PNLD 2024 - Objeto 3 - Sherlock Holmes: Casos extraordinários

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SHERLOCK HOLMES

CASOS EXTRAORDINÁRIOS

Tradução e adaptação

Marcia Kupstas

Ilustrações

Rogério Borges

arthur conan doyle

ARTHUR CONAN DOYLE CASOS EXTRAORDINÁRIOS 1a

SHERLOCK HOLMES

Tradução e adaptação

Marcia Kupstas

Ilustrações

Rogério Borges

Porto Alegre – 2022
edição

Copyright © Marcia Kupstas, 2022

Todos os direitos reservados à UNIÃO BRASILEIRA DE EDUCAÇÃO E ASSISTÊNCIA (Pontifícia Universidade Católica do RS – Campus Poa)

Avenida Ipiranga, 6681 – Partenon

CEP 90610-001 – Porto Alegre – RS Tel.: (0-XX-51) 3320-3711

E-mail: edipucrs@pucrs.br

Editores assistentes: Bruno Salerno Rodrigues e Carla Bettelli Revisoras: Kandy Saraiva e Marina Nogueira

Tradução e adaptação de The Complete Sherlock Holmes, USA, Bantam Doubleday Dell Publishing Group, 1998, ISBN 9780553328257.

Arthur Conan Doyle (1859-1930) ficou conhecido ao criar Sherlock Holmes, o detetive mais famoso da literatura. Ao longo da carreira, escreveu 56 contos e quatro romances com o personagem. Em 1902, o governo britânico concedeu o título de cavaleiro ao autor, que assim se tornou Sir Arthur.

Marcia Kupstas nasceu em São Paulo. Iniciou a carreira de escritora em 1986 e tem publicados mais de cem livros por diversas editoras, alguns superando vinte reimpressões. Em 2005, seu romance Eles não são anjos como eu recebeu o Prêmio Jabuti na categoria Juvenil.

D754s

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Doyle, Arthur Conan Sherlock Holmes: casos extraordinários / Arthur Conan Doyle; tradução e adaptação de Marcia Kupstas; ilustrações de Rogério Borges. — 1. ed. — Curitiba, PR: ediPUCRS, 2022. 144 p.: il. color.

Título original: The Complete Sherlock Holmes

ISBN 978-65-5623-293-5 (Livro do Estudante Impresso)

ISBN 978-05-5332-825-7 (Ed. original)

1. Literatura infantojuvenil. 2. Literatura (Ensino Fundamental).

3. Educação. I. Kupstas, Marcia. II. Borges, Rogério. III. Título.

CDD-028.5

Índices para catálogo sistemático:

1. Literatura infantil 028.5

2. Literatura infantojuvenil 028.5

Anamaria Ferreira – CRB-10/1494

Setor de Tratamento da Informação da BC-PUCRS

SUMÁRIO

A chave para descobrir os clássicos 6

Almanaque 11

Convite à leitura 28

Paixão à primeira leitura 32

CONTO 1 A face amarela 37

CONTO 2 O ritual Musgrave 59

CONTO 3 A Liga dos Cabeças-Vermelhas 79

CONTO 4 O Diamante Azul 99

Paratexto 125

A CHAVE

A literatura convida você a participar de grandes aventuras: mergulhar nas profundezas da Terra, erguer sua lança contra feiticeiros e gigantes, conhecer os personagens mais fantásticos e mais corajosos de todos os tempos.

Algumas dessas aventuras farão sucesso e vão lhe possibilitar novas maneiras de enxergar a vida e o mundo. Farão você rir, chorar — às vezes as duas coisas ao mesmo tempo. Revelarão segredos sobre você mesmo. E o levarão a enxergar mistérios do espírito humano.

Outras ficarão na sua memória por anos e anos. No entanto, você poderá reencontrá-las, não somente nas prateleiras, mas dentro de si mesmo. Como um tesouro que ninguém nem nada jamais tirará de você.

Você ainda poderá presentear seus filhos e netos com essas histórias e personagens. Com a certeza de estar dando a eles algo valioso — que lhes permitirá descobrir um reino de encantamentos.

É isto que os clássicos fazem: encantam a vida de seus leitores. No entanto, sua linguagem, para os dias de hoje, muitas vezes pode

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CHAVE PARA

DESCOBRIR OS CLÁSSICOS

parecer inacessível. Afinal, não são leituras corriqueiras, comuns, dessas que encontramos às dúzias por aí e esquecemos mal as terminamos. Os clássicos são desafiantes. Por isso, obras em textos com tamanho e vocabulário adaptados à atualidade — sem perder o poder tão especial que elas têm de nos transportar, de nos arrebatar para dentro da história — desempenham o papel de despertar em você a vontade de um dia ler as obras originais.

Tomemos como exemplo a obra Robinson Crusoé: o navio do sujeito naufraga. Com muito esforço, ele nada até uma ilha que fica fora das rotas de tráfego marítimo e se salva. É o único sobrevivente. Ao chegar à praia, estira-se na areia, desesperado, convencido de que jamais retornará à civilização e disposto a se deixar morrer ali.

Muita gente poderia dizer que essa história não apresenta elementos dramáticos para os dias de hoje, pois dispomos de diversos recursos para evitar que esse tipo de situação aconteça. Com mapas, rastreamento dos navios por satélites, equipes de busca munidas de super-helicópteros e computadores ultramodernos, ele logo seria resgatado. E... a história acabaria.

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No entanto, somos cativados pela luta desse homem, que foi privado de tudo o que conhecia e isolado do mundo durante quase trinta anos. A gente se envolve com o personagem; somos tocados pela sua força de caráter e pela sua persistência em reconstruir, pouco a pouco, a vida, criando, a partir do nada, um novo mundo.

O espírito dessa obra não tem a ver com época ou recursos tecnológicos, mas com o dom de exibir o extraordinário. Não apenas o da fantasia, mas o do ser humano. Portanto, o extraordinário de cada um de nós.

Os clássicos falam de amor, ciúme, raiva e busca pela felicidade como outras obras não falam. Vão mais fundo, ao mesmo tempo que são sutilmente reveladores.

Não é à toa que atravessaram séculos (alguns, até milênios) e foram traduzidos para tantos idiomas, viraram filmes, desenhos animados, musicais, peças de teatro, histórias em quadrinhos. Existe algo neles que jamais envelhece, conserva-se intensamente humano. E mágico.

Afinal, quem é capaz de ler Dom Quixote e não se divertir e se comover com o Cavaleiro da Triste Figura?

Quem não torce para Phileas Fogg chegar a Londres, no dia e na hora marcados, e ganhar a aposta, depois de viajar com ele, superando obstáculos e perigos, nos 80 dias da volta ao mundo?

Quem lê Os três mosqueteiros sem desejar, uma vez que seja, erguer uma espada junto com seus companheiros, gritando:

UM POR TODOS E TODOS POR UM!?

Os clássicos são às vezes mais vívidos do que a vida e seus personagens, mais humanos do que o ser humano, porque neles as paixões estão realçadas, e as virtudes e os defeitos de seus personagens são expostos com genialidade criadora, literária, em cenas que jamais serão esquecidas e em falas que já nasceram imortais.

Os clássicos investigam os enigmas do mundo e do coração, da mente, do espírito da gente. Eles falam de nossas dúvidas, de nossas

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indagações. Geralmente, não oferecem respostas, mas vivências que nos transformam e nos tornam maiores... por dentro.

São capazes de nos colocar no interior do submarino Nautilus, vendo com olhos maravilhados prodígios imaginados por Júlio Verne em Vinte mil léguas submarinas.

Ou nos levam à França do século XIX. Num piscar de olhos, estamos prontos para iniciar um duelo de espadas; noutro instante, intrigados, fascinados com a obsessão de Javert, um dos mais impressionantes personagens criados pela literatura. Assim como, em certos trechos, já nos vemos em fuga desesperada sofrendo com toda a injustiça que se abate sobre o herói de Os miseráveis.

Da mesma maneira, somos desafiados a desvendar mistérios aparentemente impossíveis ao lado de Sherlock Holmes, um dos mais famosos detetives de todos os tempos. Personagens assim mostram que os clássicos são o melhor que a humanidade produziu em literatura.

Luiz Antonio Aguiar

Mestre em Literatura Brasileira pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio).

É escritor, tradutor, redator e professor em cursos de qualificação em Literatura para professores.

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A L M A NA Q U E

O P A I D O S D E T E T I V E S

Sir Arthur Ignatius Conan Doyle nasceu em Edimburgo, Escócia, em 22 de maio de 1859. Depois de ter concluído a faculdade de Medicina, mudou-se para a Inglaterra, onde montou consultório e começou a escrever as primeiras histórias. Em 1887, publicou o romance Um estudo em vermelho; nasciam, assim, o detetive Sherlock Holmes e seu grande amigo, o médico John Watson.

Conan Doyle, do mesmo modo que Watson, foi médico militar e serviu em hospitais de campanha. Em 1902, foi elevado a cavaleiro britânico (por isso o Sir no nome) pela atuação como médico na Guerra dos Bôeres, na África do Sul. Casou-se duas vezes – a primeira mulher, Louise, morreu de tuberculose, e ele então se casou com Jean Elizabeth Leckie. Conan Doyle morreu em 7 de julho de 1930, na Inglaterra.

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QUEM É SHERLOCK HOLMES?

Alto e magro; olhar penetrante e irrequieto, como se estivesse permanentemente avaliando tudo o que acontece em seu entorno; e absorto em reflexões silenciosas. Não podemos esquecer os acessórios: chapéu de tecido quadriculado e formato absolutamente característico; cachimbo na boca. Mas é a personalidade de Holmes, ao mesmo tempo ácida e intrigante, o que mais apaixona os leitores.

Por exemplo, ele adora uma entrada espetacular em cena e é mestre em disfarces, divertindo-se em enganar a todos, principalmente a Watson, que nunca o reconhece! Mas algumas fraquezas (ou defeitos!) são ingredientes necessários: quando não tem nenhum caso para resolver, cai em depressão. Foi com Holmes que os grandes detetives passaram a ser criaturas, para dizer o mínimo, excêntricas. E muito convencidos de sua inteligência superior. Holmes, se quer pensar, toca seu violino. Pede que todos se calem quando os pensamentos são mais profundos e voltados para desatar o nó final de algum mistério.

Sou Sherlock Holmes, e é meu dever saber o que os outros não sabem.
bluebudgie/Pixabay.com
“O Diamante Azul”, 1892 13

O MÉTODO HOLMES

A primeira história escrita por Conan Doyle com Holmes foi Um estudo em vermelho, um romance de 1887. É nele que Watson e Holmes se conhecem.

Assim que são apresentados, Holmes já diz ter reparado que Watson andou pelo Afeganistão. Watson fica boquiaberto, mas Holmes, sadicamente, somente páginas e páginas depois, cede às perguntas de seu futuro biógrafo e dá o passo a passo de sua brilhante dedução.

Primeiro, reparou na postura do corpo de Watson, algo militar.

Meu caro amigo, pode me dar os parabéns!

Acabo de tornar esse

mistério todo tão

claro como o dia!

Holmes, para Watson, em Um estudo em vermelho, 1887

Percebeu também a dificuldade de movimento do médico (era somente o que ele sabia, que Watson era médico), o que denunciava um ferimento no braço. E, finalmente, notou que Watson tinha a pele bronzeada. Ora, onde, naquele momento (1878-1880), um médico estaria alistado no Exército britânico e envolvido em combates em região de sol inclemente?

Resposta: Afeganistão, onde os britânicos travavam uma guerra colonial.

Foi assim que Watson começou a conhecer seu excêntrico amigo.

Conta-se que Conan Doyle, para criar Sherlock Holmes, inspirou-se em parte num professor que teve na Faculdade de Medicina da Universidade de Edimburgo. Foi o Dr. Joseph Bell (1837-1911), idolatrado por gerações de alunos por ministrar aulas estimulantes, puxadas a observação de fatos (sintomas do paciente) e conclusões lógicas.

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A GRAÇA

Nas histórias de Sherlock Holmes, os leitores vão poder apreciar a importância do papel desempenhado pelo Dr. John Watson. É ele quem faz as perguntas que o leitor dirigiria a Holmes se estivesse em cena.

Assim, ao explicar a Watson as etapas de seu raciocínio, Holmes mostra como chegou à conclusão, ao desvendamento do mistério.

Reparem... Nessas narrativas, há sequências em que, se não fosse pela presença de Watson, Holmes entraria na cena do crime, examinaria tudo, apontaria algum determinado personagem como culpado e iria embora. E onde estaria a história?

Watson é o tipo de personagem denominado sidekick. O recurso não foi criado por Conan Doyle e, ao que se sabe, é anterior à literatura policial. Mas, com a dupla Holmes-Watson, o escritor britânico o desenvolveu como nunca antes.

De fato, meu caro Holmes, você deve muito ao Dr. Watson.

➔ SIDEKICK

Termo que, embora sem tradução exata para o português, serve para definir o principal ajudante do herói, sendo geralmente lembrado como personagem coadjuvante. É ele quem auxilia o protagonista, como seu “fiel escudeiro”. Alguns sidekicks bem conhecidos:

◆ Catatau, em Zé Colmeia

◆ Robin, em Batman

◆ Barney, em Os Flintstones

◆ Dory, em Procurando Nemo

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SEM ELE, HOLMES PERDERIA

A FRASE JAMAIS DITA...

– Elementar, meu caro Watson!

A frase virou símbolo de Sherlock Holmes, sempre pronunciada pelo detetive com certa ironia e desprezo. No entanto, Holmes jamais a disse. Pelo menos não nos contos e romances que Conan Doyle escreveu. Entretanto, ficou famosa ao ser dita pelo ator Basil Rathbone, o mais clássico intérprete do detetive, numa das aventuras adaptadas para o cinema. Ao todo, foram 14 filmes com Rathbone, entre 1939 e 1946.

Neles, diferentemente do que acontecia nos textos de Conan Doyle, o Dr. Watson, interpretado por Nigel Bruce, tinha raciocínio muito limitado e fazia bem por merecer tiradas como essa.

Foi devido ao grande sucesso dos filmes com Basil Rathbone que inúmeras adaptações dos livros de Conan Doyle adotaram a elementar frase como sendo do autor original.

HOLMES NO BRASIL

Sherlock Holmes andou por terras brasileiras.

Assim afirma Jô Soares (1938-2022) em O xangô de Baker Street, romance de 1995 em que o mais britânico dos detetives é conquistado pela sedução tropical e esquece a investigação em troca dos prazeres da terra.

Tivemos ainda outra aparição marcante de Holmes, em O relógio Belisário , também de 1995, um romance repleto da fantasia habitual da ficção do escritor goiano José J. Veiga (1915-1999).

Elimine o impossível, e o que restar, por mais improvável que pareça, deverá ser verdade. O signo dos quatro, 1890
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Estes são alguns dos criadores de seres que caçam criminosos por aí, inspirados no detetive criado por Conan Doyle:

AGATHA CHRISTIE

A inglesa Agatha Christie (1890-1976), conhecida como a Dama do Crime, tem milhões de livros de mistério vendidos em todo o mundo. Ela criou o personagem Hercule Poirot, um compulsivo no que se refere à arrumação de objetos, móveis e utensílios, às suas roupas e ao seu bigode.

Poirot sempre alardeia a qualidade das “pequenas células cinzentas” que compõem seu cérebro.

REX STOUT

O estadunidense Rex Stout (1886-1975) criou Nero Wolfe. Obcecado por gastronomia e pesando entre 140 e 180 quilos, raramente sai de casa e resolve os casos a distância, deixando o trabalho sujo para Archie Goodwin, seu sidekick.

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DESCENDENTES LITERÁRIOS gspstudio/Pixabay.com

Famoso pelas histórias de terror, o escritor estadunidense Edgar Allan Poe (1809-1849) é também o criador da moderna literatura policial. E o é justamente por ter cunhado alguns dos recursos mais típicos e mais eficientes desse gênero. A começar pelo detetive com um sentido de observação e uma inteligência dedutiva extraordinários: o francês Auguste Dupin, no conto “Os assassinatos da rua Morgue”.

Dupin foi o ascendente direto de Holmes, que, em Um estudo em vermelho, o cita como “um sujeito bem inferior a mim”. E Dupin tem um sidekick, à Watson; é um biógrafo sem nome que, entretanto, narra as histórias do francês. Claro que Conan Doyle acrescentou muito às técnicas criadas por Poe e foi ele próprio um inventor de recursos narrativos para as histórias de mistério.

Holmes também teve descendentes. O mais famoso foi Hercule Poirot, de Agatha Christie, e seus sidekicks, o Capitão Hastings, um ex-militar, e o inspetor-chefe Japp, um investigador da Scotland Yard.

Mas houve também Frei Guilherme de Baskerville (não por acaso, o nome alude à história mais famosa de Conan Doyle, o romance O cão dos Baskerville) e seu ajudante, o noviço Adso de Melke. No romance O nome da rosa (1980), grande sucesso do escritor italiano Umberto Eco, ambos resolveram uma série de horrendos assassinatos num convento medieval. A versão cinematográfica (1986) foi estrelada por Sean Connery, no papel do frade-detetive.

Outro dos descendentes mais célebres de Holmes é o médico (assim como Conan Doyle) Gregory House, do popularíssimo seriado de televisão House, interpretado pelo ator inglês Hugh Laurie. House tem sobrenome que lembra o de Holmes. Mora no apartamento 221B do seu prédio, mesmo número da residência de Holmes na rua Baker. O método de

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ASCENDENTES E DESCENDENTES DE HOLMES

raciocínio de House e a inaptidão do personagem para o convívio social também lembram Holmes. Além disso, tem como sidekick o amigo e médico Wilson (versus Watson) e toda uma equipe de residentes (médicos auxiliares) que o ajudam na hora de raciocinar com os sintomas de cada paciente e elaborar diagnósticos.

Já a série Elementary inovou com um Watson americano e feminino, a médica interpretada pela atriz Lucy Liu. Seu Sherlock Holmes superexcêntrico é interpretado pelo inglês John Lee Miller. No cinema atual, Holmes virou um detetive mais afeito às brigas físicas e aos tiroteios quando interpretado por Robert Downey Jr., tendo Jude Law como Watson. E não se pode esquecer o excelente O enigma da pirâmide (1985); dirigido por Barry Levinson, apresenta Holmes e Watson ainda adolescentes, mas já amigos, investigando um engenhoso mistério.

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Famoso endereço de Sherlock, Baker Street 221B, abriga um museu com objetos curiosos presentes nas histórias do detetive

NO TEMPO DE CONAN DOYLE

◆ Seria redundante chamar de majestosa a estátua da Rainha Vitória (parte do monumento Victoria Memorial), sentada no trono que a soberana sustentou por mais de 60 anos e instalada à frente do Palácio de Buckingham, sede da monarquia inglesa, em Londres. No entanto, não haveria termo mais apropriado que majestoso para aquele símbolo do Império Britânico e de sua história. A Era Vitoriana durou de 1837 a 1901 e, de fato, deu feição ao mundo.

◆ Conan Doyle nasceu no reinado de Vitória, em 1859, ano em que Charles Darwin revolucionaria o pensamento científico e a compreensão das pessoas sobre a humanidade ao publicar A origem das espécies.

◆ Era uma Europa então conturbada. Em 1848, Karl Marx e Friedrich Engels haviam lançado o Manifesto Comunista, símbolo de uma era de revoluções sociais que teria, entre outras manifestações, a Revolução Russa (1917). O marxismo transformou ideias em diversas áreas, como economia, política, história e cultura, e mudou a configuração de inúmeras nações.

◆ O Brasil, uma monarquia quando Conan Doyle nasceu, tinha como soberano D. Pedro II. Assim como a Rainha Vitória, Pedro II assumiu bastante cedo o trono – teve a maioridade instituída por lei, aos 14 anos – e o ocupou por longo tempo, de 1840 a 1889. Seu reinado simbolizou uma estabilidade que ruiria aos poucos, trazendo à luz uma era de transformações no país.

Tão importante foi a contribuição de Charles Darwin para a ciência que o Museu de História Natural de Londres abriga uma estátua sua

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◆ Também no ano de nascimento de Conan Doyle, em 1859, iniciou-se a construção do Canal de Suez, uma passagem entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo, sonhada havia anos, por conta das vantagens que traria para a navegação. O mundo diminuía drasticamente as distâncias.

◆ Em 1863, Júlio Verne publicou Cinco semanas em um balão, seu primeiro grande sucesso como romancista. O século XIX foi pródigo em grandes ficcionistas. Temos Alexandre Dumas, com O Conde de Monte Cristo e Os três mosqueteiros; Victor Hugo, com O corcunda de Notre-Dame e Os miseráveis; Charles Dickens, com Oliver Twist e David Copperfield e com aquele que alguns consideram seu grande

O Canal de Suez é até hoje uma importante passagem náutica, conectando Europa e Ásia

romance, A casa soturna. Além desses, A comédia humana, de Balzac; toda a obra de Edgar Allan Poe, nos Estados Unidos; e o momento de ouro da literatura de terror, o Gótico no Romantismo: Frankenstein, de Mary Shelley; Drácula, de Bram Stoker; e O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson, que também escreveu A ilha do tesouro, uma genial aventura pirata. Não é à toa a influência da literatura de terror em contos e romances de Conan Doyle, como O cão dos Baskerville e outros. A imaginação estava em alta na literatura, e o gênero romance – a história longa, com muitos personagens –conquistava de vez o público.

◆ Em 1867, a Europa, chocada, assistiu a distância ao Imperador Maximiliano,

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colocado artificialmente no trono do México pela França, ser executado pelos revolucionários que, sob o comando de Benito Juárez, lutavam pela independência do país. Maximiliano era irmão do soberano do Império Austríaco, entidade que, derrotada numa das guerras da unificação alemã, se tornou meses antes da morte de Maximiliano um bem menos poderoso Império AustroHúngaro. Símbolo do poder monárquico e de uma velha Europa, mesmo esse “novo” Império se desmancharia em 1918, com a derrota na Primeira Guerra Mundial .

◆ Durante todo o século XIX, várias revoltas populares exigiam a concretização dos ideais republicanos e a derrubada de monarquias decadentes. Uma dessas revoltas foi retratada em Os miseráveis (1862), de Victor Hugo. Aconteceu na França de 1832 e terminou no massacre dos revoltosos, nas barricadas erguidas por eles em Paris.

◆ Em 1899, Sigmund Freud publicou A interpretação dos sonhos. A partir daí, elaborou

uma série de estudos que, ao longo dos anos seguintes, fundariam a psicanálise.

◆ Em 1905, Albert Einstein publicou seus primeiros ensaios sobre uma nova visão da gravidade, do tempo, do espaço e da cosmologia, que ficou conhecida como Teoria da Relatividade. Por essas formulações, ganharia o prêmio Nobel em 1921. Em 1933, sendo alemão e judeu, teve de abandonar seu país, fugindo do nazismo. Foi morar e ensinar nos Estados Unidos.

◆ A Primeira Guerra Mundial começou em 1914. Batalhas como a do Somme, em 1916 (uma das mais sangrentas da história), mataram cerca de 6,8 milhões, mais um número ainda maior de civis (e outros militares) que morreram de outras causas relacionadas ao conflito. Para o povo europeu, que se acreditava tão civilizado, foi uma carnificina inimaginável. Pela primeira vez, usaram-se tanques de guerra e gases tóxicos, e esses últimos continuaram corroendo os pulmões dos combatentes, e matando, mesmo muito depois da guerra.

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NOS TEMPOS DE HOLMES, O SR. HYDE E JACK, O ESTRIPADOR

Em 1837, com apenas 18 anos, a Rainha Vitória subia ao trono da Inglaterra. Seus súditos orgulhavam-se de dizer que, nos domínios dela, o sol nunca se punha, já que o Império Britânico possuía colônias em todos os continentes e latitudes. Vitória morreu em 1901, e seu reinado só deixou de ser o mais longo da história da Inglaterra em setembro de 2015 (quando o atual, da Rainha Elizabeth II, que vem desde 1952, superou o de Vitória). Nas suas últimas décadas, entretanto, já se prenunciavam mudanças radicais. Foi a passagem do que parecia imutável para a imprevisibilidade cultural, social e política.

Sherlock Holmes e, principalmente, o Dr. Watson são homens tipicamente vitorianos. Bem como o próprio Conan Doyle, um comportado cidadão em Londres, mas um soldado, defensor do Império, nas colônias. Ou quase como O médico e o monstro, também uma obra vitoriana, do escritor Robert Louis Stevenson (1850-1894), publicada em 1886. Além disso, entre 1914 e 1918, Conan Doyle serviu na Primeira Guerra Mundial, o mais sangrento conflito que a humanidade conheceu até então. Enfim, Sherlock Holmes não deixa de ser um personagem que tenta impor ordem ao caos, oferecendo, diante do incompreensível, a racionalidade e o discernimento. E um tanto do humor – da ironia, do aparente distanciamento e frieza – que virou marca caricatural do caráter britânico, confrontando-se com um mundo que seguia rumos cada vez mais ameaçadores.

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Em “O problema final” (1893), Watson cumpre o doloroso dever de narrar a morte de Sherlock Holmes. É nesse conto que o detetive revela ao mundo a existência do professor Moriarty. Trata-se, segundo o próprio Holmes, do único ser cuja capacidade intelectual se equivale à dele. Assim, Holmes e Moriarty travam um jogo estratégico no qual cada um tenta antever os movimentos do outro.

O embate final ocorre às margens das cataratas de Reichenbach, na Suíça. Pelas marcas deixadas na terra, Watson deduz que os dois haviam entrado em luta corporal, despencado no precipício e sido destroçados pela queda nas águas turbulentas.

Mas engana-se quem pensa que essa será a última cachimbada de Sherlock Holmes...

Ele é o Napoleão do crime, Watson.

Sherlock Holmes, sobre o professor Moriarty, em “O problema final”, 1893

O RETORNO DE HOLMES

Conan Doyle tinha certa mágoa de Holmes. Considerava a literatura de mistério um gênero de pouca importância e sonhava ser conhecido como grande escritor da língua inglesa com obras mais qualificadas. Foi por isso que matou Holmes no conto “O problema final” (1893).

Os fãs de Holmes ficaram desconsolados. Conan Doyle tentaria posteriormente outros gêneros literários. O maior sucesso foi O mundo perdido (1912), com um novo herói, o professor Challenger. Mas, antes

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disso, os fãs o obrigaram a trazer Holmes de volta. Isso ocorreu no conto

“A casa vazia” (publicado em livro em 1903). Holmes aparece de repente, diante de um Watson dividido entre a alegria e o espanto, para explicar que somente Moriarty caíra nas cataratas de Reichenbach. No entanto, o detetive, que acumulara outros inimigos perigosos, resolvera deixar que acreditassem que morrera também. Os leitores apelidaram esses anos sem Holmes de “O Grande Vazio” (The Great Void).

A última aparição de Holmes seria em 1927, no conto “O velho solar de Shoscombe”. No entanto, o próprio Conan Doyle (na voz de Watson) já se encarregara de anunciar ao mundo, numa introdução da coletânea O último adeus de Sherlock Holmes (1917), que Holmes se aposentara e se recolhera ao interior da Inglaterra, dedicando-se, já idoso e reumático, à jardinagem e a alguns estudos científicos, mas não mais à solução de mistérios. (As histórias dos contos escritos depois de 1917 situam-se ainda no período anterior.)

Depois da morte de Conan Doyle, Holmes ganhou uma “biografia não autorizada”, Sherlock Holmes of Baker Street, que afirma que o detetive morrera em 1957, aos 103 anos de idade. A biografia foi escrita em 1962 por William S. Baring-Gould, autor de uma edição comentada de Holmes e famoso estudioso dos romances e contos do detetive.

ÍDOLOS ETERNIZADOS

Tão importante é o personagem Sherlock Holmes que, no edifício número 221B da Baker Street, em Londres, há uma placa sinalizando que ali morou o “detetive consultor”, entre os anos 1881 e 1904. lindsayascott/Pixabay.com symvol/Pixabay.com

Na saída da estação de metrô da Baker Street, encontra-se também uma estátua do personagem.

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C R O N O L O G I A

1859

Em 22 de maio, nasce em Edimburgo (Escócia), Arthur Ignatius Conan Doyle, filho de Charles Doyle e Mary Foley.

1876

Começa a estudar Medicina na Universidade de Edimburgo. É lá que vai conhecer o Professor Joseph Bell, que o inspirará na criação de Sherlock Holmes.

1879

Já trabalhando como médico, publica, anonimamente, o primeiro trabalho ficcional, o conto “O mistério do vale de Sassassa”, no semanário Chambers’s Journal.

1880

Viaja pelo Ártico como médico de bordo num baleeiro.

1881

Completa a formação médica na Universidade de Edimburgo.

1885

Casa-se com Louise Hawkins.

1887

Publica Um estudo em vermelho, apresentando os personagens Sherlock Holmes e Dr. John Watson. A dupla estrelará 56 contos e quatro romances.

1890

Publica O signo dos quatro.

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1891

Abandona a medicina. Publica, na revista Strand Magazine, os primeiros contos de As aventuras de Sherlock Holmes.

1892-1893

Sai a coletânea As memórias de Sherlock Holmes, que inclui o conto “O problema final”, em que Watson narra a morte do detetive.

1902

Recebe da Coroa britânica o título de Sir. Publica O cão dos Baskerville

1903

Publica a coletânea A volta de Sherlock Holmes, com o conto “A casa vazia”, em que Watson reencontra Holmes, vivo.

1906

Morre a esposa, Louise. No ano seguinte, Conan Doyle se casa com Jean Leckie, amiga da irmã do escritor.

1912

Publica O mundo perdido, tendo como protagonista o professor Challenger (em inglês, o nome significa “desafiante”).

1917

Publica a coletânea O último adeus de Sherlock Holmes, com o conto de mesmo nome, em que Sherlock Holmes se despede. No entanto, Conan Doyle ainda escreve outros contos com o personagem, que se passam num período anterior à despedida.

1922

Publica A chegada das fadas.

1930

Em 7 de julho, morre de ataque cardíaco na sua casa, em Crowborough, na Inglaterra.

Elaboração: Luiz Antonio Aguiar

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Ao ler esta edição de Sherlock Holmes – casos extraordinários , traduzida e adaptada por Marcia Kupstas, confesso que me transportei de volta para a adolescência. Eu tinha meus 12 para 13 anos quando topei com o livro Um estudo em vermelho, de Conan Doyle. Provavelmente numa edição adaptada para jovens, como esta aqui.

Foi naquele livro, encontrado ao acaso na biblioteca da minha mãe, que eu conheci Sherlock e me encantei com o detetive brilhante e suas fantásticas deduções. Mas, curiosamente, percebi que a minha vocação era mais para Dr. Watson do que para Holmes. Ou seja: eu me identificava mais com o aliado do detetive, com o sujeito que conta as histórias, que acompanha os mistérios, que observa e

admira as técnicas de Sherlock, do que propriamente com o detetive. Talvez ali estivesse a primeira pista (opa!!!) de que eu seria um escritor, no futuro.

Logo percebi que a dobradinha entre Holmes e Watson só poderia mesmo dar certo. Afinal de contas, os médicos e os detetives têm muito em comum. Ambos olham para as pessoas em busca de pistas do que pode estar escondido, do que pode ter acontecido de errado. Não custa lembrar que, antes de tornar-se escritor, Conan Doyle cursou medicina e exerceu a profissão por muitos anos.

Depois de Um estudo em vermelho , procurei outras histórias de Sherlock e fui passando de um livro para o outro, sem parar. Li, então, O cão dos Baskerville, O signo dos quatro e

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várias outras aventuras escritas por Conan Doyle.

Algum tempo depois, pulei para os livros de Agatha Christie e passei ao menos dois anos devorando cada mistério desvendado por seus detetives, Hercule Poirot e Miss Marple. Por volta daquele tempo, eu já tinha descoberto, também, a maravilhosa turma do Gordo, um grupo de garotos detetives, criados por João Carlos Marinho, que não faziam feio diante dos detetives internacionais. Perdi a conta de quantas vezes li O gênio do crime, O caneco de prata, Sangue fresco, entre outros da turma do Gordo.

É, porque um bom livro de mistério não se esgota em uma só leitura. Tempos depois podemos voltar a ele e descobrir novos detalhes, novos sentidos. Agora mesmo, relendo estes

Casos extraordinários, me diverti novamente com toda a mística de Sherlock. O apartamento incrivelmente bagunçado no número 221B da rua Baker, que servia de moradia e escritório para o detetive (e, durante um tempo, para Dr. Watson também). O chapéu, o casaco, a lente de aumento. E o cachimbo, é claro!

Os casos reunidos neste volume, embora poucos, são bem diferentes entre si e já permitem que o leitor novato no mundo de Holmes perceba a variedade das aventuras escritas por Conan Doyle. Temos o inevitável mordomo (será o culpado, como diz a lenda?), criados, condessas, policiais, amantes, filhos secretos, tesouros escondidos, joias roubadas, assalto a banco.

No conto “O Diamante Azul”, descobrimos incrédulos – como

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Watson! – que examinar um mero chapéu velho e amarrotado é suficiente para Holmes deduzir a idade, o estado civil, a situação financeira do dono e até mesmo o fato de que ele não tem gás encanado. E, em “A face amarela”, encontramos até mesmo um caso em que as deduções de Sherlock deram errado, o que não era tão comum. Em toda a sua carreira detetivesca, nosso detetive foi derrotado pouquíssimas vezes, sendo a mais marcante por uma mulher: Irene Adler. Mas Irene não está neste livro: para encontrá-la, o leitor vai ter que buscar outras aventuras de Sherlock Holmes.

Isto, certamente, será um prazer para você, leitor. Uma vez iniciados nas histórias de Holmes e Watson, temos pela frente um universo quase infindável. Não apenas os vários livros escritos por Conan Doyle, mas também outros, escritos, até hoje, por admiradores de Sherlock, como fizeram o brasileiro Jô Soares (O xangô de Baker Street) e o indiano Vasudev Murthy ( Sherlock Holmes no Japão, livro que recria com rigor e detalhes a atmosfera das aventuras e o método investigativo de Holmes). Vale a pena conferir, também, as peças

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de teatro e os inúmeros filmes que atualizam e modernizam o personagem. Nessas adaptações, Sherlock combate os nazistas, conhece Freud, viaja para os Estados Unidos e para outros lugares que Conan Doyle nunca teria imaginado.

Sem falar, é claro, nas séries de TV que continuam conquistando milhões de admiradores para Sherlock e a doutora Watson. Doutora? Isso mesmo, a série Elementary teve a saudável petulância de retratar Watson como mulher. E qual o problema? Como este livro nos lembra mais uma vez, Sherlock são muitos. E Watson somos também!

Professor, tradutor e jornalista. Mestre em Ciência da Informação e doutor em Artes/Cinema.

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PRIMEIRA PAIXÃO À

Conheci Sherlock Holmes – e, por tabela, seu admirável criador, Sir Arthur Conan Doyle – na adolescência. Foi paixão à primeira leitura. Como aquele detetive era pernóstico, irritantemente arrogante, manipulador e orgulhoso! Mas como era fascinante, ao nos humilhar – a nós, leitores, e a seus contemporâneos ingênuos – quando não conseguíamos acompanhar seu raciocínio na solução de um crime aparentemente sem solução!

“Elementar, meu caro Watson”, dizia Holmes para o seu colega de moradia, um médico, tão surpreso como nós diante da explicação sherlockeana para um caso que parecia impossível de resolver. Era elementar que uma leitora-devoradora-de-livros, como eu, me tornasse mais e mais uma admiradora dos livros de Doyle.

Li todos os volumes por aquela época, tanto os romances como os contos. Comprei e li outras histórias de Doyle, sem Sherlock, mas também misteriosas e com enredos muito bem construídos. Adulta, tive o privilégio de reler e adaptar algumas dessas narrativas para o jovem leitor brasileiro do século XXI.

Para Casos extraordinários, dentre dezenas de contos, escolhi “A face amarela”,

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PRIMEIRA

LEITURA

“O ritual Musgrave”, “A Liga dos Cabeças-Vermelhas” e “O Diamante Azul” porque, além de apresentarem a fantástica capacidade de dedução de Holmes, trazem particularidades de seu comportamento que vale ressaltar: um raro momento de equívoco do detetive; um enigma histórico; um bem-humorado quiproquó envolvendo homens ruivos; ou a recusa de Holmes em fazer papel de policial, liberando um transgressor ingênuo. São facetas fascinantes do “diamante” que é o personagem.

Acredito que Sherlock é um personagem ainda atual, na sua capacidade de pôr ordem no caos, e sempre fascinante, com sua personalidade de um heroísmo duvidoso, uma mistura de arrogância e descaso pelas pessoas comuns. E, se posso confessar ainda mais a minha tietagem, quando resolvi escolher um escritor para homenagear nomeando a minha microempresa, não tive dúvida: batizei-a de Doyle. Em respeito a um homem que soube cativar o seu público, com enredos e personagens que marcaram um gênero literário para sempre.

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SHERLOCK HOLMES

CASOS EXTRAORDINÁRIOS

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A face amarela1

Os leitores bem sabem que eu, Dr. John Watson, relatei dezenas de casos que foram solucionados pela inteligência e lógica de meu amigo Sherlock Holmes. Sabem também que foram poucas as vezes que registrei insucessos em sua brilhante carreira.

Confesso que não escondo as derrotas. A verdade é que as vitórias de Sherlock foram constantes, sempre que ele se dedicou a esclarecer mistérios ou crimes que pareciam impossíveis de resolver pela maior parte da humanidade; mas também amargou, nesses tantos anos em que convivo com ele, alguns equívocos.

É o que ocorreu neste caso que denominei “A face amarela”.

Tudo começou quando surgiu um homem em nosso escritório da rua Baker, 221B. Entrou sem bater à porta. Estava bem-vestido e tinha

1 O conto “The Yellow Face” foi publicado na revista The Strand Magazine, em fevereiro de 1893, e no livro The Memoirs of Sherlock Holmes, no ano seguinte.

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CONTO 1

um chapéu na mão. Parecia bastante nervoso. Eu lhe daria uns trinta e poucos anos.

– Peço-lhes desculpas, cavalheiros – disse ele, um tanto embaraçado. – Devia ter batido. Mas o fato é que estou sem dormir direito há algumas noites e…

Passou a mão pela testa e dirigiu-se ao sofá. Diria que mais caiu sobre ele do que sentou.

– Algumas noites sem dormir cansam mais os nervos do que o trabalho… – disse Holmes, com um jeito de intimidade que sempre coloca à vontade as pessoas que o procuram. – Em que posso ajudá-lo?

– Quero o seu conselho, senhor. Não sei o que fazer. Toda a minha vida parece que está afundando.

– O senhor quer me contratar como detetive?

– Não é bem isso. Quero a sua opinião porque sei que o senhor é um homem especial, que desvenda mistérios e conhece a alma humana. Preciso de um conselho. Até para saber o que devo fazer depois.

O homem falava pausadamente, mas o tom de sua voz mostrava que seu assunto era doloroso. Continuou depois, com o rosto ruborizado:

– É tudo tão estranho, tão delicado! É horrível discutir o comportamento da esposa com dois homens que nunca se viu antes!

Mas estou no fim das minhas forças e preciso de conselho.

– Meu caro Sr. Grant Munro… – começou Sherlock.

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Nosso visitante saltou do sofá.

– O quê?! – gritou ele. – O senhor sabe o meu nome?

– Se o senhor pretende permanecer incógnito – disse Holmes, sorrindo –, sugiro que deixe de escrever o nome no forro do chapéu. E também que não vire o interior do chapéu para aqueles com quem está falando…

Holmes sentou-se no outro sofá e pegou o cachimbo. Acendeu-o calmamente, enquanto continuava:

– Gostaria também de lhe dizer que eu e meu amigo já ouvimos muitos segredos nesta sala e a sorte nos sorriu, de modo a trazer paz para muitas almas angustiadas. Espero que possamos fazer o mesmo pelo senhor.

O assim descoberto Sr. Munro passou a mão pela testa diversas vezes, como se os pensamentos lhe fervessem dentro da cabeça. Imaginei que ele seria um homem reservado e orgulhoso, do tipo que prefere esconder suas feridas a expô-las. Mas, num gesto súbito, esmurrou a mão que segurava o chapéu, como quem nada mais tem a perder, e começou a falar:

– Os fatos são estes, Sr. Holmes: sou casado há três anos. Durante esse tempo, eu e minha esposa vivemos bem, amamos um ao outro e nunca tivemos sequer uma discussão. Agora, desde a última segunda-feira, ergueu-se uma barreira entre nós. Descobri que há alguma coisa na sua vida e nos seus pensamentos que eu não conheço, como se Effie fosse uma mulher estranha, uma desconhecida com quem eu cruzasse pelas ruas. Quero saber por quê.

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2 Capital do estado da Geórgia, nos Estados Unidos.

Antes de continuar, Sr. Holmes, quero deixar bem claro uma coisa: Effie me ama. Não tenho dúvidas a esse respeito. Eu sinto isso. Mas agora surgiu esse segredo e jamais serei o mesmo com ela, enquanto não esclarecer tudo.

– Por favor, Sr. Munro, procure me apresentar os fatos – disse Sherlock, um tanto impaciente.

Nosso cliente respirou profundamente e procurou ser mais objetivo:

– Eu lhe direi o que conheço da história de Effie. Quando a conheci, era viúva, embora muito jovem. Tinha apenas 22 anos. Chamava-se então Sra. Hebron. Foi para a América quando criança e morou em Atlanta2, onde se casou com Hebron, um advogado de grande clientela. Tiveram uma filha. Mas aconteceu uma terrível epidemia de febre amarela, e tanto o marido como a menina adoeceram. Vi a certidão de óbito do marido. Essa desgraça abalou a pobre Effie a tal ponto que ela voltou para a Inglaterra, para morar com uma tia solteira em Londres. Não se mudou para cá por necessidade, Sr. Holmes; o marido a deixou muito bem de dinheiro. Ela possuía um capital de quatro mil e quinhentas libras. Eu tam-

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bém não sou pobre; trabalho com cereais e ganho em torno de oitocentas libras anuais. Na ocasião de nosso casamento, eu e Effie resolvemos alugar uma casa no campo, em Norbury. É um lugar muito bonito, mas afastado da cidade. Na verdade, entre nossa fazendinha e a estação de trem, só existe uma casa no caminho, um pequeno chalé desabitado. No meu trabalho, preciso viajar durante algumas estações do ano, mas posso ficar em casa praticamente todo o verão. Minha esposa e eu fomos realmente felizes durante esses três anos.

Nosso visitante fez nova pausa, como se outra dúvida surgisse em sua mente. Holmes, envolto pela fumaça de seu cachimbo, não tirava os olhos dele.

– Antes de continuar, gostaria de esclarecer outro ponto. Quando nos casamos, minha esposa passou todos os seus bens para o meu nome, mesmo eu sendo contra isso. Há mais ou menos um mês e meio, ela me disse:

“Jack, quando você ficou com meus bens, disse que, se eu precisasse de alguma coisa, era só pedir”.

“Claro”, eu falei, “o dinheiro é todo seu.”

Ela me pediu então cem libras. Confesso que me assustei com o valor, porque imaginei que ela quisesse apenas um vestido novo ou algo assim. Cem libras é dinheiro para mais de dez vestidos!

“Para quê?”, perguntei.

“Ora, não pensei que você me fizesse tal pergunta. Eu quero esse dinheiro, só isso.”

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“E não me dirá para quê?”

“Um dia, quem sabe. Mas não agora, Jack.”

Pois bem, senhores, não insisti mais. Confesso que era um primeiro segredo entre nós, mas dei-lhe um cheque e não pensei no assunto. Pode ser que isso nada tenha a ver com os fatos que contarei a seguir, mas…

– Às vezes, Sr. Munro, um detalhe simples revela mais mistérios do que se supõe – completou Holmes. – Continue.

– Eu lhes disse como nossa fazendinha era afastada da cidade e mencionei um chalé desocupado. Na verdade, ele agora não está mais vazio.

Na última segunda-feira, passei pelo chalé durante meu passeio matinal e vi sinais de ocupação na casa. Movido pela curiosidade, olhei para as janelas superiores do chalé e vi um rosto.

Senhores, não posso explicar a terrível sensação que me bateu, o frio que senti gelar a espinha, ao ver aquela figura. Estava um tanto distante, não podia captar direito a feição, mas, Deus me perdoe!, aquilo não parecia humano. Não saberia dizer se era de homem ou mulher. Era uma face lisa, amarelada, quase brilhante. Fiquei tão transtornado que resolvi saber mais sobre os moradores do chalé.

Mal me aproximei da casa, o rosto desapareceu da janela. Bati à porta e surgiu uma mulher magra, com jeito de empregada. Tinha um forte sotaque do norte da Grã-Bretanha.

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“O que quer?”, disse a mulher, com cara enfezada.

“Sou seu vizinho. Moro ali”, disse, indicando minha casa. “Vejo que a senhora se mudou faz pouco tempo… Se precisar de alguma coisa, estamos às ordens.”

“Está bem, chamaremos quando precisarmos”, disse a mulher, batendo a porta.

Claro que fiquei aborrecido com a grosseria e tentei não pensar a respeito. Mas aquele rosto terrível não saía da minha cabeça. À noite, antes de deitar, mencionei para Effie que o chalé estava ocupado. Como ela é um pouco impressionável, nada contei sobre o rosto pavoroso ou o fato de ter conversado com a empregada mal-educada.

O Sr. Munro fez mais uma longa pausa. Perdeu-se ainda em seus pensamentos, mas nem eu nem Holmes nada dissemos que o impedisse de continuar a confidência:

– Tenho um sono de pedra, senhores. Minha família costumava brincar, dizendo que nem uma bomba conseguiria me acordar. Pois bem: não sei que estranho acaso me despertou naquela noite. Meio dormindo, meio acordado, percebi que minha esposa tinha se levantado da cama e estava se trocando. Pensei em dizer alguma coisa, mas vi a expressão de seu rosto, iluminado por uma vela. E o que vi, senhores, me abalou mais que tudo! Effie estava pálida, com uma expressão de criminosa, enquanto ajeitava a capa e verificava se eu ainda dormia.

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Ouvi quando ela saiu, desceu a escada e destrancou a porta da frente. Confirmei o horário no relógio de cabeceira: eram três horas da manhã. Que diabo minha mulher ia fazer àquela hora da madrugada?

Fiquei sentado na cama, aturdido, tentando organizar meus pensamentos. Meia hora depois, ouvi os passos dela na escada.

“Aonde você foi, Effie?”, perguntei, quando ela entrou.

Ela levou um susto violento e deu uma espécie de grito abafado, e isso me desesperou ainda mais: aquele grito denunciava a sua culpa.

“Jack! Você está acordado?! Eu pensava que nada pudesse acordá-lo.”

“Onde esteve?”, perguntei com mais rigor.

“Não me espanta que você tenha acordado.” Ela se desfez da capa, mas reparei nos dedos trêmulos e na voz, que tentava ser jovial. “Mas me ocorreu hoje algo que jamais aconteceu na vida… Acordei de tal maneira suada e irritada que imaginei que nunca voltaria a dormir! Precisei sair para tomar um pouco de ar. Só isso, Jack. Um passeio ao luar.”

Durante o tempo em que narrou essa história sem pé nem cabeça, Effie não me olhou no rosto. Claro que percebi que mentia. O que ela estaria escondendo de mim?

Effie meteu-se na cama e fingiu dormir. Mas creio que foi uma noite insone para ambos. Eu me revirava entre os lençóis, tentando explicar seu comportamento, tomado das mais fantásticas teorias.

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Na manhã seguinte, nosso desjejum foi dos mais tensos desde que nos casamos. Mal trocamos algumas palavras e eu saí. Deveria ir à cidade cuidar de negócios, mas estava tão transtornado que fui apenas a uma vila vizinha conferir uns documentos. Por volta de uma da tarde, estava na estrada de casa, passando diante do chalé recém-habitado.

E que surpresa, Sr. Holmes, ao ver minha esposa saindo dali! Fiquei mudo de espanto. Mas minha emoção não era nada, se comparada ao terror que vi no rosto de Effie quando me encontrou. Tentou voltar ao chalé, mas desistiu.

“Oh, Jack!”, disse ela. “Resolvi fazer uma visitinha a nossos vizinhos, para ver se precisavam de alguma coisa. Por que me olha assim? Está zangado comigo?”

“Estou”, respondi. “Foi esse o lugar onde esteve ontem à noite?”

“O que você quer dizer?”

“Você veio aqui, estou certo disso. Que pessoas são essas que você visita às três da madrugada?”

“Nunca estive aqui antes.”

“Effie, como tem coragem de negar o que é uma clara mentira?!”, gritei. “Até sua voz muda quando você mente. Vamos entrar agora mesmo e resolver esse mistério.”

“Não, Jack!”, pediu Effie, com os olhos cheios de lágrimas. “Imploro que não faça isso, Jack. Prometo que não voltarei mais aqui. Juro que um dia lhe direi tudo. Confie em mim só

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desta vez; nunca terá motivos para se arrepender. Se você forçar a entrada nesse chalé, estará tudo acabado entre nós.”

Effie pegou em meu braço e aceitei acompanhá-la, mas ia arrasado, sem saber o que pensar. E, ao olhar para trás, vi na janela do chalé aquele mesmo rosto medonho, brilhante, fantasmagórico.

O Sr. Munro tinha uma expressão terrível no olhar, como se a visão ainda o perturbasse. Holmes ofereceu ao nosso visitante uma bebida e um charuto, mas o desamparado narrador preferiu prosseguir no seu relato, falando com mais pressa e nervosismo.

– Sr. Holmes, fiquei os dois dias seguintes em casa e Effie não traiu sua promessa. No terceiro dia, porém, tive a certeza de que ela havia retornado ao chalé.

Meus negócios me levaram à cidade naquele dia, mas voltei no trem das 2h40, em vez de no das 3h36, como de costume. Ao entrar em casa, a criada correu para o hall, assustada.

“Onde está a patroa?”, perguntei.

“Acho que foi dar um passeio”, respondeu ela.

Meu coração encheu-se de suspeitas. Subi a escada, para confirmar se Effie estava em casa, e pela janela pude ver a criada correndo pelo campo em direção ao chalé. Imaginei que minha esposa pedira para a empregada avisá-la de meu retorno.

Jurei descobrir o segredo e saí disparado até o chalé. Nem bati à porta, entrei direto na casa. Não havia ninguém. Encontrei

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um gato dormindo no sofá, móveis simples pelas salas. Subi ao quarto onde tinha visto a criatura de rosto amarelo e parei diante da cômoda, sem fôlego: sobre ela, estava uma foto de Effie, que eu mandara ampliar havia uns três meses.

Por quanto tempo, senhores, fiquei ali naquele quarto vazio, perdido em ideias sombrias, olhando o retrato de minha esposa? Por longos minutos… e, quando voltei para casa, Effie me esperava no hall.

“Jack”, disse ela, “sei que prometi não voltar ao chalé e quebrei a promessa. Mas, se você soubesse das circunstâncias, sem dúvida alguma me perdoaria.”

“Então me conte”, eu falei.

“Não posso, Jack!”, ela gritou.

“Enquanto você não me disser quem mora nesse chalé e por que a sua foto está lá, não pode existir a menor confiança entre nós”, eu lhe disse, saindo de casa.

Isso aconteceu ontem, Sr. Holmes, e não a vi mais, nem sei o que pode ter havido. Dormi numa estalagem e hoje de manhã tive a ideia de procurá-lo, para me ajudar a desvendar esse mistério. É por isso que estou aqui, senhores, e me coloco em suas mãos.

Holmes e eu ouvimos a extraordinária narrativa do homem, feita aos trancos, revelando sua profunda emoção. Silêncio pesado na sala da rua Baker. Meu amigo fixava o olhar agudo no rosto do Sr. Munro. Afinal, o detetive perguntou:

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– O senhor tem certeza de que o rosto na janela era de um homem?

– Não, Sr. Holmes. Sempre o vi a distância e ele me pareceu irreal, com feição indefinida.

Nova pergunta:

– Há quanto tempo a sua senhora lhe pediu as cem libras?

– Cerca de dois meses.

– Já viu o retrato de seu primeiro marido?

– Não. Houve um grande incêndio em Atlanta depois de sua morte, e os papéis dele foram todos destruídos.

– No entanto, o senhor viu a certidão de óbito.

– Sim.

– Já encontrou alguém que conhecesse sua esposa na América?

– Nunca.

– Ela algum dia falou que gostaria de voltar para Atlanta?

Recebe cartas de lá?

– Também não, Sr. Holmes. Nunca revelou saudades da terra onde morreu o marido nem recebe cartas, que eu saiba.

– Pois bem – concluiu meu amigo, erguendo-se como se encerrasse o caso por aquele momento. – Preciso pensar um pouco mais. Se os moradores retornarem ao chalé, não force sua entrada na casa. Mande-me imediatamente um telegrama; pegarei o trem para Norbury, e creio que resolveremos tudo.

Dizendo isso, Holmes despediu-se do desventurado Sr. Grant Munro.

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– O que você acha, Watson? – perguntou meu amigo quando ficamos a sós.

– Acho que tudo isso cheira mal – falei com franqueza.

– Sim. Acredito que há uma chantagem nessa história.

– E quem seria o chantagista? – perguntei.

– Deve ser esse indivíduo que mora no chalé e tem a foto da esposa de Munro.

– Tem alguma hipótese, Holmes?

– Sim. Não ficaria surpreso se o primeiro marido estivesse no chalé.

– Por que pensa assim?

Então tive o prazer de acompanhar a atitude tão arrogante como atraente na natureza dedutiva de meu amigo Sherlock: ele vagarosamente acendeu o cachimbo e, enquanto a fumaça fazia volteios no ar, foi desfilando sua coleção de hipóteses.

– Elementar, meu caro Watson: essa mulher se casou na América. Seu esposo deve ter contraído uma doença terrível; ficou leproso ou imbecil, por exemplo. Ela fugiu e voltou para a Inglaterra, mudou de nome e começou nova vida. Casada havia três anos, sentia-se segura. Afinal, havia mostrado ao atual marido uma certidão de óbito de algum infeliz qualquer e levava uma vida tranquila. Repentinamente, foi descoberta pelo primeiro marido, ou, podemos supor, por uma mulher imoral, que se ligou ao inválido e tramou uma chantagem. Escreveram à esposa ameaçando denunciá-

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-la. Para acalmar os ânimos, a Sra. Munro enviou as cem libras aos chantagistas. Mas eles acharam pouco e quiseram dar o golpe mais de perto. Quando o Sr. Munro falou à esposa que o chalé estava ocupado, ela imaginou que ali estavam seus perseguidores.

Foi ao chalé de madrugada, para convencê-los a deixá-la em paz. Não teve êxito e tentou novamente no dia seguinte, sendo flagrada pelo marido. Prometeu ao Sr. Munro não retornar ao local, mas dois dias depois descumpriu a promessa, levando talvez a fotografia que eles exigiam. Informada pela criada do retorno do Sr. Munro, a esposa se desfez do ex-marido e de sua cúmplice por uma porta dos fundos, e isso explica o fato de o chalé estar desabitado. Mas, se não me engano, nosso cliente descobrirá que não ficou assim por muito tempo. O que acha da minha hipótese?

– São apenas hipóteses, Sherlock – eu respondi, não de todo convencido.

– Pelo menos explica todos os fatos. Bem, vamos almoçar. Nada podemos fazer até nosso amigo nos avisar que os moradores voltaram ao chalé.

Não esperamos muito tempo. À hora do chá, recebemos um telegrama de Munro: “O rosto foi visto outra vez à janela. Vou esperá-los no trem das sete e nada farei antes de chegarem”.

O Sr. Munro nos esperava na estação. Reparei que seu rosto estava pálido e ele parecia muito agitado.

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– Ainda está lá, Sr. Holmes. Vi luzes no chalé enquanto vinha buscá-los. Quero esclarecer tudo isso hoje mesmo.

– Tem certeza disso, amigo? – perguntou Holmes, com uma expressão de tristeza no olhar. – Mesmo com o aviso de sua esposa de que não deveria forçar uma resposta?

– Sim. Estou resolvido.

– O senhor está no seu direito. Qualquer verdade é melhor do que a dúvida eterna. Mas temo que o senhor acabe topando com um terrível engano… Mas, se é a verdade o que deseja, vamos a ela!

A noite estava muito escura e começou a chover. Seguimos em silêncio pela estrada. Além, avistavam-se as luzes da propriedade dos Munro. E logo a seguir vimos o chalé.

Uma lanterna estava acesa à frente do sobrado. A porta não estava totalmente fechada, e uma janela no andar de cima estava bastante iluminada.

– Lá está a criatura! – gritou o Sr. Munro, apontando para a janela. – Sigam-me, senhores, e sejam minhas testemunhas.

Mal nos aproximamos da porta, uma mulher saiu da sombra e parou no hall de entrada. Ela estendeu os braços para a frente, num gesto de piedade.

– Pelo amor de Deus, Jack, não entre! Eu pressentia que você viria aqui nesta noite. Pense melhor, querido! Confie em mim e não se arrependerá.

– Já confiei muito, Effie! – gritou ele. – Vamos acabar com essa farsa! Sigam-me!

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A empregada surgiu na sala, tentando barrar o caminho, mas foi empurrada pelo alucinado Sr. Munro. Logo, todos subíamos apressados a escada e invadíamos um quarto bem arrumado.

No canto, inclinado sobre uma carteira, estava um vulto que parecia de uma menina. Ela virou o rosto quando entramos, e não segurei um grito de surpresa e horror. O rosto que se voltou para nós era de uma cor lívida e estranha, os traços vazios de expressão. Um instante depois, o mistério estava explicado. Holmes, com uma risada, passou a mão atrás da orelha da criança e retirou uma máscara de seu rosto, apresentando-nos uma menina preta como carvão, com dentes brancos a cintilar, divertida com nosso espanto.

Meu alívio diante daquilo que parecia uma brincadeira exótica me fez sorrir. Munro, porém, ficou imóvel, apertando a garganta com a mão.

– Meu Deus! – gritou ele. – O que significa isso?

– Eu lhe direi o que significa – disse a senhora, entrando no quarto com uma determinação orgulhosa que não possuía à porta do chalé. – Você me forçou a dizer a verdade contra minha decisão. Agora precisamos fazer o melhor possível. Esta é minha filha.

– Sua filha?! – exclamou o marido.

– Sim. Meu marido morreu em Atlanta, mas minha filha sobreviveu.

A mulher tirou do peito um medalhão e o abriu.

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– Você nunca o viu aberto, Jack. Aqui está a foto de meu primeiro marido.

Vimos o retrato de um homem de aparência elegante e inteligente, com inconfundíveis traços afro-americanos.

– Este é John Hebron – disse ela. – Homem de sua nobreza jamais existiu sobre a Terra. Nunca me arrependi de casar com ele. Só que, como acontece às vezes em tais casamentos, Lucy saiu mais negra que o pai. Porém, negra ou branca, é minha filhinha querida, o meu tesouro.

Ao ouvir essas doces palavras, a menininha correu e se aninhou no colo da mãe.

Beijando os cabelos encarapinhados da filha, Effie continuou a nos contar:

– Deixei Lucy na América porque sua saúde era muito fraca e uma mudança poderia ser fatal. Ficou aos cuidados de uma fiel empregada escocesa, esta que mora aqui no chalé agora. Nunca pensei em repudiar minha filha, Jack. Mas quando o destino o colocou no meu caminho e percebi quanto o amava, tive medo de lhe contar sobre a minha filha. Deus me perdoe, mas tive medo de perder você e me faltou coragem para lhe contar tudo. Tive de escolher entre você e ela e, na minha fraqueza, abandonei minha filhinha.

Durante três anos escondi Lucy de você, Jack. Mesmo a distância, porém, acompanhei a vida de minha filha, porque a criada me enviava cartas para uma caixa postal. Oh, Jack! As

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saudades de minha filha foram-se tornando insuportáveis. Apesar de conhecer o perigo, acreditei que poderia trazer Lucy para a Inglaterra por algumas semanas. Sua saúde estava boa e ela suportaria a viagem. Por isso pedi as cem libras, Jack, para enviá-las à governanta. Na carta, também expliquei sobre este chalé. Se elas aparecessem como vizinhas, poderia encontrar minha filha sem que você desconfiasse. Fui tão precavida que inventei a ideia da máscara, para evitar que algum mexeriqueiro visse o rosto de Lucy e comentasse por aí. Mas, para minha infelicidade, foi você quem a descobriu primeiro.

Effie parou um instante de falar e seus olhos encheram-se de lágrimas. Apertou com mais força a cabeça da filha em seu colo, e continuou:

– Naquela noite em que você comentou sobre o chalé ocupado, meu coração de mãe falou mais alto. Não aguentei esperar até o dia seguinte para rever minha menina e, sabendo de seu sono profundo, arrisquei-me a visitá-la. Infelizmente, você acordou e desconfiou do meu segredo. Não tive coragem de lhe dizer a verdade e, quando você invadiu o chalé, mal tive tempo de tirar Lucy e a empregada por uma saída nos fundos. E agora, nesta noite, você sabe de tudo, e pergunto o que vai ser de nós, de mim e de minha filha.

A mulher colocou a menina diante de todos. Ambas esperaram, sem modificar a expressão altiva, pela resposta do Sr. Munro.

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Passaram-se dois longos minutos antes de Grant Munro quebrar o silêncio. Ah, mas a sua resposta foi daquelas de que jamais me esquecerei! O homem pegou a menininha no colo, beijou-a e, ainda carregando-a, estendeu a mão à esposa, dirigindo-se para a porta.

– Podemos conversar sobre isso com mais conforto em nosso lar – disse ele. – Não sou um homem muito bom, Effie, mas penso que sou melhor do que você imaginava que eu fosse.

Holmes e eu os acompanhamos até a porta. Quando a família seguiu pela estrada, meu amigo me puxou pelo braço, murmurando:

– Creio que somos mais úteis em Londres do que aqui em Norbury.

Durante a viagem de trem até a capital, Sherlock não disse uma única palavra sobre o caso. Só bem tarde da noite, já na sala da rua Baker, Holmes se atreveu a fazer uma confidência:

– Watson, se alguma vez você me vir muito confiante em minhas hipóteses, ou se eu mostrar menos atenção a um caso do que ele merece, tenha a bondade de dizer em meus ouvidos a palavra “Norbury”. Ficarei infinitamente agradecido.

Sherlock Holmes foi para seu quarto, e confesso minha alegria em saber que meu amigo havia errado tão flagrantemente em suas deduções.

A realidade nos apontou um desfecho muito mais comovente e expressivo do que a hipótese da chantagem vulgar.

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Uma das grandes contradições de meu amigo Sherlock Holmes é ser um dos homens mais racionais e organizados no combate ao crime, mas mostra-se completamente desleixado nos hábitos pessoais. É verdade que não sou tão obcecado por limpeza como meus colegas médicos, já que servi no Exército nos desertos do Afeganistão e tive que me adaptar às circunstâncias; mas, perto de Holmes, pareço um nobre.

Nossa residência na rua Baker, 221B, vive atulhada de equipamentos científicos, relíquias de crimes, recortes de jornais e coisas semelhantes. Um dos objetos que sempre me despertam a curiosidade é um arquivo enorme, repleto de fichas com antigos casos de Holmes.

Certo dia, Sherlock se pôs a rever aqueles papéis. Pegou uma ficha e leu-a durante um bom tempo. Afinal, virou-se para mim e disse:

3 O conto “The Musgrave Ritual” foi publicado na revista The Strand Magazine, em maio de 1893, e no livro The Memoirs of Sherlock Holmes, no ano seguinte.

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CONTO 2 O
ritual Musgrave3

– Watson, creio ter aqui um caso bem interessante, um dos primeiros que desvendei. Talvez você se interesse em registrá-lo, numa dessas crônicas que tão bem escreve a respeito de meus dons dedutivos.

– Sobre o que é, Holmes? – interessei-me.

– Eu o batizei de ritual Musgrave…

Eis aqui a história, como me foi contada pelo próprio Holmes.

Estava começando a usar meus dotes dedutivos na profissão de detetive particular, quando fui procurado por Reginald Musgrave. Estudamos juntos no colégio, mas nunca fomos íntimos. Mesmo assim, ele acompanhava meu sucesso na carreira e foi por esse motivo que me procurou.

Fazia quatro anos que não via Reginald. Eu me lembrava dele como uma pessoa elegante, suave no falar e calmo em analisar a vida e as pessoas. Por isso, estranhei que meu ex-colega de escola aparecesse em casa com um jeito apreensivo, quase nervoso.

– Como estão as coisas, Reginald? – perguntei.

– Você deve saber, Holmes, que meu pai faleceu há dois anos. Desde então, herdei as propriedades de Hurlstone e tenho muito trabalho em administrá-las… – houve uma pausa ansiosa em nossa conversa. Afinal, ele completou: – Sei que você está usando profissionalmente os talentos com que nos espantava na escola.

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– É verdade. Tenho resolvido alguns casos – respondi.

– Eu gostaria de contratá-lo. Em Hurlstone, andam acontecendo coisas estranhas, e gostaria muito de contar com sua ajuda profissional.

Pedi ao meu amigo mais detalhes e o ouvi com atenção.

– Você sabe que, mesmo sendo solteiro, preciso manter em Hurlstone um grande quadro de empregados. Temos oito criadas, a cozinheira, o mordomo, dois lacaios e um menino, além do pessoal que cuida do jardim e dos estábulos.

Desses criados, quem trabalhava para nós havia mais tempo era Brunton, o mordomo. Era professor e estava desempregado quando foi contratado por meu pai. Tinha muita energia e caráter e logo se mostrou indispensável na casa. Brunton era alto, bem-apessoado, e, embora estivesse conosco fazia mais de vinte anos, tinha quarenta e poucos. Sabia falar várias línguas, e nos espantava que um homem com tantos talentos aceitasse o emprego de mordomo, ganhando menos do que poderia. Suponho que lhe agradasse morar no campo e visse a profissão com certo comodismo. Aliás, não havia quem nos visitasse em Hurlstone que não se lembrasse de nosso mordomo. Mas todo modelo de virtude tem seu ponto fraco. O de Brunton eram os rabos de saia. Um bocado dom-juan, o nosso mordomo. Quando era casado, tudo ia bem. Acontece que ficou viúvo e a nossa luta com ele não tinha fim. Pensamos que as coisas se acertariam quando Brunton ficou noivo de nossa

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caseira, Rachel Howells. Mas ele desfez o compromisso e começou a cortejar outra moça.

Rachel, que é uma moça muito boa, mas muito suscetível, adoeceu com o rompimento do noivado. Teve uma febre terrível e quase morreu. A pobre moça salvou-se, mas acabou com uma sequela, um olho torto. Andava pela casa feito alma penada, e esse foi o primeiro drama que aconteceu em Hurlstone.

O segundo foi a demissão de Brunton.

Eu lhe disse, Holmes, que o homem era inteligente. E isso foi a causa de sua ruína. Foi essa inteligência que o levou a uma curiosidade insaciável sobre coisas que não eram da sua conta. Hurlstone é um casarão esparramado. Na semana passada, na quinta-feira à noite, eu não conseguia pegar no sono. Às duas da manhã, resolvi continuar o romance que estava lendo e fui buscar o livro, que tinha deixado no salão de bilhar. Para chegar lá, tinha de atravessar a biblioteca e a sala de armas. Imagine minha surpresa, Holmes, quando, olhando para o fim do corredor, vi o brilho de uma luz que vinha da biblioteca.

Encontrei o mordomo sentado numa poltrona, com um papel nos joelhos semelhante a um mapa. Eu o vi se levantar e pegar um dos livros, voltando a fazer anotações. Eram documentos de minha família, Holmes, e fiquei furioso.

“Então”, gritei com ele, “é assim que retribui a confiança que sempre tivemos no senhor? Considere-se despedido. Saia amanhã mesmo.”

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O homem ficou pálido, Holmes, mas não perdeu a pose. Arranquei de suas mãos os papéis que consultava e me espantei em ver que eram apenas uma cópia das perguntas e respostas de um velho juramento familiar, batizado de ritual Musgrave. É uma cerimônia especial, que cada Musgrave, quando chega à maioridade, tem de repetir diante dos membros da casa. Aquilo sempre me pareceu um amontoado de frases sem sentido; quando muito, poderia interessar a um arqueólogo, mas nada para atrair a atenção de um simples mordomo.

– Você pode explicar esse ritual depois, Reginald – falei. –Conte mais sobre o mordomo.

– Então, Brunton me surpreendeu com um pedido.

“Sr. Musgrave”, ele falou, com a voz cheia de emoção, “eu imploro, não posso sofrer essa desonra. Sempre fui fiel à sua família e não conseguiria suportar a vergonha de uma demissão. Por favor, dê-me um mês. Depois disso, posso dizer que saí por minha própria vontade.”

“O ato de bisbilhotice que o senhor cometeu hoje não merece muita consideração”, respondi, “mas, em memória de meu falecido pai, que gostava tanto de sua pessoa, vou reconsiderar. Dou-lhe uma semana para arrumar outra ocupação.”

Brunton ainda tentou discutir, mas percebeu que era inútil e conformou-se com o prazo.

Nos dois dias seguintes, o mordomo foi impecável como sempre. No terceiro dia, porém, ele não apareceu para receber

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as instruções, depois do meu café da manhã, como era costume. Ao sair da sala, encontrei a criada Rachel, que estava muito pálida e abatida. Ela vinha de ter sofrido uma grave doença e a repreendi por voltar tão cedo ao trabalho.

“Já estou me sentindo bem melhor, senhor”, ela respondeu.

“Vamos ver o que o médico vai dizer. Diga a Brunton que quero vê-lo.”

“O mordomo Brunton se foi, senhor”, ela respondeu.

“Foi? Para onde?”

“Ninguém o viu. Não está no seu quarto. Oh!, sim, ele se foi…”, e a pobre moça teve um acesso de riso histérico e se pôs a gritar feito uma demente.

A criada foi levada até seus aposentos, e revistei o quarto de Brunton. Realmente, ele tinha desaparecido. O estranho era que ele não havia levado nada, nem mesmo os objetos pessoais. Outro mistério: como poderia ter saído se todas as portas e janelas da propriedade ficavam trancadas até de manhã?

Claro que reviramos a casa inteira, do porão ao sótão, mas não achamos o mordomo.

Esse desaparecimento seria um grande mistério, Holmes, se a ele não se juntasse outro: a criada Rachel também desapareceu misteriosamente!

Rachel ficou de cama, doente, por dois dias. Contratei uma enfermeira para cuidar dela, mas numa noite a mulher adormeceu e, de manhã cedo, a enferma tinha desapareci-

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do! Chamei os empregados e demos nova busca na casa inteira. Dessa vez, porém, achamos uma pista bem desagradável. Debaixo da sua janela, havia pegadas que se dirigiam à lagoa. À sua margem, as pegadas desapareciam perto de um caminho de pedra que segue para os campos.

Buscamos ganchos, acreditando que acabaríamos pescando o corpo da pobre suicida. Não achamos um cadáver, mas os operários resgataram um objeto dos mais inesperados. Era um saco de linho, com grande quantidade de metal antigo, enferrujado, além de pedaços de pedras e vidros, também descorados pelo tempo.

Pois bem, Holmes, aqui termina minha história. Apesar de todas as pesquisas de meu pessoal e da boa vontade da polícia local, não há o menor traço de Richard Brunton nem de Rachel Howells. É por esse motivo, Holmes, que estou recorrendo a você, como minha última esperança de solucionar esse mistério tão grande.

Ora, Watson, imagine como fiquei ansioso em resolver esse caso! O mordomo havia desaparecido. A criada, que o amava e depois tinha motivos para odiá-lo, sumira também. Ela tinha sangue galês, furioso e apaixonado. Antes do sumiço do homem, a criada teve uma crise nervosa. Atirou no lago um saco contendo objetos estranhos… Imediatamente comecei a juntar os pedaços da história. Tinha de haver um ponto de ligação em tudo aquilo.

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– Reginald – falei para meu amigo –, preciso ver o tal papel que seu mordomo acreditava ser tão importante.

– Ora – respondeu meu ex-colega de escola –, é uma tolice arqueológica. Um ritual que só interessa porque é bem antigo. Tenho aqui uma cópia das perguntas e respostas. Se quiser, posso mostrá-la…

Reginald me passou o papel, que ainda guardo em meu arquivo. Leia, Watson. Cada Musgrave, ao chegar à idade adulta, tem de recitar em voz alta esse jogo de perguntas e respostas:

– De quem era?

– De quem se foi.

– De quem será?

– De quem vier.

– Onde estava o sol?

– Sobre o carvalho.

– Onde estava a sombra?

– Debaixo do olmo.

– Como chegar?

– Norte, dez e dez; leste, cinco e cinco; sul, dois e dois; oeste, um e um, e então embaixo.

– O que daremos por ela?

– Tudo o que é nosso.

– Por quê?

– Pela confiança.

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O original devia ser de meados do século XVII, foi o que me disse Reginald. Mas ele não acreditou que o ritual me ajudasse a resolver o caso do desaparecimento dos criados.

Não foi o que eu pensei, Watson. E disse isso a ele:

– Desculpe-me, Reginald, mas acho que o mordomo era mais inteligente e lúcido do que dez gerações de seus patrões.

– Como assim? – espantou-se ele.

– Diga-me… na noite em que você flagrou o mordomo na biblioteca, disse que o homem segurava nas mãos algo semelhante a um mapa?

– Foi o que me pareceu.

– E ele conhecia o ritual?

– Claro. Ninguém esconderia uma bobagem dessas.

– Caro amigo, para encontrarmos a resposta, teremos de fazer uma pequena viagem.

Na mesma tarde, eu e Reginald chegamos a Hurlstone. Uma propriedade magnífica, Watson! Uma construção em forma de L: a parte mais comprida era a mais nova, e a mais curta, a mais antiga.

Debaixo da pesada porta de madeira, está entalhada uma data – 1607 –, mas as obras de madeira e pedra são na realidade bem mais antigas. As paredes são extremamente grossas, e as janelas, muito altas. A parte antiga servia como adega e armazém; apenas a parte nova era usada como moradia. Em volta da casa, jardins esplêndidos e um lago.

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4 Unidade de comprimento bastante comum nos EUA e na Inglaterra. Um pé corresponde a 30,48 centímetros.

Watson, eu tinha certeza de que havia nessa história não três mistérios separados, mas apenas um, que envolvia o tal ritual Musgrave. Se soubesse decifrá-lo, mataria a charada.

Dei uma boa olhada pelos terrenos e deparei com um carvalho, uma das árvores mais frondosas que eu já tinha visto.

– Reginald, esta árvore estava aqui quando o ritual foi escrito? – eu perguntei.

– Acredito que sim. Os carvalhos vivem mais de duzentos anos.

Havia encontrado um dos pontos de referência do ritual!

– Diga-me, Reginald, existiu aqui algum olmo?

– Havia um, que foi queimado por um raio, há uns dez anos, e precisou ser cortado.

– Lembra onde ele ficava?

– Claro!

Andamos até o lugar. Reparei que o olmo ficava exatamente entre o carvalho e a casa.

– Tem ideia da altura do olmo, Reginald?

– Sessenta e quatro pés4. Tenho certeza disso porque meu professor de Matemática costumava me passar muitos exercícios com

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comprimentos, larguras e alturas de construções e árvores da nossa propriedade… Mas o que isso pode ter a ver com o desaparecimento de Brunton e de Rachel?

Apenas sorri, Watson. Era um bom golpe de sorte. Perguntei:

– Seu mordomo alguma vez perguntou sobre a altura desse olmo?

Espantado, Reginald confirmou que sim, havia alguns meses.

Olhei para o sol. Estava baixo no céu, e calculei que em menos de uma hora bateria exatamente em cima dos mais altos galhos do carvalho. O extremo mais longo da sombra devia apontar o local escolhido como baliza. Teria de calcular o ponto final da sombra, onde o olmo estivera antigamente.

Era um bom desafio, mas, se Brunton conseguira resolvê-lo, achei que eu também seria capaz de conseguir. Fui a um depósito e procurei uma estaca. Amarrei nela uma longa corda, de seis pés de comprimento. Fiz alguns cálculos um tanto complicados para explicar agora, mas, ao esticar a corda, seguindo a linha que nos levaria à sombra do olmo, animei-me! A ponta da corda coincidia praticamente em cima de uma pequena depressão no terreno. Deveria ser uma marca feita por Brunton em suas medições. Eu seguia sua pista!

Comecei a andar, seguindo os pontos marcados na bússola. Dei dez passos para o norte e caí rente ao muro da casa. Marquei o lugar com outra estaca. Dei cinco passos para leste, dois para o sul. Estava diante da porta antiga. Dois passos para

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o oeste mostraram que deveria descer um caminho de pedras: esse era o local marcado pelo ritual.

Ah, que desapontamento, Watson! Era um piso, com granitos tão unidos e sólidos como se não fossem movidos havia décadas, talvez séculos! Brunton não poderia ter cavado ali. Mas Reginald, que acompanhava minhas investigações tão agitado como eu, lembrou-se de outra indicação do ritual:

– É embaixo! – gritou ele. – Você se esqueceu do “e então embaixo”.

– Imaginei que teríamos de cavar, mas é impossível cavar estas pedras… – eu falei.

– Mais abaixo ainda, Holmes! Estas pedras são o teto do porão, tão antigo quanto a casa. Venha comigo, por essa porta.

Descemos por uma escada em espiral. Meu amigo riscou um fósforo e acendeu uma tocha, que estava afixada na parede. Pelas marcas de pés nos degraus, percebemos que não éramos os únicos a visitar o local recentemente.

Em outros tempos, o lugar servira de depósito de lenha. A madeira, porém, estava afastada para a parede, revelando um círculo redondo, uma laje no chão, com uma alça de ferro enferrujada no centro, onde estava amarrado um pano.

– O cachecol de Brunton! – gritou Reginald. – O que faz aqui?

Como resposta, toquei na alça de ferro. A laje era pesada demais. Por minha sugestão, Reginald chamou dois guardas da aldeia. Esperamos ansiosos por sua chegada.

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Quando os dois policiais chegaram, eu e eles levantamos a pedra e encontramos um pequeno porão, fedendo a podridão e mofo.

Quando entramos, vimos que de um lado havia uma caixa de madeira podre, o que deveria ter sido um baú, com moedas de metal dentro. E do outro… Ah!, Watson, você não acredita o que vimos no outro canto da câmara!

Era um homem vestido de preto, ajoelhado com o rosto mergulhado sobre o tesouro e abraçando a caixa apodrecida. O policial moveu o corpo, e vimos um rosto disforme, da cor do fígado. Era o mordomo desaparecido. Estava morto havia alguns dias, mas o exame não revelou nenhum ferimento, como uma facada ou tiro. De que morrera o homem? Como viera parar ali? E a criada, o que tinha com o caso?

Confesso que me decepcionei, Watson. Achava que, localizando o lugar do ritual, solucionaria o mistério. É verdade que havia localizado Brunton, mas não o motivo que o tinha levado a um fim tão trágico.

Pensei, pensei muito… Você conhece meus métodos nesses casos, Watson. Coloquei-me no lugar do mordomo. Era um homem inteligente, mais do que seus patrões, já que descobrira havia tempos que o ritual era uma espécie de mapa do tesouro. Seguindo a sombra das árvores e fazendo cálculos, topou com o porão e, ao remover a lenha, achara a pedra que escondia alguma riqueza.

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O problema é que era uma pedra pesada demais para um só homem erguê-la; o que poderia fazer? Ele não poderia arrumar um cúmplice de fora, alguém da cidade, mesmo se encontrasse alguém em quem confiar, pois corria o risco de ser descoberto.

É provável que Brunton estivesse remoendo essas dúvidas havia muito tempo, mas, como Reginald o despedira, ele teria apenas uma semana para sair e teve de tomar uma rápida decisão.

E quem melhor para ajudá-lo do que alguém da casa? Ora, Brunton sabia que Rachel era apaixonada por ele. Tinha poucos dias para localizar o tesouro, então deve tê-la seduzido com promessas… A moça aceitou o desafio e acompanhou o mordomo por aquelas catacumbas.

Veja, Watson: um homem de quarenta e poucos anos e uma jovem, diante de uma pedra pesadíssima. Eu e dois soldados tivemos muitas dificuldades em levantá-la. Repare bem no que falei, Watson: levantá-la… mas acredito que não seria difícil usar um ponto de apoio e empurrá-la para o lado, o suficiente para que desse passagem a um homem.

Comecei a investigar a lenha abandonada na adega, Watson, e logo topei com uma tora dentada numa ponta e tão achatada de um lado como se um peso terrível a tivesse comprimido. Evidentemente, colocaram a tora na fenda, depois de terem deslocado a pedra. Rolaram a tora pela abertura, o suficiente para que Brunton pudesse entrar no porão.

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E agora, Watson, como reconstruir o drama daquela madrugada? Um buraco tão estreito, era evidente que apenas Brunton caberia nele. O mordomo achou um saco de moedas, passou-o para cima. A moça, sua cúmplice, ficou à margem da tumba… Que sentimentos passaram por sua cabeça?

Qual seria o fogo ardente da vingança, que explodiu na alma daquela mulher apaixonada, abandonada pelo amante? Que instante de lucidez diabólica não deve ter-se apossado da mulher, vendo o homem que havia destruído seus sonhos assim à sua mercê, embaixo da pedra? Seria ela apenas culpada por silenciar sobre um acidente, na hora em que a pedra escapou… ou foi a sua mão que a empurrou, lacrando o túmulo sobre o homem que tanto mal lhe fizera?

Fosse o que fosse, Watson, quase posso ver aquela figura de mulher agarrando-se ao tesouro, voando pelas escadas e ouvindo ecoar os gritos apavorados do homem sepultado pela enorme pedra…

Acredito que foi esse o mistério de seu rosto pálido, seus nervos arrebentados, no dia seguinte ao desaparecimento do mordomo. O que ela fez com os objetos da caixa? O que ela conteria? Creio que era o metal velho que os empregados pescaram da lagoa, depois que a criada desapareceu do quarto. Ela jogou tudo aquilo na água, sepultando o último rastro do seu crime.

Eu estava perdido em meus devaneios, naquela tarde, quando Musgrave se aproximou.

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5 Carlos I (16001649) foi rei da Inglaterra (em que, administrativamente, se incluía o País de Gales), Escócia e Irlanda a partir de 1625. Seu despotismo provocou uma guerra civil. Carlos foi condenado e executado em 1649.

– São moedas do tempo de Carlos I5– disse ele, segurando algumas que tinham restado na caixa.

– Reginald, podemos encontrar algo mais de Carlos I! – gritei, lembrando-me do significado das duas primeiras perguntas do ritual. – Deixe-me ver o conteúdo do saco pescado na lagoa.

Fomos à biblioteca de Hurlstone, e meu amigo espalhou o conteúdo do saco sobre uma grande mesa de carvalho. Havia várias moedas, algumas gastas e enferrujadas, com o símbolo do rei em uma das faces. O que mais me surpreendeu, contudo, foi um pequeno metal retorcido, preto, com pedras embaçadas presas nele. Peguei um pedaço de pano e comecei a dar brilho àquilo.

Logo, tínhamos uma centelha dourada reluzindo em meio ao metal enegrecido!

Musgrave não conteve um grito de espanto.

– Holmes, mas o que é isso?!

– Isso, caro Reginald, se muito não me engano, é uma das mais gloriosas relíquias da história da Inglaterra.

– O que é, Holmes? Não me deixe assim em suspense.

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– Nada menos que a antiga coroa inglesa.

– A coroa!

– Precisamente – respondi. – Lembre-se do que dizia o ritual: “De quem era?” “De quem se foi”. Foi depois da execução de Carlos I. “De quem será?” Seria de Carlos II, que se tornou rei. Creia, meu amigo, este ferro retorcido já enfeitou a fronte dos membros da casa real dos Stuart.

– Mas como isso foi parar na minha lagoa, Holmes? É verdade que meus ancestrais eram leais ao rei Carlos, mas…

– Infelizmente, Reginald, nem mesmo todo o meu arsenal de deduções poderia explicar a tragédia da família real inglesa daquela época. Não faço ideia de como a coroa foi parar nas mãos de um antepassado seu.

– Carlos II nunca usou essa coroa, que se saiba – disse.

– Provavelmente seu antepassado faleceu antes de entregá-la ao novo monarca – concluí. – Mas deu a pista para seus sucessores, na forma de um enigma, o tal ritual Musgrave, e por dez gerações a família repetiu o ritual, sem entender seu significado. Até que o mistério foi desvendado por um homem brilhante, que pagou essa descoberta com a vida.

Sherlock Holmes terminou sua narrativa. De maneira respeitosa, peguei a folha que continha a cópia do ritual.

– E a mulher, Holmes?

– Nunca mais foi vista, Watson. Creio que fugiu do país. Se for julgada um dia, o será por sua consciência e por Deus. Quanto

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à coroa dos Stuart… está em Hurlstone. Os Musgrave tiveram de pagar uma série de taxas e deixar que especialistas a analisassem, mas conseguiram manter a preciosidade na família.

– Gostaria de vê-la – disse, suspirando.

– Ah, isso é fácil! Posso redigir uma carta para Reginald. Tenho certeza de que, se você se apresentar como meu amigo, os Musgrave terão prazer em lhe mostrar a relíquia – disse Sherlock, antes de suspirar fundo.

Foi com o olhar perdido no ar que meu amigo concluiu sua história:

– Moedas de ouro e uma coroa. Foi um bom resultado para o caso, não acha, Watson? Para colocar um ponto final no enigma do ritual Musgrave, segredo que vinha de dez gerações.

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3 A Liga dos

Cabeças-Vermelhas6

Mesmo depois que me casei e deixei de dividir com Sherlock Holmes a casa da rua Baker, tive o privilégio de acompanhar meu amigo em muitos casos. Este foi um dos que começaram de maneira quase cômica, e terminou revelando-se bastante perigoso.

Um dia de outono no ano passado, visitei Holmes e o encontrei conversando com um senhor de cabelos ruivos. Não queria incomodar, mas Holmes logo me colocou na conversa: – Watson, quero apresentá-lo a uma pessoa que tem uma história bem interessante… – voltou-se para o ruivo e disse: – Sr. Wilson, este é meu amigo Dr. Watson, que tem me ajudado em tantos casos e acredito que também possa ajudá-lo.

Nós nos cumprimentamos e tomei lugar na poltrona. Antes de o Sr. Wilson abrir a boca, Sherlock falou por ele:

6 O conto “The Red-Headed League” foi publicado na revista The Strand Magazine, em agosto de 1891, e no livro The Adventures of Sherlock Holmes, no ano seguinte.

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CONTO

– O Sr. Wilson me contou fatos muito estranhos, Watson. Creio que o seu é um caso absolutamente extraordinário e único, Sr. Wilson!

O homem corou e quase sorriu diante do que lhe pareceu um elogio. Tentei deduzir, sherlockeanamente, algo sobre sua aparência: à primeira vista, parecia um comerciante britânico comum, pomposo e lerdo. Usava um terno de bom tecido, e de seu colete pendia um medalhão de ouro com um relógio. Seu casaco e chapéu, largados numa cadeira, pareciam um tanto usados. Não vi nada de extraordinário na sua figura, exceto a exuberante cabeleira ruiva.

Holmes tirou umas baforadas do cachimbo antes de falar:

– É óbvio que o Sr. Wilson já foi operário, viajou em navios, esteve na China e tem escrito muito ultimamente.

– Extraordinário! – exclamou o Sr. Wilson. – Como descobriu tudo isso a meu respeito, Sr. Holmes? De fato, comecei na carreira como carpinteiro a bordo de um navio mercante.

– Suas mãos – respondeu Holmes. – Sua mão direita é bem maior que a esquerda. O senhor deve tê-la usado bastante, e por isso os músculos estão mais desenvolvidos.

– E quanto à China? Poderia ter viajado para qualquer parte.

– O senhor tem um peixe tatuado logo acima do pulso direito, e esse trabalho só pode ser chinês. Li tudo a respeito de tatuagens e apenas na China existe a delicada tinta cor-de-rosa para colorir esse desenho. Quanto a escrever muito… no-

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ta-se que o punho direito de sua camisa está brilhante e limpo, como se muitas vezes fosse esfregado na mesa onde trabalha. Além disso, há marcas de tinta nas pontas dos seus dedos.

O homem riu de maneira contagiante, divertindo-se como se fosse astro de alguma espécie de número de mágica no teatro. Afinal, Holmes o interrompeu e lhe pediu que me mostrasse o anúncio de jornal. Era este:

VAGA NA LIGA DOS

CABEÇAS-VERMELHAS

Graças à herança deixada pelo falecido

Ezequias Hopkins, da Pensilvânia, EUA, há agora outra vaga na Liga dos Cabeças-Vermelhas. O candidato deve gozar de perfeita saúde física e mental e ter acima de 21 anos. O escolhido receberá o salário de 4 libras semanais. Os candidatos devem comparecer segunda-feira, às 11 horas, no escritório da Liga, na rua Fleet7, 7, e procurar pelo Sr. Duncan Ross.

– O que é isso? – perguntei, espantado.

– Parece bem estranho, não acha? – sorriu Holmes, tão agitado diante de um caso como um menino diante de um brinquedo novo.

7 Fleet Street, rua de Londres, assim nomeada por causa do rio Fleet, atualmente canalizado, que corre sob a cidade e deságua no rio Tâmisa.

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– E agora, Sr. Wilson, conte-nos tudo a respeito de sua vida e como esse anúncio pôde modificá-la…

– Como lhe contei há pouco, Sr. Holmes… – o homem enxugou o suor da testa enquanto falava. – Sou proprietário de uma loja de penhores na praça Saxe-Coburg, no centro da cidade. O negócio já esteve melhor, agora mal me sustenta. Tenho apenas um ajudante, Vincent Spaulding, e só pude empregá-lo porque ele aceitou um ordenado baixíssimo.

– Deve ser um rapaz muito simplório – falei.

– Oh, não! Vincent é muito dedicado. E nem é tão moço; tem uns trinta anos. Certamente poderia arrumar emprego melhor.

– Como um bom empregado aceita ganhar tão pouco? –perguntou Holmes, sorrindo. – Parece-me tão estranho quanto o seu anúncio, senhor.

– Ele não é tão perfeito assim, Sr. Holmes. É louco por fotografias. Nas horas de folga, prefere tirar retratos. Adora fotografar as ruas perto da minha loja. E, mal faz os retratos, corre até o porão para revelar os negativos. Acho que esse é seu principal defeito! No geral, trabalha muito.

– Ainda está a seu serviço? – perguntei.

– Ah, sim. Aliás, foi ele quem me chamou a atenção para o anúncio. Há oito semanas, Spaulding entrou no escritório com o jornal na mão e disse: “Desejava que Deus tivesse me dado cabelos ruivos, Sr. Wilson. Veja esta notícia: estão procurando

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um novo membro para a Liga dos Cabeças-Vermelhas, e eles pagam um bom dinheiro!’’.

Não estava entendendo o assunto, e Spaulding, bastante surpreso, me esclareceu:

“O senhor não conhece a Liga dos Cabeças-Vermelhas, Sr. Wilson?”, disse-me o funcionário.

“Nunca ouvi falar dela”, respondi.

“Isso me surpreende, porque o senhor seria um ótimo candidato”, explicou ele.

Então meu empregado disse que sabia da Liga por causa de um parente ruivo, e era uma história estranhíssima: a Liga tinha sido fundada por um tal Ezequias Hopkins, londrino, que fez fortuna na América. Ele era extremamente orgulhoso da fulgurante cor de seu cabelo e resolveu facilitar a vida de pessoas semelhantes a ele. Só contratava ruivos, para funções simples e com bons salários.

– Ora, senhores! – disse nosso visitante. – Imaginem minha alegria em topar com algo semelhante. Os negócios não iam muito bem, e um dinheiro extra seria bem-vindo…

E o nosso visitante continuou sua história:

– Claro que imaginei que multidões de homens ruivos estariam se candidatando à Liga, mas Spaulding me animou, dizendo que seu parente fora recusado porque tinha alguns fios cobre entre os vermelhos. A Liga só aceitava londrinos e ruivos de cabelo cor de fogo, como os meus.

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Acabei me convencendo. Naquele dia mesmo, fechei a loja e fui com Spaulding ao endereço.

Senhores, espero nunca mais viver algo semelhante! Pelas ruas próximas ao lugar, uma multidão de ruivos se acotovelava numa fila. Eram todos os tons de cabelos ruivos que se possam imaginar sobre a Terra! Quando vi tanta gente, resolvi desistir, mas Spaulding não me deixou recuar. Já lhe disse, Sr. Holmes, ele é determinado, e tanto fez e empurrou que logo estávamos subindo as escadas do prédio e eu me vi sentado numa cadeira, diante do autor do anúncio, o Sr. Ross.

Nosso cliente fez uma pausa, e Holmes acendeu seu cachimbo.

– Nunca imaginei encontrar alguém com uma cabeleira tão ruiva como a minha, mas atrás daquela escrivaninha estava o ruivo de cabelo mais vermelho que já vi. O Sr. Ross disse que era um dos beneficiários da Liga e, depois de ter confirmado que eu era ruivo de nascença e londrino e estava disposto a começar no dia seguinte o trabalho para receber as quatro libras semanais, bem, senhores… ele dispensou a multidão de candidatos e tratou de explicar no que consistia o serviço.

Eu trabalharia das dez às catorze horas, ali naquele escritório e… bem, teria de copiar a Encyclopaedia Britannica.

– A Britannica?! Copiá-la à mão?! – exclamei, entre divertido e espantado com tamanha insensatez. – E aceitou a tarefa, Sr. Wilson?

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Nosso visitante do cabelo vermelho ficou mais corado ainda e concordou com a cabeça. Desculpou-se:

– Parecia um trabalho bem simples… O Sr. Ross disse que eu não poderia jamais sair do edifício durante essas horas. Se saísse, perderia para sempre o benefício. Mas eram apenas quatro horas; por que deixaria o prédio? Por isso, aceitei o serviço, senhores.

Saí do escritório com medo de ter sido vítima de algum trote. Mas, como Spaulding me garantia que a coisa era séria e ele poderia cuidar da loja na minha ausência, comprei no dia seguinte uma resma de papel e uma caneta e fui à rua Fleet…

O Sr. Ross estava no local. Pediu que eu começasse pela letra A. De vez em quando, ele passava para ver se meu trabalho ia bem. Às catorze horas apareceu, conferiu os verbetes copiados, e eu fui embora.

Dia após dia essa foi a minha rotina, Sr. Holmes. No sábado, o patrão deu-me as quatro libras. O mesmo aconteceu na semana seguinte. Todos os dias, eu chegava às dez e saía às catorze. Com o tempo, o Sr. Duncan vinha poucas vezes ver meu trabalho. Eu o via somente na hora da entrada e na hora de fechar o escritório. Mesmo assim, juro que nenhuma vez saí fora de meu horário de trabalho, temendo perder o benefício. Assim se passaram as oito semanas. Recebi meu dinheiro religiosamente, cumpri o horário e estava chegando à letra B quando todo esse caso da Liga sumiu no ar.

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– Como assim? – perguntei.

– Sumiu, Dr. Watson, virou fumaça! Hoje de manhã, como de costume, fui às dez horas para o escritório e o encontrei fechado. Havia apenas este cartaz pregado à porta.

O Sr. Wilson ergueu o papel para que pudéssemos ler:

A LIGA DOS CABEÇAS-VERMELHAS ESTÁ DISSOLVIDA.

9 de outubro de 1890

Sherlock Holmes e eu examinamos esse breve comunicado e o rosto triste do homem. Havia algo de cômico em todo o caso, e começamos a rir.

– Não vejo nada de engraçado – resmungou o homenzarrão.

– Se não podem fazer nada melhor do que darem gargalhadas à minha custa, posso procurar outra pessoa.

– Acalme-se, Sr. Wilson – disse Holmes, contendo a risada.

– Não perderia seu caso por nada deste mundo. Mas o senhor tem de convir que há algo de engraçado nisso tudo… E o que fez depois de ver o cartaz?

– Fui a uns escritórios ali perto, mas ninguém sabia do que se tratava. Afinal, alguém se lembrou de um homem de cabelos vermelhos que havia alugado a sala por apenas dois meses.

Entristecido, o homem suspirou, antes de continuar:

– Voltei à minha loja e contei tudo a Spaulding. Ele disse que esperasse porque ainda encontraria uma explicação. Mas

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as quatro libras me fazem falta, senhores. Fiquei tão desconsolado… e, conhecendo a fama do Sr. Holmes, vim procurá-lo. Então aqui estou, senhores, contando minha triste história, que na verdade parece diverti-los tanto!

– Fez muito bem – disse Holmes. – Seu caso é extraordinário e terei prazer em investigá-lo. A história pode ser mais séria do que parece…

– Claro que é séria! – reclamou o pobre gorducho. – Perdi quatro libras semanais!

– Acalme-se, Sr. Wilson. O senhor tem pouco de que se queixar dessa Liga. Em poucas semanas ganhou umas trinta libras, sem falar dos grandes conhecimentos sobre a letra A da Encyclopaedia Britannica… e isso não é nenhum prejuízo!

– Mas gostaria de saber quem são esses homens e por que se deram a tanto trabalho apenas para fazer uma gozação com a minha cara!

– Confie em nós, Sr. Wilson. Teremos prazer em esclarecer esses fatos ao senhor. E mais duas perguntas… há quanto tempo esse seu ajudante, Spaulding, estava no emprego até ter chamado sua atenção para o anúncio?

– Cerca de um mês.

– Como ele apareceu?

– Tocou a campainha. Eu havia colocado na porta um cartaz de “Procura-se ajudante”.

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– E por que aceitou esse rapaz?

– Spaulding tinha boa aparência e aceitou um salário muito baixo pelo trabalho.

– Baixo quanto? Metade do usual?

Corado, o Sr. Wilson disse que sim.

– Descreva-me Vincent Spaulding – pediu Sherlock.

– É pequeno, bem menor que eu. Apesar de um tanto gorducho, é muito ágil. Tem uns trinta anos e não usa barba. Tem uma mancha branca na testa, como se produzida por algum ácido.

Não havia mais perguntas, e Sherlock dispensou o homem.

– O que pretende fazer, Holmes? – perguntei tão logo o cliente se foi.

– Pensar. Peço que não fale comigo nos próximos cinquenta minutos, Watson.

Dizendo isso, meu amigo encolheu-se no sofá, acendeu o cachimbo e ficou com o olhar perdido no infinito, profundamente concentrado.

Sherlock parecia um pássaro empalhado, de tal modo ficou imóvel, com o cachimbo pendente da boca como um bico longo e enfumaçado. Folheei um jornal e, vez ou outra, encarava meu amigo, sempre quieto. Imaginei mesmo que tivesse adormecido.

Repentinamente, Sherlock ergueu-se da poltrona:

– Que tal um pouco de música, Watson? No final da tarde,

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apresentarão uma ópera da qual gosto muito, no teatro Strand. Podemos fazer um lanche no centro. Que tal?

Surpreendi-me com o convite, mas aceitei.

O caminho que nos conduzia ao teatro passava pela praça Saxe-Coburg, local da loja do cliente ruivo. Era um lugar apertado, medíocre. Quatro sobrados geminados dividiam o mesmo quintal, onde uma árvore raquítica tentava sobreviver em meio à sujeira. Na esquina, estava a loja do ruivo, com uma placa à porta:

JABEZ WILSON PENHORES

Sherlock subiu e desceu a rua, várias vezes. Afinal, tocou a campainha. Fomos rapidamente atendidos por um moço bem barbeado, que nos convidou a entrar.

– Obrigado – respondeu Sherlock –, mas apenas gostaria de saber o caminho para o teatro Strand.

O atendente deu a indicação e voltou para a loja.

– Muito esperto, esse rapaz – disse Holmes logo que fomos embora. – A meu ver, é a quarta pessoa mais esperta de Londres. Já sei algo a respeito dele.

– O quê, Holmes? Por que você queria ver a cara do ajudante do Sr. Wilson?

– Não queria ver a cara, meu caro Watson, mas os joelhos das calças dele.

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A resposta era estranha, mas, por mais que eu insistisse, meu amigo não deu outros detalhes. Sherlock foi investigar as ruas próximas. Depois da esquina da praça, espantosamente, a paisagem mudava. Nada havia ali de decadente ou apertado; era uma larga avenida de grande movimento de carros e pessoas. Era curioso como tantos e tão imponentes edifícios faziam fundos com um lugar sinistro como a praça Saxe-Coburg.

– Deixe-me ver… – Holmes analisou as fachadas do comércio. – Ali é a tabacaria Mortimer, depois vem a banca de jornais, o Restaurante Vegetariano, o depósito de MacFarlane… Já descobri o que queria, Watson. Sugiro que nos apressemos, para não perdermos a primeira ária.

Ao final do espetáculo, Holmes segurou em meu braço, a expressão muito séria.

– Pode me acompanhar numa caçada, Watson?

– Claro – respondi.

– Então eu lhe peço que traga seu revólver e esteja às vinte e duas horas na rua Baker. Creio que um crime horrendo está sendo preparado, Watson. Se não agirmos depressa, não conseguiremos impedir que ele aconteça.

Fui buscar a arma, ainda confuso. Todo aquele caso tinha uma aparência nebulosa e exótica, mas meu amigo não só parecia ter resolvido o mistério, como também pretendia agir com rigor.

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Ao chegar ao escritório da rua Baker, vi que Holmes não estava sozinho; conversava animadamente com dois homens. Logo reconheci um deles como o agente policial Peter Jones. O outro era um homem de rosto comprido e magro, muito elegante com cartola alta e sobrecasaca. Holmes o apresentou como Sr. Merryweather8.

– Nossa caçada já pode começar! – disse Sherlock.

– Espero que seja produtiva, Sr. Holmes –disse o Sr. Merryweather com certo mau humor. – É o primeiro sábado em dois anos em que faltarei ao jogo de cartas.

– Senhor, creio que achará minha aposta bem mais interessante – falou Holmes. – O senhor pode ter um lucro de mais de trinta mil libras, e o Sr. Jones encontrará um homem em que há tempos tenta botar as mãos…

Nós quatro seguimos até a mesma praça onde estivéramos de dia. Passamos por um corredor estreito, seguindo o Sr. Merryweather, que destrancou uma porta e nos conduziu por uma escadaria até a adega, onde estavam empilhados grandes e pesados caixotões.

8 “Bontempo”, em português.

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– Temos aqui trinta mil libras – disse o Sr. Merryweather, dando um tapinha de leve na madeira. – É muito mais do que costuma ficar nos bancos, mas esse dinheiro é um empréstimo para o governo francês e será embarcado na segunda-feira.

– Por isso, senhores – disse Holmes –, creio que os ladrões tentarão o ataque esta noite de sábado. Infelizmente, precisamos ficar no escuro e em silêncio. Sugiro que o Sr. Jones esconda-se atrás daquele engradado e o Sr. Merryweather, atrás do outro. Watson, fique aqui. Quando eu acender a lanterna, pulem depressa sobre os ladrões. Watson, se eles atirarem, responda ao fogo. São homens destemidos e muito perigosos…

Foi uma longa e monótona espera. Umas duas horas se passaram, talvez um pouco mais, até que começamos a ouvir uma pancada rouca e contínua. Então um fio de luz surgiu de uma fresta na parede, o reboco caiu, e pude ver uma mão pálida tatear em redor. Depois, o buraco se ampliou e uma lanterna iluminou o rosto do ajudante do Sr. Wilson.

Spaulding entrou devagar e ajudou seu companheiro.

– Está tudo O.K. – ele cochichou. – Você trouxe o formão e os sacos?

Nesse momento, Sherlock acendeu a lanterna e pulou sobre os dois com a agilidade de um gato. Agarrou firmemente

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Spaulding, que o policial Jones também segurou pelo outro braço. Spaulding, porém, conseguiu escapar, perdendo a manga da camisa.

– Não adianta, John Clay9 – disse Holmes, impedindo que o ladrão sacasse de uma arma escondida na cintura e jogando-a longe. – Você não tem como escapar.

– E nem seu cúmplice – disse Jones. – Coloquei dois policiais lá fora na porta da loja.

– Pensou em tudo, hein, Sherlock Holmes? –sorriu o ladrão, ironicamente. – Meus parabéns.

– Devo também parabenizá-lo, John Clay. Sua ideia dos cabelos vermelhos foi muito original e eficiente.

Quando Jones saiu, arrastando um dos maiores ladrões de Londres, recebemos os cumprimentos do gerente do banco.

– Realmente, Sr. Holmes – disse Merryweather –, o senhor prestou um imenso favor a nosso banco. Aceite uma recompensa…

– Tive algumas despesas que gostaria de ver reembolsadas – disse Holmes, tranquilamente. – Agora, também não posso me queixar. Resolver esse caso da Liga dos Cabeças-Vermelhas foi um desafio delicioso.

9 “João-de-Barro”, em português.

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– Veja, Watson – disse Holmes de madrugada, enquanto tomávamos uísque no escritório da rua Baker –, era claro desde o início que as oito semanas em que o Sr. Wilson ficou copiando a Encyclopaedia Britannica foram apenas um pretexto para afastar o homem da sua loja de penhores. Foi muito engenhoso da parte do John Clay inventar a tal Liga para ruivos, sabendo que o ruivo Sr. Wilson, simplório como era, não recusaria um salário de quatro libras semanais. Desde que ouvi o Sr. Wilson dizer que contratara um empregado pela metade do salário, desconfiei dele.

– Mas e o motivo, Holmes? Como você descobriu o motivo?

– Elementar, meu caro Watson. Se o Sr. Wilson fosse casado com uma mulher jovem, eu poderia imaginar que o amante da esposa afastava o marido. Mas, como o dono da casa de penhores era viúvo e pobre, por que afastá-lo da loja? A resposta devia estar do lado de fora da casa…

Holmes tomou um longo gole antes de continuar:

– Lembrei-me então do curioso hobby fotográfico do rapaz, que o levava constantemente ao porão. Então era no porão que nosso homem estava interessado! Só podia ser para cavar um túnel, para alcançar um vizinho. Por isso, quando bati à porta e o ajudante veio atender, reparei rapidamente nos seus joelhos. As calças estavam sujas e rotas, já que ele ficava horas ajoelhado, cavando. Virei a esquina e percebi que o Banco do Centro e da Periferia se unia ao terreno do Sr. Wilson; aí estava a solução do caso.

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– Como conseguiu descobrir que John Clay tentaria o assalto no sábado?

– Bem, quando fecharam o escritório da Liga, era sinal de que não mais precisavam manter o Sr. Wilson afastado. O túnel estava pronto. O dinheiro seria retirado na segunda-feira, então sábado era o dia ideal. Os ladrões teriam todo o fim de semana para fugir.

– Holmes, você adivinhou tudo! – exclamei, tomado de admiração. – Que desfecho espantoso teve essa tal Liga dos Cabeças-Vermelhas!

– Serviu para me distrair do tédio da vida… – ironizou meu amigo, num raro momento de humildade. – Agora é esperar por outro caso, Watson, que mereça minha atenção.

– Um brinde à sua vitória no caso da Liga dos Cabeças-Vermelhas e em todos os demais que vierem!

Brindamos.

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O Diamante Azul10

Dois dias depois do Natal, fui visitar meu amigo Sherlock Holmes. Encontrei-o sentado no sofá, de roupão, cachimbo apoiado no cinzeiro e, ao alcance da mão, um punhado de jornais. A seu lado estava um chapéu de feltro, bastante velho e gasto, com alguns rasgões. No assento da cadeira, vi uma lente de aumento e uma pinça, indicando que o chapéu havia sido suspenso e examinado.

– Espero não estar atrapalhando… – eu disse, já entrando no apartamento.

– Caro Watson, gosto de um amigo como você por perto, para discutir as investigações –apontou o chapéu. – O que acha dele?

– Parece um objeto sem interesse – brinquei –, mas aposto que você me provará que é a pista fabulosa para desvendar um crime extraordinário.

10 O conto “The Blue Carbuncle” foi publicado na revista The Strand Magazine, em janeiro de 1892, e no livro The Adventures of Sherlock Holmes, no mesmo ano.

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CONTO 4

11 Rua próxima do Museu Britânico.

– Não, nada de crimes… – disse Sherlock, rindo. – Apenas um daqueles engraçados acontecimentos que surgem quando há quatro milhões de seres humanos morando numa cidade cosmopolita como Londres… Você se lembra do comissário Petersen, que tantas vezes nos visitou quando você morava aqui?

– Claro! – respondi.

– Este troféu pertence a ele.

– O chapéu é dele? – espantei-me.

– Não, não. Ele o encontrou. Não se sabe quem é o dono. Deixe-me contar como veio parar aqui.

Acendi um charuto e me servi de uma xícara de café forte, pronto para ouvir as explicações de Sherlock.

– Este chapéu me veio às mãos no dia de Natal, junto com um belo ganso gordo, que a estas horas, sem dúvida, já foi comido pela família de Petersen…

Holmes deu um sorriso e continuou:

– Às quatro da manhã do dia de Natal, mais ou menos, Petersen estava encerrando sua ronda e passava pela Tottenham Court Road11, voltando para casa. À sua frente caminhava um homem,

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cambaleando sob as fracas luzes de gás, carregando um ganso às costas. Quando chegou à esquina, um bando de vagabundos o atacou, para roubar o ganso. Um deles derrubou o chapéu do homem, e este, num gesto de defesa, usou uma bengala, mas acabou quebrando a vitrine de uma loja. Petersen apitou e foi defendê-lo, mas, como ele havia quebrado a vitrine, assustou-se com o policial e também correu, assim como os assaltantes. Conclusão: o policial se viu na rua, àquela hora da madrugada, com um ganso e um velho chapéu nas mãos. Como o ganso era gordo e caro, e Petersen é um policial honesto, pensou em devolvê-lo ao dono.

– E quem seria ele? – perguntei.

– Petersen não sabe. Por isso trouxe o caso até mim. Havia um cartão amarrado na perna do ganso, “Para a Sra. Henry Baker”, e no chapéu estão as iniciais H.B. Ora, como há milhares de Bakers na nossa cidade e provavelmente outro tanto de Henrys, nosso amigo Petersen não conseguiria descobrir o homem a tempo de lhe devolver o ganso para o almoço de Natal.

– E o que você sugeriu, Holmes?

– Que comesse o ganso antes que estragasse. E me deixasse resolver o mistério. O que acha?

– Parece-me que você supôs que o dono do ganso colocaria um anúncio no jornal. Não é por isso que reuniu tantos jornais a seu redor?

– Excelente, meu caro Watson! Vejo que os casos que resolvemos ainda lhe são úteis. Mas não encontrei anúncio algum.

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– E como espera resolver isso, então? – espantei-me.

– Com o chapéu.

– Com esse chapéu velho e amassado?

– Precisamente.

É verdade que o tempo me ensinou a nunca menosprezar os dons dedutivos de meu amigo, mas confesso que me rendi diante de tão dura tarefa. O que um velho chapéu poderia revelar de seu dono, a não ser as iniciais H.B. e o seu estado de miséria?

Sherlock riu diante da minha óbvia expressão de desalento.

– Pense, Watson. O que podemos colher deste velho chapéu amarrotado? Vamos, amigo! Você conhece há muito meus métodos. Pegue a lente e examine o chapéu. Como é o homem que o usava?

Meio contrariado, peguei a lente e tentei acompanhar o brilhantismo dedutivo de meu amigo. Era um chapéu preto, comum, redondo e muito gasto. O forro era de seda vermelha, desbotado. Não havia nome de fabricante, apenas as iniciais H.B. Na aba havia um furo, do elástico que o segurava; mas do elástico, nem sinal. O chapéu estava coberto de pó, com alguns buracos e pequenas manchas. Nos lugares desbotados, haviam aplicado uma tinta preta.

– Não vejo nada – respondi, devolvendo o chapéu.

– Watson, não me decepcione! Pode-se ver muito apenas neste chapéu.

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– Então me diga, o que você vê nele?

Holmes segurou-o com um respeito dado a objetos preciosos e falou daquele jeito pausado com que sempre conduz suas investigações:

– Creio que o homem é mais intelectual do que operário. Acha-se atualmente em péssimas condições de vida, e isso vem acontecendo de uns três anos para cá, pois antes vivia bem. Também já foi um homem prevenido, mas isso mudou, o que me faz crer na perda de seus bens. Talvez tenha sido levado a tanto pela bebida; por isso, sua mulher deixou de cuidar dele e talvez não o ame mais.

– Meu caro Holmes!

– Ele é um homem de vida sedentária – continuou Sherlock, nem me dando ouvidos –, tem cabelos grisalhos, que cortou faz pouco tempo, e usa brilhantina. Esses são os fatos que se podem deduzir do chapéu. E é bem provável que não tenha gás em sua casa…

– Holmes, você está brincando comigo…

– Jamais faria isso, meu caro Watson. Será possível, que depois de eu ter assinalado todos esses fatos, você não consegue descobrir mais nada?

– Devo confessar que não consigo seguir seu raciocínio… Por exemplo: como você percebeu que o homem era intelectual?

Holmes respondeu colocando na própria cabeça o chapéu. Este lhe desceu até o nariz.

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– Não costumam dizer que um homem de cabeça grande é mais inteligente?

– Ah! – exclamei. – E quanto ao fato de ele ter sido rico e depois ter empobrecido?

– Repare na aba. Este modelo esteve na moda há três anos e é chapéu da melhor qualidade. Tem um bom forro e uma fita de seda. Se esse homem pôde comprar um chapéu desses há três anos, era porque tinha dinheiro para fazê-lo. E, se não comprou outro, certamente foi porque não teve mais recursos para isso.

Holmes sempre me vencia. Suspirei fundo e continuei com minhas perguntas:

– Como explica o fato de ele não ser mais previdente?

Sherlock deu risada.

– Veja a previdência – disse, colocando o dedo sobre o furo para o elástico. – Ninguém compra um chapéu desse tipo com um elástico costurado na borda. Isso só é colocado se o freguês pedir, numa prevenção contra o vento. O elástico arrebentou e ele não o costurou mais, o que é sinal de descaso. Mas ainda tem orgulho suficiente para disfarçar as marcas da pobreza com tinta.

Havia uma certa lógica em tudo o que Holmes me apresentava. Ele continuou:

– Bem, quanto ao fato de o homem ser de meia-idade, usar brilhantina e ter cabelo grisalho cortado há pouco, isso pode ser visto pelo exame do forro. Há vestígios de fios, óleo e cabelos curtos, grisalhos.

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– E a esposa dele? Você disse que ela não o ama mais.

– Este chapéu não é escovado há muitas semanas. Meu caro Watson, quando sua mulher o deixar sair de casa com um chapéu neste estado, terei certeza de que ela nem olha mais para sua cara!

– Holmes, o homem pode ser um solteirão! Ou ser muito ocupado, sem tempo de cuidar de si! – exclamei, furioso com o orgulho com que meu amigo expunha suas opiniões.

– Nada disso. Ele ia levando para casa um ganso caro e gordo como presente para a mulher. Não se esqueça do cartão na perna da ave. Não se faz isso com alguém a quem não se pretenda agradar.

– Ah, Holmes! – exclamei, nervoso. – Você tem resposta para tudo. E por que diz que não há gás na casa dele?

– Veja: há alguns pingos de vela aqui na aba. Esse homem está acostumado a subir a escada com o chapéu numa mão e a vela na outra. Ao que eu saiba, gotas de cera não pingam de lampiões a gás. Agora acredita no que falei?

Acabei rindo. Segurei no braço de meu amigo e considerei aquilo como um divertido conto de Natal.

– Ah, caro Holmes, tudo isso é muito curioso; mas, já que me garante que não houve crime e que o único assassinado foi um ganso, quer me explicar por que está gastando tanto tempo e energia para decifrar o enigma de um simples chapéu perdido?

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12 Jornal inglês fundado em 1785 como The Daily Universal Register e rebatizado em 1788 como The Times. Ainda em circulação, é a origem da famosa fonte gráfica Times New Roman.

Sherlock Holmes já ia responder quando a porta foi aberta com violência e o comissário Petersen entrou no recinto, nervoso demais, sem nem sequer nos cumprimentar.

– O ganso, Sr. Holmes, o ganso…

– Hein? O ganso? O que aconteceu com ele? Ressuscitou e voou pela janela? – brincou Sherlock, gozando da expressão apalermada do policial.

– Olhe aqui, Sr. Holmes, o que minha mulher encontrou no papo da ave – e nos estendeu uma grande pedra azul.

– Petersen, acredite, você tem aqui algo de grande valor! Por acaso sabe o que é isso?

– Um diamante, Sr. Holmes! Uma pedra preciosa. Ela corta o vidro como se fosse banha.

– Não, caro Petersen. Não é uma pedra preciosa. É a pedra preciosa.

– Não me diga, Holmes! – explodi, furioso. – Não me diga que é a pedra da Condessa de Morcar!

– Creio que sim. Depois de seu roubo, foi o que mais se leu no The Times12. Uma pedra única, e a recompensa de mil libras oferecida pelo seu retorno não corresponde à vigésima parte de seu valor – concluiu Holmes.

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– Mil libras! Deus do céu! – gritou o comissário, nervoso demais para segurar a pedra por mais tempo e derrubando-a no tapete da sala.

– Essa é a recompensa oferecida – disse Holmes, mantendo a tranquilidade e recolhendo a joia. – Mas, por valor sentimental, sua dona seria capaz de oferecer metade da fortuna para recuperá-la.

– Ao que me lembro, a pedra desapareceu no Hotel Cosmopolitan – falei.

Holmes completou a informação:

– Isso mesmo! No dia 22 de dezembro, há exatamente cinco dias. John Horner, um encanador, foi acusado de tirar a pedra de um porta-joias no quarto da condessa, e as provas contra ele são tão fortes que o homem irá a julgamento nas próximas semanas. Veja, tenho aqui um recorte de jornal para comprovar o que digo.

E Holmes nos estendeu um artigo:

ROUBO DE JOIAS NO HOTEL COSMOPOLITAN

John Horner, 26 anos, encanador, foi acusado de, no dia 22 do corrente, ter roubado do porta-joias da Condessa de Morcar uma valiosa gema conhecida como Diamante Azul. James Ryder, copeiro-mor do hotel, afirma ter levado o Sr. Horner ao quarto da condessa a pedido da sua dama de companhia, Catarina Cusack, para que ele soldasse uma grade da lareira. O camareiro permaneceu no local algum tempo, mas, sendo chamado, deixou

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o soldador sozinho. Ao voltar, viu que Horner já havia saído, mas constatou que o cofre se achava aberto, o que o espantou. Ryder deu o alarme e Horner foi preso, mas a pedra não foi encontrada.

O encanador protestou inocência, mas, como já apresenta antecedentes criminais, tudo indica a sua culpa provável. Horner deverá ir a julgamento. Apesar disso, o mais terrível é que até o momento não há o menor sinal do diamante, peça muito querida de Sua Graça, que prometeu régia recompensa a quem indicar o paradeiro da joia.

– Hum, bobagens da polícia! – disse Holmes, jogando o jornal para o lado. – Nossa prioridade é estabelecer a sequência de fatos desde que o porta-joias foi aberto até o fim, que é o ganso perdido na Tottenham Court Road e comido pela família de nosso amigo Petersen. O que ocorreu entre cada acontecimento? – perguntou, e ele mesmo respondeu, abrindo a mão e exibindo a joia. – Aqui está a pedra. A pedra veio do ganso. E como o ganso chegou a nossas mãos? Através de Petersen e do homem de meia-idade com um chapéu surrado. Por isso, caro amigo Watson, colocarei nos jornais um anúncio. Holmes redigiu rapidamente uma nota e a leu:

Ganso encontrado na Tottenham Court Road junto com um chapéu de feltro. O Sr. Henry Baker pode reaver seus pertences dirigindo-se, hoje, às 18h30, à rua Baker, 221B.

– O que acha, Watson? – perguntou-me Holmes. – Se o homem não olhar os jornais, algum conhecido de Henry Baker poderá avisá-lo… Ah, Petersen, faça-me um favor. Coloque

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este anúncio em todos os jornais populares. E, na volta, compre-me um ganso parecido com aquele que sua família comeu.

O policial recebeu o dinheiro de Holmes e apontou a pedra.

– O que vai fazer com ela, senhor?

– Deixe-a comigo – respondeu Holmes. – Vou descobrir como essa joia foi parar no papo de um ganso.

Depois que Petersen saiu, decidi partir também. Qualquer resultado só viria ao final da tarde. Prometi voltar à noitinha, para conferir se o mistério do ganso e do roubo do Diamante Azul teria solução.

Quando voltei, encontrei um homem na sala de Holmes.

– Watson, quero lhe apresentar o Sr. Henry Baker. Ele acabou de chegar e esperávamos por você.

Cumprimentei-o e reparei que meu amigo havia acertado em muitas características de Henry Baker: era alto, de faces vermelhas, com a roupa abotoada de cima a baixo, mas com mangas puídas na camisa. Usava um boné escocês. Suas mãos tremiam um pouco, o que me lembrou o comentário de Holmes a respeito da bebida. Falava baixo e escolhia as palavras com correção, mostrando ser um homem letrado.

– Então o senhor perdeu o seu ganso e o chapéu – disse Holmes.

– Era no que acreditava, senhor. Pensei que os ladrões, a esta altura, já tivessem devorado a ave.

– Foi o que nós fizemos, infelizmente.

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13 Pence é plural de penny, moeda que corresponde a 1/12 de xelim.

– Ah, os senhores comeram o ganso!… –disse o homem, decepcionado.

– O ganso acabaria apodrecendo, e isso seria um desperdício… mas tenho aqui outra ave, de igual peso e, espero, igual sabor. – Holmes indicou um pacote de onde sobressaíam as patas do ganso, com o chapéu gasto ao lado.

Reparei que os olhos do homem se iluminaram. Ele não se importava em trocar uma ave pela outra: o que queria mesmo era levar comida para casa. Holmes olhou para o homem e perguntou:

– Espero que não se importe em me dizer onde o senhor comprou o ganso, Sr. Baker. Era de ótima qualidade.

– No Clube do Ganso.

Falamos quase ao mesmo tempo:

– Clube do Ganso?!

– Foi o dono da Taberna Alfa quem criou esse clube. Cada sócio entra com alguns pence13 por semana e leva o ganso no Natal – explicou o homem, que se retirou depois de ter agradecido muito.

– Então o Sr. Baker é inocente – disse Holmes, fechando a porta atrás do visitante. – Está com fome, Watson? Que tal um jantarzinho na Taberna Alfa?

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Claro que concordei.

A taberna era um local pequeno, mas agradável. Holmes dirigiu-se ao proprietário com a maneira jovial que usa quando quer cativar as pessoas:

– Traga-nos cerveja, meu bom homem. Espero que sua bebida seja tão boa quanto a qualidade dos seus gansos!

– Meus gansos? – o homem se espantou.

– Sim. Acabei de conversar com o Sr. Henry Baker, que é membro do Clube do Ganso.

– Ah, agora entendi! Mas aqueles não são nossos. Foram encomendados de um vendedor na feira de Covent Garden14. Um homem chamado Breckinridge.

Bebemos a cerveja e saímos.

– Vamos passear pela feira, Watson? Estou com bons pressentimentos. Acho que até o fim da noite resolveremos o mistério do ganso que come diamantes.

Não foi difícil localizar a banca com o nome Breckinridge na fachada. O proprietário era um homem grosseiro, de nariz fino e barba pontuda. Meu amigo examinou a bancada de carnes antes de perguntar:

14 Bairro londrino famoso pelo grande número de teatros, entre os quais o Teatro Nacional (National Theatre) e a Real Casa de Ópera (Royal Opera House).

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– Pelo que vejo, o senhor vendeu todos os seus gansos.

– Se quer gansos, pode comprá-los naquela banca adiante –respondeu o homem, com maus modos.

– Mas queria comprá-los do senhor, que me foi tão bem recomendado pelo dono da Taberna Alfa. Pode dizer-nos de quem comprou aquelas aves?

Diante da pergunta inocente, o barbudo teve um inusitado ataque de raiva.

– Arre, que não digo! Já estou farto daquelas duas dúzias de gansos do Alfa! É toda hora que me aparece alguém querendo saber onde comprei os gansos, para quem vendi os gansos!… Ora, faça-me o favor, estou farto disso! Ponha-se daqui para fora, que nada direi.

– Está bem, está certo, vou embora! – disse Holmes, piscando espertamente para mim. – Eu estava justamente apostando com meu amigo que aquelas aves foram criadas no campo. Aposto uma libra com o senhor em que estou certo.

– Aposta?! – exclamou o homem. – Uma libra, sobre os gansos?

– O que disse: aposto uma libra em que aqueles gansos vieram do campo.

– Aposta fechada! – e o enfezado Sr. Breckinridge bateu palmas, gritando para os fundos da barraca: – Bill, traga-me os livros.

Surgiu um rapazinho magro, carregando dois livros de registros. Satisfeito, o comerciante procurou nas páginas a informação que queríamos:

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– Está vendo, senhor? Nesta lista, anoto de quem eu compro a mercadoria. Nesta outra, para quem vendo. Faça o favor de ler esse nome escrito em vermelho.

Estendeu o volume diante dos olhos de meu amigo, que leu:

– Sra. Oakshott, residente na estrada Brixton15, 117. Em 22 de dezembro, vinte e quatro gansos comprados a sete xelins16 cada um.

– Foi desse lugar que vieram os gansos. Como pode ver, senhor, foram aves criadas aqui mesmo na cidade! – e o homem gargalhou, feliz por ter ganhado a aposta.

Holmes fingiu uma expressão de contrariedade e lhe deu a moeda de uma libra.

Mal nos vimos na rua, meu amigo sorriu, pegando-me no braço:

– Watson, um homem com aquela barba nunca se deixa convencer do que não quer. Poderia oferecer cem libras pela informação, que ele nada diria. Mas a ideia de tapear um cavalheiro numa aposta era forte demais… Acho que teremos de visitar a criadora dos gansos, a Sra. Oakshott…

Holmes não terminou a frase, porque nossa atenção foi atraída por um tumulto, na ban-

15 Brixton Road, no original. Há atualmente cinco ruas em Londres com esse nome.

16 Shilling, antiga moeda inglesa que correspondia à vigésima parte da libra esterlina.

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ca do Sr. Breckinridge. O barbudo tinha uma vassoura nas mãos e espantava um homenzinho de cara fina como um rato, que se encolhia diante da possível surra. O comerciante gritava:

– Fora daqui, você e seus gansos! O diabo os leve a todos, não me venha com essa conversa de querer saber para quem os vendi!

– Mas um deles era meu… – choramingou o homem de cara de rato.

– Vá tirar satisfações com a Sra. Oakshott, então! – disse o furioso comerciante, espantando o homenzinho, que correu pela rua.

– Ah, quem sabe esse fulano nos poupa a viagem até a granja? Vamos, Watson, não o perca de vista!

Depressa o seguimos. Ele logo parou e, quando Holmes tocou seu ombro, o homem encolheu-se.

– Quem é o senhor? O que quer? – ele estava pálido e tremia.

– Desculpe-me – disse Holmes suavemente –, mas não pude deixar de ouvir a sua conversa com o comerciante e talvez possa ajudá-lo a respeito do ganso…

– Ajudar-me? Oh, ninguém pode me ajudar, senhor! – gritou o coitado, em desespero.

– Eu posso – a voz de meu amigo veio firme e autoritária.

– Sou Sherlock Holmes, e é meu dever saber o que os outros não sabem.

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– Era de alguém como o senhor que eu precisava! – o rosto do homem iluminou-se ao reconhecer a fama de meu amigo detetive. – Os céus o mandaram.

– Diga-me seu nome, senhor. E não tente me enganar.

– James Ryder.

– Como pensei. O copeiro-mor do Hotel Cosmopolitan. Acompanhe-nos, Sr. Ryder. Vamos conversar num lugar mais confortável.

Holmes fez sinal para um coche de aluguel, e logo estávamos instalados na sala aquecida da rua Baker.

Sherlock ofereceu um chá para o homenzinho, que o bebeu avidamente, usando a xícara para aquecer as mãos. Esperamos que ele se recuperasse. Depois Holmes começou:

– Se está interessado no ganso, Sr. Ryder, fique sabendo que a ave veio parar aqui.

– Aqui? Mas como…?

– Isso não interessa. O que interessa é que era uma ave magnífica, tão extraordinária que, depois de morta, pôs um ovo. Um ovo brilhante!

Holmes abriu uma gaveta e tirou o diamante de lá. Os olhos de Ryder fixaram-se na pedra. Ele ficou tão pálido que temi que desmaiasse.

– O jogo acabou, Ryder. Acalme-se. Vamos, Watson, coloque umas gotas de conhaque no chá desse homem. Ah, o senhor é mesmo um covarde!

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Fiz o que Holmes pediu. O copeiro-mor jogou-se numa cadeira e bebeu uns goles de chá. Aos poucos, as cores de seu rosto voltaram ao normal.

– Sei de quase tudo, Sr. Ryder. Mas o pouco que me falta saber, o senhor dirá… Como descobriu que esta pedra era da Condessa de Mocar?

– Foi Catarina Cusack quem me falou dela.

– Ah, a dama de companhia da condessa!… Você e ela resolveram roubar a joia. Sabiam que o encanador tinha passagem pela polícia e seria fácil culpá-lo. Bem, Ryder, parece que você tem potencial suficiente para ser um ladrão sem remorsos… A polícia ficará encantada em prendê-lo.

O homem de cara de rato jogou-se ao chão, em prantos, com as mãos trêmulas unidas em sinal de desespero.

– Perdão, Sr. Holmes! Perdão! Nunca fui desonesto em toda a minha vida… a prisão vai matar meus pais de desgosto. Por favor, Sr. Holmes, não me entregue à polícia!

Era uma cena chocante. Holmes, porém, não se deixou comover. Com voz severa, ordenou:

– Sente-se na cadeira, homem! Agora que caiu na ratoeira, você se arrepende e pede perdão; mas não pensou nem um pouquinho no pobre Horner, que está preso injustamente por um crime que nem sequer sonhou.

– Oh, Sr. Holmes, eu não queria isso! – lamentou-se o homem. – Posso explicar, posso contar tudo…

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– Faça isso e não diga nenhuma mentira.

Ryder ainda tremia, mas juntou forças para detalhar sua história.

– Catarina Cusack e eu organizamos o plano. Forjamos um defeito na lareira, e dei um jeito para que o hotel escalasse Horner para fazer o conserto. Sabia que ele era fichado. Depois que ele foi embora, forcei o porta-joias e imediatamente dei o alarme. As suspeitas caíram sobre Horner.

Depois que Horner foi preso, sabia que não poderia ficar com a pedra, porque dariam uma revista no hotel e nos meus aposentos. Fingi que cumpria uma ordem e saí do hotel levando o diamante. Oh, senhores, que desespero me bateu!

Imaginava que qualquer vulto era um policial e que todas as pessoas na rua me acusavam e sabiam do meu terrível gesto… Nem sei como reuni forças para seguir até a casa da minha irmã. Ela é casada com um criador de aves e mora no subúrbio, então achei que era um local seguro…

– Como imaginou o truque de esconder a pedra no ganso?

– perguntou Holmes, com voz severa. – Não esconda nada, Ryder, senão vai terminar sua história na polícia!

– Eu conto, senhor, eu conto… Tive um amigo que cumpriu pena, e ele me disse, certa vez, que os ladrões precisam logo se desfazer do roubo, para evitar o flagrante da polícia… Quando eu e Catarina bolamos o plano, Sr. Holmes, fui à casa desse amigo. Sabia que ele me ajudaria a me desfazer da pedra. Mas

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naquela hora de agonia, em que via um policial em cada esquina, temi que nunca conseguisse levar a joia apenas escondida num bolso… Estava encostado ao muro do galinheiro, rodeado de gansos, e me veio a ideia…

Minha irmã me prometera um ganso de presente de Natal. Entrei no galinheiro e peguei uma das aves, uma grande, com listas no rabo. Forcei o bicho a abrir o bico e enfiei a pedra no papo do ganso. Ele bateu asas e lutou um bocado, senhor, fazendo uma tremenda algazarra… Foi quando minha irmã ouviu o barulho e correu até o quintal. O susto de vê-la foi tal que acabei soltando a ave.

“O que está fazendo com esse ganso, Jim?”, ela perguntou.

Respondi que tinha vindo buscar a ave que ela me prometera de presente de Natal.

“Ah, mas já separamos este cinzento para você”, ela respondeu.

“Obrigado, Maggie”, eu falei, “mas prefiro aquele que eu estava segurando.”

“Que besteira, Jim!”, disse Maggie. “O cinzento pesa três quilos mais.”

“Quero o branco com listas na cauda”, falei.

Claro que Maggie ficou irritada com minha insistência, mas matou o ganso escolhido, e eu o levei, tranquilamente, para a casa do meu comparsa. Contei o que tinha feito, e ele deu muita risada. Tratamos de abrir o papo do ganso e, oh, desgraça!…

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Não havia sinal da pedra. Na confusão e no meu terror, havia escolhido a ave errada, senhores!

Voltei à casa de minha irmã, mas o destino conspirava contra mim. Maggie já havia entregado as aves, para o vendedor do mercado, aquele famigerado Sr. Breckinridge, que se recusou absurdamente a me dizer para quem havia vendido os gansos.

Maggie pensa que estou ficando louco, e começo a acreditar nisso também, senhores! Sou agora um ladrão marcado, sem jamais ter tocado na riqueza pela qual perdi o caráter… Deus me ajude!

Ryder começou a chorar loucamente, as mãos tapando o rosto.

Um longo silêncio. O único ruído era o bater dos dedos de Sherlock Holmes sobre a mesa. Repentinamente, meu amigo se levantou e abriu a porta:

– Saia! – disse.

– Oh, senhor, Deus o abençoe!

– Não diga mais nada. Saia!

Nem era necessário dizer coisa alguma. Ryder correu alucinado para fora, e só ouvimos o bater ruidoso da porta da rua.

Eu olhava espantado para meu amigo. Afinal, Holmes esclareceu, pegando devagar o cachimbo:

– Não sou empregado da polícia, Watson, para consertar seus erros. Horner não estará em perigo, porque devolverei o diamante e mandarei um bilhete explicando que ele de nada

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participou. Não há provas contra o encanador – Holmes suspirou. – Talvez eu esteja sendo cúmplice, deixando Ryder fugir, mas estou salvando sua alma.

Continuei calado. Holmes prosseguiu:

– Ele não cometerá mais nenhum furto. Está apavorado. Se eu o mandar para a cadeia, é capaz de o infeliz ter um curso completo de ladroagem. E depois, Watson… – meu amigo sorriu. – … esta não é a época da fraternidade e do perdão?

Tratei de dar os merecidos parabéns a Holmes, pelo caso tão brilhantemente resolvido.

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PARATEXTO

Só sei que resolvi um mistério

Elementar, meu caro leitor! Quem nunca teve vontade de investigar um fio de história e, como Sherlock Holmes, descobrir “fatos muito estranhos”? Se investigar é preciso, viver também é. Cada vez mais descobrimos que pouco ou nada sabemos. A famosa frase “Só sei que nada sei”, do filósofo grego Sócrates (c. 470 a.C.-399 a.C.), dita há mais de 2 400 anos, ensina que, quanto mais investigamos a vida e a nós mesmos, mais nos damos conta da imensidão de coisas que até então ignorávamos. Ignorar, aqui, não é sinônimo de ser grosseiro ou não prestar atenção em alguém de propósito, mas simplesmente de não ter conhecimento ou não saber algo. Se bem que, muitas vezes, quem não sabe (ou não conhece o tamanho da própria ignorância) age de forma ignorante, arrogante, por achar que sabe muito.

Com Sherlock, porém, é diferente. Ele quer analisar tudo direitinho, tim-tim por tim-tim. Não deixa nada para trás e só diz que sabe depois que checou todos os detalhes! Ah, que satisfação terminar um conto sabendo o que aconteceu, com o mistério solucionado — mesmo quando o detetive se engana

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redondamente, como em “A face amarela”. E vale lembrar o que diz a seu caro Watson, quando cai no erro: “Watson, se alguma vez você me vir muito confiante em minhas hipóteses, ou se eu mostrar menos atenção a um caso do que ele merece, tenha a bondade de dizer em meus ouvidos a palavra ‘Norbury’. Ficarei infinitamente agradecido” (p. 57). Sherlock podia não ser um filósofo como Sócrates, mas sabia que deveria enxergar o mundo com respeito, pois sua ignorância antes de investigar um caso poderia resultar em um equívoco, como o da casa de campo inglesa em Norbury. Que lição!

Clássico é clássico

Sherlock Holmes é de longe mais conhecido que seu autor, Arthur Conan Doyle (1859-1930). O detetive tem uma biografia própria! Sherlock caiu nas graças da cultura pop, tornando-se sinônimo de investigador astuto, acompanhado da frase “Elementar, meu caro Watson”, que, como você deve ter lido na seção Almanaque deste livro, não foi criada por Conan Doyle, mas para uma adaptação cinematográfica. Uma frase jamais dita pelo personagem literário que foi imortalizada no cinema. Acontece de tudo no mundo da arte!

Sherlock é um ícone cultural britânico, assim como a banda The Beatles e a rainha Elizabeth. O futebol nasceu lá, mas, convenhamos, é mais bem jogado em outras paragens… Se tem uma coisa que reúne esses elementos todos — Sherlock,

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Guarda da Rainha, ícone cultural britânico, como o ônibus vermelho de dois andares, a banda The Beatles, Sherlock Holmes e os chapéus exóticos.

The Beatles, rainha e futebol —, é que são lembrados e conhecidos por gerações e gerações no mundo inteiro. São clássicos da cultura ocidental. E serão por muito tempo. Pode até ser que o Reino Unido perca a majestade, isto é, deixe de ser uma monarquia, mas as futuras gerações saberão de um tempo em que havia rainha, príncipes e princesas por lá, ostentando com a mesma desenvoltura seus chapéus exóticos e sua coroa.

No caso de Sherlock, suas narrativas já foram adaptadas para teatro, rádio, televisão, cinema, videogames e outras mídias — sempre que inventarem uma tecnologia que possibilite contar histórias, nosso investigador estará lá. Ele é um clássico da literatura. Isso significa, entre outras coisas, que temos no texto uma representação do período histórico em que a narrativa e

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BILJAST/PIXABAY.COM

o autor estão inseridos; as aventuras de Sherlock, por exemplo, se passam na Era Vitoriana, um período histórico da Grã-Bretanha que vai de aproximadamente 1820 a 1914, abarcando principalmente o reinado da rainha Vitória, que teve início em 1837 e se estendeu até 1901.

Para um texto literário ser considerado um clássico, entretanto, não basta ser antigo; é necessário que ele tenha o potencial de se conectar a diferentes gerações de leitores, ou seja, precisa ser universal e atemporal. “Como assim?”, você deve estar ser perguntando. Um clássico é um livro cujos personagens, suas ações e principalmente seus sentimentos são tão verdadeiros e humanos que envolvem profundamente o leitor, não importa quanto tempo tenha se passado desde a publicação da obra. É por isso que, quando lemos um bom mistério investigado por Sherlock, não achamos que é ultrapassado, apenas mergulhamos na história, como se ela se passasse nos dias de hoje!

A riqueza do texto literário

Os quatro contos do livro Sherlock Holmes: casos extraordinários são bons exemplos de mistérios investigados pelo protagonista, por isso se enquadram no grupo temático “Aventura, mistério e fantasia”. São ótimos para serem lidos por estudantes de 6o e 7o anos, que estão prontos para observar os elementos da estrutura narrativa de um bom conto de mistério, absorvendo cada detalhe apresentado no enredo.

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A ideia nesse tipo de texto é apresentar uma narrativa envolvente: um mistério que desperte a curiosidade do leitor, que o faça grudar no livro e virar as páginas com ansiedade até alcançar o fim da narrativa, quando invariavelmente é apresentada a solução do caso. Histórias de mistério podem ser apresentadas por meio de vários gêneros literários, como o conto, do qual falaremos mais adiante. Muito embora a estrutura narrativa dos quatro contos desta antologia tenha pontos em comum — afinal, são sempre casos investigados por Sherlock Holmes com a ajuda do sempre presente Watson —, “cada caso é um caso”, como diz o ditado.

Assim é o texto literário: uma composição artística, a expressão da criatividade do autor, o qual, em suas histórias, pode inventar mundos completamente novos, impossíveis e ao mesmo tempo tão reais quanto este volume que você tem em mãos. Isso porque a realidade dentro das páginas de um livro não necessariamente é a mesma que testemunhamos ao nosso redor ou na qual estamos inseridos. No texto literário, o importante é que os fatos apresentados façam sentido dentro daquela narrativa — é a chamada verossimilhança. Em um livro de super-heróis, não é absurdo que alguns personagens voem, controlem o clima, tenham a pele coberta de escamas azuis. Mas seria absurdo se, em uma narrativa realista que se passa nos dias de hoje, um elefante voasse, por exemplo. No caso das histórias de mistério, é fundamental que o caso se resolva

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de maneira satisfatória; não que tudo termine com um final ao estilo “felizes para sempre”, mas que a solução do caso faça sentido, que nós possamos compreender o que aconteceu, as motivações dos personagens, o passo a passo da investigação.

Para dar conta desses objetivos na escrita, o autor reflete com cuidado sobre o que colocará no papel. A extensão das frases, a sonoridade das palavras, o ritmo dos parágrafos, a divisão de capítulos... Tudo isso é pensado em todo o processo autoral de criação do texto. Afinal, estamos falando de literatura, de uma expressão artística com estética própria. Se estivéssemos falando de um manual de instruções, por exemplo, o resultado seria outro, já que esse tipo de texto deve ser claro, preciso, direto e explicativo.

Se é fato que o texto literário é escrito pelo autor, se engana quem pensa que ele é o único dono de sua criação. Você, leitor, atua diretamente nesse processo, preenchendo as lacunas que o escritor deixou ao longo da história. Ou vai dizer que, durante a leitura de um livro, você não acaba se fazendo perguntas sobre os personagens, sobre os locais descritos?

Esses questionamentos provenientes da leitura são naturais, e até esperados! Todo autor experiente entende o risco de criar personagens tão verossímeis que parecem vivos: muitas vezes o personagem acaba seguindo rumos inesperados até mesmo para o autor. Com Sherlock Holmes ocorreu algo parecido. Como vimos na seção Almanaque, no começo deste livro, em

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dado momento Arthur Conan Doyle se viu cansado das histórias de mistério e resolveu matar Sherlock Holmes, para encerrar de uma vez por todas a questão e seguir escrevendo outras histórias. Contudo, o detetive era tão vivo no imaginário dos leitores que foi impossível matá-lo de verdade, e tempos depois o autor se viu compelido a trazê-lo de volta à vida.

Conto que conta!

As histórias apresentadas em Sherlock Holmes: casos extraordinários podem ser classificadas como contos, um gênero literário tão importante quanto o romance. Você pode até questionar isso achando que é um engano, mas é a mais pura verdade!

Comecemos pelo princípio, isto é, pela definição de conto. O conto é uma narrativa em geral mais curta e sua característica principal é a condensação total dos elementos narrativos. Como um conto é desenvolvido em menos linhas do que um romance, por exemplo, tudo fica concentrado e potencializado. O texto trabalha com certo suspense e tensão e, assim, enlaça o leitor, deixando-o interessado até o fim da leitura.

Leia, por exemplo, a definição de conto apresentada no Dicionário de gêneros textuais:

Em contraste com o romance, que geralmente é mais longo, o conto é mais curto […]. Essa característica de síntese traz

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outras: (i) número reduzido de personagens ou tipos; (ii) esquema temporal e ambiental econômico, muitas vezes, restrito; (iii) uma ou poucas ações, concentrando os eventos e não permitindo intrigas secundárias como no romance ou na novela, e (iv) uma unidade de técnica e de tom ([…] em que tempo, espaço e personagem se fundem, muitas vezes) que o romance não mantém […] (COSTA, 2008).

A expressão literária é muito diversa, mas ainda assim é possível determinar algumas características-chave. No caso da ficção literária em prosa, temos elementos estruturais que se apresentam em todos os textos: enredo, personagens, foco narrativo, espaço e tempo. Enredo é como chamamos o desenrolar da narrativa, o encadeamento dos fatos da história. Personagens são as figuras (que podem ser pessoas, animais e até objetos) que promovem a ação da narrativa. Foco narrativo é o ponto de vista a partir do qual é narrada a história, podendo ser tanto um personagem que participa ativamente da ação quanto uma voz externa e onisciente. O espaço é o local (real ou imaginário) onde se passa a narrativa; e tempo é o período em que ela ocorre. A combinação desses elementos, bem como a expressão deles, é o que torna cada texto literário único. Os elementos estruturais da narrativa literária são trabalhados de forma diferente em um conto e em um romance. Em geral, entende-se que o romance é um texto mais longo que o

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conto, por apresentar uma quantidade maior de personagens e de ações, ampliando também o espaço e o tempo da narrativa. Nenhuma narrativa deste livro é assim, não é mesmo?

Pelo contrário, o foco narrativo de cada história está em um momento ou período específico da vida dos personagens, que são poucos (geralmente, Sherlock Holmes, Watson e o cliente, mais os personagens que participam do caso), em ambientes restritos ao escritório da dupla de detetives e ao cenário dos acontecimentos investigados, em um período delimitado pelo caso investigado. Mas o tamanho menor do conto não o apequena. Grandes autores como Machado de Assis e Guimarães Rosa escreveram contos tão incríveis que têm a mesma qualidade de seus romances. Mesmo!

Uma história, muitas vozes

Todos os contos de Sherlock Holmes: casos extraordinários são narrados em primeira pessoa, ou seja, contados por um personagem que vivenciou tudo aquilo que relata. O narrador pode variar de personagem, conforme as necessidades do enredo. O narrador principal é Watson. Quando, porém, ele conta uma história relatada por Sherlock Holmes, é o investigador quem assume o bastão da fala. Por fim, quando Sherlock e Watson recebem um cliente, a voz narrativa cabe ao cliente, que relata o caso a ser investigado. Tudo isso em prol de uma história dinâmica para o leitor.

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Importante não confundir autor, narrador e personagem. O autor é quem cria a história, os personagens, o espaço narrativo. Já o narrador é a voz que conta a história, um ser ficcional que existe somente no texto e foi criado pelo autor. O narrador pode ser em primeira pessoa (quando a história é sob o ponto de vista dele, com o “eu” no centro) ou terceira pessoa (quando a voz que relata a história não está no centro da ação). E o narrador pode ser um personagem, mas pode também ser apenas observador (ou seja, não participa da história).

Na literatura, a sequência temporal pode ser rompida pelo autor, a fim de criar diferentes sentidos e emoções no texto. Em uma narrativa de mistério, por exemplo, é possível iniciar o relato a partir de um fato em um passado longínquo, para depois saltar ao presente e, então, retomar a linha temporal. Outra possibilidade é revelar o desfecho de um caso para só depois contar ao leitor como os personagens chegaram àquele momento. Essa subversão da ordem dos fatos tem o propósito de nos envolver na leitura, atiçar nossa curiosidade e nos prender às páginas do livro. O romance Memórias póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis, por exemplo, começa com o anúncio de que o narrador está morto e, em seguida, ele próprio, o defunto, conta sua vida.

Esse recurso de organização não linear dos fatos para obter determinado efeito em uma história não é exclusivo da literatura. No nosso dia a dia, com frequência escolhemos como

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relatar um acontecimento com essa mesma intenção. É natural da comunicação desejar envolver o outro.

Se prestamos atenção no tempo das narrativas de Sherlock Holmes: casos extraordinários, aprendemos algo muito importante sobre o que o ato de contar histórias ou a literatura tem de especial. Podemos notar como Arthur Conan Doyle trabalha isso no conto “O ritual Musgrave”. Ele começa com um comentário do narrador, Watson, sobre a bagunça que era o escritório de Sherlock e uma lembrança derivada disso: o dia em que o investigador pegou uma ficha que contava um dos primeiros casos que desvendara. E aí começa propriamente a história, que ocorre em um tempo bastante anterior a esses fatos iniciais.

Certo, e quem pensou em tudo isso?

As histórias que tanto amamos são fruto da imaginação e do trabalho de escrita do autor. É ele quem reflete sobre todos os elementos apresentados aqui e cria textos que despertam muitas emoções no leitor. E sabia que há dois autores em Sherlock Holmes: casos extraordinários? Mais precisamente, um autor, Conan Doyle, e uma adaptadora, Marcia Kupstas. Vamos explicar melhor.

O autor das narrativas do texto original é Arthur Conan Doyle, que nasceu em Edimburgo, Escócia, em 1859, e morreu na Inglaterra, em 1930. Tal como Watson, Conan Doyle

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foi médico. Além das aventuras de Sherlock Holmes, escreveu contos de terror e mistério, romances históricos, peças teatrais e poesia. Mas foi com a criação do detetive que o autor garantiu seu lugar na galeria dos grandes escritores da literatura mundial, e seus textos com o personagem inspiraram diversas gerações de escritores de literatura policial e de mistério.

O primeiro texto de Conan Doyle, um conto de investigação intitulado O mistério do Vale Sasassa, foi publicado em 1879, quando o autor tinha apenas vinte anos. Para contextualizar sua produção na literatura mundial, vejamos algumas obras de outros escritores que vieram a público no mesmo período:

• O primo Basílio, de Eça de Queirós (1845-1900), foi publicado no ano anterior (1878), bem como Noite na taverna, de Álvares de Azevedo (1831-1852);

• Os irmãos Karamázov, último romance de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), foi publicado em 1879;

• Memórias póstumas de Brás Cubas, um dos principais romances de Machado de Assis (1839-1908) e da literatura brasileira, foi publicado em 1881;

• Rumo ao farol, romance de Virginia Woolf (1882-1941), foi publicado em 1927, ano em que Conan Doyle lançou o conto O arquivo secreto de Sherlock Holmes, sua última história do detetive, e que Mário de Andrade (1893-1945) apresentava ao público seu romance Amar, verbo intransitivo.

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As narrativas protagonizadas por Sherlock Holmes têm um estilo diferente das que compõem as obras citadas, pois priorizam o enredo (com a apresentação, o desenvolvimento e a solução de um mistério) em vez de a forma literária. Contudo, elas marcaram a história da literatura mundial e conquistam leitores desde a época em que foram lançadas.

Para esta antologia, o texto original de Conan Doyle foi adaptado pela experiente escritora de literatura juvenil Marcia Kupstas. Isso significa que ela fez uma interpretação do texto original, o que requer um trabalho investigativo, à la Watson, de avaliação cuidadosa, em que é preciso fazer escolhas o tempo todo: quais diálogos manter ou cortar? Quais passagens são essenciais e quais podem ficar de fora? Atualizar ou não a

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Retrato ilustrado do escritor Arthur Conan Doyle (1859-1930) GORDON JOHNSON/PIXABAY.COM

linguagem? Todas essas perguntas devem ser respondidas no trabalho de adaptação, enquanto se preserva a sequência lógica dos fatos e se estabelece um ritmo interessante na narrativa. O texto original é transformado, mas não perde a essência. É sempre bom lembrar que a adaptação de um texto clássico não o substitui, mas pode ser uma forma de acesso ao original, um incentivo que permite um olhar diferente para ele.

E quem é Marcia Kupstas? Ela nasceu em São Paulo (SP), em 1957, cursou Letras na Universidade de São Paulo (USP) e lecionou Literatura e Técnica e Metodologia de Redação em grandes escolas da capital paulista. Em seus mais de trinta anos de carreira, publicou mais de 150 livros (a maioria deles para o público jovem), ganhando prêmios como o Jabuti e o Orígenes Lessa. A autora acredita que “a vida é boa quando se tem um livro nas mãos, porque assim nunca se fica sozinho. Ler é viajar sem sair de casa, é compreender os universos e fazer a grande viagem do autoconhecimento”. Dá para ver que os contos de Sherlock ficaram em boas mãos neste livro, né?

Já as ilustrações desta edição couberam a Rogério Borges, que teve seu primeiro contato com o universo de Sherlock ao ver uma adaptação cinematográfica de O cão dos Baskerville, romance de Conan Doyle publicado pela primeira vez em 1902. Borges começou a trabalhar com ilustração na década de 1970, ao cursar a faculdade de Comunicação Visual. Ilustrou obras de muitos autores e recebeu alguns prêmios, como o

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Jabuti e o da Associação Paulista de Críticos de Artes (APCA), e o importante selo White Ravens, concedido pela Biblioteca Internacional da Juventude, de Munique, na Alemanha. O artista conta que se inspirou no trabalho de reflexão e observação de Sherlock para criar as ilustrações deste livro.

Não sabia… Agora eu sei!

As narrativas de Conan Doyle e seu protagonista mundialmente famoso, Sherlock Holmes, prendem nossa atenção. Em suas histórias investigativas, queremos saber o que, afinal, aconteceu, saindo do estado de ignorância inicial em relação ao mistério apresentado. Elas nos mostram que sempre há algo oculto, que ainda não sabemos. Indicam ainda que as ferramentas do detetive britânico são muito úteis: o raciocínio lógico e a dedução baseada na observação minuciosa de indícios, que podem gerar descobertas incríveis.

Que tal se inspirar nesta narrativa e escrever contos de mistério? Assim como na literatura, uma das graças da vida é que pode haver muito mais por trás dos fatos do que supomos!

Referência bibliográfica

COSTA, Sérgio Roberto. Dicionário de gêneros textuais. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. E-book (não paginado).

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Quatro contos em que Sherlock Holmes, um dos mais famosos detetives da literatura, demonstra seus métodos. Em “A face amarela”, um homem tem dúvidas sobre o comportamento de sua esposa. “O ritual Musgrave” envolve um mapa do tesouro e estranhos desaparecimentos.

“A Liga dos Cabeças-Vermelhas” trata de uma curiosa organização, que contratava apenas homens ruivos. E “O Diamante Azul” começa com um ganso roubado...

São histórias traduzidas e adaptadas por Marcia Kupstas, autora especialista em obras infantojuvenis, com linguagem que permite ao jovem leitor de hoje acompanhar o método de Holmes e desenvolver o fascínio por esse personagem extraordinário.

9500303000018 9 786556 232935 ISBN 978-65-5623-293-5

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