CONTO 1
A face amarela1
Os leitores bem sabem que eu, Dr. John Watson, relatei dezenas de casos que foram solucionados pela inteligência e lógica de meu amigo Sherlock Holmes. Sabem também que foram poucas as vezes que registrei insucessos em sua brilhante carreira. Confesso que não escondo as derrotas. A verdade é que as vitórias de Sherlock foram constantes, sempre que ele se dedicou a esclarecer mistérios ou crimes que pareciam impossíveis de resolver pela maior parte da humanidade; mas também amargou, nesses tantos anos em que convivo com ele, alguns equívocos. É o que ocorreu neste caso que denominei “A face amarela”. Tudo começou quando surgiu um homem em nosso escritório da rua Baker, 221B. Entrou sem bater à porta. Estava bem-vestido e tinha
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O conto “The Yellow Face” foi publicado na revista The Strand Magazine, em fevereiro de 1893, e no livro The Memoirs of Sherlock Holmes, no ano seguinte.
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um chapéu na mão. Parecia bastante nervoso. Eu lhe daria uns 36
trinta e poucos anos. – Peço-lhes desculpas, cavalheiros – disse ele, um tanto embaraçado. – Devia ter batido. Mas o fato é que estou sem dormir direito há algumas noites e… Passou a mão pela testa e dirigiu-se ao sofá. Diria que mais caiu sobre ele do que sentou. – Algumas noites sem dormir cansam mais os nervos do que o trabalho… – disse Holmes, com um jeito de intimidade que sempre coloca à vontade as pessoas que o procuram. – Em que posso ajudá-lo? – Quero o seu conselho, senhor. Não sei o que fazer. Toda a minha vida parece que está afundando. – O senhor quer me contratar como detetive? – Não é bem isso. Quero a sua opinião porque sei que o senhor é um homem especial, que desvenda mistérios e conhece a alma humana. Preciso de um conselho. Até para saber o que devo fazer depois. O homem falava pausadamente, mas o tom de sua voz mostrava que seu assunto era doloroso. Continuou depois, com o rosto ruborizado: – É tudo tão estranho, tão delicado! É horrível discutir o comportamento da esposa com dois homens que nunca se viu antes! Mas estou no fim das minhas forças e preciso de conselho. – Meu caro Sr. Grant Munro… – começou Sherlock.
Nosso visitante saltou do sofá. – O quê?! – gritou ele. – O senhor sabe o meu nome? – Se o senhor pretende permanecer incógnito – disse Holmes, sorrindo –, sugiro que deixe de escrever o nome no forro do chapéu. E também que não vire o interior do chapéu para aqueles com quem está falando… Holmes sentou-se no outro sofá e pegou o cachimbo. Acendeu-o calmamente, enquanto continuava: – Gostaria também de lhe dizer que eu e meu amigo já ouvimos muitos segredos nesta sala e a sorte nos sorriu, de modo a trazer paz para muitas almas angustiadas. Espero que possamos fazer o mesmo pelo senhor. O assim descoberto Sr. Munro passou a mão pela testa diversas vezes, como se os pensamentos lhe fervessem dentro da cabeça. Imaginei que ele seria um homem reservado e orgulhoso, do tipo que prefere esconder suas feridas a expô-las. Mas, num gesto súbito, esmurrou a mão que segurava o chapéu, como quem nada mais tem a perder, e começou a falar: – Os fatos são estes, Sr. Holmes: sou casado há três anos. Durante esse tempo, eu e minha esposa vivemos bem, amamos um ao outro e nunca tivemos sequer uma discussão. Agora, desde a última segunda-feira, ergueu-se uma barreira entre nós. Descobri que há alguma coisa na sua vida e nos seus pensamentos que eu não conheço, como se Effie fosse uma mulher estranha, uma desconhecida com quem eu cruzasse pelas ruas. Quero saber por quê.
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Antes de continuar, Sr. Holmes, quero dei38
xar bem claro uma coisa: Effie me ama. Não tenho dúvidas a esse respeito. Eu sinto isso. Mas agora surgiu esse segredo e jamais serei o mesmo com ela, enquanto não esclarecer tudo. – Por favor, Sr. Munro, procure me apresentar os fatos – disse Sherlock, um tanto impaciente. Nosso cliente respirou profundamente e procurou ser mais objetivo: – Eu lhe direi o que conheço da história de Effie. Quando a conheci, era viúva, embora muito jovem. Tinha apenas 22 anos. Chamava-se então Sra. Hebron. Foi para a América quando crian-
Capital do estado da Geórgia, nos Estados Unidos.
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ça e morou em Atlanta2, onde se casou com Hebron, um advogado de grande clientela. Tiveram uma filha. Mas aconteceu uma terrível epidemia de febre amarela, e tanto o marido como a menina adoeceram. Vi a certidão de óbito do marido. Essa desgraça abalou a pobre Effie a tal ponto que ela voltou para a Inglaterra, para morar com uma tia solteira em Londres. Não se mudou para cá por necessidade, Sr. Holmes; o marido a deixou muito bem de dinheiro. Ela possuía um capital de quatro mil e quinhentas libras. Eu também não
sou pobre; trabalho com cereais e ganho em torno de oitocentas libras anuais. Na ocasião de nosso casamento, eu e Effie resolvemos alugar uma casa no campo, em Norbury. É um lugar muito bonito, mas afastado da cidade. Na verdade, entre nossa fazendinha e a estação de trem, só existe uma casa no caminho, um pequeno chalé desabitado. No meu trabalho, preciso viajar durante algumas estações do ano, mas posso ficar em casa praticamente todo o verão. Minha esposa e eu fomos realmente felizes durante esses três anos. Nosso visitante fez nova pausa, como se outra dúvida surgisse em sua mente. Holmes, envolto pela fumaça de seu cachimbo, não tirava os olhos dele. – Antes de continuar, gostaria de esclarecer outro ponto. Quando nos casamos, minha esposa passou todos os seus bens para o meu nome, mesmo eu sendo contra isso. Há mais ou menos um mês e meio, ela me disse: “Jack, quando você ficou com meus bens, disse que, se eu precisasse de alguma coisa, era só pedir”. “Claro”, eu falei, “o dinheiro é todo seu.” Ela me pediu então cem libras. Confesso que me assustei com o valor, porque imaginei que ela quisesse apenas um vestido novo ou algo assim. Cem libras é dinheiro para mais de dez vestidos! “Para quê?”, perguntei. “Ora, não pensei que você me fizesse tal pergunta. Eu quero esse dinheiro, só isso.”
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“E não me dirá para quê?” 42
“Um dia, quem sabe. Mas não agora, Jack.” Pois bem, senhores, não insisti mais. Confesso que era um primeiro segredo entre nós, mas dei-lhe um cheque e não pensei no assunto. Pode ser que isso nada tenha a ver com os fatos que contarei a seguir, mas… – Às vezes, Sr. Munro, um detalhe simples revela mais mistérios do que se supõe – completou Holmes. – Continue. – Eu lhes disse como nossa fazendinha era afastada da cidade e mencionei um chalé desocupado. Na verdade, ele agora não está mais vazio. Na última segunda-feira, passei pelo chalé durante meu passeio matinal e vi sinais de ocupação na casa. Movido pela curiosidade, olhei para as janelas superiores do chalé e vi um rosto. Senhores, não posso explicar a terrível sensação que me bateu, o frio que senti gelar a espinha, ao ver aquela figura. Estava um tanto distante, não podia captar direito a feição, mas, Deus me perdoe!, aquilo não parecia humano. Não saberia dizer se era de homem ou mulher. Era uma face lisa, amarelada, quase brilhante. Fiquei tão transtornado que resolvi saber mais sobre os moradores do chalé. Mal me aproximei da casa, o rosto desapareceu da janela. Bati à porta e surgiu uma mulher magra, com jeito de empregada. Tinha um forte sotaque do norte da Grã-Bretanha.