Desenvolvimento humano na Lógica do Espírito: uma introdução ao pensamento de James Loder

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Karin H. K. Wondracek Matthew L. Rehbein Letícia N. Cartell

Desenvolvimento humano na LÓGICA DO ESPÍRITO Introdução às ideias de James E. Loder

1ª Edição

Joinville, 2012


© 2012 Editora Grafar Ltda. Os direitos dessa edição estão reservados à Editora Grafar Ltda.

Capa e arte da capa: Claudio Kupka Ilustrações: Paulo Vinicius Duvoisin Horstmann Diagramação: Robert W. Beims

Ficha Catalográfica W872d

Wondracek, Karin H. K. Desenvolvimento humano na lógica do espírito : introdução às ideias de James E. Loder / Karin H. K. Wondracek, Matthew L. Rehbein, Letícia N. Cartell. – 1. ed. – Joinville (SC) : Grafar, 2012. 102p. ISBN 978-85-63723-03-1 1. Psicologia do desenvolvimento – Aspectos religiosos. 2. Desenvolvimento humano – Aspectos religiosos. I. Título. II. Rehbein, Matthew L. III. Cartell, Letícia N. CDD: 261.515 Elaborada por: Andréa Blaskovski CRB 14/999

Editora Grafar Ltda. Rua XV de Outubro, 4792 – Rio Bonito 89239-700 – Joinville – SC www.editoragrafar.com.br vendas@editoragrafar.com.br


Com efeito, estudar o espírito humano, não no abstrato, mas junto às matrizes do desenvolvimento humano, é não somente levar nossa existência física a sério, mas também estudar, implicitamente, certos aspectos do universo físico e o que está além dele. James Loder



Apresentação da Coleção Lógica do Espírito O objetivo específico da Coleção Lógica do espírito é apresentar o pensamento de James Loder e sua fertilidade para a compreensão do desenvolvimento humano numa abordagem interdisciplinar. Este autor, professor no Seminário Princeton – Estados Unidos, voltou seu olhar sobre o desenvolvimento humano a partir da teologia cristã em diálogo com a psicologia do desenvolvimento, a psicanálise, as ideias de Piaget, a física, a neurologia, a filosofia, para citar as principais. Raras vezes um autor se mostra tão versátil no seu conhecimento, e isso nos encantou. Do psiquiatra Dr. Carlos J. Hernández e do Prof. Dr. Daniel Schipani ouvimos pela primeira vez a respeito do pensamento de James Loder. A partir disso, durante três anos participamos de um grupo de estudos de Loder⇤ , e estimulados por esta leitura, resolve⇤ Coordenado pela psicanalista Karin H. K. Wondracek e pelo psicólogo Matthew Rehbein, com a participação da psicopedagoga Agnes Seewald, dos pastores Cláudio Kupka e Jarbas Aragão (também tradutor dos textos) e das psicólogas Letícia Cartell, Priscila G. Brust, Deborah W. Gehres, Nelsi K. Pires e Roseli K. de Oliveira, além da orientadora educacional Daisi Pontuschka (in memoriam). Vide nossos depoimentos ao final. Este texto tomou como base a monografia de doutorado da primeira autora, realizada em 2005 no Programa de Pós-Graduação da Faculdades EST, sob orientação do Prof. Dr. Enio R. Mueller. Com o auxílio dos outros autores, o texto recebeu acréscimos.


mos divulgar suas ideias por meio da Coleção Lógica do Espírito, sendo esse o seu primeiro volume. Os próximos, dependendo do interesse, abordarão a lógica do espírito nas crises, na criança, no adolescente e na terceira idade.


Sumário

Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

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1 Estrutura do pensamento de James Loder 1.1 O ser humano em múltiplos olhares . . . 1.2 As ciências e a compreensão “de baixo” . . 1.3 A teologia e a compreensão “de cima” . . .

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2 Interdisciplinaridade, Desenvolvimento Humano e Encarnação 2.1 O mistério da encarnação, um paradigma para a interdisciplinaridade . . . . . . . . 2.2 O mistério da encarnação, um paradigma para a antropologia . . . . . . . . . . . . . 3 Primeira Infância na Lógica do Espírito 3.1 Do nascimento à negação existencial . . . 3.1.1 A fundação do ego: os quatro organizadores do psiquismo segundo a lógica do espírito . . . . . . . . . . 3.1.2 Desenvolvimento e experiência de vazio . . . . . . . . . . . . . . . . . 9

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3.2 Desenvolvimento teológico: a infância como criação divina . . . . . . . . . . . . . 3.2.1 O espírito humano e o Espírito Criador . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3.2.2 A face humana e a Face de Deus em Jesus Cristo . . . . . . . . . . . 3.2.3 O mecanismo de negação e a doutrina do pecado original . . . . . .

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4 Conclusão Encarnada 4.1 Grupo de Estudos “James Loder” . . . . . 4.2 A Leitura de Loder e a Diferença em Minha Vida Profissional . . . . . . . . . . . . 4.3 Paternidade e encarnação . . . . . . . . . 4.4 Vida Profissional e Lógica do Espírito . . 4.5 Loder: A Face e o Sim . . . . . . . . . . . . 4.6 A Lógica Transformativa: Mudando os Rumos da Minha História . . . . . . . . .

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5 Notas

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6 Apêndices 6.1 Quem foi James Loder . . . . . . . . . . . 6.2 Obras de James Loder . . . . . . . . . . .

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Referências Bibliográficas

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Agradecimentos

A Carlos J. Hernández Daniel Schipani Daisi Pontuschka (in memoriam) inspiradores das aventuras na lógica do espírito.



Introdução I. MOMENTO BIOGRÁFICO: Convicção para além da razão 02 de setembro, 1970. James Loder pega o volante do carro e sai de sua casa em Princeton, New Jersey, junto com sua esposa, Arlene, e suas duas filhas, Kim e Tami. O destino: Niagara Falls, Canadá, passeio em família, desfrutar o feriadão. Na rodovia federal 87, passando pela cidade de Kingston, New York, Loder vê um grupo de idosas no acostamento; seu carro está com o pneu dianteiro furado. Loder desacelera e decide encostar na frente do carro delas para ajudá-las. Enquanto Arlene conversa com as idosas, ele se abaixa e começa a trocar o pneu furado. De repente, um terceiro carro, vindo de trás, se desgoverna e bate no carro das idosas, empurrando este para cima do peito de Loder. Os dois carros arrastam Loder por cinco metros para frente e batem por fim no para-choque traseiro do carro dele, deixandoo de cabeça e braços acima do nível do para-choque, espremido entre os carros. Incrivelmente, Arlene, orando e se esforçando, levanta o carro das idosas para que Loder possa sair (quebrando uma vértebra no ato). Loder quebrou cinco costelas, seu pulmão esquerdo está com hemorragia, perde 13


o polegar direito e tem arranhões por todo o corpo. Mesmo assim consegue acalmar sua família, enquanto espera a ambulância para levá-lo ao hospital e salvar sua vida. Ele relata depois que, ao sair de debaixo do carro, sentira duas coisas: primeiro, que ele amava a todos ao seu redor, especialmente sua família, e segundo, que esta calamidade tinha um propósito. “Nunca estive tão consciente da vida que fluía em mim, e que esta vida não era minha. Meu bem-estar veio de além das minhas forças naturais...Decerto, o efeito mais significativo e memorável não foi a dor, nem a raiva do motorista imprudente, mas a natureza graciosa da vida que eu estava vivendo.” No hospital, Loder começa a “azular” e a entrar em choque; mesmo assim, consegue se consolar, olhando para os crucifixos pendurados nas paredes. Os médicos estão pessimistas a respeito das suas chances. Enquanto preparam Loder para cirurgia, ele começa a cantar o hino “Fairest Lord Jesus” [Jesus formoso] e outros. O ambiente da sala de cirurgia muda e a equipe médica começa a relaxar. De repente, a cor começa a voltar para sua pele, e o sangramento interno cessa. A ordem para pôr Loder em oxigenação é cancelada. Segundo Loder, a cura veio pela oração. Enquanto a ambulância o levava para o hospital, sua esposa Arlene ligou para seu pai em Chicago, que, por sua vez, acionou a sua comunidade religiosa para orar pela vida de Loder. Essa segurança divina esteve presente também em Kim, a filha mais velha de Loder: ela declara no hospital que “com certeza Papai vai ficar bem.” Dois dias 14


depois, o cirurgião-chefe fala assim do caso dele: “Um bom médico sabe quando deve sair do caminho e deixar Deus administrar a cura.” Este evento, de fato, levantou muitas questões novas, pertubou muitos relacionamentos e obrigou Loder a rever o âmago espiritual de sua vocação. Embora ele fosse professor de educação cristã em Princeton, ainda não havia terminado os procedimentos de ordenação ao ministério da igreja; adiara-os por vários motivos. Porém, depois deste evento, Loder completa o processo para sua ordenação, não por obrigação moral ou filosófica, e sim porque “eu conhecia, dentro de mim, a direção necessária da minha integridade.” “Sem dúvida esta experiência me apresentou à realidade para a qual eu tenho tentado ser autêntico, e da qual eu tenho me afastado apenas com uma grande sensação de estar ferindo minha própria alma. Eu tenho sido, e estou convencido.” Coloca-se então a seguinte pergunta: como assim, convencido? Para Loder, os termos “convencido” e “convicção” remetem à imagem do judiciário: se alguém está inteiramente convencido de uma verdade, a decisão de um caso é incontestável, e uma convicção fará parte da ficha permanente de uma pessoa. Nessa metáfora há três aspectos distintos: o Convictor, o convencido, e o relacionamento de convicção que os une pelo tempo afora. Usando essa linguagem, Loder fala de “experiências” de convicção no sentido de que uma pessoa, convencida por um evento, é obrigada a questionar a sua realidade vigente através do encontro com o Convictor e do relacionamento estabelecido e/ou realçado por este evento. 15


Segundo Loder, seu evento no dia 02 de setembro de 1970 foi uma “experiência de convicção” em que ele foi convencido pelo seu Convictor para rever toda a realidade à luz do Convictor e seu relacionamento com o mesmo. Em outras palavras, ele afirma que sua vida foi transformada por Deus. A partir deste evento, embarca numa jornada de 30 anos de pesquisa acadêmica, docência, autoria e aconselhamento pastoral, todos voltados para a compreensão e a aplicação de “experiências de convicção” à vida humana. Esses dados mostram que o grande fruto do trabalho de Loder é sua teoria da recursividade, simbolizada no "strange loop", que expõe a dinâmica relacional entre a divindade e a humanidade em inúmeros níveis e modos de experiência. Loder contribui de forma inédita para o diálogo entre a teologia e a ciência ao descrever detalhadamente, em livros de alcance e profundeza intelectual ímpares, como o Espírito Santo age para transformar o espírito humano. Pode-se até dizer que Loder cria uma nova gramática para estudos interdisciplinares no século 21. Para essa gramática, a peça chave é o conceito de lógica do espírito. II. MOMENTO TEÓRICO: A lógica do espírito Mas o que seria essa “Lógica”? “Espírito”? Ao primeiro olhar, estas duas palavras parecem estar em contradição ao serem empregadas juntas. Muitas pessoas diriam que “lógica” não tem conteúdo espiritual, e que “espírito” é algo que não tem nada a ver com lógica. Vamos examinar o que Loder queria dizer ao usar estes termos e uni-los. 16


Para Loder, “lógica” tem a ver com os processos básicos que o ser humano usa para tomar conhecimento de si mesmo e do seu mundo. São processos racionais, porque exigem o uso do cérebro, do intelecto e todas as suas faculdades. Mas estes processos não são apenas racionais; eles também são relacionais. Baseando-se em Polanyi, Loder expressa que todo e qualquer conhecimento é inextrincavelmente pessoal; não é possível separar o conhecedor do conhecimento. Ainda para Loder, “espírito” tem a ver com a dinâmica inata no ser humano que, silenciosamente dirige e molda o seu conhecimento. Esta dinâmica pode ser caracterizada como um padrão coerente que une num todo as mais variadas maneiras de pensar sobre tal assunto ou tal situação. O espírito busca integridade de conhecimento, ou seja, significado completo, em todo contexto, independentemente do conteúdo ou da complexidade do mesmo. Então, unindo estes dois termos, a “lógica do espírito” é o processo padronizado que descreve a fonte interior geradora de conhecimento em todos os níveis de experiência humana. A “lógica do espirito” envolve a transformação do conhecimento do ser humano. Isso ocorre quando ordens ocultas de coerência e significado emergem dentro de tal padrão de referência ou experiência, repondo ou alterando os padrões vigentes e reordenando seus elementos. Segundo Loder, consequentemente, esta “lógica do espírito” é analogicamente relacionada à maneira que Deus, por meio do seu Espírito Santo opera na experiência humana para que nós tomemos conhecimento Dele e do Seu mundo. Portanto, há uma relacionalidade inata 17


entre o espírito humano e o Espírito Divino. Assim, Loder afirma que há também uma “lógica do (E)spírito” em que o Espírito de Deus, dentro de tal padrão de referência ou experiência humana, faz com que ordens ocultas de coerência e significado emergem para repor ou alterar os padrões vigentes e reordenar seus elementos. Em outras palavras, a “lógica do Espírito” modifica as transformações feitas pela “lógica do espírito.” Na sequência, Loder desenvolve uma teoria interdisciplinar na qual mostra como a lógica transformativa do espírito humano está relacionada ou fundada na lógica transformativa divina. Esta interação divinahumana ocorre nas mais variadas formas: no desenvolvimento psicossocial do ser humano, na descoberta científica, na criação da cultura contemporânea, na resolução de crises... a lista não tem fim. Este livro é o primeiro da coleção “Lógica do Espírito”, baseado no pensamento de James Loder. Tem por finalidade demonstrar como a lógica transformativa do espírito pode agir ao longo do curso do desenvolvimento humano para transformar o significado e o destino de uma vida humana. A cada idade, novos significados e dimensões vão emergindo, levando o espírito humano a integrar ordens cada vez mais complexas de significado. Nessa esteira, o objetivo é aproximar o pensamento de James Loder a todos que trabalham com o ser humano de uma forma interdisciplinar e consideram o ser humano sob uma dinâmica complexa, que integra as diferentes dimensões. Mantivemos, pois, algumas citações literais para que o leitor brasileiro tenha acesso à sua escrita, de forma menos filtrada. Mathew Rehbein, Karin Wondracek e Letícia Cartell 18


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Estrutura do pensamento de James Loder

No prefácio do seu livro The logic of the spirit1 , Loder expressa sua convicção de que o espírito humano tem uma lógica própria que pode ser enfocada e definida pelas compreensões teológicas, o que por sua vez redefine o sentido e o propósito do desenvolvimento humano. Ancorando-se em Kierkegaard2 , diz que perante a existência humana, temos a possibilidade de abraçar um destes absurdos: o absurdo negativo, que declara a futilidade trágica e a falta de sentido da existência, tal como expressos pelo conceito de desespero, e o absurdo positivo, que crê que a natureza humana está redimida em Deus que entra na sua própria criação como completamente divino e completamente humano. Aos seres humanos cabe escolher em qual absurdo basear a existência, quer de forma ativa, isto é, dedicando-se à defesa de um deles, ou passiva, esperando para “ver no que vai dar”, embora esta última posição leve automaticamente para o absurdo negativo. Loder faz uma escolha ativa pelo absurdo positivo, isto é, investiga de que forma compreender o desenvol19


vimento humano ressignificado. Na prática, busca a elaboração de uma visão do desenvolvimento humano embasada na teologia cristã. O subtítulo: Human Development in theological perspective [Desenvolvimento humano na perspectiva teológica] mostra este âmbito. Com o adjetivo “teológica” ele quer especificar não apenas a cultura ou o corpo teórico do cristianismo, mas com Kierkegaard afirmar que o ser humano deve ser compreendido perante o fundamento que o colocou na vida. Loder pesquisa os sinais deste fundamento no desenvolvimento humano em geral e, em específico, na vida de pessoas que se deixam impactar pelo Logos que se fez carne, ou seja, por Jesus Cristo. Em suma, Loder parte da premissa de que o próprio estudo do ser humano – Antropologia, Psicologia, Filosofia, Sociologia, para citar alguns ramos – contém dimensões teológicas relevantes. “A meta é uma apropriação teológica crítica do fenômeno humano conforme descrito pelas disciplinas antropológicas”3 . Sobre este eixo constrói um “modo crítico e construtivo de ver o todo e o conteúdo de todo o tempo de vida e seu lugar na criação”4 . Neste sentido, ele não se refere apenas à vida humana, mas também à sua relação com as demais dimensões, ou seja, o modo como a estrutura do ser humano está relacionada com a do cosmos, e de como o humano constrói os paradigmas científicos de investigação da realidade. Para Loder, a ordem natural não é, segundo parâmetros da assim chamada teologia natural, uma forma de compreender a Deus independentemente da teologia positiva da revelação em Jesus Cristo. Na ver20


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