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Por Kiki Garavaglia

OUTROS ARES

A pandemia e os novos tempos fizeram muita gente se mudar para o campo e experimentar uma rotina sem pressa, em meio ao verde. Há um ano longe de casa e dos palcos, os atores Helena Cerello e Raul Barretto foram viver em uma fazenda centenária no interior de São Paulo. Aqui, falam sobre a rotina dos filhos, os vínculos e a importância de projetar outros mundos por meio da arte

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POR HELENA CERELLO

Dia 12 de março de 2020. Estava no carro, levando as crianças na escola, quando soube pelo rádio dos primeiros casos de coronavírus em São Paulo. No mesmo minuto, fiz o retorno de volta para casa. Naquele dia, a nossa vida – como a de todos – fez uma curva inimaginável. Desde então, estamos em uma fazenda em Itirapina, no interior de São Paulo, perto de Brotas. Viemos com as crianças, Aurora, 10 anos, e Theo, 6, e uma mala para 40 dias.

Hoje é 5 de abril de 2021 quando escrevo este texto. E ainda estamos aqui.

Tem sido uma experiência forte passar a pandemia em uma fazenda, pois não podemos reclamar do privilégio que é poder andar sob o sol, sem sentir medo. Como dar a consciência para as crianças da dimensão do que estamos vivendo e ao mesmo tempo protegê-las? É uma pergunta que faço o tempo todo. O Raul [Barretto], meu

FOTOS ARQUIVO PESSOAL

À esq., quarteto reunido na quarentena. Acima, entrada da fazenda Paraizo. Abaixo, Raul com o filho Theo em fim de tarde. Na pág. anterior, “presépio de Natal” da família

companheiro, é naturalmente ligado à natureza. Desde o início da pandemia plantou mais de 2 mil mudas de árvores – ipê, moringa, jequitibá rosa, mogno, entre outras espécies.

Raul e Theo têm uma rotina diária de regar as mudas, roçar a terra, colocar adubo, calcário. Nosso caçula sabe agora o nome específico de alguns matos e de várias ervas daninhas e se gaba de ser o protetor das árvores.

Isso nos dá a sensação de que essa experiência tem um lado positivo, que é desenvolver nas crianças essa responsabilidade sobre a terra. Gostamos de passar para eles a ideia de que a Terra não nos pertence, e sim nós é que pertencemos a ela. Tentamos traduzir as falas de pensadores indígenas, como [Ailton] Krenak e [Davi] Kopenawa, que dizem que a floresta não é um almoxarifado onde você vai e tira as coisas, tira as coisas, tira as coisas. E, sim, um lugar onde você tem que pisar suavemente, andar com cuidado, porque é cheio de outras presenças.

Família

Uma parte da família está vivendo aqui também. Tem sido uma experiência rica, pois sempre alguém está ajudando a cuidar das crianças. O tio, arquiteto, ensina a construir traquitanas; a avó, a cozinhar; a tia, a jogar xadrez. Todos trazem histórias de suas infâncias e do lugar, que é uma fazenda de café e tem memórias que datam de 1889. Nessa troca familiar, estou literalmente morando na casa da sogra. Ela costuma dizer que “como dona de casa, sou uma ótima atriz”. Damos risada e vamos estabelecendo vínculos profundos e

nos salvando da tristeza que esse momento nos traz.

Como diz Krenak, são essas referências de quem vem antes e depois de nós que dão sustentação às nossas identidades. Se ficarmos sem essas pequenas alegrias, essas pequenas liberdades da intimidade, esses respiros da convivência com a “tribo”, vamos ficando loucos neste mundo maluco que compartilhamos.

Quando as crianças me chamam para brincar, tento não dizer não. Mãe, vamos brincar no monte de café? Mãe, vamos mergulhar de cabeça no café e cavar até o fundo? Nada no café, mãe. De barriga, assim. Agora deita no quentinho e olha para o céu. Mãe, fecha o olho. Agora abre (risos). Escondi seu celular dentro do café. Onde? Não lembro. Mãe, brinca comigo pra sempre?

Pássaro

A resistência das pessoas no início da pandemia na Europa foi uma inspiração. Lembro de ver, na Itália, as pessoas nas janelas cantando umas para as outras e aquilo me emocionou. Como atriz, criei uma peça, uma adaptação do livro O Peso do Pássaro Morto, de Aline Bei. Desde 2020, fazemos sessões on-line. Com direção de Nelson Baskerville e música original de Daniel Maia, a peça virtual tem cenas pré-filmadas e ao vivo, que faço em um dos quartos da casa, transformado em estúdio de cinema. textos de Shakespeare. Nosso dilema tem sido “como ser uma família de artistas de circo-teatro em um mundo onde não há mais palco, nem teatro, nem circo” e trazer essa questão não apenas como nosso dilema, mas como uma metáfora da frágil condição humana no mundo de hoje.

Aurora diz que quer ser atriz como a mãe e palhaça como o pai. O Theo diz que quer fazer o Hamster, ele ouviu falarmos sobre o Hamlet e agora pôs na cabeça que o papel do “Hamster” é dele. Aurora é quem o

Cenas do isolamento: à dir., pai e filho pela mata, e Theo no monte de café. Abaixo, Helena. Na pág. ao lado, Aurora na estrada

A história leva o leitor a acompanhar como a criança lida com a morte, uma adolescente com a violência sexual e a maternidade solo, e como uma adulta encara as perdas e a solidão. Me filmo pelo celular e faço a função de cinegrafista e iluminadora. Não há público presencial para dar sentido à experiência, mas mesmo assim, a troca virtual tem valido a pena. Recebo cartas de mulheres contando suas histórias e relatos de homens que se sentiram tocados com a peça.

Trabalho

Junto com Raul, que é palhaço do grupo Parlapatões, tenho uma companhia de teatro, a Vadabordo. Há o projeto de criar uma nova peça, com a participação das crianças, inspirada nos

FOTOS ARQUIVO PESSOAL

ajuda a memorizar suas falas e nessa brincadeira vai alfabetizando o irmão. Gosto daquela frase que diz: “Na dúvida do que fazer, olha para onde as crianças estão olhando e vai”.

Conscientes de que estamos em uma tempestade, porém, em um transatlântico, enquanto muitos se apoiam em um pedaço de madeira, tentamos passar, com nosso trabalho, um sentimento de empatia ao criar narrativas que nos façam enxergar além dessa bolha que vivemos e do furacão lá fora. A utopia de contar histórias como quem procura projetar outros mundos neste mundo.

“Filho, ‘silêncio’. A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento”, Krenak n

CASA NA ÁRVORE

POR RAUL BARRETTO

Se pudesse resumir esses 400 dias em quarentena, diria: que privilégio! Minha amada, meus filhos, meus pais saudáveis e aquele campo aberto com pomares e terreirões. Claro que vem uma certa culpa por perceber que tão poucos tiveram a mesma oportunidade. Estou na fazenda da minha infância, que pertenceu a meu bisavô e meus filhos puderam acompanhar o ciclo das frutíferas do pomar: jabuticaba, manga, abacate, goiaba, pitanga, cada uma a seu tempo. Puderam colher na horta a comida das refeições. Puderam, enfim, aprender a andar de bicicleta. Que conquista!

Meu teatro estava fechado em Sampa, meu grupo com pouquíssimas atividades. Mas a SP Escola de Teatro, da qual sou um dos fundadores e coordenador do curso de humor, se manteve ativa on-line e isso dava muito trabalho diário. Nas horas vagas, dei asas a um antigo sonho de construir uma casa na árvore. Meu irmão arquiteto escolheu um local e fez uma maquete junto com meu filho. Dia após dia, fui inventando escadas, janelas, redes, mesas. Foi um árduo trabalho onde carreguei no lombo mais de 600 bambus cortados no facão. Ela ficou na beira do antigo riacho escondido pelo mato. Para embelezar o quintal, fui arrancando o mato, alterei o curso do riacho, o que me permitiu localizar uma formação rochosa. Nova saga: fui tirando na marreta e na pá toneladas de areia e pedra até descobrir uma antiga piscininha de pedra que, ao transbordar, formava uma cachoeira de 10 metros.

Tudo parece um sonho, mas o fantasma da Covid-19 nos encobre a cada instante, pois o interior foi acometido com a mesma violência viral e até Itirapina se tornou um território de risco. As saudades de nossa casa em São Paulo, dos amigos, dos restaurantes, dos teatros e cinemas. Muitas vezes, o tédio ganha terreno. Mas sempre tivemos um pôr do sol, um abraço coletivo de nós quatro nos dando força e a esperança de que isso tudo será transitório. n

LUZ NATURAL

A artista plástica Jeanete Musatti e o colecionador de arte Bruno Musatti trocaram a vida no Jardim Europa, em São Paulo, pelo sítio no interior. É lá que o casal cultiva prazeres simples, como plantar e cozinhar, e onde ela busca inspiração para suas obras

POR LUCIANA FRANCA FOTOS PAULO FREITAS

Porto Feliz. O nome da cidade paulista onde fica o sítio do casal Bruno e Jeanete Musatti não poderia ser mais cheio de significado neste momento em que o mundo vive. Quando a pandemia chegou, há mais de um ano, o colecionador de arte contemporânea e a artista plástica decidiram que a casa de campo seria a residência fixa deles. Isolados, cercados pela natureza, e a apenas 1h30 de São

ILUSTRAÇÕES FREEPIK Paulo eram duas grandes vantagens. Foi como voltar no tempo. Há mais de quatro décadas o sítio também foi lar permanente da família por alguns anos. “Na época em que viemos morar aqui, teve uma pandemia de meningite. Ficamos assustados e por isso nos mudamos. Criei minhas três filhas pequenas, elas estudaram em uma escola rural”, lembra Jeanete.

Depois a família seguiu rumo à Inglaterra para que as meninas estudassem na Michael Hall School, de pedagogia Waldorf, em East Sussex. “Fomos com 18 malas e uma governanta”, conta a filha Andrea, mais conhecida como Deca. Produtora de cinema e com possibilidade de trabalhar remotamente, ela também está morando no sítio, mas em sua própria casa. Além da sede, o terreno de 25 alqueires abriga duas residências menores, de Deca e de Paola, que é atriz, dá vida à palhaça Manela e integra o projeto Doutores da Alegria, e outras duas para funcionários. Já a irmã, Bettina, é fotógrafa e mora na Itália.

Jeanete diz que nos primeiros seis meses em que estava na nova morada, no começo da pandemia, não fez nada, não leu e não produziu, esta-

Na pág, ao lado, a ampla sala de visita e a mesa do ateliê de Jeanete Musatti, com sua nova série que reúnem objetos sentimentais em pequenas caixas/vitrines. Nesta página detalhes da casa principal

va em estado de pânico. Mas logo se reconectou e voltou a criar: ela fez uma nova série de obras que reúnem objetos sentimentais em pequenas caixas/ vitrines, sua marca registrada, e que estarão à venda no site da Galeria Bolsa de Arte. “A vida inteira eu produzi aqui, é um lugar que me inspira enormemente”, afirma a artista, que tem um ateliê por lá. O bonito piano de meia cauda Rönisch que chama a atenção

A artista plástica Jeanete Musatti, à esq. Acima, detalhes do ateliê e das salas da casa principal

ILUSTRAÇÕES FREEPIK

À dir., o piano de meia cauda Rönisch, presente de Bruno para Jeanete. Abaixo, o casal no gramado do sítio

na sala é outro instrumento de expressão de Jeanete. Ele foi presente do marido nos anos 1980, comprado em um leilão do espólio de um conhecido apreciador de ópera.

Cultivar na horta os alimentos que usa para cozinhar, como abóbora, mandioca e milho, cuidar dos animais, entre eles três gatos, dois cachorros e dois cavalos, e tirar água cristalina do poço são outros prazeres simples da família que sempre teve a arte e a natureza a seu dispor. n

MISTURA FINA

Altar para Iemanjá, jardim para receber clientes e muitos charmes a mais. Assim é a casa-ateliê da designer de joias Julia Gastin, no Rio, que usa ícones brasileiros em suas criações

POR LUCIANA FRANCA

Isto aqui é um pouquinho de Brasil, iá iá… A casa-ateliê da designer de joias carioca Julia Gastin não poderia ser diferente. Palha, madeira, barro e muita arte garimpada pelo país estão por todos os lados de seu novo espaço no alto do Horto, no Jardim Botânico, no Rio. “Queria que essa casa-ateliê traduzisse minha experiência e o olhar que tenho, desde o meu trabalho, meu lifestyle até o tipo de viagem que gosto de fazer. Enfim, o que realmente faz sentido para mim”, conta. Na reforma, ela teve a ajuda do diretor de arte Raphael Tepedino e da arquiteta Alice Tepedino (Aia Estúdio), que são primos e agora formam uma dupla.

Quem dá as boas-vindas às visitas é a rainha do mar. Um lindo altar todo dedicado a Iemanjá logo na entrada da casa mostra a devoção da moradora. “Tenho uma super-relação com Ieman-

Acima, o jardim que conecta a casa com o ateliê, onde tem mesa com os famosos azulejos da artista Adriana Varejão. Na pág. ao lado, na parede da sala de visitas, tapeçaria de Genaro de Carvalho e quadro de Rafael Baron. Abaixo, altar para Iemanjá

já, sou devota do candomblé e Iemanjá é meu orixá de cabeça. A cada ano, compro mais coisas para ela. Todo 2 de fevereiro [dia da divindade], vou à Bahia e trago uma imagem nova ou alguma coisa relacionada com o mar”, diz Julia. Os amigos também ajudam a aumentar a coleção com presentes. “Ali está virando meu espaço de troca, de lembrança, é um organismo vivo que vai aumentando e toda semana compro flores.”

É um lar cheio de história, significado e identidade – brasileira, é claro. Tapeçaria de Genaro de Carvalho na parede da sala de estar; móveis assinados por artistas modernistas, como as cadeiras Lucio, de Sergio Rodrigues; esteiras de palha e muita arte popular trazida de viagens pelo país, principalmente pelo Nordeste, dão o tom e se misturam com peças pontuais compradas em destinos mais longínquos, como África e Ásia. O canto preferido da moradora é a área externa, um charmoso jardim que conecta a casa principal com o ateliê. Quando o momento permitir, o jardim assumirá sua verdadeira função de ser um espaço para compatilhar, onde Julia receberá os clientes com mais tempo, mais proximidade e menos protocolos. A vontade, desde o início da reforma, era de que o comprador tivesse essa experiência ao adquirir suas peças e entendesse o DNA da designer, que ganhou fama com suas criações-desejo de búzios e figa. n

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