Pantanáutilus

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1 oi no janeiro do ano em que fiz meu décimo aniversário. Lembro-me que chovia a cântaros naquela tarde. De dentro do ônibus, vi minha mãe na plataforma da rodoviária ajeitar o xale, sugerindo que eu me protegesse do ar condicionado. Vi também meu pai fazer sinais para que eu me cuidasse. Era minha primeira viagem sozinha. O ônibus partiu. Foram vinte e seis horas na estrada entre a capital e o pequeno vilarejo, que só parecia existir por ter uma pista de pouso.


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Na cabeceira da pista desenvolvia-se a principal atividade econômica do vilarejo: o comércio de amendoins, pipocas e salgadinhos amarelo-fosforescentes para turistas que seguiam para o Pantanal. Não era lá um grande negócio, já que a maior parte deles passava por Corumbá, sendo aquela uma rota alternativa para o sul do Pantanal. A outra atividade econômica do vilarejo era a aeronáutica, que também dependia dos viajantes e se limitava aos serviços de um único ultraleve, propriedade de um único morador. Assim, valia a pena para os outros quase 300 habitantes do vilarejo vender salgadinhos e amendoins. O ônibus parou, soltando um longo suspiro, como se estivesse mais cansado que os passageiros. Uma multidão de braços de vendedores – indiozinhos pouco mais velhos que eu – surgiu da poeira, disputando os viajantes na porta do ônibus. Com custo desembarquei, e, em meio à confusão de mãos e pacotes de salgadinhos, vi que Haroldo me esperava. Era um velho amigo do meu avô, e piloto do ultraleve. Ele me levaria até a fazenda de meus avós, no Pantanal, onde eu passaria as férias. Nossa partida foi difícil. A pista de pouso, de chão de terra batida, servia também como campo de futebol, e foi preciso interromper a partida que acontecia. Os vendedores se amontoaram em volta do ultraleve como um enxame de abelhas. A decolagem foi acompanhada pelos gritos das duas torcidas e por um alegre cortejo de crianças comerciantes, que correram atrás do ultraleve gritando, acenando e fazendo piruetas, como fizeram atrás do ônibus que partiu.


2 obrevoamos o Pantanal sul-mato-grossense. O Haroldo parecia um aviador da Primeira Guerra Mundial com sua touca de couro e os óculos presos com elástico à cabeça. Era um dos muitos amigos esquisitos do meu avô Manu, que era também uma pessoa diferente, como vocês vão ver.


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Aterrissamos na fazenda ao entardecer. A pista de pouso foi construída sobre um aterro, para que não desaparecesse debaixo das águas das cheias que cobrem a planície pantaneira no verão. Meu avô havia montado ali um verdadeiro aeroporto com gambiarras de todo tipo, como uma torre de rádio, birutas coloridas que indicavam a direção do vento, calculadores da densidade das nuvens de aleluias* e medidores da ferocidade dos pernilongos. Ele se comunicava com Haroldo pelo rádio: “Vento noroeste de 6 nós. Revoada alucinante de aleluias, 8 pontos na escala Manu! Pernilongos de pernas listradas assanhados; os pretos estão mais comportados”. Meus avós vieram nos receber de barco. – Salve, dona Aqualina! Cheia grande, Manu! – Haroldo saudou os velhos. – Das grandes! Apeia pra um tereré, Haroldinho, vamos trocar um dedo de prosa! – Fico não, companheiro, agradeço. Só vim trazer a guria. A noite já chega e não quero que me pegue voando. Volto para o tereré outro dia. – Vai com Deus, ô nó-cego! – despediu-se vovô, sorrindo. O ultraleve já se endireitava na pista para levantar voo. O Pantanal estava realmente cheio. Eu nunca tinha visto a água beirando a pista de pouso. Nas outras férias que passei na fazenda, meu avós foram me buscar de caminhonete, mas dessa vez apareceram de barco. Eles disseram que * Você pode ver o significado das palavras destacadas no glossário, ao final do livro.


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aquela era a maior cheia dos últimos 25 anos, havia locais debaixo de cinco metros de água. O aguaceiro beirava os capões, que são manchas de floresta sobre terrenos um pouco mais elevados, aonde a água da inundação geralmente não chega. A bicharada da terra deveria estar toda nessas espécies de ilhas, e os bichos da água deviam nadar soltos por aí. Conversando com meus avós, deslizando tranquilamente sobre o campo inundado, eu escutava os peixes se remexendo na superfície da água, a “sapaiada”, as corujas, os guinchos dos primeiros morcegos que cortavam o céu e milhões de grilos: a bicharada do Pantanal – como eu sentia saudade daquelas vozes. Jantamos na varanda. Respondi às perguntas da vovó sobre os parentes na capital, contei todas as novidades e prometi levar meus pais comigo para a fazenda, da próxima vez que eu fosse visitá-los. Entreguei as encomendas da cidade – botinas novas e calças jeans para a vovó, parafusos, porcas e chaves de vários tipos para o vovô. Depois, cama. Eu estava muito cansada da viagem e não demorei a dormir.

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