Tuco Egg
Meia Corda E outras incríveis histórias medíocres de montanha
1ª Edição
Joinville, 2014
© 2014 Os direitos dessa edição estão reservados à Editora Grafar Ltda. A fotografia panorâmica da Serra do Ibitiraquire usada na montagem da capa é de Matias Baldzer.
Capa: Tuco Egg Diagramação: Editora Grafar Ltda.
Ficha Catalográfica E29m
Egg, Tuco Meia corda : e outras incríveis histórias medíocres de montanha / Tuco Egg. - 1. ed. - Joinville (SC) : Grafar, 2014. 118p. ISBN 978-85-63723-06-2 1. Egg, Tuco - Narrativas pessoais. I. Título. CDD 920.71
Elaborada por: Andréa Blaskovski CRB 14/999
Editora Grafar Ltda. Rua XV de Outubro, 4792 – Rio Bonito 89239-700 – Joinville – SC www.editoragrafar.com.br vendas@editoragrafar.com.br
Aos amigos de montanha, pelo tempo que passamos lรก.
Sumário Explicação (des)necessária . . . . . . . . . . . . . . 9 Prefácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 O menino de asas
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Queda livre
16
Às vezes falha
22
O raio que o parta
25
Sopão
28
Cadê o caroço
31
Tudo, do piso ao teto
34
A chave da Terra de Malboro
37
Meia lua inteira
41
Gênesis
44
Epopeia
49
O eterno
55
Resgates compulsórios
57
Verticalidades
62
Castelo dos Bugres
64
Meia corda
68
7
Pedras, carrapatos e piada
72
Zoomp
76
Escarpas da nova divisa
79
Cachoeira
81
Fragmentos
85
Caiaque e fusca
91
Paraíso esquecido
94
A magnífica expedição ao quintal de casa
98
A trilha
100
Poesia
102
Imutável
106
Lição de planejamento
108
Glossário
115
8
Explicação (des)necessária Antes que seja tarde, é bom esclarecer algumas coisas na abertura desse livro. Ninguém deve fazer um rapel de corda dupla com as pontas soltas e desencontradas, como sugere a capa. Aquela imagem ilustra a história Meia Corda, contada aqui. Você também não deve voar sem equipamentos básicos de segurança, como descrito em outra história. O infeliz que fez isso terá sua identidade protegida até a morte. Tenha em mente que esse livro conta histórias da vida como ela é, sem maquiagens, e acaba relatando algumas aberrações técnicas. Se o seu interesse é aprender como agir em uma montanha, um livro técnico será muito mais apropriado. Aqui você encontrará somente narrativas descontraídas sobre realidades vividas, algumas delas sem o menor juízo. Ao final de cada história, lembre-se da frase: “não tente repetir isso em casa – pelo menos não dessa forma”. Com isso em mente, tudo correrá bem. Boa leitura.
9
Prefácio Temos uma queda pelo grandioso. Sonhamos alto, buscamos a glória. Nossos heróis são gente de feitos homéricos (ainda que nem saibamos quem foi Homero). Ansiamos por alcançar os grandes cumes, subjugar as grandes paredes, estraçalhar as altas graduações, galgar as mais assustadoras travessias, transpor as gretas mais profundas. Mas a dura realidade é que a imensa maioria de nós jamais fez nem fará nada de extraordinário. Gastamos nossos finais de semana e nosso dinheiro em aventuras medíocres. Vemos filmes, clipes e documentários, lemos livros, revistas e blogues, ouvimos e (a glória) damos palestras, sempre sedentos pelas grandes aventuras que jamais teremos. Esse volume é dedicado a todos aqueles que, como eu, sonham em voar alto, mal tiram os pés do chão, mas sentemse realizados. Sim! Conseguimos enxergar, ainda que com certa dor de cotovelo, a beleza do medíocre. Existe aventura e emoção intensa no ordinário. Aqui mesmo, nos barrancos do quintal da minha casa, senti os mesmos horrores e a mesma glória que Messner, Gulich, Tartari e Niclevicz. Alguém precisa saber disso. As páginas que se seguem narram as mais inacreditáveis aventuras que um zero à esquerda foi capaz de enfrentar. Todas elas baseadas em fatos reais, possivelmente alterados pela ação do tempo. Tuco Egg 11
O menino de asas Saímos cedo em direção à serra. Na moto ia o piloto com uma mochila de ataque na frente e eu, o carona, com uma cargueira abarrotada nas costas. Além de todo o equipamento de escalada, levávamos conosco dois parapentes e a ansiedade de poder subir uma montanha, alcançar o cume por uma parede de granito e descer lançando o corpo no abismo contrariando a intolerante gravidade, voando feito um urubu. O parapente não pesa muito, mas ocupa um volume desgraçado. O excesso de bagagem tornava difícil a condução da moto. Em cada curva fechada a buzina era acionada involuntariamente. Mas chegamos na base da montanha a salvo. O peso foi distribuído da melhor forma possível nas duas mochilas e iniciamos a caminhada até a parede escolhida. *
*
*
Lembro claramente a primeira vez que estivemos lá. Não conhecíamos nada sobre trilhas, montanhas, escaladas, voos, serras e coisas afins. Havíamos feito um rapel aqui e ali em barrancos e pedreiras, e apenas imaginávamos como seria subir uma montanha de verdade. A única informação que tínhamos era onde pegar o ônibus e onde descer. A caminhada dali para frente seria repleta do mais profundo mistério. O tempo estava fechado e a densa neblina havia nos roubado toda a serra. Tudo que se via a partir de uns 20 13
metros à frente do nariz, era um lençol cinza e úmido do tamanho do mundo. Tomamos o cuidado de seguir, a uma distância segura, um grupo com mochilas e roupas de gente que parecia saber o que estava fazendo. Eles certamente tinham o mesmo destino que nós, bastaria segui-los! Mas os miseráveis andavam rápido demais e perdemos contato antes mesmo da primeira bica d’água. De qualquer forma, depois de muito sofrimento, sabe-se lá como, alcançamos o afamado cume. Não vimos nada no trajeto todo. Nem uma minúscula e rápida janela se abriu. O lençol cinza permaneceu inclemente ao nosso redor e a umidade deixou-nos molhados e gelados. Mesmo assim, de forma absolutamente inexplicável, amamos aquele lugar. O cheiro, o vento, o frio, o cansaço, as pedras, paredes e mato. Todos os detalhes de tudo que conseguimos ver e tocar nos cativou para sempre. Voltamos lá mais de uma centena de vezes. E em muitas outras montanhas, vales e serras por aí. *
*
*
Espalhamos toda parafernália na base da parede – cadeirinhas, corda, costuras, paradas, freios e tudo mais. O clique dos mosquetões rompia o silêncio enquanto a umidade da respiração condensava a cada expirar. A rocha lançavase espetacularmente em direção ao céu. Avançamos lenta e delicadamente pela parede. O som das ferragens balançando, penduradas ao corpo sustentado apenas pela ponta dos dedos, e a suave brisa vinda do mais distante horizonte, tornavam o ambiente indescritivelmente assombroso. Nesses lugares, os sentimentos podem saltar em um segundo do mais puro êxtase ao mais angustiante horror. Por conta do volume de coisas que carregávamos, levamos bem mais tempo do que o planejado para alcançar as rampas de pedra que dão acesso ao cume. 14
Lá no alto, novamente apoiados em chão de verdade, começamos mais uma vez o complexo ritual de manuseio dos equipamentos. Cordas e ferros deram lugar a uma ampla vela de náilon que haveria de nos servir de asa dentro de poucos minutos. O vento batia de frente no rosto, e o campo onde pousaríamos estava trezentos metros abaixo de nós e talvez cerca de 2 km à frente. Passamos ainda alguns minutos contemplando a paisagem e ouvindo o vento enquanto saboreamos um pãozinho com queijo e algumas frutas. De onde estávamos, podíamos observar serras, cidades, rodovias, represas e a curvatura da terra na linha do horizonte. Bastou um puxão firme nos tirantes que nos prendiam à vela. O próprio vento se incumbiu de inflar o tecido e trazêlo sobre nossas cabeças. Três ou quatro passos à frente na direção do abismo que acabáramos de escalar foram suficientes. Nossos pés foram arrancados do chão e fomos conduzidos aos céus. As linhas cortam o vento que assobia seco e agudo. Os urubus passam ao lado observando curiosos. A trilha, o mato e a moto tornam-se grãos de areia. Todos pesam toneladas. Todos têm raízes profundas. Correntes e bolas de ferro os prendem ao solo. Mas não nós. Não naquele dia. Não naquele instante. Rompemos os grilhões, as cadeias. Tornamo-nos leves como pluma e, inacreditavelmente, ganhamos asas.
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