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DE CONVERSA EM CONVERSA

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Por Joana Brito

Por Joana Brito

POR ANTONIO BIVAR

SEM MEDO DE VIRGINIA WOOLF Os livros, a vida afetiva, o abuso e as crises: quem foi a escritora inglesa que influenciou gerações

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Considerada a maior escritora do século 20, Virginia Woolf não sai de moda. Nos seus livros, nas incontá- veis biografias e teses acadêmi- cas sobre ela, no teatro em pe- ças baseadas na sua vida, cartas e diários, no cinema em vários filmes – num deles Nicole Kid- man a interpretou e até ganhou o Oscar. Seus romances são sempre reeditados. E na moda propriamente dita, às vezes ela vem com mais ênfase, como no ano passado, quando Orlando – a biografia-fantasia de sua amiga Vita Sackville-West, publicada em 1928 – inspirou toda a coleção unissex de inver- no da Burberry. Em Orlando (a tradução de Cecília Meireles é uma obra-prima no seu direito, como se Virginia Woolf fosse uma escritora brasileira), a per- sonagem- título atravessa três séculos e acaba no quarto. No começo, Orlando é um jovem aristocrata garboso e charmo-

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so que, sem o menor esforço, seduz todo um elenco feminino, desde a rainha Elizabeth 1ª, no século 17, até uma princesa russa, no século 19. Apaixonadíssimo, ele flagra a russa com outro. Decepcionado, mas sem perder o garbo, para esquecer a traíra torna-se embaixador inglês num exótico país muçulmano onde, repentinamente, num despertar, se dá conta de ter virado mulher. Orlando aceita a mudança de sexo com a maior naturalidade. Mas também percebe que no reinado da rainha Victoria, moça que se preze é obrigada a se casar pra não cair na boca do povo. E, por força da magia, Orlandomulher se casa com o marido perfeito (pra ela): ao contrário dela, Marmaduke fora mulher e agora virou homem. Foi mais ou menos o que aconteceu com Vita e Harold Nicolson, ambos homossexuais – Harold gostava de homem e Vita de mulher.

Casamento perfeito. Durou 50 anos e só não mais porque um dos cônjuges morreu, deixando Vita viúva sem perder a joie de vivre. A amizade com Virginia durou até a morte desta. Segundo nos contou um dos dois filhos do casal, Nigel Nicolson, no castelo de Sissinghurst, no condado de Kent, que fora dos pais e onde ele agora residia. Nigel recebeu os alunos da Escola Virginia Woolf de Verão, em 1993, e, com a típica naturalidade inglesa, contou do caso amoroso de sua mãe com Virginia Woolf. Revelou que era lésbica mesmo, mas que Virginia, não. Foi o único caso homo da escritora. Segundo ele, tiveram apenas uma relação sexual. Virginia era sexualmente fria. Não gostava dessas coisas. O relacionamento foi mais homoemotivo que homossexual. Já sua mãe, segundo diz, era da pá virada. Comia todas. Vita era da nobreza e também escritora. QUEM FOI VIRGINIA WOOLF

De família de classe média alta e da aristocracia das letras e artes inglesas, Virginia Stephen nasceu em 25 de janeiro de 1882, em um solar vitoriano, alto de seis andares, semelhante a outros vizinhos ali no Hyde Park Gate. Distava uma caminhada de cinco minutos dos jardins e do palácio de Kensington. Área nobilíssima. Quando Virginia nasceu, faltavam 18 anos para o fim do interminável reinado da rainha Victoria, que fez do Império Britânico o mais poderoso da época. Virginia era a terceira dos quatro filhos do casal Stephen. Os pais eram viúvos e com filhos do primeiro casamento. Julia, mãe, uma pré-rafaelita retratada por Burne-Jones; Leslie, o pai, viúvo de uma Thackeray, era autor de toda uma estante de volumes de seu extenso Dicionário Biográfico. Sua filha desse casamento era débil mental e pas

sou a vida internada. Os filhos do casamento da mãe eram dois belos rapazes, Gerald e George, e uma moça lindíssima, Stella. Leslie era bom pai, mas tirano até dizer chega, concentrado no Dicionário, deixando o resto por conta de Julia, esposa e mãe de sete. Moças não estudavam em faculdades. Tinham professores particulares em casa. Vanessa, Thoby, Virginia e Adrian, nascidos nesta ordem, eram muito unidos. Os outros meios-irmãos eram um pouco vistos de longe. A mãe era venerada por todos. Tanto peso em cima, faleceu quando Virginia estava com 13 anos. Foi uma perda irreparável. E traumatizante. Virginia sofre o primeiro surto psíquico dos muitos que terá durante a vida até seu suicídio em 1941.

Morta a mãe, a meia-irmã Stella faz seu papel substituindo-a nas exigências domésticas do padrasto. Stella morreu em plena lua de mel. Segundo biografias, por causa das investidas sexuais do voraz marido. Contam biografias – e a própria Virginia escreveu a respeito, até com humor – que Vanessa e Virginia na adolescência foram molestadas sexualmente pelos meio-irmãos George e Gerald. Acadêmicas norte-americanas acreditam que a “loucura” de Virginia Woolf vem de ela ter sido abusada por eles. Outros acham que não, que foram mil outros fatores. E o principal deles, o próprio self da escritora.

Orientadas pelos pais, segundo suas próprias inclinações, ficou combinado que Vanessa seria pintora e Virginia escritora. Tal se deu. O pai finalmente morre em 1904, Virginia já com 22 anos. E os quatro irmãos mais que depressa abandonam o sinistro solar vitoriano de Hyde Park Gate e alugam uma casa mais arejada em Gordon Square, no coração do Bloomsbury, bairro central, estudantil e boêmio, decadente e modernista.

FORMA-SE O GRUPO DE BLOOMSBURY

Pessoas mais velhas relacionadas à família Stephen achavam que, mudando para o bairro de má fama, os jovens perderam o juízo. Mas os quatro irmãos se sentem felizes como nunca. Os rapazes, Thoby e Adrian, estudam em Cambridge; as moças, Vanessa e Virginia, ficam em Londres. Nas quintas- -feiras a casa era aberta para reuniões que iam até tarde, sem hora pra terminar. Os irmãos trazem colegas de Cambridge – Clive Bell, Lytton Strachey, Maynard Keynes, Leonard Woolf – e de Londres conhecidos como Duncan Grant, Desmond e Mary McCarthy, E. M. Forster, Roger Fry. Essas reuniões serão o início do que ficará conhecido como o Grupo de Bloomsbury. Muitos ficarão famosos no campo das letras – romances, biografias, críticas e ensaios, da economia (Keynes) e das artes. Eram todos artistas. O que fazia o sucesso dessas reuniões era a conversação. Conversavam de tudo sem que nenhum assunto fosse considerado incorreto. Rica também era a diversidade sexual. Antenados e jovens, se alimentavam de cultura e gossips, e tinham opiniões próprias. Numa viagem dos quatro irmãos e uma amiga à Grécia, Thoby pega tifo e morre. Outro trauma irreparável. Em 1912, Virginia se casa com Leonard Woolf – porque toda moça de bem devia se casar e a irmã Vanessa já estava casada com Clive Bell e grávida. Vanessa será mãe de três, Julian e Quentin, filhos de Clive, e a última, Angelica, cujo pai, o pintor Duncan Grant, gay e companheiro da mãe. Angélica só ficará sabendo que Duncan, e não Clive, era seu pai aos 17 anos. Virginia e Leonard não tiveram filhos. Ela não quis. Como já publicava resenhas e ensaios na grande imprensa, escreve seu primeiro romance, A Viagem, passado numa comunidade inglesa no Amazonas, onde nunca esteve. O livro demorou anos a ser escrito. Publicado, em 1915, pela editora do meio-irmão, Virginia sofre outro surto psíquico e é internada. Em 1917, ela e Leonard fundam a editora Hogarth Press, que começa pequena e com o tempo torna-se uma das maiores da Inglaterra. Foi a primeira a publicar a obra de Freud em inglês. Virginia foi recebida por Freud, que achou melhor ela não fazer análise para não prejudicar seu gênio literário.

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Quase via de regra, assim que terminado um romance, Virginia entrava em crise, geralmente com meses de internamento. Entre uma crise e outra, já celebridade, posou para Man Ray e para a Vogue, frequentou salões de grandes ladies, castelos campestres e escreveu obras- -primas. Noite e Dia, Mrs. Dalloway, O Quarto de Jacob, Passeio ao Farol, Orlando, Flush (a biografia de um cachorro), Um Teto que Seja Seu (seu primeiro discurso feminista), Os Anos, Entre os Atos – este publicado postumamente logo após seu suicídio. Nas duas cartas deixadas para o marido e a irmã, Virginia escreveu que aquela seria sua última crise, já não aguentava mais dar trabalho aos outros. A Segunda Guerra Mundial rolava, a Europa de ponta-cabeça, ninguém queria mais saber de livros e o

mais aterrador, os bombardeios nazistas. Suas duas casas em Londres, sempre em Bloomsbury, uma delas onde escreveu a maior parte da obra, foram postas abaixo. Ela e Leonard já haviam se retirado para a casa de campo, em Rodmell. E foi dessa casa que, numa manhã fria de meia-estação, ela, sentindo-se esvaída aos 59 anos, de bengala, caminhou até o rio Ouse e, com os bolsos do casaco cheios de pedras, entrou nele em estação caudalosa para morrer afogada. A coragem para fazê-lo talvez tenha tido uma pequena ajuda do narcótico provido pelo irmão médico Adrian, provedor do mesmo produto para parentes e amigos caso não houvesse outro jeito que o suicídio no terror da guerra. Obituários em todos os jornais e a busca pelo corpo, que só foi encontrado (por adolescentes que exploravam a região) duas semanas depois do outro lado do rio engastalhado entre arbusto e mato. Seu corpo foi cremado. Viúvo, Leonard Woolf não mais casou, viveu quase mais três décadas e se concentrou na editora, na obra da falecida e em cuidar do jardim em Rodmell. Leonard revelou-se excelente jardineiro e a casa hoje é visita obrigatória aos woolfianos do mundo inteiro.

Também publicados décadas depois de sua morte os cinco volumes de seu Diário, considerado por muitos críticos e leitores como sua real obra mestra. Magistralmente editado por Anne Olivier Bell, que em notas de rodapé elucida as partes em que, correndo com o texto, Virginia apenas rabiscou. O Diário é como uma bolsa na qual Virginia Woolf enfiava tudo. Nele, ela se abre totalmente, ora em críticas demolidoras, ora em deslumbramentos pueris, ora poupa, ora não poupa, ora tensa, ora ligeira, cômica ou dramática, e faz, como nenhum outro, a mais deliciosa crônica social de seu tempo.

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ANTONIO BIVAR é membro da virginia woolf society of great britain e autor de bivar na corte de bloomsbury (2005, editora a girafa)

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