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CULTURA INC
POR LUÍS COSTA
NO CORAÇÃO DA TREVA Lançando mão de recursos do teatro físico e do cinema, Zé Henrique de Paula encena primeira montagem brasileira de Dogville, um dos clássicos distópicos do cineasta dinamarquês Lars von Trier
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Foi numa sala de cinema que o diretor de teatro Zé Henrique de Paula se encantou por Dogville, do dinamarquês Lars von Trier, de 2003. Nada mais natural. Apesar de ir fundo na linguagem teatral, trata-se, afinal, de um filme. Tempos depois, o diretor, vencedor dos prêmios Shell e APCA, receberia o convite para dirigir a primeira montagem da peça no Brasil. “A primeira coisa que eu pensei foi: ‘Como é que ninguém teve essa ideia antes?’”, conta.
Montagem recorrente nos palcos europeus, Dogville, a peça, esteve no Rio em novembro e chega ao Teatro Porto Seguro, em São Paulo, no dia 25 de janeiro, aniversário da cidade. Dogville, o filme, é verdadeiro teatro filmado. São célebres as casas desenhadas no chão, recurso próprio dos palcos, como representação do pacato vilarejo que vai ser transformado com a chegada de uma forasteira. Zé Henrique conta que, sempre que revelava o projeto da peça, perguntavam-lhe se reproduziria o famoso mise-en-scène de Von Trier. “Começou a ficar claro que o filme tinha um recall considerável na cabeça das pessoas, e um dos esforços que tínhamos de realizar era de, nas duas horas e pouco da peça, tentar fazer com que os espectadores esquecessem o filme”, diz.
A saída foi inverter o jogo estético: se o filme tinha muito de teatro, a peça iria beber do cinema. “Fomos amadurecendo a concepção e chegando a essa outra ponta, na qual a gente tem uma peça de teatro que flerta com a linguagem cinematográfica”, diz o diretor, que usa no espetáculo videomapping e projeções, inclusive de cenas filmadas ao vivo. “Para ser fiel à ideia do filme, precisávamos nos afastar dele, por mais paradoxal que isso possa parecer.”
Zé Henrique de Paula e seu grande elenco
Ao mesmo tempo, a peça usa muito do teatro físico, que põe a gestualidade dos atores em patamar de igualdade com o texto. “É como se você, assistindo à peça, tivesse uma surdez repentina e conseguisse, sem ouvir os atores, embarcar numa pista de compreensão do enredo”, explica o diretor.
Na trama de Lars von Trier, uma bondosa forasteira, Grace (vivida na peça por Mel Lisboa), chega a Dogville, cidade em que seus moradores têm convicções morais muito arraigadas. “Pense numa cidade que vive um eterno clima nublado, com muitas tonalidades de cinza, e Grace, com sua luz muito intensa, faz aparecer a sombra que não estava visível”, descreve Zé Henrique. “O interessante da peça é ver como essa coletividade vai reagir ao enfrentar suas próprias sombras, que não viam, preferiam não ver, não sabiam que existiam. É uma espécie de tratado, na forma de uma fábula, meio brechtiano, sobre como o ser humano pode (ou não) lidar com as próprias imperfeições.”
Na leitura de Zé Henrique de Paula, as certezas das personagens de Dogville as tornam incapazes de perceber o que lhes é diferente. A alteridade as agride. Contudo, o diretor considera que a subjetividade do público permite interpretações diversas. “É tão interessante ver o público conversar depois do fim da peça. São leituras muito pessoais, e isso é uma das coisas mágicas que o teatro tem”, diz. “Se você tem 500 pessoas sentadas na plateia, você tem 500 peças diferentes acontecendo. Isso é maravilhoso de ver.” n
LITERATURA O SANGUE COMO OFÍCIO
Vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura, Ana Paula Maia explora relação entre homens e animais em universo ficcional marcado pela brutalidade
Os personagens de Ana Paula Maia confundem-se com seu traço de estilo: são brutos, cruéis, secos. Homens talhados pelos trabalhos áridos, entre a ferocidade e a luta por sobrevivência, eles transitam por seus livros, reaparecendo em diferentes tramas. Vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura de 2018, um dos mais importantes do país, a escritora e roteirista de 40 anos criou ambiência própria de uma literatura feroz. “Aos poucos, percebi que estava criando um universo ficcional bastante particular e que esses personagens se movem nele”, afirma a autora de Assim na Terra como Embaixo da Terra (Ed. Record, R$ 34,90). Bronco Gil, protagonista do romance que rendeu o prêmio a Ana Paula, apareceu pela primeira vez em De Gados e Homens, de 2013, como um capataz de um matadouro. Em Enterre Seus Mortos, deste ano, ele é apenas mencionado num breve diálogo. “Nos meus livros, os bons personagens sempre voltam”, diz. Assim na Terra como Embaixo da Terra se passa em um ambiente de confinamento e terror. É uma colônia penal isolada que, às vésperas de ser desativada, torna-se cenário de uma luta insana por sobrevivência que opõe caçador e caça: Melquíades, o diretor do presídio, entretém-se ao perseguir os presos que restam no local num jogo de caça, como se eles fossem javalis.
A relação entre homem e animal marca não só o livro, mas toda a teia ficcional de Ana Paula Maia, autora de outros seis títulos. Nesse universo, os homens são moldados por seus ofícios. “Esse é o alicerce da minha literatura: a investigação do outro a partir das suas relações de trabalho”, afirma. São bombeiros, cremadores de corpos, lixeiros, abatedores de gado, agentes da lei, removedores de animais em estradas. “A brutalidade vem das relações de trabalho. Seja do sujeito que abate uma vaca, do que recolhe o lixo, seja do que lida com apenados por crimes hediondos”, diz. “Todos esses são o que chamo de ‘o trabalho sujo dos outros’, que, aliás, é o título de uma de minhas histórias.”
Na entrega do prêmio, o júri considerou a força metafórica do enredo para tratar temas atuais, como a questão carcerária, ao mesmo tempo em que destacou como a história provoca o leitor a encarar um passado enterrado – a colônia penal do enredo erguia-se sobre uma antiga fazenda que utilizava mão de obra escrava.
“Temos no Brasil uma realidade histórica de brutalidade.”
PARA VER
Um Corpo que Cai (Alfred Hitchcock, 1958). No YouTube Filmes. Clássico máximo do suspense, completou 60 anos de seu lançamento em 2018. Com o ator prefencial de Hitch, James Stewart, e Kim Novak.
O Outro Lado do Vento (Orson Welles, 2018). Na Netflix. Último filme do gênio Orson Welles (1915-1985), começou a ser rodado nos 1970 e só foi concluído este ano, com ajuda da Netflix.
Eu Sou o Carnaval (Márcio Cavalcante, 2018). Nos cinemas. Previsto para estrear no fim de janeiro, o documentário mostra o carnaval de rua popular de Salvador, não exatamente aquele que se passa dentro das cordas dos trios e nos camarotes badalados.
PARA OUVIR
Bandeira da Fé (2018) - Martinho da Vila (Disponível em plataformas digitais). O sambista carioca celebra 80 anos de vida e 60 de carreira. Glória Maria faz um “cameo” declamando o poema “Ser Mulher”.
Álbum Branco (1968) - The Beatles. O nono disco da banda inglesa volta em reedição de luxo com nova mixagem e dezenas de demos. Há CDs, vinis e um livro de 164 páginas sobre o processo de criação.
Grande Liquidação (1968) - Tom Zé (Disponível em plataformas digitais). Primeiro álbum do compositor baiano, que abria com a famosa música “São São Paulo” e tinha em seu lado B o hino tropicalista “Parque Industrial”.
PARA LER
Assombrações (Todavia, R$ 49,90) - Domenico Starnone. Depois do sucesso de Laços (2017), o escritor italiano lança seu segundo título no Brasil. A curiosidade por Starnone cresceu depois de uma hipótese ganhar força: aponta-se que ele – ou sua mulher, a tradutora Anita Raja – seja o verdadeiro autor do fenômeno literário Elena Ferrante.
À Cidade (edição independente, R$ 19,90, e-book na Amazon) - Mailson Furtado. O livro de poesia, editado pelo próprio escritor, cearense de Varjota, venceu o Prêmio Jabuti de Livro do Ano em 2018.
Beatriz Milhazes: Colagens (Cobogó, R$ 125). É o primeiro livro de colagens da artista plástica. A publicação é organizada por Frédéric Paul, curador do Centro Georges Pompidou, de Paris.