalaô. Mas quando derramou o efém verdento em riba, a dura se estorceu gemida e o cheiro iodado embebedou o ambiente. Então a mãe de santo entoou a reza sagrada do Exu, melopeia monótona.

Mazombo filho de pais estrangeiros, especialmente portugueses, nascido no Brasil. Sufragante instante, momento.

Efém provável variação de efum, do iorubá efun, giz. Melopeia canto monótono.


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Quando acabou, a fêmea abriu os olhos, principiou se movendo bem diferente de já-hoje e não era mais fêmea era o cavalo do santo163, era Exu. Era Exu, o romãozinho que viera ali com todos pra macumbar. O par de nuas executava um jongo improvisado e festeiro que ritmavam os estralos dos ossos da tia, os juques dos peitos da gorda e o ogã com batidos chatos. Todos estavam nus também e se esperava a escolha do Filho de Exu pelo grande Cão presente. Jongo temível… Macunaíma fremia de esperança querendo o cariapemba pra pedir uma tunda em Venceslau Pietro Pietra. Não se sabe o que deu nele de supetão, entrou gingando no meio da sala derrubou Exu e caiu por cima brincando com vitória. E a consagração do Filho de Exu novo era celebrada por licenças de todos e todos se urarizaram164 em honra do filho novo do icá. Terminada a cerimônia o diabo foi conduzido pra tripeça, principiando a adoração. Os ladrões os senadores os jecas os negros as senhoras os futebóleres, todos, vinham se rojando por debaixo do pó alaranjando a saleta e depois de batida a cabeça com o lado esquerdo no chão, beijavam os joelhos beijavam todo o corpo do uamoti. A polaca vermelha tremendo rija pingando espuminha165 da boca em que todos molhavam o mata-piolho pra se benzerem de atravessado, gemia uns roncos regougados meio choro meio gozo e não era polaca mais, era Exu, o jurupari mais macanudo daquela religião. Depois que todos beijaram adoraram e se benzeram muito, foi a hora dos pedidos e promessas. Um carniceiro pediu pra todos comprarem a carne doente dele e Exu consentiu. Um fazendeiro pediu pra não ter mais saúva nem maleita no sítio dele e Exu se riu falando que isso não consentia não. Um namorista pediu pra pequena dele conseguir o lugar de professora municipal para casarem e Exu consentiu. Um médico fez um discurso pedindo pra escrever com muita elegância a fala portuguesa e Exu não consentiu166. Assim. Afinal veio a vez de Macunaíma o filho novo do fute. E Macunaíma falou:

Romãozinho Romão; segundo Câmara Cascudo, “entidade zombeteira, inquieta e malévola, […] divertindo-se em preparar acidentes desagradáveis e humilhantes aos viajantes solitários”. Jongo dança afro-brasileira, originária talvez da região de Benguela, na atual Angola. Cariapemba Segundo Nei Lopes, na sua Enciclo­pé­dia brasileira da diáspora africana, “força ao mesmo tempo protetora e destruidora, tida, por incom­preensão

[…], como entidade maléfica dos negros angolas, correspondente ao Diabo dos cristãos”. Icá Ĩcá; grande diabo dos indígenas Kaxinawá. Jeca homem do campo; jeca-tatu; caipira. Uamoti gênio do mal, dos indígenas Paresí. Macanudo poderoso, respeitável pela força, pres­ tígio, inteligência. Fute diabo.


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– Venho pedir pra meu pai por causa que estou muito contrariado. – Como se chama? perguntou Exu. – Macunaíma, o herói. – Uhum… o maioral resmungou, nome principiado por Ma tem má-sina… Mas recebeu com carinho o herói e prometeu tudo o que ele pedisse porque Macunaíma era filho. E o herói pediu que Exu fizesse sofrer Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente. Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar. Esperou um momento, o eu do gigante veio, entrou dentro da fêmea, e Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no corpo polaco. O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que mais deu. Exu gritava: – Me espanca devagar Que isto dói dói dói! Também tenho família E isto dói dói dói! Enfim roxo de pancada sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando no chão. E era horroroso… Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar um banho salgado e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse pisando vidro através dum mato de urtiga e agarra-compadre até as grunhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos de vidro, unhadas de espinhos e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra recebesse o

Apóstata que comete apostasia, ou seja, que renuncia às crenças de uma religião.

Agarra-compadre trepadeira, Caesalpinia sepiaria, de espinhos fortes e em forma de anzol, que forma barreiras intransponíveis; espinho-de-cerca.


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guampaço dum marruá, o coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões de quarenta vezes quarenta mil formigas-de-fogo e o corpo de Exu retorceu sangrando empolando na terra, com uma carreira de dentes numa perna, com quarenta vezes quarenta mil ferroadas de formiga na pele já invisível, com a testa quebrada pelo casco dum bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu dum cheiro intolerável. E Exu gemia: – Me chifra devagar Que isto dói dói dói! Também tenho família E isto dói dói dói! Macunaíma ordenou muito tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau Pietro Pietra aguentou pelo corpo de Exu. Afinal a vingança do herói não pôde inventar mais nada e parou. A fêmea só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio fatigado. E era horroroso. Lá no palácio da rua Maranhão em São Paulo tinha um corre-corre sem parada. Vinham médicos veio a Assistência todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra sangrava todo urrando. Mostrava uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia coice de potro, queimado enregelado mordido e todo cheio das manchas e galos duma tremendérrima sova de pau. Na macumba continuava o silêncio de horror. Tia Ciata veio maneira e principiou rezando a reza maior do diabo. Era a reza sacrílega entre todas, que se errando uma palavra dá morte, a reza do Padre Nosso Exu, e era assim: – Padre Exu achado nosso que vós estais no trezeno inferno da esquerda de baixo, nóis te quereremo muito, nóis tudo! – Quereremos! quereremos!

Guampaço golpe com guampo (chifre); chifrada. Marruá touro ou novilho bravio. Bagual cavalo ou potro arisco. Formiga-de-fogo  Ver taioca, p.25.

Aspa chifre. Agudo pontudo. Trezeno décimo terceiro.


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– … O pai nosso Exu de cada dia nos dai hoje, seja feita vossa vontade assim também no terreiro da sanzala que pertence pro nosso padre Exu, por todo o sempre que assim seja, amém!167… Glória pra pátria jeje de Exu! – Glória pro fio de Exu! Macunaíma agradeceu. A tia acabou: – Chico-t era um príncipe jeje que virou nosso padre Exu dos século seculoro168 pra sempre que assim seja, amém. – Pra sempre que assim seja, amém! Exu ia sarando sarando, tudo foi desaparecendo por encanto quando a caninha circulou e o corpo da polaca virou são outra vez. Se escutou uma bulha tamanha e tomou o espaço um cheiro de breu queimado enquanto a fêmea deitava pela boca um anel de azeviche169. Então voltou do desmaio vermelha gorda só que mui fatigada e agora estava só a polaca ali, Exu tinha ido embora. E pra acabar todos fizeram a festa juntos comendo bom presunto e dançando um samba de arromba em que todas essas gentes se alegraram com muitas pândegas liberdosas. Então tudo acabou se fazendo a vida real. E os macumbeiros, Macunaíma, Jaime Ovalle170, Dodô171, Manu Bandeira172, Blaise Cendrars173 Ascenso Ferreira174, Raul Bopp175, Antônio Bento176, todos esses macumbeiros saíram na madrugada.

Jeje termo genérico que, no Brasil, designa os africanos da antiga Costa dos Escravos, atual Benin.


8 VEI, A SOL 177

Macunaíma ia seguindo e topou com a árvore Volomã178 bem alta. Num galho estava um pitiguari que, nem bem enxergou o herói, se desgoelou cantando – “Olha no caminho quem vem! Olha no caminho quem vem!” Macunaíma olhou pra cima com intenção de agradecer mas Volomã estava cheinha de fruta. O herói vinha dando horas de tanta fome e a barriga dele empacou espiando aquelas sapotas sapotilhas sapotis bacuris abricôs mucajás miritis guabijus melancias ariticuns, todas essas frutas179. – Volomã, me dá uma fruta, Macunaíma pediu. O pau não quis dar. Então o herói gritou duas vezes: – Boiôiô, boiôiô! quizama quizu180! Caíram todas as frutas e ele comeu bem. Volomã ficou com ódio. Pegou o herói pelos pés e atirou-o pra além da baía de Guanabara numa ilhota deserta, habitada antigamente pela ninfa Alamoa181 que veio com os holandeses. Macunaíma pendia tanto de fadiga que pegou no sono durante o pulo. Caiu dormindo embaixo duma palmeirinha guairô muito aromada onde um urubu estava encarapitado. Ora o pássaro careceu de fazer necessidade, fez e o herói ficou escorrendo sujeira de urubu. Já era de-madrugadinha e o tempo estava inteiramente frio. Macunaíma acordou tremendo, todo enlambuzado. Assim mesmo examinou

Pitiguari ave também denominada gente-de-fora-vem, nome que evoca seu canto. Guabiju fruta de polpa suculenta, semelhante à jabuticaba, mas que não nasce presa ao tronco. Ariticum araticum: planta característica do Cerrado.

guairô guariroba, na língua dos indígenas Paresí; espécie de palmeira, Syagrus oleracea, nativa do Cerrado, a única palmeira que possui palmito de sabor amargo, entre as exploradas comercialmente no Brasil.


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bem a pedra mirim da ilhota pra ver si não havia alguma cova com dinheiro enterrado182. Não havia não. Nem a correntinha encantada de prata que indica pro escolhido, tesouro de holandês. Havia só as formigas jaquitaguas ruivinhas. Então passou Caiuanogue, a estrela da manhã. Macunaíma já meio enjoado de tanto viver pediu pra ela que o carregasse pro céu. Caiuanogue foi se chegando porém o herói fedia muito. – Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. Assim nasceu a expressão “Vá tomar banho!” que os brasileiros empregam se referindo a certos imigrantes europeus183. Vinha passando Capei, a Lua. Macunaíma gritou pra ela: – Sua bênção, dindinha Lua! – Uhúm… que ela secundou. Então ele pediu pra Lua que o carregasse pra ilha de Marajó. Capei veio chegando porém Macunaíma estava mesmo fedendo por demais. – Vá tomar banho! ela fez. E foi-se embora. E a expressão se fixou definitivamente184. Macunaíma gritou pra Capei que pelo menos desse um foguinho pra ele aquecer. – Peça no vizinho!185 ela fez apontando pra Sol que já vinha lá no longe remando pelo paraná guaçu. E foi-se embora.

Jaquitagua uma das variações de “jiquitaia” que em tupi quer dizer “sal com pimenta”, em referência ao ardor causado pela ferroada dessas formigas. Ver taioca, p. 25.

PARANÁ braço de rio caudaloso separado deste por uma série de ilhas ou canal que liga dois rios; paranã. Do tupi, para’nã, semelhante ao mar. PARANÁ GUAÇU aqui, no sentido de mar.


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Macunaíma tremia que mais tremia e o urubu sempre fazendo necessidade em riba dele. Era por causa da pedra ser muito pequetitinha. Vei vinha chegando vermelha e toda molhada de suor. E Vei era a Sol. Foi muito bom pra Macunaíma porque lá em casa ele sempre dera presentinhos de bolo-de-aipim pra Sol lamber secando. Vei tomou Macunaíma na jangada que tinha uma vela cor de ferrugem pintada com muruci186 e fez as três filhas limparem o herói, catarem os carrapatos e examinarem si as unhas dele estavam limpas. E Macunaíma ficou alinhado outra vez. Porém por causa dela estar velha vermelha e tão suando o herói não maliciava que a coroca era mesmo a Sol, a boa da Sol poncho dos pobres. Por isso pediu pra ela que chamasse Vei com seu calor porque ele estava lavadinho bem mas tremendo de tanto frio. Vei era a Sol mesmo e andava matinando fazer Macunaíma genro dela. Só que ainda não podia aquentar ninguém não, porque era cedo por demais, não tinha força. Pra distrair a espera assobiou dum jeito e as três filhas dela fizeram muitos cafunés e cosquinhas no corpo todo do herói. Ele dava risadas chatas, se espremendo de cócegas e gostando muito. Quando elas paravam pedia mais estorcendo já de antegozo. Vei pôs reparo na sem‑vergonhice do herói, teve raiva. Foi ficando sem vontade de tirar fogo do corpo e esquentar ninguém. Então as cunhatãs agarraram na mãe, amarraram bem ela e Macunaíma dando muitos munhecaços na barriga da bruaca saiu que saiu um fogaréu por detrás e todos se aquentaram187. Principiou um calorão que tomou a jangada, se alastrou nas águas e doirou a face limpa do ar. Macunaíma deitado na jangada lagarteava numa quebreira azul. E o silêncio alargando tudo… – Ai… que preguiça… o herói suspirou. Se ouvia o murmurejo da onda, só. Veio um enfaro feliz subindo pelo corpo de Macunaíma, era bom… A cunhatã mais moça batia o

Enfaro fastio, falta de apetite.


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urucungo que a mãe trouxera da África. Era vasto o paraná e não tinha uma nuvem na gupiara elevada do céu. Macunaíma cruzou as munhecas no alto por detrás fazendo um cabeceiro com as mãos e, enquanto a filha da luz mais velha afastava os mosquitos borrachudos em quantidade, a terceira chinoca com as pontas das tranças fazia estremecer de gosto a barriga do herói. E era se rindo em plena felicidade, parando pra gozar de estrofe em estrofe que ele cantava assim: “Quando eu morrer não me chores, Deixo a vida sem sodade;

– Mandu sarará188,

Tive por pai o desterro, Por mãe a infelicidade,

– Mandu sarará…

Papai chegou e me disse: – Não hás de ter um amor!

– Mandu sarará,

Mamãe veio e me botou Um colar feito de dor,

– Mandu sarará…

Que o tatu prepare a cova Dos seus dentes desdentados,

– Mandu sarará…

Para o mais desinfeliz De todos os desgraçados,

Urucungo berimbau.

– Mandu sarará…”189

Chinoca diminutivo de china, moça, menina (gauchismo).


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Era bom… O corpo dele relumeava de ouro cinzando nos cristaizinhos do sal e por causa do cheiro da maresia, por causa do remo pachorrento de Vei, e com a barriga assim mexemexendo com cosquinhas de mulher, ah!… Macunaíma gozou do nosso gozo, ah!… “Puxavante! Que filha-duma… de gostosura, gente!” exclamou. E cerrando os olhos malandros, com a boca rindo num riso moleque safado de vida boa, o herói gostou gostou e adormeceu. Quando a jacumã de Vei não embalou mais o sono dele Macunaíma acordou. Lá no longe se percebia mais que tudo um arranha-céu cor-de-rosa. A jangada estava abicada na caiçara da maloca sublime do Rio de Janeiro. Ali mesmo na beira d’água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí que mora Vei a Sol com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro dela porque afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bolo-de-aipim pra ela chupar secando, falou: – Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra ti é Oropa França e Baía190. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí191. Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele. Então Vei saiu com as três filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez que Macunaíma não saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhãs por aí. Macunaíma tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe. Nem bem Vei com as três filhas entraram no cerradão que Macunaíma ficou cheio de vontade de ir brincar com uma cunhã. Acendeu um cigarro e a vontade foi subindo. Lá por debaixo das árvores passavam muitas cunhãs cunhé cunhé192 se mexemexendo com talento e formosura. – Pois que fogo devore tudo! Macunaíma exclamou. Não sou frouxo agora pra mulher me fazer mal!

Jacumã espécie de pá indígena que serve de remo ou leme de uma canoa.


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E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se ergueu na jangada e com os braços oscilando por cima da pátria decretou solene: – pouca saúde e muita saúva, os males do brasil são!193 Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo Antônio que era capitão de regimento 194 e depois deu em cima de todas as cunhãs por aí. Logo topou com uma que fora varina lá na terrinha do compadre chegadinho-chegadinho e inda cheirava no-mais! um fartum bem de peixe. Macunaíma piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram. Agora195 estão se rindo um pro outro. Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a boca-da-noite as moças que vinham na frente encontraram Macunaíma e a portuguesa brincando mais. Então as três filhas de luz se zangaram: – Então é assim que se faz, herói! Pois nossa mãe Vei não falou pra você não sair da jangada e não ir brincar com as outras cunhãs por aí?! – Estava muito tristinho! o herói fez. – Não tem que tristinho nem mané tristinho, herói! Agora que você vai tomar um pito de nossa mãe Vei! E viraram muito zangadas pra velha: – Veja, nossa mãe Vei, o que vosso genro fez! Nem bem a gente foi no cerradão que ele escapuliu, deu em cima duma boa, trouxe ela na vossa jangada e brincaram até mais não! Agora estão se rindo um pro outro! Então a Sol se queimou e ralhou assim: – Ara ara ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em cima de nenhuma cunhã não!… Falei sim! E inda por cima você brinca com ela na jangada minha e agora estão se rindo um pro outro! – Estava muito tristinho! Macunaíma repetiu.

Varina  vendedora ambulante de peixe.


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– Pois si você tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros homens e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma. Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou: – Si eu subesse… – O “si eu subesse” é santo que nunca não valeu pra ninguém196, meus cuidados! Você o que é mas é muito safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhuma das minhas três filhas não! Daí Macunaíma pisou nos calos também: – Pois nem eu queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez!197 Então Vei com as três filhas foram pedir pouso num hotel e deixaram Macunaíma dormir com a portuga na jangada. Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças pra darem o passeio na baía e encontraram Macunaíma com a portuguesa inda pegados no sono. Vei acordou os dois e fez presente da pedra Vató198 pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo quando a gente quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz. Macunaíma inda passou esse dia brincando com a varina pela cidade. Quando foi de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração medonha. Era Mianiquê-Teibê199 que vinha pra engolir o herói. Respirava com os dedos, escutava pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o cheiro da assombração e jogou no viado200 Flamengo fora. Então Mianiquê-Teibê comeu a varina e se foi. No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.


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9 CARTA PRAS ICAMIABAS 201

Ás mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas. Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis, São Paulo. Senhoras: Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos, entretanto, iniciar estas linhas de saúdade e muito amor, com desagradável nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo202, no dizer de seus prolixos habitantes – não sois conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, se afirma, cavalgardes203 ginetes belígeros e virdes204 da Hélade clássica205; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperator206 vosso, tais dislates da erudição, porém heis de convir conosco que, assim, ficais mais heroicas e mais conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga. Mas não devemos esperdiçarmos207 vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá. Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã; que outrém grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias esdrúxulas, ortografam muyrakitan208 e até mesmo

Missiva carta. Nova novidade, notícia. Voz aqui, no sentido de palavra. Espúrio que não obedece às regras da boa linguagem. Ginete cavalo de raça. Belígero referente a guerra; belicoso. Hélade o mesmo que Grécia. Dislate disparate, absurdo.

Conspícuo visível, que chama atenção, ilustre. Plátina provável neologismo, combinação de platina, metal nobre, branco-prateado, e pátina, oxidação geralmente esverdeada que aparece na superfície do bronze e do cobre quando expostos ao ar durante algum tempo. Fero característica de fera; feroz, selvagem. Desdita falta de dita, isto é, de sorte; infelicidade.


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muraqué-itã, não sorriais! Haveis de saber que esse vocábulo, tão familiar ás vossas trompas de Eustáquio209, é quasi desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros, etc.; sendo que alguns desses termos são neologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano210. Mas não nos sobra já vagar para discretearmos “sub tegmine fagi”211, sobre a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessará mais, por sem dúvida, é saberdes que os guerreiros de cá não buscam mavórticas212 damas para o enlace epitalámico213; mas antes as preferem dóceis e facilmente trocáveis por pequeninas e voláteis folhas de papel a que o vulgo chamará dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a que hoje fazemos ponto de honra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já os ouvidos latinos do vosso Imperador, é desconhecida dos guerreiros, e de todos em geral que por estas partes respiram. Apenas alguns “sujeitos de importáncia em virtude e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Souza214, citado pelo doutor Rui Barbosa215, ainda sobre as muiraquitãs projectam as suas luzes, para aquilatá-las de medíocre valia, originárias da Ásia, e não de vossos dedos, violentos no polir. Estávamos ainda abatidos por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá216,

Grilo guarda de trânsito. Mazorqueiro que provoca baderna, baderneiro. Nefando que nem se deve nomear, porque causa forte repulsa. Petimetre do francês petit-maître, pessoa afetada na maneira de se vestir e se comportar. Conspurcar tornar impuro.

Discretear falar com discernimento. Sáurio lagarto. Metapsíquico  referente à Metapsíquica, termo proposto pelo médico francês Charles Richet (1850-1935), em 1891, para o que hoje costuma ser designado Parapsicologia.


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provocado por algum libido saùdoso, como explica o sábio tudesco217, doutor Sigmund Freud (lede Fróide)218, se nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido, estava nas dilectas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do Peru, e de origem francamente florentina, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do velocino219 roubado. As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são as mais lisonjeiras possíveis220; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã; e por ela vos pediremos alvíssaras. Porque, súbditas dilectas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos em précaria condição. O tesouro que d’aí trouxemos, foi-nos de mister convertê-lo na moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido às oscilações do Câmbio221 e à baixa do cacau. Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que a chuvas do vil metal222, repuxos brasonados de champagne, e uns monstros comestíveis, a que, vulgarmente dão o nome de lagosta223. E que monstros encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça polida e sobrosada, feita a modo de casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de muitos feitios; de modo que o pesado engenho, deposto num prato de porcelana de Sêvres, se nos antoja qual velejante trirreme a bordeisjar224 água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra225. Ponde tento na acentuação deste vocábulo, senhoras Amazonas, pois muito nos pesara não preferísseis conosco, essa pronúncia, condizente com a lição dos clássicos, á pronúncia Cleopátra, dicção mais moderna; e que alguns vocabulistas levianamente subscrevem, sem que se apercebam de que é ganga desprezível, que nos trazem, com o enxurro de França, os galiparlas226 de má morte.

Alvíssara recompensa que se dá a quem restitui um objeto perdido. De mister necessário. Repuxo jato de água. Brasonado enfeitado com brasão (emblema de família nobre). Sobrosado rosado, que tem cor que se aproxima ao rosa. Remígero provável neologismo, combinação de rêmige, que rema, e o sufixo -ígero (-gero), “que

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traz”; “que contém”, “que produz”, sugerindo algo como “que parece remo”. Antojar representar, parecer. Trirreme embarcação usada na Antiguidade, movida por três fileiras superpostas de remadores. Ganga resíduo não aproveitável no processo de extração de metais.

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Pois é com esse delicado monstro, vencedor dos mais delicados véus paladinos, que as donas de cá tombam nos leitos nupciais. Assim haveis de compreender de que alvíssaras falàmos; porque as lagostas são caríssimas, caríssimas súbditas, e algumas hemos nós adquiridas por sessenta contos e mais227; o que, convertido em nossa moeda tradicional, alcança a vultosa soma de oitenta milhões de bagos de cacau… Bem podereis conceber, pois, quanto hemos já gasto; e que já estamos carecido do vil metal, para brincar com tais difíceis donas. Bem quiséramos impormos á nossa ardida chama uma abstinéncia, penosa embora, para vos pouparmos despesas; porêm que ánimo forte não cedera ante os encantos e galanteios de tão agradáveis pastoras! Andam elas vestidas de rutilantes joias e panos finíssimos, que lhes acentuam o donaire do porte, e mal encobrem as graças, que a de nenhuma outra cedem pelo formoso do torneado e pelo tom. São sempre alvíssimas, as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram no brincar, que enumerá-las, aqui, seria fastiendo porventura; e, certamente, quebraria os mandamentos de discrição, que em relação de Imperator para súbditas se requer. Que beldades! Que elegáncia! Que cachet228! Que dégagé flamífero, ignívomo, devorador!! Só pensamos nelas, muito embora não nos descuidemos, relapso229, da nossa muiraquitã. Nós, nos parece, ilustres Amazonas, que assaz ganharíeis em aprenderdes com elas, as condescendéncias, os brincos e passes do Amor. Deixaríeis então a vossa orgulhosa e solitária Lei, por mais amáveis mesteres230, em que o Beijo sublima, as Volúpias encandecem231, e se demonstra gloriosa, “urbi et orbe”232, a subtil força do Odor di Fêmia233, como escrevem os italianos. E já que nos detivemos neste delicado assunto, não no abandonaremos sem mais alguns reparos, que vos poderão ser úteis. As donas de São Paulo, sobre serem mui formosas e sábias, não se contentam com os dons e exceléncia que a Natura lhe concedeu; assaz se preocupam elas de si mesmas; e não puderam

Paladino defensor; protetor. Ardido cheio de ardor, isto é, calor ou paixão. Rutilante que rutila, que brilha muito; brilhante. Donaire elegância. Alvíssimo muito alvo; muito branco. Fastiendo que causa fastio, aborrecimento; fastidioso.

cachet cachê; selo, característica, pagamento por um trabalho, em francês. Dégagé liberado; que não tem limites, em francês. Flamífero que produz flamas, chamas. Ignívomo que vomita fogo. Assaz muito. Sobre além de.


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acabarem consigo, que não mandassem vir de todas as partes do globo, tudo o que de mais sublimado e gentil acrisolou a Sciéncia fescenina, digo, feminina das civilizações avitas. Assim é que chamaram mestras da velha Europa, e sobretudo de França, e com elas aprenderam a passarem o tempo de maneira bem diversa da vossa. Ora se alimpam, e gastam horas nesse delicado mester, ora encantam os convívios teatrais da sociedade, ora não fazem coisa alguma; e nesses trabalhos passam elas o dia tão entretecidas e afanosas que, em chegando a noute, mal lhes sobra vagar para brincarem e presto se entregam nos braços de Orfeu234, como se diz. Mas heis de saber, senhoras minhas, que por cá dia e noute divergem singularmente do vosso horário belígero; o dia começa quando para vós é o pino dele, e a noute, quando estais no quarto sono vosso, que, por derradeiro, é o mais reparador. Tudo isso as donas paulistanas aprenderam com as mestras de França; e mais o polimento das unhas e crescimento delas, bem como aliás “horresco referens”235, das demais partes córneas dos seus companheiros legais. Deixai passe esta fl0rida236 ironia! E muito há que vos diga ainda sobre o jeito com que cortam as comas, de tal maneira gracioso e viril, que mais se assemelham elas a éfebos237 e Antínous238, de perversa memória, que a matronas de tão directa progénie latina.239 Todavia, convireis conosco, no desacerto de longas tranças por cá, si atenderdes ao que mais atrás ficou dito; pois que os doutores de São Paulo não derribam as suas requestadas pela força, senão que a troco de oiro e de locustas, as ditas comas são de somenos240; acrescendo ainda que assim se amainam os males, que tais comas acarretam, de serem moradia e pasto habitual de insectos mui daninhos241, como entre vós se dá. Pois não contentes de terem aprendido de França, as subtilezas e passes da galantaria á Luís XV 242, as donas paulistanas importam das regiões mais

Acrisolar aperfeiçoar. Fescenino obsceno. Avito que procede dos avós ou antepassados; civilização avita: civilização antiga; Antiguidade. Afanoso que trabalha com afã, isto é, com empenho, intensidade ou grande atividade. Presto rápido. Derradeiro último.

Córneo referente a partes córneas, chifres. COMA cabelo comprido. Requestado pessoa que é alvo de cortejo, galanteio. Locusta lagosta, em latim. Somenos menor importância. Amainar acalmar. Galantaria arte de galantear.


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inhóspitas o que lhes acrescente ao sabor, tais como pezinhos nipónicos, rubis da índia, desenvolturas norte-americanas; e muitas outras sabedorias e tesoiros internacionais. Já agora vos falaremos ainda, bem que por alto, dum nitente armento de senhoras, originárias da Polónia243, que aqui demoram e imperam generosamente. São elas mui alentadas no porte e mais numerosas que as areias do mar oceano. Como vós, senhoras Amazonas, tais damas formam um gineceu; estando os homens que em suas casas delas habitam, reduzidos escravos e condenados ao vil ofício de servirem. E por isso não se lhes chamam homens, sinão que á voz espúria de garçons244 respondem; e são assaz polidos e silentes, e sempre do mesmo indumento gravebundo trajam. Vivem essas damas encasteladas num mesmo local, a que chamam por cá de quarteirão, e mesmo de pensões ou “zona estragada”245; sobrelevando notar que a derradeira destas expressões não caberia, por indina246, nesta notícia sobre as coisas de São Paulo, não fora o nosso anseio de sermos exacto e conhecedor. Porém, si como vós, formam essas queridas senhoras um clan de mulheres, muito de vós se apartam no físico, no género de vida e nos ideais. Assim vos diremos que vivem á noute, e se não dão aos afazeres de Marte nem queimam o destro seio247, mas a Mercúrio248 cortejam tão somente; e quanto aos seios, deixam-nos evolverem, á feição de gigantescos e flácidos pomos, que, si lhes não acrescentam ao donaire, servem para numerosos e árduos trabalhos de excelente virtude e prodigiosa excitação. Ainda lhes difere o físico, tanto ou quanto monstruoso, bem que de amável monstruosidade, por terem elas o cérebro nas partes pudendas249, e, como tão bem se diz em linguagem madrigalesca250, o coração nas mãos. Falam numerosas e mui rápidas línguas; são viajadas e educadíssimas; sempre todas obedientes por igual, embora ricamente díspares entre si, quais loiras, quais morenas, quais fossem maigres, quais rotundas; e de tal sorte abun-

Nitente brilhante. Armento rebanho de gado ou de cavalos. Gineceu na Grécia antiga, parte da habitação destinada às mulheres. Aqui, por metonímia, significa grupo de mulheres. Silente silencioso, calado. Indumento roupa.

Evolver mover, movimentar. Pomo parte comestível de alguns frutos. Pudendo que o pudor deve esconder; partes pudendas: órgãos sexuais. Maigre magro, em francês. Rotundo gordo.


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dantes no número e diversidade, que muito nos preocupa a razão, o serem todas e tantas, originais dum país somente. Acresce ainda que a todas se lhes dão o excitante, embora injusto, epiteto de “francesas”251. A nossa desconfiança é que essas damas não se originaram todas da Polónia, porém que faltam á verdade, e são iberas, itálicas, germánicas, turcas, argentinas, peruanas, e de todas as outras partes férteis de um e outro hemisfério. Muito estimaríamos que compartilhásseis da nossa desconfiança, senhoras Amazonas; e que convidasseis também algumas dessas damas para demorarem nas vossas terras e Império nosso, por que aprendais com elas um moderno e mais rendoso género de vida, que muito fará avultar os tesoiros do vosso Imperador252. E mesmo, si não quiserdes largar mão da vossa solitária Lei, sempre a existéncia de algumas centenas dessas damas entre vós, muito nos facilitará o “modus in rebus”253, quando for do nosso retorno ao Império do Mato Virgem, cujo este nome, aliás, proporíamos se mudasse para Império da Mata Virgem, mais condizente com a lição dos clássicos. Todavia para terminar negócio tão principal, hemos por bem advertir-vos dum perigo que essa importação acarretara, si não aceitásseis alguns doutores possantes nos limites do Estado, enquanto dele estivermos apartado. Como serem essas damas mui fogosas e livres; bem pudera pesar-lhes em demasia o sequestro inconsequente em que viveis, e, por não perderem elas as sciéncias e segredos que lhes dão o pão, bem poderiam ir ao extremo de utilizarem-se das bestas-feras, dos bogios, dos tapires e dos solertes candirus. E muito mais ainda nos pesaria á consciéncia e sentimento nobre do dever, que vós, súbditas nossas, aprendásseis com elas certas abusões, tal como foi com as companheiras da gentil declamadora Safô254 na ilha rósea de Lesbos255 – vícios esses que não suportam crítica á luz das possibilidades humanas, e muito menos o escalpelo da rígida e sã moral.256

Epiteto apelido. Avultar ganhar vulto, aumentar em quantidade. Bogio bugio. Ver guariba, p. 42. Tapir anta.

Abusão mau uso ou uso excessivo de algo; abuso. Escalpelo bisturi, instrumento para fazer cortes; em sentido figurado, crítica.


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Como vedes, assaz hemos aproveitado esta demora na ilustre terra bandeirante, e si não descuidàmos do nosso talismã, por certo que não poupàmos esforços nem vil metal, por aprendermos as coisas mais principais desta eviterna civilização latina, por que iniciemos, quando for do nosso retorno ao Mato Virgem, uma série de milhoramentos, que, muito nos facilitarão a existéncia, e mais espalhem nossa prosápia de nação culta entre as mais cultas do Universo. E por isso agora vos diremos algo sobre esta nobre cidade, pois que pretendemos construir uma igual nos vossos domínios e Império nosso. É São Paulo construída sobre sete colinas, á feição tradicional de Roma257, a cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés a grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os de Aquisgrana258 ou de Anverres259, e a área tão a eles igual em salubridade e abundáncia, que bem se poderá afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de três AAA260 se gera espontaneamente a fauna urbana. Cidade é belíssima, e grato o seu convívio. Toda cortada de ruas habilmente estreitas e tomadas por estátuas e lampiões graciosíssimos e de rara escultura; tudo diminuindo com astúcia o espaço de forma tal, que nessas artérias não cabe a população261. Assim se obtém o efeito dum grande acúmulo de gentes, cuja estimativa pode ser aumentada á vontade262, o que é propício ás eleições que são invenção dos inimitáveis mineiros; ao mesmo tempo que os edis dispõem de largo assunto com que ganhem dias honrados e admiração de todos, com surtos de eloquéncia do mais puro estilo e sublimado a lavor263. As ditas artérias são todas recamadas de ricocheteantes papeizinhos e velívolas cascas de fruitos264; e em principal duma finíssima poeira, e mui dançarina, em que se despargem diariamente mil e uma espécimens de vorazes macróbios265, que dizimam a população. Por essa forma resolveram, os nossos maiores, o problema da circulação; pois que tais insectos devoram as mesquinhas vidas

Eviterno que teve princípio, mas não terá fim. Prosápia orgulho, vaidade. Cesáreo relativo ao general e imperador romano Júlio César (c. 100-44 a.C.). Linfa água. Salubridade qualidade do que é salubre, saudável.

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Edil vereador. Ricocheteante que ricocheteia, que faz ricochete, ou seja, salto de qualquer corpo ou projétil, depois de bater no chão ou noutro corpo. Velívolo que navega tão rápido que parece voar. Despargir espargir; espalhar.

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da ralé e impedem o acúmulo de desocupados e operários; e assim se conservam sempre as gentes em número igual266. E não contentes com essa poeira ser erguida pelo andar dos pedestrianistas e por urrantes máquinas a que chamam “automóveis” e “eléctricos” (empregam alguns a palavra Bond, voz espúria, vinda certamente do inglês), tractaram os diligentes edis267, uns antropoides, monstros hipocentáureos azulegos e monótonos, a que congloba o título de Limpeza Pública; que “per amica silentia lunae”268, quando cessa o movimento e o pó descansa inócuo, saem das suas mansões, e, com os rabos girantes a modo de vassouras cilíndricas, puxadas por muares, soerguem do asfalto a poeira e tiram os insectos do sono, e os concitam á actividade com largos gestos e grita formidanda. Estes afazeres nocturnos são discretamente conduzidos por pequeninas luzes, dispostas de longe em longe, de maneira a permanecer quasi total a escuridade, não perturbem elas os trabalhos de malfeitores e ladrões. A cópia destes se nos afigura realmente excessiva; e temos que são a única usança que não se coaduna com nosso temperamento, ordeiro e pacífico de seu natural. Porém, longe de nós qualquer reproche aos administradores de São Paulo, pois sabemos muito bem que aos valerosos paulistas, são aprazíveis tais malfeitores e suas artes269. São os paulistas gente ardida e avalentoada, e muito afeita ás agruras da guerra. Vivem em combates singulares e colectivos, todos armados da cabeça aos pés; assim assaz numerosos são os distúrbios por cá, em que, não raro, tombam na arena da luta, centenas de milhares de heróis, chamados bandeirantes270. Pelo mesmo motivo São Paulo está dotada de mui aguerrida e vultuosa Polícia, que habita palácios brancos de custosa engenharia. A essa Polícia compete ainda equilibrar os excessos da riqueza pública, por se não desvalorizar o oiro incontável da Nação; e tal diligéncia emprega nesse afã, que, por todos os lados devora os dinheiros nacionais, quer em paradas e roupagens luzidas, quer em ginásticas

Eléctrico elétrico; palavra que se usa em Portugal para se referir ao bonde. Antropoide semelhante ao ser humano. Hipocentáureo referente ao hipocentauro ou centauro. Inócuo que não causa dano. Muar burro. Concitar incitar, estimular.

Formidando que provoca medo, assustador. Cópia grande quantidade. Usança uso frequente, costume, hábito. Coadunar combinar. Reproche censura. Avalentoado valentão. Agrura situação difícil, dificuldade.


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da recomendável Eugénia271, que inda não tivemos o prazer de conhecermos; quer finalmente atacando os incautos burgueses que regressam do seu teatro, do seu cinema, ou dão a sua volta de automóvel pelos vergéis amenos que circundam a capital. A essa Polícia ainda lhe compete divertir a classe das criadinhas paulistanas; e para seu lustre se diga que o faz com jornaleiro préstimo, em parques, construídos “ad hoc”272, tais como o parque de Dom Pedro Segundo e o Jardim da Luz. E quando o numerário dessa Polícia avulta, são os seus homens enviados para as rechãs longínquas e menos férteis da pátria, para serem devorados por súcias de gigantes antropófagos273, que infestam a nossa geografia, na inglória tarefa de ruir por terra Governos honestos; e de pleno gosto e assentimento geral da população, como se descrimina das urnas e dos ágapes governamentais. Esses mazorqueiros pegam nos polícias, assam-nos e comem-nos ao jeito alemão; e as ossadas caídas na terra maninha são excelente adubo de futuros cafezais.274 Assim tão bem organizados vivem e prosperam os paulistas na mais perfeita ordem e progresso; e lhes não é escasso o tempo para construírem generosos hospitais, atraindo para cá todos os leprosos sul-americanos, mineiros, paraibanos, peruanos, bolivianos, chilenos, paraguaios, que, antes de ir morarem nesses lindíssimos leprosários, e serem servidos por donas de duvidosa e decadente beldade – sempre donas! – animam as estradas do Estado e as ruas da capital, em garridas comitivas equestres ou em maratonas soberbas que são o orgulho de nossa raça desportiva, em cujo conspeito pulsa o sangue das heroicas bigas e quadrigas latinas! Porém, senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e insectos por cuidar!… Tudo vai num descalabro sem comedimento, estamos corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! Em breve seremos novamente uma colónia da Inglaterra ou da América do Norte!… Por isso e para eterna lembrança destes paulistas, que são a única gente útil do país, e por isso chamados

Vergel jardim. Lustre brilho, fama. Jornaleiro que acontece todos os dias, diário, cotidiano. Préstimo utilidade. Rechã campo ou planície extensa e larga sobre as montanhas. Súcia grupo de pessoas de má reputação; bando. Ágape banquete de confraternização, especialmente de caráter social, político. Garrido alegre, vistoso, elegante, que tem muitos enfeites.

Conspeito conspecto; aspecto, aparência. Biga carro romano de duas rodas puxado por dois cavalos. Quadriga carro romano de duas rodas puxado por quatro cavalos. Descalabro grande dano, ruína. Comedimento moderação, prudência. Morbo doença. Miriápode animal invertebrado que tem muitas pernas, como a centopeia, o piolho-de-cobra e a lacraia.


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de locomotivas,275 nos demos ao trabalho de metrificarmos um dístico, em que se encerram os segredos de tanta desgraça: “pouca saúde e muita saúva, os males do brasil são.” Este dístico é que houvemos por bem escrevermos no livro de Visitantes Ilustres do Instituto Butantã,276 quando foi da nossa visita a esse estabelecimento famoso na Europa. Moram os paulistanos em palácios alterosos de cinquenta, cem e mais andares, a que, nas épocas da procriação, invadem umas nuvens de mosquitos pernilongos, de vária espécie, muito ao gosto dos nativos, mordendo os homens e as senhoras com tanta propriedade nos seus distintivos, que não precisam eles e elas das cáusticas urtigas para as massagens de excitação, tal como entre selvícolas é de uso. Os pernilongos se encarregam dessa faina; e obram tais milagres que, nos bairros miseráveis, surge anualmente uma incontável multidão de rapazes e raparigas bulhentos, a que chamamos “italianinhos”; destinados a alimentarem as fábricas dos áureos potentados, e a servirem, escravos, o descanso aromático dos Cresos.277 Estes e outros multimilionários é que ergueram em torno da urbs278 as doze mil fábricas de seda279, e no recesso dela os famosos Cafés maiores do mundo, todos de obra de talha em jacarandá folhado de oiro, com embutidos de salsas tartarugas. E o Palácio do Governo280 é todo de oiro, á feição dos da Rainha do Adriático ; e, em carruagens de prata, forradas de peles finíssimas, o Presidente, que 281

mantém muitas esposas, passeia, ao cair das tardes, sorrindo com vagar. De outras e muitas grandezas vos poderíamos ilustrar, senhoras Amazonas, não fora perlongar demasiado esta epístola; todavia, com afirmar-vos que esta é,

Cáustico que provoca queimadura ou irritação na pele. Selvícola pessoa que nasce ou vive na selva, selvagem.

Faina trabalho. Salso salgado; aqui, no sentido de marinho. Perlongar prolongar. Epístola carta.


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por sem dúvida, a mais bela cidade terráquea, muito hemos feito em favor destes homens de prol. Mas cair-nos-íam as faces, si ocultáramos no siléncio, uma curiosidade original deste povo. Ora sabereis que a sua riqueza de expressão intelectual é tão prodigiosa, que falam numa língua e escrevem noutra282. Assim chegado a estas plagas hospitalares, nos demos ao trabalho de bem nos inteirarmos da etnologia da terra, e dentre muita surpresa e assombro que se nos deparou, por certo não foi das menores tal originalidade linguística. Nas conversas utilizam-se os paulistanos dum linguajar bárbaro e multifário, crasso de feição e impuro na vernaculidade, mas que não deixa de ter o seu sabor e força nas apóstrofes, e também nas vozes do brincar. Destas e daquelas nos inteiràmos, solícito; e nos será grata empresa vô-las ensinarmos aí chegado. Mas si de tal desprezível língua se utilizam na conversação os naturais desta terra, logo que tomam da pena, se despojam de tanta asperidade, e surge o Homem Latino, de Lineu283, exprimindo-se numa outra linguagem, mui próxima da vergiliana284, no dizer dum panegirista, meigo idioma, que, com imperescível galhardia, se intitula: língua de Camões285! De tal originalidade e riqueza vos há-de ser grato ter sciência, e mais ainda vos espantareis com saberdes, que á grande e quasi total maioria, nem essas duas línguas bastam, senão que se enriquecem do mais lídimo italiano, por mais musical e gracioso, e que por todos os recantos da urbs é versado. De tudo nos inteiràmos satisfatoriamente, graças aos deuses; e muitas horas hemos ganho, discreteando sobre o z do termo Brazil e a questão do pronome “se”286. Outrossim, hemos adquirido muitos livros bilíngues, chamados “burros”287, e o dicionário Pequeno Larousse; e já estamos em condições de citarmos no original latino muitas frases célebres dos filósofos e os testículos288 da Bíblia. Enfim, senhoras Amazonas, heis de saber ainda que a estes progressos e luzida civilização, hão elevado esta grande cidade os seus maiores, também chamados de políticos. Com este apelativo se designa uma raça refinadíssima

De prol de prestígio, importante. Hospitalar relativo a hospital; aqui usado comicamente em lugar de hospitaleiro. Etnologia inicialmente, estudo dos povos “sem escrita” ou “primitivos”; no Brasil, estudo dos povos indígenas; mais tarde o termo passou a ser utilizado para o estudo de quaisquer grupos humanos, inclusive “tribos” urbanas. Multifário de grande variedade. Crasso grosseiro. Vernaculidade correção de linguagem.

apóstrofe dito violento ou mordaz com que se interpela alguém; discurso de crítica ou acusação enérgica de alguém. Natural pessoa que nasceu em um lugar (por oposição ao imigrante ou estrangeiro). Asperidade aspereza. Panegirista pessoa que faz panegírico, isto é, discurso em louvor a alguém. Imperescível imperecível; que não perece, isto é, não morre, não termina. Galhardia elegância, generosidade, coragem. Lídimo legítimo.


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de doutores, tão desconhecidos de vós, que os diríeis monstros. Monstros são na verdade mas na grandiosidade incomparável da audácia, da sapiéncia, da honestidade e da moral; e embora algo com os homens se pareçam, originam-se eles dos reais uirauaçus e muito pouco têm de humanos. Obedecem todos a um imperador, chamado Papai Grande289 na gíria familiar, e que demora na oceánica cidade do Rio de Janeiro – a mais bela do mundo na opinião de todos os estrangeiros poetas, e que por meus olhos verifiquei. Finalmente, senhoras Amazonas e muito amadas súbditas, assaz hemos sofrido e curtido árduos e constantes pesares, depois que os deveres da nossa posição, nos apartaram do Império do Mato Virgem. Por cá tudo são delícias e venturas, porém nenhum gozo teremos e nenhum descanso, enquanto não rehouvermos o perdido talismã. Hemos por bem repetir entretanto que as nossas relações com o doutor Venceslau são as milhores possíveis; que as negociações estão entaboladas e perfeitamente encaminhadas; e bem poderíeis enviar de antemão as alvíssaras que enunciàmos atrás. Com pouco o vosso abstémio Imperador se contenta; si não puderdes enviar duzentas igaras cheias de bagos de cacau, mandai cem, ou mesmo cinquenta! Recebei a bênção do vosso Imperador e mais saúde e fraternidade. Acatai com respeito e obediéncia estas mal traçadas linhas; e, principalmente, não vos esqueçais das alvíssaras e das polonesas, de que muito hemos mister. Ci290 guarde a Vossas Excias. Macunaíma Imperator

Uirauaçu uiraçu; a maior ave de rapina do Brasil, Harpia harpyja. Do tupi uira, ave, e açu, grande; gavião-real.

Haver mister (de) ter necessidade de.


10 PAUÍ-PÓDOLE 291

Venceslau Pietro Pietra ficara muito doente com a sova e estava todo envolvido em rama de algodão. Passou meses na rede. Macunaíma não podia nem dar passo pra conseguir a muiraquitã agora guardada dentro do caramujo292 por debaixo do corpo do gigante. Imaginou botar formiga cupim no chinelo do outro porque isso traz morte, dizem,293 porém Piaimã tinha pé pra trás e não usava chinelo. Macunaíma estava muito contrariado com aquele chove-não-molha e passava o dia na rede mastigando beiju membeca entre codórios longos de restilo. Nesse tempo veio pedir pousada na pensão o índio Antônio, santo famoso com a companheira dele, Mãe de Deus294. Foi visitar Macunaíma, fez discurso e batizou o herói diante do deus que havia de vir e tinha forma nem bem de peixe nem bem de anta. Foi assim que Macunaíma entrou pra religião Caraimonhaga295 que estava fazendo furor no sertão da Baía. Macunaíma aproveitava a espera se aperfeiçoando nas duas línguas da terra, o brasileiro falado e o português escrito296. Já sabia nome de tudo. Uma feita era dia da Flor297, festa inventada pros brasileiros serem caridosos e tinha tantos mosquitos carapanãs que Macunaíma largou do estudo e foi na cidade refrescar as ideias. Foi e viu um despropósito de coisas. Parava em cada vitrina e examinava dentro dela aquela porção de monstros, tantos que até parecia a serra do Ererê298 onde tudo se refugiou quando a enchente grande inundou o mundo. Macunaíma

Membeca espécie de capim de várzea muito comum na Amazônia, que serve de alimento para bois e búfalos. Codório gole; do latim Quod ore (palavras que o sacerdote pronuncia na missa ao terminar de beber o vinho que está no cálice).

Restilo cachaça, pinga. Carapanã pernilongo.


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passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma urupema carregadinha de rosas. A mocica fez ele parar e botou uma flor na lapela dele, falando: – Custa milréis. Macunaíma ficou muito contrariado porque não sabia como era o nome daquele buraco na máquina roupa onde a cunhatã enfiara a flor. E o buraco chamava botoeira. Imaginou esgarafunchando na memória bem, mas nunca não ouvira mesmo o nome daquele buraco. Quis chamar aquilo de buraco porém viu logo que confundia com os outros buracos deste mundo e ficou com vergonha da cunhatã. “Orifício” era palavra que a gente escrevia mas porém nunca ninguém não falava “orifício” não. Depois de pensamentear pensamentear não havia meios mesmo de descobrir o nome daquilo e pôs reparo que da rua Direita299 onde topara com a cunhatã já tinha ido parar adiante de São Bernardo300, passada a moradia de mestre Cosme. Então voltou, pagou pra moça e falou de venta inchada: – A senhora me arrumou com um dia de judeu301! Nunca mais me bote flor neste… neste puíto302, dona! Macunaíma era desbocado duma vez. Falara uma bocagem muito porca, muito! A cunhatã não sabia que puíto era palavra-feia não e enquanto o herói voltava aluado com o caso pra pensão, ficou se rindo, achando graça na palavra. “Puíto…” que ela dizia. E repetia gozado: “Puíto… Puíto”… Imaginou que era moda. Então se pôs falando pra toda a gente si queriam que ela botasse uma rosa no puíto deles. Uns quiseram outros não quiseram, as outras cunhatãs escutaram a palavra, a empregaram e “puíto” pegou. Ninguém mais não falava em boutonnière por exemplo; só puíto, puíto se escutava. Macunaíma ficou de azeite uma semana, sem comer sem brincar sem dormir só porque desejava saber as línguas da terra. Lembrava de perguntar pros outros como era o nome daquele buraco mas tinha vergonha de irem pensar que

BOUTONNIÈRE botoeira; em francês, casa de botão.


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ele era ignorante e moita. Afinal chegou o domingo pé de cachimbo303 que era dia do Cruzeiro, feriado novo inventado pros brasileiros descansarem mais. De manhã teve parada na Mooca, ao meio-dia missa campal no Coração de Jesus304, às dezessete corso305 e batalha de confetes na avenida Rangel Pestana e de-noite, depois da passeata dos deputados e desocupados pela rua Quinze, iam queimar um fogo de artifício no Ipiranga306. Então pra espairecer Macunaíma foi no parque ver os fogos. Nem bem saiu da pensão topou com uma cunhã clara, loiríssima, filhinha da mandioca bem, toda de branco e o chapéu de tucumã vermelho coberto de margaridinhas. Chamava Fräulein307 e sempre carecia de proteção. Foram juntos e chegaram lá. O parque estava uma boniteza. Tinha tantas máquinas repuxos misturadas com a máquina luz elétrica que a gente se encostava um no outro no escuro e as mãos se agarravam para aguentar a admiração. Assim a dona fez e Macunaíma sussurrou docemente: – Mani… filhinha da mandioca!… Pois então a alemãzinha chorando comovida, se virou e perguntou pra ele si deixava ela fincar aquela margarida no puíto dele. Primeiro o herói ficou muito assarapantado, muito! e quis zangar porém depois ligou os fatos e percebeu que fora muito inteligente. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Mas o caso é que “puíto” já entrara pras revistas estudando com muita ciência os idiomas escrito e falado e já estava mais que assente que pelas leis de catalepse elipse síncope metonímia metafonia metátese próclise prótese aférese apócope haplogia308 etimologia popular, todas essas leis, a palavra “botoeira” viera a dar em “puíto”, por meio duma palavra intermediária, a voz latina “rabanitius” (botoeira-rabanitius-puíto), sendo que rabanitius embora não encontrada nos documentos medievais, afirmaram os doutos que na certa existira e fora corrente no sermo vulgaris309.

Catalepse neologismo, possível referência cômica à catalepsia; condição transitória, mas às vezes duradoura, em que a pessoa sofre paralisia geral de todos os seus músculos, ficando impossibilitada de se mover ou falar, embora continue consciente. Elipse figura de linguagem que consiste na omissão de uma ou mais palavras que podem ser subentendidas e que, em geral, apareceram anteriormente. Síncope, metafonia, metátese, próclise, prótese, aférese, apócope termos de gramática histórica que designam várias transformações nas palavras.

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Metonímia figura de linguagem que consiste no uso de uma palavra no lugar de outra, pelo emprego da parte pelo todo, do efeito pela causa, do autor pela obra, do continente pelo conteúdo etc. Haplogia neologismo, possível referência à haplologia; contração ou redução de elementos similares de um vocábulo, por exemplo, na palavra bondoso, composta a partir de bondadoso, formada de bondade + -oso. Sermo vulgaris latim vulgar, utilizado pelos povos das diversas províncias do Império Romano, em oposição ao latim clássico.

8/30/18 10:31 AM


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Nesse momento um mulato da maior mulataria310 trepou numa estátua e principiou um discurso entusiasmado explicando pra Macunaíma o que era o dia do Cruzeiro. No céu escampado da noite não tinha uma nuvem nem Capei. A gente enxergava os conhecidos, os pais das árvores os pais das aves os pais das caças e os parentes manos pais mães tias cunhadas cunhãs cunhatãs, todas essas estrelas piscapiscando bem felizes nessa terra sem mal, adonde havia muita saúde e pouca saúva, o firmamento lá. Macunaíma escutava muito agradecido, concordando com a fala comprida que o discursador fazia pra ele. Só depois do homem apontar muito e descrever muito é que Macunaíma pôs reparo que o tal de Cruzeiro era mas eram aquelas quatro estrelas que ele sabia muito bem serem o Pai do Mutum311 morando no campo do céu. Teve raiva da mentira do mulato e berrou: – Não é não! – … Meus senhores, que o outro discursava, aquelas quatro estrelas rutilantes como lágrimas ardentes, no dizer do sublime poeta, são o sacrossanto e tradicional Cruzeiro que… – Não é não! – Psiu! – … o símbolo mais… – Não é não! – Apoiados! – Fora! – Psiu!… Psiu!… – … mais su-sublime e maravilhoso da nossa ama-mada pátria é aquele misterioso Cruzeiro lucilante que… – Não é não! – … ve-vedes com…


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– Nam sculhamba! – … suas… qua… tro claras lantejoulas de prat… – Não é não! – Não é não! que outros gritavam também. Com tanta bulha afinal o mulato entrupigaitou e todos os presentes animados pelo “Não é não!” do herói estavam com muita vontade de fazer um chinfrim. Porém Macunaíma tremia tão tiririca que nem percebeu. Pulou em riba da estátua e principiou contando a história do Pai do Mutum. E era assim: – Não é não! Meus senhores e minhas senhoras! Aquelas quatro estrelas lá é o Pai do Mutum! juro que é o Pai do Mutum, minha gente, que para no campo vasto do céu!… Isso foi no tempo em que os animais já não eram mais homens e sucedeu no grande mato Fulano. Era uma vez dois cunhados que moravam muito longe um do outro. Um chamava Camã-Pabinque e era catimbozeiro. Uma feita o cunhado de Camã-Pabinque entrou no mato por amor de caçar um bocado. Estava fazendo e topou com Pauí-Pódole e seu compadre o vaga-lume Camaiuá. E Pauí-Pódole era o Pai do Mutum. Estava trepado no galho-alto da acapu, descansando. Vai, o cunhado do feiticeiro voltou pra maloca e falou pra companheira dele que tinha topado com Pauí-Pódole e seu compadre Camaiuá. E o Pai do Mutum com seu compadre num tempo muito de dantes já foram gente que nem nós mesmos. O homem falou mais que bem que tinha querido matar Pauí-Pódole com a sarabatana porém não alcançara o poleiro alto do Pai do Mutum na acapu. E então pegou na frecha de pracuuba com ponta de taboca e foi pescar carataís. Logo Camã-Pabinque chegou na maloca do cunhado e falou: – Mana, o que foi que vosso companheiro falou pra você? Então a mana contou tudo pro feiticeiro e que Pauí-Pódole estava empoleirado na acapu com seu compadre o vaga-lume Camaiuá. No outro dia manhãzinha Camã-Pabinque saiu do papiri dele e achou Pauí-Pódole piando na acapu.

Entrupigaitar atrapalhar-se. Chinfrim bagunça, confusão. Acapu árvore das matas de terra firme do Amazonas, Pará, Amapá e Guianas, alcançando o Maranhão.

Pracuuba árvore que pode atingir 40 metros de altura, com tronco sustentado por sapopemas, ocorre em área de várzea. Carataí peixe de couro, de água doce.


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Então o catimbozeiro virou na tocandeira Ilague e foi subindo pelo pau mas o Pai do Mutum enxergou a formigona e soprou um pio forte. Bateu um ventarrão tamanho que o feiticeiro despencou do pau, caindo nas capituvas da serrapilheira. Então virou na tacuri Opalá menorzinha e foi subindo outra vez, porém Pauí-Pódole tornou a enxergar a formiga. Soprou e veio um ventinho brisando que sacudiu Opalá nas trapoerabas da serrapilheira. Então Camã-Pabinque virou na lava-pés chamada Megue, pequetitinha, subiu na acapu, ferrou o Pai do Mutum bem no furinho do nariz, enrolou o corpico e trazendo o não-se-diz entre os ferrões, juque! esguichou ácido-fórmico aí. Chi! minha gente! Isso Pauí-Pódole abriu num voo esparramado com a dor e espirrou Megue longe! O feiticeiro nem não pôde sair mais do corpo de Megue, do susto que pegou. E ficou mais essa praga da formiguinha lavapés pra nós… Gente! “Pouca saúde e muita saúva, Os males do Brasil são!” já falei… No outro dia Pauí-Pódole quis ir morar no céu pra não padecer mais com as formigas da nossa terra, fez. Pediu pro compadre vaga-lume alumiar o caminho na frente com as lanterninhas verdes bem acesas. O vaga-lume Cunavá sobrinho do outro foi na frente alumiando caminho pra Camaiuá e pediu pro mano que fosse na frente alumiando pra ele também. O mano pediu pro pai, o pai pediu pra mãe, a mãe pediu pra toda a geração, o chefe de polícia e o inspetor do quarteirão e muitos muitos312, uma nuvem de vaga-lumes foram alumiando caminho uns pros outros. Fizeram, gostaram de lá e sempre uns atrás dos outros nunca mais voltaram do campo vasto do céu. É aquele caminho de luz que daqui se enxerga atravessando o espaço. Pauí-Pódole então avoou pro céu e ficou lá. Minha gente! aquelas quatro estrelas não é Cruzeiro, que Cruzeiro nada! É o Pai do Mutum! É o Pai do Mutum! minha gente! É o Pai do Mutum, Pauí-Pódole que para no campo vasto do Céu!… Tem mais não313.

Capituva erva da família das gramíneas, prejudicial à agricultura; capim-arroz. Tacuri cupim.

Lava-pés Ver taioca, p. 25.


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Macunaíma parou fatigado. Então se ergueu do povaréu um murmurejo longo de felicidade fazendo relumear mais ainda as gentes, os pais-dos-pássaros os pais-dos-peixes os pais-dos-insetos os pais-das-árvores, todos esses conhecidos que param no campo do céu. E era imenso o contentamento daquela paulistanada mandando olhos de assombro pras gentes, pra todos esses pais dos vivos brilhando morando no céu. E todos esses assombros de-primeiro foram gente depois foram os assombros misteriosos que fizeram nascer todos os seres vivos. E agora são as estrelinhas do céu.314 O povo se retirou comovido, feliz no coração cheio de explicações e cheio das estrelas vivas. Ninguém não se amolava mais nem com dia do Cruzeiro nem com as máquinas repuxos misturadas com a máquina luz elétrica. Foram pra casa botar pelego por debaixo do lençol porque por terem brincado com fogo aquela noite, na certa que iam mijar na cama315. Foram todos dormir. E a escuridão se fez. Macunaíma parado em riba da estátua ficara sozinho ali. Também estava comovido. Olhou pra altura. Que Cruzeiro nada! Era Pauí-Pódole se percebia bem daqui. E Pauí-Pódole estava rindo pra ele, agradecendo. De repente piou comprido parecendo trem de ferro. Não era tremera piado e o sopro apagou todas as luzes do parque. Então o Pai do Mutum mexeu uma asa mansamente se despedindo do herói. Macunaíma ia agradecer, porém o pássaro erguendo a poeira da neblina largou numa carreira esparramada pelo campo vasto do céu.

Pelego a pele de carneiro com a lã. A pele de carneiro serve como impermeabilizante.


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11 A VELHA CEIUCI

No outro dia o herói acordou muito constipado. Era porque apesar do calorão da noite ele dormira de roupa com medo da Caruviana316 que pega indivíduo dormindo nu. Mas estava muito ganjento com o sucesso do discurso da véspera. Esperou impaciente os quinze dias da doença resolvido a contar mais casos pro povo. Porém quando se sentiu bom era manhãzinha e quem conta história de dia cria rabo de cotia317. Por isso convidou os manos pra caçar, fizeram. Quando chegaram ao bosque da Saúde o herói murmurou: – Aqui serve. Dispôs os manos nas esperas, botou fogo no bosque e ficou também amoitado esperando que saísse algum viado-mateiro pra ele caçar. Porém não tinha nenhum viado lá e quando queimada acabou, jacaré saiu? pois nem viado-mateiro nem viado-catingueiro, saíram só dois ratos chamuscados318. Então o herói caçou os ratos chamuscados, comeu-os e sem chamar os manos voltou pra pensão. Lá chegado ajuntou os vizinhos, criados a patroa cunhãs datilógrafas estudantes empregados públicos, muitos empregados públicos! todos esses vizinhos e contou pra eles que tinha ido caçar na feira do Arouche e matara dois… – … mateiros, não eram viados mateiros não, dois viados-catingueiros que comi com os manos. Até vinha trazendo um naco pra vocês mas porém escorreguei na esquina, caí derrubei o embrulho e cachorro comeu tudo.

Ganjento vaidoso, pretensioso. Viado-mateiro veado-mateiro; espécie encontrada por todo o Brasil, Mazama americana.

Viado-catingueiro veado-catingueiro; espécie de pequeno porte, que ocorre em todo o Brasil, Mazama gouazoubira.


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Toda a gente se sarapantou com o sucedido e desconfiaram do herói. Quando Maanape e Jiguê voltaram, os vizinhos foram perguntar pra eles si era verdade que Macunaíma caçara dois catingueiros na feira do Arouche. Os manos ficaram muito enquizilados porque não sabiam mentir319 e exclamaram irritadíssimos: – Mas que catingueiros esses! O herói nunca matou viado! Não tinha nenhum viado na caçada não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois ratos chamuscados que Macunaíma pegou e comeu. Então os vizinhos perceberam que tudo era mentira do herói, tiveram raiva e entraram no quarto dele pra tomar satisfação. Macunaíma estava tocando numa flautinha feita de canudo de mamão. Parou o sopro, aparou o bocal da flautinha e se admirou muito sossegado: – Pra quê essa gentama no meu quarto, agora!… Faz mal pra saúde, gente! Todos perguntaram pra ele: – O que foi mesmo que você caçou, herói? – Dois viados-mateiros. Então os criados as cunhãs estudantes empregados públicos, todos esses vizinhos principiaram rindo dele. Macunaíma sempre aparando o bocal da flautinha. A patroa cruzando os braços ralhou assim:


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– Mas, meus cuidados, pra que você fala que foram dois viados e em vez foram dois ratos chamuscados! Macunaíma parou assim os olhos nela e secundou: – Eu menti320. Todos os vizinhos ficaram com cara de André321 e cada um foi saindo na maciota. E André era um vizinho que andava sempre encalistrado. Maanape e Jiguê se olharam, com inveja da inteligência do mano. Maanape inda falou pra ele: – Mas pra que você mentiu, herói! – Não foi por querer não… quis contar o que tinha sucedido pra gente e quando reparei estava mentindo… Jogou a flautinha fora, pegou no ganzá pigarreou e descantou. Descantou a tarde inteirinha uma moda tão sorumbática mas tão sorumbática que os olhos dele choravam a cada estrofe. Parou porque os soluços não deixaram mais continuar. Largou do ganzá. Lá fora a vista era uma tristura de entardecer dentro da cerração. Macunaíma sentiu-se desinfeliz e teve saudades de Ci a inesquecível. Chamou os manos pra se consolarem todos juntos. Maanape e Jiguê sentaram junto dele na cama e os três falaram longamente da Mãe do Mato. E espalhando a saudade falaram dos matos e cobertos cerrações deuses e barrancas traiçoeiras do Uraricoera. Lá que eles tinham nascido e se rido pela primeira vez nos macurus… Encostados nas maquiras pra lá do limpo do mocambo os guirás cantavam o que não dava o dia e eram pra mais de quinhentas as famílias dos guirás… Perto de quinze vezes mil espécies de animais assombravam o mato de tantos milhões de paus que não tinham mais conta322… Uma feita um branco trouxera da terra dos ingleses, dentro dum sapicuá gótico, a constipação que fazia agora Macunaíma tanto chorar de sodades323… E a constipação tinha ido morar no antro das formigas mumbucas mui pretas. Na escureza o calor se amaciava como saindo das águas; pra trabalhar se cantava; nossa mãe ficara virada numa coxilha mansa

Na maciota calmamente. Encalistrado envergonhado (do verbo encalistrar, envergonhar-se). Ganzá instrumento de percussão utilizado por cantadores de coco (também chamados cantadores de ganzá), gênero musical estudado por Mário de Andrade. Descantar cantar acompanhado de um instrumento. Moda modinha, canção.

Maquira filamento de tucum, com que os indígenas do Peru fazem redes para dormir. Guirá espécie de ave; anu-branco (Guira guira). Mumbuca abelha-sem-ferrão da espécie Geotrigona mombuca, caracterizada por ser mansa e construir ninhos subterrâneos, provavelmente ocupando panelas de antigos sauveiros. Coxilha extensão de terra ondulada de campinas cobertas de pastagens.


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no lugar chamado Pai da Tocandeira… Ai, que preguiça… E os três manos perceberam pertinho o murmurejo do Uraricoera! Oh! como era bom por lá… O herói se atirou pra trás chorando largado na cama. Quando a vontade de chorar parou, Macunaíma afastou os mosquitos e quis espairecer. Se lembrou de ofender a mãe do gigante com uma bocagem novinha vinda da Austrália. Virou Jiguê na máquina telefone porém o mano inda estava muito confundido com o caso da mentira do herói e não houve meios de ligar. O aparelho tinha defeito. Então Macunaíma fumou fava de paricá324 pra ter sonhos gostosos e adormeceu bem. No outro dia lembrou que precisava se vingar dos manos e resolveu passar um pealo neles. Levantou madrugadinha e foi esconder no quarto da patroa. Brincou pra fazer tempo. Depois voltou falando afobado pros manos: – Oi, manos, achei rasto fresco de tapir bem na frente da Bolsa de Mercadorias! – Que me diz, perdiz! – Pois é. Quem que havia de dizer! Ninguém inda não matara tapir na cidade. Os manos se sarapantaram e foram com Macunaíma caçar o bicho. Chegaram lá, principiaram procurando o rasto e aquele mundão de gente comerciantes revendedores baixistas matarazos325, vendo os três manos curvados pro asfalto procurando, principiaram campeando também, todo aquele mundão de gente. Procuraram procuraram, você achou? nem eles! Então perguntaram pra Macunaíma: – Onde que você achou rasto de tapir? Aqui não tem rasto nenhum não! Macunaíma não parava de campear falando sempre: – Tetápe, dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte326. E os manos regatões zangões teque-teques madalenas e hungareses recomeçavam procurando o rasto. Quando cansavam e paravam pra perguntar, Macunaíma campeando sempre secundava:

Pealo arremesso de laço; passar pealo em: enganar (gauchismo). Zangão vendedor que trabalha em determinada praça ou lugar; pracista. Teque-teque vendedor ambulante de fazendas e miudezas. O termo alude ao som do bater de

duas réguas ou medida métrica pelo qual esses vendedores anunciam a sua passagem pelas ruas. Madalena prostituta, por alusão à personagem bíblica Maria Madalena. Hungarês húngaro; que nasceu na Hungria.


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– Tetápe, dzónanei pemonéite hêhê zeténe netaíte. E todo aquele mundão de gente procurando. Era já perto da noite quando pararam desacorçoados. Então Macunaíma se desculpou: – Tetápe dzónanei pemo… Não deixaram nem que ele acabasse, todos perguntando o que significava aquela frase. Macunaíma respondeu: – Sei não. Aprendi essas palavras quando era pequeno lá em casa. E todos se queimaram muito. Macunaíma fastou disfarçado falando: – Calma, gente! Tetápe hêhê! Não falei que tem rasto de tapir não, falei que tinha! Agora não tem mais não. Foi pior. Um dos comerciantes se zangou de verdade e o repórter que estava ao pé dele vendo o outro zangado zangou também por demais. – Isso não vai assim não! Pois então a gente vive trabucando pra ganhar o pãonosso e vai um indivíduo tira a gente o dia inteiro do trabalho só pra campear rasto de tapir! – Mas eu não pedi pra ninguém procurar rasto, moço, me desculpe! Meus manos Maanape e Jiguê é que andaram pedindo, eu não! Culpa é deles! Então o povo que já estava todo zangado virou contra Maanape e contra Jiguê. Já todos, e eram muitos! estavam com vontade de armar uma briga. Então um estudante subiu na capota dum auto e fez discurso contra Maanape e contra Jiguê. O povo estava ficando zangadíssimo. – Meus senhores, a vida dum grande centro urbano como São Paulo já obriga a uma intensidade tal de trabalho que não permite-se mais dentro da magnífica entrosagem do seu progresso siquer a passagem momentânea de seres inócuos327. Ergamo-nos todos una voce contra os miasmas deletérios que conspurcam o nosso organismo social e já que o Governo cerra os olhos e delapida os cofres da Nação, sejamos nós mesmos os justiçadores…

Entrosagem entrosamento. Una voce uma voz, em italiano. Miasma vapor ou emanação malcheirosa, exalada por matéria orgânica em decomposição.

Deletério que faz mal à saúde. Delapidar dilapidar; dissipar, gastando em excesso.


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– Lincha! lincha! que o povo principiou gritando328. – Que lincha nada! exclamou Macunaíma tomando as dores pelos manos. E todos se viraram contra ele outra vez. E agora já estavam zangadíssimos. O estudante continuava pra si: – … e quando o trabalho honesto do povo é perturbado por um desconhecido… – O quê! quem que é desconhecido! berrou Macunaíma desesperado com a ofensa. – Você! – Não sou, ‘tá’í! – É! – Ora vá desmamar jacu com alpiste, moço! Desconhecida é a senhora vossa mãe, ouviu! – e virando pro povo: O que vocês estão pensando, heim! Não tenho medo não! nem de um nem de dois nem de dez mil e daqui a pouco eu arraso tudo isto aqui! Uma madalena que estava na frente do herói, virou pro comerciante atrás dela e zangou: – Não bolina, sem-vergonha! O herói estava cego de raiva, pensou que era com ele e: – Que “não bolina” agora! não estou bolinando ninguém, sua lambisgoia! – Lincha o bolina! Pau nele! – Pois venham, cafajestes! E avançou pra multidão. O advogado quis fugir porém Macunaíma atirou um pontapé nas costas dele e entrou pelo povo distribuindo rasteiras e cabeçadas. De repente viu na frente um homem alto loiro mui lindo. E o homem era um grilo. Macunaíma teve ódio de tanta boniteza e chimpou uma bruta duma bolacha nas fuças do grilo329. O grilo berrou, e enquanto falava uma frase em língua estrangeira agarrou o herói pelo congote.

Jacu ave selvagem da família das galinhas mas que, ao contrário delas, prefere as árvores e não o chão.

Chimpar bater com força.


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– Prrreso! O herói gelou. – Preso por quê? O polícia secundou uma porção de coisas em língua estrangeira e segurou firme. – Não estou fazendo nada! que o herói murmurava com medo. Porém o grilo não quis conversa e foi descendo a ladeirinha com o povo todo atrás. Outro grilo chegou e os dois falaram muitas frases, muitas! em língua estrangeira e lá foram empurrando o herói ladeira abaixo. Uma testemunha de tudo contou o sucedido pra um senhor que estava na porta duma casa de frutas e o senhor penalizado atravessou a multidão e fez os grilos pararem. Era já na rua Líbero330. Então o senhor fez um discurso pros grilos, que eles não deviam de levar Macunaíma preso porque o herói não fizera nada. Tinha ajuntado uma porção de grilos mas nenhum não entendia o discurso porque nenhum não pescava nada de brasileiro. As mulheres choravam com dó do herói. Os grilos falavam por demais numa língua estrangeira e uma voz gritou: – Não pode! Então o povo ficou com muita vontade de pelear outra vez e de todos os lados agora estavam gritando: “Larga!”, “Não leva!”, “Não pode!”, “Não pode!”, um chinfrim, “Solta!”. Um fazendeiro estava disposto a fazer discurso insultando a Polícia. Os grilos não entendiam nada e gesticulavam, muito atrapalhados falando em língua estrangeira331. Formou-se um furdunço temível. Então Macunaíma se aproveitou da trapalhada e pernas pra quê vos quero!332 Vinha um bonde na carreira badalando. Macunaíma pongou o bonde e foi ver como passava o gigante. Venceslau Pietro Pietra já principiava convalescendo da sova apanhada na macumba. Fazia um calorão dentro da casa porque era hora de cozinharem a polenta e fora a fresca era boa por causa do vento sulão. Por isso o gigante com a

Pescar entender. Pelear pelejar; brigar.

Furdunço bagunça, confusão, briga.


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velha Ceiuci as duas filhas e a criadagem pegaram cadeiras e vieram sentar na porta da rua pra gozar a frescata333. O gigante ainda não saíra do algodão e estava talequal um fardo caminhando. Sentaram. O curumi Chuvisco334 andava librinando pelo bairro e encontrou Macunaíma negaceando da esquina. Parou e ficou olhando o herói. Macunaíma virou-se: – Nunca viu não! – Quê que você está fazendo aí, conhecido! – Estou assustando o gigante Piaimã com sua família. Chuvisco debicou: – Qual! não vê que gigante tem medo de ti! Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater nele porém lembrou de-cor: “Quando você estiver embrabecendo conta três vezes os botões da vossa roupa”, contou e ficou manso de novo. Então secundou: – Quer apostar? Eu faço e aconteço e garanto que Piaimã vai pra dentro com medo de mim. Esconde lá perto pra escutar só o que eles falam. Chuvisco avisou: – Oi, conhecido, tome tento com gigante! Você já sabe do que ele é capaz. Piaimã está fraco está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume335… Si você não tem medo mesmo, aposto. Virou numa gota e pingou rente de Venceslau Pietro Pietra com a companheira as filhas e a criadagem. Então Macunaíma pegou na primeira palavra-feia da coleção e jogou na cara de Piaimã. O palavrão bateu de rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomodou, direitinho elefante336. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora337. A ofensa bateu rijo porém se incomodar é que ninguém se incomodou. Então Macunaíma jogou toda a coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens. Venceslau Pietro Pietra falou pra velha Ceiuci, bem quieto:

Talequal tal e qual, igual. Curumi curumim; menino. Librinar neblinar, chuviscar.

Empalamado cheio de feridas ou edemas.


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– Tem algumas que a gente não conhece inda não, guarda pra nossas filhas338. Então Chuvisco voltou pra esquina. O herói garganteou: – Tiveram medo ou não tiveram! – Medo nada, conhecido! até o gigante mandou guardar as bocagens novas pras filhas brincarem. De mim que eles têm medo, você aposta? Vá lá perto e escute só. Macunaíma virou num caxipara que é o macho da formiga saúva e foi se enroscar na rama de algodão acolchoando o gigante. Chuvisco amontou numa neblina e quando ia passando em riba da família deu uma mijadinha no ar. Principiou peneirando uma chuva de preguiça. Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado na mão dele e teve paúra de tanta água. – Vam’bora, gente! E todos com muito medo foram correndo pra dentro. Então Chuvisco desapeou e disse pra Macunaíma: – Está vendo? E assim até hoje. A família do gigante tem medo de Chuvisco mas de palavra-feia não339. Macunaíma ficou muito despeitado e perguntou pro rival: – Me diga uma coisa: você conhece a língua do limpim-gua-pá? – Nunca vi mais gordo! – Pois então, rival: Vá-pá-à-pá mer-per-da-pá!340 E abriu o pala até a pensão. Mas estava muito contrariado por ter perdido a aposta e se lembrou de fazer uma pescaria. Porém não podia pescar nem de flecha nem com timbó nem jotica nem cunambi nem tingui nem macerá nem no pari nem com linha nem arpão nem juquiaí nem sararaca nem gaponga nem de poita nem caçuá nem itapuá

CHUVA DE PREGUIÇA na região Norte, chuva miúda; garoa. Paúra medo. Cunambi cunabi; conabi; arbusto de casca pardacenta, usado como narcótico para peixes. Tingui Ver timbó, p. 14. Macerá aparelho de pesca constituído por um cilindro oco de madeira, que se arma como arapuca.

Pari cerca feita de bambus para apanhar peixe. Na cidade de São Paulo, era estendido de margem à margem principalmente nos rios Tietê e Tamanduateí. Nome de um bairro da cidade de São Paulo. Juquiaí juquiá; cesto afunilado, usado como armadilha para peixes. Sararaca flecha usada na pesca da tartaruga. ►


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nem de jiqui nem de grozera nem de jererê, guê, tresmalho, aparador, de gungá, cambango arinque bate-bate gradeira caicai penca anzol de vara covo, todos esses objetos armadilhas e venenos porque não possuía nada disso não. Fez um anzol com cera de mandaguari mas bagre mordia, levava anzol e tudo. Porém tinha ali perto um inglês pescando aimarás com anzol de verdade. Macunaíma voltou pra casa e falou pra Maanape: – Quê que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar aimará de mentira pra enganar o bife. Quando ele me pescar e der a batida na minha cabeça então faço “juque!” enganando que morri. Ele me atira no samburá, você pede o peixe mais grande pra comer e sou eu. Fez. Virou num aimará pulou na lagoa, o inglês pescou-o e bateu na cabeça dele. O herói gritou “Juque!”. Mas o inglês tirou o anzol da goela do peixe porém. Maanape veio vindo e muito disfarçado pediu pro inglês: – Dá peixe pra mim, seu Yes? – All right. E deu um lambari de rabo vermelho. – Ando padecendo de fome, seu inglês! dá um macota, vá! esse um gordinho do samburá! Macunaíma estava com o olho esquerdo dormindo porém Maanape conheceu-o bem. Maanape era feiticeiro. O inglês deu o aimará pra Maanape que agradeceu e foi-se embora. Quando estava légua e meia longe o aimará virou Macunaíma outra vez. Assim três vezes, inglês sempre tirando anzol da goela do herói. Macunaíma segredou pro mano: – Quê que havemos de fazer! Carecemos de tomar anzol de inglês. Vou virar piranha de mentira e arranco anzol da vara341. Virou numa piranha feroz pulou na lagoa arrancou o anzol e desvirando outra vez légua e meia abaixo no lugar chamado Poço do Umbu onde tinha umas pedras cheias de letreiros encarnados da gente fenícia342, sacou o anzol da goela bem

► Gaponga técnica de pescar, de origem indígena, que usa bater repetidas vezes na água uma pequena esfera feita de costela de peixe-boi presa à linha do caniço para atrair o peixe, imitando o ruído de um fruto caindo na água. Poita peso colocado na linha de pesca para fazê-la mergulhar; chumbada. Caçuá rede de pesca, de malhas largas. Itapuá arpão curto com ponta de ferro que se usa na pesca da tartaruga, do pirarucu etc. Jiqui cesto de pescar, de forma afunilada, feito de varinhas flexíveis.

Grozera groseira; também conhecida como espinhel, consiste na utilização de várias linhas com anzol, amarradas espaçadamente em uma linha mestra. Jererê  jereré; rede fina em forma de saco, presa a um semicírculo de madeira com cabo longo, usada para a pesca de peixes pequenos e crustáceos. Guê gué; pequeno anzol feito de alfinete. Tresmalho tremalho; rede de pesca composta de três malhas justapostas. ►


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contente porque agora podia pescar corimã piraíba aruana pirara piaba, todos esses peixes. Os dois manos iam-se quando escutaram inglês falando pra uruguaio: – Que posso fazer agora! Não possuo mais anzol que a piranha engoliu. Vou pra vossa terra, conhecido. Então Macunaíma fez um grande gesto com os dois braços e gritou: – Espera um bocado, tapuitinga! O inglês se voltou e Macunaíma só de caçoada virou-o na máquina London Bank343. No outro dia falou pros manos que ia pescar peixões no igarapé Tietê. Maanape avisou: – Não vá, herói, que você topa com a velha Ceiuci mulher do gigante. Te come, heim! – Não tem inferno pra quem já navegou no Cachoeira! que Macunaíma exclamou. E partiu. Nem bem lançou a linha de cima dum mutá que veio vindo a velha Ceiuci pescando de tarrafa344. A caapora viu a sombra de Macunaíma refletida n’água e jogou depressa a tarrafa e só pescou sombra. O herói nem não achou graça porque estava tremendo de medo, vai, pra agradecer falou assim: – Bom-dia, minha vó. A velha virou a cara pro alto e descobriu Macunaíma em riba do mutá. – Vem cá, meu neto. – Não vou lá não. – Pois então mando marimbondos. Fez. Macunaíma arrancou um molho de pataqueira e matou os marimbondos. – Desce, meu neto, que sinão mando novatas! Fez. As formigas novatas ferraram em Macunaíma e ele caiu n’água. Então a velha tarrafeou, envolveu o herói nas malhas e foi pra casa. Lá chegada pôs o

► Arinque  tipo de espinhel, aparelho de pescar, composto de uma linha comprida, com muitos anzóis. Bate-bate rede bate-bate ou rede de volta; rede utilizada em lagoas e represas. Caicai nome de uma rede de pesca. Covo armadilha de pesca composta de um cercado de esteiras com pesos de chumbo. Mandaguari espécie de abelha-sem-ferrão, de nome científico Scaptotrigona postica, que geralmente constrói seu ninho em oco de árvores.

Aimará  espécie de traíra de grande porte, Hoplias aimara, que ocorre nas bacias dos rios Tocantins, Xingu, Tapajós, Jari e Trombetas, e no estado do Amapá. Macota grande. Letreiro pintura ou inscrição rupestre, isto é, feita na superfície de rochas. Tapuitinga homem branco (composto de tapuia, indígena do Sertão, que não fala tupi, e -tinga, ‘branco’, em tupi). Termo utilizado pelo personagem indígena Poti, do romance Iracema, de José de Alencar.  ►


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embrulho na sala de visitas que tinha um abajur encarnado e foi chamar a filha mais velha que era bem habilidosa, pras duas comerem o pato que ela caçara. E o pato era Macunaíma o herói. Porém a filhona estava muito ocupada porque era mesmo habilidosa e a velha pra adiantar serviço foi fazer fogo. A caapora possuía duas filhas e a mais nova que não era nada habilidosa e só sabia suspirar, enxergando a velha fazer fogo, imaginou: “Mãe quando vem da pescaria conta logo o que pescou, hoje não. Vou ver.” Desenrolou a tarrafa e saiu dela um moço bem do gosto. O herói falou: – Me esconde! Então a moça que estava mui bondosa porque vivia desocupada desde tempo, levou Macunaíma pro quarto e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Quando fogo ficou bem quente a velha Ceiuci veio com a filhona habilidosa pra depenarem345 o pato porém acharam só tarrafa. A caapora embrabeceu: – Isso há-de ser minha filhinha nova que é muito bondosa… Bateu no quarto da moça, gritando: – Minha filhinha nova, entrega já meu pato que sinão enxoto você da casa minha pra todo o sempre! A moça ficou com medo e mandou Macunaíma atirar vinte mil réis por debaixo da porta pra ver si contentava a gulosa. Macunaíma de medo já atirou cem que viraram em muitas perdizes lagostas robalos vidros-de-perfume e caviar. A velha gulosa engoliu tudo e pediu mais. Então Macunaíma atirou um conto de réis por debaixo da porta. O conto virou em mais lagostas coelhos pacas champanha rendas cogumelos rãs e a velha sempre comendo e pedindo mais. Então a moça bondosa abriu a janela dando pro Pacaembu deserto e falou: – Vou dizer três adivinhas, si você descobre, te deixo fugir. O que é que é: É comprido roliço e perfurado, entra duro e sai mole, satisfaz o gosto da gente e não é palavra indecente?

► Mutá estrado feito no mato, em que o caçador espreita a caça. Tarrafa rede de pesca circular, operada por um pescador em locais rasos, a partir das margens das praias ou estuários. Pataqueira planta aromática das áreas úmidas da região Amazônica.

Novata formiga do gênero Pseudomyrmex, que vive na árvore pau-de-novato (gênero Triplaris, várias espécies), cujas picadas causam dor intensa e inflamação local; formiga-de-novato; taxi. PATO além de animal, pato também significa otário.


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– Ah! isso é indecência sim! – Bobo! é macarrão! – Ahn… é mesmo!… Engraçado, não? – Agora o quê é que é: Qual o lugar onde as mulheres têm cabelo mais crespinho? – Oh, que bom! isso eu sei! é aí! – Cachorro! É na África, sabe! – Me mostra, por favor! – Agora é a última vez. Diga o que que é: “Mano, vamos fazer Aquilo que Deus consente: Ajuntar pelo com pelo, Deixar o pelado dentro.” E Macunaíma: – Ara! Também isso quem não sabe! Mas cá pra nós que ninguém nos ouça, você é bem sem-vergonha, dona! – Descobriu. Não é dormir ajuntando os pelos das pestanas e deixando o olho pelado dentro que você está imaginando?346 Pois si você não acertasse pelo menos uma das adivinhas te entregava pra gulosa de minha mãe. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu. Na esquina você encontra uns cavalos. Tome o castanho-escuro que pisa no mole e no duro347. Esse é bom. Si você escuta um passarinho gritando “Baúa! Baúa!” então é a velha Ceiuci chegando. Agora fuja sem escarcéu, serei expulsa, voarei pro céu! Macunaíma agradeceu e pulou pela janela. Na esquina estavam dois cavalos, um castanho-escuro e outro cardão-pedrês. “Cavalo cardão-pedrês pra carreira Deus o fez” Macunaíma murmurou. Pulou nesse e abriu na galopada. Caminhou caminhou caminhou e já perto de Manaus ia correndo quando o cavalo deu uma topada que arrancou chão. No fundo do buraco Macunaíma enxergou

Cardão-pedrês (cavalo) tordilho (isto é, que tem o pelo da cor da plumagem do tordo), pintadinho.


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uma coisa relumeando. Cavou depressa e descobriu o resto do deus Marte, escultura grega achada naquelas paragens inda na Monarquia e primeiro de abril passado no Araripe de Alencar pelo jornal chamado Comércio do Amazonas348. Estava contemplando aquele torso macanudo quando escutou “Baúa! Baúa!”. Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma esporeou o cardão-pedrês e depois de perto de Mendoza na Argentina quase dar um esbarrão num galé que também vinha fugindo da Guiana Francesa349, chegou num lugar onde uns padres estavam melando. Gritou: – Me escondam, padres! Nem bem os padres esconderam Macunaíma num pote vazio que a caapora chegou montada no tapir. – Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim? – Já passou. Então a velha apeou do tapir e montou num cavalo gázeo-sarará que nunca prestou nem prestará e seguiu. Quando ela virou a serra do Paranacoara os padres tiraram o herói do pote, deram pra ele um cavalo melado-caxito que tanto é bom como é bonito e mandaram ele embora. Macunaíma agradeceu e galopou. Logo adiante encontrou uma cerca de arame porém era cavaleiro: deu um sacalão, esbarrou o pongo e ajuntando as mãos do animal caído com um jeito forte fez o cavalo girar e passar por debaixo do arame. Então o herói pulou a cerca e amontou de novo. Galopeou galopeou galopeou. Passando no Ceará decifrou os letreiros indígenas do Aratanha; no Rio Grande do Norte costeando o serrote do Cabelo-não-tem decifrou outro. Na Paraíba, indo de Manguape pra Bacamarte passou na Pedra-Lavrada com tanta inscrição que dava um romance350. Não leu por causa da pressa e nem a da Barra do Poti no Piauí, nem a de Pajeú em Pernambuco, nem a dos Apertados do Inhamum351 que já era no quarto dia e se escutava no ar rentinho: “Baúa! Baúa!”. Era a velha Ceiuci chegando. Macunaíma pernas pra

Galé pessoa condenada a cumprir pena de trabalhos forçados, como remador, a bordo de embarcação de mesmo nome. Gázeo-sarará (cavalo) albino. Melado-caxito cavalo baio, de pernas e crinas pretas.

Sacalão ação de deter ou alterar, subitamente, com as rédeas, a marcha de um cavalo. Pongo cavalo.


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que vos quero pelo eucaliptal. Mas o passarinho sempre mais perto e Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela velha. Afinal topou com a biboca dum surucucu que tinha parte com o canhoto. – Me esconde, surucucu! O surucucu nem bem escondeu o herói no buraco da latrininha, a velha Ceiuci chegou. – Não viram meu neto passar por aqui no seu cavalinho comendo capim? – Já passou. A gulosa apeou do gázeo-sarará que nunca prestou nem prestará e montou num cavalo bebe-em-branco que é cavalo manco e seguiu. Então Macunaíma escutou surucucu tratando com a companheira pra fazerem um moquém do herói352. Pulou do buraco do quartinho e jogou no terreiro o anel com brilhantão que dera de presente pro dedo Mindinho. O brilhantão virou em quatro contos de carros de milho, adubo Polisu e uma fordeca de segunda mão. Enquanto o surucucu olhava pra aquilo tudo satisfeito, Macunaíma pro melado-caxito descansar, amontou num bagual cardão-rodado que nunca pode estar parado e galopou através de varjões e varjotas. Varou num átimo o mar de areia do chapadão dos Parecis e por derrames e dependurados entrou na caatinga e assustou as galinhas com pintos de ouro353 do Camutengo perto de Natal. Légua e meia adiante abandonando a margem do São Francisco emporcalhada com a enchente-da-páscoa, entrou por uma brecha aberta no morro alto. Ia seguindo quando escutou um “psiu” de cunhã. Parou morto de medo. Então saiu do meio da catinga-de-porco uma dona alta e feiosa com trança até o pé. E a dona perguntou cochichado pro herói: – Já se foram? – Se foram, quem! – Os holandeses!

Surucucu a mais temível das nossas serpentes, segundo von Ihering, família Viperídeos, Lachesis muta. Bebe-em-branco  bebe em branco; (cavalo) que tem o queixo e as narinas brancas. FORDECA automóvel da marca Ford. Cardão que tem a cor da flor do cardo, isto é, azul-violeta.

Rodado (cavalo) que tem pequenas manchas arredondadas. Varjão varja (várzea) grande. Chapadão chapada extensa. Chapada é um terreno plano ou pouco acidentado, bem acima do nível do mar, o mesmo que planalto. Derrame encosta (de montanha).


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– Você está caducando, que holandês esse! Não tem holandês nenhum, dona! Era Maria Pereira354 cunhã portuga amufumbada naquela brecha de morro desde a guerra com os holandeses. Macunaíma não sabia bem mais em que parte do Brasil estava e lembrou de perguntar. – Me diga uma coisa, filho de gambá é raposa, como que chama este lugar? A cunhã secundou emproada: – Aqui é o Buraco de Maria Pereira. Macunaíma soltou uma grande gargalhada e escafedeu enquanto a mulher amoitava outra vez. O herói seguiu de carreira e enfim passou pra outra banda do rio Chuí. Foi lá que topou com o tuiuiú pescando. – Primo Tuiuiú, você me leva pra casa? – Pois não! Logo o tuiuiú se transformou na máquina aeroplano, Macunaíma escanchou no aturiá vazio e ergueram voo355. Voaram sobre o chapadão mineiro de Urucuia, fizeram o circuito de Itapecerica e bateram pro Nordeste. Passando pelas dunas de Mossoró, Macunaíma olhou pra baixo e enxergou Bartolomeu Lourenço de Gusmão356, batina arregaçada, pelejando pra caminhar no areão. Gritou pra ele: – Venha aqui com a gente, ilustre! Porém o padre gritou com um gesto imenso: – Basta! Depois que pulando a serra do Tombador no Mato Grosso deixaram pra esquerda as cochilhas de Sant’Ana do Livramento, o tuiuiú-aeroplano e Macunaíma subiram até o Telhado do Mundo, mataram a sede nas águas novas do Vilcanota e na última etapa voando sobre Amargosa na Baía, sobre a Gurupá e sobre o Gurupi com a sua cidade encantada, enfim toparam de novo com o mucambo ilustre do igarapé Tietê. Daí a pouquinho estavam na porta da pensão. Macunaíma

Tuiuiú a maior ave voadora do Pantanal; jaburu.


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agradeceu muito e quis pagar o ajutório porém se lembrou que estava carecendo de fazer economia. Virou pro tuiuiú e falou: – Olha, primo, pagar não posso não mas vou te dar um conselho: Neste mundo tem três barras que são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e barra de saia, não caia! Porém estava tão acostumado a gastar que esqueceu-se da economia. Deu dez contos pro tuiuiú, subiu satisfeito pro quarto e contou tudo pros manos já muito ressabiados com a demora. O caso afinal custara uns bons pacotes. Maanape então virou Jiguê num telefone e deu queixa pra Polícia que deportou a velha gulosa. Porém Piaimã tinha muita influência e ela voltou na companhia lírica. A filha expulsa corre no céu, batendo perna de déu em déu. É uma cometa357.

Ajutório ajuda.


12 TEQUE-TEQUE, CHUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS

No outro dia Macunaíma acordou febrento. Tinha mesmo delirado a noite inteira e sonhado com navio. – Isso é viagem por mar, falou a dona da pensão358. Macunaíma agradeceu e de tão satisfeito virou logo Jiguê na máquina telefone pra insultar a mãe de Venceslau Pietro Pietra. Mas a sombra telefonista359 avisou que não secundavam. Macunaíma achou aquilo esquisito e quis se levantar pra ir saber o que era. Porém sentia um calorão coçado no corpo todo e uma moleza de água. Murmurou: – Ai… que preguiça… Virou a cara pro canto e principiou falando bocagens. Quando os manos vieram saber o que era, era sarampão. Maanape logo foi buscar o famoso Bento curandeiro em Beberibe360 que curava com alma de índio e a água de pote. Bento deu uma aguinha e fez reza cantada. Numa semana o herói já estava descascando. Então se levantou e foi saber o que tinha sucedido pro gigante. Não tinha ninguém no palácio e a copeira do vizinho contou que Piaimã com toda a família fora na Europa descansar da sova. Macunaíma perdeu todo o requebrado e se contrariou bem. Brincou com a copeira muito aluado e voltou macambúzio pra pensão. Maanape e Jiguê encontraram o herói na porta da rua e perguntaram pra ele:

Macambúzio triste.


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– Quem matou seu cachorrinho, meus cuidados? Então Macunaíma contou o sucedido e principiou chorando. Os manos ficaram bem tristes de ver o herói assim e levaram ele visitar o Leprosário de Guapira361, porém Macunaíma estava muito contrariado e o passeio não teve graça nenhuma. Quando chegaram na pensão era noitinha e todos já estavam desesperados. Tiraram uma porção enorme de tabaco dum cornimboque362 imitando cabeça de tucano e espirraram bem. Então puderam pensamentear. – Pois é, meus cuidados, você andou lerdeando, cozinhando galo, cozinhando galo, o gigante é que não havia de esperar, foi-se. Agora aguente a maçada! Nisto Jiguê bateu na cabeça e exclamou: – Achei! Os manos levaram um susto. Então Jiguê lembrou que eles podiam ir na Europa também, atrás da muiraquitã. Dinheiro, inda sobravam quarenta contos do cacau vendido. Macunaíma aprovou logo porém Maanape que era feiticeiro imaginou imaginou e concluiu: – Tem coisa milhor. – Pois então desembuche! – Macunaíma finge de pianista, arranja uma pensão do Governo e vai sozinho363. – Mas pra que tanta complicação si a gente possui dinheiro à beça e os manos podem me ajudar na Europa! – Você tem cada uma que até parece duas! Poder a gente pode sim porém mano seguindo com arame do Governo não é milhor? É. Pois então! Macunaíma estava refletindo e de repente bateu na testa: – Achei! Os manos levaram um susto. – Que foi!

Cornimboque caixa para rapé feita com a ponta de um chifre.


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– Pois então finjo de pintor que é mais bonito! Foi buscar a máquina óculos de tartaruga um gramofoninho meias de golfe luvas e ficou parecido com pintor364. No outro dia pra esperar a nomeação matou o tempo fazendo pinturas. Assim: agarrou num romance de Eça de Queirós365 e foi na Cantareira366 passear. Então passou perto dele um cotruco andarengo muito marupiara porque possuía folhinha de pica-pau367. Macunaíma deitado de bruços divertia-se amassando os tacurus das formigas tapipitingas. O teque-teque368 saudou: – Bom dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Trabalhando, não? – Quem não trabuca não manduca. – É mesmo. Bom, té-loguinho. E passou. Légua e meia adiante topou com um micura e lembrou de trabucar também um bocado. Pegou no gambazinho, fez ele engulir dez pratas de dois milréis e voltou com o bicho debaixo do braço. Chegando perto de Macunaíma mascateou369: – Bom-dia, conhecido, como le vai, muito obrigado, bem. Si você quer te vendo meu micura. – Que que vou fazer com um bicho tão pixento! Macunaíma secundou botando a mão no nariz. – Tem aca mas é coisa muito boa! Quando faz necessidade só prata que sai! Vendo barato pra você! – Deixe de conversa, turco! Onde que se viu micura assim! Então o teque-teque apertou a barriga do gambá e o bicho desistiu as dez pratinhas. – Está vendo! Faz necessidade é prata só! Ajuntando a gente fica riquíssimo! Barato pra você!

Cotruco vendedor ambulante. Tacuru cupinzeiro. Aqui, no sentido de formigueiro.

Manducar comer. MICURA mucura; gambá. Pixento que tem pixé, isto é, mau cheiro.


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– Quanto que custa? – Quatrocentos contos. – Não posso comprar, só tenho trinta. – Pois então pra ficar freguês deixo por trinta contos pra você! Macunaíma desabotoou as calças e por debaixo da camisa tirou o cinto que carregava dinheiro. Porém só tinha a letra de quarenta contos e seis fichas do Cassino de Copacabana370. Deu a letra e teve vergonha de receber o troco. Até inda deu as fichas de inhapa e agradeceu a bondade do teque-teque. Nem bem o mascate sovertera entre as sapupiras guarubas e parinaris do mato que já o micura quis fazer necessidade outra feita. O herói arredondou o bolso aparando e a porcaria caiu toda ali. Então Macunaíma percebeu o logro e abriu numa gritaria desgraçada, caminho da pensão371. Virando uma esquina encontrou o José Prequeté e gritou para ele: – Zé Prequeté, tira bicho do pé pra comer com café372! José Prequeté ficou com ódio e insultou a mãe do herói porém este não fez caso não, deu uma grande gargalhada e foi seguindo. Mais adiante lembrou que ia indo pra casa zangado e pegou na gritaria outra vez. Os manos inda não tinham voltado da maloca do Governo e a patroa veio no quarto pra consolar Macunaíma, brincaram. Depois de brincarem o herói pegou no choro. Quando os manos chegaram toda a gente se sarapantou porque eles tinham cinco metros de altura. Não vê que o Governo estava com mil vezes mil pintores já encaminhados pra mandar na pensão da Europa e Macunaíma ser nomeado era mas só no dia de São Nunca. Ficava muito longe. O invento tinha favado e os manos ficaram compridos por causa do desaponto. Quando enxergaram o mano chorando, se assustaram bem e quiseram saber a causa. E como esqueceram o desaponto voltaram pro tamanho de dantes, Maanape já velhinho e Jiguê na força do homem. O herói fazia:

Inhapa gorjeta. Sapupira árvore cuja madeira é utilizada na construção de casas. Guaruba árvore da Amazônia cuja madeira leve, frágil para sol e chuva, é muito utilizada para repartir a casa em cômodos.

Parinari árvore de lei. O seu fruto parece o do bacuri, de cor amarela, com salpicos brancos. Favar não ter sucesso, dar errado.


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– Ihihih! teque-teque me embromou! Ihihih! Comprei micura dele, quarenta contos me custou! Então os irmãos se descabelaram. Agora não era possível mais irem na Europa não, porque possuíam só a noite e o dia. Levaram na prantina enquanto o herói esfregava ólio de andiroba no corpo pros mosquitos não amolarem e adormecia bem. No outro dia amanheceu fazendo um calorão temível e Macunaíma suava que mais suava dum lado pra outro enraivecido com a injustiça do Governo. Quis sair pra espairecer porém aquela roupa tanta aumentando o calor… Teve mais raiva. Teve raiva por demais e maliciou que ia ficar com o butecaiana que é doença da raiva. Então exclamou: – Ara! Ande eu quente, ria-se a gente! Tirou as calças pra refrescar e pisou em cima. A raiva se acalmou no sufragante e até que muito satisfeito Macunaíma falou pros manos: – Paciência, manos! não! não vou na Europa não. Sou americano e meu lugar é na América. A civilização europeia na certa esculhamba a inteireza do nosso caráter373. Durante uma semana os três vararam o Brasil todo pelas restingas de areia marinha, pelas restingas de mato ralo, barrancas de paranãs, abertões, corredeiras carrascos carrascões e chavascais, coroas de vazante boqueirões mangas e fundões que eram ninhos de geada, espraiados pancadas pedrais funis bocainas barroqueiras e rasouras, todos esses lugares, campeando nas ruínas dos conventos e na base dos cruzeiros pra ver si não achavam alguma panela com dinheiro enterrado. Não acharam nada. – Paciência, manos! Macunaíma repetiu macambúzio. Jogamos no bicho! E foi na praça Antônio Prado meditar sobre a injustiça dos homens. Ficou lá encostado num plátano muito bem. Todos os comerciantes e aquele despropósito

Prantina prantaria; choro, chororô, choradeira. Butecaiana nome de doença sugerido a Mário de Andrade pelo poeta pernambucano Ascenso Ferreira, em carta de 8 de janeiro de 1927, para A gramatiquinha da fala brasileira, obra que deixou inacabada. Abertão espaço sem árvores dentro da mata; clareira. Carrasco vegetação arbustiva que ocorre no semiárido do Nordeste do Brasil, entre 700 e 900 metros de altitude.

Chavascal área bastante extensa de vegetação baixa, arbustiva, pantanosa e quase impossível de ser transposta durante a seca. O chavascal é inundado anualmente durante cerca de 6 a 8 meses, a uma profundidade de 6 a 7 metros. Pedral lugar cheio de pedras. Bocaina passagem estreita entre dois morros. Barroqueira barranco profundo. Rasoura lugar raso de rio ou lagoa.


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de máquinas passavam rentinho do herói grugunzando sobre a injustiça dos homens. Macunaíma já estava disposto a mudar o dístico pra: “Pouca saúde e muitos pintores os males do Brasil são” quando escutou um “Ihihih!” chorado atrás. Virou e viu no chão um tico-tico e um chupim. O tico-tico era pequetitinho e o chupim era macota. O ticotiquinho ia dum lado pra outro acompanhado sempre do chupinzão chorando pro outro dar de comer pra ele. Fazia raiva. O ticotiquinho imaginava que o chupinzão era filhote dele mas não era não374. Então voava, arranjava um decumê375 por aí que botava no bico do chupinzão. Chupinzão engolia e pegava na manha outra vez: “Ihihih! mamãe… telo decumê!… telo decumê!…376” lá na língua dele. O ticotiquinho ficava azaranzado porque estava padecendo fome e aquele nhenhenhém-nhenhenhém azucrinando ele atrás, diz-que “Telo decumê!… telo decumê!…”, não podia com o amor sofrendo. Largava de si, voava buscar um bichinho uma quirerinha, todos esses decumês, botava no bico do chupinzão, chupinzão engolia e principiava atrás do ticotiquinho outra vez. Macunaíma estava meditando na injustiça dos homens e teve um amargor imenso da injustiça do chupinzão. Era porque Macunaíma sabia que de primeiro os passarinhos foram gente feito nós… Então o herói pegou num porrete e matou o ticotiquinho377. Foi-se embora. Depois que andou légua e meia sentiu calor e lembrou de beber pinga pra refrescar. Trazia sempre num bolso do paletó uma garrafinha de pinga presa ao puíto por uma corrente de prata. Desarrolhou e chupitou de manso. Eis sinão quando escutou atrás um “Ihihih!” chorando. Virou sarapantado. Era o chupinzão. – Ihihih! papai… telo decumê!… telo decumê!… lá na língua dele. Macunaíma ficou com ódio. Abriu o bolso onde estava guardado aquilo do micura e falou:

Grugunzar pensar insistentemente em algo, matutar.

Quirerinha diminutivo de quirera; milho quebrado para os pintos e os pássaros.


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– Pois coma então! Chupinzão pulou na beira do bolso e comeu tudo sem saber. Foi engordando engordando, virou num pássaro preto bem grande e voou pros matos gritando “Afinca! Afinca!”. É o Pai do Vira378. Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante estava um macaco mono comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca cheia d’água. Falou: – Bom dia, meu tio, como lhe vai? – Assim assim, sobrinho. – Em casa todos bons? – Na mesma. E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquizilou assanhado: – Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou melado! – Mas o que você está fazendo aí, tio! O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou: – Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer. – Vá mentir na praia! – Uai, sobrinho379, si tu não dá crédito então pra que pergunta! Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou: – É gostoso é? O mono estalou a língua: – Chi! prove só! Quebrou de escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus e deu pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem.

Toaliquiçus testículos.


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– É bom mesmo, tio! Tem mais? – Agora se acabou mas si o meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho! O herói teve medo: – Não dói não? – Qual, si até é agradável!… O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou pra ele: – Você tem mesmo coragem, sobrinho? – Boni-t-ó-tó macaxeira mocotó! o herói exclamou empafioso. Firmou bem o paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto. 380 O macaco mono caçoou assim: – Pois, meus cuidados, não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!381 Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada que refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de correições de formigas guaju-guajus e murupetecas pro corpo morto. O advogado Fulano atraído pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém só tinha cartão de visita. Então resolveu levar o defunto pra pensão, fez. Carregou Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o defunto pesava por demais e o advogado viu que não podia com o peso. Então arriou o cadáver e deu uma coça de vara nele. O defunto ficou levianinho levianinho e o advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão.382 Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa dois cocos-da-Baía, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça de cachimbo no defunto herói. Macunaíma foi

Balata látex; suco leitoso de certas plantas, do qual se fabrica a borracha.

Guaju-guaju, MURUPETECA Ver taioca, p. 25.


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se erguendo muito desmerecido.383 Deram guaraná pra ele e daí a pouco matava sozinho as formigas que inda o mordiam. Estava tremendo muito porque por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era feiticeiro.




13 A PIOLHENTA DO JIGUÊ

No outro dia por causa da machucadura Macunaíma amanheceu com uma grosseira pelo corpo todo. Foram ver e era a erisipa384, doença comprida. Os manos trataram dele bem e traziam diariamente pra casa todos esses remédios pra erisipela que os vizinhos e conhecidos, todos esses brasileiros aconselhavam. O herói passou uma semana de cama. De-noite sonhava sempre com embarcações e a dona da pensão quando vinha de-manhã por amor de saber como ia o herói dizia sempre que embarcação significava na certa viagem por mar. Depois saía deixando sobre a cama do enfermo o Estado de São Paulo. E o Estado de São Paulo era um jornal385. Então Macunaíma gastava o dia lendo todos esses anúncios de remédios pra erisipa. E eram muitos anúncios! No fim da semana o herói já estava descascando bem e foi na cidade buscar sarna pra se coçar386. Andou banzando banzando, e muito fatigado por causa da fraqueza parou no parque do Anhangabaú. Chegara bem debaixo do monumento a Carlos Gomes que fora um músico muito célebre e agora era uma estrelinha do céu387. O ruído da fonte388 murmurejando na tardinha dava pro herói a visagem das águas do mar. Macunaíma sentou no parapeito da fonte e assuntou os baguais marinhos de bronze chorando água. E lá na escureza da gruta por detrás da tropilha presenciou uma luz. Fixou mais e distinguiu uma embarcação muito linda que vinha boiando sobre as águas. “É uma vigilenga” murmurou. Porém

Visagem fantasma, assombração; aqui, no sentido de ilusão. Assuntar prestar atenção.

Vigilenga embarcação a vela, empregada na pesca no mar e em rio, cujos primeiros modelos foram construídos em Vigia, no estado do Pará.


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a nau vinha chegando cada vez maior. É um “gaiola” murmurou. Mas o gaiola vinha chegando tão grande tão! que o herói deu um salto sarapantado e gritou na boca-da-noite ecoada “É um vaticano!” O navio já vinha bem visível por detrás dos baguais de bronze. Tinha o corte da velocidade no casco de prata e os mastros inclinados pra trás estavam cheios de bandeiras que o vento da correria imprensava entre as lâminas de ar. O grito chamara os choferes da esplanada e todos curioseavam o gesto parado do herói e seguiam o risco do olhar dele batendo na fonte escura. – Que foi, herói? – Olha lá!… Olha o vaticano macota que vem vindo sobre as águas imensas do mar! – Aonde! – Por detrás do cavalo de estibordo! Então todos viram por detrás do cavalo de estibordo o navio chegando. Já estava bem perto e ia passar entre o cavalo e a parede de pedra, já estava na boca da gruta. E era um navio guaçu. – Não é vaticano não! é o transatlântico fazendo viagem por mar! gritou um chofer japonês que já fizera muita viagem por mar. E era um transatlântico enorme. Vinha iluminado, relampeava todo de oiro e prata embandeirado e festeiro.

Gaiola embarcação a vapor que navega nos rios. Como brasileirismo, é substantivo do gênero masculino.

Vaticano gaiola mais amplo e de mais conforto.


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Os óculos das cabinas eram colares no casco e nos cinco deques empoleirados corria música entre a gentama dançando mexida no cururu. A choferada comentava: – É do Loide389! – Não, é da Hamburgo!390 – Vá saindo! ‘tou percebendo! então! É il piróscafo Conte Verde391 em vez! E era o piróscafo Conte Verde sim. E era a Mãe-d’Água392 que vinha bancando piróscafo pra atentar o herói. – Gente! adeus, gente! Vou pra Europa que é milhor! Vou em busca de Venceslau Pietro Pietra que é o gigante Piaimã comedor de gente! que o herói discursava. E toda a choferada abraçava Macunaíma se despedindo. O vapor estava ali e Macunaíma já pulara no cais da fonte pra subir a escadinha do piróscafo Conte Verde. Todos os tripulantes na frente da música acenavam chamando Macunaíma e eram marujos forçudos, eram argentinos finíssimos e eram tantas donas lindíssimas pra gente brincar até enjoar com os balangos das ondas. – Desce a escadinha, capitão! que o herói exclamou. Então o capitão tirou o cocar e executou uma letra no ar. E todos, os marujos os argentinos finíssimos e as cunhãs lindíssimas pra Macunaíma brincar, todos esses tripulantes soltaram vaias macotas caçoando do herói enquanto o navio manobrando sem parar dava a popa pra terra e flechava de novo pro fundo da gruta. E todos aqueles tripulantes viraram doentes com erisipa sempre caçoando do herói. E quando o piróscafo atravessou o estreito entre a parede da gruta e o bagual de bombordo a chaminezona guspiu uma fumaçada de pernilongos, de borrachudos mosquitos-pólvora mutucas marimbondos cabas potós moscas-de-ura, todos esses mosquitos afugentando os motoristas. O herói sentado no rebordo da fonte penava todo mordido e com mais erisipa, mais, todo erisipelado. Sentiu frio e veio a febre. Então espantou com um gesto os mosquitos e caminhou pra pensão.

Il piróscafo il piroscafo, em italiano, o piróscafo, um navio a vapor. Bancar fingir. Atentar causar aborrecimento. Caba vespa.

Potó espécie de besouro que segrega um líquido cáustico que, em contato com a pele, provoca queimaduras. Mosca-de-ura espécie de mosca da Amazônia que põe os ovos sob a pele dos animais e, por vezes, na do homem.


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No outro dia Jiguê entrou em casa com uma cunhatã, fez ela engolir três bagos de chumbo pra não ter filho393 e os dois dormiram na rede. Jiguê tinha se amulherado. Ele era muito valente. Passava o dia limpando a espingarda e afiando a lamparina394. A companheira de Jiguê todas as manhãs ia comprar macaxeira pros quatro comerem e se chamava Suzi. Porém Macunaíma que era o namorado da companheira de Jiguê, todos os dias comprava uma lagosta pra ela, punha no fundo do jamaxi e por cima esparramava a macaxeira pra ninguém não maliciar. Suzi era bem feiticeira. Quando chegava em casa deixava a cesta na saleta e ia dormir pra sonhar. Sonhando ela falava para Jiguê: – Jiguê, meu companheiro Jiguê, estou sonhando que tem lagosta por debaixo da macaxeira395. Jiguê ia ver e tinha. Todos os dias era assim e Jiguê tendo amanhecido com dor de cotovelo desconfiou. Macunaíma percebeu a dor do mano e fez uma mandinga pra ver si passava. Pegou numa cuia e de-noite deixou-a no terraço, rezando manso: “Água do céu Vem nesta cuia, Paticl vem nesta água, Moposêru vem nesta água, Sivuoímo vem nesta água, Omaispopo vem nesta água, Os donos da Água enxotem a dor de corno! Aracu, Mecumecuri, Paí que venham nesta água, E enxotem a dor de corno si o doente beber esta água, Em que estão encantados os Donos da Água!”

Jamaxi cesto longo de três lados, geralmente de trançado hexagonal, que alguns indígenas brasileiros carregam nos ombros ou prendem na testa por uma alça e que repousa sobre suas costas.


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Deu pra Jiguê beber no outro dia porém não surtiu efeito não e o mano andava muito desconfiado. Quando Suzi se vestia pra ir na feira, assobiava o fox-trote396 da moda pro namorado ir também. O namorado era Macunaíma, ia. A companheira de Jiguê saía e Macunaíma saía atrás. Andavam brincando por aí e quando chegava a hora da volta já não tinha macaxeira mais na feira. Pois então Suzi disfarçando ia atrás da casa, sentava no jamaxi e puxava uma porção de macaxeira, de dentro do maissó. Todos comiam muito bem, só Maanape resmungava: – Caboclo de Taubaté, cavalo pangaré, mulher que mija em pé, libera nós Dominé!397 E empurrava a comida. Maanape era feiticeiro. Não queria saber daquela macaxeira não e como andava curtindo fome passava o tempo mastigando ipadu398 pra enganar. De-noite quando Jiguê queria pular na rede a companheira dele principiava gemendo, falando que estava empanzinada de tanto engulir caroço de pitomba. Era só pra Jiguê não brincar com ela. Jiguê teve raiva. No outro dia ela foi na feira e assobiou o foxtrote da moda. Macunaíma saiu atrás. Jiguê era muito valente. Pegou numa mirassanga enorme e foi devagarinho atrás deles. Procurou procurou e encontrou Suzi com Macunaíma de mãos dadas no Jardim da Luz399. Já estavam se rindo um pro outro. Jiguê desceu a mirassanga nos dois, levou a companheira pra pensão e deixou o mano fatigado na beira da lagoa entre cisnes. Do outro dia em diante Jiguê é que fazia as compras deixando a companheira presa no quarto. Suzi sem quefazer passava o tempo contrariando a moralidade mas uma feita o santo Anchieta400 vindo ao mundo passou pela casa dela e por piedade ensinou-a a catar piolhos. Suzi possuía uns cabelos ruivos à la garçonne401 e sustentava muitos piolhos, muitos! Agora não sonhava mais que tinha lagosta por debaixo da macaxeira nem não fazia imoralidades.

Maissó  vagina, da língua dos indígenas Miranha, do Amazonas; aportuguesamento de mahüssó. Ipadu planta nativa da América do Sul, cujas folhas são usadas, especialmente pelas culturas andinas, como estimulantes; coca.

Mirassanga arma indígena feita de madeira, com uma das pontas mais grossa; tacape.


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Quando Jiguê partia ela tirava os cabelos e espetando-os no porrete do companheiro, catava piolhos. Mas tinha muitos piolhos, muitos! Então com medo que o companheiro apanhasse ela no trabalho, falou assim: – Jiguê, meu companheiro Jiguê, quando você volta do mercado bate primeiro na porta, bate todos os dias uma porção de tempo pra mim ficar contente e ir cozinhar a macaxeira. Jiguê falou que sim. Todos os dias ia no mercado comprar macaxeira e quando voltava batia demorado na porta. Então a cunhã botava os cabelos na cabeça e ficava esperando Jiguê. – Suzi, minha companheira Suzi, bati uma porção de vezes na porta, será que você alegrou? – Muito! ela fez. E foi cozinhar a macaxeira. E todos os dias era assim. Mas tinha muitos piolhos, muitos! É que ela contava os catados um por um e por isso os piolhos aumentavam. Uma feita Jiguê matutou no que ficava fazendo a companheira quando ele ia no mercado e teve vontade de assustá-la, fez. Virou de pernas pro ar e veio andando nas pontas das mãos. Abriu a porta e assustou Suzi. Isso ela gritou botando afobada a cabeleira na cabeça. E os cabelos da testa ficaram no cangote e os cabelos do cangote ficaram na testa escorrendo. Jiguê xingou Suzi de porca e deu nela até escutar alguém subindo a escada402. Era Chico vindo de baixo. Então Jiguê parou e foi afiar a bicuda. No outro dia Macunaíma estava outra vez com vontade de brincar com a companheira de Jiguê. Falou pros manos que ia numa caçada longe porém não foi não. Comprou duas garrafas de licor de butiá catarinense uma dúzia de sanduíches dois abacaxis de Pernambuco e se amoitou no quartinho. Passado tempo saiu de lá e falou pra Jiguê, mostrando o embrulho: – Mano Jiguê, no fim de muitas ruas, você indo, tem uma fruteira trilhada. Vi um poder de caça, vá ver!

Butiá espécie de palmeira; fruto do butiazeiro.


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O mano espiou desconfiado pra ele porém Macunaíma disfarçou bem: – Olhe, tem paca tatu cotia… Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu, cotia não403. Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo404, foi logo pegando na espingarda e falou: – Então vou porém mano jura primeiro que não brinca com minha obrigação. Macunaíma jurou pela memória da mãe que nem olhava pra Suzi. Então Jiguê tornou a pegar na espingarda-pá e na faca de ponta-tá tatatá e partiu. Macunaíma nem bem Jiguê virou a esquina ajudou Suzi abrindo os embrulhos e botando uma toalha de renda famosa chamada “Ninho de Abelha” cujo papelão fora roubado em Muriú do Ceará-Mirim pela danada Geracina da Ponta do Mangue405. Quando tudo ficou pronto os dois pularam na rede e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Depois de rirem bastante, Macunaíma falou: – Desarrolha uma garrafa pra gente beber. – Sim, ela fez. E beberam a primeira garrafa de licor de butiá que era muito gostoso. Os dois estalaram a língua e pularam na rede outra vez. Brincaram quanto quiseram. Agora estão se rindo um pro outro. Jiguê andou légua e meia, foi até no fim das ruas, campeou a fruteira uns pares de vezes, muito tempo, jacaré achou? nem ele! Não tinha fruteira nenhuma e Jiguê voltou campeando sempre por todos os fins das ruas. Afinal chegou subiu no quarto e encontrou mano Macunaíma com a Suzi já rindo. Jiguê teve raiva e deu uma coça na companheira. Agora ela está chorando. Jiguê agarrou o herói e chegou o porrete com vontade nele. Deu que mais deu até Manuel chegar. Manuel era o criado da pensão, um ilhéu. Agora o herói está fatigado. E Jiguê que vinha padecendo de fome, então comeu as sanduíches os abacaxis e bebeu o licor de butiá.


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Os dois sovados passaram a noite se lastimando. No outro dia Jiguê enfarado pegou na sarabatana e saiu pra ver si encontrava a tal de fruteira. Jiguê era muito bobo. Suzi viu ele sair, enxugou os olhos e falou pro namorado: – Choremos não. Então Macunaíma desamarrou a cara e se arranjou pra ir falar com mano Maanape. Jiguê de volta na pensão perguntou pra Suzi: – Onde anda o herói? Porém ela estava zangadíssima e principiou assobiando. Então Jiguê agarrou no porrete, se chegou pra companheira e disse muito triste: – Vai embora, perdição! Daí ela sorriu feliz. Catou sem contar todos os piolhos que restavam e eram muitos piolhos, atrelou-os a uma cadeira de balanço, sentou nela, os piolhos pularam e Suzi foi pro céu virada na estrela que pula. É uma zelação406. O herói nem bem viu Maanape de longe pegou se lastimando. Se atirou nos braços do mano e contou uma história bem triste provando que Jiguê não tinha razão nenhuma pra sová-lo tanto. Maanape ficou zangado e foi falar com Jiguê. Mas Jiguê também já vinha pra falar com Maanape. Se encontraram no corredor. Maanape contou pra Jiguê e Jiguê contou pra Maanape. Então eles verificaram que Macunaíma era muito safado e sem caráter407. Voltaram pro quarto de Maanape e toparam com o herói se lastimando. Pra consolar levaram ele passear na máquina automóvel.

ZELAÇÃO rastro luminoso que resulta do atrito de meteoroide com gases da atmosfera terrestre; estrela cadente; meteoro.


14 MUIRAQUITÃ

No outro dia de manhã nem bem Macunaíma abriu a janela, enxergou um passarinho verde.408 O herói ficou satisfeitíssimo e inda estava ficando satisfeito quando Maanape entrou no quarto contando que as máquinas jornais anunciavam a volta de Venceslau Pietro Pietra. Então Macunaíma resolveu não ter mais contemplação com o gigante e matá-lo. Saiu da cidade e foi no mato Fulano experimentar força. Campeou légua e meia e afinal topou com uma peroba com a sapopemba do tamanho dum bonde. “Esta serve” ele fez. Enfiou o braço na sapopemba, deu arranco e o pau saiu da terra não deixando nem sinal. “Agora sim que tenho força!”409 Macunaíma exclamou. Tornou a ficar satisfeito e voltou pra cidade. Porém não podia nem andar porque estava cheio de carrapatos. Macunaíma com muita pachorra falou pra eles: – Ara, carrapatos! vão embora, pessoal! Não devo nada pra vocês não! Então a carrapatada caiu no chão por encanto e foi-se embora. Carrapato já foi gente que nem nós… Uma feita botou uma vendinha na beira da estrada e fazia muitos negócios porque não se incomodava de vender fiado. Tanto fiou tanto fiou, tanto brasileiro não pagou que afinal carrapato quebrou e foi posto pra fora da vendinha. Ele agarra tanto na gente porque está cobrando as contas.410 Quando Macunaíma chegou da cidade já era noite fechada e ele foi logo tocaiar a casa do gigante. Tinha neblina sobre o mundo e a casa estava sem


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ninguém de tanta que era a escureza. Macunaíma se lembrou de procurar uma criada pra brincar mas tinha estacionamento das máquinas táxis na esquina e as cunhãs já estavam brincando por aí. Macunaíma se lembrou de armar arapuca pros curiós mas faltava isca. Não havia que fazer e sentiu sono. Porém dormir não queria não porque estava esperando Venceslau Pietro Pietra. Imaginou: “Agora vou vigiar e quando Sono vier enforco ele”. Não demorou muito viu um vulto chegando. Era Emoron-Pódole, o Pai do Sono411. Macunaíma ficou muito parado entre os ninhos de cupim pra não espantar o Pai do Sono e poder matá-lo. Emoron-Pódole veio vindo veio vindo e quando já estava pertinho, o herói cochilou, bateu com o queixo no peito, mordeu a língua e gritou: – Que susto! O Sono fugiu logo. Macunaíma seguiu andando muito desapontado. “Ora veja só! Não peguei mas quase… Vou esperar outra vez e macacos me lambam si agora não pego o Pai do Sono e enforco ele!” Assim que o herói refletiu. Tinha um corgo perto com um pau caído por cima servindo de pinguela. Mais pra longe uma lagoa branquejava de luar porque a neblina já tinha ido-se embora. A vista era quieta e muito suave por causa da aguinha cantando o acalanto dos pobres. O Pai do Sono devia de estar amoitado por ali. Macunaíma cruzou os braços e com o olho esquerdo dormindo ficou imóvel entre os ninhos de cupim.


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Não demorou muito enxergou Emoron-Pódole chegando. O Pai do Sono veio vindo veio vindo e de repente parou. Macunaíma ouviu que ele falava: – Aquele sujeito não tá morto não. Morto que não arrota onde se viu! Então o herói arrotou “juque”! – Onde se viu morto arrotar, gentes! O Sono caçoou e fugiu logo412. Por isso que o Pai do Sono inda existe e os homens por castigo não podem dormir em pé. Macunaíma ia ficar desapontado com o sucedido quando escutou uma bulha e enxergou do outro lado do corgo um chofer gesticulando feito chamado. Ficou muito sarapantado e gritou tiririca: – Isso é comigo, colega! Sou francesa não!413 – Sai azar! O rapaz fez. Então Macunaíma pôs reparo numa criadinha com um vestido de linho amarelo pintado com extrato de tatajuba. Ela já ia atravessando o corgo pelo pau. Depois dela passar o herói gritou pra pinguela: – Viu alguma coisa, pau? – Vi a graça dela! – Quá! quá! quá quaquá!… Macunaíma deu uma grande gargalhada. Então seguiu atrás do par. Eles já tinham brincado e descansavam na beira da lagoa. A moça estava sentada na borda duma igarité encalhada na praia. Toda nua inda do banho comia tambiús vivos, se rindo pro rapaz. Ele deitara de bruços na água rente dos pés da moça e tirava os lambarizinhos da lagoa pra ela comer. A crilada das ondas amontava nas costas dele porém escorregando no corpo nu molhado caía de novo na lagoa com risadinhas de pingos. A moça batia com os pés n’água e era feito um repuxo roubado da Luna espirrando jeitoso, cegando o rapaz. Então ele enfiava a cabeça na lagoa e trazia a boca cheia de água. A moça apertava com os pés as bochechas dele

Tatajuba árvore que pode atingir 35 metros de altura e 1,8 metros de diâmetro; bagaceira. Igarité canoa grande do indígena brasileiro.

Tambiú espécie de lambari de 12 cm de comprimento, com a nadadeira caudal cor de ouro velho. Crilada grupo de crilas, crianças, criançada.


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e recebia o jato em cheio na barriga, assim. A brisa fiava a cabeleira da moça esticando de um em um os fios lisos na cara dela. O moço pôs reparo nisso. Firmando o queixo no joelho da companheira ergueu o busto da água, estirou o braço pro alto e principiou tirando os cabelos da cara da moça pra que ela pudesse comer sossegada os tambiús. Então pra agradecer ela enfiou três lambarizinhos na boca dele e rindo muito fastou o joelho depressa. O busto do rapaz não teve apoio mais e ele no sufragante focinhou n’água até o fundo, a moça inda forçando o pescoço dele com os pés. Ela ia escorregando sem perceber de tanta graça que achava na vida. Ia escorregando e afinal a canoa virou. Pois deixai ela virar!414 A moça levou um tombo engraçado por cima do rapaz e ele enrolou-se nela talqualmente um apuizeiro carinhoso. Todos os tambiús fugiram enquanto os dois brincavam n’água outra vez415. Macunaíma chegava. Sentou no fundo da igarité virada, esperando. Quando viu que eles tinham acabado de brincar, falou pro chofer: – Faz três dias que não como, Semana que não escarro, Adão foi feito de barro, Sobrinho, me dá um cigarro. O chofer secundou: – Me desculpe, meu parente, Si cigarro não lhe dou; A palha o fosfre e o goiano Caiu n’água, se molhou.416

Apuizeiro cipó que cresce sobre o hospedeiro, asfixiando-o e acabando por levá-lo à morte; mata-pau.


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– Não se incomode que eu tenho, respondeu Macunaíma. Tirou uma cigarreira de tartaruga feita por Antônio do Rosário no Pará417, ofereceu cigarros de palha de tauari pro moço e pra criadinha, acendeu um fósforo pros dois e outro para ele. Depois afastou os mosquitos e principiou contando um caso. Assim a noite passava depressa e a gente não se amolava com o canto da sururina marcando as horas da escuridão. E era assim: – No tempo de dantes, moços, o automóvel não era uma máquina que nem hoje não, era a onça-parda. Se chamava Palauá e parava no grande mato Fulano. Vai, Palauá falou pros olhos dela: – Vão na praia do mar, meus verdes olhos, depressa depressa depressa! Os olhos foram e a onça-parda ficou cega418. Porém levantou o focinho, fez ele cheirar o vento e percebeu que Aimalá-Pódole, o Pai da Traíra estava nadando lá no longe do mar e gritou: – Venham da praia do mar, meus verdes olhos, depressa depressa depressa! Os olhos vieram e Palauá ficou enxergando outra vez. Passava por ali a tigre preta que era muito feroz e falou pra Palauá: – O que você está fazendo, comadre! – Estou mandando meus olhos olharem o mar. – É bom? – Pros cachorros! – Então manda os meus também, comadre! – Mando não porque Aimalá-Pódole está na praia do mar. – Manda que sinão te engulo, comadre! Então Palauá falou assim: – Vão na praia do mar, amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa!

Tauari cigarro utilizado em pajelanças na Amazônia. Sururina ave que costuma piar em intervalos regulares; inhambu-relógio.

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Tigre preta  onça-preta; onça-pintada com coloração de fundo preto, mas que também possui rosetas. No romance O guarani, de José de Alencar, um felino de “dorso negro, brilhante, marchetado de pardo” é chamado tanto de onça como de tigre.

8/30/18 10:31 AM


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Os olhos foram e a tigre preta ficou cega. Aimalá-Pódole estava lá e juque! engoliu os olhos da tigre. Palauá maliciou tudo porque o Pai da Traíra estava cheirando mui forte. Foi tratando de se raspar. Porém a tigre preta que era mui feroz presenciou a fugida e falou pra onça-parda: – Espera um pouco, comadre! – Não vê que careço de buscar janta pra meus filhos, comadre. Então até outro dia. – Primeiro manda meus olhos voltarem, comadre, que já tomei um fartão de escureza. Palauá gritou: – Venham da praia do mar, amarelos olhos de minha comadre tigre, depressa depressa depressa! Porém os olhos não voltaram não e a tigre preta ficou feito fúria. – Agora que te engulo, comadre! E correu atrás da onça-parda. Foi uma chispada mãe por esses matos que chii! os passarinhos se tornaram pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite levou um susto tamanho que ficou paralítica. Por isso que quando faz dia em riba das árvores, dentro do mato é sempre noite. A coitada não pode mais andar…419 Quando Palauá correu légua e meia olhou pra trás fatigada. A tigre preta vinha perto. Vai, Palauá chegou num morro chamado Ibiraçoiaba e topou com uma bigorna gigante, aquela uma que pertencia à fundição de Afonso Sardinha no princípio da vida brasileira420. Junto da bigorna estavam quatro rodas esquecidas. Então Palauá amarrou elas nos pés pra poder deslizar sem muito esforço e, como se diz: desatou o punho da rede outra vez, uma chispada mãe! A onça engoliu num átimo légua e meia de terreno porém isso vinha que vinha acochada pela tigre. Faziam um barulhão tamanho que os passarinhos estavam pequetitinhos pequetitinhos de medo e a noite mais pesada por causa que421 não podia andar. E a bulha inda era

Noitibó nome usado no Brasil para designar certas aves noturnas de grito agoureiro, do latim noctivolus, “que voa à noite”; curiango.


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assombrada pelos gemidos do noitibó… Noitibó é Pai da Noite, moços, e chorava a miséria da filha. Bateu fome em Palauá. A tigre na cola dela. Mas Palauá nem não podia mais correr assim com o estômago nas costas, vai, em de mais longe quando passou pela barra do Boipeba onde o cuisarrúim422 morou, viu um motor perto e engoliu o tal. Nem bem motor caiu na barriga da onça que a pobre criou força nova e chispou. Fez légua e meia e olhou pra trás. Isso a tigre preta vinha feita pra cima dela. Estava uma escureza que só vendo por causa da malinconia da noite e bem na frente dum feixo a onça deu uma trombada temível no derrame dum morrete, que por um triz, era uma vez Palauá! Vai, ela abocanhou dois vaga-lumões e seguiu com eles nos dentes pra alumiar caminho. Nem bem fez outra légua e meia olhou pra trás. A tigre junto. Era por causa que a onça-parda cheirava muito e a peste da cega tinha faro de perdigueiro. Vai, Palauá ingeriu um purgante de ólio de mamona, pegou numa lata da essência chamada gasolina, despejou no x e lá foi fuomfuom! fuom! que nem burro peidorreiro por aí. A bulha foi tamanha que nem se escutou o tinido assombrado dos pratos partidos do morro do Assobio ali. A tigre preta ficou toda atrapalhada por causa que era cega e não cheirava mais a catinga da comadre. Palauá correu mais muito e olhou prá trás. Não enxergou a tigre. Também nem não podia mais correr com as fuças fumegando de quentura. Tinha ali perto um bananal macota com um pauê na faixa porque Palauá já tinha chegado no porto de Santos. Vai, a bicha derramou água cansada no focinho e desesquentou. Depois cortou uma folha açu de banana‑figo e se escondeu botando ela por riba feito capote. Dormiu assim. A tigre preta que era muito feroz até passou por ali, onça nem pio. E a outra passou não presenciando a comadre. Então de medo a onça nunca mais que largou de tudo o que tinha ajudado ela a fugir. Anda sempre com roda nos pés, motor na barriga, purgante de ólio na garganta, água nas fuças, gasolina no osso-de-pai-joão, os dois vaga-lumões na boca e o capote de folha de banana-figo cobrindo, ai ai! prontinha pra chispar.

MALINCONIA melancolia, em italiano. Pauê terreno alagado com água estagnada.

Osso-de-Pai-João osso do pai joão; osso situado na parte inferior e posterior da bacia, formando uma espécie de pequena cauda; cóccix.


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Principalmente si pisa nalguma correição da formiga chamada taxi e alguma trepando no pelame luzido morde a orelha dela, qual! chispa que nem Deus!… E inda tomou nome estranho pra disfarçar mais. É a máquina automóvel423. Mas por causa que bebeu água cansada Palauá teve estupor. Possuir automóvel de seu é ter estupor em casa, moços. Dizem que mais tarde a onça pariu uma ninhada enorme. Teve filhos e filhas. Uns machos outros fêmeas. Por isso que a gente fala “um forde” e fala “uma chevrolé”… Tem mais não. Macunaíma parou. Chorava comoção pela boca dos moços. Sobre as águas a fresca boiava de barriga pro ar. O rapaz mergulhou a cabeça pra disfarçar a lágrima e trouxe um tambiú nos dentes rabejando danadinho. Repartiu a comida com a moça. Então lá na porta da casa uma onça fíate abriu a goela e urrou pra lua: – Baúa! Baúa! Se escutou uma bulha formidável e tomou conta do ar um pitium sufocando. Era Venceslau Pietro Pietra que chegava. O motorista se ergueu logo e a criada também. Estenderam a mão pra Macunaíma, convidando: – Seu gigante chegou de viagem, vamos todos saber como está? Fizeram. Encontraram Venceslau Pietro Pietra na porta da rua conversando com repórter. O gigante riu pros três e falou pro motorista: – Vamos lá dentro? – Pois não! Piaimã possuía orelhas furadas por causa dos brincos424. Enfiou uma perna do rapaz na orelha direita, a outra na esquerda e foi carregando o moço nas costas. Atravessaram o parque e entraram na casa. Bem no meio do hol de acapu mobiliado com sofás de cipó-titica feitos por um judeu alemão de Manaus, se via um buraco enorme tendo por cima um cipó de japecanga feito balanço.425 Piaimã

Taxi ver novata, p. 117.

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FÍATE automóvel da marca Fiat.

8/31/18 2:28 PM


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sentou o moço no cipó e perguntou pra ele si queria balançar um bocado. O moço fez que sim. Piaimã balançou balançou, de repente deu um arranco. Japecanga tem espinho… Os espinhos entraram na carne do chofer e principiou escorrendo sangue no buraco. – Chega! já estou satisfeito! que o chofer gritava. – Balança que vos digo! secundava Piaimã. Sangue escorrendo. A caapora companheira do gigante estava lá embaixo do buraco e o sangue pingava numa tachada de macarrão que ela preparava pro companheiro. O rapaz gemia no balanço: – Ah, si eu possuísse meu pai e minha mãe a meu lado não estava padecendo nas mãos deste malvado!… Então Piaimã deu um arranco muito forte no cipó e o rapaz caiu no molho da macarronada. Venceslau Pietro Pietra foi buscar Macunaíma. O herói já estava se rindo com a criadinha. O gigante falou pra ele: – Vamos lá dentro? Macunaíma estendeu os braços sussurrando: – Ai!… que preguiça!… – Ora vamos!… Vamos? – Pois sim… Então Piaimã fez pra ele como fizera pro chofer, carregou o herói nas costas de cabeça pra baixo prendidos os pés nos buracos das orelhas. Macunaíma aprumou a sarabatana e assim de cabeça pra baixo era ver um atirador malabarista de circo, acertando nos ovinhos do alvo. O gigante ficou muito incomodado virou e percebeu tudo. – Faz isso não, patrício! Tomou a sarabatana e jogou longe. Macunaíma agarrava quanto ramo caía na mão dele.


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– Que você está fazendo? perguntou o gigante ressabiado. – Não vê que os ramos estão batendo na minha cara! Piaimã virou o herói de cabeça pra cima. Então Macunaíma fez cócegas com os ramos nas orelhas do gigante. Piaimã dava grandes gargalhadas e pulava de gozo. – Não amola mais, patrício! ele fez. Chegaram no hol. Por debaixo da escada tinha uma gaiola de ouro com passarinhos cantadores. E os passarinhos do gigante eram cobras e lagartos426. Macunaíma pulou na gaiola e principiou muito disfarçado comendo cobra. Piaimã convidava-o pra vir no balanço porém Macunaíma engolia cobras contando: – Falta cinco… E engolia mais outra bicha. Afinal as cobras se acabaram e o herói cheio de raiva desceu da gaiola com o pé direito. Olhou cheio de raiva pro gatuno da muiraquitã e rosnou: – Hhhm… que preguiça! Mas Piaimã insistia pro herói balangar. – Eu até que nem não sei balançar… Milhor você vai primeiro, que Macunaíma rosnou. – Que eu nada, herói! É fácil que nem beber água! Assuba na japecanga, pronto: eu balanço! – Então aceito porém você vai primeiro, gigante. Piaimã insistiu mas ele sempre falando pro gigante balançar primeiro. Então Venceslau Pietro Pietra amontou no cipó e Macunaíma foi balançando cada vez mais forte. Cantava: “Bão-ba-lão Senhor capitão,


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Espada na cinta Ginete na mão!”427 Deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou. A Caapora lá embaixo não sabia que aquela sangueira era do gigante dela e aparava a chuva na macarronada. Molho engrossando. – Para! Para! Piaimã gritava. – Balança que vos digo! secundava Macunaíma. Balançou até o gigante ficar bem tonto e então deu um arranco fortíssimo na japecanga. Era porque tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau Pietro Pietra caiu no buraco berrando cantado: – Lem lem lem… si desta escapar, nunca mais como ninguém!428 Enxergava a macarronada fumegando lá embaixo e berrou pra ela: – Afasta que vos engulo! Porém jacaré fastou? nem tacho! O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu no ar um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os tico-ticos da cidade e o herói teve uma sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esforço gigantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira: – “Falta queijo!” exclamou…429 E faleceu. Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente. Macunaíma quando voltou da sapituca foi buscar a muiraquitã e partiu na máquina bonde pra pensão. E chorava gemendo assim: – Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você mas não vejo ela!…430


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15 A PACUERA DE OIBÊ

Então os três manos voltaram pra querência deles. Estavam satisfeitos porém o herói inda mais contente que os outros porque tinha os sentimentos que só um herói pode ter: uma satisfa imensa. Partiram. Quando atravessaram o pico do Jaraguá Macunaíma virou pra trás contemplando a cidade macota de São Paulo. Maginou sorumbático muito tempo e no fim sacudiu a cabeça murmurando: – Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são… Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez um caborge: sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho-preguiça431 todinho de pedra. Partiram. Depois de muito refletir, Macunaíma gastara o arame derradeiro comprando o que mais o entusiasmara na civilização paulista. Estavam ali com ele o revólver Smith-Wesson o relógio Patek e o casal de galinha Legorne432. Do revólver e do relógio Macunaíma fizera os brincos das orelhas e trazia na mão uma gaiola com o galo e a galinha. Não possuía mais nem um tostão do que ganhara no bicho porém lhe balangando no beiço furado pendia a muiraquitã. E por causa dela tudo ficara mais fácil. Desciam de rodada o Araguaia433 e quando Jiguê remava Maanape manejava o joão de pau. Se sentiam marupiaras outra vez. Pois então Macunaíma a destro na proa tomava nota das pontes que

SATISFA corruptela de satisfação. Caborge caborje, feitiçaria. Legorne raça de galinha de penas e ovos brancos, originária de Livorno, na Itália. De Leghorn, nome inglês de Livorno. Muito utilizada na produção de ovos.

João de pau remo de mão, amarrado na popa de uma canoa, quando tripulada por um só pescador que rema na proa. Faz as vezes de quilha. Muito usado no baixo Amazonas.


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carecia construir ou consertar pra facilitar a vida do povo goiano434. Noite chegada, enxergando as luzinhas dos afogados435 sambando manso nas ipueiras da cheia, Macunaíma olhava olhava e adormecia bem. Acordava esperto no outro dia e erguido na proa da igarité com o argolão da gaiola enfiado no braço esquerdo, repinicava na violinha botando a boca no mundo cantando saudades da querência, assim: “Antianti é tapejara, – Pirá-uauau, Ariramba é cozinheira, – Pirá-uauau, Taperá, onde a tapera Da beira do Uraricoera? – Pirá-uauau…”436 E o olhar dele espichando espichando descia a pele do rio em busca dos pagos da infância. Descia e cada cheiro de peixe cada moita de craguatá cada tudo punha entusiasmo nele e o herói botava a boca no mundo feito maluco fazendo emboladas e traçados sem sentido:

Ipueira charco formado pelo transbordamento dos rios em lugares baixos. ANTIANTI espécie de gaivota, Leucophaeus atricilla. TAPEJARA guia; do tupi tapé, “caminho”, e jara, “senhor”, literalmente, senhor dos caminhos. PIRÁ peixe, em tupi. ARIRAMBA na Amazônia, nome de diversas espécies de martim-pescador.

TAPERÁ Ver chabó, p. 36. TAPERA habitação ou aldeia abandonada. Embolada coco de embolada, coco (atividade musical de caráter festivo) caracterizado pelo desafio entre dois emboladores que improvisam versos acompanhados por pandeiros ou ganzás. Traçado o que é produto de mistura.


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“Taperá tapejara, – Caboré, Arapaçu paçoca,

– Caboré,

Manos, vamos-se embora Pra beira do Uraricoera!

– Caboré!”437

As águas araguaias murmurejavam chamando a reta da igarité com gemidinho e lá do longe vinha a cantiga peguenta das uiaras. Vei, a Sol, dava lambadas no costado relumeando suor de Maanape e Jiguê remeiros e no cabeludo corpo em pé do herói. Era um calorão molhado fazendo fogo no delírio dos três. Macunaíma se lembrou que era imperador do Mato-Virgem. Riscou um gesto na Sol, gritando: – Eropita boiamorebo!438 Logo o céu se escurentou de supetão e uma nuvem ruivor subiu do horizonte entardecendo a calma do dia. A ruivor veio vindo veio vindo e era o bando de araras-vermelhas e jandaias, todos esses faladores, era o papagaio‑trombeta era o papagaio-curraleiro era o periquito cutapado era o xarã o peito-roxo o ajuru-curau o ajuru-curica arari ararica araraúna araraí araguaí arara-taua maracanã maitaca arara piranga catorra teriba camiranga anaca anapura canindés tuins periquitos, todos esses, o cortejo sarapintado de Macunaíma imperador. E todos esses faladores formaram uma tenda de asas e de gritos protegendo o herói do despeito vingarento da Sol. Era uma bulha de águas deuses e passarinhos que nem se escutava mais nada e a igarité meio parava atordoada. Mas Macunaíma assustando os legornes riscava de quando em vez um gesto diante de tudo e gritava:

Caboré espécie de coruja muito pequena que voa e caça durante o dia. ARAPAÇU pica-pau-vermelho.

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– Era uma vez uma vaca amarela, quem falar primeiro come a bosta dela439! Dem-de-lem chegou! O mundo ficava mudo não falando um isto e o silêncio vinha amulegar a mornidão da sombra na igarité. E se escutava lá no longe lá no longe baixinho baixinho o ruidejar do Uraricoera. Então dava mais estusiasmo no herói. A violinha repinicava tremida. Macunaíma pigarreava atirando gusparadas no rio e enquanto o guspe afundava transformado em matamatás nojentos, o herói botava a boca no mundo feito maluco sem nem saber o que cantava, assim: “Panapaná pá-panapaná, Panapaná pá-panapanema: Papa de papo na popa, – Maninha, Na beira do Uraricoera!”440 Depois a boca-da-noite engoliu todas as bulhas e o mundo adormeceu. Tinha só Capei, a Lua, enorme de gorda, rechonchuda que nem cara das polacas depois duma noite daquelas, puxavante! quanta sacanagem feliz quanta cunhã bonita e quanto caxiri!… Então Macunaíma teve saudades do sucedido na taba grande paulistana. Viu todas aquelas donas de pele alvinha com quem brincara de marido e mulher, foi tão bom!… Sussurrou docemente: “Mani! Mani! filhinhas da mandioca!”… Deu um tremor comovido no beiço dele que quase a muiraquitã cai no rio. Macunaíma tornou a enfiar o tembetá no beiço. Então pensou muito sério na dona da muiraquitã, na briguenta, na diaba gostosa que batera tanto nele, Ci. Ah! Ci, Mãe do Mato, marvada que tornara-se inesquecível porque fizera ele dormir na rede tecida com os cabelos dela!… “Quem tem seus amores longe, passa trabalhos trianos…”441 parafusou. Que caborje da marvada!… E estava lá

Matamatá espécie de tartaruga de água doce da Amazônia, cujo nome científico, Chelus fimbriatus, significa tartaruga franjada ou ornamentada.


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no campo do céu banzando nuns trinques toda enfeitada passeando brincando quem sabe com quem… Teve ciúmes. Ergueu os braços pro alto assustando os legornes e rezou pro Pai do Amor: “Rudá! Rudá! Tu que estás no céu E mandas nas chuvas. Rudá! faz com que minha amada Por mais companheiros que arranje Ache que todos são frouxos! Assopra nessa marvada Sodades do seu marvado! Faz com que ela se lembre de mim amanhã Quando a Sol for-se embora no poente!…”442 Olhou bem pro ar. Não tinha Ci não, Capei só, gordanchona, tomando tudo. O herói deitou de comprido na igarité, fez um cabeceiro da gaiola e adormeceu entre maruins piuns muriçocas. A noite já estava amarelando quando Macunaíma acordou com os gritos dos viras num bambuzal. Assuntou a vista e deu um pulo na praia, falando pra Jiguê: – Espera um bocadinho. Entrou no mato bem, légua e meia. Foi buscar a linda Iriqui, companheira dele que já fora companheira de Jiguê e esperava se enfeitando e coçando mucuim assentada nas raízes da samaúma443. Os dois se festejaram, muito brincaram e vieram pra igarité. Quando foi ali pelo meio-dia a papagaiada se estendeu de novo resguardando Macunaíma. E assim por muitos dias. Uma tarde o herói estava muito enfarado e

Vira ave dos campos que costuma se reunir nos bambuzais em grande número.


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se lembrou de dormir em terra firme, fez. Nem bem pisou na praia e se ergueu na frente dele um monstro. Era o bicho Pondê um jurucutu do Solimões444 que virava gente de-noite e engolia os estradeiros. Porém Macunaíma pegou na flecha que tinha na ponta a cabeça chata da formiga santa chamada curupê e nem fez pontaria, acertou que foi uma beleza445. O bicho Pondê estourou virando coruja. Mais pra diante depois de atravessado um chato quando subia por um espigão cheio de crocas topou com o Monstro Mapinguari446 macaco-homem que anda no mato fazendo mal pras moças. O monstro agarrou Macunaíma porém o herói tirou o toaquiçu pra fora e mostrou pro Mapinguari. – Não confunde não, parceiro! O monstro riu e deixou Macunaíma passar. O herói andou légua e meia procurando um pouso sem formiga. Subiu na ponta dum cumaru de quarenta metros e afinal depois de muito campear descobriu uma luzinha longe. Foi lá e topou com um rancho. E era o rancho de Oibê447. Macunaíma bateu e uma vozica mui doce gemeu de lá dentro: – Quem vem lá! – É de paz! Então a porta se abriu e apareceu um bicho tamanho que sarapantou o herói. Era o monstro Oibê o minhocão448 temível. O herói sentiu friagem por dentro mas se lembrou do smith-wesson, criou coragem e pediu pousada. – Entre que a casa é sua. Macunaíma entrou, sentou numa canastra e ficou assim. Afinal perguntou: – Vamos conversar? – Vamos. – Sobre o quê? Oibê coçou a barbicha matutando e de repente descobriu satisfeito: – Vamos conversar porcaria?

Chato terreno plano. Espigão montanha.

Croca saliência. Toaquiçu pênis.


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– Chi! gosto disso que é um horror! o herói exclamou. E conversaram uma hora de porcariada. Oibê estava cozinhando a comidinha dele. Macunaíma não tinha fome nenhuma porém botou a gaiola no chão e só de embusteiro esfregando a mão na barriga fez: – Juque! Oibê resmungou: – Que é isso, gente! – É fome é fome! Oibê pegou numa gamela, botou cará com feijão dentro, encheu uma cuia com farinha-d’água e ofereceu pro herói. Mas não deu nem um tiquinho da pacuera assando no espeto de canela de sassafrás e aromando bem. Macunaíma engoliu tudo sem mastigar e não tinha fome nenhuma porém a boca dele ficou cheia de água por causa da pacuera assando. Esfregou a mão na barriga e fez: – Juque! Oibê resmungou: – Que é isso, gente! – É sede é sede! Oibê pegou no balde e foi buscar água no poço. Enquanto ia, Macunaíma tirou a canela de sassafrás das brasas engoliu a pacuera inteira sem mastigar e ficou bem sossegado esperando. Quando o minhocão trouxe o balde Macunaíma bebeu um coco cheio. Depois se espreguiçando suspirou: – Juque! O monstro se sarapantou: – Que mais que é, gente! – É sono é sono! Então Oibê levou Macunaíma pro quarto de hóspedes deu boa-noite e fechou a porta por fora. Foi cear. Macunaíma botou a gaiola num canto, cobrindo o casal

Pacuera as vísceras tiradas de boi, porco ou carneiro abatido.


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de galinhas com umas chitas. Assuntou o quarto bem. Tinha uma bulhinha sem parada vinda de todos os lados. Macunaíma bateu a pedra do isqueiro e viu que eram baratas. Trepou assim mesmo na rede não sem espiar mais uma vez si não faltava nada pros legornes. O casal estava até bem satisfeito comendo barata. Macunaíma se riu pra ele, arrotou e adormeceu. Daí a pouco estava coberto de baratas lambendo. Quando Oibê pôs reparo que Macunaíma tinha comido a pacuera, teve raiva. Agarrou num sininho, se embrulhou num lençol branco e foi fazer assombração pro hóspede. Mas era só de brincadeira. Bateu na porta e manejou o sininho, de-lem! – Oi? – Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera-cuera, de-lem! Abriu a porta. Quando o herói enxergou a assombração ficou com tanto medo que nem se mexeu. Ele não sabia que era Oibê não. A fantasma vinha vindo: – Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera, de-lem! Então Macunaíma percebeu que não era assombração nada, era mas o monstro Oibê minhocão temível. Criou coragem pegou no brinco da orelha esquerda que era a máquina revólver e deu um tiro na assombração. Porém Oibê não fez caso e veio vindo. O herói tornou a ter medo. Pulou da rede agarrou a gaiola e escafedeu pela janela, jogando baratas no caminho todo. Oibê correu atrás. Mas era só de brincadeira que ele queria comer o herói. Macunaíma desembestara agreste fora mais isso ia que ia acochado pelo minhocão. Então botou o fura-bolo449 na goela, fez cosquinha e lançou a farinha engolida. A farinha virou num areão e enquanto o monstro pelejava pra atravessar aquele mundo de areia escorregando, Macunaíma fugia. Tomou pela direita, desceu o morro do Estrondo450 que soa de sete em sete anos seguiu por uns caponetes e depois de cortar um travessão encapelado fez o Sergipe de ponta a ponta e parou ofegando num agarrado muito


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pedregoso. Na frente havia uma lapa grande furada por uma furna com um altarzinho dentro. Na boca da socava um frade. Macunaíma perguntou pro frade: – Como se chama o nome de você? O frade pôs no herói uns olhos frios e secundou com pachorra: – Eu sou Mendonça Mar pintor. Desgostoso da injustiça dos homens faz três séculos que afastei-me deles metendo a cara no sertão. Descobri esta gruta ergui com minhas mãos este altar do Bom Jesus da Lapa e vivo aqui perdoando gente mudado em frei Francisco da Soledade451. – Está bom, Macunaíma falou. E partiu na chispada. Mas o terreno era cheio de socavas e logo adiante estava outro desconhecido fazendo um gestão tão bobo que Macunaíma parou sarapantado. Era Hércules Florence. Botara um vidro na boca duma furna mirim, tapava e destapava o vidro com uma folha de taioba. Macunaíma perguntou: – Ara, ara ara! Mas você não me dirá o que está fazendo aí, siô! O desconhecido virou pra ele e com os olhos relumeando de alegria falou: – Gardez cette date: 1927! Je viens d’inventer la photographie!452 Macunaíma deu uma grande gargalhada. – Chi! Isso já inventaram que anos, siô! Então Hércules Florence caiu estuporado sobre a folha de taioba e principiou anotando com música uma memória científica sobre o canto dos passarinhos. Estava maluco. Macunaíma chispou. Depois que correu légua e meia olhou pra trás e viu que Oibê já vinha perto. Botou o fura-bolo na goela e lá foi pro chão todo o cará engolido que virou num tartarugal mexe-mexendo. Oibê custou pra virar aquela imundície de tartaruga e Macunaíma fugiu. Légua e meia adiante olhou pra trás. Isso Oibê vinha na cola dele. Então tornou a botar o fura-bolo na goela e lançou que era só feijão e água. Tudo virou num lamedo cheio de sapos-bois e enquanto

Lapa cavidade grande no interior da terra, sobretudo em terrenos rochosos; caverna; furna.


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Oibê se debatia atravessando aquilo, o herói catava umas minhocas pras galinhas e partia afobado. Ganhou muita dianteira e parou pra descansar. Ficou bem admirado porque tinha corrido tanto que estava outra feita na porta do rancho de Oibê. Resolveu se esconder no pomar. Tinha um pé de carambola e Macunaíma principiou arrancando ramos do caramboleiro pra se amoitar por debaixo. Os ramos cortados agarraram pingando água de lágrima e se escutou o lamento do caramboleiro: “Jardineiro de meu pai, Não me cortes meus cabelos, Que o malvado me enterrou Pelo figo da figueira Que passarinho comeu… – Chó, chó, passarinho!”453 Todos os passarinhos choraram de pena gemida nos ninhos e o herói gelou de susto. Agarrou no patuá que trazia entre os berloques do pescoço e traçou uma mandinga. O caramboleiro virou numa princesa muito chique. O herói teve um desejo danado de brincar com a princesa porém Oibê já devia de estar estourando por aí. De-fato: – Vim buscar minha pacuera-cuera-cuera-cuera, de-lem! Macunaíma deu a mão pra princesa e fugiram na disparada. Mais adiante havia uma figueira com a sapopemba enorme. Oibê estava já no calcanhar deles e Macunaíma não tinha tempo mais pra nada. Então se meteu com a princesa no buraco da sapopemba. Mas o minhocão enfiou o braço e inda agarrou a perna do herói. Ia puxar mas Macunaíma deu uma grande gargalhada de experiência e falou:


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– Você está maginando que pegou minha gâmbia, pegou não! Isso é raiz, bocó! O minhocão largou. Macunaíma gritou: – Pois era a perna mesmo, bocó de mola!454 Oibê tornou a enfiar o braço mas o herói já tinha encolhido a perna e o minhocão só achou raiz. Tinha uma garça perto. Oibê falou pra ela: – Comadre garça, bote sentido no herói. Não deixe ele sair que vou buscar uma enxada pra cavar. A garça ficou guardando. Quando Oibê já estava longe Macunaíma falou pra ela: – Então, sua palerma, é assim que se bota sentido num herói! Fique bem perto arregalando os olhos! A garça fez. Então Macunaíma atirou um punhado de formigas-de-fogo nos olhos dela e enquanto a garça gritava de cega ele saiu do buraco com a princesa e escafederam outra vez. Perto de Santo Antônio do Mato Grosso toparam com uma bananeira e estavam morrendo de fome. Macunaíma falou pra princesa: – Assobe, come as verdes que são boas e atira as amarelas pra mim.455 Ela fez. O herói se fartou enquanto a princesa dançava de cólicas pra ele apreciar. Oibê já vinha chegando e eles desataram o punho da rede456 outra vez. Depois de correrem mais légua e meia, enfim chegaram num firme pontudo do Araguaia. Porém a igarité estava abicada bem mais pra baixo na outra margem com Maanape Jiguê a linda Iriqui, todos esses companheiros dormindo. Macunaíma olhou pra trás. Oibê quase ali. Então botou o fura-bolo na goela pela última vez, fez cosquinha e alojou a pacuera n’água. A pacuera virou num periantã muito fofo de ervas. Macunaíma botou a gaiola com jeito no fofo, atirou a princesa lá e dando um arranco na margem com o pé, afastou da praia o periantã que as águas levaram. Oibê chegou mas os fugitivos iam longe. Então o minhocão que era um lobisomem famoso principiou tremelicando e ganindo muito

Gâmbia perna, do italiano gamba.

Periantã ilha flutuante de plantas, levada pela correnteza, que se forma por um pedaço de barranco que se desprende da beira do rio.


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foi encurtando encurtando tremelicando criou rabo e virou cachorro-do-mato. Escancarou a goela desencantada e saiu da barriga dele uma borboleta-azul.457 Era alma de homem presa no corpo do lobo por artes do Carrapatu458 medonho que para na gruta do Iporanga.459 Macunaíma e a princesa brincando desciam a corrente do rio. Agora estão se rindo um pro outro. Quando passaram rente da igarité os manos se acordaram com os gritos de Macunaíma e foram atrás. Iriqui ficou logo enciumada porque o herói não queria saber mais dela e só brincava com a princesa. E pra ver si reconquistava o herói abriu num bué famoso. Jiguê teve logo muita pena dela e falou pra Macunaíma ir brincar com Iriqui um poucadinho. Jiguê era muito bobo. Mas o herói que já andava impinimando com Iriqui secundou pra ele: – Iriqui é muito relambória, mano, mas a princesa, upa! Não dê crédito pra Iriqui não! Oi que Sol de inverno chuva de verão choro de mulher palavra de ladrão, eieiei… ninguém não caia não! E foi brincar com a princesa. Iriqui ficou triste triste, bem triste, chamou seis araras-canindés e subiu com elas pro céu, chorando luz virada numa estrela. As canindés amarelinhas também viraram estrelas. É o Setestrelo460.

Cachorro-do-mato  canídeo silvestre, Cerdocyon thous, de pelagem cinza e marrom, orelhas curtas, cauda longa e escura; graxaim. Relambório sem graça, que não desperta interesse.

Arara-canindé de colorido azul em cima, amarelo no lado inferior e sem ornatos vermelhos. Setestrelo grupo de sete estrelas na constelação do Touro visíveis a olho nu.


16 URARICOERA

No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem parada. Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate,461 imaginando que o herói estava hético. Em vez era impaludismo, e a tosse viera só por causa da laringite que toda a gente carrega de São Paulo462. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha pra brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando: – Ara… que preguiça… No outro dia atingiram as cabeceiras dum rio e escutaram perto o ruidejar do Uraricoera. Era ali. Um passarinho serigaita trepado na munguba, enxergando o farrancho gritou logo: – Sinhá dona463 do porto, dá caminho pra mim passar! Macunaíma agradeceu feliz. De pé ele assuntava a paisagem passando. Veio vindo o forte São Joaquim erguido pelo mano do grande Marquês.464 Macunaíma deu um té-logo pro cabo e pro soldado que só possuíam um naco esfarrapado de culote e o boné na cabeça e viviam guardando as saúvas dos canhões. Afinal ficou tudo conhecidíssimo. Se enxergou o cerro manso que fora mãe um dia, no lugar chamado Pai da Tocandeira, se enxergou o pauê trapacento malhado de vitórias-régias escondendo os puraquês e os pitiús e pra diante do bebedouro da anta se viu o roçado velho agora uma tiguera e a maloca velha agora uma tapera.465 Macunaíma chorou.

Hético héctico, que tem hética (héctica), definhamento progressivo do organismo. Impaludismo malária, maleita. De borco de bruços, de barriga para baixo. Munguba árvore que cresce em lugares úmidos, à beira de rios e lagoas, que produz flores amarelas, grandes e perfumadas, e um fruto semelhante ao cacau; cacau-selvagem.

Farrancho grupo de pessoas que se reúnem para viajar em romaria ou divertir-se. Culote culotes, calças largas na parte de cima e justas na parte de baixo, próprias para andar a cavalo e com as quais se usam botas de cano alto. Puraquê poraquê, peixe-elétrico da Amazônia. Pitiú Ver tracajá, p. 37. Tiguera roça depois de feita a colheita.


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Abicaram e entraram na tapera. Vinha a boca-da-noite. Maanape com Jiguê resolveram fazer uma facheada pra pegarem algum peixe e a princesa foi ver si topava com algum arezi pra comerem. O herói ficou descansando. Estava assim quando sentiu no ombro um peso de mão. Virou a cara e olhou. Junto dele estava um velho de barba. O velho falou: – Quem és tu, nobre estrangeiro? – Não sou estranho não, conhecido. Sou Macunaíma o herói e vim parar de novo na terra dos meus. Você quem é? O velho afastou os mosquitos com amargura e secundou: – Sou João Ramalho466. Então João Ramalho enfiou dois dedos na boca e assoviou. Apareceram a mulher dele e as quinze famílias de escadinha467. E lá partiram de mudança buscando pagos novos sem ninguém. No outro dia bem cedinho foram todos trabucar. A princesa foi no roçado Maanape foi no mato e Jiguê foi no rio. Macunaíma se desculpou, subiu na montaria e deu uma chegadinha até a boca do rio Negro pra buscar a consciência deixada na ilha de Marapatá. Jacaré achou? nem ele. Então o herói pegou na consciência dum hispano-americano468, botou na cabeça e se deu bem da mesma forma. Passava uma piracema de jaraquis. Macunaíma agarrou pescando e distraído

Facheada pesca de facheado, realizada à noite, com fachos feitos, por exemplo, com folhas de coqueiro amarradas juntas. Montaria pequena canoa, ligeira, construída de um só tronco. Seu nome primitivo era canoa de montaria.

Piracema movimento migratório de peixes em direção às nascentes dos rios, para desova. Do tupi pira, “peixe”, e sema, “sair”, de onde “saída de peixe”, isto é, desova. Jaraqui uma das espécies de peixe mais populares do Amazonas, Semaprochilodus sp.


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distraído quando viu estava em Óbidos, a montaria cheinha de peixes frescos. Mas o herói foi obrigado a atirar tudo fora porque em Óbidos “quem come jaraqui fica aqui” falam e ele tinha que voltar pro Uraricoera. Voltou e como era ainda o pino do dia deitou na sombra da ingazeira catou os carrapatos e dormiu. Tarde chegando todos voltaram pra tapera só Macunaíma não. Os outros saíram pra esperar. Jiguê se acocorou botando a orelha no chão469 pra ver si escutava o passinho do herói, nada. Maanape trepou no grelo duma inajá pra ver si enxergava o brilho dos brincos do herói, nada. Então saíram por mato e capoeira gritando: – Macunaíma, nosso mano!… Nada. Jiguê chegou debaixo da ingazeira e gritou: – Nosso mano! – Que foi! – Você, aposto que já estava dormindo! – Dormindo nada, então! Estava mas era negaceando um inambuguaçu. Você fez bulha, nhambu escapuliu! Voltaram. E assim todos os dias. Os manos andavam muito desconfiados. Macunaíma percebeu e disfarçou bem: – Eu caço porém não acho nada não. Jiguê nem caça nem pesca, passa o dia dormindo. Jiguê teve raiva porque peixe andava rareando e caça inda mais. Foi na praia do rio pra ver si pescava alguma coisa e topou com o feiticeiro Tzaló470 que tem uma perna só. O catimbozeiro possuía uma cabaça encantada feita com a metade duma casca de jerimum. Mergulhou a cabaça no rio, encheu de água até o meio e despejou na praia. Caiu um despropósito de peixe. Jiguê reparou bem como que o feiticeiro fazia. Tzaló largou da cabaça por aí e principiou matando peixe com um porrete. Então Jiguê roubou a cabaça do feiticeiro Tzaló que tem uma perna só. Mais pra diante fez que nem tinha reparado e veio muito peixe, veio pirandira veio pacu veio cascudo veio bagre jundiá tucunaré, todos esses peixes e Jiguê voltou

Inambuguaçu ave que habita a Mata Atlântica no Brasil; inhambu-açu


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carregado pra tapera depois de esconder a cabaça na raiz do cipó. Todos ficaram sarapantados com aquele mundo de peixe e comeram bem. Macunaíma desconfiou. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que Jiguê fosse pescar, saiu atrás. Descobriu tudo. Quando o mano foi-se embora Macunaíma largou da gaiola com os legornes no chão pegou na cabaça escondida e fez que nem o mano. Isso vieram muitos peixes, veio acará veio piracanjuba veio aviú guarijuba, piramutaba mandi surubim, todos esses peixes. Macunaíma atirou a cabaça por aí, na pressa de matar todos os peixes, cabaça caiu numa lapa e juque! mergulhou no rio. Passava a pirandira chamada Padzá. Imaginou que era abobra e engoliu a cabaça que virou na bexiga de Padzá. Então Macunaíma enfiou a gaiola no braço voltou pra tapera e contou o sucedido. Jiguê teve raiva. – Cunhada princesa, eu que pesco, seu companheiro fica dormindo embaixo da ingazeira e inda atrapalha os outros! – Mentira! – Então o que você fez hoje? – Cacei viado. – Que-dele471 ele! – Comi, uai! Fui andando por um caminho, vai, topei rasto dum… catingueiro não era não mas era mateiro. Me agachei e fui no rasto. Olhando olhando, sabe, dei uma cabeçada numa coisa mole, que engraçado! sabem o que era! pois a bunda do viado, gente! (Macunaíma deu uma grande gargalhada.) Viado perguntou pra mim: – Que está fazendo aí, parente! – Te campeando! secundei. E vai, matei o catingueiro que comi com tripa e tudo. Vinha trazendo um naco pra vocês, vai, escorreguei atravessando o ipu, dei um tombo, naco foi parar longe e tanajura sujou nele. A peta era tamanha que Maanape desconfiou. Maanape era feiticeiro. Chegou bem rente do mano e perguntou: – Você foi na caça?

Peta mentira.


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– Quer dizer… fui sim. – O que você caçou? – Viado. – Qual! Maanape fez um grande gesto. O herói piscou de medo e confessou que tudo era lorota. No outro dia Jiguê estava procurando a cabaça quando topou com o tatu-canastra feiticeiro chamado Caicãe que nunca teve mãe. Caicãe sentado na porta da toca puxou a violinha dele feita com a outra metade da abobra encantada e agarrou cantando assim: “Vôte vôte coandu! Vôte vôte cuati! Vôte vôte taiaçu! Vôte vôte pacari! Vôte vôte canguçu! Êh!…” Assim. Vieram muitas caças. Jiguê reparando. Caicãe atirou a violinha encantada por aí, pegou num porrete e foi matar todo aquele poder de caças que estavam feito bobas. Então Jiguê roubou a violinha do feiticeiro Caicãe que nunca teve mãe. Mais pra diante cantou que nem tinha escutado e veio um dilúvio de caça parando na frente dele. Jiguê voltou carregado pra tapera depois de esconder a violinha na raiz de outro cipó. Todos tornaram a se espantar e comeram bem. Macunaíma tornou a desconfiar. No outro dia esperou com o olho esquerdo dormindo que Jiguê partisse, foi atrás. Descobriu tudo. Quando o mano voltou pra tapera Macunaíma pegou na

Vôte vote; interjeição que exprime repulsa ou desprezo. Coandu roedor também conhecido como ouriço‑cacheiro. Cuati carnívoro que tem anéis claros, alternados com outros, pretos, ao longo de toda a cauda; quati.

Taiaçu espécie de porco selvagem; queixada, pacari, Tayassu pecari. Canguçu onça-pintada; o maior felino das Américas, Panthera onca, vive do sul dos Estados Unidos ao norte da Argentina, em florestas tropicais, Pantanal, Cerrado e Caatinga.


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violinha, fez talequal reparara e veio uma imundície de caça, viados cotias tamanduás capivaras tatus aperemas pacas graxains lontras muçuãs catetos monos tejus queixadas antas, a anta sabatira, onças, a onça-pinima a papa-viado a suçuarana a jaguatirica, canguçu pixuna, isso era uma imundície de caças! O herói teve medo daquela bicharada tamanha e saiu numa carreira mãe pinchando a violinha longe. A gaiola enfiada no braço dele ia batendo nos paus e o galo com a galinha faziam um cacarejo de ensurdecer. O herói imaginava que era a bicharia e disparava mais. A violinha caiu no dente de um queixada que tinha umbigo nas costas e se partiu em dez vezes dez pedaços que os bichos engoliram pensando que era jerimum. Os pedaços viraram nas bexigas das caças. O herói estourou tapera adentro feito um desesperado botando os bofes pela boca. Nem bem pôde respirar contou o sucedido. Jiguê teve ódio e falou: – Agora que não caço nem pesco mais! E foi dormir. Todos principiaram curtindo fome. Bem que pediam porém Jiguê pulava na rede e fechava os olhos. O herói jurou vingança. Fingiu um anzol com presa de sucuri e falou pro feitiço: – Anzol de mentira, si mano Jiguê vier experimentar você, então entra na mão dele. Jiguê não podia dormir de tanta fome e enxergando o anzol falou pro mano: – Mano, esse anzol é bom? – Xispeteó472! Macunaíma fez e continuou limpando a gaiola. Jiguê decidiu ir numa pescaria porque estava mesmo curtindo fome, falou: – Deixa ver si anzol é bom. Pegou no feitiço e experimentou na palma da mão. O dente de sucuri entrou na pele e despejou todo o veneno lá. Jiguê correu pro matinho e bem que mastigou e engoliu maniveira, não valeu de nada. Então foi buscar uma cabeça de anhuma que fora encostada em picada de cobra. Pôs na mão. Não valeu de nada. Veneno virou numa ferida leprosa e principiou comendo Jiguê.

Graxaim Ver cachorro-do-mato, p. 167. Cateto espécie de porco selvagem, caracterizado pelo colar branco que envolve o pescoço; Tayassu tajacu. Onça-pinima onça-pintada. Papa-viado provável neologismo criado por Mário de Andrade, em alusão ao fato de que onças costumam caçar veados.

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Jaguatirica felídeo que vive em florestas do sudoeste do Texas (EUA) até o norte da Argentina; Leopardus pardalis. Sucuri uma das maiores serpentes do mundo. Não é venenosa, mas, utilizando-se da incrível força muscular, mata qualquer presa que consiga enroscar.

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Primeiro comeu um braço depois metade do corpo depois as pernas depois a outra metade do corpo depois o outro braço depois o pescoço e a cabeça. Só ficou a sombra de Jiguê473. A princesa teve ódio. É que ela andava ultimamente brincando com Jiguê. Macunaíma bem que percebeu porém imaginou: “Plantei mandioca nasceu maniva, de ladrão de casa ninguém se priva, paciência!…” E tinha encolhido os ombros. A princesa raivosa falou pra sombra: – Quando o herói for passear de fome você vira num cajueiro numa bananeira e num churrasco de viado474. A sombra era envenenada por causa da lepra e a princesa queria matar Macunaíma. No outro dia o herói acordou com tanta fome que foi espairecer passeando. Topou com um cajueiro cheio de frutas. Quis comer porém presenciou que era a sombra leprosa e passou adiante. Légua e meia depois topou com um churrasco de viado fumegando. Já estava roxo de fome porém pôs reparo que o churrasco era a sombra leprosa e passou adiante. Légua e meia depois topou com uma bananeira carregadinha de pencas maduras. Mas agora o herói já estava que vinha vesgo de tanta fome. A vesgueira fez ele enxergar dum lado a sombra do mano e do outro a bananeira. – Arre que posso comer! fez. E devorou todas as pencas. E as bananas eram a sombra leprosa de mano Jiguê. Macunaíma ia morrer. Então se lembrou de passar a doença nos outros pra não morrer sozinho. Pegou numa formiga saúva e esfregou bem ela na ferida do nariz, formiga já foi gente que nem nós e a saúva ficou leprosa. Então o herói agarrou a formiga jaguataci e fez o mesmo. Jaguataci ficou leprosa também. Então foi a vez da formiga aqueque devoradora de sementes e da formiga guiquém, da formiga tracuá e da formiga mumbuca bem preta, todas ficaram


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leprosas. Não tinha mais formigas em redor do herói sentado. Ele ficou com preguiça de estender o braço porque já estava moribundo. Esperou a visita da saúde,475 criou força e pegou no mosquito birigui mordendo o joelho dele. Passou a doença no mosquito birigui. Por isso que agora quando esse mosquito morde a gente, entra na pele, atravessa o corpo e sai do outro lado enquanto o furinho de entrada vira na bereva medonha chamada chaga de bauru. Macunaíma tinha passado a lepra em sete outras gentes e ficou são no sufragante476, voltando pra tapera. A sombra de Jiguê conferiu que o herói era muito inteligente e quis voltar desesperada pra junto da família. Era já de-noite e se confundindo com a escureza a sombra não achava mais o caminho perto. Sentou numa pedra e berrou: – Foguinho, cunhada princesa! A princesa coxeando muito porque estava doente de zamparina477 veio com um tição alumiando caminho. A sombra engoliu o fogo e a cunhada. Berrou de novo: – Foguinho, mano Maanape! Maanape veio logo com outro tição alumiando caminho. E se arrastava molengo porque barbeiro chupara sangue dele e Maanape estava opilado. A sombra engoliu fogo e mano Maanape. Berrou: – Foguinho, mano Macunaíma! Queria engolir o herói também mas Macunaíma percebendo o que sucedera pro mano e pra companheira encostou a porta e ficou bem quieto na tapera. A sombra pedia foguinho, pedia porém não recebendo resposta se lastimou até madrugada. Então Capei apareceu iluminando a terra e a leprosa pôde chegar na tapera. Sentou na canjerana da soleira e esperou o dia pra se vingar do mano. De-manhã inda estava acocorada ali. Macunaíma acordou e escutou. Não se ouvia nada e ele concluiu:

Birigui mosquito que se alimenta de sangue e que pode transmitir várias doenças, como a leishmaniose. Chaga de Bauru doença causada pelo protozoário leishmânia, transmitido por mosquitos; leishmaniose. Barbeiro inseto que transmite o protozoário tripanossoma, causador da tripanossomíase ou doença de Chagas.

Opilado que tem opilação ou cansaço, ancilostomíase, doença causada por um verme que se aloja no intestino. Canjerana árvore que pode alcançar 35 metros de altura, de madeira castanha, castanha-avermelhada ou vermelha-escura.


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– Arre! Foi-se! E saiu passear. Quando passou pela porta a sombra trepou no ombro dele. O herói não maliciou nada. Estava padecendo de fome porém a sombra não deixava ele comer. Tudo o que Macunaíma pegava ela engolia, tamorita mangarito inhame biribá cajuí guaimbé guacá uxi ingá bacuri cupuaçu pupunha taperebá graviola grumixama, todas essas comidas do mato. Então Macunaíma foi pescar porque agora não tinha mais ninguém que pescasse pra ele não478. Mas cada peixe que tirava do anzol e jogava no paneiro, a sombra pulava do ombro, engolia o peixe e voltava pro poleiro outra vez. O herói matutou: “Deixa estar que te arranjo!” Quando peixe pegou, Macunaíma fez um esforço heroico, deu um bruto dum arranco na vara de forma que o impulso fez o peixe ir parar lá na Guiana. A sombra correu atrás do peixe. Então Macunaíma gavionou mato fora no sentido oposto. Quando a sombra voltou, não achando mais o mano disparou no rasto dele. Depois de correr um pouco, atravessar a terra dos índios tatus-brancos479 e pegar um susto tamanho que passou sem pedir licença entre a sombra de Jorge Velho480 e a sombra do Zumbi481 que estavam discutindo, o herói fatigadíssimo, olhou pra trás e viu que a sombra já vinha chegando. Estava na Paraíba e tão sem vontade de chispar que parou. Era por causa do herói estar impaludado. Perto havia uns trabalhadores destruindo formigueiros para construir um açude. Macunaíma pediu água pra eles. Não tinha nem gota porém deram raiz de umbu. O herói matou a sede dos legornes, agradeceu e gritou: – Diabo leve quem trabalha!482 Os trabalhadores estumaram a cachorrada no herói. Isso mesmo que ele queria porque teve medo e chispou bem. Na frente abria a estrada das boiadas. Macunaíma isso vinha que vinha acochado pela sombra, nem turtuveou: meteu pelo estradão. Mais adiante estava dormindo um boi malabar chamado Espácio483 que viera do Piauí. O herói deu um trompaço nele de tanta fúria. Isso o

Tamorita bebida indígena. Mangarito planta da família do inhame e do cará. Biribá fruto do biribazeiro, árvore também conhecida como pinha, anona e jaca-de-pobre. Cajuí fruto do cajuí, árvore semelhante ao cajueiro, de menor tamanho, nativa e dispersa na Amazônia, Nordeste, Goiás, Mato Grosso e Guianas. Guaimbé espécie de cipó, Caladium pendulinum, Caladium lacerum, cujas folhas e raiz têm uso medicinal. Guacá árvore do Cerrado de cerca de 10 metros de altura.

Uxi fruto do uxi, árvore da Amazônia que pode atingir 30 metros de altura. Ingá fruto da ingazeira, árvore que costuma crescer à beira de rios. Bacuri fruto do bacurizeiro, árvore que pode ter até 40 metros de altura e 2 metros de diâmetro. O bacuri tem polpa branca, agridoce, utilizada na produção de doces, sorvetes, sucos, geleias e licores. Cupuaçu fruto do cupuaçuzeiro, Theobroma grandiflorum. ►


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boi saiu numa galopada louca de susto e lá foi cego manadeiro abaixo. Então Macunaíma quebrou por uma picada sem jeito e se amoitou por debaixo dum mucumuco. A sombra escutava a bulha do marruá galopeando e imaginou que era Macunaíma, foi atrás. Alcançou o boi e pra não perder a pernada fez poleiro no costado dele. E cantava satisfeita: “Meu boi bonito, Boi Alegria, Dá um adeus Pra toda a família! Ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga meu boi!”484 Porém nunca mais que o boi pôde comer, a sombra engolia tudo antes do bicho. Então o marruá foi ficando jururu ficando jururu magruço e lerdo. Quando passou pelo rincão chamado Água Doce perto de Guararapes, o boi mirou sarapantado bem no meio do areão a vista linda, um laranjal cheio de sombra com a galinhada ciscando por baixo. Era sinal de morte… A sombra desenganada cantava agora: “Meu boi bonito, Boi Desengano, Dá um adeus, Até para o ano!

► Grumixama frutinha arroxeada e suculenta que dá na primavera. Gavionar não se deixar apanhar (gauchismo). Estumar provocar a ferocidade de cães. Malabar gado bovino que resulta do cruzamento de touro zebu com vaca crioula.

Mucumuco mucumucu, palmeira nativa da Amazônia, que alcança 20 metros de altura. Com seus frutos é produzido um vinho de cor creme-leitosa, que costuma ser consumido com farinha de mandioca e açúcar; bacaba.


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Ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga meu boi!” No outro dia o marruá estava morto. Foi esverdeando esverdeando… A sombra muito penarosa se consolava cantando assim: “O meu boi morreu, Que será de mim? Manda buscar outro, – Maninha, Lá no Bom Jardim…”485 E o Bom Jardim era uma estância do Rio Grande do Sul. Então veio vindo uma giganta que gostava de brincar com o marruá. Viu o boi morto, chorou bem e quis levar o cadáver pra ela. A sombra teve raiva e cantou: “Arretira-te, giganta, Que o caso está perigoso! Quem se arretirou amante Faz ação de generoso!”486 A giganta agradeceu e foi-se embora dançando. Então passou por ali o indivíduo chamado Manuel da Lapa carregado de folha de cajueiro e de rama de algodão. A sombra saudou o conhecido:


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“Seu Manué que vem do Açu, Seu Manué que vem do Açu, Vem carregadinho de folha de caju! Seu Manué que vem do sertão, Seu Manué que vem do sertão, Vem carregadinho de rama de algodão!” Manuel da Lapa ficou muito concho com a saudação e pra agradecer dançou um sapateado e cobriu o cadáver com a folha de caju e a rama de algodão. O velho já estava tirando a noite do buraco e a sombra toda confundida não via mais o boi debaixo dos flocos e da folhagem. Principiou dançando à procura dele. Um vaga-lume se admirou daquilo e cantou perguntando: “Linda pastorinha Que fazeis aqui? Vim buscar meu gado, – Maninha, Que eu aqui perdi.” Foi como a sombra secundou cantando. Então o vaga-lume dançando voou do tronco pra baixo e mostrou o boi pra sombra. Ela trepou na barriga verde do morto e ficou chorando ali. No outro dia o boi estava podre. Então vieram muitos urubus, veio o urubu-camiranga, veio o urubu-paraguá, veio o urubu-jeregua o urubu-peba o urubu-ministro o urubutinga que só come olhos e língua, todos esses cabeças-peladas e principiaram dançando de contentes. O mais grande puxava a dança cantando:

Concho cheio de si; vaidoso.


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“Urubu é passo feio feio feio! Urubu é passo limpo limpo limpo!” E era o urubu-ruxama, urubu-rei, o Pai do Urubu. Então mandou um urubuzinho piá entrar dentro do boi pra ver si já estava bem podre. O urubuzinho fez. Entrou por uma porta e saiu por outra487 dizendo que sim e todos fizeram a festa juntos dançando e cantando: “Meu boi bonito, Boi Zebedeu, Corvo avoando, Boi que morreu. Ôh… êh bumba, Folga meu boi! Ôh… êh bumba, Folga meu boi!” E foi assim que inventaram a festa famanada do bumba meu boi, também conhecida por boi-bumbá. A sombra teve raiva de estarem comendo o boi dela e pulou no ombro do urubu-ruxama. O Pai do Urubu488 ficou muito satisfeito e gritou: – Achei companhia pra minha cabeça, gente! E voou pra altura. Desde esse dia o urubu-ruxama que é o Pai do Urubu possui duas cabeças.A sombra leprosa é a cabeça da esquerda. De primeiro489 o urubu-rei tinha só uma cabeça.





17 URSA MAIOR

Macunaíma se arrastou até a tapera sem gente agora. Estava muito contrariado porque não compreendia o silêncio. Ficara defunto sem choro, no abandono completo. Os manos tinham ido-se embora transformados na cabeça esquerda do urubu-ruxama e nem siquer a gente encontrava cunhãs por ali. O silêncio principiava cochilando à beira-rio do Uraricoera. Que enfaro! E principalmente, ah!… que preguiça!… Macunaíma foi obrigado a abandonar a tapera cuja última parede trançada com palha de catolé estava caindo. Mas o impaludismo não lhe dava coragem nem pra construir um papiri. Trouxera a rede pro alto dum teso onde tinha uma pedra com dinheiro enterrado por debaixo. Amarrou a rede nos dois cajueiros frondejando e não saiu mais dela por muitos dias dormindo caceteado e comendo cajus. Que solidão! O próprio séquito sarapintado se dissolvera. Não vê que um ajurucatinga passara muito afobado por ali. Os papagaios perguntaram pro parente onde que ia. – Madurou milho na terra dos ingleses490, vou pra lá! Então todos os papagaios foram comer milho na terra dos ingleses. Porém primeiro viraram periquitos porque assim, comiam e os periquitos levavam a fama491. Só ficara um aruaí muito falador. Macunaíma se consolou pensamenteando: “O mal ganhado, diabo leva… paciência”. Passava os dias enfarado e se

Enfaro enfado, tédio, falta de interesse. Catolé espécie de palmeira encontrada de Pernambuco até São Paulo, ocorrendo com maior abundância nas serras de Mata Atlântica do litoral da Bahia.

Ajurucatinga espécie de papagaio também conhecida como curica. Aruaí espécie de papagaio; periquitão-maracanã, maritaca.


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distraía fazendo o pássaro repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro herói desde infância. Aaah… Macunaíma bocejava escorrendo caju, muito mole na rede, com as mãos pra trás fazendo cabeceiro, o casal de legornes empoleirado nos pés e o papagaio na barriga. Vinha a noite. Aromado pelas frutas do cajueiro o herói ferrava no sono bem. Quando a arraiada vinha o papagaio tirava o bico da asa e tomava o café da manhã devorando as aranhas que de-noite fiavam as teias dos ramos pro corpo do herói. Depois falava: – Macunaíma! O dorminhoco nem se mexia. – Macunaíma! ôh Macunaíma! – Deixa a gente dormir, aruaí… – Acorda, herói! É de-dia! – Ah… que preguiça!… – Pouca saúde e muita saúva, Os males do Brasil são!… Macunaíma dava uma grande gargalhada e coçava a cabeça cheia de pixilinga que é piolho-de-galinha. Então o papagaio repetia492 o caso aprendido na véspera e Macunaíma se orgulhava de tantas glórias passadas. Dava entusiasmo nele e se punha contando pro aruaí outro caso mais pançudo. E assim todos os dias.

Piolho-de-galinha ácaro que parasita galinhas e outras aves (pombos, pardais etc.), sugando seu sangue, podendo levá-las à anemia.


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Quando a Papa-ceia que é a estrela Vésper aparecia falando pras coisas irem dormir, o papagaio zangava por causa da história parando no meio. Uma feita ele insultou a estrela Papa-ceia. Então Macunaíma contou: – Não insulta ela não, aruaí! Taína-Cã é bom. Taína-Cã que é a estrela Papa-ceia tem pena da Terra e manda Emoron-Pódole493 dar o sossego do sono deste mundo pra todas essas coisas que podem ter sossego porque não possuem pensamento que nem nós. Taína-Cã é indivíduo também… Relumeava lá no campo vasto do céu e a filha mais velha do morubixaba Zozoiaça da tribo carajá, solteirona chamada Imaerô falou assim: – Pai, Taína-Cã relumeia tão bonito que eu quero me amulherar com ele. Zozoiaça riu bem por causa que não podia dar Taína-Cã de casamento pra filha velha não. Vai, de-noite veio descendo o rio uma piroga de prata, um remeiro saltou dela, bateu no poial e falou pra Imaerô: – Eu sou Taína-Cã. Escutei vosso pedido e vim numa piroga de prata. Casa comigo por favor! – Sim, ela fez contentíssima. Deu a rede pro noivo e foi dormir com a mana mais nova se chamando Denaquê. No outro dia quando Taína-Cã pulou da rede todos se sarapantaram. Era um coroca enrugado enrugado, tremelicando tanto feito a luz da estrela Papa-ceia. Vai, Imaerô falou: – Cai fora, coroca! Vê lá si vou casar com velho! Pra mim há-de ser um moço mui brabo mucudo e de nação carajá! Taína-Cã ficou jururu jururu e principiou imaginando na injustiça dos homens. Porém a filha mais nova do morubixaba Zozoiaça teve pena do coroca e falou: – Eu caso com você. Taína-Cã brilhou de gozo. Ficaram ajustados. Denaquê preparando o enxoval cantava noite e dia:

Morubixaba chefe de um grupo indígena; cacique. Piroga canoa indígena feita de um tronco de árvore escavado a fogo. Poial assento de pedra na entrada de uma casa, junto à parede.

BRABO bravo, corajoso. MUCUDO que tem muque, forte.


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– Amanhã por estas horas, furrum-fum-fum494… Zozoiaça respondia: – Eu também com vossa mãe, furrum-fum-fum… Depois que se acabaram os dedos das vossas mãos, papagaio, que são de espera pra noivo, na rede trançada por Denaquê se brincou dança de amor, furrum-fum-fum. Nem bem o dia estava rompendo a barra, Taína-Cã pulou da rede e falou pra companheira: – Vou derrubar mato pra fazer roçado. Agora você fica no mocambo e nunca não vai na roça me espiar. – Sim, ela fez. E ficou na rede, matutando gozada naquele velhinho esquisito que dera pra ela a noite mais gostosa de amor que a gente imagina. Taína-Cã derrubou mato, botou fogo em todos os macurus de formiga e preparou a terra. Naquele tempo inda a nação carajá não conhecia as plantas boas. Era só peixe e bicho que carajá engolia. Na outra madrugada Taína-Cã falou pra companheira que ia buscar sementes pra semear e repetiu a proibição. Denaquê ficou deitada na rede inda um bocado, matutando nas gostosuras valentes das noites de amor que o bom do coroca dava pra ela. E foi fiar. Taína-Cã deu uma chegadinha no céu, foi até o corgo Berô, fez oração e botando uma perna em cada barreira do corgo esperou assuntando a água. Daí a pouco vieram vindo no pelo da aguinha as sementes do milho cururuca, o fumo, a maniveira, todas essas plantas boas. Taína-Cã apanhou o que passava, desceu do céu e foi no roçado plantar. Estava trabucando na Sol quando Denaquê apareceu. Era por causa que ela de sodosa quis ver o companheiro dando gostosuras tão valentes pra ela nas noites de amor. Denaquê deu um grito de alegria.

Macuru berço indígena, aqui, no sentido de formigueiro.

Maniveira maniva, mandioca. Sodoso saudoso, que sente saudade.


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Taína-Cã não era coroca não! Taína-Cã era mas um rapaz muito brabo mucudo e de nação carajá. Fizeram um macio de fumo e de maniva e brincaram pulado na Sol. Quando voltaram pro mucambo muito se rindo um pro outro, Imaerô ficou tiririca. Gritou: – Taína-Cã é meu! Foi pra mim que ele veio do céu! – Sai azar! que Taína-Cã falou. Quando eu quis você não quis, pois agora brinque-se! E trepou na rede com Denaquê. Imaerô desinfeliz suspirou assim: – Deixe estar jacaré, que a lagoa há-de secar!… E saiu gritando pelo mato. Virou na ave araponga que grita amarelo de inveja no quiriri do mato diurno. Desde então por causa da bondade de Taína-Cã é que Carajá come mandioca e milho e possui fumo pra se animar. E tudo o que Carajá carecia, Taína-Cã ia no céu e voltava trazendo. Pois não é que de Denaquê, de ambiciosa, deu pra namorar com todas as estrelinhas do céu! Deu sim, e Taína-Cã que é a Papa-ceia enxergou tudo. Isso, até se orvalhou de tão triste, foi pegando nos teréns e foi-se embora pro vasto campo do céu. Ficou lá, trouxe mais nada não. Si a Papa-ceia continuasse trazendo as coisas do outro lado de lá, céu era aqui, nosso todinho. Agora é só do nosso desejo. Tem mais não. O papagaio dormia. Uma feita janeiro chegado Macunaíma acordou tarde com o pio agourento do tincuã495. No entanto era dia feito e a cerração já entrara pro buraco…496 O herói tremeu e apalpou o feitiço que trazia no pescoço, um ossinho de piá morto pagão. Procurou o aruaí, desaparecera. Só o galo com a galinha brigando por causa duma aranha derradeira. Fazia um calorão parado tão imenso

Araponga ave também conhecida como ferreiro e ferrador; do tupi ara, “ave”, e ponga, “soante”. Seu canto estridente lembra o som de um ferreiro batendo o martelo em uma bigorna.

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Quiriri silêncio noturno (regionalismo amazônico).

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que se escutava o sininho de vidro dos gafanhotos497. Vei, a Sol, escorregava pelo corpo de Macunaíma, fazendo cosquinhas, virada em mão de moça. Era malvadeza da vingarenta só por causa do herói não ter se amulherado com uma das filhas da luz. A mão de moça vinha e escorregava tão de manso tão! no corpo… Que vontade nos músculos pela primeira vez espetados depois de tanto tempo! Macunaíma se lembrou que fazia muito não brincava. Água fria diz que é bom pra espantar as vontades… O herói escorregou da rede, tirou a penugem de teia vestindo todo o corpo dele e descendo até o vale de Lágrimas498 foi tomar banho num sacado perto que os repiquetes do tempo-das-águas tinham virado num lagoão. Macunaíma depôs com delicadeza os legornes na praia e se chegou pra água. A lagoa estava toda coberta de ouro e prata499 e descobriu o rosto deixando ver o que tinha no fundo. E Macunaíma enxergou lá no fundo uma cunhã lindíssima, alvinha e padeceu de mais vontade. E a cunhã lindíssima era a Uiara500. Vinha chegando assim como quem não quer, com muitas danças, piscava pro herói, parecia que dizia – “Cai fora, seu nhonhô moço!” e fastava com muitas danças assim como quem não quer. Deu uma vontade no herói tão imensa que alargou o corpo dele e a boca umideceu: – Mani!… Macunaíma queria a dona. Botava o dedão n’água e num átimo a lagoa tornava a cobrir o rosto com as teias de ouro e prata. Macunaíma sentia o frio da água, retirava o dedão. Foi assim muitas vezes. Se aproximava o pino do dia e Vei estava zangadíssima. Torcia pra Macunaíma cair nos braços traiçoeiros da moça do lagoão e o herói tinha medo do frio. Vei sabia que a moça não era moça não, era a Uiara. E a Uiara vinha chegando outra vez com muitas danças. Que boniteza que ela era!… Morena e coradinha que nem a cara do dia e feito o dia que vive cercado

SACADO lagoa que se forma no período das enchentes do rio Amazonas.

REPIQUETE aumento do nível da água nos afluentes do rio Amazonas provocado pela chuva nas suas nascentes.


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de noite, ela enrolava a cara nos cabelos curtos negros negros como as asas da graúna501. Tinha no perfil duro um narizinho tão mimoso que nem servia pra respirar. Porém como ela só se mostrava de frente e fastava sem virar Macunaíma não via o buraco no cangote por onde a pérfida respirava. E o herói indeciso, vai-não-vai. Sol teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu de calorão e guascou o lombo do herói. A dona ali, diz-que abrindo os braços mostrando a graça fechando os olhos molenga. Macunaíma sentiu fogo no espinhaço, estremeceu, fez pontaria, se jogou feito em cima dela, juque! Vei chorou de vitória. As lágrimas caíram na lagoa num chuveiro de ouro e de ouro. Era o pino do dia. Quando Macunaíma voltou na praia se percebia que brigara muito lá no fundo. Ficou de bruços um tempão com a vida dependurada nos respiros fatigados. Estava sangrando com mordidas pelo corpo todo, sem perna direita, sem os dedões sem os cocos-da-Baía, sem orelhas sem nariz sem nenhum dos seus tesouros. Afinal pôde se erguer. Quando deu tento das perdas teve ódio de Vei. A galinha cacarejava deixando um ovo na praia. Macunaíma pegou nele e chimpou-o no carão feliz da Sol. O ovo esborrachou bem nas bochechas dela que sujou-se de amarelo pra todo o sempre. Entardecia. Macunaíma sentou numa lapa que já fora jabuti nos tempos de dantes e andou contando os tesouros perdidos embaixo d’água. E eram muitos, era uma perna os dedões, eram os cocos-da-Baía, eram as orelhas os dois brincos feitos com a máquina patek e a máquina smith-wesson, o nariz, todos esses tesouros… O herói pulou dando um grito que encurtou o tamanho do dia. As piranhas tinham comido também o beiço dele e a muiraquitã! Ficou feito louco. Arrancou uma montanha de timbó de açacu de tingui de cunambi, todas essas plantas e envenenou pra sempre o lagoão. Todos os peixes morreram e ficaram boiando com a barriga pra cima, barrigas azuis barrigas amarelas barrigas rosadas, todas as barrigas sarapintando a face da lagoa. Era de-tardinha.


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Então Macunaíma destripou todos esses peixes, todas as piranhas e todos os botos, caqueando a muiraquitã nas barrigadas. Foi uma sangueira mãe escorrendo sobre a terra e tudo ficou tinto de sangue. Era a boca-da-noite. Macunaíma campeava campeava. Achou os dois brincos achou os dedões achou as orelhas os nuquiiris o nariz, todos esses tesouros e prendeu todos nos lugares deles com sapé e cola de peixe502. Porém a perna e a muiraquitã não achou não. Tinham sido engolidos pelo Monstro Ururau503 que não morre com timbó nem pau. O sangue coalhara negro cobrindo a praia e o lagoão. E era de-noite. Macunaíma campeava campeava. Soltava gritos de lamentação encurtando com a bulha o tamanho da bicharada. Nada. O herói varava o campo, saltando na perna só. Gritava: – Lembrança! Lembrança da minha marvada! não vejo nem ela nem você nem nada!504 E pulava mais. As lágrimas pingavam dos olhinhos azuis dele sobre as florzinhas brancas do campo. As florzinhas tingiram de azul e foram os miosótis505. O herói não podia mais, parou. Cruzou os braços num desespero tão heroico que tudo se alargou no espaço pra conter o silêncio daquele penar. Só um mosquitinho raquitiquinho infernizava inda mais a disgra do herói, zumbindo fininho: “Vim di Minas… vim di Minas…” Então Macunaíma não achou mais graça nesta terra. Capei bem nova relumeava lá na gupiara do céu. Macunaíma cismou inda meio indeciso, sem saber si ia morar no céu ou na ilha de Marajó. Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia506, porém lhe faltou ânimo. Pra viver lá, assim como tinha vivido era impossível. Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra… Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do

Nuquiiris testículos.


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Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta terra carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização. Decidiu: – Qual o quê!… Quando urubu está de caipora o de baixo caga no de cima, este mundo não tem jeito mais e vou pro céu! Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma constelação. Não fazia mal que fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos esses parentes, de todos os pais dos vivos da sua terra, mães, pais manos cunhãs cunhadas cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho inútil das estrelas507. Plantou uma semente do cipó matamatá, filho-da-luna, e enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda e escreveu na laje que já fora jabuti num tempo muito de dantes: não vim no mundo para ser pedra508 A planta já tinha crescido e se agarrava numa ponta de Capei. O herói capenga enfiou a gaiola dos legornes no braço e foi subindo pro céu. Cantava triste: “Vamos dar a despedida, – Taperá, Talequal o passarinho, – Taperá, Bateu asa foi-se embora, – Taperá, Deixou a pena no ninho. – Taperá…” Lá chegado bateu na maloca de Capei. A lua desceu no terreiro e perguntou: – Quê que quer, saci?

Itá ita, pedra, em tupi.


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– A bênção minha madrinha, me dá pão com farinha? Então Capei reparou que não era saci não, era Macunaíma o herói. Mas não quis dar pensão pra ele, se lembrando do fedor antigo do herói. Macunaíma enfezou. Deu uma porção de munhecaços na cara da Lua. Por isso que ela tem aquelas manchas escuras na cara. Então Macunaíma foi bater na casa de Caiuanogue, a estrela da manhã. Caiuanogue apareceu na janelinha pra ver quem era e confundida pelo negrume da noite e a capenguice do herói, perguntou: – Quê é que quer, saci? Mas logo pôs reparo que era Macunaíma o herói e nem esperou resposta se lembrando que ele cheirava muito fedido. – Vá tomar banho! falou fechando a janelinha. Macunaíma tornou a enfezar e gritou: – Vem pra rua, cafajeste! Caiuanogue raspou um susto enorme e ficou tremendo espiando pelo buraco da fechadura. Por isso que a bonita da estrelinha é tão pecurrucha e tremelica tanto. Então Macunaíma foi bater na casa de Pauí-Pódole, o Pai do Mutum. Pauí-Pódole gostava muito dele porque Macunaíma o defendera daquele mulato da maior mulataria na festa do Cruzeiro. Mas exclamou: – Ah, herói, tarde piaste!509 Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro um descendente de jabuti, raça primeira de todas… No princípio era só o Jabuti Grande que existia na vida… Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua cunhã. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo… Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, herói! Já somos em doze e com você a gente ficava treze510 na mesa. Sinto muito mas chorar não posso!

MOSQUEIRO lugar onde há muitas moscas; hospedaria de péssima qualidade.


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– Que pena, sinh’Helena! que o herói exclamou. Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos jogou pro alto fez em encruzilhada511 e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha gaiola revólver relógio, numa constelação nova. É a constelação da Ursa Maior512. Dizem que um professor naturalmente alemão513 andou falando por aí por causa da perna só da Ursa Maior que ela é o saci… Não é não! Saci inda para neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual… A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de tudo, foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.

ESTENDERETE ação ou palavras desastradas, ridículas; gafe; mancada; fiasco.


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EPÍLOGO

Acabou-se a história e morreu a vitória514. Não havia mais ninguém lá. Dera tangolomângolo515 na tribo Tapanhumas e os filhos dela se acabaram de um em um. Não havia mais ninguém lá. Aqueles lugares aqueles campos furos puxadouros arrastadouros meios-barrancos, aqueles matos misteriosos, tudo era a solidão do deserto. Um silêncio imenso dormia à beira-rio do Uraricoera. Nenhum conhecido sobre a terra não sabia nem falar na fala da tribo nem contar aqueles casos tão pançudos. Quem que podia saber do herói? Agora os manos virados na sombra leprosa eram a segunda cabeça do Pai do Urubu e Macunaíma era a constelação da Ursa Maior. Ninguém jamais não podia saber tanta história bonita e a fala da tribo acabada. Um silêncio imenso dormia à beira-rio do Uraricoera. Uma feita um homem foi lá. Era madrugadinha e Vei mandara as filhas visar o passe das estrelas. O deserto tamanho matava os peixes e os passarinhos de pavor e a própria natureza desmaiara e caíra num gesto largado por aí. A mudez era tão imensa que espichava o tamanhão dos paus no espaço. De repente no peito doendo do homem caiu uma voz da ramaria: – Currr-pac, papac! currr-pac, papac!… O homem ficou frio de susto feito piá. Então veio brisando um guanumbi516 e boleboliu no beiço do homem:


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– Bilo, bilo, bilo, lá… teteia!517 E subiu apressado pras árvores. O homem seguindo o voo do guanumbi, olhou pra cima. – Puxa rama, boi! o beija-flor se riu. E escafedeu. Então o homem descobriu na ramaria um papagaio verde de bico dourado518 espiando pra ele. Falou: – Dá o pé, papagaio. O papagaio veio pousar na cabeça do homem e os dois se acompanheiraram. Então o pássaro principiou falando numa fala mansa, muito nova, muito! que era canto e que era caxiri com mel-de-pau, que era boa e possuía a traição das frutas desconhecidas do mato. A tribo se acabara, a família virara sombras, a maloca ruíra minada pelas saúvas e Macunaíma subira pro céu, porém ficara o aruaí do séquito daqueles tempos de dantes em que o herói fora o grande Macunaíma imperador. E só o papagaio no silêncio do Uraricoera preservava do esquecimento os casos e a fala desaparecida. Só o papagaio conservava no silêncio as frases e feitos do herói519. Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa520. E o homem sou eu, minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente. Tem mais não.

Mel-de-pau mel produzido por abelhas sem ferrão, como uruçu, jataí e outras, que constroem colmeias em ocos de árvores.


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POSFÁCIO

PENSAMENTEANDO SOBRE O HERÓI DE MÚLTIPLOS CARACTERES NOEMI JAFFE

Depois de quase vinte anos como professora de Literatura Brasileira em escolas de Ensino Médio em São Paulo, fui me dando conta de algumas dificuldades comuns aos alunos no momento de ler e, principalmente, interpretar alguns clássicos da literatura brasileira. Começando com o fato de muitas leituras serem obrigatórias, por causa do vestibular, até a distância da linguagem e dos ambientes, muitas vezes localizados no século xix, as dificuldades são grandes. Para tentar lidar com esses obstáculos, muitos professores acabam por abordar os livros – por necessidade, pressa ou falta de caminhos – de forma esquemática e quase burocrática. Explora-se o livro a partir de nomes, datas, biografias, exemplos gramaticais, escolas literárias, exercícios de memória. O resultado disso, quase sempre, é a rejeição ainda maior por parte dos alunos. Acredito que uma alternativa a esses obstáculos seja criar oportunidades para uma leitura ativa e crítica, em que o interesse pela obra seja despertado pelos temas, pelas polêmicas, por comparações com situações atuais e reais. E, nesse sentido, é claro que Macunaíma é uma das obras mais significativas para os jovens de hoje. Se o herói sem nenhum caráter, nosso “grande mau” (do Taurepang maku, mau, e ima, grande), puder ser pensado como uma metáfora para o Brasil e os brasileiros, de ontem e de hoje, e se o aluno tiver a oportunidade de, com ele, refletir sobre nossa condição e espelhar-se nesse personagem enquanto ri e acompanha suas desventuras, então o livro terá cumprido seu destino de estrela.

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Esta edição, com este posfácio, pretende esclarecer a linguagem, seus usos regionais e modernistas, a intenção vanguardista e de colagem elaborada pelo autor, Mário de Andrade, e permitir ao leitor que se sinta integrado com a narrativa, participando ativamente da aventura de Macunaíma, um anti-herói alegre e triste, com quem temos tanto em comum. Escrito inicialmente como uma “brincadeira”, ao longo de apenas seis dias, em um sítio localizado em Araraquara (sp), não tardou para que Macunaíma – o herói sem nenhum caráter se transformasse em um dos livros mais comentados, analisados, revirados e, também, incompreendidos da história da literatura brasileira. O romance – na verdade uma rapsódia, como Mário de Andrade (1893-1945) o nomeou – tornou-se a narrativa emblemática do Modernismo brasileiro, da Antropofagia, movimento criado por Oswald de Andrade (1890-1954) e, rapidamente, um dos clássicos da história literária da língua portuguesa. A crítica literária Gilda de Mello e Souza (1919-2005), num dos estudos mais penetrantes sobre os múltiplos significados do livro, O tupi e o alaúde (1979), atribui a ele marcas importantes para a compreensão crítica do homem brasileiro por Mário de Andrade, reconhecendo, no nosso herói sem caráter, o brasileiro derrotado, perdido em sua malandragem tola diante da grande malandragem urbana e industrial. Um Macunaíma fraco em sua versatilidade, impotente para enfrentar o mundo e responsável por sua própria solidão, cujo final é metamorfosear-se em uma estrela pertencente a outro hemisfério. Gilda de Mello e Souza explica ainda em profundidade as razões de Mário de Andrade ter chamado seu livro de rapsódia. Um dos autores mais tentaculares de nossa cultura, era também pianista, folclorista e musicólogo. A palavra “rapsódia” é proveniente do vocabulário musical e significa “colagem”, “combinação”, “montagem” de motivos musicais de várias origens.


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Pois Macunaíma é inteiro rapsódico, mestiço, sincrético, híbrido, enciclopédico e aberto: negro, índio e branco; candomblé, umbanda, catolicismo e pajelança; pertencente ao passado e ao presente; erudito e popular; oral e escrito; pobre e rico; bom e mau; egoísta e solidário; do Norte e do Sul; urbano e rural; inteligente e sensível, e a multiplicidade poderia se estender ao gosto do leitor. Seu “não caráter” de forma alguma significa ausência de caráter ou é sinônimo de mau caráter. E essa é uma das facetas mais importantes para se pensar em nosso herói anti-heroico. Ele não se define por qualidades fixas, como seria de se esperar do que se entende por “caráter”, mas por predicados móveis, que variam conforme a necessidade e a conveniência. Ele é todos e, talvez por isso, também nenhum. Como dizia Mário de Andrade, numa das frases que melhor caracterizam nosso Modernismo: “Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta” (primeiro verso do poema “Eu sou trezentos…”, do livro Remate de males, publicado em 1930). Trata-se de uma montagem de psiquismos, geografias, corpos e comportamentos: a história do país concentrada num personagem simples em sua infantilidade – adulto para sempre com cabeça de criança – e complexo em sua multiplicidade e indefinição. Quem é Macunaíma? Quem é esse “grande mau”, capaz, na verdade, de fazer o maior mal apenas para si mesmo? Ele é de fato um derrotado, como afirma Gilda de Mello e Souza, ou quem vence é a história, são as histórias, o herói que conta para o papagaio que conta para Mário, que conta para nós, que contamos para os outros? Um dos defensores da segunda ideia de que é a narrativa que vence, pois é ela que permanece, foi o poeta e crítico Haroldo de Campos (1929-2003), em sua obra Morfologia de Macunaíma (1973). Nesse estudo, ele afirma que, assim como o grego Ulisses, o herói de Homero, se prende ao mastro do navio para não sucumbir ao canto das sereias e poder contar sua história para as gerações


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futuras, também Macunaíma – que mergulha no lago atraído pela Uiara – sobrevive pela memória que passa de boca em boca, por isso estamos nós, agora, aprendendo sobre o Brasil com um personagem criado na década de 1920. Para ler Macunaíma de forma ativa, isto é, participativa e questionadora – a melhor maneira de se ler um texto literário –, é fundamental conhecer o Manifesto antropófago, de Oswald de Andrade. O leitor atento vai reparar que Venceslau Pietro Pietra é um gigante comedor de gente, assim como sua mulher. Que Macunaíma morre despedaçado pela Uiara, com Vei, a Sol, torcendo por sua ruína. E que, como eles, há diversas cenas de antropofagia no romance. No Manifesto antropófago, Oswald de Andrade altera a data do “achamento” do Brasil para 1551, ano em que o Bispo Sardinha, português, teria sido comido pelos indígenas. Para o autor, esta é a verdadeira fundação do país: o momento em que os indígenas deglutiram, literal e simbolicamente, Portugal. O ritual antropofágico, em sua interpretação, é a marca fundante do brasileiro, em sua absorção e metabolização do estrangeiro para a transformação de si. Não haverá identidade brasileira, de acordo com esse manifesto, se não assumirmos nossa “missão” antropofágica de ser o outro e fazer com que o outro seja o que somos. A ideia básica é que, enquanto não colonizarmos o que nos domina, seremos oprimidos e arruinados por isso. Macunaíma é, portanto, uma problematização da antropofagia: o herói é engolido, mas seus inimigos também o são. Ele derrota o gigante, mas fica solitário. Ele morre, mas sua história sobrevive. Não é possível decidir quem, entre Gilda de Mello e Souza e Haroldo de Campos, está certo. Ou melhor, se os lermos com atenção, veremos que ambos estão, porque Macunaíma é maleável o bastante para conter diversas teorias e ficar, como


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uma estrela, sempre além de todas elas. Macunaíma nos ensina a pensar sobre o país e sobre o que é ser brasileiro. O que é preguiça, sincretismo, rural e urbano, erudito e popular. Como ser quem somos e, ao mesmo tempo, também o que não somos. E quem sabe, como resultado dessa consciência, nós nos tornemos seres humanos mais tolerantes e lancemos mais longe nosso brilho.



NOTAS POR NOEMI JAFFE

1 MACUNAÍMA 1

Mário de Andrade se inspirou, entre várias ou-

o Cubismo e o Surrealismo, sugerindo fluxo de

tras fontes, no antropólogo alemão Theodor Koch-Grünberg (1872-1924), que escreveu o li-

3

vro Do Roraima ao Orinoco (1917). No livro, Koch-

na sobre a mãe e o significado desse ato para compreender as relações familiares mantidas

Taulipang (ou Taurepang) e  Arekuná, entre

pelo herói. Esse gesto pode ajudar a interpretar

eles o mito de “Makunaíma”, cujo nome signi-

outras cenas de Macunaíma com a mãe. mistura ditados populares com lendas indígenas, contos populares e relatos pessoais. O romance

a narrativa que segue, especialmente para

utiliza expressões de diversas procedências e

simbolizar a união das três etnias brasileiras:

culturas. Por esse motivo, o autor classificava

o branco, o indígena e o negro.

seu romance como “rapsódia”, em alusão a essa

Notar a oralidade no uso de “si” em lugar de “se”

forma musical, surgida no Romantismo, que

e, ao longo de toda a obra, a clara intenção de

combina motivos musicais de várias fontes. 9

Crença popular, típica do Nordeste brasileiro, em que se coloca água no chocalho para a

Essa é a frase que mais caracteriza a persona-

criança beber e, assim, falar mais depressa.

lidade de Macunaíma e a que vai ficar consa-

10 Licenças gramaticais como essa estão pre-

grada como o “bordão” do herói. Pensando-se

sentes ao longo de todo o texto e são muito

na interpretação do protagonista como síntese

importantes para compreender as inovações

do Brasil e/ou dos brasileiros, como o fizeram

linguísticas introduzidas por este livro. Na

vários estudiosos, essa frase merece atenção,

época, uma das características que a tornou

análise e discussão.

uma das obras-primas da literatura brasileira

Notar nesta obra a associação de termos lú-

e do Modernismo brasileiro.

dicos (brincar, gozar, festa, graças) a práticas

11 Notar o efeito de oralidade na dupla negativa,

sexuais, conotando a importância e a sem-

que também pode ser observado no uso de pra

‑cerimônia do erotismo para nosso herói. 6

Ao longo de toda a narrativa, Mário de Andrade

significa negro, pessoa negra, é relevante para

aproximar a linguagem literária escrita da lin-

5

8

O nome tapanhumas, do tupi tapuy-úna, que

guagem falada cotidiana. 4

Atentar para o fato de que Macunaíma uri-

-Grünberg narra vários mitos dos indígenas

fica grande mal. 2

consciência e a rapidez própria da modernidade. 7

em vez de para.

A enumeração sem vírgulas é típica deste livro e

12 Atentar para a quantidade de vezes em que

também de várias vanguardas europeias como

ocorre a citação de várias espécies de formi-

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ga ao longo do romance. Elas são um dos maiores inimigos de Macunaíma, e acredita‑se que isso se deve à simbologia associada

15 É recurso estilístico do autor repetir as mesmas expressões ao longo do texto. 16 Todo esse trecho relacionado à armadilha para

a esse animal (o trabalho). Neste capítulo já

a anta, a caça e o desequilíbrio na repartição

apareceu a espécie saúva e agora o hiperô-

da anta – todas práticas fundamentais entre

nimo (termo de maior abrangência) formiga.

os povos indígenas – está registrado no mito

Essa palavra reaparecerá várias vezes, inclusi-

de  “Makunaíma”, relatado por Koch-Grünberg.

ve no nome de insetos que não são formigas.

17 Aqui há um misto de sexo, dor e alegria, que

13 As transformações mágicas têm muita im-

diferencia a cultura erógena indígena da cul-

portância e se relacionam, entre outros as-

tura dos brancos. Também há a simbologia do

pectos, com a própria linguagem mágico-mí-

próprio Macunaíma, personagem em quem o

tica dos povos indígenas e do romance como um todo.

mal e o bem estão sempre mesclados. 18 Na linguagem popular, a papa-ceia é o pla-

14 Como já comentado anteriormente, há rela-

neta Vênus, que aparece logo após o pôr do

ção muito forte entre erotismo e brincadeira.

sol e imediatamente antes do nascer do sol.

A palavra “brincar”, usada como referência ao

Também chamada estrela-d’alva, estrela da

ato sexual, é a mais importante delas.

manhã, estrela da tarde e Vésper.

2 MAIORIDADE 19 Iriki é o nome de uma personagem de alguns

xes são capturados por meio de arco e flecha,

contos dos indígenas Kaxinawá (recolhidos

peneira, cesto ou até com as mãos. Essa téc-

por Capistrano de Abreu no livro Rã-txa hu-ni-

nica de pesca já é citada pelo padre José de

-ku-ĩ: a língua dos caxinauás, publicado em 1914)

Anchieta (1534-1597) em carta de 1560, conhe-

e quer dizer foi também. Isso é significativo, já

cida como “Carta de São Vicente”. A referência

que ela também foi amante de Macunaíma. 20 Esse trecho mostra como a indígena Iriqui se enfeitava para Macunaíma, pintando-se com tintas feitas com frutos da mata. As cores acentuam o caráter mágico do texto, além de características étnicas e culturais. 21 O sapo-cunauaru é tido por vários povos in-

à fartura de peixes é uma mentira contada pelo herói, outra característica típica de seu comportamento. 23 Interjeição criada por Mário de Andrade, indicando aqui rapidez, agilidade. 24 Neologismo para indicar velocidade e quantidade. 25 Mais uma enumeração sem pontuação, para

dígenas como portador de feitiços e “doen-

indicar grande quantidade, além de, pelo vo-

ças de encanto”, ou doenças causadas por

cabulário, remeter à brasilidade.

encantamento. O nome do sapo, Maraguigana, refere-se ao espírito que anuncia a morte, segundo o padre Simão de Vasconcelos (1597-1671). 22 Tipo de pesca de vários povos indígenas, em que se bate na água o timbó. Depois, os pei-

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26 Índice de oralidade. Na forma culta seria “quem leva?”. 27 O narrador mistura aqui expressões tipicamente urbanas a outras de natureza rural ou indígena, confundindo propositalmente o leitor. 28 O fato de a mãe de Macunaíma amaldiçoá-lo

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a não crescer mais é muito significativo para a simbologia do romance.

36 “Acuti pitá canhen” são versos de uma canção em dialeto desconhecido, da lenda “O

29 O correto seria “vagamundeou”. “Vagamun-

currupira e os perdidos”, recolhida por João

dear” significa o mesmo que “vagabundar”,

Barbosa Rodrigues em Tefé, Amazonas, e

“vagabundear”. 30 Entidade de cabelos vermelhos e pés invertidos, que deixa pegadas enganosas. Lembra

publicada no livro Poranduba amazonense. 37 Forma de tratamento semelhante à que Macunaíma utilizou com o Currupira.

muito o próprio Macunaíma e representa

38 O fato de Macunaíma ter crescido em todo

mais um índice do sincretismo do livro, por

seu corpo, menos na cabeça, é um dos

ser mitologia rural e não exclusivamente

acontecimentos-chave mais discutidos pela

indígena.

crítica e pode, inclusive, remeter a uma

31 “Meu avô” é uma forma de tratamento que aparece em várias “lendas mitológicas” sobre o Currupira recolhidas por João Barbosa Rodrigues (1842-1909) no seu livro Poranduba amazonense (1890).

comparação com o próprio país, que estaria representado pelo herói. 39 Jiguê e Maanape, ao contrário de Macunaíma, são constantemente generosos e ingênuos. 40 Macunaíma atravessa tempos e lugares sub-

32 A preguiça tem aspectos positivos e negati-

vertendo a lógica típica dos romances clássi-

vos neste romance. Aqui, ela acaba salvando

cos. O reino encantado da Pedra Bonita alude

Macunaíma de ser comido pelo Currupira.

a um movimento sebastianista que ocorreu

33 O animismo, ou seja, atribuir alma ou carac-

em um lugar denominado Pedra Bonita, na

terísticas humanas a seres e objetos, é típico

Serra Formosa, no município de São José do

do pensamento mágico-mítico e também

Belmonte, Pernambuco. O sebastianismo é

deste romance.

crença na volta de Dom Sebastião, rei de Por-

34 Secundar é forma regional de responder. 35 Vei, a Sol, uma das personagens mais impor-

tugal, que desapareceu na Batalha de Alcácer-Quibir, na África, em 4 de agosto de 1578.

tantes do romance – em que as mulheres

41 Há várias versões sobre Anhanga, mas uma

têm muita força e importância –, está no gê-

delas diz que se trata de um espírito que

nero feminino, diferentemente do que ocorre na língua portuguesa, em que o Sol é mas-

atormenta os vivos. 42 O fato de Macunaíma ter matado a própria

culino. Uma das explicações possíveis é que,

mãe, morte que ele mesmo tinha previsto,

nas mitologias indígenas, algumas figuras

evoca o interesse de Mário de Andrade pela

de representação do Sol, como Guaraci e Jaci,

psicanálise. Pode se tratar de uma espécie de

são mulheres e também porque, entre vários

“édipo” indígena. É interessante notar que os

povos indígenas, o que impera é o matriar-

irmãos choram com ele, pela morte da mãe,

cado e não o patriarcado. Mário de Andrade,

mas não o culpam por esse fato.

aqui, associa o poder do Sol às mulheres e não aos homens.


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3 CI, MÃE DO MATO 43 A “tribo de mulheres sozinhas” refere-se às

52 O pastoril é uma dança dramática realizada do

Amazonas, um dos mais antigos e importan-

Natal até o Dia de Reis. Participam apenas mo-

tes mitos referentes a mulheres livres e fortes,

ças, divididas em dois cordões (grupos): o azul e

que não se relacionavam com os homens, a

o encarnado. O cordão encarnado é dirigido pela

não ser para a reprodução. O seio direito seco (“peito destro seco”) se origina, segun-

Mestra e o azul, pela Contramestra. 53 Apropriação, pelo autor, de um termo inglês e

do Adrienne Mayor, de uma falsa etimologia

já abrasileirado, como se fosse mais um pás-

da palavra “amazona” que, segundo o histo-

saro. Mário de Andrade não utilizava somente

riador grego Hellanikos (século V a.C.) signi-

o repertório indígena e rural, mas também o

ficaria sem seio. Ci será, junto com Vei, uma

urbano e do Sudeste, em um sincretismo cul-

das grandes heroínas do romance, marcando a importância das personagens femininas,

tural, geográfico, histórico e linguístico. 54 Aportuguesamento de dorée, dourada, em

bem mais espertas e independentes do que

francês; rapaziada dorê, no sentido de feliz,

os personagens masculinos, incluindo o pró-

alegre, despreocupada.

prio Macunaíma.

55 No livro Roteiro de Macunaíma (1969), Manuel

44 Ci é a primeira mulher a se recusar a “brin-

Cavalcanti Proença conta que os pais nordes-

car” com o herói, o que atiça ainda mais seu

tinos achatariam as cabeças de seus filhos,

desejo. 45 Atenção para esse termo, que reaparecerá mais tarde, no capítulo 9, “Carta pras icamiabas”.

batendo nelas carinhosamente e dizendo para eles crescerem e irem ganhar dinheiro em São Paulo.

46 Atualmente, também se utiliza a expressão

56 Tia materna e madrinha de Mário de Andrade.

“amarelar” para indicar perder a coragem diante

57 Famosa rendeira, citada em carta escrita pelo

de uma situação difícil. 47 Esse trecho é bem controverso diante das posturas atuais sobre violência sexual, mas é pre-

poeta Ascenso Ferreira (1895-1965) a Mário de Andrade, em 29 de fevereiro de 1928. 58 “Exímias fabricantes de doces artísticos em for-

ciso notar que se trata da recriação de um mito

ma de flores, animais etc.”, segundo Cavalcanti

indígena e que, dentre vários povos indígenas,

Proença, donas de farmácia em Óbidos, no es-

os costumes sexuais são distintos.

tado do Pará.

48 Título que Macunaíma assumirá de agora em

59 É comum no interior do país a referência a

diante e que também tem conotação irônica

cobras que mamam, não necessariamente

diante do destino que o herói terá. 49 Expressão típica do interior paulista, onde Mário de  Andrade escreveu o romance (Araraquara, SP) e que significa começar a. 50 Esse trecho inteiro indica uma espécie de vida paradisíaca, da qual Macunaíma sentirá muita falta mais tarde.

pretas. Segundo Cavalcanti Proença, a Cobra Preta poderia ser uma associação com boiuna, mboi, cobra, e una, preta. 60 Como nos contos de fada, aqui também tudo acontece com muita rapidez e subitamente. 61 Vários povos indígenas têm o costume de guardar os restos mortais de seus parentes

51 Desde a época do padre José de Anchieta, ou

em vasos em forma de pote. O frei Vicente do

seja, desde a primeira colônia, há relatos acer-

Salvador (1564-c.1636), na sua História do Bra-

ca da “luxúria” das mulheres indígenas.

sil, relata: “[...] se morre algum menino filho

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de principal o metem em um pote, posto em cócoras, atados aos joelhos com a barriga, e enterram o pote na mesma casa, e rancho, debaixo do chão, e ali o choram muitos dias.” 62 Atentar para a importância desse amuleto, semelhante aos que aparecem em inúmeros

contos de fadas, lendas e mitos, e que definirá muitos acontecimentos futuros do romance. 63 O guaraná, planta em que o filho de Macunaíma e de Ci se transformou, cura as pessoas dos males provocados por uma das “vilãs” do romance: “Vei, a Sol”.

4 BOIÚNA LUNA 64 O padre Simão de Vasconcelos (1597-1671), no li-

70 Trecho extremamente poético e significativo.

vro Vida do venerável padre José de Anchieta (1672),

Fala da tristeza de toda a natureza, solidari-

conta que, certa vez, em uma viagem de ca-

zando-se à dor de Naipi. Novamente vemos o

noa, Anchieta teria pedido a um bando de gua-

animismo, bem como o recurso estilístico da

rás (aves de penas vermelhas) para proteger

antropomorfização, presente na literatura de

seus companheiros do sol forte e que as aves logo formaram um pavilhão sobre a canoa. 65 Nesse trecho todo, percebe-se mais uma característica contraditória da personalidade do herói e de sua relação com os irmãos. Aqui, pela primeira vez no romance, Macunaíma se revela amoroso e saudoso, e os irmãos se es-

todos os tempos e lugares. 71 Aqui, além da repetição do verbo com efeito de intensidade, há também o recurso à infantilização, à inocência do discurso narrativo. 72 Finalmente, as águas se transformam em cachoeira. 73 Essa narrativa sobre o surgimento da cachoeira,

quecem de todas as brigas e se compadecem,

das plantas e flores merece muita atenção, por

tentando consolá-lo. Os irmãos, como sem-

ser uma passagem que reflete a cosmovisão in-

pre, são inocentes e, de alguma forma, tola-

dígena e o pensamento mágico-mítico. Além

mente generosos. 66 No pensamento mágico, forças da natureza

disso, é de grande beleza literária. 74 Macunaíma se comove com a lenda da ca-

e objetos inanimados podem ter alma, isto é,

choeira e se solidariza, fazendo-se de herói.

características humanas, fenômeno conheci-

75 Novamente as formigas. Notar a quanti-

do como animismo. 67 Brincadeira típica da época de Mário de Andra-

dade de vezes que elas aparecem e como, a cada vez, a função delas é diferente. Aqui,

de, como resposta às perguntas infantis: “O que

uma delas morde-o no calcanhar, possível

é isso? Chouriço” e também parte de uma qua-

alusão ao guerreiro  Aquiles, da mitologia

drinha infantil: “Que é isso? / Chouriço / Mulher

grega, que era invulnerável, exceto no cal-

velha é que faz isso / Vá cuidar do seu serviço.” 68 Metáfora para a primeira menstruação. 69 Titçatê é o nome de um personagem de dois contos Kaxinawá recolhidos por Capistrano de Abreu: “Uma briga”, em que é um homem alto, e “Permuta de cachorro”, em que é muito valente.

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canhar. 76 Macunaíma, como muitos heróis farsescos e de chanchada, ganha as lutas “acidentalmente”. 77 O herói, contraditoriamente, tem medo do próprio monstro que derrotou. 78 Trecho recheado de ação e velocidade, também lembrando filmes de comédia, em que

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os personagens livram-se dos problemas mais por fuga do que por enfrentamento. 79 Ironia à linguagem douta e parnasiana, um

85 Mistura de várias tradições amazônicas e europeias. 86 A perda da muiraquitã é um dos episódios

dos principais focos de ataque dos moder-

mais importantes do romance, que vai de-

nistas.

sencadear várias ações determinantes e que

80 É como se Macunaíma tivesse tempo, em

reflete bem a personalidade do personagem,

meio à correria, de parar para uma conversa

por ele reparar tardiamente na perda de seu

inútil, o que, segundo a ironia do trecho, seria

objeto mais precioso.

o comportamento típico dos parnasianos. 81 Forma típica de caboclos para dizerem “reparou”. 82 Entre as reflexões da cabeça sobre aquilo em

87 Alusão a Ci, Mãe do Mato. 88 Reparar na repetição de fonemas consonantais no início de várias palavras (aliteração):

que se transformaria, ela pensa em água, for-

“sempre seguido pelo séquito sarapintado”.

miga, mosquito, trem e rio, confundindo tem-

89 Inserção de nova fonte de mitos. Segundo

pos e culturas. Flit é uma marca de inseticida

João Barbosa Rodrigues, no livro Poranduba

lançada em 1923.

amazonense, o Negrinho do Pastoreio seria o

83 Ao longo do romance, Mário de Andrade inventa a origem de várias expressões, por meio de episódios da vida de Macunaíma. 84 A cabeça que se transforma na Lua é uma recriação da narrativa “A Lua”, dos indígenas Kaxinawá, recolhida por Capistrano de Abreu

Çacy do Rio Grande do Sul. 90 O grande vilão, antagonista do herói, misto de peruano com italiano e símbolo do negociante ganancioso e acumulador. 91 Macunaíma gostava de mentir, assim como era também preguiçoso e metido a esperto.

5 PIAIMÃ 92 Juntamente com a cabeça de criança de Macu-

94 Os bagos de cacau são a moeda de Macunaíma

naíma, esse episódio do romance é um dos mais

e ele, inocente e ilusoriamente, acredita que

significativos. No momento em que o herói está

eles terão valor em São Paulo. Notar o retor-

prestes a adentrar São Paulo para enfrentar seu

no dessa “moeda” mais tarde, no romance. Era

antagonista, ele deixa sua consciência na Ilha

também usada como moeda entre os astecas.

de Marapatá. Ou seja, toda a ação que se se-

95 Referência a uma superstição popular: ao

gue será sem consciência, outra característica

apontar o dedo para uma estrela, nasce uma

a ser analisada à luz da simbologia do romance como imagem do brasileiro e que remete a uma tradição comum entre os seringueiros, que, antes de explorar os seringais, deveriam “deixar sua consciência na Ilha de Marapatá”.

verruga na extremidade do dedo. 96 Atentar para as piranhas estraçalhadoras, que volta e meia reaparecem no romance. 97 Segundo Luís da Câmara Cascudo, “personagem misteriosa, homem branco que, antes

93 São as saúvas – um dos males do Brasil, como

do Descobrimento, apareceu entre os indíge-

se verá adiante – que comeriam a consciência

nas ensinando-lhes o cultivo da terra e regras

de Macunaíma. Simbolicamente, poderia ser

morais. Repelido, abandonou a região, ca-

o trabalho engolindo Macunaíma.

minhando sobre as águas do mar”. Cascudo


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transcreve trecho de carta do padre Manuel

cidade, a deusa é a Máquina. Sua origem não

da Nóbrega, de 1549: “Dizem eles que S. Tomé,

lhe permite pensar diferente e sua compreen-

a quem eles chamam Zomé, passou por aqui,

são, por isso, é muito reveladora.

e isto lhes ficou por dito de seus passados e

106 O conhecido gesto de “dar uma banana” para al-

que suas pisadas estão sinaladas junto de um

guém. Comportamento típico de Macunaíma.

rio; às quais eu fui ver por mais certeza da ver-

107 Apesar da inocência do herói, esse trecho é

dade e vi com os próprios olhos quatro pisadas

carregado de filosofia e introspecção.

mui sinaladas com seus dedos, as quais algu-

108 Referência clara às mansões de Higienópolis,

mas vezes cobrem o rio, quando enche; dizem

onde morava a antiga alta burguesia pau-

também que, quando deixou estas pisadas, ia

listana. Vários desses moradores, inclusive,

fugindo dos índios, que o queriam frechar, e

foram patronos ou incentivadores do Moder-

chegando ali, se lhe abrira o rio e passara por

nismo, como, por exemplo, as famílias Prado

meio dele à outra parte, sem se molhar e dali

e  Álvares Penteado.

foi para a Índia”. 98 Novamente, é muito significativo o fato de

109 Bairro vizinho a Higienópolis, onde fica a Rua Maranhão.

Macunaíma, aqui, se transformar em um ho-

110 Os calcanhares para a frente são uma caracte-

mem branco. Ele é índio, negro e branco ao

rística do Currupira. “Se Deus o assinalou algu-

mesmo tempo e torna-se branco logo antes

ma lhe achou” é um provérbio registrado por

de ir para São Paulo.

Leonardo Motta (1891-1948) no livro No tempo

99 Os irmãos querem ficar brancos como Macunaíma e esse processo de embranquecimento merece discussão em um país que defende

de Lampião e por Pereira da Costa (1851-1923) na separata Vocabulário pernambucano. 111 Essa árvore, que dá todas as frutas e abundan-

a igualdade racial (ver, por exemplo, o Estatu-

temente, seria uma referência a um Brasil pa-

to da Igualdade Racial, Lei n0. 12.288, de 2010).

radisíaco e rico, em contraste com a pobreza

100 A imagem dos três manos lembra as “três ra-

em que, agora, Macunaíma é obrigado a viver.

ças tristes” que formam o povo brasileiro, a

Na saga 11, “Morte e ressurreição de Macunaí-

que Olavo Bilac se refere no poema “Música

ma”, recolhida por Koch-Grünberg, a árvore

Brasileira”.

chama Zalaura-Ieg. Na mitologia Taurepang e

101 São Paulo, durante muito tempo, foi conhecida como  “a cidade da garoa”. 102 Aqui começam as referências aos objetos da cidade, sempre de forma alegórica e cômica. Neste caso, trata-se de uma cama, vista pelos olhos do herói.

Macuxi, Makunaíma teria cortado essa árvore (Wadaka ou Wazacá), cujo pedaço de tronco que restou seria o Monte Roraima. 112 Ou seja: se algum pássaro cantar, Maanape aconselha Macunaíma que não responda. 113 Referência à expressão dolce far niente (doce fa-

103 Novamente, Macunaíma enxerga a cidade

zer nada, em italiano), o ócio em que vivia Ven-

grande como se fosse uma grande mata e,

ceslau Pietro Pietra. Comparar a preguiça de

sua gente, como se fossem bichos. 104 Aportuguesamento de klaxon, buzina de au-

Macunaíma e o ócio de Venceslau Pietro Pietra. 114 Além de ser peruano e italiano, o vilão tam-

tomóvel, que também é o nome de uma das

bém é Piaimã, mito do povo Taurepang, um

principais revistas do Modernismo.

gigante comedor de gente.

105 Macunaíma, com seu olhar entre inocente e

115 Referência ao conto popular alemão “João e

esperto, rapidamente compreende que, na

Maria” (Hänsel e Gretel), recolhido pelos irmãos

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Grimm, em que uma bruxa examina regularmente o mindinho de João para conferir se ele já está nutrido o suficiente para que ela possa comê-lo. 116 Aportuguesamento de hall, pequena sala contígua à porta principal, em inglês. 117 Para enfrentar Venceslau Pietro Pietra, o gigante Piaimã, Maanape conta com a ajuda de uma formiga e um carrapato. 118 Aportuguesamento de Chianti, vinho italiano produzido na região da Toscana. 119 Alusão à “Lenda acerca da velha gulosa”, recolhida por Couto de Magalhães, que é come-

dora de gente, assim como Piaimã, seu companheiro. 120 Entre vários povos indígenas, existe a tradição de “soprar” em uma pessoa morta para tentar devolver-lhe ou infundir-lhe vida. 121 Maanape ressuscita Macunaíma pela primeira vez. 122 Smith & Wesson é uma indústria de armas de fogo norte-americana criada em 1852. 123 Macunaíma, mesmo tendo sido ressuscitado por Maanape e sempre contando com a ajuda dele e a de Jiguê, ainda assim mente para eles e os sabota.

6 A FRANCESA E O GIGANTE 124 Fazer-se de sonso é uma das principais carac-

130 Mitene é uma luva feminina que cobre até a

terísticas de Macunaíma que, como se pode

primeira falange dos dedos; do francês mitaine.

ver, também é feiticeiro, mas com um poder

131 Possível referência a órgão genital, já que o

menor que o do irmão Maanape. 125 Expressão cabocla para se referir a “tirar uma soneca”.

herói antevia o interesse erótico do gigante na “francesa”. 132 A visão do beija-flor-tesoura soa, para o herói,

126 Reparar que, mesmo quando sentem raiva, os

como mau agouro sobre o encontro que terá

“manos” suavizam o conteúdo da vingança.

com Venceslau Pietro Pietra, pois é conhecido

127 Macunaíma acaba de inventar o futebol, ironizado aqui como uma das três pragas do país,

como animal que dá azar. 133 Aportuguesamento de  rendez-vous, que signi-

com o bicho-do-café, que ataca o cafeeiro, e a

fica “encontro”, em francês. O francês, assim

lagarta-rosada, que ataca o algodoeiro. Lima

como atualmente o inglês, era considerado a

Barreto (1881-1922) foi outro escritor que critica-

língua elegante e cujo domínio era estimulado

va o futebol. A partir da crônica “Sobre o football”,

pelas famílias burguesas de então.

publicada em 15 de agosto de 1918, ele iniciou

134 Cidades paraenses, famosas por sua cerâmica.

uma verdadeira campanha contra esse esporte.

135 Referência à Continental Products Company,

Existem teorias que localizam a origem do fu-

instalada em 1915 no bairro de Presidente Alti-

tebol nos movimentos de fuga de negros pelas

no, Osasco, o segundo frigorífico do Brasil.

ruelas estreitas das antigas cidades. 128 Espécie de flauta que Macunaíma utiliza para afinar a voz.

136 A mesa de Venceslau Pietro Pietra, carregada de guloseimas provenientes de várias partes do Brasil e do Peru (Iquitos), é também uma

129 Referência a “decote”. Como se pode ver,

amostragem da antropofagia típica da cultu-

para Macunaíma, todas as coisas e objetos

ra brasileira e dos estrangeiros chegados ao

são máquinas.

país. Para compreender melhor o conceito de


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antropofagia, é importante ler o Manifesto an-

inspiração para a segunda Ciranda de Heitor

tropófago, de Oswald de Andrade.

Villa-Lobos (1887-1959). A cantiga diz: “Senhora

137 Macunaíma procura diminuir a qualificação de Venceslau, chamando-o de “regatão”, ou rega-

dona Sancha / Coberta de ouro e prata / Descubra seu rosto / Queremos ver sua cara”.

teador, negociante que pechincha. Mas o gigan-

144 Cidade de Minas Gerais.

te refuta e prefere ser chamado de  “colecionador”.

145 Variante de uma quadrinha popular recolhida

138 Esse trecho alude ao conto “O macaco e o bo-

por Amadeu Amaral (1875-1929) em São José

neco de cera”, recolhido por Sílvio Romero e

do Rio Pardo, São Paulo, e publicada no livro

publicado no livro Contos populares do Brasil. É

Tradições populares (1948): “Valei-me, Nossa

possível que o nome Caterina venha de uma

Senhora, / Santo Antônio de Nazaré: / a vaca

personagem do bumba meu boi, dança dramática estudada por Mário de Andrade. 139 Esse trecho alude à crença popular de que passar por baixo do arco-íris faz mudar de sexo. 140 Arredores do Forte Santiago, conhecido como

mansa dá leite / e a braba dá quando qué”. 146 Ilha fluvial cercada pelos rios Araguaia e Javaés, no estado do Tocantins. 147 Provável referência ao pênis. 148 “Chamar gato de tio” ou de “compadre” é ex-

Calabouço, por ter servido como prisão de es-

pressão popular que significa estar em situa-

cravos, na cidade do Rio de Janeiro.

ção ruim, desastrosa.

141 Guajará-Mirim, cidade de Rondônia.

149 Colecionar palavrões em vez de pedras precio-

142 Ilha de Itamaracá, nome de uma ilha e de um

sas é uma decisão muito significativa sobre a

município do estado de Pernambuco, integran-

personalidade de Macunaíma. O herói, entre

te da Região Metropolitana do Recife. 143 Dona Sancha, personagem que voltará a aparecer no romance, faz parte de conheci-

ingênuo e esperto, decide colecionar o que não tem valor comercial algum, mas, mesmo assim, pensa estar superando o gigante.

da cantiga folclórica brasileira, que serviu de

7 MACUMBA 150 Este capítulo inteiro faz muitas referências a

151 No conto  “A tartaruga e o gavião”, recolhido por

experiências pessoais vividas por Mário de  An-

João Barbosa Rodrigues (1842-1909) no rio Ne-

drade, como se verá, e, além disso, também

gro e publicado no livro Poranduba amazonense

representa mais um aspecto do sincretismo

(1890), o gavião-real, para experimentar sua

do romance. Nas palavras do próprio Mário,

força, mete as unhas no grelo do miriti (buriti)

este capítulo mostra uma “macumba carioca

para o arrancar. “Experimentou, puxou e não o

desgeograficada com cuidado, com elemen-

arrancou. Disse: ‘Não tenho ainda forças’.”

tos dos candomblés baianos e das pajelanças

152 Entre vários povos, existe o costume de fazer

paraenses. Com elementos dos estudos já

incisões nas pernas com dentes de animais

publicados, elementos colhidos por mim dum

para mostrar força e valentia da parte de

ogã carioca ‘bexiguento e fadista de profissão’

quem o faz. Pode também se tratar de uma

e dum conhecedor de pajelanças [...] a que

punição para quem não consegue executar os

inda ajuntei elementos de fantasia pura”.

rituais de iniciação.

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153 Em vários povos são realizados rituais de dar

163 Na Umbanda, cavalo é o nome que se dá aos

“sovas” em bonecos que representam o inimigo.

médiuns. Mário de Andrade acrescenta “do

No Brasil, pode-se lembrar a malhação de Judas

santo” por associação com pai de santo e mãe

no sábado que antecede o domingo da Páscoa.

de santo, nome do sacerdote ou sacerdotisa

154 Hilária Batista de Almeida (1854-1924), conhe-

principal de um terreiro.

cida como tia Ciata, mãe-pequena (auxiliar

164 Neologismo criado por Mário de   Andrade,

de mãe de santo) do terreiro de João Alabá e

provavelmente a partir de uirari (curare), que é

sambista. Sua casa na Rua Visconde de Itaú-

um veneno utilizado por indígenas da Amazô-

na n0. 117 ou 119, no centro do Rio de Janeiro, é

nia na ponta de flechas.

considerada o local onde teria sido composto

165 Há relatos muito antigos, desde Manuel da

o samba “Pelo telefone”, o primeiro a ser gra-

Nóbrega (1517-1570), sobre “a espumação pela

vado em disco. A rua deixou de existir no início dos anos 1940, para abertura da avenida Presidente Vargas. 155 Segundo João Barbosa Rodrigues, no livro Poranduba amazonense, milonga  “é termo africano [...] e significa remédio, feitiço, talismã”. 156 Os diferentes tipos de pessoas que frequentam a macumba são mais um índice do sincretismo do romance.

boca” no momento do transe. 166 Enxerto de piada sobre a caligrafia ilegível de grande parte dos médicos, problema, segundo o romance, de impossível conserto até pelo próprio Exu, o diabo. 167 Variação, inventada pelo autor, de uma das mais conhecidas orações do catolicismo, o pai-nosso. 168 Aqui, Mário ironiza a construção típica de al-

157 Alcunha inventada por Mário de Andrade

gumas orações do catolicismo, em latim: per

para Pixinguinha (1897-1973), um dos maiores

saecula saeculorum, que significa “pelos séculos

instrumentistas e compositores da música popular brasileira, que tinha marcas de varíola no rosto.

dos séculos”, ou seja, “por toda a eternidade”. 169 A história do anel de azeviche é relatada por frei Antonio de Santa Maria Jaboatão (1695-1779),

158 O termo “saravá” é uma saudação dos um-

no Novo orbe seráfico brasílico (1761), e conta

bandistas, tido como corruptela de “saudar”

sobre uma mulher possuída por um demônio,

ou “salvar”.

na época dos holandeses, na cidade de Ipojuca,

159 Segundo Luís da Câmara Cascudo no Dicionário

em Pernambuco. Um frade teria pedido ao de-

do folclore brasileiro: “Os animais que se sacri-

mônio que desse um sinal em memória da sua

ficam [a Exu] são o bode, o galo, o cão...”. Se-

possessão e a moça teria, então, lançado pela

gundo Nei Lopes na Enciclopédia brasileira da

boca um anel de azeviche, que teria sido colo-

diáspora africana: “Seus alimentos preferidos

cado no altar de Nossa Senhora da Conceição,

são o azeite de dendê; milho (em forma de pipoca ou de fubá); farofas; feijão; animais de

no convento de Santo Antônio. 170 Jayme Ovalle (1894-1955) foi um compositor

quatro patas e aves, sempre machos; bebidas

brasileiro, grande amigo de Manuel Bandeira

alcoólicas etc.”.

e de Mário de Andrade, figurando em vários

160 “Pelo sinal” é o mesmo que sinal da cruz. 161 Possível referência à forma como eram chama-

poemas e crônicas de Bandeira. 171 Trata-se de Geraldo Barrozo do Amaral, conhe-

das as prostitutas estrangeiras da época.

cido como Dodô, amigo de Mário de Andrade

162 “Sentar em banco novo” é um ritual de inicia-

e de vários de seus amigos, frequentador de

ção para as filhas de santo.

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bares e contador de histórias e casos.

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172 Manuel Bandeira (1886-1968), um dos maiores

175 Raul Bopp (1898-1984) foi poeta e diplomata

poetas da história da literatura brasileira e

modernista brasileiro, autor de Cobra Norato

grande amigo do autor. 173 Pseudônimo de Frédéric Louis Sauser (1887- 1961),

(1931), obra que, em muitos aspectos, dialoga com o próprio Macunaíma, pois Cobra Norato

conhecido poeta franco-suíço da época de Má-

é outro nome da Boiuna ou Cobra Grande.

rio de Andrade, muito amigo de Oswald de An-

176 Antônio Bento de Araújo Lima (1902-1988) foi

drade e interessado no Modernismo brasileiro,

importante crítico de arte que colaborou com

sobre o qual chegou a escrever vários poemas

Mário de Andrade em suas pesquisas sobre

e a quem foi dedicado o Manifesto da poesia

cultura popular para a composição de Macu-

pau-brasil. 174 Ascenso Ferreira (1895-1965), poeta brasileiro,

naíma. Foi por meio dele que Mário conheceu o coquista Chico Antônio, na Fazenda Bom

também integrante do movimento modernis-

Jardim, em Goianinha, Rio Grande do Norte,

ta e amigo de Mário de Andrade.

de propriedade da família.

8 VEI, A SOL 177 O início deste capítulo é uma recriação da Saga 13, recolhida por Koch-Grünberg.

vulto branco de mulher linda, nua e loura, que dança na praia iluminada pelos relâmpagos”.

178 Nessa saga, Volomã é um sapo, que Mário de

182 Segundo Câmara Cascudo, há várias versões

Andrade, aqui, transformou em árvore. Essa

sobre a Alamoa. Em uma delas, “é uma ‘alma

é a mesma árvore Dzalaúra-legue, localizada

penada’, em penitência lúbrica de tentação, lu-

em frente à mansão de Venceslau Pietro Pietra,

tando para encontrar um homem forte que a

que aparece no capítulo 5.

siga e desenterre um tesouro escondido nas al-

179 Novamente, várias frutas se acumulam e brotam, de forma paradisíaca. Aqui, a árvore sugere a fertilidade da natureza, ao contrário de sua

turas do Pico [Morro do Pico], baliza de basalto, com 332 metros, visível a 30 milhas de longe”. 183 Há um folclore muito arraigado na cultura

presença em frente à casa do comerciante acu-

brasileira de que os colonizadores portugue-

mulador, em que representa mera acumulação.

ses, franceses e holandeses eram bem menos

180 “Boyôyô-boyô-quizama-quizú” é o nome de uma fruta no conto popular “O cágado e a

higiênicos do que os indígenas. 184 É interessante notar que, neste romance funda-

fruta”, recolhido por Sílvio Romero (1851-1914)

dor, com vários mitos de criação, criam-se não

em Sergipe e publicado no livro Contos popu-

somente objetos, máquinas e tradições, mas

lares do Brasil (1885). 181 Mito da ilha Fernando de Noronha, Pernam-

também gestos e até palavras e expressões. Esse aspecto está certamente relacionado à

buco. Segundo Luís da Câmara Cascudo no

ruptura linguística operada pelo Modernismo e,

livro Geografia dos mitos brasileiros: “Alamoa é o

em especial, pelo próprio romance Macunaíma.

feminino de alamão, alemão, no linguajar do

185 Há uma antiga brincadeira infantil em que as

povo. Na ilha Fernando de Noronha, nas vés-

crianças, em roda, cantam: “Um foguinho!” e

peras de tempestade, aparece, à noitinha, um

as outras respondem: “Peça ao vizinho!”.

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186 Hábito antigo entre os pescadores de Belém

lavouras. Além disso, há uma conhecida frase

do Pará, que é pintar as velas dos barcos com

atribuída ao botânico Auguste de Saint-Hilaire

murici, para evitar o mofo.

(1779-1853): “Ou o Brasil acaba com a saúva ou

187 Referência a uma lenda relatada por Koch-

a saúva acaba com o Brasil”. Macunaíma jun-

-Grünberg sobre o surgimento do fogo: havia

ta, à maldição da saúva, também a saúde, ten-

uma velha que soltava fogo pelo ânus, mas

tando justificar sua atitude de negação moral

se recusava a compartilhá-lo. Várias pessoas

e maldizendo o que seria considerado um bem

amarram-na e a obrigam a doar o fogo, que se transforma nas pedras que, quando esfregadas, fazem o fogo surgir. 188 “Mandu çarará” é o título e o refrão de uma

maior: a saúde. 194 Santo Antônio de Pádua, também conhecido como Santo Antônio de Lisboa (1195-1231), foi promovido a capitão da Fortaleza da Barra

cantiga recolhida por João Barbosa Rodri-

(Salvador, BA) pelo governador D. Rodrigo

gues no rio Solimões.

da Costa, em 1705. Posteriormente recebeu

189 Atentar, nessa cantiga, para a mistura entre a infelicidade relatada e o gozo do herói. É como

outras promoções. 195 O uso do advérbio “agora”, em meio a tantos

se Macunaíma gozasse apenas o momento,

verbos no passado, estabelece uma ruptura

mesmo consciente de seu destino de dor.

gramatical e faz com que a ação, subita-

190 “Oropa (Europa) França e Bahia” é uma locu-

mente, passe a acontecer diante do leitor,

ção que significa algo como “o mundo todo”,

dando também ao romance uma significa-

ou “muita coisa”. Vei, a Sol, aqui, oferece o mundo todo para Macunaíma, se ele se casar com uma de suas filhas. 191 É como se Vei quisesse “curar” Macunaíma de sua malandragem. 192 Repare na repetição “cunhãs cunhé cunhé” (paronomásia), que lembra o som do pinhé, uma espécie de gavião. Nesse sentido, haveria uma associação das cunhãs com um bando de pinhés.

ção atemporal. 196 Provérbio popular para dizer que desculpas não convencem. 197 “Três, diabo fez” é uma frase popular rimada. Segundo o folclorista pernambucano Pereira da Costa, existe uma superstição de que companhias e negócios de três pessoas dão azar. 198 Vató é justamente a pedra em que o fogo teria se transformado. 199 Esse monstro é personagem de uma lenda

193 Essa frase, juntamente com  “Ai, que preguiça”,

recolhida por Antonio Brandão de Amorim

é uma das mais conhecidas do romance. Há

e publicada no livro Lendas em nheengatu e em

referências entre inúmeros cronistas históricos sobre o mal provocado pelas saúvas nas

português (1928). 200 Referência ao jogo do bicho.

9 CARTA PRAS ICAMIABAS 201 “Carta pras icamiabas” é um dos capítulos

linguagem artificialmente culta, que Macu-

mais conhecidos e estudados do romance

naíma quer provar conhecer e dominar, e a

Macunaíma. Nele, aparece uma mistura mui-

linguagem popular. Ocorrem imitações, iro-

to esdrúxula – proposital, é claro – entre a

nias, paródias e inúmeros erros gramaticais e

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semânticos, numa tentativa feliz de mostrar

214 O frei Luís de Souza (1555-1632) é um dos mais

como operam aqueles escritores que querem

conhecidos autores clássicos portugueses do

demonstrar erudição inútil e a tendência de,

século XVI.

na linguagem escrita, ser mais “culto” do que

215 Rui Barbosa (1849-1923) era um dos mais co-

na oral. Esse era um dos mais importantes

nhecidos e importantes juristas, políticos e

combates do Modernismo.

escritores da época de Mário de Andrade.

202 Hipérbole irônica e intencional.

216 Aportuguesamento de chi lo sa, quem sabe,

203 Flexão propositalmente errada do verbo, que deveria ser “cavalgais”.

em italiano. 217 O mesmo que alemão.

204 Outra vez o autor grafou intencionalmente o

218 Enquanto escrevia Macunaíma, Mário de Andra-

verbo flexionado errado. O correto seria “vindes”.

de estava muito interessado em psicanálise e

205 É engraçado imaginar as Amazonas como gregas clássicas.

leituras freudianas. Daí também as referências à libido, ao metapsiquismo e aos sonhos que,

206 Imperador, em latim.

aliás, são muito importantes para inúmeros

207 O correto seria “não devemos esperdiçar”.

povos indígenas.

208 O muyrakytã: estudo da origem asiática da civili-

219 Velocino é a pele de carneiro ou ovelha com lã.

zação do Amazonas nos tempos pré-históricos é o

Aqui, uma alusão ao mitológico carneiro de ve-

título de uma obra de João Barbosa Rodrigues

locino de ouro. O narrador refere-se à muiraqui-

publicada em 1889, em Manaus.

tã por meio da palavra velocino, conotando-a

209 As trompas de Eustáquio (atual tuba auditiva) são um canal que vai do tímpano à nasofaringe. Ou seja, o uso do órgão está correto, mas é totalmente desnecessário. 210 Aqui ocorre uma autoironia, ou uma ironia, de

como algo mitológico, clássico. 220 O herói mente, provavelmente, para impressionar as icamiabas. 221 O Câmbio, aqui, com letra maiúscula, é tratado como se fosse um deus.

Mário de Andrade para com Macunaíma, por-

222 Dinheiro.

que, como se vê, quem “conspurca” a fala lusi-

223 Nesse parágrafo, Macunaíma refere-se ao fato

tana é o próprio herói. Essa fala toda lembra, a

de que as prostitutas da cidade trocam sexo

propósito, os discursos empolados e retóricos dos políticos. 211 Sob a sombra da faia, em latim, trecho do primeiro verso da primeira “Bucólica”, de Virgílio

por dinheiro, bebidas e alimentos caros. 224 Propositalmente grafado errado. A grafia correta seria “bordejar”. Provável trocadilho com o plural de bordel, bordéis.

(70 a.C.-19 a.C.), e título de um poema de Cas-

225 Cleópatra (c.70 a.C.-30 d.C.), rainha egípcia.

tro Alves (1847-1871).

226 Galiparlas é a pessoa que gosta de usar galicis-

212 Relativo ao deus romano Marte ou à guerra.

mos, ou seja, palavras ou expressões da língua

Ou seja, os homens da cidade não buscam

francesa. Macunaíma os critica, mas comete

mulheres guerreiras, como Ci, mas mulheres

exatamente esse excesso.

dóceis. 213 Enlace, enlace matrimonial, é o mesmo que casamento. Epitalâmico significa referente a epitalâmio, poema em homenagem aos noivos. Enlace epitalámico é usado aqui comicamente para se referir ao ato sexual.

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227 Trata-se de extrema ironia o fato de Macunaíma estar pedindo dinheiro para as icamiabas, justamente para poder comprar lagosta e “brincar” com as mulheres de São Paulo. 228 Trocadilho com a beleza das mulheres paulistas e o pagamento que elas cobram.

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229 Aqui, deveria, por concordância, ser  “relapsos”.

244 Garçon significa menino, rapaz, em francês.

230 Deveria ser  “misteres”, ou necessidades, ur-

245 “Zona” é palavra de uso informal para se referir

gências. 231 Típica linguagem parnasiana: “o beijo sublima, as volúpias encandecem”. 232 Grafia propositalmente errônea de urbi et orbi, expressão latina que significa para a cidade e para o mundo, por toda a parte. 233 Odor di femina, em italiano, e não fêmia, significa  “odor de mulher”.

a uma região onde se pratica a prostituição. “Zona estragada” é um regionalismo nordestino. 246 Deveria ser “indigna”. 247 Diz a lenda que as Amazonas queimavam o seio direito para atirar melhor. 248 As paulistanas cortejam Mercúrio e não Marte, ou seja, dão mais importância ao comércio do que à guerra.

234 Entregar-se nos braços de Morfeu significa

249 Como se essas mulheres só pensassem em sexo.

adormecer. Na mitologia grega, Morfeu é o

250 A linguagem dos madrigais, ou seja, poemas

principal deus ou espírito dos sonhos. O nar-

breves, de conteúdo geralmente amoroso, em

rador faz uma substituição cômica de Morfeu

uso sobretudo do século XIV ao XVII.

por Orfeu.

251 Além de “polacas”, “francesas” era outro título

235 Tremo ao relatar, em latim, expressão utiliza-

que se dava às prostitutas estrangeiras. Como

da por Eneias ao narrar a morte de Laocoonte

toda a sociedade da época, elas também gos-

e seus filhos, na Eneida. 236 Acentuação errada, que deveria ser “flórida”. 237 As mulheres costumavam cortar os cabelos curtos, como se fossem efebos, ou adolescentes. 238 Antínous (c. 110-130), amante do imperador

tavam de imitar os hábitos franceses. 252 Macunaíma, aqui, está convidando as amazonas a se tornarem prostitutas, para que ele ganhe dinheiro com isso. 253 Alusão à expressão latina est modus in rebus, que significa há um limite nas coisas. Ou seja,

romano Adriano. Depois de sua morte, no

uma frase que contradiz o que Macunaíma

Egito, o imperador Adriano erigiu templos e

escreve nessa carta.

fundou uma cidade em sua homenagem. 239 Macunaíma diz que as mulheres de São Paulo parecem mais gregas do que latinas. 240 Como as mulheres paulistanas não são conquistadas à força, da forma como as

254 Referência a Safo (610 a.C.-570 a.C.), e não Safô, poetisa grega, que nasceu na ilha de Lesbos, aqui conotada como homossexual. 255 Ilha grega no Mar Egeu. 256 Por ciúmes e medo de que as icamiabas, exci-

Amazonas, os cabelos não têm muita im-

tadas com a presença das prostitutas paulistas

portância.

na mata, apaixonem-se por elas e tornem-se

241 Como os cabelos são curtos, não crescem piolhos. Macunaíma, aqui, quase chega a

lésbicas, Macunaíma afeta uma moral, descabida para o que ele mesmo está propondo.

destratar as mulheres a quem está pedindo

257 Roma foi construída sobre sete colinas.

dinheiro e de quem seria o imperador.

258 Aachen, cidade alemã.

242 Na época do rei Luís XV (1710-1774), prosperaram o galanteio e os rituais de cortejo entre homens e mulheres.

259 Anvers (Antuérpia), cidade da Bélgica. 260 Alusão a trecho do poema “À ilha de Maré”, de Manuel Botelho de Oliveira (1636-1711): “Tenho

243 O herói aqui se refere ao grande número de

recopilado / O que o Brasil contém para inveja-

prostitutas estrangeiras, as “polacas”, de que

do, / E para preferir a toda a terra, / Em si perfei-

já se falou anteriormente.

tos quatro A A encerra. / Tem o primeiro  A nos

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arvoredos / Sempre verdes aos olhos, sempre ledos; / Tem o segundo A nos ares puros, / Na

272 Expressão latina que significa para isto, para esta finalidade.

tempérie agradáveis e seguros; / Tem o terceiro

273 Como já foi mencionado anteriormente, é fun-

A nas águas frias, / Que refrescam o peito e são

damental, para melhor compreensão e leitura

sadias; / O quarto A no açúcar deleitoso, / Que

crítica deste romance, o estudo do Manifesto

é do Mundo o regalo mais mimoso. / São pois

antropófago, de Oswald de Andrade.

os quatro A A por singulares / Arvoredos, Açúcar, Águas, Ares”. 261 Ironia com a multidão de São Paulo e as concentrações de gente em determinados locais, aqui tratadas como se fossem propositais. 262 Como se vê, já nessa época havia polêmicas

274 Insinuação à aristocracia cafeeira e, assim, também ao negociante Venceslau Pietro Pietra. 275 Uma das alcunhas para a cidade de São Paulo era “a locomotiva do Brasil”. 276 Instituto Butantan, na cidade de São Paulo.

sobre a quantidade de gente que participava

Foi criado como laboratório para a produção

das eleições.

de soro antipestoso, na Fazenda Butantan, e

263 Referência, também irônica, às matérias de jornais. 264 Referência ao lixo que se jogava nas ruas.

reconhecido como instituto autônomo em 1901, com o nome de Instituto Serumtherápico. 277 Creso foi um antigo rei grego, que submeteu

265 Deveria ser “micróbios”.

outras cidades ao seu império. Em todo esse

266 Grande ironia com as administrações políticas.

trecho, Macunaíma faz grande ironia ao tra-

Seria como se as doenças, que matam princi-

balho operário, assemelhado ao trabalho es-

palmente aqueles que não têm acesso à higie-

cravo, e às doenças que grassam na cidade,

ne, fossem propositalmente calculadas para

tratadas aqui como se fossem boas para exci-

equilibrar a população. 267 Na Roma antiga, os edis eram encarregados da limpeza pública e outros afazeres e eleitos pela própria plebe. 268 Citação de trecho da Eneida, de Virgílio, que significa sob o silêncio da lua. 269 Macunaíma, aqui, exercita a arte da demagogia, como faz, aliás, em toda essa carta, tentando agradar a todos, “gregos e troianos”.

tar sexualmente os cidadãos. 278 Cidade, em latim; urbe. 279 A indústria têxtil paulistana iniciou-se entre as décadas de 1850 e 1860. Em 1882 havia nove fábricas em operação. Em 1895 foi fundada, na Vila Prudente, a Fábrica de Tecidos de Seda de Guilherme Polletti. 280 Palácio dos Campos Elíseos, residência do fazendeiro Elias Antonio Pacheco e Chaves, projetado

270 É interessante notar a forma aparentemente

pelo arquiteto alemão Matheus Häussler e con-

ingênua como Macunaíma assimila a história

cluído em 1899. Em 1912, o governo estadual ad-

da cidade de São Paulo, revelando índices dificil-

quiriu o imóvel, que passou a ser utilizado como

mente assumidos pelos historiadores da época.

sede de governo e residência do governador e,

271 Trocadilho com “eugenia”, termo cunhado pelo

atualmente, Secretaria da Ciência, Tecnologia,

cientista inglês Sir Francis Galton (1822-1911). A

Desenvolvimento Econômico e Turismo do es-

eugenia era o estudo de técnicas para o apri-

tado de São Paulo.

moramento genético dos seres humanos. Es-

281 Locução para se referir à cidade de Veneza.

ses estudos entraram em decadência nos anos

282 Uma das principais bandeiras do Modernismo

1930, quando os nazistas utilizaram a eugenia

e, especialmente, de Mário de Andrade é a de

como justificativa para extermínio racial.

aproximar a língua escrita da língua falada,


220

rompendo tabus linguísticos e gramaticais.

bate mais profundo acerca da soberania bra-

Este romance é uma das maiores conquistas li-

sileira, questão também importante para a

terárias nesse sentido, e a “Carta pras icamiabas”

primeira fase do Modernismo (1922-1930), em

é uma ironia justamente a essa tendência de

que se buscava “redescobrir” o Brasil para os

tornar erudito o popular. 283 Carl von Linné (1707-1778), naturalista sueco, o primeiro a criar um sistema para nomear os seres vivos. 284 Vergiliana significa de ou relativo a Virgílio, um dos maiores poetas de Roma.

brasileiros. 287 Provável referência a dicionários, também chamados de “pai dos burros”. 288 Aqui, Macunaíma troca “versículos” por “testículos”. 289 Segundo Gilberto Freyre, no livro Ordem e

285 Locução para se referir à língua portuguesa.

progresso, Rodrigues Alves (1848-1919), quinto

286 Aqui, ocorre uma crítica metalinguística da

presidente da República (1902-1906), ficou co-

própria carta que, ao longo de todo o texto, utiliza a forma “si”. Além disso, na discussão sobre o “s” ou “z” no nome “Brasil”, há um de-

nhecido como Papai Grande. 290 Ci, aqui, o grande amor do herói, é tratada como se fosse Deus.

10 PAUÍ-PÓDOLE 291 O nome Pauí-Pódole foi extraído da saga de Maaui-Pódole, Emrono-Pódole e Pauí-Pódole, recolhida por Koch-Grünberg. O cunhado do feiticeiro vai ao mato caçar,

293 Segundo Afrânio Peixoto (1876-1947), no livro Miçangas, introduzir o chinelo de alguém em casa de cupim causa a morte da pessoa. 294 Em 2 de agosto de 1591, Fernão Cabral de Tayde

encontra Pauí-Pódole, mas não consegue

confessou ao Santo Ofício que havia cerca de

atingi-lo com uma sarabatana, porque ele

seis anos  “levantou-se um gentio no sertão

estava em uma posição muito alta. O feiti-

com uma nova seita que chamavam Santidade,

ceiro se transforma em uma formiga, sobe

havendo um que se chamava papa e uma gen-

na árvore onde estava Pauí-Pódole, mas

tia que se chamava mãe de Deus”.

a formiga é derrubada. O feiticeiro vai se

295 Caraimonhaga é a seita Santidade dos indíge-

transformando, mas não consegue derro-

nas do interior da Bahia citada na nota ante-

tar Pauí-Pódole, que acaba condenando-o

rior, segundo Capistrano de Abreu (1853-1927),

a nunca mais voltar a ser gente. Pauí-Pódole

no seu prefácio ao livro Primeira Visitação do

se transforma no Cruzeiro do Sul (neste romance, vários personagens se transformam em estrela).

Santo Ofício às partes do Brasil (1922). 296 Alusão clara ao que se passa neste mesmo romance, em que se misturam essas duas lin-

292 Na lenda “O Yurupari e as moças”, contada por

guagens, e também à  “Carta pras icamiabas”,

uma índia Munduruku, no rio Canumã, Ama-

em que Macunaíma procurou demonstrar seu

zonas, publicada por João Barbosa Rodrigues

domínio do português escrito, com vários pro-

no livro Poranduba Amazonense, “o Yurupari guardava dentro de um caramujo o muyrakytã, seu talismã”.

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blemas, como se viu. 297 Na época de Mário de Andrade era muito comum encontrar moças vendendo flores pelas

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ruas, para reverter a renda para instituições de caridade.

307 Fräulein, senhorita, em alemão. Possível alusão a Fräulein, protagonista do romance Amar, ver-

298  A Serra do Ererê fica no estado do Pará. Segun-

bo intransitivo, do próprio Mário de Andrade,

do lenda recolhida por João Barbosa Rodrigues

escrito antes de Macunaíma, uma governanta

junto aos indígenas do Rio Padauari, no Amazo-

e prostituta alemã.

nas, e publicada no livro Poranduba amazonense:

308 Mistura de neologismos (catalepse e haplo-

“na serra do Ereré todas as cousas são grandes;

gia) com figuras de gramática e de linguagem,

as vespas, os beija-flores, os mucuins, os carra-

que sugerem ironicamente dificuldades com a

patos são grandes; há água em cima da terra

escrita.

e pela borda flores; tudo quanto há aí cheira.

309 Grande ironia alusiva à evolução de algumas

Pensamos que antigamente não chegaram aí

palavras, cujas origens são difíceis de loca-

as águas do dilúvio, quando se acabou o mundo”. 299 Rua antiga e famosa do centro de São Paulo.

lizar e que alguns gramáticos acabam por “inventar”.

300 São Bernardo do Campo, cidade que, com

310 Alusão aos versos “Sou filha de uma mulata /

Santo André, São Caetano e Diadema, forma

da maior mulataria”, do poema “O caçador”, da

o ABC paulista.

tradição oral da Ilha de São Miguel (arquipé-

301 “Dia de judeu” é um dia cheio de contrariedades.

lago dos Açores, Portugal), publicado no livro

302 Macunaíma não consegue encontrar um

Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero.

nome para o “orifício” em que a moça colocou a flor e acaba dizendo “puíto”, que significa ânus, cometendo um lapso de natureza bem erótica. 303 Alusão à famosa parlenda que inicia pelos versos  “Hoje é domingo, pé de cachimbo”. 304 Santuário Sagrado Coração de Jesus, no bairro Campos Elíseos, na cidade de São Paulo, inaugurado em 1901, onde antes havia uma capela. 305 Desfile de carros.

311 O Pai do Mutum é o mesmo Pauí-Pódole que aparece no título deste capítulo. 312 Alusão a cantigas e contos acumulativos em que uma pessoa ou animal pede algo ou faz mal para outro, e a cada vez vai aumentando a quantidade de personagens como, por exemplo, na cantiga “A velha a fiar”. 313 “Tem mais não”, fórmula de conclusão de várias narrativas neste romance, é tradução de uma fórmula de muitos contos Kaxinawá

306 Mooca e Ipiranga são bairros da cidade de

recolhidos por Capistrano de Abreu, como “O

São Paulo. A avenida Rangel Pestana e a rua

Kaxinawá que virou puraquê”: “Até aqui me

Quinze de Novembro também são logradou-

lembro, tem mais não”.

ros da cidade. É importante atentar para a

314 Ideia utópica e paradisíaca da cidade e das

função da cidade em toda a obra de Mário

pessoas, transformadas pela lenda contada

de Andrade, muito apegado à arquitetura e à

por Macunaíma.

geografia urbanas. Vários de seus poemas fa-

315 Superstição de que, quando se brinca com

lam sobre São Paulo, e um de seus livros mais

fogo, o resultado é urinar na cama à noite.

conhecidos chama-se Pauliceia desvairada.

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11 A VELHA CEIUCI 316 Caruviana (ou cruviana), no interior da Bahia,

‘Isto é porque [ele] não tem intimidade com

é a garoa que acompanha a friagem; no Pará,

vocês. A mim ele diz a verdade’. Diante disto a

vento frio.

discussão morreu; mas um dos presentes não

317 Ditado que alude ao costume de contar histórias para crianças antes de dormir. 318 Essa história da caçada é narrada em Koch-

se conformou e telefonou a Mário, censurando a sua dubiedade: como é que pensava uma coisa e dizia outra? Ele protestou, o interlocu-

-Grünberg, na “Saga de Kalawunseg, o mentiro-

tor deu os pormenores, ele ficou danado. Saiu

so”: Kalawunseg diz aos irmãos que encontrou

então à busca de Oswald e, encontrando-o

rasto de anta, mas os irmãos não encontra-

por coincidência na rua Quinze, chamou-o às

ram. Kalawunseg segue inventando mentiras,

falas. Mas o amigo o desarmou, retrucando

consegue matar dois ratos com sua mulher,

simplesmente, com a limpidez risonha do seu

mas diz a todos que foram dois veados. A mulher o desmente. 319 Mais um sinal de que os irmãos de Macunaíma são inocentes e tolos.

olhar azul: ‘Eu menti!’”. 321 Segundo Leonardo Mota (citado por Cavalcanti Proença), “ficar com cara de André” quer dizer “ficar envergonhado”.

320 Possível referência a um caso ocorrido entre

322 É significativo, para o desenvolvimento do ro-

Mário de Andrade e Oswald de Andrade, um

mance, Macunaíma chamar os irmãos para,

dos melhores amigos do autor e também fun-

juntos, chorarem de saudade de Ci e do mato.

dador do Modernismo paulista, com quem

Começa uma trajetória de desencantamento.

mais tarde Mário romperia radicalmente. O

323 Foram os brancos que trouxeram a gripe

caso é relatado por Antonio Candido, no ar-

(constipação) para os povos indígenas.

tigo “Digressão sentimental sobre Oswald de

324 Segundo Luís da Câmara Cascudo, no livro

Andrade”, publicado no livro Vários escritos:

Geografia dos mitos brasileiros (citado por Ca-

“Nos anos de 1920, Oswald encontrou Villa-Lobos na Europa e ficou surpreso com a deficiên-

valcanti Proença), os pajés faziam profecias e augúrios cheirando pó de paricá.

cia de sua cultura, que o levava a confundir

325 Alusão a Francesco A. M. Matarazzo (1854-

Jules Romains com Romain Rolland e coisas

1937), agricultor italiano que emigrou para o

assim. De volta, falou disso no salão de Dona

Brasil em 1881, tornando-se mascate e depois

Olívia Guedes Penteado, dizendo que o gran-

empresário, dando origem a uma das famílias

de compositor nos comprometia lá fora. E en-

mais ricas de São Paulo.

trando pela exageração que o tomava quando

326 Recriação de uma frase extraída da “Saga de

estava em veia polêmica, terminou afirmando

Kalawunseg, o mentiroso”: “He, he, he setene

que ele nem música sabia e era um ignoran-

neaite pemoneite, tetape zonanei neite”, que

tão intuitivo. Como alegassem que não tinha

significa  “Achei-os neste lugar, aí há gente, ela

autoridade para dizer isto, retrucou mais ou

sabe esconder o seu rasto”.

menos: ‘Não sou eu quem diz. O Mário, que

327 Ironia à linguagem empolada dos acadêmi-

entende, falou que o Villa não sabe harmonia

cos de São Paulo. Atentar para o contraste

nem contraponto’. As pessoas estranharam,

entre a São Paulo trabalhadora e a “preguiça”

lembrando que Mário dissera sempre o con-

de Macunaíma, cuja defesa do ócio afronta o

trário. Oswald então foi mais longe e explicou:

ritmo produtivo da cidade grande.

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328 Notar a atualidade de todo esse trecho.

varanda. A onça não consegue amedrontá-los,

329 Guarda-civil, segundo Manuel Viotti, no seu

mas a chuva sim, por isso o povo diz que, até

Dicionário da gíria brasileira (citado por Cavalcanti Proença). 330 Rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo. 331 É interessante analisar a caracterização dos

hoje, tem medo de chuva, mas não de onça. 340 Língua de brincadeiras infantis, semelhante à língua do pê. 341 Esse episódio do roubo de anzol também é

policiais como estrangeiros. Seria como se

inspirado em uma das narrativas colhidas por

os policiais prendessem sem necessidade de

Koch-Grünberg.

saber ou sequer entender o motivo da prisão, já que mal dominam a língua local.

342 O Poço do Umbu, no Rio Grande do Norte, é citado por Tristão de Alencar Araripe (1821-

332 “Pernas, para que te quero!” é uma exclamação

1908) no ensaio Cidades petrificadas e inscri-

(gramaticalmente incorreta) que indica a ação

ções lapidares no Brasil (1887): “Diz José Lopes

de fugir correndo ante um perigo. Macunaíma

que este poço ou caldeirão de pedra é perto

corrige a locução popular, substituindo o pro-

deste lugar, onde diz haver também vários

nome singular “te” pelo pronome plural “vos”. 333 Um hábito comum entre as famílias paulistas

letreiros de tinta encarnada nas pedras”. As inscrições do Letreiro da Pedra-pintada, na

antigas era  “gozar a fresca” ou  “aproveitar a bri-

Paraíba, foram consideradas de origem fení-

sa”, sentando-se à varanda.

cia por Ernest Renan (1823-1892), origem essa

334 O chuvisco é conotado como curumim, criança, mais um exemplo de animismo ou antropomorfização. 335 “Canudo que teve pimenta guarda o ardume” é

que não é mais aceita atualmente. 343 Na narrativa colhida por Koch-Grünberg, por ter perdido o anzol, o pescador vai trabalhar na Guiana Inglesa (atual Guiana): “Que é que

um ditado popular que evoca versos do poeta

vou fazer agora? Não tenho mais anzol... Irei

latino Horácio (“o vaso conservará por muito

trabalhar no outro lado para ganhar novo an-

tempo o cheiro com que foi impregnado uma

zol”. Aqui, o pescador inglês é comicamente

vez, quando ainda era novo”, Epístolas, 1, 2, 69-

transformado num banco inglês, o Bank of

70) e também uma fábula de Fedro (“A velha e

London and South America Limited, que teve

a ânfora”), aqui citado para expressar que uma

atividades na América do Sul entre 1923 e 1986.

pessoa nunca perde suas características, seu jei-

344 Recriação de “Ceiuci momeuacana receuara”

to de ser. 336 Ou seja, o gigante manteve-se impassível como um elefante.

(“Lenda acerca da velha gulosa”), uma “lenda”, conforme a denominação de Couto de Magalhães (1837-1898), recolhida em 1865, “nas

337 A caapora, aqui, é Ceiuci, a mulher do gigante.

solidões das cachoeiras da Itaboca, no [rio]

338 Atentar para o contraste entre o que Macunaíma

Tocantins”, narrada pelo tuxaua (cacique) dos

considera perigoso – sua coleção de palavrões

Anambés e publicada no livro O selvagem (1876).

– e o que é considerado perigoso para o comer-

Ceiuci é a constelação das Plêiades e significa

ciante. 339 Segundo Cavalcanti Proença, a aposta com

também “velha gulosa, ou uma fada indígena que vivia perseguida de eterna fome”. Nessa

chuvisco tem origem na saga colhida por Koch-

lenda, o herói é pescado pela velha Ceiuci, que

-Grünberg “A onça e a chuva”. Trata-se de uma

o leva para casa para comê-lo, mas ele é salvo

aposta entre as duas para ver quem consegue

pela filha da malvada e conta com a ajuda de

assustar mais uma família que arma redes na

macacos, um casal de surucucus e um tuiuiú.

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345 Além de tirar as penas de uma ave, a palavra

são possíveis sítios arqueológicos de pinturas

“depenar” também significa tirar a maior parte

ou inscrições rupestres citados por Tristão de

dos bens de alguém, especialmente quando

Alencar Araripe no ensaio Cidades petrificadas

de modo fraudulento. Atentar para o que vai

e inscrições lapidares no Brasil. Na maior parte,

ocorrer em seguida no romance. 346 Trecho, cheio de malícia e ambiguidades. Aqui, a filha finge provocar o herói com adivinhas eróticas, mas, ironicamente, elas são todas inocentes e ingênuas. 347 Alusão ao conto “Os cavalos do diabo”, recolhido por Gustavo Barroso (1888-1959) e publicado no livro Ao som da viola (1921). Nesse conto, o

foram extraídos da obra Lamentação brasílica, do padre Francisco de Menezes, e careciam de verificação. 352 A conversa do casal de surucucus aparece na “Lenda acerca da velha gulosa”, recolhida por Couto de Magalhães e publicada no livro O selvagem (1876). 353 Segundo Luís da Câmara Cascudo (citado por

diabo monta diversos cavalos. Para cada cava-

Cavalcanti Proença), a Galinha de Ouro é uma

lo, há um ditado correspondente.

superstição comum em Natal (Rio Grande do

348 No ensaio Cidades petrificadas e inscrições lapi-

Norte): uma galinha amarela que cruza os ca-

dares no Brasil, Tristão de Alencar Araripe conta

minhos dos andantes subitamente e, depois,

que, segundo uma notícia publicada pelo jor-

desaparece.

nal Commercio do Amazonas, com o título “Im-

354 Maria Pereira é uma colona portuguesa que te-

portante descoberta científica”, um lavrador

ria se refugiado no interior de Alagoas, durante

teria descoberto, nos arredores de Manaus,

a ocupação holandesa no Nordeste (1630-1654).

fragmentos de uma estátua de mármore, re-

O Buraco de Maria Pereira é uma depressão,

presentando um guerreiro ou o deus Marte.

provavelmente produzida por erosão da água,

Mais tarde, Araripe recebeu uma carta de João

às margens do rio São Francisco, próximo à ci-

Barbosa Rodrigues esclarecendo que tudo não

dade de Traipu, entre Penedo e Pão de Açúcar,

passara de “poisson d’avril” (mentira de primei-

Alagoas. Esse buraco foi visitado pelo impera-

ro de abril). 349 A Guiana Francesa é um departamento ultramarino da França que faz limite com o estado do Amapá. Novamente, observar a “desgeograficação” do romance e os saltos que o herói dá, ao longo de suas andanças e escapadas.

dor Pedro II, durante a viagem que fez ao baixo São Francisco e à Cachoeira de Paulo Afonso, ocorrida de 13 a 25 de outubro de 1859. 355 O voo de tuiuiú aparece na “Lenda acerca da velha gulosa”, recolhida por Couto de Magalhães. 356 Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724)

350 Segundo Tristão de Alencar Araripe, “este lu-

foi o primeiro inventor e cientista brasileiro.

gar dizem ser saindo de Manguape para Ba-

Segundo Visoni e Canalle, “em Lisboa o padre

camarte, ao pé da serra, antes de subir, onde

Bartolomeu Lourenço pediu patente para um

está uma pedra, que está cheia de letreiros,

‘instrumento para se andar pelo ar’ – que se re-

de que lhe vem o nome”. 351 “Aratanha (serra no município de Pacatuba, CE), Cabelo-não-tem (serrote às margens do Rio Apodi, RN), Pedra-Lavrada (RN), Barra do [Rio] Poti (PI), Pajeú (PE) e Inhamum – Apertados”

velaria ser, mais tarde, o que hoje se conhece por ‘aeróstato’ ou ‘balão’ – concedida no dia 19 de abril de 1709”. 357 Mais uma transformação de personagem em corpo celeste.


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12 TEQUE-TEQUE, CHUPINZÃO E A INJUSTIÇA DOS HOMENS

358 No capítulo 2, Macunaíma já tinha sonhado

popular da região Norte que se refere ao “in-

com dente, a que a mãe tinha dito que seria

divíduo feliz e para quem não há tropeço nem

morte de parente, o que realmente aconteceu.

dificuldade na vida”. Essa locução foi estudada

359 Entre os indígenas, a noção de sombra é mui-

por João Ribeiro no seu livro O folclore (1919).

to importante e se trata de um território inter-

Essa erva milagrosa, que “possui o condão de

mediário entre a vida e a morte, entre o corpo

quebrar todas as resistências” é conhecida

e o espírito. Uma espécie de assombração que não desaparece da Terra.

apenas pelo pica-pau e só ele sabe encontrá-la. 368 Vendedor ambulante e nome de um pássaro,

360 Referência a Bento, o milagroso de Beberibe,

também conhecido como ferreirinho ou sebinho.

que curava com água. Segundo Gonçalves

369 Situações semelhantes a essa, do micura, apa-

Fernandes (1909-1986) no livro O sincretismo

recem também em contos populares prota-

religioso no Brasil (1941): “Bento Milagroso fez

gonizados por Pedro Malasartes e na série de

furor em todo o Recife lá para o ano de 1913,

episódios de “Kunevo, o mentiroso”, recolhida

aparecendo profeta e curandeiro, atraindo para toda aquela zona grande massa popular da capital e do interior de Pernambuco”.

por Koch-Grünberg. 370 Cassino do Hotel Copacabana Palace, inaugurado em 1923. Funcionou até 1946, quando

361 Inaugurado em 1904, como leprosário, que

o Decreto-lei n0. 9.215, ainda em vigor, proibiu

funcionou até 1930, atualmente é o Hospital

a prática ou exploração de jogos de azar em

Municipal São Luiz Gonzaga. 362 Era hábito muito comum cheirar rapé e espirrar.

todo o território nacional. 371 Mais um exemplo, de fundamental importância

363 Ironia às pensões que o governo concedia para

para a análise geral do romance, de que, apesar

artistas. O Pensionato Artístico do Estado de

de malandro, Macunaíma não se compara com

São Paulo iniciou no final do século XIX e foi

os habitantes da cidade e suas malandragens

oficializado pelo Decreto n0. 2.234, de 1912. Ofe-

mais elaboradas.

recia bolsas de estudo no exterior para “moços

372 Alusão à quadrinha popular “O Zé Prequeté

paulistas dos que maior vocação artística”

/ Tira bicho do pé, / Pra comê com café, / Na

houvessem “demonstrado para o estudo da

porta da Sé!”, publicada por Affonso  A . de

pintura, da escultura, da música ou do canto”.

Freitas no livro Tradições e reminiscências pau-

Eram concedidas pelo prazo de cinco anos. Lembrar que Mário de Andrade era pianista,

listanas (1921). 373 Dentre as interpretações possíveis desse episó-

tendo inclusive sido professor do Conservató-

dio, duas se destacam: como na fábula “A rapo-

rio Dramático e Musical de São Paulo.

sa e as uvas”, de Esopo, Macunaíma simula não

364 Novamente, ironia aos artistas – músicos e ar-

querer ir mais à Europa, defendendo sua iden-

tistas plásticos – que cultivam mais as modas e

tidade americana, somente para disfarçar sua

as aparências do que a consistência no trabalho.

frustração em não ter atingido o intento. Ou

365 Eça de Queirós (1845-1900) é considerado um

então Macunaíma está realmente defendendo

dos maiores romancistas portugueses.

a identidade americana, jovem, por oposição à

366 Serra na zona norte de São Paulo.

europeia, antiga. Esse, aliás, foi um dos temas

367 “Possuir a folha do pica-pau” é uma locução

mais importantes da primeira fase do Moder-

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nismo: opor a força da brasileiridade à cultura europeia e, principalmente, à francesa.

o mentiroso”, recolhida por Koch-Grünberg. Kunevo está quebrando coco de tu-

374 O chupim não cuida de seus próprios ovos,

cumã, aparece a onça e pergunta o que ele

sempre os botando nos ninhos de outras aves

está fazendo; Kunevo responde que está

para que elas criem seus filhotes. 375 Decumê, neologismo com o sentido de “de comer”. 376 “Telo decumê!” é imitação da fala infantil “quero de comer”. 377 Para acabar com a injustiça, Macunaíma mata

quebrando os testículos. A onça pergunta se é gostoso. Ele quebra outro coco, colocando-o entre as pernas, de modo que a onça não visse e dá um pedaço para a onça experimentar. A onça quebra os próprios testículos e morre.

o tico-tico. Esse trecho também mostra como

381 Assim passa, em latim, trecho de sic transit

o herói pode ser interesseiro e malandro, mas

gloria mundi, que significa assim passa a gló-

também compassivo, apesar de desastrado. 378 Segundo Koch-Grünberg, os indígenas atribuem um pai a cada espécie.

ria do mundo. 382 Segundo uma “superstição popular” recolhida por Afrânio Peixoto e publicada no

379 Entre vários povos indígenas, como existem

livro Miçangas: “Quando ao chegar ao ce-

parentescos entre humanos e não humanos, é

mitério fica o defunto pesado, é que não

muito comum todos se tratarem por sobrinhos. 380 Esse encontro com o macaco também é extraído da série de episódios de “Kunevo,

quer ir, sendo às vezes necessário surrá-lo”. 383 Macunaíma ressuscita pela segunda vez, novamente pelas mãos do mano Maanape.

13 A PIOLHENTA DO JIGUÊ 384  Trata-se de erisipela. Erisipa é outro nome dessa doença sugerido a Mário de Andrade pelo poeta pernambucano Ascenso Ferreira, em carta de 8 de janeiro de 1927. 385 O nome correto do jornal é O Estado de S. Paulo. 386 Como já visto anteriormente, a ambiguidade é um dos recursos mais utilizados nesse roman-

pelo artista italiano Luigi Brizzolara (1868-1937) em 1922. 388 Esse monumento aproveita uma fonte, que já existia desde a inauguração do Theatro Municipal e da Praça Ramos de Azevedo em 1911, mas Brizzolara, inspirado na Fontana di Trevi, de Roma, deu para a fonte sua forma atual.

ce. Aqui, a expressão “sarna para se coçar” está

389 Companhia de Navegação Lloyd Brasileiro, cria-

sendo usada no sentido concreto, como se a

da pelo almirante barão Jaceguay e autorizada

sarna fosse mesmo algo que se pudesse buscar na cidade; no sentido figurado, significa

por um Decreto-lei de 19 de fevereiro de 1890. 390 Companhia de navegação fundada em Ham-

“procurar problema inútil” e também mais es-

burgo, Alemanha, Hamburg Südamerikanische

pecificamente ligado ao próprio Macunaíma,

Dampfschifffahrts-Gesellschaft, atual Hamburg

porque isso é o que herói mais sabe fazer.

Süd. Em 1871, três barcos a vapor navegavam para

387 O monumento a Carlos Gomes (1836-1896) é

o Brasil e La Plata em serviço mensal.

um conjunto escultórico na Praça Ramos de

391 SS Conte Verde (conde verde, em italiano),

Azevedo, no centro de São Paulo, realizado

transatlântico italiano que iniciou suas ope-

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rações em 1923. A frase  “é il piróscafo Conte Verde em vez” é uma tradução macarrônica do

397 Paródia de trecho de uma oração católica em latim: Libera nos, Domine, “livrai-nos, Senhor”.

italiano è il piroscafo Conte Verde in vece. In vece é

398 Segundo Barbosa Rodrigues, “É o Erythroxylon

forma abreviada de in vece di, que significa “em

coca, cujas folhas torradas e pulverizadas, com

vez de, ao invés de” e, neste caso, “ao contrário,

cinza de grelos de embaúba, ou farinha-d’água,

na verdade”.

se conservam na boca para prevenir a fome,

392 Boiuna. Segundo Alfredo da Mata citado por

anestesiando os músculos do estômago”.

Luís da Câmara Cascudo no seu Dicionário do

399 “Criado originalmente como Horto Botânico,

folclore brasileiro: “Cobra escura, a Mãe-d’água,

em 1825 foi aberto ao público como Jardim Pú-

de tanto destaque no folclore amazonense

blico da Luz. É o mais antigo parque público do

por transformar-se em as mais disparatadas

município e foi tombado pelo Condephaat em

figuras: navios, vapores, canoas... Ela engole

1981” (site Secretaria Municipal do Verde e do

pessoas”. 393 Segundo uma superstição recolhida por Afrânio

Meio Ambiente). 400 Referência ao padre José de Anchieta, canoni-

Peixoto e publicada no livro Miçangas, “Ficará es-

zado, em 3 de abril de 2014, pelo papa Francisco.

téril a [mulher] que engolir 3 caroços de chum-

401 “À la garçonne”, corte de cabelos curtos, em

bo, rezando 3 padre-nossos e 3 ave-marias”.

francês, muito comum e moderno na época

394 Recriação do conto “O valente”, dos indígenas

em que o livro foi escrito e imitava a moda

Kaxinawá, recolhido por Capistrano de Abreu, cujo protagonista todo dia fazia flecha, arco e cacete. 395 Aqui continua a paródia do conto “O valente”, em que a mulher fingia ter sonhado com al-

francesa. 402 Recriação do conto “A mulher piolhenta”, dos indígenas Kaxinawá, recolhido por Capistrano de Abreu. 403 “Paca, tatu, cotia não” é brincadeira e dito po-

gum animal que, na verdade, tinha sido caça-

pular infantil muito conhecido, em função do

do pelo seu amante.

qual Mário de Andrade criou uma trama, para

396 Fox-trot, dança norte-americana que se aclimatou no Brasil  “a partir da segunda década

que ela redundasse no dito. 404 “Emprenhar pelas oiças”, literalmente, “engra-

do século XX [...]. Os primeiros foxes apare-

vidar pelas orelhas” é uma locução tradicional

ceram gravados em disco. O primeiro deles

que significa acreditar em tudo que se diz.

foi o do disco Odeon n0. 121336, gravado pela

405 Luís da Câmara Cascudo cita a rendeira Gera-

orquestra Pickman, constando o fox-trot

cina, da Ponta do Mangue, em Natal, em uma

‘Ragging the scale’, de Edward B. Claypoole,

carta a Mário de Andrade, de 7 de março de 1928.

que deve ser do ano de 1916 [...]. Logo depois,

406 Segundo Pereira da Costa, ao ver uma estre-

os autores brasileiros começaram a compor

la cadente, o povo pensa que é um espírito

foxes [...]. Entre 1921 e 1926, já era grande a

errante, pagando os seus pecados antes de

safra de foxes da produção nacional. Freire

entrar no paraíso.

Júnior, Eduardo Souto, Leopoldo Fróes, Na-

407 À medida que o romance avança, os manos

zareth, Pixinguinha, Joubert de Carvalho e

vão se dando conta, quase que irremedia-

Marcelo Tupinambá, entre outros, compuse-

velmente, do “caráter sem caráter” do herói,

ram foxes nessa época” (site Dicionário Cravo

como sugere o epíteto “o herói sem nenhum

Albin da Música Popular Brasileira).

caráter”.

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14 MUIRAQUITÃ 408 “Ver passarinho verde” é locução tradicional

418 Koch-Grünberg conta a história da onça-parda.

no Brasil que significa demonstrar muita ale-

Um camarão mandou seus olhos para o mar e

gria sem motivo aparente.

recebeu-os de volta, mais tarde. A onça, curio-

409 Nova alusão ao conto “A tartaruga e o gavião”,

sa, também quis, mas seus olhos foram co-

recolhido por Barbosa Rodrigues, em que o

midos por Aimalá-Pódole e a onça ficou cega

gavião experimenta sua força tentando arrancar um grelo de miriti (buriti). 410 Reconto do conto popular “O carrapato”, recolhido por Julio Campina em Alagoas e publicado no livro Subsídio ao folclore brasileiro (1897). 411 Também em Koch-Grünberg aparece a lenda de Emoron-Pódole, o pai do sono.

para sempre. 419 Sempre mantendo a ideia da antropormorfização, dia, noite, onça, tigre e peixes, todos se comportam como humanos. 420 Afonso Sardinha “em 1587 [...] descobriu magnetita na atual região de Sorocaba, no interior de São Paulo, e iniciou a produção de ferro a partir da redução do minério. É a primeira fábrica de

412 Alusão ao conto “A raposa e a onça”, recolhido

ferro que se tem notícia no Brasil” (site Instituto

por Couto de Magalhães e publicado no livro

Aço Brasil). O Morro Ibiraçoiaba deve ser o Mor-

O selvagem, em que a raposa engana a onça,

ro de  Araçoiaba ou Morro de Ipanema, próximo

que se fingia de morta, incentivando-a a arrotar: “O defunto meu avô quando morreu arrotou três vezes”.

à cidade de Sorocaba, em São Paulo. 421 Atentar novamente para os assim chamados “erros” de português, como aqui, “por causa que”,

413 O chofer de táxi confunde Macunaíma com

sempre lembrando que eles têm marca estilísti-

uma “francesa” prostituta, como o herói já

ca e que são intencionais, para lembrar a orali-

tinha se fantasiado anteriormente. 414 Referência à conhecida cantiga infantil: “A canoa virou / Pois deixai ela virar / Foi por causa de ‘fulano’ / Que não soube remar”. Mário de

dade e a fala popular, contra a ordem culta. 422 Coisa-ruim, diabo. No poema “Berimbau”, Manuel Bandeira utiliza grafia semelhante: “O Cussaruim bota quebrantos”.

Andrade, além de escritor e folclorista, era

423 Macunaíma inventa um mito da criação do

também músico e gostava muito de coletar

automóvel ou conto etiológico que explica

cantigas e motes populares.

a origem do automóvel. A associação de um

415 Rara cena, no romance, de Macunaíma ob-

produto industrial com elementos da nature-

servando o amor entre outros, de forma con-

za revela uma visão ao mesmo tempo ingênua,

templativa e satisfeita.

poética e surreal.

416 Pereira da Costa, no seu Folclore pernambu-

424 Em uma das sagas colhidas por Koch-Grünberg,

cano (1908), e João Ribeiro, no seu O folclore

Piaimã tinha orelhas furadas, encontra um ho-

(1919), registram fórmulas versificadas de se

mem pescando e manda-o enfiar suas pernas

pedir ou filar cigarro.

nos buracos de suas orelhas. Já dentro de casa,

417 Em 24 de maio de 1927, Mário de Andrade en-

o gigante manda o homem se balançar num

comendou ao artesão Antônio do Rosário, de

cipó e, quando ele balança, o gigante lhe dá

Belém, Pará, objetos de tartaruga, conforme

uma paulada, seu sangue escorre e a mulher o

registra no livro O turista aprendiz.

mata. Piaimã faz isso com várias pessoas, até

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que ele mesmo acaba por cair no buraco que armava para os outros. 425 No conto  “O Ĩcá”, dos indígenas Kaxinawá,

428 Cavalcanti Proença vê semelhanças entre esse estratagema de Macunaíma e o conto “João e Maria”, em que as crianças pedem à bruxa, que

esse diabo convidava os Kaxinawá para brin-

pretende comê-los, que dance para eles e “os

carem em um balanço e depois os comia. A

dois pequenos atiram-na na fogueira”, confor-

japecanga é uma trepadeira de caule cheio de

me a versão recolhida por Sílvio Romero no

espinhos.

Rio de Janeiro e em Sergipe.

426 No conto “Os diabos”, dos indígenas Kaxinawá,

429 Final extremamente engraçado e inesperado

recolhido por Capistrano de Abreu, os diabos

para o grande vilão do romance. Depois de

moram em uma lagoa grande onde criam sucu-

todos os esforços de Macunaíma, conside-

ris e jacarés (entre outros animais), ou “cobras e

rando praticamente impossível a derrota do

lagartos”, como se costuma dizer. “Comer cobra”, “engolir cobra”, “ficar cobra” e “virar cobra” são locuções tradicionais no Brasil para dizer “ficar com raiva”, “ficar furioso”.

herói, ele acaba matando-o de forma fácil e até ridícula. 430 Alusão a uma frase do conto “Os três cisnes”, recolhido por Lindolfo Gomes (1875-1953) e

427 Parlenda de que há muitas variantes, como

publicado no livro Contos populares brasileiros:

esta, recolhida em Pernambuco por Sílvio

“Retrato, retrato de minha bela, vejo-te, só não

Romero e publicada no livro Cantos populares

vejo a ela”. Nesse conto, a mesma frase é repe-

do Brasil: “Bão-ba-la-lão, / Sinhô capitão, / Na

tida mais duas vezes, referindo-se a relógio e

terra do mouro / Morreu seu irmão, / Cozido e

caixinha.

assado / No seu caldeirão”.

15 A PACUERA DE OIBÊ 431 É muito significativo o fato de Macunaíma

um afogado, deita-se no rio uma vela acesa

transformar a cidade de São Paulo inteira num

dentro de uma cuia” e, onde parar, aí estará o

bicho-preguiça, atributo que melhor o carac-

cadáver. Aqui, parece que a expressão luzinhas

teriza e que é diametralmente oposto à cidade,

dos afogados é utilizada no sentido registrado

onde se vive em função do trabalho.

por Basílio de Magalhães no livro O folclore no

432 Macunaíma leva de lembrança de São Paulo

Brasil: “são assim chamados os fogos-fátuos

somente objetos estrangeiros e inúteis na

que aparecem nos brejos. O povo diz que é a

mata: relógio, revólver e galinhas. 433 Lembrar que no capítulo 5 “Foi o [rio] Ara-

alma dos afogados”. 436 Recriação de uma “cantiga do macuru” (can-

guaia que facilitou-lhes a viagem” para São

tiga de ninar ou acalanto) recolhida por João

Paulo.

Barbosa Rodrigues e publicada no seu livro

434 Como se Macunaíma já tivesse aprendido alguns hábitos urbanos, anotava melhorias que poderiam ser empregadas na floresta.

Poranduba amazonense. 437 Recriação de outra cantiga do macuru recolhida por João Barbosa Rodrigues.

435 Segundo Pereira da Costa citado por Caval-

438 O padre Simão de Vasconcelos (1597-1671), no

canti Proença: “Para encontrar-se o corpo de

livro Vida do venerável padre José de Anchieta

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(1672), conta que, em uma viagem de canoa

nas um olho, centralizado na testa. Diz-se

de Beritioga (Bertioga) a Santos, Anchieta

também que a boca do Mapinguari termina

teria falado ao “capitão” de “um bando de pás-

na barriga e que o odor que ele exala na mata

saros por nome goarases” (guarás): “Eropita

é insuportável. Mede 1,80 m aproximada-

de boyaimorebo”, que quer dizer “faze parar

mente, sua pele é igual ao couro de jacaré e

teus companheiros aqui sobre nós”, ao que as

os pés são idênticos a mãos de pilão. Devora

aves teriam se reunido sobre a canoa, voando,

caçadores.” (site Tesauro de Folclore e Cultura

formando um pavilhão e protegendo do sol forte os ocupantes da canoa.

Popular Brasileira.) 447 Segundo Cavalcanti Proença, oibê é uma va-

439 Fórmula popular infantil usada para manter em

riante da cobra-grande (ou boiuna) amazônica.

silêncio um grupo: “Vaca amarela / Cagou na pa-

448 Segundo Luís da Câmara Cascudo, o minho-

nela / Quem falar primeiro / Come a bosta dela”.

cão é “serpente gigantesca, fluvial e subterrâ-

440 Alusão a cantigas indígenas recolhidas por

nea, vivendo no rio São Francisco”.

João Barbosa Rodrigues e publicadas no livro

449 Dedo indicador.

Poranduba amazonense.

450 Por todo o Brasil, há referências a morros soan-

441 Versos de uma moda de viola recolhida por

tes. Notar que grande parte da estrutura do

Amadeu Amaral (1875-1929) e publicada no li-

romance é composta por fugas e perseguições.

vro Tradições populares (1948).

451 Francisco de Mendonça Mar (1657-c.1722), no

442 Macunaíma sente ciúmes de Ci, que está no

ano de 1688, foi encarregado de pintar o palácio

céu, transformada em estrela, e também das

do Governador Geral do Brasil, na Bahia. Em lu-

mulheres com quem esteve em São Paulo. Ma-

gar de receber o pagamento, foi levado à cadeia

cunaíma, enfim, quer tudo e todas.

e cruelmente açoitado. Resolveu então deixar

443 Quando o herói encontra Ci, ela também está sentada nas raízes de uma samaúma. 444 O bicho Pondê é personagem do conto “O bi-

tudo e dedicar sua vida a Deus. Em uma gruta na atual cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, em 1691, deu origem ao santuário que até hoje

cho Pondê”, recolhido por Lindolfo Gomes e

é um local de peregrinação. Foi ordenado padre

publicado no livro Contos populares brasileiros.

em 1706 e ficou conhecido como padre Francis-

Nesse conto, o bicho Pondê quer comer uma criança. Jurucutu é uma espécie de coruja e

co da Soledade. 452 “Guarde esta data: 1927! Acabo de inventar a

também o nome de uma ilha do rio Solimões.

fotografia”, em francês. Hércules Florence (1804-

Antigamente essa coruja era um gigante que

1879), desenhista da expedição Langsdorff, real-

comia os filhos dos indígenas Muras, confor-

mente inventou a fotografia nos anos 1830, na

me a lenda “Moytyma uipurungaua (A origem

cidade de Campinas, interior de São Paulo, mas

da plantação)”, recolhida por João Barbosa

essa descoberta só foi mais divulgada a partir de

Rodrigues e publicada no livro Poranduba amazonense.

um artigo de Boris Kossoy publicado em 1977. 453 Trecho de canto que aparece no conto popular

445 Segundo Ermano Stradelli (1852-1926): “No [rio]

“A madrasta”, recolhido por Sílvio Romero em

Japurá dizem que enfiam a cabeça desta for-

Sergipe e publicado no livro Contos populares do

miga [curupé] na ponta da flecha, para não

Brasil, em que uma madrasta enterra vivas suas

errarem o alvo”.

duas enteadas embaixo de uma figueira, local

446 “Ser mitológico com corpo coberto de pelos, semelhante a um grande macaco, e com ape-

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onde cresce capim. Quando o capim é cortado, ele canta e conta a história das meninas.

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454 Essa estratégia de Macunaíma é inspirada no

458 O carrapatu é personagem de uma cantiga

conto “O jabuti e a onça”, recolhido por Couto

de ninar recolhida por Pereira da Costa: “Calai,

de Magalhães e publicado no livro O selvagem.

menino, calai / Calai que lá vem tutu, / Que no

455 Alusão ao conto “A onça, o veado e o macaco” (recolhido por Sílvio Romero em Sergipe e pu-

mato tem um bicho / Chamado carrapatu”. 459 Iporanga é um município do estado de São Pau-

blicado no livro Contos populares do Brasil), em

lo conhecido como “Capital das Cavernas”. “De

que a onça manda o veado e depois o macaco

acordo com o cadastro nacional da Sociedade

comerem as frutas verdes, dizendo-lhes que

Brasileira de Espeleologia (SBE), [...] são 718 sí-

são as melhores. 456 “Desatar o punho da rede” é uma locução tradicional no Brasil que significa fugir. 457 Na narrativa “O cataclismo”, dos indígenas Kaxinawá, recolhida por Capistrano de Abreu, “a cobra grande borboleta deu”. Aqui, Oibê vira cachorro-do-mato e de sua barriga sai uma borboleta-azul.

tios espeleológicos cadastrados [no estado de São Paulo] [...]. Do total, 441 ficam no município de Iporanga e outros 80 em Apiaí, o que faz do Petar [Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira] a área com maior concentração de cavernas no país” (site da Prefeitura de Iporanga). 460 Mais uma vez os personagens se transformam em estrela.

16 URARICOERA 461 O broto de abacate é utilizado na Amazônia para combater a tuberculose. 462 O próprio Mário de Andrade, certa vez, escre-

donça Furtado (1751-1759), irmão do marquês de Pombal, que edificasse uma fortaleza nas margens do rio Branco, mas a construção só

veu: “o escritor destas linhas, com alguma fa-

foi iniciada entre os anos de 1775 e 1776. As ruí-

ringite, vai passando bem, obrigado” e retoma,

nas do Forte são um sítio arqueológico tom-

no poema “Louvação da Tarde”: “... Toda dor

bado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e

física azulou... Meu corpo, / Sem artritismos,

Artístico Nacional – Iphan.

faringites e outras / Específicas doenças pau-

465 Aparecem, aqui, várias cenas que traçam uma

listanas, / Tem saúde de ferro”. A faringite era

espécie de reconstituição do próprio romance

comum na cidade de São Paulo.

e que vão ajudar a compreender um dos possí-

463 De acordo com Cavalcanti Proença, a fór-

veis sentidos de seu final.

mula “sinhá dona” é um tipo de frase fixa do

466 João Ramalho é um colono português. Quando

cancioneiro popular brasileiro e aparece em

Martim Afonso de Sousa aportou em São Vicen-

inúmeras cantigas, antecedendo um pedido,

te, por volta de 1532, encontrou João Ramalho,

um relato, um favor.

que aqui vivia há muitos anos.

464 O Forte de São Joaquim do Rio Branco foi

467 João Ramalho casou com Bartira, filha do

construído na confluência dos rios Uraricoera

cacique Tibiriçá, com quem teve muitos fi-

e Tacutu, no atual município de Bonfim, em

lhos. É interessante notar, aqui, que é como

Roraima. A Provisão Régia de 14 de novembro

se ambos estivessem fundando uma nova

de 1752 determinava ao governador e capitão--general do Pará, Francisco Xavier de Men-

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nação, lembrando cenas bíblicas de renascimento.

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468 Com este romance, entre outras coisas, Mário

480 Domingos Jorge Velho, bandeirante famoso

de Andrade tinha a intenção de refletir não

por ter destruído o Quilombo dos Palmares,

somente sobre o Brasil, mas também sobre a

em Alagoas, entre 1695 e 1697.

América do Sul como um todo, daí Macunaíma

481 Zumbi dos Palmares (1655-1695), líder do Qui-

ter resgatado a consciência de um sul-america-

lombo dos Palmares. Em 1996, por meio da Lei

no e ter se dado “bem” do mesmo jeito.

n0. 9.315, seu nome foi inscrito no “Livro dos He-

469 Colocar a orelha no chão para ouvir ruídos é um

róis da Pátria”, que se encontra no Panteão da

hábito conhecido entre vários povos indígenas.

Liberdade e da Democracia, em Brasília. A Lei

470 Extraído de Koch-Grünberg, da saga de “Etetó

n0. 12.519, de 2011, instituiu o Dia Nacional de

– Como Kasana-Pódole, O Urubu-Rei, recebeu

Zumbi e da Consciência Negra, a ser comemo-

a segunda cabeça”. Aqui aparecem o feiticei-

rado em 20 de novembro, data de falecimento

ro Ziló, a cabaça encantada, os peixes e Paluá

do líder negro.

(aqui Padzá). 471 A expressão “cadê” vem de “quede”, “que é de”, “onde está”. 472 X.p.t.o., abreviatura de Cristo, por erro de lei-

482 Também na floresta, assim como aconteceu na cidade, Macunaíma pragueja contra o trabalho e a submissão das pessoas a ele. 483 Nome de um boi cantado em romance popular

tura da palavra grega Xpistos, que significa

recolhido por Sílvio Romero. Mário de Andra-

o ungido. Essa sigla é utilizada com o sentido

de recolheu inúmeros documentos folclóricos

de ótimo. Essa parte do romance também é

coligidos em uma pasta intitulada “As melo-

extraída das sagas coletadas por Koch-Grün-

dias do boi”, sob a guarda do Instituto de Estu-

berg, sobre uma praga para um anzol envene-

dos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

nar um cunhado, que apodrece e morre.

Entre eles, o “Boi Espácio”, segundo Mário de

473 Macunaíma já tinha matado a mãe e acabou

Andrade, “um romance legítimo, de incontes-

por matar também o irmão. 474 Também esse trecho, sobre a sombra, é extraído das sagas coletadas por Koch-Grünberg. 475 Crença popular de que, antes de uma pessoa morrer, ela tem uma súbita e inesperada melhora. 476 Superstição de que, se um doente passa sua enfermidade para sete pessoas, ele se cura.

tável caráter sertanejo”, versão quase idêntica à recolhida por Sílvio Romero. 484 Recriação de “Baiano do Boi”, recolhido por Mário de Andrade na Fazenda Bom Jardim. A primeira quadra é assim: “Meu boi bunito / Boi Aligria, / Istrela do Norte, / Fulô do dia!”. 485 Recriação de cantiga de roda, com a substitui-

477 Epidemia de gripe que ocorreu no Rio de Janei-

ção de Piauí, por Bom Jardim, distrito criado

ro, em 1780, e que afetava o sistema nervoso e

pela Lei Provincial n0. 635, de 4 novembro de 1867,

locomotor.

subordinado ao município de São Leopoldo. É o

478 Todos morrem e Macunaíma fica sozinho,

atual município de Ivoti, no Rio Grande do Sul.

sem ninguém que faça as coisas por ele e

Bom Jardim é também o nome de uma fazenda

para ele.

em Goianinha, Rio Grande do Norte, onde Má-

479 Alusão à lenda “Os tatus brancos”, sobre indígenas pigmeus, de pele branca, antropófagos,

rio de Andrade ficou hospedado em 1928 e recolheu várias cantigas do Bumba meu boi. Hoje a

“trogloditas, ou habitantes das cavernas, notí-

Fazenda Bom Jardim é um ponto turístico.

vagos como as corujas”, do livro Lendas e tradi-

486 Recriação de quadrinha recolhida por Mário de

ções brasileiras (1917), de Afonso Arinos de Melo

Andrade, do Rancho do Boi de São Gonçalo (mu-

Franco (1868-1916).

nicípio de São Gonçalo), na praia de Redinha, em

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Natal, Rio Grande do Norte, com a substituição de  “Gigante” por  “giganta”. 487 Forma tradicional de terminar histórias: “entrou por uma porta e saiu pela outra, quem quiser que conte outra”.

488 Notar que, no final do romance, os personagens que sobram e que estão contentes são os urubus, com toda sua simbologia. 489 Locução tradicional no Brasil que quer dizer “antigamente”.

17 URSA MAIOR 490 Referência à atual Guiana.

no Brasil para conotar o mundo como um lu-

491 Alusão ao ditado “papagaio come milho, peri-

gar de sofrimentos.

quito leva a fama”. Na “Saga de Kalawunseg, o

499 Esse trecho lembra o trecho em que Ulisses, na

mentiroso”, coletada por Koch-Grünberg, ele

Odisseia, resiste ao canto sedutor das sereias.

vai à Guiana comprar uma espingarda e os pa-

Inúmeras lendas remetem a cantos irresistí-

pagaios que o acompanham transformam-se

veis, vindos das profundezas das águas, que

em periquitos.

encantam o herói, mas têm a intenção de de-

492 Esse papagaio, que repete as histórias conta-

vorá-lo. Macunaíma, aqui, se deixará seduzir

das por Macunaíma, terá função importante

pelo “ouro e prata”, lembrando a portuguesa

no epílogo.

que o seduziu, quando Vei, a Sol, pediu que ele

493 Emoron-Pódole, o Pai do Sono, já citado no capítulo 14, é um dos mitos Taurepang recolhido por Koch-Krünberg.

prometesse esperar por uma de suas filhas. 500 Uiara é a mãe-d’água, sereia, figura importante do folclore brasileiro.

494 O versos  “Do meu rabo fiz navalha; / Da na-

501 Referência à personagem de José de Alencar:

valha fiz sardinha; / Da sardinha fiz farinha;

“Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha

/ Da farinha fiz menina; / Da menina fiz ca-

os cabelos mais negros que a asa da graúna, e

misa; / Da camisa fiz viola; / Frum, fum, fim, / Vou para a minha escola” aparecem no

mais longos que seu talhe de palmeira”. 502 Sem poder contar com a ajuda de Maana-

conto “O rabo do gato”, recolhido em Coim-

pe, Macunaíma precisa colar seus pedaços

bra, Portugal, por Francisco Adolpho Coelho

sozinho.

(1847-1919) e publicado no livro Contos populares portugueses (1879).

503 O Ururau tem a forma de um enorme jacaré-de-papo-amarelo. A lenda do Ururau

495 Segundo João Barbosa Rodrigues, o tinkuan é a

da Lapa é considerada Patrimônio Cultural

metamorfose do Saci em ave; também conhe-

e Imaterial do município de Campos dos

cido como alma-de-caboclo e alma-de-gato. 496 No conto “A primeira noite”, dos indígenas

Goytacazes, no Rio de Janeiro (Resolução n 0. 001/2011).

Kaxinawá, recolhido por Capistrano de Abreu,

504 Outra alusão a uma frase do conto “Os três cis-

a manhã, a noite, o sol e o frio foram tirados

nes”, recolhido por Lindolfo Gomes e publicado

de buracos.

no livro Contos populares brasileiros. Nesse con-

497 Alguns gafanhotos produzem ao voar um ruído que se assemelha ao de sininhos. 498 “Vale de lágrimas” é uma locução tradicional

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to, a princesa é chamada de “ingrata”. 505 Na “Lenda das miosótis”, recolhida por Lindolfo Gomes e publicada no livro Contos populares

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brasileiros, essa flor teria nascido a partir das lágrimas de Nossa Senhora.

numento, um ser passivo, fora da dinâmica do tempo e da natureza.

506 Delmiro Gouveia (1863-1917), industrial brasi-

509 Segundo Cavalcanti Proença, alusão a uma ane-

leiro, pioneiro da industrialização no Brasil,

dota: um avarento vai a um restaurante e pede

construiu a segunda hidrelétrica brasileira, na

um ovo quente. Ao tomá-lo, percebe que den-

cidade de Pedra, atual Delmiro Gouveia, em

tro há um pintinho piando. Engole do mesmo

Alagoas. Mário de Andrade escreveu sobre ele

modo, apenas comentando: “tarde piaste”.

a crônica “O grande cearense”, publicada no

510 Crendice popular de que o número treze dá azar.

livro Os filhos da Candinha.

511 Alusão a um contrafeitiço recolhido por João

507 Notar a importância do adjetivo “inútil”. As

Barbosa Rodrigues no rio Tapajós e publicado

estrelas teriam um brilho inútil porque não

no seu livro Poranduba amazonense: para que-

são objetos que podem ser comercializados e

brar um encanto do Currupira, deve-se fazer

gerar lucro, riqueza, dentro da lógica da pro-

pequenas cruzes de kauré (uma leguminosa

dução capitalista. Em certo sentido, a própria

de casca aromática, empregada em banhos)

literatura é inútil, porque produz objetos que não servem para fazer algo, mas para a bele-

e atirar pelas costas. 512 Em O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macu-

za, o prazer estético e, principalmente, para

naíma, Gilda de Mello e Souza chama a aten-

o que o crítico literário Antonio Candido cha-

ção para o fato de que a Ursa Maior é uma

mou de “humanização”, no seu ensaio O direito à literatura, publicado na terceira edição do livro Vários escritos (1995). 508 Novamente, uma das frases mais importantes

constelação do Hemisfério Norte. 513 Referência a Robert Lehmann-Nitsche (18721938), que, na obra Mitologia sudamericana, identifica o Saci à Ursa Maior.

do romance. Macunaíma não quer ser um mo-

EPÍLOGO 514 Fórmula popular para concluir a narração oral de histórias. 515 Alusão a cantiga ou parlenda de que existem muitas variantes: “Uma mãe pariu dez filhos / Todos dentro de um pote / Deu tangolomango neles / Não ficaram senão nove”. De quadra

516 Em vários povos indígenas, o guanumbi ou beija-flor é um mensageiro do além, que traz mensagens dos mortos. 517 “Bilu-bilu teteia” é brincadeira tradicional feita com crianças. 518 Alusão a uma cantiga de roda de origem por-

em quadra vão morrendo todos os filhos. Dar o

tuguesa: “Papagaio louro / De bico dourado /

tangolomango significa morrer. Segundo Afrâ-

Leva-me esta carta / Ao meu namorado”.

nio Peixoto, no livro Miçangas: “Tango-romango

519 O papagaio nas solidões do rio Uraricoera lem-

deu tango-romango nele, morreu. Mal súbito e

bra uma história recolhida pelo naturalista e

imprevisto, talvez por feitiçaria; é de origem

explorador alemão Alexander von Humboldt

africana. Doença que faz definhar sem remé-

(1769-1859) e recontada por Theodoro Sam-

dio: está com tango-romango, não há quem

paio na sua obra O tupi na geografia nacional:

lhe dê volta”.

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“Humboldt, viajando pelas águas do Orinoco,

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refere-nos, como uma lenda pungente, a his-

520 Já frei Vicente do Salvador, na sua História do

tória de um papagaio sobrevivente à extinção

Brasil, escrevia que os povoadores do Brasil

de toda uma tribo selvagem a quem essa ave

“por mais arraigados, que na terra estivessem,

pertencera. Ficara ele só, o papagaio, único

e mais ricos que fossem, tudo pretendiam

naquelas paragens, a repetir as vozes bárba-

levar a Portugal, e se as fazendas e bens que

ras da língua dos Aturés, desaparecida, havia

possuíam soubessem falar também lhes ha-

tempo, com o último representante da tribo

veriam de ensinar a dizer como os papagaios,

dizimada pela peste. Pousada sobre as ruínas

aos quais a primeira coisa que ensinam é pa-

da aldeia extinta, solitária e triste, a ave fiel

pagaio real para Portugal; porque tudo que-

cortava o silêncio daquelas solidões, mono-

rem para lá, e isto não tem só os que de lá vie-

logando um idílio talvez, naquela linguagem

ram, mas ainda os que cá nasceram, que uns

que ninguém mais compreendia; era um fan-

e outros usam da terra, não como senhores,

tasma diante do qual, céleres nas suas canoas,

mas como usufrutuários, só para a desfruta-

passavam aterrorizados os novos dominado-

rem, e a deixarem destruída.”

res da terra dos Aturés”.


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souza, Gilda de Mello e. O tupi e o alaúde: uma interpretação de Macunaíma. São Paulo: Duas Cidades, 1979. stradelli, Ermano. Vocabularios da lingua geral portuguez‑nheêngatú e nheêngatú-portuguez, precedidos de um esboço de Grammatica nheênga-umbuê-sáua mirî e seguidos de contos em lingua geral nheêngatú poranduua. Revista do Instituto Historico e Geographico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 104, v. 158, 1929. Disponível em: <www.etnolinguistica.org/biblio:stradelli-1929-vocabularios>. Acesso em: 1º jul. 2016. tesauro de folclore e cultura popular brasileira. Disponível em: <www.cnfcp.gov.br/tesauro/>. Acesso em: 4 jul. 2016. vasconcelos, Padre Simão de. Vida do venerável padre Ioseph de Anchieta da Companhia de Iesv, tavmatvrgo do Nouo Mundo, na Prouincia do Brasil. Lisboa: Officina de Ioam da Costa, 1672. Disponível em: <www.brasiliana.usp.br/handle/1918/01831100>. Acesso em: 30 jun. 2016. worrall, Simon. Amazon Warriors Did Indeed Fight and Die Like Men. National Geographic, 1996-2015. Disponível em: <http://news. nationalgeographic.com/news/2014/10/141029-amazons-scythianshunger-games-herodotus-ice-princess-tattoo-cannabis/>. Acesso em: 4 jul. 2016.

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SOBRE O AUTOR

mário de andrade Mário de Andrade é considerado pelos críticos Antonio Candido e José Aderaldo Castello “o espírito mais vasto do Modernismo; o mais versátil e culto, o que maior influência exerceu pelos escritos, pela atuação de homem público, pela irradiação pessoal e pela enorme correspondência [...].”* Intelectual de múltiplos ofícios, foi escritor, crítico, musicólogo, viajante, fotógrafo e colecionador. Escreveu poesia, romance, rapsódia, conto, crônica, ensaio, cartas. Entre seus correspondentes estão Henriqueta Lisboa, Tarsila do Amaral, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Luís da Câmara Cascudo. Nasceu em 1893, em São Paulo, na casa de seu avô materno, na rua Aurora. Concluiu o curso secundário no Ginásio de Nossa Senhora do Carmo, dirigido pelos irmãos maristas, em 1909. No ano seguinte, tentou seguir a profissão do pai, contador, e matriculou-se na Escola de Comércio Álvares Penteado, mas se desentendeu com o professor de português e abandonou o curso. Em 1917, formou-se em piano e fez sua estreia literária com o livro Há uma gota de sangue em cada poema, com o pseudônimo Mário Sobral. Em 1919, tornou-se irmão da Ordem Terceira do Carmo. Seu segundo livro, também de poesia, Pauliceia desvairada, é considerado o marco inicial do Modernismo brasileiro, com a Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo, em 1922, da qual participou intensamente.

* candido, Antonio; castello, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: III. Modernismo. 9. ed. Rio de Janeiro: Difel, 1983. p. 86.


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Em janeiro de 1935, foi criado o Departamento de Cultura da cidade de São Paulo. Mário de Andrade dirigiu esse departamento até 1938. Entre suas ações, criou quatro parques infantis para filhos de proletários e a Missão de Pesquisas Folclóricas que, entre fevereiro e junho de 1938, realizou pesquisas em quatro estados: Pernambuco, Paraíba, Maranhão e Pará. Em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan) pelo então presidente Getúlio Vargas. O decreto nº 25 é considerado uma cópia do texto do projeto de Mário de Andrade. Nesse ano, Mário se tornou funcionário público federal, como Assistente Técnico da Regional do Sphan em São Paulo. Em 1942, no Palácio Itamaraty, no Rio de Janeiro, Mário de Andrade fez a conferência O movimento modernista, realizando um balanço do movimento. Defendia “o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de uma conciência criadora nacional.”** Se o leitor estranhou a “conciência”, justificamos com as palavras do próprio Mário: “[...] jornais e revistas ainda continuarem naquela subserviente covardia de, agradar a magra dieta espiritual de seus leitores, corrigirem os ‘erros’ de gramática dos artistas. Deixo aqui o meu protesto.”*** Faleceu em 1945, de enfarte, em sua casa na rua Lopes Chaves, atual Oficina Cultural Casa Mário de Andrade. Sua biblioteca, de 17 624 volumes e sua coleção de artes visuais, de 1 234 peças, além de 30 mil manuscritos pertencem hoje ao Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo.

** andrade, Mário de. Aspectos da literatura brasileira. 5. ed. São Paulo: Martins, 1974. p. 242. *** Idem. p. 4.


SOBRE AS COLABORADORAS

mariana zanetti Nasci, cresci e vivi a maior parte da minha vida em São Paulo. Aí estudei arquitetura, me interessei pelo desenho, pela pintura, pela cidade e sua forma estranha de crescer e se configurar. Já graduada pela fauusp, depois de trabalhar um pouco com mobiliário, teatro e cinema, que são também formas de usar o desenho, me interessei pelo livro como suporte para minhas invenções gráficas. E esse interesse só fez crescer. Há três anos, depois de toda uma vida morando apenas em São Paulo, em busca de novos ares, me mudei para Berlim, na Alemanha. Aqui, uma coisa interessante aconteceu: me deparei com uma natureza um tanto diferente da nossa. As árvores, com folhas delicadas, que no outono parecem emitir luz com suas cores cítricas, no inverno ficam peladas, revelando estruturas às quais nunca havia me atentado e, na primavera, explodem em flor, para novamente recomeçarem seu ciclo. Para mim todas essas mudanças e delicadezas são deslumbrantes. Mais de um ano depois, viajando ao Brasil, aconteceu algo ainda mais interessante: eu me deslumbrei com a nossa vegetação, aquela mesma que eu vi a vida inteira e, de tanto ver, me acostumei. As folhas gigantescas, as cores escuras, claras, pintadas, listradas, nas mais diversas e bizarras formas, quase um escândalo! Uma redescoberta! Ah, que coisa maravilhosa! Que prato cheio para desenhar! Por uma sorte imensa, tive a chance de ilustrar Macunaíma já tendo sido tocada por esse deslumbre renovado. E já tendo vivência e distância de São Paulo bastantes para reconhecer na cidade que Mário de Andrade descreveu na década de 1920, a mesma que vivi tanto tempo depois.


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Eu já havia lido Macunaíma há muitos anos, quando ainda estudava arquitetura. De lá pra cá, li e vi muitas outras coisas que me fizeram entender melhor esse livro tão rico, engraçado, verdadeiro, atemporal, tão pleno de significados que dizem tanto sobre nós. Foi também uma redescoberta. Essas duas redescobertas, combinadas com as invenções que somente o desenho permite, são as ilustrações desta edição.


noemi jaffe Meus pais vieram da antiga Iugoslávia, atual Sérvia, e, quando eu nasci, em 1962, falavam-se várias línguas na minha casa. Além de sérvio e português, minha avó falava hebraico e alemão, minha mãe húngaro e o restante da família ídiche, dialeto judaico europeu. Cresci, portanto, em meio a uma babel que me fez amar as palavras e suas origens. Além disso, meus pais, por terem sido prisioneiros de guerra, contavam muitas histórias, o que favoreceu meu gosto pelas leituras, em que eu encontrava personagens que, de alguma forma, se assemelhavam ao que eu ouvia deles e, ao mesmo tempo, me permitiam fugir de uma realidade que eu intuía como difícil. Tudo isso me fez escolher o curso de Letras, por isso estudei português, inglês e russo e me direcionei para a educação, tendo sido professora de Literatura Brasileira por mais de 25 anos. Foi somente aos 43 anos que publiquei o primeiro livro de ficção, Todas as coisas pequenas. A partir de então, não parei mais, mas não consigo separar a carreira de professora do trabalho como escritora. Macunaíma sempre foi um dos romances mais complexos de ensinar, por todos os desafios lexicais, gramaticais e literários que ele representa. Nunca quis que o livro fosse usado como mera ilustração de um período, um autor, uma vanguarda. Ele transcende tudo isso, subsistindo, como acontece com outras obras, como um símbolo que pode, permanentemente, ensinar ao brasileiro quem ele é e quem ele pode ser. Escrever o posfácio e as notas para esta edição é parte de um desejo e de um sonho de que os estudantes leiam Macunaíma mais e melhor e que a leitura seja uma prática que permita melhorar a vida de todos.


Produção gráfica

Avenida Antônio Bardella, 300 - 07220-020 GUARULHOS (SP) Fone: (11) 3545-8600 e Fax: (11) 2412-5375

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