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protagonistas da última década
JUCA KFOURI
Combatente, abandonou a luta armada contra a ditadura para encabeçar uma cruzada contra os desmandos e a corrupção reinantes nos subterrâneos do futebol a partir das trincheiras das redações. Mas o esporte não melhorou como queria. Mesmo assim, o jornalista não demonstra estar disposto a se render – nem se vender
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POR FÁBIO DUTRA FOTOS PAULO FREITAS
“H oje eu não quero saber de furo, deixa que o Juca Kfouri!” A piadinha de redação, talvez ouvida pelo próprio Juca um milhão de vezes desde 1973, quando passou a dar expediente em uma, a da revista Placar, ajudava a descontrair mas escondia a tensão: PODER ia almoçar com um dos homens mais cultos da comunicação brasileira, capaz de falar de literatura e de política com a mesma naturalidade com que escala o Corinthians (seu time do coração) campeão paulista de 1977 – quando o Timão saiu de uma fila de 23 anos. E além disso conhecedor de todas as artimanhas do jornalismo e notório brigão, colecionador de inimigos do porte de Ricardo Teixeira e Vanderlei Luxemburgo, para ficar só no esporte. Mas bastou um aperto de mão para cair a pecha de encrenqueiro – culto e competente ele é mesmo.
Que brigão que nada, Juca tem é princípios. É desses incompráveis que só se vê em filmes de mocinho ou naquele tio ou avô que perderam oportunidades na vida por não se corromperem. Mas Juca Kfouri logrou chegar lá sem abrir mão do que acredita, algo muito raro no Brasil. Chega até a elogiar adversários (Luxemburgo e Mário Lobo Zagallo, importante dar nome aos bois) que, apesar das diferenças com ele, aliviaram para seu filho, o também
jornalista esportivo André Kfouri, da ESPN Brasil: “Esses são dois que disseram ao André que ele não tinha porque se preocupar, que os problemas, inclusive jurídicos, eram só comigo, o que é uma grandeza”, lembra. A sombra da carreira do pai, diretor de Placar por anos, comentarista da Rede Globo e depois da ESPN – para ficarmos, de novo, só no esporte, sem lembrar dos tempos à frente da revista Playboy (sim, daquela mesmo que marcou época), incomodaria o filho? “Acho que eu devo ter atrapalhado em algum momento pelas confusões que arrumei. Mas ficam falando de nepotismo na ESPN e isso é uma bobagem. Ele está lá desde o começo e sabe de todos os esportes muito melhor do que eu. Eu cheguei muitos anos depois. Só se ele fez nepotismo ao me indicar.” Juca gosta de contar duas boas histórias sobre a conviência com o próprio filho no dia a dia profissional: “Ele inaugurou um canal da TVA ao vivo, sem piloto, e eu fui assistir em casa, me remoendo de receio das besteiras que aquele moleque de 20 anos ia fazer, para então eu aconselhá-lo depois. Ele abriu com extrema destreza, avisou aos telespectadores que poderia haver problemas na transmissão pioneira e seguiu sem tropeços. Pensei: ‘De que planeta esse cara veio?’”, ri, coruja, e completa: “A outra foi na Copa de 2006, concorrentes, eu pela Folha de S.Paulo e ele pela ESPN. Eu estava na arquibancada com o Luís Fernando Veríssimo e ele no campo. Alguém avisou que eu chegara e ele subiu as escadas, me deu um beijo, combinou de jantarmos, e voltou ao trabalho. O Veríssimo virou pra mim no ato: ‘Ufa! Ainda se fazem filhos como antigamente!’”, derrete-se.
OMNICHANNEL
Engraçado que o nome de Juca Kfouri raramente surge primeiro quando o assunto é estritamente o esporte. Lembra-se antes de Galvão Bueno, narrador onipresente nas transmissões da Rede Globo, que tem exclusividade de quase tudo que interessa do tema, mormente do futebol; pensam-se nos folclóricos Milton Neves e Jorge Kajuru; e também em rabugentos, como Mauro César Pereira e José Trajano. Mas todo mundo conhece o Juca. Que passa, entonces? Fizemos o teste e quando o assunto é cartolagem ou regulamento – “mata-mata ou pontos corridos?”, eis a pergunta clássica que ele sempre responde pontos corridos – seu nome é o primeiro do imaginário. Talvez porque desde a Máfia da Loteria Esportiva de 1982, matéria-denúncia histórica de sua autoria, ele nunca abandonou a perseguição aos malfeitos no futebol, a ponto de Ricardo Teixeira ter tenta
do vetá-lo da cobertura da Copa do Mundo de 1998. Ou talvez porque Juca fale de tantas coisas que nem sempre o associam automaticamente às mesas-redondas esportivas. Ele explica: “Eu adoraria ficar só comentando o jogo, faria de graça se não fosse minha profissão. Mas com toda a sujeira que acontece atrás, sou obrigado a cobrir essas outras coisas. E quando eu fico sabendo, publico, o que acaba por incomodar muita gente”, reflete.
Falando em incomodar muita gente e não se ater apenas ao campo do esporte de Charles Miller, Juca usou sua coluna na Folha para contar que Aécio Neves, então pré-candidato à Presidência da República em 2010 (José Serra acabou escolhido pelo PSDB) havia agredido a esposa em público. À época ele pegou fama de serrista e foi muito criticado, mas mantém: “Era algo muito grave que envolvia alguém que queria dirigir o Brasil, e eu tinha cinco relatos au
ILUSTRAÇÕES ISTOCKPHOTO.COM
tônomos! Aí falaram de tudo, assim como hoje me tacham de petista por ter sido contra a derrubada de Dilma Rousseff e denunciado o golpe que se desenhou”.
Sobre política, aliás, não mede palavras. Egresso da ALN, organização da luta armada comandada por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, de quem foi motorista, decidiu sair do Partidão quando veio a anistia. Achava que jornalismo e filiação partidária em tempos democráticos não combinavam e também desconfiava que o comunismo em um país com o capitalismo tão arraigado não triunfaria. Entusiasmou-se com o PSDB – “fui o apresentador do evento que anunciou o partido!” –, mas se desiludiu quando o partido aceitou de bom grado cair no colo da direita liberal após o que ele chama de estelionato eleitoral de FHC, que
segurou a crise até as eleições de 1998, “exatamente como a Dilma fez”. Diz que “Mário Covas deve estar se revirando no túmulo porque ele sempre combateu essa guinada à direita” e foi tão contra o golpe a ponto de narrar um vídeo que comparava o impeachment a uma partida de futebol. Mas restringe seu ativismo a essas ações, diferentemente de colegas como José Trajano, recentemente demitido da ESPN Brasil depois de subir em alguns palanques. Trajano sempre disse que sua demissão foi por motivações políticas, no que Juca concorda: “O Zé tem aquele jeito ótimo dele e achou que depois de tanto tempo poderia subir em palanques, como o do Haddad, e houve quem não gostasse, e pedisse sua demissão”. Homem de princípios, a única coisa que o incomoda na posição política de pessoas
próximas – retira-se, portanto, o fascismo da sala de antemão – é a hipocrisia. O cara pode ser de direita, liberal, acreditar no que quiser que não envolva violência ou ditadura. “Mas eu fico muito irritado de ver pessoas do grand monde paulistano, que eu conheço um pouco, arvorando-se em moralismos para defender suas posições publicamente. E elas enriqueceram passando ao largo da ética.” Nada de nomes, claro, mas concordamos em apelidá-los de “pré-Lava Jato”.
Mesmo assim ele se recusa a pensar que não haverá eleições em 2018 e que poderia passar mais 20 anos de sua vida sem liberdade política. Espera que o Supremo Tribunal Federal cumpre seu papel, apesar de se dizer impressionado com a falta de unidade. “Cada ministro é uma ilha! Aquilo é um arquipélago!”, exclama. Por isso, prefere comentar sobre os candidatos. Como Luciano Huck, a quem viu crescer e acha bem- -intencionado. “Mas não está preparado para ser presidente, acho a desistência positiva até para
ele, que só teria a se desgastar.” Também acha que a chance de Lula ser preso é, sim, grande, mas prefere listá-lo como candidato. Um otimista capaz de perguntar, meio brincalhão, meio misterioso: “Quem disse que a seleção de 1982 não ganhou? Estamos aqui falando dela mais de 30 anos depois e ninguém lembra o time da Itália!”.
VOA, CANARINHO, VOA
Tomando chope garotinho, camisa de linho branca impecável, picanha com batatas suflé pra
acompanhar, melancia para a sobremesa, pela primeira vez Juca Kfouri parece inquieto tal qual demonstra na televisão desde que chegou no Figueira Rubayat. Logo entendemos: uma de suas netas está para chegar à sua casa para passar o fim de semana. Começamos a despedida, mas ainda dá tempo de escutar sobre a tragédia do Sarriá, quando a seleção de 1982 saiu da Copa ao perder por 3 a 2 para a Itália de Dino Zoff e Paolo Rossi. Diretor de Placar em tempos em que repórteres tinham trânsito na concentração, Juca é testemunha do crime. Para aquela edição, aliás, Falcão teria que se avaliar, Zico seria entrevistado e Sócrates era responsável por um diário. Nenhum conseguiu. Juca deu 10 a Falcão, abraçou o Galinho, que não tinha condições de falar à revista, e fechou o diário com a frase “Que pena, Brasil!”, dita pelo próprio Sócrates, puxada para a capa.
Sócrates foi o único amigo que fez entre os jogadores, assim de se frequentarem mutuamente. Ele via o Doutor como um personagem do século 19, incapaz de viver se não apaixonadamente – e até com hábitos chatos como esconder a chave para impedir que os convidados fossem embora. Ainda deu tempo de reclamar da reverência dos jovens jornalistas a ele. “Queria ser sacaneado quando meu time perde, essas coisas, e não essa distância de ‘mestre’.”. Joaquim Câmara Ferreira, o Velho Toledo, líder comunista que o incentivou ir para as redações e largar a luta armada, estaria orgulhoso do íntegro pupilo. n