1. Era uma vez em Londres A família Darling
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odos os meninos e meninas crescem e se tornam adolescentes, depois adultos. Menos um, chamado Peter, que tinha o péssimo hábito de ir entrando na casa das pessoas sem pedir licença. Eu vou falar mais dele daqui a algumas páginas, porque, afinal, a melhor maneira de começar a contar uma história é pelo começo. Havia uma família, há mais ou menos cem anos, que morava na casa número 14 de uma das ruas mais bonitas de Londres. Essa família começou com o senhor George Darling, um daqueles homens sérios que, mesmo quando são jovens, só pensam e falam em mudanças nas regras da economia, cotações da bolsa de valores e oscilação da balança comercial. A mulher com quem ele se casou se esforçava para fazer economia, estava sempre arrumando sua bolsa e não passava um dia sem se pesar na balança. Como você pode ver, eles nasceram um para o outro.
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Como foi que eles se tornaram um casal? George Darling e outros rapazes descobriram que estavam todos apaixonados pela mesma garota, uma ex-colega de escola. Quase todos os rapazes saíram correndo para pedir a garota em casamento. O George pegou um táxi, chegou antes da concorrência e se casou com a garota. Sempre que alguém conta a história das aventuras na Terra do Nunca, a esposa de George é chamada de senhora Darling. É muito comum os adultos ingleses serem chamados pelo sobrenome. Então, nas histórias inglesas, é senhora Christie, senhor Taylor. Mas eu não quero ficar escrevendo o senhor Darling, a senhora Darling. Acontece que sei – não me pergunte como – que o nome da senhora Darling era Amanda. Durante algum tempo, depois de casados, dona Amanda e seu George viveram felizes e contentes. Então, dona Amanda começou a sentir falta de alguma coisa que ela não sabia o que era, mas só até passar por um parque londrino chamado Kensington, onde as babás da redondeza iam passear com os bebês. A família Darling começou a crescer quando a Wendy chegou ao mundo. O pai dela passou uma ou duas semanas fazendo cálculos para saber se o casal poderia ficar com a menina. Seu George calculou os gastos com leite, papinhas, sopas, cozidos, assados e fritos. Colocou na conta o preço das mensalidades e do material escolar, livros, brinquedos, roupas, sapatos, galochas e guarda-chuvas também, porque na Inglaterra sempre choveu muito. O pai da Wendy já estava quase na soma final, que parecia estar dentro do orçamento. Aí dona Amanda ficou preocupada, porque o marido lembrou que tinha esquecido de incluir os gastos com as doenças infantis, como sarampo, catapora e tosse comprida. No final das contas, a menina pôde ficar. Quando o João chegou, aconteceu isso tudo de novo, com o mesmo resultado positivo. Na vez do Miguel, seu George balançou bastante a cabeça depois de contar, multiplicar e somar. Ficou claro que teriam que desistir do segundo menino. A Wendy e o João fizeram cara de não-mande-nosso-irmãozinho-embora-por-favor-papai. A dona Amanda derramou muitas lágrimas e pediu uma recontagem. Seu George, que também queria ficar com o menininho, errou as contas de propósito. E o Miguel ficou.
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Os pais e os irmãos do bebê comemoraram felizes como se fosse Natal. Mas seu George disse que o Miguel ficaria desde que só pegasse, durante toda a infância, no máximo uma gripe. Além disso, ele deixou bem claro que não tinha lugar para uma sexta pessoa na família Darling. Se mais alguém viesse, ia ficar do lado de fora da casa de três andares de uma das ruas mais bonitas de Londres.
Naná, a babá Um outro alguém entrou para a família Darling, mas este alguém não era um ser humano. Dona Amanda e seu George acharam a Naná, uma excelente babá, no parque Kensington. Ela era uma cachorra bem grande, da raça Newfoundland, que em português quer dizer “terra recentemente achada” ou “terra-nova”. A cachorrona vivia com o focinho empinado e tinha toneladas de autoconfiança, porque sabia que sabia tudo o que era preciso saber para ser uma babá boa e sabida. A Naná vivia xeretando os carrinhos dos bebês levados pelas babás ao parque e, quando via alguma coisa errada, latia e rosnava para deixar bem claro sua reprovação. Não havia dúvida de que a Wendy, o João e o Miguel deviam ter uma babá. Todas as famílias respeitáveis de Londres tinham uma babá. Eu não disse “Todas as famílias respeitáveis de Londres com filhos”, porque estaria sendo redundante. Afinal, para serem respeitáveis, todas as famílias inglesas deviam ter filhos. E babás. Seu George e dona Amanda não tinham dinheiro para contratar uma babá gente, por causa do gasto com o leite das crianças. O jeito foi contratar a Naná. Era melhor uma babá canina do que nenhuma. Seu George não adorou essa solução, porque tinha sempre uma preocupação: “O que os vizinhos vão pensar?”. A casinha da Naná ficava no quarto das crianças. Em inglês, “quarto das crianças” se diz nursery; nurse quer dizer enfermeira ou babá. Se o Peter Pan falasse português, ele chamaria o quarto das crianças de babatório. Mais adiante a gente vai falar sobre essas palavras que o Peter inventava.
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O maior sucesso de dona Amanda A Naná cuidava das crianças muito bem, melhor até que qualquer babá humana. E a vida no dormitório infantil da família Darling era muito feliz. Até seu George participava de vez em quando das brincadeiras, jogos, cantorias e danças que rolavam naquele quarto do terceiro andar, apesar de estar sempre preocupado com o que os vizinhos iam pensar. A dona Amanda tinha uma função muito importante: contar histórias. Ela contava com tantos detalhes engraçados e emocionantes, e momentos de mistério, suspense e aventura, que as histórias se espichavam e duravam vários dias, como se ela fosse a contadora de histórias das mil e uma noites. O maior sucesso de dona Amanda era a história da Cinderela. Até seu George não perdia um capítulo. Ele achava que aquela era “uma história muito importante para a formação e a educação das crianças, porque a Cinderela era uma moça batalhadora, que lutou sem nunca perder a autoconfiança e que, do posto mais baixo e humilde da sociedade, subiu até o topo!”. Certo menino voador também era fã desta versão contada por dona Amanda. Mas antes de ele entrar sem pedir licença nesta história e na casa de número 14 de uma das ruas mais bonitas de Londres, eu preciso falar de um lugar chamado Terra do Nunca.
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