Rosa Amanda Strausz
Nem todos os carneiros são criaturas fofinhas, feitos com lã macia. Há aqueles bem rabugentos, feitos com lã áspera e “piniquenta”. Tico faz parte de outro grupo: o dos carneiros com lã mal enrolada. Ninguém sabe o motivo de ele ser assim tão diferente e ver o mundo de modo tão particular. Será que esse jeito fará Tico se dar bem na vida agitada de carneiro?
Um nó na cabeça
Acompanhe os pulos de Tico, enrolado em sua tarefa de fazer adormecer o menino Quim e curá-lo da insônia que assombra suas noites.
ISBN 978-85-322-7993-4
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788532 279934
13301452
Rosa Amanda Strausz
Rosa Amanda Strausz Ilustrações
Laurent Cardon
1a. edição São Paulo – 2011
Copyright © Rosa Amanda Strausz, 2011 Todos os direitos reservados à EDITORA FTD S.A. Matriz: Rua Rui Barbosa, 156 – Bela Vista – São Paulo – SP CEP 01326-010 – Tel. (0-XX-11) 3598-6000 Caixa Postal 65149 – CEP da Caixa Postal 01390-970 Internet: www.ftd.com.br E-mail: projetos@ftd.com.br
Diretora editorial Silmara Sapiense Vespasiano Editora Ceciliany Alves Editores assistentes Flávia Muniz Luís Camargo Assistentes de produção Ana Paula Iazzetto Lilia Pires Assistentes editoriais Ândria Cristina de Oliveira Tássia Regiane Silvestre de Oliveira Preparadora Elvira Rocha Revisor Adolfo José Facchini Coordenador de produção editorial Caio Leandro Rios Editora de arte e projeto gráfico Andréia Crema Diagramação Luis Vassallo Tratamento de imagens Ana Isabela Pithan Maraschin Gerente de produção gráfica Reginaldo Soares Damasceno Rosa Amanda Strausz vive no Rio de Janeiro, RJ. É ganhadora do Prêmio Jabuti e do Prêmio de Revelação da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Tem cerca de 20 livros publicados. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Strausz, Rosa Amanda Um nó na cabeça / Rosa Amanda Strausz ; ilustrações Laurent Cardon. – 1. ed. – São Paulo : FTD, 2011. ISBN 978-85-322-7993-4 1. Ficção – Literatura infantojuvenil I. Cardon, Laurent. II. Título. 11-08120
CDD-028.5 Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura infantil 028.5 2. Ficção : Literatura infantojuvenil 028.5 Este livro foi publicado anteriormente pela Editora Salamandra (1998).
Vou contar um segredo para você. Já olhei dentro da cabeça dos carneiros. E sabe o que tem lá dentro? Uma porção de lã. Um novelinho. Não diga nada ao veterinário, nem ao médico, nem ao professor de Ciências. O veterinário pensará que você é burro. O médico lhe receitará um calmante. E o professor de Ciências vai lhe dar um belo zero. Então, bico fechado. Fica entre nós.
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Há carneiros que têm uma porção de lã quente e macia. Eles só pensam coisas aconchegantes, mastigam a comida devagar e com prazer, suspiram de felicidade antes de dormir, porque sabem que terão bons sonhos.
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Outros têm um bolo de lã áspera, daquele tipo que pinica. Esses são mal-humorados, vivem brigando, dando cabeçadas nos outros, reclamam de tudo. A maioria tem os dois tipos de lã misturada. Um dia, está contente. Outro dia, está de mal com o mundo.
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Entretanto, existem uns carneiros com o novelo mal enrolado. Ninguém sabe direito o motivo. Eles nascem com um nó bem no meio do novelo. Este nó faz com que eles vejam o mundo de um modo só deles. E também se comportem de um jeito muito particular.
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A história que vou contar é a de um carneiro que tinha a cabeça cheia de lã macia e quentinha. E um nó bem grande, quase do tamanho de uma bola de pingue-pongue.
Ele se chamava T co.
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Tico nasceu igual aos outros carneiros. Tinha quatro patas, uma cabeça só e o corpo felpudo e cacheado. Tinha também um emprego igual ao de todos os carneiros do mundo: fazer dormir pessoas que têm insônia. Quando alguém começava a contar carneirinhos, ele entrava na fila, esperava a sua vez e, quando chegava no número dele, pulava a cerca.
Obed ente, o T co.
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Mas, um dia, quando ele era o número 459 da fila contratada pelo senhor Godofredo Inácio, o nó apareceu. O senhor Godofredo Inácio era um agiota que sofria de insônia. Assim que botava a cabeça no travesseiro, ficava pensando no dinheiro que deviam a ele, imaginava que ninguém ia pagar e... pronto!
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Lá ia o sono embora. Ele só conseguia dormir se contasse 500 carneiros sem interrupção. E os carneiros iam pulando a cerca na maior disciplina. Ninguém era besta de falhar com um homem tão poderoso! Mais de 400 carneiros já tinham saltado sobre o barrigão de Godofredo. O sono estava começando a chegar. Ele bocejou, se ajeitou melhor na cama, puxou o lençol e foi contando: 457, 458... 458, 458...
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NĂŁo conseguia contar o prĂłximo. Arregalou os olhos. A cerca estava vazia. Faltava o 459. Era para ser o Tico. Tico tinha sumido.
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O senhor Godofredo Inácio sentou-se na cama, com o coração aos pulos:
-- A , m nha nsôn a -- berrou. -- Qual fo o m serável do carne ro que sum u O 457, o 458 e o 460, que estavam por perto, responderam, com a voz tremendo de medo: – O Tico...
-- Po s encontrem esse vagabundo -rug u o poderoso homem. -- Ele tem que pular a cerca, senão eu não durmo
Lá se foram os outros atrás do fujão. Depois de muito procurar, acharam Tico, deitado de barriga pra cima, olhando a lua e dando risada.
-- Você está do do, T co O senhor Godofredo Inác o está uma fera! Vamos ráp do para a cerca, senão ele não consegue dorm r. Mas Tico só olhava para a lua e dava risada. – O que aconteceu, Tico? – Eu estava chegando perto da cerca quando vi que ela era feita de dinheiro.
O 457, o 458 e o 460 se entreolharam. – E daí, Tico? O que é que você tem a ver com isso? O dinheiro é dele e ele faz o que quiser. Até cerca pra gente pular! – Só que, no lugar do rosto de uma pessoa importante, as notas tinham impressa a barrigona do Godô!!! – e Tico caiu na gargalhada.
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Depois dessa, Tico perdeu o emprego. Ficou um tempo sem trabalho, andando de um lado para outro, olhando as coisas que todo mundo via. Sรณ que todo mundo via as coisas de um jeito; Tico via de um jeito sรณ dele, tinha um modo especial de olhar.
Acabou arranjando um emprego novo, com dona Eufrásia, uma senhora nervosa que só conseguia dormir depois de contar 768 carneiros. Dona Amééélia, a mãe de Tico, explicou bem para ele o serviço:
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-- Meu f lho, a dona Eufrás a é uma velh nha mu to frág l. A pobrez nha não pode ser contrar ada, entendeu bem Por favor, comporte-se.
Na primeira noite, tudo correu bem. Tico esperou pacientemente a sua vez e pulou a cerca na hora certa. Mas, na segunda noite, aquela fila interminável começou a entediá-lo. Para se distrair, Tico começou a vagar pelo quarto de dona Eufrásia. Descobriu um aquário cheio de peixes e um canário na gaiola. Os peixes do aquário olhavam para ele e pareciam dizer: – Nos ajude. Nos tire daqui! Com tantos mares para nadar, estamos nessa prisão de vidro.
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O canário na gaiola parecia dizer: – Me ajude, me liberte! Com tantas florestas, tantos céus para voar, estou aqui nessa prisão de arame. Tico ficou danado. Então aquela mulher cheia de chiliques aprisionava animais! Era uma carcereira!
Estava tão indignado que mal escutou quando lhe chamaram: – Vem logo, cabeça de vento. Está chegando a sua vez!
-- Não posso, tenho que l bertar meus am gos. – Tá doido? – disse um carneirão gordo, pegando Tico pelas orelhas e lhe dando um forte empurrão.
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Tico se estabacou contra a cerca, fulo da vida. Mas, em vez de pular, virou o rabo na direção de dona Eufrásia e... Soltou um pum! Perdeu o emprego de novo. Imagine como dona Amééélia, a mãe de Tico, ficou triste. Estava cada vez mais difícil arranjar trabalho para ele. Ninguém queria saber de um carneiro que via as coisas do seu próprio jeito. Depois de pedir muito, dona Amééélia conseguiu outro emprego para o filho. Dessa vez, falou com ele:
-- Agora você se comporte Não arrume confusão. O novo emprego era para fazer dormir um menino de 8 anos, chamado Quim.
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Os pais de Quim brigavam o dia inteiro. Quando chegava a noite, o menino estava tĂŁo nervoso que nĂŁo conseguia dormir. A bem da verdade, os carneiros nĂŁo acalmavam Quim. Depois de um dia inteiro escutando a gritaria dos pais, tinha que aturar aquela carneirada pulando sobre sua cama.
Tico gostou de Quim assim que o viu pela primeira vez. E, como ele via o que ninguém mais percebia, ficou com pena da aflição do menino. Viu quando Quim foi para a cama a contragosto. Viu quando ele fechou os olhos com força. Viu dona Clélia Maritaca, a mãe de Quim, falando para o menino: – Não adianta fingir. Sei que você está acordado. Vamos lá, continue contando os carneirinhos. Quim já estava no número 54 e não aguentava mais. Que cansaço. Que vontade de ficar quieto, em silêncio. Tico foi ficando aflito com o sofrimento do novo amigo. E mais aflito, e mais, e mais. Até que não conseguiu se segurar. Pulou no meio da carneirada e gritou:
-- Parem com sso De xem o men no em paz
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E saiu dando cabeçadas a torto e a direito. Foi um deus nos acuda. Dona Clélia Maritaca botou Tico para fora, às chineladas. Os carneiros ficaram furiosos. Foram correndo contar para dona Amééélia:
-- Ass m não dá. Estávamos fazendo o nosso trabalho e seu f lho atrapalhou tudo A mãe de Tico começou a ficar preocupada e o levou ao médico. Doutor Marreta examinou o carneiro e deu o diagnóstico: – Ele tem um nó na cabeça. Não pode mais trabalhar e é bom que não fique junto dos outros. Pode se tornar perigoso. – Mas isso não tem cura? – perguntou dona Amééélia. – Não.
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Na casa de Quim, as coisas também não iam muito bem. Depois da confusão, o menino piorou do nervosismo. Agora, dizia que só ia dormir se lhe trouxessem o Tico.
-- Não conto ma s aqueles chatos. Só o carne ro que f cou meu am go. E não teve jeito de fazê-lo mudar de ideia. Quim ficou uma noite sem dormir, duas, três. Enormes olheiras surgiram em seu rosto. No primeiro dia, o senhor Maritaca passou todo o tempo reclamando. Dizia que a culpa era de dona Clélia, que não sabia educar o filho. No segundo dia, foi a vez de dona Clélia acusar o marido de todos os defeitos do mundo.
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No terceiro dia, viram que a coisa era séria. E, pela primeira vez em muito tempo, concordaram a respeito de alguma coisa: era preciso trazer o Tico de volta.
–-- Infel zmente, T co não pode ma s trabalhar -- expl cou dona Amééél a. -O méd co pro b u. – Mas meu filho só quer dormir com ele! – insistiu o pai de Quim. – É só uma noite, por favor – pediu a mãe de Quim. Dona Amééélia ficou com pena e acabou consentindo. Assim que Tico chegou ao quarto de Quim, o menino dormiu. Também, pudera! Estava exausto.
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Tico ficou por ali, perambulando, sem ter o que fazer. Até que descobriu uma caixa de lápis de cor. Ele não sabia para que serviam aqueles tubinhos coloridos. Então, brincou de empilhar, de botar um do lado do outro, até que a pilha caiu e um lápis riscou um papel que estava no chão. Tico ficou intrigado. Pegou o lápis com cuidado e o esfregou no papel. Parecia um novelo colorido. No centro do novelo, desenhou Quim adormecido. E não parou mais. Tudo o que desenhava parecia com as coisas que só ele via. O quarto de Quim na noite anterior: cheio de gritos e carneiros chatos. O quarto de Quim hoje, cheio de cores. Doutor Marreta, o senhor Godofredo Inácio e seu barrigão, dona Eufrásia na gaiola, a mãe de Quim de chinelo na mão. Quando Quim acordou, seu quarto estava cheio de desenhos.
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Tico ficou com medo. Talvez Quim não gostasse de ver sua mãe desenhada como uma maritaca estridente empoleirada na cerca, ou dormindo dentro da gaiola de dona Eufrásia. Mas o menino nem ligou. Aliás, deu foi muita risada.
-- Gen al Você é um art sta, T co Interessante! Então, no papel, ele podia ver as coisas do seu próprio jeito.
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A mãe de Quim estava tão aliviada porque o filho tinha dormido a noite toda, que nem se zangou. Não gostou muito de se ver retratada daquele jeito, mas deu um sorriso amarelo e comentou: – Vocês artistas deviam levar umas chineladas!
-- Os desenhos dele são mu to bons, mu to express vos. Temos que contar a nov dade para dona Amééél a -- d sse o pa de Qu m . Dona Amééélia ficou tão espantada e feliz que deixou Tico continuar a fazer Quim dormir.
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Agora, toda noite, Tico vinha visitar Quim. Os dois desenhavam, desenhavam até que o sono chegasse. Às vezes, o sono não vinha. Quando isso acontecia, a aurora encontrava os dois amigos colando seus papéis coloridos nas paredes do quarto.
E gostava tanto do que v a, que env ava seus ma s reluzentes ra os de sol para lum nar os sonhos que T co e Qu m sonhavam acordados .
Lopes.
Rosa Amanda Strausz
Famílias são sempre fonte de inspiração para mim. As dos outros e a minha. Entre tios, primos, cunhados etc., minha família tem gente de todo tipo. Um de meus primos chama-se Rick e é esquizofrênico. Convivendo com Rick, aprendi que olhar o mundo de um modo diferente do que se considera “normal” pode ser uma fonte de sofrimento. E isso não acontece só com os esquizofrênicos. Basta que alguém seja ligeiramente diferente e... pronto. Precisa lutar contra todo tipo de incompreensão. Com Rick, aprendi que existem muitas maneiras de a gente se comunicar com o mundo. E a mais poderosa delas é a arte. Desenho, música, dança, escrita, teatro e pintura são meios de expressão capazes de mostrar ao mundo toda a beleza que existe dentro de pessoas que sofrem com a incompreensão. Por tudo isso, este livro é dedicado ao Rick. Conheça mais o meu trabalho em: <http://rosaamandastrausz. wordpress.com>.
Rodrigo
Quem é
oal. pess Arquivo
Quem é
Laurent Cardon
Sou francês, radicado em São Paulo desde 1995. Comecei a trabalhar com literatura infantil no Brasil. Já ilustrei inúmeros livros e fui premiado pela Fundação Nacional de Literatura Infantil e Juvenil pelas obras Alecrim, de Rosa Amanda Strausz, e Procura-se lobo, de Ana Maria Machado. Para dar mais vida aos meus desenhos estudei animação em Paris. Meus trabalhos me levaram a lugares tão distantes como a China, a Coreia e, recentemente, ao Vietnã – como diretor de arte em estúdio de animação.
Um nó na cabeça é minha quarta parceria com a autora Rosa Amanda Strausz. É uma nova edição do meu primeiro livro infantil, que tive oportunidade de ilustrar outra vez, 15 anos depois, com outro olhar, outra técnica, outra linguagem: usei lápis, massa-corrida acrílica e finalização digital. Em São Paulo, mantenho meu estúdio de grafismo e animação: CITRONVACHE <www.citronvache.com.br>.
Impresso no Parque Grรกfico da Editora FTD Avenida Antonio Bardella, 300 Fone: (0-XX-11) 3545-8600 e Fax: (0-XX-11) 2412-5375 07220-020 GUARULHOS (SP)