Medéia o amor louco

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O ROMPIMENTO

N

a solidão do palácio, o silêncio é rompido apenas pelos gemidos de Medeia. E, à medida que rompe a resistência do peito, o pranto sentido atravessa as paredes da câmara íntima, inundando as demais dependências com vagas de dor e frustração. Bem que a velha ama gostaria de poder ajudá-la, mas sabe que desta vez será impossível. Não há sob os céus uma única maneira de tornar menores o sofrimento e a vergonha de Medeia. Por isso, quem sabe, ela entrara na câmara de forma sorrateira, permanecendo calada diante dos panos coloridos que cercam o leito onde veio se aninhar a desgraça.


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Se pudesse parar a marcha do tempo, voltar atrás, desfazer tudo, se pudesse vislumbrar o destino reservado para Medeia... Ainda assim, talvez, sua senhora seguisse sem hesitar, preferindo a perdição. Acaso não testemunhara, ato após ato, a paixão louca que devotara ao marido? Ah! Se fosse possível reescrever a história dessa vida e mudar seu enredo estúpido!... Jasão não subiria nunca a bordo do Argos, não conheceria jamais as terras da Cólquida. Pélias enviaria Jasão para países diversos, em vez de exigir-lhe o velocino de ouro. E a doce Medeia de então, livre da volúpia, não se perderia de paixão pelo herói. O povo de Corinto fora testemunha da felicidade passageira, quando Medeia e Jasão dividiam o leito de amor, dando vida aos filhos da paixão. Agora, tudo se tornara passado. Virando as costas ao amor da mulher, Jasão enamorou-se da filha de Creonte. – Os deuses são testemunhas... Ofereci tanto amor e Jasão me pagou com a traição. No lado opos­to das cortinas, que o vento balançava levemente, a ama molhava o rosto enrugado, fazendo coro às lágrimas da senhora. E ouvia a custo as palavras com que a mulher infeliz se lamentava sem dar tréguas: – Onde está a mão que ele me ofereceu um dia? Onde andam os deuses que ignoram semelhante ultraje? Abandonada em seu leito, Medeia não consegue ver nem sentir nada que não seja sua própria dor. Esfregando seguidamente o rosto ainda jovem contra os travesseiros, ela se castiga por ter depositado tanta confiança no homem que a abandonaria sem nenhuma hesitação. A ama pressentiu um movimento vago às suas costas. Sem ruído, girou o tronco, e, percebendo a presença do velho escravo, deixou a câmara, acompanhando-o até o pátio interno, ao ar livre, onde as crianças examinavam o que fora a vivenda de um enorme caramujo. – Como está a senhora? – indagou o escravo, ansioso. – Como poderia estar? – respondeu a ama, de forma dúbia. E explicou: – Ela não se conforma. Não entende como o marido pôde deixá-la. – Ela saiu da cama?


Medeia: o amor louco

A velha respondeu com um muxoxo que significava não e acrescentou: – Desde que soube da notícia, não deixa a câmara nem se alimenta. A única coisa que faz é chorar. Está se consumindo em lágrimas. – Como se adiantasse... Até quando ela vai chorar? – Não sei. Ela está se sentindo muito ofendida. – Nem podia ser diferente. Ela abandonou a família para seguir Jasão e depois acontece uma coisa dessas. – Pois é... Imagine quanto dói deixar sua cidade, seu povo, seu pai, a casa onde nasceu, para seguir um homem, e depois... depois se ver abandonada com os filhos. Você consegue imaginar? O homem pensou um tanto e propôs: – Na sua cidade, na casa de seu pai, talvez a dor doesse menos. De pé, um diante do outro, o casal de velhos calou-se por um instante, enquanto observavam os filhos daquela infeliz união, entretidos com o caramujo marinho. – O que será dessas crianças? – indagou o escravo, rompendo o incômodo silêncio da ama. – É difícil o destino de quem se cria sem pai. A ama não se moveu de sua posição. Com os olhos pregados na movimentação das crianças, dava a impressão de não ter sequer ouvido. Quando o homem pensava em acrescentar algo, ela falou sussurrando, como se temesse ser ouvida: – É disso que tenho receio. Conheço a senhora desde menina, praticamente desde que nasceu. Foi sempre caprichosa, agressiva até. Duvido muito que deixe sem resposta tamanha injúria. – O que você está imaginando? – perguntou o homem, preocupado. – Você acha que ela... que ela... – O que eu sei é que nem um mar de lágrimas seria suficiente para devolver-lhe a paz ou fazê-la esquecer tal ofensa. O escravo cravou os olhos negros na figura cansada da velha mas manteve-se em silêncio, como se meditasse sobre as palavras enigmáticas ouvidas há pouco. Por fim, tornou: – A senhora... Ela... Ela seria capaz de tirar a própria vida?

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– Seria – respondeu a companheira, inabalável. E prosseguiu: – No entanto sua morte não provocaria a dor que ela deseja para o marido infiel. – O que você quer dizer com isso? – Ela quer vê-lo com o coração em pedaços, vertendo lágrimas de sangue. – Ela se levantaria contra Jasão? – Seria bem capaz disso. Mas pelo que eu conheço, nem a morte do infiel lhe aplacaria o ódio que domina seu coração. As palavras da ama tinham o poder de desmontar a lógica do ancião. Ele passara para os serviços da senhora há uns poucos anos, enquanto a ama tinha ajudado a criá-la. Por isso, talvez, ele ouvia com reservas o que a ama dizia, embora tivesse provas do gênio explosivo da senhora. As ondas batiam contra os rochedos da praia. Ou seria o vento na copa das árvores? Uma das crianças atirou o caramujo para o ar, aparando-o no monte de areia. O escravo prestou atenção e retomou: – Não consigo imaginar um castigo mais violento que o assassinato. – Eu consigo – devolveu-lhe a ama, virando-se acintosamente na sua direção. – Eu daria minha vida para não ver sofrer uma pessoa amada. Atingido em cheio, o homem ficou sem reação. Examinava e tornava a examinar a mulher à sua frente, como se não a entendesse. E, como continuasse perplexo, ela complementou: – Eu não daria minha vida, daria duas, três, quantas vidas me fosse possível, para que a senhora não tivesse de sofrer tanto. O velho escravo remexeu-se sobre as pernas cansadas e balançou a cabeça, pasmado: – Eu não consigo entender... De que ela seria capaz se nem a sua própria morte ou a do marido fariam Jasão sofrer como ela quer? A ama ignorou a pergunta, limitando-se a acompanhar a movimentação das crianças. Persistiam ambos no silêncio, quando o garoto, de novo, atirou para o alto o objeto da sua atenção. O caramujo veio cair bem junto aos pés do escravo. A irmã, pouco maior, correu a apanhá-lo e devolveu-o da mesma maneira, fazendo a concha girar no espaço.


Medeia: o amor louco

Ao contrário da mãe, que se contorcia no leito, a garota era toda alegria. A ama comentou, sem alterar o tom da voz: – Nada causaria tanta dor a Jasão como o mal que atingisse seus filhos. – Eu... Eu me nego a acreditar! – retrucou o escravo, afastando-se uns poucos passos. – Você acha que Medeia seria capaz de fazer mal aos próprios filhos só para ferir o marido? – Também são filhos de Jasão! – A senhora... Ela... Ela precisaria estar fora do seu juízo perfeito... Precisaria estar louca! – Ela está louca... Louca de dor e de ódio! O escravo examinou a ama, de cima a baixo. Ao final, decretou: – Eu não acredito! Se alguém está fora do seu juízo aqui é você! Como consegue imaginar algo tão terrível? Não, não me diga! Não quero ouvir nem mais uma palavra!

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