Os estranhamentos

Page 1

MARTÍN BLASCO

OS

estra nha

men to s

ilustrações de

RAFAELA PASCOTTO



OS

estra

nha men tos


OS estra 1a. edição

São Paulo – 2021

2


nha men tos

MARTÍN BLASCO

tradução de

JOCA REINERS TERRON

ilustrações de

RAFAELA PASCOTTO

3


Copyright da edição brasileira © Editora FTD, 2021 Reprodução proibida: Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998. Todos os direitos reservados à EDITORA FTD Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. 0800 772 2300 www.ftd.com.br | central.relacionamento@ftd.com.br © Martín Blasco, 2013 C/O Agencia Literaria CBQ CL info@agencialiterariacbq.com diretor-geral

Ricardo Tavares de Oliveira Cayube Galas gerente editorial Isabel Lopes Coelho editor Estevão Azevedo editora assistente Bruna Perrella Brito assistente de relações internacionais Tassia Regiane Silvestre de Oliveira coordenador de produção editorial Leandro Hiroshi Kanno assistente de conteúdo Gabriela de Avila líder de preparação e revisão Aline Araújo preparador Huendel Viana revisoras Aline Araújo e Tatiana Sado Jaworski editores de arte Camila Catto e Daniel Justi projeto gráfico Camila Catto diretor de operações e produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno diretor adjunto

Livro selecionado para o catálogo The White Ravens, da Biblioteca Juvenil de Munique, de 2014. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Blasco, Martín Os estranhamentos / Martín Blasco ; tradução Joca Reiners Terron ; ilustrações Rafaela Pascotto. — 1. ed. — São Paulo : FTD, 2021. Título original: Los extrañamientos ISBN 978-65-5742-252-6 ISBN 978-950-46-4419-4 (ed. original) 1. Ficção juvenil I. Pascotto, Rafaela. II. Título. 21-59608

Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura juvenil 028.5 Cibele Maria Dias — Bibliotecária — CRB-8/9427

CDD-028.5


Para Vladi


9 10 13 16 19 21 24 29 31

36 40 43 47 52 53 60

A CHEGADA CASA TOMADA POR QUE NÃO TEMOS GRANA CORTÁZAR E VLADI O CAOS NÃO EXISTE NO CORREDOR PROJETOS DE UM KART COMO A ARTE FUNCIONA SEU MADRUGA (NADA A VER COM O CHAVES) TERRAÇO PARA TRÊS A MÃE DE UMA MÃE AMIGOS OS ESTRANHAMENTOS ESTÁ VINDO O PARQUE A CASA DE NOITE

6


63 64 68 70 72 77 83

TÊNIS PRÊMIOS HOMEM DAS CAVERNAS PERDIDO A OBRA TEM TIME QUIETA, TERRA! UM ESTRANHAMENTO COMO OS DE VLADI

84 A REUNIÃO 92 CAMILA 94 À LUZ DE VELAS 102 UM ESTRANHAMENTO MUSICAL 104 A CORRIDA DOS GUERREIROS

DO SOL

108 DECOLAGEM 117 UM ÚLTIMO ESTRANHAMENTO 120 OCUPAÇÕES URBANAS, por Vinicius Galera 7



a chegada Chegamos à Casa numa noite em que minha mãe estava resfriada. A primeira coisa que chamou minha atenção foi que “a Casa” na verdade não era uma casa, e sim um prédio, um prédio muito antigo, com portas altíssimas que pareciam destinadas a gigantes. Lucy abriu a porta para nós. Tinha uma família dormindo no lugar que antes era a antiga recepção: marido, esposa e duas filhas, todos em colchões no chão, um ao lado do outro. Precisamos passar nossas coisas por cima deles, com o maior cuidado para não acordar ninguém. Depois Lucy explicou que, durante o dia, eles levantavam os colchões para que os inquilinos pudessem entrar e sair sem problemas. Pelo corredor dava para ver algumas portas abertas; de um dos quartos escapava um ronco danado de alto, em outro dava para ver uma perna saindo dos lençóis. Na frente da porta do que seria o nosso quarto, Lucy sorriu e disse: — A gente se fala amanhã.

9


Enfiamos as coisas para dentro como deu. Não tinha luz porque a lâmpada havia queimado. Apesar do escuro, dava para notar que tudo estava bem sujo. Minha mãe jogou os colchões no chão e deitamos para dormir.

Casa tomada Onde estamos? Em um cortiço ou uma “casa tomada”, é assim que a chamam. Na verdade, é um prédio abandonado de três andares. Mas abandonado não quer dizer desabitado: dentro dele vivem mais de cem pessoas. Um dia, faz um tempão, este foi um edifício de luxo, de alguma família muito rica com certeza. Por alguma razão, o prédio foi abandonado (por causa de alguma praga, acho, febre amarela, por exemplo) e, com o passar dos anos, foi ficando cada vez mais velho e pobre. Daí as pessoas que não tinham casa aproveitaram para invadi-lo e viver aqui dentro. Primeiro um, depois outro, cada qual com sua família, até o prédio ficar completamente lotado. É isso que chamam de uma “casa tomada” ou ocupação. Tem várias por aí, espalhadas pela

10


cidade. Antes eu não percebia, passava na frente dos prédios que pareciam abandonados, mas onde morava gente, e não sabia direito o que eram. Agora os reconheço na hora. E por que a gente se mudou para uma “casa tomada”? A verdade é que vivi com minha mãe num monte de lugares, desde que nasci acho que já morei em mais de dez residências, ou esse é o número que consigo lembrar. Até pouco tempo, vivia com minha mãe num apartamento comum, um apartamento pequeno, muito menor que a “casa tomada”, só que novo e com elevador. A gente morava de aluguel. Um dia o valor do aluguel subiu e não conseguimos mais pagar. Então uma amiga de minha mãe, a Lucy, disse para ela: “Por que não vem morar comigo na Casa?”. Disse assim: “Comigo na Casa”. Eu estava escutando e tentei imaginar como seria a casa de Lucy. Não sei por quê, quando escuto a palavra “casa”, a primeira imagem que me vem à cabeça é uma daquelas casas que as crianças desenham (eu também, quando era menor, agora deixei de desenhar porque desenho muito mal), aquelas com dois olhos no lugar das janelas e a porta no meio feito uma boca. Na cidade não costuma ter esse tipo de casa, só prédios, daí pensei que nos mudaríamos

11


para fora da cidade, para algum lugar com muito verde. Não seria a primeira vez: uma temporada nos instalamos num sítio de um casal amigo que tinha ido viajar. Era genial, tinha até piscina. Também dividimos durante seis meses um lugar com outras duas artistas plásticas como minha mãe, mas dessa vez não foi tão legal porque elas brigavam muito. Então, quando ficou acertado que nos mudaríamos para “a Casa” de Lucy, eu me vi a mim mesmo vivendo muito tranquilo numa casa, com duas janelas e uma porta. Minha mãe não explicou mais nada, ela nunca explica nada, é como se acreditasse que estou dentro do seu cérebro e fico sabendo do que acontece sem precisar de explicações. Mas, quando entramos no prédio e vi gente dormindo até no chão, e deixamos as coisas no escuro, e arrumamos os colchões, e minha mãe disse: “Durma”, eu só conseguia pensar numa coisa: isto não é uma casa, isto não é uma casa, isto não é uma casa. E fiquei repetindo essas palavras muitas vezes até adormecer.

12


Por que não temos grana Tudo tem sua razão, e também existe uma para explicar por que não conseguimos continuar pagando o aluguel: não tínhamos mais grana. E, para entender por que não tínhamos mais grana, vou falar da minha família. Meus pais se divorciaram quando eu era pequeno. Papai foi viver nos Estados Unidos. Primeiro passou pelo Brasil, depois pela América Central e finalmente chegou aos Estados Unidos. Agora está como ilegal, o que quer dizer que, se sair de lá, não pode voltar a entrar. Por isso tenho pouco contato com ele, não o vejo faz anos e falei com ele só umas duas vezes por telefone desde então. Na prática foi minha mãe quem me criou, educou e alimentou. E, porque dependemos exclusivamente dos seus ganhos, nunca temos grana suficiente. A que meu pai ganha mal dá para ele se manter por lá. Nunca ajudou de nenhuma maneira. A minha avó, sim, poderia ajudar. A família da minha mãe é o que se costuma chamar de uma “família remediada”, e minha avó poderia sem proble-

13


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.