O MENINO DA BENGALA IVAN JAF ilustrações JULIANA RUSSO
O MENINO DA BENGALA
O MENINO DA BENGALA IVAN JAF ilustrações JULIANA RUSSO
1ª. edição
São Paulo – 2019
Copyright © Ivan Jaf, 2019 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-XX-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br diretor de conteúdo e negócios Ricardo Tavares de Oliveira gerente editorial Isabel Lopes Coelho editor Estevão Azevedo editora assistente Camila Saraiva coordenadora de produção editorial Letícia Mendes de Souza preparador Huendel Viana revisoras Maria Fernanda Alvares e Ibraíma Dafonte Tavares editores de arte Daniel Justi e Camila Catto supervisora de iconografia Elaine Bueno pesquisador iconográfico Luiz Fernando Botter projeto gráfico e diagramação Flávia Castanheira diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno Ivan Jaf nasceu no Rio de Janeiro em 1957. É formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Juliana Russo nasceu na cidade de São Paulo, em 1976. É formada em Artes Plásticas pela Faap. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) (Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil) Jaf, Ivan O Menino da Bengala: Ivan Jaf Ilustrações: Juliana Russo 1ª. ed. – São Paulo: ftd, 2019. isbn 978-85-96-02374-0 1. Literatura infantojuvenil I. Russo, Juliana. II. Título. 19-26364
cdd-028.5
Índices para catálogo sistemático: 1. Literatura infantojuvenil 028.5 2. Literatura juvenil 028.5 Iolanda Rodrigues Biode - Bibliotecária - crb-8/10014
As histórias deixam sulcos profundos o suficiente para as pessoas seguirem, da mesma maneira que a água segue certos caminhos nas encostas das montanhas. Quando novos atores caminham pelo trajeto da história, o sulco fica mais profundo. Terry Pratchett (1948 - 2015), escritor inglês
INTRODUÇÃO Em dezembro de 2016, uma editora me sugeriu escrever um livro inspirado na obra de Monteiro Lobato. Pensei no assunto. Pensei muito no assunto. Monteiro Lobato é como a ilha de Paquetá, na Baía de Guanabara, aqui no Rio de Janeiro. Todo mundo já foi lá um dia, na infância. Há quantos anos eu não lia um livro dele? Meio século é bastante tempo. O que eu lembrava? Uma imagem. Eu tinha uns oito anos. Estava com os pés dentro de um riacho e cutucava as margens com uma peneira, tentando pegar uns peixinhos prateados que se escondiam embaixo do mato que pendia do barranco. Existiu um sítio na minha infância, num lugar mítico chamado Arcozelo. O riacho cortava o fundo de um vale, e eu ia lá pescar e tomar banho. Naquele dia me foi revelado o poder da fantasia. Eu andava lendo Reinações de Narizinho e, de repente, segurando a peneira, eu era o Pedrinho e estava no Sítio do Picapau Amarelo, e o riacho era o Reino das Águas Claras. Naquele momento, eu havia mudado por dentro, e isso mudava o mundo por fora. Fantasiar não é fugir da realidade. A realidade é apenas um tipo de fantasia no qual entramos para partilhar o senso comum. Realidade é uma casa em que moramos por toda a vida, por hábito, praticidade, conforto e medo. Até que um sujeito como Monteiro Lobato abra a porta e nos leve para passear. Eu havia conservado em mim aquela tarde por meio século! Um riacho comum de repente se transforma em um reino encantado. Embaixo de uma daquelas pedras haveria uma magnífica Sala do Trono, com paredes de corais enfeitadas com musgo verde-claro fresco e pingentes de pérolas. Aquele pequeno caramujo agarrado ao limo, resistindo à correnteza, era um grande médico, que curava todas as doenças com suas famosas pílulas. 7
A pequena aranha junto à margem era uma costureira mundialmente famosa, responsável pelo vestido de casamento de todas as princesas dos contos de fadas. Se eu me abaixasse para olhar os vãos entre as raízes do eucalipto sob a água, veria as dependências de um imenso palácio. Numa delas, guardado por soldados-lambaris, haveria um tesouro de valor incalculável, montanhas de pérolas e pedras preciosas. Ao enfiar a peneira nos cantos escuros das margens e puxá-la, o que eu via agora não eram mais simples peixinhos prateados assustados, mas súditos de uma corte. E entre eles podia estar o próprio Príncipe Escamado! Todas aquelas possibilidades me trouxeram um tipo de alegria que eu nunca havia sentido. Naquele momento a realidade se expandiu e a vida ficou muito mais interessante. Quis conviver com a fantasia o resto da vida. Não só lendo, mas também escrevendo, abrindo minhas próprias fendas nos muros do real, contribuindo para que outras pessoas também entendessem que a realidade é um universo muito maior do que o interior da casa do bom senso. Talvez aquela tarde tenha sido o embrião da minha vocação de escritor. Obrigado, Monteiro Lobato. Acho que eu tenho uma dívida enorme com você, cara. Eu e milhões de brasileiros. Topei a proposta da editora.
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Antes de começar a escrever um livro, sempre pesquiso muito sobre o tema. Pesquisar me dá um imenso prazer intelectual. Um cachorro mastigando um bife não está mais feliz do que eu esgaravatando prateleiras empoeiradas de uma biblioteca esquecida, futucando as estantes de um sebo, abrindo um livro que não é aberto há décadas ou varando noites navegando na internet. Caça ao tesouro perdido. A pesquisa sobre Monteiro Lobato atravessou todo o verão abrasador de 2017. Quando já havia lido uma pilha de livros de mais de um metro de altura, entre biografias e estudos acadêmicos sobre sua obra, e imprimido duzentas páginas de material de internet, fui passar uma semana num chalé na Serra da Mantiqueira. Reli todas as anotações, fiz outras, as ideias giravam em minha mente como as mariposas em volta da lâmpada, mas eu não gostava de nenhuma. O verão e a pesquisa chegavam ao fim sem que eu tivesse a menor noção do que iria escrever. Então me veio a ideia óbvia de ir até o Sítio do Picapau Amarelo. Ele existia fisicamente. Havia até dois deles: um em Taubaté e outro no município de Monteiro Lobato, ambos no estado de São Paulo. Ali perto. Na vertente sul da Serra da Mantiqueira. Monteiro Lobato era neto, por parte de mãe, do Visconde de Tremembé, a figura mais importante e poderosa da cidade de Taubaté na segunda metade do século XIX e primeira década do século XX. Próspero fazendeiro, cafeicultor, criador de gado, empresário, banqueiro e grande acionista de companhias de bonde a vapor, gás e óleos minerais. Lobato nasceu em 1882. Ele e suas duas irmãs, mais novas, foram criados em uma das casas do avô, conhecida como a Chácara do Visconde, em Taubaté. Ali ele morou até os catorze anos, 9
quando então foi estudar em São Paulo. Por ter passado a infância lá, muitos alegam que se inspirou no lugar para criar o Sítio do Picapau Amarelo. Porém existe uma outra versão, outro Sítio. Em 1911, já formado em Direito e trabalhando como promotor público na cidade de Areias, morre o Visconde de Tremembé, e Lobato herda uma de suas fazendas, na localidade de Buquira, na época ainda território de Taubaté. É nessa fazenda que ele se torna escritor. É lá que escreve os contos do livro Urupês e cria o personagem Jeca Tatu. É lá que, pela primeira vez, pensa em escrever para crianças. Ando com várias ideias. Uma: vestir à nacional as velhas fábulas de Esopo e La Fontaine, tudo em prosa e mexendo nas moralidades. Com fabulário nosso, bichos daqui em vez dos exóticos. O que é que nossas crianças podem ler? Não vejo nada. Fábulas assim seriam um começo da literatura que nos falta. É de tal pobreza e tão besta a nossa literatura infantil, que nada acho para a iniciação de meus filhos.
Para corroborar essa aspiração: a descrição do Sítio na obra de Lobato corresponde à Fazenda Buquira, e não à Chácara do Visconde. Logo concluí o óbvio: o Sítio do Picapau Amarelo foi uma mistura dos dois. Memórias de infância e fantasia de adulto. Teria de conhecer ambos. Tudo bem. Como estava perdido, sem saber o que escrever, visitaria trinta Sítios do Picapau Amarelo, nem que fosse para ganhar tempo. De volta à internet. A parte mais antiga de Taubaté, onde se localiza o Sítio, fica na margem direita da rodovia Presidente Dutra, de quem vai do Rio de Janeiro para São Paulo, o que seria o meu caso. São trezentos e quatro quilômetros até lá. A Chácara do Visconde foi fagocitada pela cidade de Taubaté, que a comeu pelas beiradas como um mingau quente, e dos seus quinhentos mil metros quadrados hoje só restam vinte mil, ou seja, ela se tornou um pequeno parque no meio do trânsito, das lojas e dos edifícios. A Fazenda Buquira fica uns cinquenta quilômetros a noroeste de Taubaté, e atualmente pertence ao município de Monteiro 10
Lobato. Também está do lado direito da rodovia Presidente Dutra. Eu teria de entrar por Caçapava, uns vinte quilômetros depois de Taubaté. A fazenda fica na estrada que vai de Caçapava a Monteiro Lobato. Portanto: primeiro a Chácara do Visconde. Calculei uma viagem de dois dias. Saí de carro às seis horas da manhã num dos primeiros dias do outono de 2017. Às 11h20 deixei a Dutra para entrar em Taubaté. Às 11h23 já estava completamente perdido, dentro de uma cidade grande. É uma coisa engraçada e surreal parar o carro e perguntar: — Por favor, o senhor sabe onde fica o Sítio do Picapau Amarelo? Fiz isso várias vezes. Como se tivesse sido convidado pela Dona Benta a passar uma tarde conversando. Como se estivesse indo de carro até a própria infância. Como se fosse um personagem perdido, que Lobato está esperando para colocar no livro. Como um leitor apaixonado que quer entrar na obra do escritor. Como um doido que não sabe a diferença entre fantasia e realidade. Como um amigo de Pedrinho que ele não vê há cinquenta anos. Como se eu pudesse entrar num universo paralelo apenas perguntando aos transeuntes como chegar lá. Quem usa GPS perde experiências muito interessantes. Afinal estacionei numa rua lateral, junto ao muro da Chácara, e entrei, pelo portão dos fundos. Ao contrário da pesquisa em livros, documentos ou na internet, quando vou a lugares não anoto nem fotografo nada. Evito as distrações. Procuro só sentir. Cheiros, visões, imaginar os pensamentos e sentimentos de determinada pessoa quando estava ali no passado. A alma deixa rastros. Uma alma como a de Lobato deixa rodovias federais. Andei pela Chácara do Visconde, parecendo aéreo como um zumbi de barriga cheia, mas ligado em mim mesmo, no que estava captando. A evidente constatação de estar revivendo os passos de Lobato. Tocar no tronco da mangueira gigante, à esquerda do casarão. Lobato também a tocou assim. Caminhar entre as árvores do 11