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VIDA INTERIOR

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J.P DE OLHO

J.P DE OLHO

NA FLORESTA

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ILUSTRAÇÕES FREEPIK Em uma casinha simples em Macaé de Cima (RJ), o diretor de arte Luiz Wachelke e o escritor Luiz Nadal encontraram o refúgio que precisavam para se dedicar à pintura e à escrita, respectivamente, e perceberam que a vida no campo não será temporária

POR NINA RAHE FOTOS LUIZ WACHELKE

A mesa desgastada pelo sol foi reformada pelo próprio casal, com aplicação de azulejos. No detalhe, fruteira com vaso-onça da marca Ceramiquinho e, no móvel abaixo, gatinho garimpado em uma viagem a Lisboa

Luiz Wachelke pergunta se a conversa pode ser às 18h em vez de 17h, pois o horário tem sido “valioso para pintar” aproveitando a luz natural. Desde julho de 2020, o diretor de arte e seu namorado, o escritor e pesquisador Luiz Nadal, encontraram em Macaé de Cima o refúgio que precisavam para se dedicar a suas paixões: a pintura e a literatura. Se agora Wachelke tem não só inspiração, como toda a flora da área de proteção ambiental a seu dispor, para representar nas telas seu principal objeto, o jardim; Nadal se aproveitou das conversas com os locais, da vizinha com conhecimento sobre as plantas ao caboclo que sabe os nomes de todos os passarinhos, para concluir seu primeiro romance, sobre a história de uma cidade colonial que mantém viva – e sob tensão – a presença dos povos originários. “Foram meses intensos e minha escrita se alimentava desses contatos”, diz Nadal.

Moradores do Rio de Janeiro desde 2013 – os dois são de Santa Catarina –, eles não pensavam em deixar a cidade até resolverem alugar uma casa no meio do mato “para respirar”. Ali, em meio às reclamações sobre a metrópole, foram questionados pela proprietária, Sandra, sobre o porquê de não se mudarem. “Nossa perspectiva era continuar no Rio, mas começou a ficar insustentável manter o aluguel sem poder usar a cidade para encontrar amigos, ir ao cinema, a exposições”, explica Wachelke. “De repente, percebemos que nada nos prendia e tudo que precisávamos era paz e tranquilidade”, completa Nadal. Entre as hipóteses de vida no campo e a mudança de fato não foram nem dois meses. Foi Sandra, inclusive, quem os ajudou a encontrar a casinha onde estão agora. O espaço que, em um primeiro momento, parecia abandonado, foi aos pou-

cos mudando de cara após receber pintura nova e os toques de decoração do casal. O lar de hoje é menor do que o apartamento de antes (são cerca de 70 metros quadrados e apenas um quarto), mas a vantagem, neste caso, é abrir a porta e ver a natureza inteira como extensão do ambiente doméstico.

A imersão na mata, por outro lado, trouxe desafios, como a impossibilidade de recorrer a um delivery ou ter frutas e verduras sempre à disposição, uma vez que esses itens sumiam rápido da conveniência mais próxima. A solução para contornar o problema pode ter sido óbvia, mas não pouco trabalhosa: cozinhar tudo, e sempre, e se empenhar para o sonho da horta própria. Os passeios ao redor, também, não acontecem sem algum esforço. “Não tem como ficar sem fogo nesse frio. Toda voltinha que damos é para pegar graveto e madeira para poder queimar. Tem essa coisa dos aprendizados da terra, de administrar a lenha, fazer a manutenção da horta, cuidar das pragas”, conta Wachelke.

Agora, o projeto de vida em Macaé de Cima, que a princípio tinha sido pensado exclusivamente para o período de pandemia, já mudou de rumo e o casal tem planos de permanecer indefinidamente. “Por que não transformar a casa em um refúgio para receber os amigos e torná-los também nossos anfitriões no Rio?”, indaga Wachelke. As duas caixas grandes, que vieram na bagagem, repletas de fantasias, inclusive, continuam guardadas para quando a pandemia findar e o Carnaval chegar. n

Acima, uma das “primeiras necessidades da casa”, as prateleiras para acomodar os livros. À esq. Luiz Nadal cuidando da horta e, à dir., fachada da casa

ROTA DE FUGA

Se pensar no futuro dá uma certa vertigem, a produtora e diretora Gabriela Figueiredo conta em um texto pessoal que ela e as filhas se concentram em saudar os deuses das pequenas coisas no sítio da família, na serra fluminense

POR GABRIELA FIGUEIREDO

As gêmeas Catarina e Estela, de 6 anos. Ao lado, Gabi, o marido, João Carrascosa, e as filhas

Apandemia chegou gritando – vive com o que você tem, pessoas, livros, roupas e gavetas. Catastróficos previram o fim. Românticos viram como uma chance de sonhar novos sonhos.

Mães, sem tempo de elaborar, entenderam a mensagem – ajusta a realidade e vai. A minha bússola foi ajustada em direção ao mato. Decidimos fugir.

– Mãe, tá chegando?

Contei a elas que quando criança competia com minha irmã quem via mais Fuscas amarelos na estrada.

– Mãe, o que é Fusca?

Nunca mais foram à escola. Ficaram craques em lagartas, pedras e cupinzeiro. Aprenderam que coelho se multiplica, que a bolinha preta no lago vira sapo e que louva-a-deus junta as mãozinhas em oração.

– Mãe, me mostra uma foto de Deus?

Mesmo vítimas da minha culinária, elas cresceram. E perderam todos os sapatos. Uma bota e um chinelo foi o que restou. Para mim, um par de botas Pisa Forte, comprado na loja de material de construção local. Vamos nessa, faremos bolhas nos pés, andaremos descalças, teremos as unhas pretas de terra.

– Mãe, minhoca tem pé?

Agarramos um gosto por inventar e recontar histórias. Estela, mesmo com medo de escuro, diz que vai ser guardiã da floresta e que vai usar vagalumes para acender a noite. Meu coração se ilumina. Catarina é louca pelas mariposas pretas. Coisas de bruxa, ela diz. Não aprendemos a fazer pão, mas, distraídas, observamos a formiguinha pequena carregando folhas enormes, um passarinho à toa, a aranha tecendo uma teia. A vida pode ser grande, mas viver é pequenininho. – Mãe, Deus é grande?

À noite, fazemos fogueira para aquecer e para deixar ir o que não é mais necessário. Queimamos ideias, trabalhos, desenhos e num ato libertador todos os meus sutiãs com bojo.

Olho pro céu procurando minha avó – ela estaria orgulhosa? Aproveito pra dizer a ela que “plantar batata” não é castigo!

E a vida que não para de acontecer o tempo todo, perto e longe dos nossos olhos – penso, enquanto salvo uma esperança, assino um contrato, choro pelo telefone, rio de um meme, tiro a couve-flor queimada do forno, emudeço o noticiário.

Não vou mentir, já planejei fugas. Idealizei minha solidão acompanhada de uma taça de vinho, que tomaria tranquilamente onde ninguém a derrubasse, onde os insetos passariam sem que eu tivesse que contar suas patas, onde não precisasse saber como descansa um beija-flor.

– Mãe, por que a gente não se “camuflica” que nem o lagarto?

Mais uma taça pra mim, mais chocolate pra elas e seguimos, parceiras e exaustas de nós mesmas. Mas quando a casa se enche de silêncio, brindo a elas que me roubam e me devolvem a paz.

– Mãe, sabe a música do “Lindo Balão Azul”?... Se a estrada estava tão bonita, por que eles pegaram carona na cauda do cometa?

Às vezes choro no banho, pelas notícias e por ter perdido o primeiro dente que caiu. Imagino qual será o meu castigo, mas sou interrompida, ou salva. – Mamãe, quer ouvir uma “engraçadez”?

Rio como se o mundo nunca tivesse perdido a graça e recebo um cafuné feito com dedinhos macios e minúsculos.

Se elas vão aprender que certeza é com z, não sei. Mas se pensar no futuro dá uma certa vertigem, por aqui concentramos, diariamente, em saudar os deuses das coisas pequenas.

– Mãe, o mundo tá colado no céu?... Nuvem cai?...

Com olhinhos cheios de amanhã, elas me perguntam o que vai ficar quando o vírus for embora. Não sei, tem muita gente com fome. De pão e abraços. Mas o mesmo mundo que tem tantas saudades tem também joaninha, luar e ataque de riso.

– Mãe, Deus ri?

Quando isso passar, e as certezas já não nos servirem mais, vamos ensaiar novos passos, pisando forte ou descalças, pela terra ou pelas pedrinhas portuguesas da cidade. E se vier uma tristeza, estaremos como a formiguinha – ocupadíssimas com a tarefa de viver a vida que nos atravessa, pequena, imensa, urgente e inadiável. n

Gabi e as filhas Estela e Catarina conectadas entre elas e com a natureza no sítio onde a família tem passado mais tempo no último ano

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