Território, territorialidades e estratégias de desenvolvimento regional

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Rosana Maria Badalotti Dunia Comerlatto Organizadoras

TerritĂłrio, territorialidades e estratĂŠgias de desenvolvimento regional


Rosana Maria Badalotti Dunia Comerlatto Organizadoras

TERRITÓRIO, TERRITORIALIDADES E ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO REGIONAL

Passo Fundo Editora IMED 2016


© 2016 Autores

Diretor Geral Eduardo Capellari Diretora Acadêmica Daiane Folle Diretora Administrativa Marilú Benincá de David Diretor de Relações com o Mercado William Zanella Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu João Alberto Rubim Sarate

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CIP – Dados Internacionais de Catalogação na Publicação T327

Território, territorialidades e estratégias de desenvolvimento regional / Rosana Maria Badalotti, Dunia Comerlatto, organizadoras.– Passo Fundo : Ed. IMED, 2016. 15 Mb ; e-BOOK. Disponível eletrônico: http://dx.doi.org/10.18256/97885-99924-87-7 Inclui bibliografia. ISBN 978-85-99924-87-7 1. Território. 2. Territorialidade. 3. Desenvolvimento regional. I. Badalotti, Rosana Maria, organizadora. II. Comerlatto, Dunia, organizadora.

CDU: 332.1(81) Bibliotecária responsável Angela Saadi Machado - CRB 10/1857

BADALOTTI, Rosana Maria; COMERLATTO, Dunia (orgs.). Território, territorialidades e estratégias do desenvolvimento regional. Passo Fundo: IMED, 2016.

DOI: http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7


SUMÁRIO

PREFÁCIO......................................................................................................... 7 APRESENTAÇÃO............................................................................................ 8 PARTE I ABORDAGEM TERRITORIAL E DESENVOLVIMENTO................... 14 Abordagem territorial e desenvolvimento: tópicos sobre a natureza de um debate inacabado...................................... 15 Flávio Sacco dos Anjos

Governança territorial em arranjos cooperativos institucionais e organizacionais: aportes teórico-metodológicos e avaliação de experiências brasileiras e portuguesas................................ 28 Valdir Roque Dallabrida João Ferrão

Desenvolvimento territorial e cooperação intermunicipal: a via dos consórcios públicos.......................................................................... 47 Fernando Luiz Abrucio, Eliane Salete Filippim, Rodrigo Chaloub Dieguez

PARTE II TERRITÓRIOS INTERCULTURAIS, TERRITORIALIDADES EM CONFLITO E IDENTIDADE REGIONAL........................................ 62 Conflitos territoriais no norte do Rio Grande do Sul: histórico de políticas públicas que provocaram a territorialização e reterritorialização de indígenas e agricultores......................................... 63

Henrique Aniceto Kujawa

Culturas marginalizadas em perspectivas pelo reconhecimento da diversidade...................................................................... 78 Claudio Luiz Orço, Elizandra Iop


PARTE III DINÂMICAS TERRITORIAIS, DESENVOLVIMENTO RURAL E AGRICULTURA FAMILIAR..................................................................... 90 Dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural: laços fracos e instituições em experiências da agricultura familiar na região sul do Brasil................................................ 91 Anelise Graciele Rambo, Claudio Machado Maia, Clério Plein, Camila Vieira da Silva, Eduardo Ernesto Filippi

A cooperação na agricultura familiar do Território Alto Uruguai Catarinense (SC), Brasil......................................................... 105 Carlos Eduardo Arns

A agricultura familiar do oeste catarinense e a construção de um novo modelo cooperativo em torno dos mercados dos produtos coloniais..................................................................................... 128 Clovis Dorigon

Agricultura familiar, juventude e cooperativismo: capital social imprescindível ao desenvolvimento territorial rural........ 142 Reinaldo Knorek

Possibilidades e limites das ações implementadas no Território Oeste para o desenvolvimento rural.............................................................. 160 Rosana Maria Badalotti Maria Luiza de Souza Lajus Cristiane Tonezer

PARTE IV DESCENTRALIZAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO............................................................................... 174 Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas, desenvolvimento regional e globalização?................................................... 175 Cláudio Machado Maia

Variáveis da descentralização político-administrativa em Santa Catarina, Brasil...................................................................................... 186 Walter Marcos Knaesel Birkner

Políticas públicas e territorialidades: um olhar na perspectiva da promoção da saúde......................................... 197 Maria Elisabeth Kleba

Perspectiva territorial na Política de Assistência Social............................ 210 Iraci de Andrade


PARTE V RELATOS DE EXPERIÊNCIA – ARTICULAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS E MOVIMENTOS SOCIAIS.......................................................................... 223 Articulação territorial e programas governamentais: criação e funcionamento dos Núcleos de Extensão de Desenvolvimento Territorial - NEDETs....................................................... 224

Enise Barth Teixeira, James Luiz Berto

O Programa de Desenvolvimento Territorial - Territórios da Cidadania: a experiência do Planalto Norte Catarinense ........................ 232 Arnaldo Luiz Milan, Dunia Comerlatto

Projeto Tecendo a Rede de Reciclagem: fortalecimento da economia solidária no oeste de Santa Catarina.......................................... 240 Graciela Alves de Borba Novakowski

As jovens do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina (MMC/SC): perspectivas e projetos de vida..................... 249 Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto

SOBRE OS(AS) AUTORES(AS).................................................................... 259


S U M Á R I O

PREFÁCIO Território, Territorialidades e Estratégias de Desenvolvimento Regional: um diálogo incessante... Este livro se materializa pelas discussões que foram proferidas no seminário regional “Território, Territorialidades e Estratégias de Desenvolvimento Regional”, que aconteceu em novembro de 2014, promovido pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais (Mestrado Profissional) e Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Parcerias importantes foram seladas para a realização desse Seminário, com os Programas de Pós-graduação Stricto Sensu - Mestrados em Desenvolvimento Regional da UnC/Canoinhas e em Administração da Unoesc/Chapecó, o Instituto de Estudos e Assessoria ao Desenvolvimento (Ceades) e a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). A publicação de um livro como este irradia relevância acadêmica e social pelo fato de articular discussões teórico-metodológicas sobre abordagens territoriais e desenvolvimento regional, em sua relação com experiências de pesquisa e intervenção. Ainda, irradia importância política, ao propor o debate acadêmico e sua interface com as experiências de atuação de organizações e atores regionais, envolvidos com ações de desenvolvimento territorial e regional. Este livro, ao agregar produções de pesquisadores e profissionais de diferentes áreas, provoca para o debate teórico-prático sobre a temática em foco, trazendo aos leitores significativas contribuições e um convite para sua continuidade. O potencial de discussão contido no conjunto das unidades temáticas - abordagem territorial e desenvolvimento; territórios interculturais, territorialidades em conflito, identidade regional; dinâmicas territoriais, desenvolvimento rural e agricultura familiar; descentralização, políticas públicas e desenvolvimento - ao compartilhar com os relatos de experiências, revela o compromisso do referido Mestrado ao subsidiar para análise e atuação nas questões relacionadas às políticas públicas e ampliar a articulação de pautas coletivas envolvendo atores e organizações na perspectiva do desenvolvimento territorial e regional. O tema sobre “Território, Territorialidades e Estratégias de Desenvolvimento Regional” é fundamentalmente transversal e de interesse público. Fica então o convite para uma leitura a todos que estão envolvidos ou que desejam se envolver nesta discussão. Sejam bem vindos. Boa leitura! Dunia Comerlatto Chapecó, inverno de 2016 7


S U M Á R I O

APRESENTAÇÃO Este livro é resultado de debates e reflexões com o meio acadêmico-profissional sobre pesquisas, estudos e experiências em desenvolvimento territorial e regional, processos de gestão, institucionalidades, dinâmicas e suas diferentes ações políticas e manifestações de territorialidades, desencadeadas por ocasião do I Seminário Regional “Território, Territorialidades e Estratégias de Desenvolvimento Regional”, realizado em novembro de 2014 na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). A realização desse seminário e, consequentemente, desta publicação contou com o apoio financeiro da Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (Fapesc), por meio de Chamada Pública Fapesc nº 09/2013 - Proeventos 2014. Contou também, com o apoio da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), envolvendo diferentes setores, docentes e discentes, técnicos e bolsistas de iniciação científica. Este livro é resultado da socialização de estudos e experiências nos diferentes espaços que compuseram o referido seminário tanto na conferência de abertura, quanto nas mesas redondas. Com base na perspectiva multidisciplinar e multiprofissional, promove um debate acadêmico na interface com experiências de atuação de atores e organizações em âmbito territorial e regional. Nessa direção, os textos que compõem este livro dialogam com a multidisciplinariedade, na medida em que propõem a desnaturalização da noção clássica de território, ressaltando as categorias de território e territorialidade como construções sociais, em suas diferentes dimensões: política (relações de espaço-poder); cultural (apropriação/valorização simbólica de grupos sociais em relação ao espaço vivido); e, a econômica (território como fonte de recursos e relações sociais). Ainda, dialogam com abordagens que remetem às categorias de desenvolvimento territorial, regional e rural, que privilegiam a institucionalização da ação coletiva na gestão de estratégias de desenvolvimento. Na convergência entre debate acadêmico e experiências de atuação de organizações e atores regionais, os textos abordam sobre diferentes institucionalidades e formas de manifestação de territorialidades impetradas por processos e estratégias políticas, ideológicas, econômicas e técnicas, implementadas por atores sociais envolvidos com ações de desenvolvimento. Nessa perspectiva, apresentam-se estudos e relatos de experiência de 29 pesquisadores e profissionais vinculados a diferentes instituições de ensino superior do estado de Santa Catarina e colaboradores de outros Estados, bem como de outras instituições governamentais e não-governamentais. A partir de reflexões teóricas e empíricas, os textos estão organizados em cinco partes temáticas: Abordagem territorial e desenvolvimento; Territórios interculturais, territorialidades em conflito e identidade regional; Dinâmicas territoriais, Desenvolvimento rural e agricultura familiar; 8


Apresentação

Descentralização, políticas públicas e desenvolvimento e, por fim, relatos de experiências. A Abordagem territorial e desenvolvimento como primeira parte temática, agrega três capítulos. Em Abordagem territorial e desenvolvimento: tópicos sobre a natureza de um debate inacabado, Flávio Sacco dos Anjos, em texto produzido para a Conferência de abertura do referido evento, nos instiga a refletir sobre um debate inacabado a respeito do desenvolvimento, por se tratar de um tema polêmico, desprovido de neutralidade, essencialmente multidisciplinar, multifacetado e absolutamente transversal. A exposição do autor situa inicialmente a discussão a partir de uma perspectiva histórica, resgatando alguns dos eixos por onde se desenvolveram os grandes debates acerca do futuro do país e as escolhas que foram tomadas no período pós II Guerra Mundial. Em seguida, apresenta elementos que fazem emergir as novas abordagens com ênfase no que se passou a chamar de enfoque territorial do desenvolvimento, destacando seus limites, e por fim, reflete sobre os grandes dilemas da atualidade para a construção de uma nova agenda política em matéria de desenvolvimento no Brasil. Valdir Roque Dallabrida e João Ferrão, em Governança Territorial em Arranjos Cooperativos Institucionais e Organizacionais: aportes teórico-metodológicos e avaliação de experiências brasileiras e portuguesas, partindo de revisão bibliográfica sobre várias abordagens teóricas, sistematizam um conjunto de princípios constituintes de práticas qualificadas de governança territorial. A partir destes princípios, levantam duas questões orientadoras para o estudo: como estes princípios são considerados nas práticas de governança territorial? Em outras palavras, que aproximações ou discrepâncias existem entre a teoria e a prática? A partir de constatações realizadas em experiências brasileiras e europeias, mais especificamente em Portugal, mediante análises documentais e bibliográficas, visitações e entrevistas, os autores avaliam a qualidade das práticas desenvolvidas em tais experiências. Em Desenvolvimento territorial e cooperação intermunicipal: a via dos consórcios públicos, Fernando Luiz Abrucio, Eliane Salete Filippim e Rodrigo Chaloub Dieguez trazem elementos para a compreensão da cooperação intermunicipal no Brasil, a partir do estudo empírico da atuação da Federação Catarinense de Municípios (FECAM) na organização de consórcios públicos intermunicipais em Santa Catarina (Sul do Brasil). Trata-se de um caso singular na experiência federativa brasileira, uma vez que os consorciamentos são produzidos por uma associação municipalista, a qual tem um papel importante não somente na formação como também na manutenção de tais arranjos intermunicipais. Assim, o estudo acrescenta conhecimento ao campo da cooperação intergovernamental num ponto pouco conhecido à medida que observa a inserção dos municípios catarinenses na associação do tipo advocacy, conjugada a um trabalho de assessoria técnica. A segunda parte, Territórios interculturais, territorialidades em conflito e identidade regional, constitui-se de dois capítulos. A análise da política territorial indígena no Rio Grande do Sul durante o século XX e início do século XXI, é objeto de investigação de Henrique Aniceto Kujawa, no texto Conflitos territoriais no norte do Rio Grande do Sul: histórico de políticas públicas que provocaram a territorialização e reterritorialização de indígenas e agricultores. Através de revisões bibliográficas, de fontes documentais e a partir do acompanhamento sistemático realizado pelo autor destes conflitos na região norte do Voltar ao sumário

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R. M. Badalotti

Estado, busca trazer elementos que possam contribuir para a compreensão e análise das razões que levaram a adoção destas políticas em diferentes períodos e de que forma elas produziram processos de territorialização e desterritorialização, colocando indígenas e agricultores na disputa de um mesmo território. Culturas marginalizadas em perspectivas pelo reconhecimento da diversidade, de Claudio Luiz Orço e Elizandra Iop, trata de estudo teórico que busca demonstrar como o processo colonial realizado em território brasileiro promoveu a marginalização de centenas de culturas indígenas e de culturas africanas, impondo valores, hábitos, costumes, através de mecanismos institucionais, legais e literários que impuseram a formação de uma consciência social hegemônica que contribuiu com a discriminação destas culturas. Os autores se utilizam de duas vertentes da globalização cultural, a homogeneização da cultura e a fragmentação da cultura como viés para explicar a formação de uma consciência única, no enfraquecimento das identidades sociais e na produção da marginalidade sóciocultural. Por fim, trazem para o debate a questão da educação e do multiculturalismo como formas de resistência e enfrentamento a homogeneização da cultura dominante. A terceira parte, intitulada Dinâmicas territoriais, desenvolvimento rural e agricultura familiar, compõe-se de cinco capítulos. O primeiro capítulo, Dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural: laços fracos e instituições em experiências da agricultura familiar na Região Sul do Brasil de autoria de Anelise Graciele, Rambo, Claudio Machado Maia, Clério Plein, Camila Vieira da Silva e Eduardo Ernesto Filippi trata a abordagem territorial do desenvolvimento rural, valendo-se de conceito de território enquanto poder, do geógrafo Claude Raffestin, a Nova Sociologia Econômica (NSE), valendo-se das contribuições de Mark Granovetter, destacando a questão dos laços fracos e a Nova Economia Institucional (NEI), considerando o conceito e o papel das instituições trazidas por Douglass North. Por fim, são apresentadas experiências no Sul do Brasil, a partir das quais se pretende demonstrar como a dinâmica territorial do desenvolvimento rural vem sendo potencializada a partir do fortalecimento dos laços fracos que, mediatizados por diferentes instituições, acessam políticas públicas para viabilizar a inserção em novos mercados. Carlos Eduardo Arns, em A cooperação na agricultura familiar do Território Alto Uruguai Catarinense (SC) Brasil, analisa a longa e profícua trajetória de construção da cooperação na região Oeste Catarinense em seu processo de desenvolvimento, demonstrando a grande diversidade e complexidade da cooperação construída, especialmente na agricultura familiar e, por fim, destaca alguns elementos da relação das diferentes estratégias de cooperação da agricultura familiar com a política de desenvolvimento territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), implementada no Território Rural do Alto Uruguai Catarinense (TAUC). O terceiro capítulo, denominado A agricultura familiar do oeste catarinense e a construção de um novo modelo cooperativo em torno dos mercados dos produtos coloniais de Clovis Dorigon, analisa as interações existentes entre as estratégias de qualidade, desenvolvimento territorial e a agricultura familiar da região oeste catarinense. Para tanto, se apoia em resultados de diversos estudos a respeito dos “produtos coloniais” realizados na região oeste catarinense. Trata-se de um conjunto de produtos tradicionalmente processados no estabelecimento rural pelos agricultores - os “colonos” - para o autoconsumo familiar, tais como salames, queijos, doces e geleias, Voltar ao sumário

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Apresentação

conservas de hortaliças, massas, biscoitos e açúcar mascavo, suco de frutas, vinho, dentre outros. São, portanto, produtos que mobilizam o saber-fazer dos imigrantes, transmitidos de geração em geração. Em Agricultura familiar, juventude e cooperativismo: um capital social imprescindível ao desenvolvimento territorial rural, Reinaldo Knorek parte do pressuposto de que a dimensão do capital social é imprescindível para o fortalecimento da agricultura familiar e juventude rural no município de Bela Vista do Toldo- SC, tendo em vista a criação da Cooperativa de Fortalecimento da Agricultura Familiar do Planalto Norte Catarinense (Cooperfap). O texto, além de caracterizar a cooperativa, aborda o perfil dos jovens inseridos a esta organização, suas motivações e percepções sobre aspectos ligados aos conceitos de associativismo, cooperativismo, capital social, políticas públicas e desenvolvimento territorial rural e as interações entre os fatores descritos e a influência na formação da cooperativa investigada. Por fim, o quinto capítulo desta parte, de autoria de Rosana Maria Badalotti, Maria Luiza de Souza Lajus e Cristiane Tonezer, Possibilidades e limites das ações implementadas no Território Oeste para o desenvolvimento rural, analisa as possibilidades e limites para o desenvolvimento rural, tendo em vista ações implementadas no Território Oeste, situado no estado de Santa Catarina como parte das estratégias de intervenção do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA). A partir de dados bibliográficos e documentais, abordam conceitualmente noções como desenvolvimento, território, desenvolvimento territorial e rural buscando relacionar a literatura aos princípios que orientam a abordagem do referido programa. Por fim, problematizam sobre o processo de planejamento das ações e estratégias para o Território Oeste, apresentando as possibilidades e limites para o desenvolvimento rural. Na sequência, Descentralização, políticas públicas e desenvolvimento, é constituída por quatro capítulos. Cláudio Machado Maia, no título do seu texto parte da seguinte problematização: Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas, desenvolvimento regional e globalização? A partir deste questionamento, busca refletir sobre a temática da descentralização, políticas públicas e o processo de desenvolvimento vis-a-vis em um mundo cada vez mais globalizado, considerando que desenvolvimento regional, assim como, as diferentes dinâmicas de desenvolvimento dependem de uma crescente organização social das comunidades regionais, o que equivale diretamente a um melhor envolvimento político nas decisões e definições dos rumos do processo de desenvolvimento regional. No segundo capítulo, Variáveis da descentralização político-administrativa em Santa Catarina-Brasil, Walter Marcos Knaesel Birkner, traz como ponto de partida uma sequência de análises publicadas anteriormente, cujo objeto tem sido o processo de descentralização político-administrativa em Santa Catarina, que surgiu em 2003, com a criação das Secretarias de Desenvolvimento Regional – SDR1, por iniciativa do governo, representando uma política governamental, criada com o propósito geral de descentralizar o processo administrativo e político decisório do estado catarinense. Neste texto, o autor sugere a apreciação de duas variáveis adicionais anteriormente não analisadas. A primeira estabelece relação de razoável coerência entre, de um lado, os investimentos governamentais regionais e, de outro, 1 Atualmente denominadas de Agências de Desenvolvimento Regional. Voltar ao sumário

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R. M. Badalotti

evasão/baixo crescimento demográfico. A segunda, coadjuvante da primeira, sugere relação entre maior investimento per capita e evasão/baixo crescimento. Para tanto, considerou-se a vigência da descentralização no período de 2003 a 2008, em que se comparam os movimentos demográficos da última década do século XX e primeira do século XXI. Maria Elisabeth Kleba, em Políticas Públicas e Territorrialidades: um olhar na perspectiva da promoção da saúde, apresenta um breve resgate da política de saúde no Brasil, a partir da criação do SUS, buscando destacar estratégias ministeriais que vem orientando o processo de descentralização do sistema de saúde, bem como iniciativas de fomento à práticas de promoção de saúde como corresponsabilidade governamental. Tece reflexões sobre o território como espaço de produção social e de promoção da saúde, lugar construído, percebido e significado pelos atores que dele se apropriam, no qual o desenvolvimento se reflete por meio de elementos materiais e imateriais. Para finalizar, analisa a configuração de redes de promoção à saúde e de proteção social, na perspectiva intersetorial, destacando entre seus desafios a capacidade de estabelecer parcerias efetivamente dialógicas e participativas, as quais gerem oportunidades de empoderamento compartilhado, favorecendo o bem viver das pessoas e coletividades. No quarto capítulo intitulado Perspectiva territorial na Política de Assistência Social, Iraci de Andrade, nos propõe uma reflexão sobre a interface entre território e a Política de Assistência Social a partir da análise da produção social do espaço. Para tanto, parte da seguinte inquietação: em que medida a análise histórico-dialética sobre a produção social do espaço contribui para ampliação da visão crítica do Serviço Social, considerando especialmente o território enquanto eixo estruturante do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e os desafios postos ao fortalecimento do protagonismo popular na efetivação dos direitos sociais? Como última parte temática, destacam-se quatro relatos de experiência que abordam sobre a articulação para o desenvolvimento, por meio de programas governamentais e de um movimento social. Em Articulação territorial e programas governamentais: Criação de núcleos de extensão de desenvolvimento territorial – Nedets, Enise Barth Teixeira e James Luiz Berto, apresentam elementos que serviram de base para a construção do programa de apoio aos Colegiados Territoriais através dos Núcleos de Desenvolvimento Territorial (NEDETs), alguns resultados alcançados na sua execução (parcial) e desafios que são percebidos. Tais ações desenvolvidas pela Universidade da Fronteira Sul (UFFS), fazem parte da estratégia da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), órgão integrante do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), que a partir de 2003 implementou uma política governamental de desenvolvimento territorial envolvendo territórios rurais com o objetivo de promover e apoiar as iniciativas da sociedade civil e dos poderes públicos nos referidos territórios, visando o desenvolvimento sustentável, com redução das desigualdades regionais e sociais e integração das dinâmicas territoriais ao processo de desenvolvimento nacional. Arnaldo Luiz Milan e Dunia Comerlatto, em O Programa de Desenvolvimento Territorial - Territórios da Cidadania: a experiência do Planalto Norte Catarinense, relata aspectos referentes à sua identificação, organização e institucionalidade em consonância com a política de desenvolvimento territorial implementada desde 2003, pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio da SecretaVoltar ao sumário

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Apresentação

ria de Desenvolvimento Territorial (SDT). Essa política pública orienta a sociedade civil e os poderes públicos para promover estratégias e ações na busca da redução de desigualdades e na integração de dinâmicas territoriais voltadas ao processo de desenvolvimento nacional em territórios rurais. O terceiro relato, Projeto Tecendo a Rede de Reciclagem: fortalecimento da economia solidária no oeste de Santa Catarina, de autoria de Graciela Alves de Borba Novakowski, apresenta observações e reflexões preliminares sobre projeto executado pela Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), intitulado “Tecendo a Rede de Reciclagem no Oeste Catarinense” aprovado na chamada pública SENAES/MTE 004/2011. O projeto tem como objetivo, fomentar a construção da rede de catadores da região Oeste de Santa Catarina a partir dos territórios em construção e fortalecer as organizações e empreendimentos econômicos solidários constituídos principalmente por catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis em situação de extrema pobreza. As ações deste projeto iniciaram em dezembro de 2012 e abrangem um universo de 19 municípios, 12 empreendimentos econômicos solidários e aproximadamente 250 catadores e catadoras de materiais recicláveis na região Oeste de Santa Catarina. Por fim, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto, no texto Jovens do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina (MMC/SC) apresenta um relato de pesquisa realizada junto às jovens desse Movimento, que tem como ponto de referência sua própria militância. Considerando a problematização em torno das perspectivas e projetos de vida dessas jovens, a autora nos leva a pensar a relação com os processos de desenvolvimento regional que articulam e integram as particularidades criadas nos territórios ao visualizar as dinâmicas da sociedade, compreendendo-as para além dos limites setoriais, ultrapassando as ideias de crescimento econômico. Rosana Maria Badalotti Agosto de 2016

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PARTE I ABORDAGEM TERRITORIAL E DESENVOLVIMENTO


S U M Á R I O

ABORDAGEM TERRITORIAL E DESENVOLVIMENTO: TÓPICOS SOBRE A NATUREZA DE UM DEBATE INACABADO * Flávio Sacco dos Anjos**

1 Introdução Decididamente falar ou pensar em desenvolvimento é colocar-se diante de um tema absolutamente polêmico, onde a neutralidade torna-se uma verdadeira quimera, uma utopia. Podemos falar de desenvolvimento do que já aconteceu, exaltando, sobretudo, os equívocos, desatinos e desventuras que foram cometidos em seu nome, dos desafios e dilemas que se apresentam na atualidade, assim como do que é incerto, do desconhecido, da aventura de pensar o futuro, tanto em termos de projetar uma situação desejável ou um mundo ideal, orientando nossas escolhas no tempo presente, quanto no sentido de adotar os procedimentos e as mudanças requeridas para alcançar algo considerado aceitável para as atuais ou para as futuras gerações. Ou seja, estabelecer uma ponte entre o pragmático e o onírico, entre a aridez de decisões imediatas e a doçura de nossas ilusões. “Um outro mundo é possível” não era justamente o mote das sucessivas edições do Fórum Social Mundial? Por vezes falar de desenvolvimento se assemelha a um diálogo de pessoas que se expressam através de idiomas absolutamente distintos. Por vezes assume a feição da conhecida piada do bêbado que perdeu as chaves da casa voltando da balada e fica dando voltas e voltas num poste de luz como uma mariposa no inverno. Mas você perdeu as chaves aí, pergunta um desconhecido? E o bêbado responde, não, não faço ideia de onde as perdi, mas aqui pelo menos está mais claro. Nesse caso a metáfora serve pra pensar que agimos como bêbados pensando em situações consideradas ideais para encaixar a realidade onde devemos intervir, a partir de modelos pré-concebidos. Talvez a chave para descortinar o mundo idealizado esteja perto, mas pode ser que esteja muito longe de onde estamos, não exatamente do ponto físico ou geográfico, mas da envergadura da obra que se quer edificar em termos da profundidade das mudanças a serem implementadas. *

Texto proferido na Conferência de Abertura do I Seminário Regional Territórios, Territorialidades e Desenvolvimento Regional, realizado na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), em novembro de 2014. ** Doutor em Agroecología, Sociología y Estudios Campesinos, Universidad de Córdoba, Espanha. Pós-Doutor junto ao Departamento de Antropologia Social da Universidade de Sevilha, Espanha (2010) e Pós-Doutor junto ao Departamento de Ciência Política e Social da Università della Calabria, Itália (2016). Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). E-mail: <saccodosanjos@gmail.com>. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-1

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F. S. dos Anjos

Parte da polêmica em torno à ideia de desenvolvimento deve-se, de um lado, ao fato de ser um tema privilegiado da reflexão acadêmica, mas também de caráter eminentemente normativo, envolvendo a atuação do Estado, das agências nacionais e internacionais de fomento, das organizações multilaterais e das instituições humanitárias de caráter civil, religioso e inclusive militar. Combater a miséria humana não raras vezes aparece travestido de instrumentos de dominação quando não está acompanhado ao esforço de alcançar a emancipação dos indivíduos e coletividades. Do ponto de vista acadêmico, pensar em desenvolvimento é colocar-se diante de um debate que é essencialmente multidisciplinar, multifacetado e absolutamente transversal. Nenhuma disciplina ou campo do conhecimento consegue isoladamente abarcar os diversos aspectos implicados ou arrogar-se o direito de pensar o desenvolvimento desde seu prisma. A ideia de complexidade pressupõe não somente a humildade, a cautela e a sensibilidade de que devemos nos investir ao falar no assunto, mas também do cuidado no sentido de estabelecer um amplo horizonte de possibilidades e uma linguagem inteligível que conjugue muito mais o verbo integrar do que o verbo desintegrar, muito mais cooperar do que competir, muito mais comprometer-se, do que abster-se. Digo sempre aos meus alunos que o homem é um animal fantástico, não somente pelas grandes obras que realiza (a conquista do espaço, a construção de uma ponte sobre o mar, a alteração do código genético das plantas e dos animais), mas por ser extremamente hábil em justificar-se diante dos seus erros, omissões e negligências. Com isso quero dizer que o bicho homem é o único animal capaz de encontrar argumentos para justificar atos lesivos a si mesmo, aos demais e à própria espécie humana. Falar de desenvolvimento é também falar da mais enigmática e difícil transformação, qual seja, tocar as consciências e os corações dos indivíduos, ou pelo menos, estabelecer um diálogo que permita pensar nas soluções possíveis diante dos grandes problemas que afligem a humanidade ou uma determinada coletividade. Não precisa muito esforço pra pensar que às vezes nos sentimos como uma nau à deriva diante dos desafios que se apresentam, sobretudo diante da difícil missão de conciliar crescimento econômico com preservação da biodiversidade e inclusão social. Mas esse exercício não deve ser visto como algo possível, muito longe disso, é um imperativo, não porque precisamos tomar grandes, mas, também, pequenas decisões como reciclar nosso lixo, evitar os desperdícios, combater as desigualdades ou mesmo tentar enxergar os indivíduos que ao longo do tempo tornaram-se socialmente invisíveis. Achar natural a pobreza e a desigualdade é fruto desse entendimento. Mas falar de desenvolvimento é também falar de sentimento. Gosto muito da frase de um autor chamado Henry Louis Mencken1 quando este afirma que o amor é o triunfo da imaginação sobre a inteligência. Com isso quero dizer que para além da eficácia de nossos instrumentos de intervenção sobre uma dada realidade, há muito mais coisas implicadas do que supõe a nossa vã consciência, ou pelo menos deveriam estar. Penso no abismo que existe entre o preço e o apreço, entre preço e valor, entre a simples troca e a reciprocidade, entre o banal e o imoral. Seria absolutamente impossível reproduzir, no limitado espaço de uma conferência, de um artigo ou capítulo de livro, a essência de um debate que permanece totalmente aberto. A única certeza é que estamos diante do incerto e de um eterno 1 Jornalista e crítico literário norteamericano (1880-1956), autor de diversos aforismos que se tornaram célebres. Voltar ao sumário

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Abordagem territorial e desenvolvimento...

terreno de disputas do ponto de vista científico, político e institucional. O que aqui proponho é simplesmente um convite à reflexão e a um compartilhamento, por parte dos assistentes, da minha visão de mundo, que é absolutamente viesada, fruto das inquietações que acalento ao longo de minha trajetória pessoal e profissional. Todavia, assumo todos os riscos acerca das impropriedades que eu venha a cometer. Minha exposição se desdobra em quatro outras partes. A primeira delas situa a discussão dentro de uma perspectiva histórica, resgatando alguns dos eixos por onde se desenvolveram os grandes debates acerca do futuro do país e as escolhas que foram tomadas no período pós II Guerra Mundial. Discutirei os elementos que, no meu entendimento, fazem emergir as novas abordagens com ênfase no que se passou a chamar de enfoque territorial do desenvolvimento. Elas aparecem no contexto de grandes rupturas conceituais, assim como de determinadas circunstâncias que serão abordadas na segunda parte da exposição. Na terceira parte tratarei de mostrar que a abordagem territorial também conhece limites, em meio aos grandes dilemas atuais do Brasil e de outros países do continente. É nesse contexto que novas ferramentas conceituais são acionadas para preencher o vazio deixado pelo caráter normativo da abordagem territorial. Minha análise se encerra elencando e discutindo o que entendo como os grandes dilemas da atualidade para a construção de uma nova agenda política em matéria de desenvolvimento no Brasil.

2 Velhos e novos enfoques sobre os desafios do desenvolvimento O período que sucede o final da segunda guerra mundial compreende não somente o esforço de reconstrução de nações destroçadas e de afirmação de uma nova ordem mundial marcada pela bipolaridade entre dois regimes econômicos (o capitalismo e o comunismo), mas também da consolidação de zonas de influência lideradas, respectivamente, pelos Estados Unidos da América e pela então União Soviética. Desenvolvimento era sinônimo de industrialização. E industrialização estava inextricavelmente ligada à ideia de urbanização. Falo de uma época (período compreendido entre as décadas de 1950 e 1970) onde se impuseram os chamados “modelos de economia dual”, tanto no dualismo “estático” de Boeke (1953), Higgins (1959) e Myint (1964) como no dualismo “dinâmico” de Jorgenson (1961), Fei e Ranis (1964), Lewis (1954) ou Johnston e Mellor (1961). Admitia-se que a economia dos países em desenvolvimento estaria cindida em dois setores básicos: um setor tradicional, atrasado e um setor moderno e dinâmico. Países “atrasados” como o Brasil deveriam realizar esforços no sentido de extrair recursos da agricultura com o fito de financiar o processo de industrialização. O âmbito urbano-industrial era entendido como setor dinâmico da economia, enquanto que o âmbito agrário-rural era assumido como setor atrasado, seguindo o marco conceitual da lógica dicotômica. De um ponto de vista ainda mais pragmático havia, à época, o domínio do conhecido esquema dos estágios de Waltt Rostow. Não dá nem pra falar de uma teoria porque, em verdade, se trata de uma aberração conceitual que comparava o desenvolvimento como se fosse a decolagem ou take off de um avião. Ironicamente suas ideias estão contidas num livro chamado “Etapas do desenvolvimento econômico (um manifesto não comunista)”. Rostow admitia a existência de cinco sucessivas etapas de Voltar ao sumário

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desenvolvimento desde a fase da sociedade tradicional, das precondições para a decolagem (ou arranco), a decolagem propriamente dita, a marcha para a maturidade, até chegar, finalmente, ao estágio último, qual seja, a era do consumo em massa. A influência exercida pelo esquema de Rostow seria hilária se não fosse trágica. Se impôs sobre os países em desenvolvimento como um verdadeiro receituário, pior ainda, um remédio amargo onde tudo passaria a ser sacrificado no altar da suposta “modernidade”. Produziu o que entendo como uma espécie de esquizofrenia coletiva que acomete tanto a esfera acadêmica quanto o âmbito dos órgãos públicos ligados à questão do desenvolvimento econômico. A pergunta da época não era precisamente saber em que medida o país avançava na redução de seus desequilíbrios socioespaciais e demográficos, mas sim, saber em que estágio nos encontrávamos, dentro do esquema de Rostow, e quando o tal avião levantaria voo. Já nessa época Celso Furtado (1974) advertia que a ideia de desenvolvimento é um mito, uma ilusão. Dizia ele que seria absolutamente impossível estender os níveis de consumo dos povos ditos “desenvolvidos” ao resto da humanidade. Hoje bastaria dizer que se todos quisessem comer carne como os argentinos ou produzir tanto lixo como os países do hemisfério norte, não precisaríamos de mais um outro planeta, mas possivelmente de uma outra galáxia. No plano político o período coincide com uma forte divisão ideológica em nosso país. Se todos estavam de acordo com a necessidade de industrializar o Brasil, as opiniões se dividiam entre os que consideravam, de um lado, a necessidade urgente de realizar as chamadas reformas de base (tributária, urbana, do ensino e, sobretudo, a reforma agrária), sem as quais se acreditava que o país não poderia se desenvolver. No extremo oposto estava o pensamento conservador que julgava que o Brasil poderia crescer sem realizar as transformações estruturais de que tanto necessitava, inclusive para fortalecer o próprio capitalismo. E que ninguém caia no absurdo de considerar que a reforma agrária era uma demanda dos entusiastas do comunismo. O Estatuto da Terra deve ser situado dentro de seu contexto e reflete o esforço por afirmar o capitalismo como caminho para o desenvolvimento da agricultura e da sociedade em geral. Não é preciso muito esforço para entender o caminho que o país adotou não apenas na deflagração do golpe militar, mas das medidas que vão sendo tomadas para consolidar as bases de um projeto de modernização conservadora. Do ponto de vista técnico o Estado autoritário comandou uma operação de transição que privilegia a adoção dos insumos industriais (adubos, mecanização, agrotóxicos) através de uma política de financiamento a juros subsidiados que privilegiou as regiões sul e sudeste, os grandes produtores e os setores considerados como mais dinâmicos de nossa agricultura, sobretudo os que se voltavam à exportação. Do ponto de vista político a ação estatal se traduz na total ausência de esforços no que tange a coibir os abusos nos processos de grilagem de terras e de uma opção deliberada no sentido de favorecer o grande capital nacional e estrangeiro na ocupação da fronteira agrícola, bem como na dura repressão aos movimentos sociais. A modernização levada a cabo no Brasil não é apenas conservadora, mas perversa. Reafirma o caráter residual do rural. Não altera os critérios de ordenamento territorial, antes pelo contrário, fortalece uma concepção que vinha sendo gestada desde tempos pretéritos ao entender que a diáspora rural rumo às cidades é um mal menor ou o inevitável preço a ser pago pelo país, mesmo que isso se desse às custas Voltar ao sumário

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da formação de verdadeiros bolsões de miséria nas grandes metrópoles e do esvaziamento material e simbólico do campo. Sobre esse aspecto, bastante pertinentes são as observações de Martins (2001, p. 32-33) quando ele afirma que: Desde os anos 70 a modernização forçada do campo e o desenvolvimento econômico tendencioso e excludente nos vêm mostrando que esse modelo imperante de desenvolvimento acarretou um contradesenvolvimento social responsável por formas perversas de miséria antes desconhecidas em muitas partes do mundo. As favelas e cortiços desta nossa América Latina, e de outras partes, constituem enclaves rurais no mundo urbano, transições intransitivas, desumanos modos de sobreviver mais do que de viver. O mundo rural está também aí, como resíduo, como resto da modernização forçada e forçadamente acelerada, que introduziu na vida das populações do campo um ritmo de transformação social e econômica gerador de problemas sociais que o próprio sistema em seu conjunto não tem como remediar.

O final dos anos noventa marca a despedida melancólica do que se veio a denominar de “década perdida”, período em que o Brasil viu sua economia encolher drasticamente, passando a enfrentar grandes dificuldades no pagamento do serviço da dívida externa. A receita amarga do chamado “Consenso de Washington” se traduz na privatização de empresas públicas, na retirada drástica do Estado e por uma opção deliberada no sentido de deixar ao sabor dos mercados a regulação de vários setores da economia. Mas é uma realidade paradoxal, pois que coincide com o processo de redemocratização nacional após 21 anos de ditadura militar. A promulgação da nova constituição federal (1988) representa o desaguadouro para onde confluem as esperanças de resgatar a dívida social com os deserdados do campo e da cidade e para as mudanças estruturais que foram relegadas ao limbo e ao esquecimento. Outro dos importantes desdobramentos da nova constituição é a transferência de diversas competências para o âmbito dos estados e municípios, como é o caso da saúde e educação. Na transição do governo Sarney-Collor de Melo é extinta a Empresa Brasileira de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMBRATER). Os estados de agricultura forte e de vocação exportadora assumem integralmente o financiamento dos serviços de extensão rural, ao passo que nas unidades federativas do norte-nordeste há um verdadeiro desmonte das agências de desenvolvimento que atuam no âmbito rural e das pequenas localidades. Mas os anos noventa inauguram algumas novidades no cenário mundial e nacional, as quais serão resgatadas, ainda que resumidamente, na próxima seção deste texto.

3 As novas abordagens sobre desenvolvimento: o contexto das pequenas e das grandes rupturas conceituais A concessão do Prêmio Nobel de Economia, em 1998, ao professor indiano Amartya Sen marca um verdadeiro divisor de águas, não somente do ponto de vista de propor um novo olhar sobre fenômenos como a fome, a pobreza ou a desigualdade, mas de romper com toda uma tradição intelectual que associava o desenvolvimento ao crescimento do produto interno bruto, da renda per capita, da industrialização ou do grau de urbanização de uma dada sociedade. Desenvolvimento é liberdade, vaticina Amartya Sen, ou seja, a possibilidade dos indivíduos de realizarem suas escolhas. O desenvolvimento consiste na eliminação Voltar ao sumário

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das privações de liberdade que limitam as escolhas e as oportunidades das pessoas de exercerem sua condição de cidadãos. A abordagem de Sen nos ajuda a desvendar alguns enigmas que experimentam as sociedades contemporâneas. Nesse sentido, como é possível que um determinado grupo racial da maior economia do planeta – os afro-americanos – tenha uma taxa percentual de sobrevivência, medida em anos de vida, inferior a das pessoas residentes em países cujas economias são imensamente inferiores, como é o caso da China, do estado indiano de Kerala, do Sri Lanka, Jamaica ou Costa Rica? Como demonstra Sen (2000, p. 37), a renda per capita dos afroamericanos é consideravelmente mais baixa que a da população branca desse mesmo país. Não obstante, os negros americanos, como adverte Sen, são muito mais ricos do que os habitantes da China ou de Kerala. A resposta a estas contradições há que ser buscada no fato de que os negros americanos não somente vivenciam uma privação relativa em termos de renda, comparativamente aos brancos, mas uma privação absoluta que é maior do que no caso dos demais países citados em termos de cobertura médica, serviços públicos de saúde, educação escolar e de oportunidades. Para entender o pensamento de Amartya Sen basta com fazer uma simples pergunta: Qual a chance de um trabalhador rural frequentar uma universidade pública ou privada, não obstante os inegáveis avanços da última década em termos de política de combate à pobreza no Brasil? É praticamente a mesma de eu acertar a quina da loto com apenas um real no bolso. Não obstante, há outras mudanças conceituais extremamente relevantes, as quais marcam a aparição de um novo olhar para as áreas rurais entre o final dos anos noventa e começo do novo milênio.

3.1 O território entra em cena Os anos 1990 inauguram um debate extremamente importante no âmbito dos países europeus, cuja influência será marcante sobre os países latino-americanos. A política agrícola comum implementada no período pós II Guerra fez com que se passasse, num intervalo de pouco mais de três décadas, da escassez ao excesso de alimentos e matérias primas. A crise dos excedentes surge justamente a partir da constatação, por parte das organizações da antiga Comunidade Econômica Europeia (CEE), de que o financiamento da agricultura havia alcançado quase 70% do seu orçamento. A situação exigia uma mudança profunda nos instrumentos de intervenção, bem como na concepção que havia inspirado a construção da atual União Europeia. Não é por obra do acaso que emergem novos conceitos na cena política europeia e mundial. Nesse contexto, a ideia de multifuncionalidade pressupõe o fato de que a agricultura e o meio rural devem cumprir outros papeis “para além da produção” stricto sensu. Desde então se admite que o rural não deve ser entendido como um degrau ou estágio de evolução a ser superado. Em verdade, é um valor das sociedades contemporâneas. É reserva da biodiversidade, é fonte de conhecimento. Alteram-se os parâmetros que definem o Rural, sobretudo no âmbito europeu. Já não se fala de rural, mas de ruralidades. Passa-se do absoluto ao relativo. Ao final do século XX admite-se que 80% do território europeu é rural com base no critério da densidade demográfica e não exatamente na importância da agricultura do ponto de vista da ocupação da força de trabalho, da geração de renda. Por outro lado, vale dizer que a agricultura já não representa a vocação exclusiva dos espaços rurais. Os Voltar ao sumário

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diversos estudos mostram que cresce a proporção de famílias que exercem a chamada “pluriatividade”, entendida como o exercício de múltiplas ocupações profissionais pelos agricultores e pelos demais membros de suas famílias (Sacco dos Anjos, 2003). Admite-se, definitivamente, que os espaços rurais devem cumprir outras funções “para além da agricultura”, ou seja, dentro do que se veio a chamar de “multifuncionalidade”, incluindo a geração de produtos agropecuários de qualidade, a conservação da biodiversidade, bem como no sentido de converter-se num espaço de ócio e entretenimento. Nesse contexto, há que frisar que o território é assumido como um meta-conceito que ilumina a criação de um novo marco de orientação em termos de políticas públicas. Nesse sentido, admite-se: ◆◆ é preciso romper com a velha dicotomia rural-urbano que associava o primeiro ao atraso e o segundo ao dinâmico. Territórios não são meramente expressão de limites físicos; ◆◆ “Bons projetos moldam os territórios”, afirma o geógrafo francês Bernard Kayser, mas há que pensar que bons territórios também fazem aflorar bons projetos; ◆◆ território é interação social, mas é também espaço de tensões, de conflitos, de alianças e de pactos em torno a objetivos de médio e longo prazo; ◆◆ a ideia de território pressupõe a busca por transpor as armadilhas dos localismos, da municipalização e, no limite, da “prefeiturização”; ◆◆ a abordagem territorial envolve a necessária transição do enfoque setorial para o enfoque espacial. É necessário buscar a conciliação de distintos atores e de interesses. Não pode ser visto como a reiteração de iniciativas ligadas à criação ou ao fortalecimento de cadeias produtivas. A ideia de cadeias de valor, como no caso de indicações geográficas, envolve a valorização não apenas de um produto (vinho, queijo, etc,), mas de uma cesta de produtos e de serviços que articulam em torno de si diversos atores e segmentos (turismo, serviços, hotelaria, comércio, etc.); ◆◆ território contempla o esforço de conciliar a atuação de entes públicos e privados em torno a uma ideia-guia ou um plano de rota. É fruto da negociação, de uma disposição longitudinal (preferencialmente de baixo para cima, ascendente ou bottom-up), mas também transversal, estabelecendo o que entende como governança multinível. A atuação estatal pressupõe a ideia de um ente facilitador da interlocução entre os diversos agentes e grupos de interesse, de operar as trocas materiais e simbólicas entre os atores, os quais devem expressar seu compromisso através de contrapartidas e não somente com base em comportamentos meramente oportunistas e imediatistas.

Todavia, reconhecer os atributos e vantagens da abordagem territorial coloca-nos diante das armadilhas da visão normativa e instrumental. De novo corre-se o risco de realizar delimitações arbitrárias e de propor receitas, esquemas, modelos ou fórmulas que supostamente funcionaram bem em determinadas latitudes. E aí fica a pergunta: Por que alguns territórios supostamente “dão certo”, convertendo-se em espaços dinâmicos e articulados, onde aflora a inovação e a criatividade, enquanto outros permanecem estagnados e eternamente dependentes das ajudas governamentais, com uma escassa densidade de seu tecido social e produtivo? A incapacidade de responder a este grande dilema desafia a capacidade interpretativa de duas ferramentas conceituais bastante potentes. A primeira delas é o que se pode considerar como “capital humano”. A segunda, a de “capital social”. A terceira, não menos importante, é a “abordagem institucional”. Quando falo de capital humano me refiro, por exemplo, à saga da imigração “não-ibérica” que ocorreu durante a primeira e a segunda metade do século XIX. Voltar ao sumário

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Os imigrantes não trouxeram na mala apenas roupas e utensílios rudimentares, mas um conhecimento técnico bastante sofisticado para aquela época. Sua instalação nas antigas colônias foi acompanhada da consolidação de um código moral que se baseia no entendimento de que a realização se faz unicamente por meio do trabalho e não da ideia de fidalguia, do brasão ou do nome. A origem patrilinear, nesse caso, faz com que tais indivíduos vivam do trabalho de outrem. A ética do trabalho trazida pela imigração europeia não-ibérica se apresenta diametralmente oposta a esta lógica. O trabalho, no imaginário do colono alemão, italiano, polonês, etc., é a finalidade da vida, que só se realiza no e pelo trabalho. E foi assim que eles sedimentaram as bases para um desenvolvimento industrial que se consolida praticamente sem a intervenção do estado e a partir do isolamento das antigas colônias. No Sul do Brasil, antigos moinhos coloniais e pequenas fábricas de embutidos resistiram bravamente até o surgimento dos grandes complexos agroindustriais. Todavia, em boa medida ensejaram a criação de grandes empreendimentos nos mais diversos gêneros industriais (metalurgia, máquinas agrícolas, etc.). Já quando falo em capital social, me refiro à capacidade dos indivíduos de estabelecer “pontes” de construir acordos e pactos em torno a objetivos comuns e metas de curto, médio e longo prazo. Quando falo de capital social parto do pressuposto de que cooperação e competição podem representar as duas faces de uma mesma moeda. Eu produzo meu vinho na minha cantina, tenho a minha marca comercial, do mesmo modo que fazem os meus vizinhos, mas eu posso estabelecer um acordo com os demais no sentido de estabelecer um projeto de médio e longo prazo que amplie nossos horizontes e que faça projetar uma imagem elegante do nosso território, que atraia os turistas a partir de uma bela narrativa e de imagens potentes que exaltem os valores tangíveis e intangíveis existentes em seu interior. A isso eu denomino “capital social”, mas também à capacidade de aliviar tensões e de resolver conflitos. Não nos esqueçamos de que os processos de construção social da qualidade, leia-se, a construção de sinais distintivos de mercado, envolve, não raras vezes, disputas e interesses. Uma indicação geográfica (indicação geográfica ou denominação de origem) é também um “bem de clube” ou que também se conhece como um “monopólio de exclusão territorial”. A nova sociologia econômica nos brinda com um olhar bastante fecundo para estes processos. De Mark Granovetter (1973) tem-se o entendimento de que são importantes os laços fortes que vinculam os indivíduos, quais sejam, os vínculos de sangue e de amizade. Mas a força não está precisamente nos laços fortes, mas nos laços fracos, ou seja, os que envolvem as conexões estabelecidas com outros atores. São eles que fazem surgir as redes de cooperação, especialmente porque se baseiam na ideia de cooperação, de reciprocidade, de compromissos mútuos entre os atores. Gosto do exemplo da produção de arroz orgânico no Rio Grande do Sul – o arroz Terra Livre – produzido por diversos assentamentos de reforma agrária. Trata-se de uma rica experiência de aprendizagem, onde o Movimento dos Sem Terra evidencia que não somente reconheceu a importância dos mercados como instrumento de inclusão social e de viabilização dos assentamentos, mas também porque se mostrou aberto no sentido de contrair relações de confiança com diversos atores, incluindo empresas de certificação, prefeituras municipais, agentes do comércio e inclusive com grandes superfícies de varejo.

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Os laços fracos reitera Granovetter (1973), são decisivos porque estabelecem pontes entre as redes, permitindo o acesso a universos sociais diversificados. No caso da produção de arroz orgânico pode envolver a participação em um edital para compras públicas (merenda escolar, abastecimento de hospitais, creches ou presídios), mas também de grandes superfícies de varejo ou de mercados gourmet interessados na qualidade do produto ecologicamente produzido. Evidentemente existem outras ferramentas conceituais bastante importantes, como é o caso da análise dos sistemas de governança ou da abordagem culturalista e neo-institucional, que por razões de espaço, não poderão ser aqui abordados. Cabe agora encaminhar para a parte final de minha intervenção, que se subdivide em dois momentos. O primeiro deles é um balanço não-exaustivo acerca da implantação da abordagem territorial do desenvolvimento no Brasil na última década. O segundo e último momento, busca expor o que entendo como os grandes dilemas do país em termos das estratégias de enfrentamento às desigualdades e de construção de uma nova agenda de desenvolvimento no âmbito rural.

4 Os limites da abordagem territorial do desenvolvimento no Brasil A criação, em 2003, da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), ligada ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, deveria ser saudada como um importante avanço em termos do aperfeiçoamento da atuação estatal. Sob sua égide foram criados, na última década, os Consórcios de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSADs), os Territórios da Cidadania e de outras iniciativas mais recentes como no caso dos Territórios Rurais. Mas há uma série de problemas que eu gostaria aqui de ressaltar. O primeiro deles tem a ver com o que Favareto (2010) denomina de uma inovação por adição, com o qual a atuação do governo se dá meramente pela aposição do adjetivo ‘territorial’ em projetos cujos alcances são, no mínimo, bastante discutíveis. O segundo é o viés do combate à pobreza rural, cuja natureza reflete os anseios do Estado brasileiro em ampliar as fontes de legitimidade de sua atuação, vinculando-a ao âmbito estrito do combate a essa mazela social que acomete os mais distintos rincões da geografia nacional. Por mais meritória que seja essa cruzada, não cabe dúvida de que o enfrentamento aos desafios do desenvolvimento requer muito mais do que isso, sobretudo quando se alude ao fomento de processos de inovação, concertação social, formação de alianças estratégicas e de consolidação de pactos territoriais de longo prazo no combate às desigualdades socioespaciais. Em boa medida, os resultados são, no mínimo, limitados, pra não dizer ‘sofríveis’. Isso porque, via de regra, nos deparamos, com perdão da redundância, diante “de projetos pobres para pobres”. Nos Territórios da Cidadania as organizações convencionalmente rateiam entre si os recursos obtidos através dessa fonte, sendo que cada uma delas toma pra si o quinhão que lhe corresponde, compra uma retroescavadeira, um caminhão baú ou mesmo um resfriador de leite. O resultado a que se chega é o aprofundamento da atomização, do utilitarismo e do imediatismo. Contrariando a ideia do capital social e da força dos laços fracos que foram propostas por Granovetter (1973; 1990) e de outros autores ligados à corrente da nova sociologia econômica, os indivíduos mostram-se, nesse caso, incapazes de tecer os fios da rede, de estabelecer pontes e conexões mais amplas. Voltar ao sumário

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Todavia, a grande inovação social brasileira da última década, com todos os problemas que possa apresentar, consiste na criação dos chamados “mercados institucionais”.Refiro-me precisamente ao caso do Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar e do Programa Nacional de Alimentação Escolar. Ainda que como resultado de um outro vetor de transformação – o da afirmação do espaço social e político da agricultura familiar – estou convencido de que há grandes avanços em matéria de políticas públicas, ao ver contemplados os eixos fundamentais das novas abordagens de desenvolvimento elencados anteriormente. A criação do PRONAF2 (1995) representou um fato importante no sentido da democratização do acesso ao crédito agrícola. Todavia, a criação dos mercados institucionais trouxe consigo um espaço importante para reafirmar o lugar da agricultura familiar, para ampliar os horizontes em que tradicionalmente se fecha a produção agropecuária, de resgatar a dignidade do produtor e da vocação precípua de produzir alimentos. Além disso, de valorizar e conferir legitimidade ao trabalho da extensão rural na organização dos produtores, na estruturação dos mercados, na interlocução com diversos atores, no encaminhamento de demandas coletivas, etc. De mero intermediário na transferência de tecnologias, o extensionista rural pode finalmente incorporar a condição de agente de desenvolvimento territorial no sentido pleno da palavra. A alusão que fiz à Amartya Sen, no começo de minha exposição, não é acidental. O economista indiano reafirma a importância dos mercados como instrumento de desenvolvimento. Isso se encaixa como uma luva na concepção que pauta a dinâmica dos mercados institucionais. Os produtores possuem o direito de vender seus produtos, ou seja, de exercerem a liberdade de realizarem suas trocas. A dupla Gonzagão & Zé Dantas, nos presenteou com um verso que se tornou célebre numa das mais lindas composições musicais brasileiras (VOZES DA SECA, 1953) de características eminentemente rurais: Seu doutô os nordestino têm muita gratidão, pelo auxílio dos sulista nessa seca do sertão... Mas doutô uma esmola a um homem que é são, ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão.

Com isso quero dizer que os agricultores familiares de todos os cantos do país, sobretudo os do Sul, cuja relação com os mercados historicamente é intensa, não anseiam a esmola, mas o direito de vender dignamente os seus produtos e de reproduzirem-se socialmente. Fica aqui o meu reconhecimento pela importância dos mercados institucionais, não somente pela singularidade que marca a dinâmica desses mercados, mas por converterem-se num lócus para onde converge equidade, desenvolvimento e justiça social. E quando essa produção que chega às escolas públicas, para alimentar pequenas cantinas e refeitórios, é ecologicamente produzida, rompe-se um mito que povoa a imaginação da maior parte das pessoas de nossa sociedade. Refiro-me à ideia pré-concebida de que só as classes abastadas podem consumir alimentos desse gênero. Diante dessa realidade, preço e valor são coisas absolutamente distintas. 2 O Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar é um programa de crédito (sobretudo custeio e investimento) dirigido aos agricultores familiares, entendido como um tipo de produtor que possui área máxima de quatro módulos fiscais e emprega fundamentalmente a mão de obra da própria família nos processos de produção. Voltar ao sumário

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5 Os grandes dilemas da atualidade: à guisa de considerações Há diversos dilemas na atualidade em termos do enfrentamento às desigualdades de natureza social, territorial, de gênero e geracional no âmbito rural e das localidades onde predomina uma baixa densidade demográfica. Ainda assim, num esforço de contribuição, me permito indicar alguns dos que considero como extremamente preocupantes:

◆◆ O efeito produzido pelas grandes transformações demográficas. Essa tem sido a tônica de alguns estudos (SACCO DOS ANJOS, CALDAS E POLLNOW, 2014; SACCO DOS ANJOS E CALDAS, 2003), que advertem que o meio rural e as pequenas localidades do sul do Brasil vivenciam os efeitos de, pelo menos, três grandes mutações sociodemográficas. A primeira delas é o processo de masculinização, entendido como o desequilíbrio de gênero. Há cada vez mais homens em detrimento de mulheres3. O segundo fenômeno é o rápido envelhecimento da população rural. Os estudos que venho realizando apontam claramente para o fato de que a média de idade da população rural é mais elevada que no âmbito urbano. A sucessão é um problema que tende a agravar-se nos próximos anos. Juntos os dois fenômenos lançam uma nuvem de sombras sobre o futuro da agricultura familiar. Por mais entusiasmo que eu tenha ao exaltar as virtudes dos mercados institucionais e de outras políticas importantes surgidas no Brasil, especialmente na última década, fico com a desagradável sensação de que elas chegam tarde, muito tarde. A última mutação demográfica corresponde à desagrarização do rural. Ela tem a ver com o fato de que a agricultura tende a declinar sua participação na ocupação da mão de obra e geração de renda no campo. Urge reconhecer a importância das outras atividades para ampliar os horizontes dos indivíduos, sobretudo no caso das mulheres e dos jovens rurais, bem como de outros grupos ou coletividades (comunidades remanescentes de quilombos, pescadores, etc.) cuja expansão das liberdades pode ocorrer através de projetos e iniciativas não estritamente ligadas à produção agropecuária stricto sensu. Nesse caso, o grande dilema é justamente saber como enfrentar tais transformações a partir de uma outra abordagem que esteja à altura das circunstâncias, o que pressupõe romper com a visão estreita de que as necessidades da população rural se cingem ao âmbito único e exclusivo das atividades agropecuárias. ◆◆ O segundo grande dilema que eu reputo como relevante decorre dos efeitos da bicefalia da atuação estatal no que afeta à agricultura e ao mundo rural. Dois ministérios (Desenvolvimento Agrário e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento), como resultado das injunções políticas, falam idiomas absolutamente distintos. Resulta paradoxal que técnicos do MDA e MAPA se apropriem da linguagem da cooperação, da coesão e da concertação em suas intervenções e projetos de desenvolvimento, sendo que eles mesmos mostram-se completamente refratários a este exercício como entes de governo. Admitir as conquistas obtidas em termos da redução das desigualdades sociais não pode ser visto como apanágio para fugir ao enfrentamento dos problemas que cercam as contradições da atuação estatal. ◆◆ O terceiro grande dilema, de novo, tem a ver com a ideia de Amartya Sen com relação à remoção das fontes de privação do exercício das liberdades. A população rural, via de regra, ainda padece dos efeitos de uma cidadania de segunda classe. De um lado, pela precariedade das estruturas de ascensão e de bem estar social. As piores estradas, as piores escolas, os professores pior remunerados, a precariedade da instalação

3 O celibato no campo é o tema de um interessante filme documentário realizado em 2010 pela Margot Produções, espelhando a realidade do oeste catarinense, sobretudo em termos dos efeitos decorrentes da migração prematura de moças para cidade, em busca de empregos e oportunidades, a qual é recorrente nos estados meridionais do Brasil. Voltar ao sumário

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elétrica, da telefonia e acesso à internet são apenas exemplos ilustrativos. Por outro lado, por mais que vejamos o rural como o lócus privilegiado da biodiversidade e, não raras vezes, como sinônimo de qualidade de vida, são ainda muito fortes as amarras que nos prendem à espúria associação entre rural e atraso. Em nosso país, essa macabra vinculação transparece nos instrumentos de coleta de dados, nos documentos oficiais, na matriz de alocação de recursos públicos, nos programas de televisão, nas imagens e narrativas veiculadas nos meios de comunicação, nos livros didáticos, etc., etc. A superação dessa visão retrógrada não é tarefa simples, sobretudo porque se trata de desnaturalizar visões que estão arraigadas no imaginário dos indivíduos há muitas décadas.

Encerro a minha reflexão convencido de que há um longo caminho a ser trilhado em termos da reformulação dos instrumentos de intervenção e da construção de uma nova agenda no âmbito do desenvolvimento. Construir essa agenda pressupõe consenso, diálogo e disposição para o debate. Não poderá ser fruto da elucubração de mentes iluminadas. Nesse sentido, estou cada vez mais convicto de que não há atalhos, não há receitas prontas, não há modelos a serem seguidos. O desenvolvimento é uma construção social no sentido pleno da palavra. E se minhas considerações ajudam a avançar sobre essas questões, darei por cumpridos os objetivos que marcaram a elaboração desta reflexão.

Referências BOEKE, J. H. Economics and economic policy of dual societies as exemplified by Indonesia. Canadian Journal of Agricultural Economics, Canadá, n. 27, p. 37-60, 1953. FAVARETO, A. da S. A abordagem territorial do desenvolvimento rural: mudança institucional ou inovação por adição? Estudos Avançados, USP, [Impresso], v. 24, p. 299-319, 2010. FEI, J. C. H.; RANIS, G. Development of the labour surplus economy: theory and policy. Homewood, v. III, 1964. FROEHLICH, J. M. et al. Êxodo seletivo, masculinização e envelhecimento da população rural na região central do RS. Ciência Rural, Santa Maria, v. 41, n. 9, p. 1674-1680, 2011. FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1974. GRANOVETTER, M. The strength of weak ties. American Journal of Sociology, Chicago, v. 78, n. 6, p. 1360-1380, 1973. HIGGINS, B. The dualistic theory of theory underdeveloped areas. In: ______. Economic Development: principles, problems and policies. New York: Norton, 1959. p. 325-333. JOHNSTON, B. F., MELLOR, J. W. The role of agriculture. Economic Development. American Economic Review, v. 51, n. 4, p. 566-593, sept. 1961. JORGENSON, D. W. The Development of a dual economy. Economic Journal, n. 71, p. 309-334, jun. 1961. LEWIS, W. A. Economic development with unlimited supplies of labor. In: AGARWALA, A. N.; SINGH, S. P. (Eds.). The Economics of Underdevelopment. Londres: Oxford University Press, 1954. p. 400-449. MARTINS, J. de S. O futuro da sociologia rural e sua contribuição para a qualidade de vida rural. In: ______. Estudos Avançados, v. 15, n. 43, 2001. p. 33-36. MYINT, H. The Economics of the Developing Countries. London: Hutchinson University, 1964. SACCO DOS ANJOS, F.; CALDAS, Nádia Velleda. Cambios demográficos en el Brasil meridional: la masculinización, el envejecimiento y la desagrarización de la población rural. Perspectivas Sociales, Nuevo León, México, v. 5, n. 2, p. 71-111, 2003.

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Abordagem territorial e desenvolvimento...

SACCO DOS ANJOS, F. Agricultura familiar, pluriatividade e desenvolvimento rural no sul do Brasil. Pelotas: EGUFPEL, 2003. SEN, A. Desenvolvimento como liberdade. SĂŁo Paulo: Companhia das Letras, 2000.

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S U M Á R I O

GOVERNANÇA TERRITORIAL EM ARRANJOS COOPERATIVOS INSTITUCIONAIS E ORGANIZACIONAIS: APORTES TEÓRICO-METODOLÓGICOS E AVALIAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS E PORTUGUESAS* Valdir Roque Dallabrida** João Ferrão***

1 Introdução Recorrendo à literatura internacional verifica-se que muitos são os autores que se propõem definir governança. Outros, em menor número, definem de forma mais específica governança territorial. Revisando a bibliografia e considerando as várias abordagens teóricas existentes, com suas respectivas concepções, é possível sistematizar um conjunto de princípios constituintes de práticas qualificadas de governança territorial. Identificados tais princípios, uma dúvida se apresenta: como são estes princípios considerados nas práticas de governança territorial? Por outras palavras, que aproximações ou discrepâncias existem entre a teoria e a prática? As questões acima enunciadas sustentam-se em evidências verificadas quando da realização de estudos em experiências brasileiras, principalmente sobre o processo de descentralização político-administrativa dos Estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina1. Tais estudos permitem afirmar que, de maneira geral, as práticas de governança territorial sustentam-se em princípios que reproduzem concepções teóricas sustentadas na possibilidade de relações cooperadas entre atores diferenciados, mediante processos participativos. Contudo, as evidências constatadas em Artigo apresentado no XIII Seminário da Red Iberoamericana de Investigadores sobre Globalización y Territorio (RII), realizado de 1 a 4 de setembro de 2014, em Salvador, Bahia, Brasil. O presente artigo resulta de estudos de Pós-Doutorado realizados no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, durante o segundo semestre de 2013, com financiamento do CNPq-PDE, tendo como título: Ativos Territoriais como Estratégia de Desenvolvimento: um estudo sobre a eficácia da estrutura de governança territorial, como contributo à sustentabilidade social, econômica e ambiental dos territórios. Da mesma forma, tais estudos, estão integrados a outros dois Projetos de Pesquisa: Estratégias de especificação de Ativos Territoriais como alternativa de Desenvolvimento (Bolsa Produtividade em Pesquisa-CNPq); Território, Identidade Territorial e Desenvolvimento: a especificação de ativos territoriais como estratégia de desenvolvimento nas regiões do Estado de Santa Catarina (financiado pela FAPESC). ** Doutor em Desenvolvimento Regional. Pós-Doutorado no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (Portugal). Docente do Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado, Canoinhas, Brasil. E- mail: <valdir@unc.br>. *** Doutor em Geografia Humana, Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa (Portugal). E-mail: <joao.ferrao@ics.ul.pt>. 1 Ver em especial duas obras sobre o tema: Büttenbender et al, 2011; Dallabrida et al, 2013. *

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-2

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Governança territorial em arranjos cooperativos…

experiências brasileiras não retratam esta realidade com tanto otimismo. Isso motivou aprofundar os estudos analisando novas experiências, incluindo algumas europeias (Portugal). Referimo-nos, em especial, a duas investigações. Uma, que esteve focada na discussão teórica sobre governança e governança territorial, definindo referenciais para uma proposta metodológica que pudesse ser utilizada para a avaliação de práticas de governança territorial. Outra, propondo o estudo e avaliação de práticas de governança territorial em arranjos cooperativos institucionais e organizacionais, mais especificamente, experiências de Indicação Geográfica (IG) no Brasil e de Denominações de Origem Controlada ou Protegida (DOC/DOP) em Portugal. As investigações foram realizadas durante o ano de 20132. Sinteticamente, concebemos governança territorial como processos de planejamento e gestão de dinâmicas territoriais envolvendo diversos atores com intervenção ou influência num mesmo território. Tais processos podem ocorrer em diferentes arranjos cooperativos institucionais e organizacionais: experiências de descentralização político-administrativa articuladas por iniciativas estatais; soluções de associativismo empresarial com participação e apoio do Estado; e formas de organização socioterritorial voltadas a iniciativas de estímulo ou apoio ao desenvolvimento, ou orientadas à gestão de políticas públicas, tais como fóruns, conselhos e consórcios, articulados, preferencialmente, pela sociedade civil ou por agentes estatais. Este texto faz referência, em específico, aos arranjos cooperativos institucionais e organizacionais, tais como práticas de Indicação Geográfica (Brasil) e de Denominação de Origem (Portugal), enquanto experiências de especificação de ativos territoriais. Resgata recortes dos resultados das investigações focadas no estudo da eficácia dos sistemas de governança territorial como contributo à sustentabilidade social, econômica e ambiental dos territórios, com o propósito de avaliar a qualidade das práticas desenvolvidas em tais experiências. Na investigação foram realizadas análises documentais e bibliográficas, visitações e entrevistas e aplicado um inquérito a atores envolvidos, direta ou indiretamente, em tais experiências. Além desta introdução, o texto está estruturado em mais quatro partes: (a) referencial teórico sobre os temas governança e governança territorial (secção 1.1), território, identidade territoral e desenvolvimento (secção 1.2) e especificação de ativos territoriais (secção 1.3); (b) orientação metodológica e processo de investigação; (c) análise e resultados e (d) considerações finais.

2 Situando teoricamente o tema em questão A temática à qual se refere o presente artigo é tratada por diferentes autores com abordagens umas vezes convergentes, outras nem tanto. Dos recortes temáticos que sustentam o tema de investigação, dois deles são fundamentais: a discussão sobre governança e governança territorial e a abordagem sobre ativos com especificidade territorial, dos quais resultam as experiências de Indicação Geográfica e de Denominação de Origem. Por outro lado, tratar deste tema remete para a sua relação com a questão da identidade e desenvolvimento territorial. 2 Estas investigações tiveram como pesquisador principal e orientador, respectivamente, o primeiro e o segundo autores deste artigo, no âmbito de uma estadia no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa como investigador visitante. Voltar ao sumário

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V. R. Dallabrida, J. Ferrão

2.1 Referenciais teóricos sobre governança e governança territorial A introdução do tema governança justifica-se pelo fato de que o presente artigo resulta de estudos que se propunham avaliar a contribuição do sistema de governança territorial na sustentabilidade de experiências de especificação de ativos territoriais. Para não sermos exaustivos, optamos por destacar uma parcela das obras que fazem menção ao tema governança. Dentre as obras de referência sobre o tema, podemos destacar (listadas cronologicamente): Rosenau e Czempiel, 1992; Kooiman, 1993/2004; March y Olsen, 1995; Rhodes, 1996/2007; Jessop, 1998/2000/2006; Stoker, 1998/2004; Mayntz, 1998/2001; Pierre, 2000; Pierre e Peters, 2000; CCE, 2001; Milani e Solinís, 2002; Kazancigil, 2002; Bevir e Rhodes, 2003/2006; Bevir et al., 2003; Prats, 2005; Sørensen e Torfing, 2005; Torfing, 2005; Bevir, 2011; Weale, 2011; Héritier e Lehmkuhl, 2011. Lembramos, também, uma obra publicada pelo Banco Mundial: World Bank (1992). Já outro conjunto de obras faz especificamente referência à governança territorial3. Dentre elas merecem destaque: Dallabrida e Becker, 2003; Ferrão, 2004/2010/2013; ESPON, 2006; Farinós, 2005/2008; Dallabrida, 2006/2007/2011; Davoudi et al., 2008; Feio e Chorincas, 2009; Romero e Farinós, 2011; Pires et al., 2011; Covas e Covas, 2013; Gonçalves, 2013; Pereira, 2013. Em síntese, estes autores definem governança territorial como: (1) processo de planejamento e gestão de dinâmicas territoriais desenvolvido numa ótica inovadora, compartilhada e colaborativa por meio de relações voluntárias e não hierárquicas de associação entre atores públicos, semipúblicos e privados (Ferrão, 2010/2013); (2) novo modo de gestão e decisão dos assuntos públicos num território como modalidade reforçada de bom governo fundamentada simultaneamente no papel insubstituível do Estado, numa concepção mais sofisticada de democracia e num maior protagonismo da sociedade civil (FARINÓS, 2008; ROMERO; FARINÓS, 2011). Sustentados em parte nas concepções ora explicitadas sobre governança e sua relação com o desenvolvimento territorial, assume-se neste artigo o posicionamento referenciado em Dallabrida (2014a/b). Governança territorial corresponde a um processo de planejamento e gestão de dinâmicas territoriais que prioriza uma ótica inovadora, compartilhada e colaborativa, por meio de relações horizontais entre os diferentes atores envolvidos. No entanto, esse processo inclui lutas de poder, conflitos, negociações e, por fim, deliberações entre agentes estatais, representantes dos setores sociais e empresariais, de centros universitários ou de investigação. Processos desta natureza fundamentam-se no papel insubstituível do Estado, numa concepção qualificada de democracia e no protagonismo da sociedade civil, objetivando harmonizar uma visão compartilhada para o futuro e um padrão mais elevado de desenvolvimento territorial. O desenvolvimento territorial é entendido como um processo de mudança continuada, situado histórica e territorialmente, mas integrado em dinâmicas interterritoriais, supraterritoriais e globais, sustentado na potenciação dos recursos e ativos (materiais e imateriais, genéricos e específicos) existentes no local, com vistas à dinamização socioeconômica e à melhoria da qualidade de vida da sua população. Sobre o contexto em que ocorrem processos de governança territorial, nos sustentamos em concepção expressa na Figura 1. 3 Alguns autores têm utilizado o termo governança local ou regional, ou governação, com o mesmo sentido que aqui atribuímos à governança territorial. Há abordagens críticas sobre o tema governança territorial, a exemplo de Vigil; Fernández (2012); Vigil (2013). Voltar ao sumário

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Governança territorial em arranjos cooperativos…

Figura 1: Contextualização dos processos de governança territorial

Fonte: Dallabrida (2014a).

Interpretando a representação gráfica da Figura 1, ressaltamos que os processos de governança territorial situam-se territorialmente, mesmo que os seus atores estabeleçam conexões com outras escalas espaciais. As ações e relações de poder que ocorre num determinado território provêm e incidem de/em instâncias de três tipos: estatal, público-privada e empresarial. É possível considerar que a instância estatal, por meio das ações de governo, concretiza o processo de governação4, interferindo nas demais instâncias através de regulamentações ou políticas verticalizadas. Da instância empresarial, por meio de formas diversas de cooperação, provêm as estratégias empresariais, que visam fins predominantemente econômico-financeiros. A gestão das estratégias empresariais ocorre por meio do que a bibliografia designa por governança empresarial5. O objeto central de estudo aqui proposto são, contudo, os processos de governança territorial. São de relações de cooperação e parceria entre atores públicos, semipúblicos, sociais e empresariais por meio de diferentes arranjos cooperativos, uns denominados por Arranjos Cooperativos Institucionais, liderados por atores estatais e abrangendo, basicamente, o campo das políticas públicas, e outros por Arranjos Cooperativos Organizacionais, tratando-se de iniciativas articuladas de atores semipúblicos, sociais ou empresariais, com a participação e/ou apoio estatal. Estes processos ocorrem na instância público-privada. Portanto, governança territorial são ações e relações de poder que se diferenciam das ações exclusivamente estatais ou empresariais (DALLABRIDA, 2014a). O foco do estudo são relações de cooperação e parceria que ocorrem em arranjos cooperativos organizacionais, pois trataremos de experiências em que interage o setor empresarial, com o apoio estatal. Como são de organizações de cunho empresarial envolvidas no processamento de produtos com especificidade, como alternativa de geração de renda, num determinado território, precisamos fazer referência a outras três categorias conceituais: território, identidade territorial e desenvolvimento. 4 Neste texto, o termo governação é utilizado para referir as ações coordenadas pelo governo nas diferentes instâncias estatais (nacional, estadual, regional ou municipal). 5 Termo utilizado para referir as ações de cooperação interempresarial que têm incidência nos territórios. Em alguns países utiliza-se o termo governança corporativa com sentido assemelhado. Voltar ao sumário

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V. R. Dallabrida, J. Ferrão

2.2 Território, identidade territorial e desenvolvimento Segundo Haesbaert (2007), de modo geral na Ciência Geográfica há três vertentes básicas da concepção de território, sendo elas a política, a cultural e a econômica. A vertente política destaca as relações espaço-poder e concebe o território como espaço delimitado e controlado, muitas vezes relacionado ao poder político do Estado, porém, atualmente incorpora múltiplos poderes. A cultural entende o território como produto da apropriação e da valorização simbólica de um grupo em relação ao espaço vivido, ao cotidiano. A econômica o considera como fonte de recursos ou como produto da divisão territorial do trabalho. Sobre o conceito de território, assumimos uma concepção mais próxima da vertente cultural. Opta-se, então, pela utilização do conceito território para referir a uma fração do espaço historicamente construída através das inter-relações dos atores sociais, econômicos e institucionais que atuam neste âmbito espacial, apropriada a partir de relações de poder sustentadas em motivações políticas, sociais, ambientais, econômicas, culturais ou religiosas, emanadas do Estado, de grupos sociais ou corporativos, instituições ou indivíduos (DALLABRIDA, 2006; 2007; 2010; DALLABRIDA; FERNÁNDEZ, 2008). Partindo do argumento de que é em torno da própria matriz identitária que o lugar se estrutura e se diferencia do entorno geográfico, condição necessária para o registro de produto com especificidade territorial, é possível estabelecer uma relação próxima entre identidade e desenvolvimento territorial. Neste sentido, Sacco dos Anjos e Caldas (2010) ressaltam que toda a estratégia de desenvolvimento precisa sustentar-se em uma base conceitual ampla, que contemple os aspectos relativos à identidade cultural dos territórios e que não se foque somente nas externalidades de um determinado produto, processo ou serviço. Pollice (2010, p. 9), ao fazer uma relação entre território e identidade, afirma que há uma relação cumulativa entre ambos. “Enquanto se, por um lado, a identidade territorial gera e orienta os processos de territorialização, por outro lado estão as mesmas ações de territorialização a reforçar o processo de identificação entre a comunidade e o seu espaço vivido”. Na mesma linha de argumentação, Caldo (1996, p. 285) descreve a identidade geográfica como uma “[...] relação identitária que liga uma determinada comunidade ao seu espaço vivido”. Sobre espaço vivido, o autor quer reforçar que não está a se referir apenas à dimensão espacial do fenômeno identitário, mas sim àquelas ligações de pertença que constituem o território em si. Quanto aos possíveis impactos da identidade territorial no processo de desenvolvimento, Pollice (2010, p. 18-20) destaca oito aspectos: (1) a identidade territorial tende a reforçar o poder normativo dos valores éticos e comportamentais localmente compartilhados; (2) a identidade territorial contribui para melhorar a transferência intrageracional e intergeracional do saber; (3) o sentido de pertença constitui o cimento do sistema econômico territorial; (4) é necessário que o conjunto de empresas locais se fundamente numa reinterpretação crítica e inovadora; (5) a capacidade de auto-organização dos sistemas territoriais está profundamente ligada à possibilidade de criar alguns mecanismos de introjeção da mudança; (6) o desenvolvimento endógeno se substancia na capacidade da comunidade local de valorização do território, em particular os recursos não localizáveis que constituem elemento de diferenciação; (7) a expressão mais significativa desta relação identitária entre a es-

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Governança territorial em arranjos cooperativos…

tratégia de desenvolvimento e a cultura do território é dada por mecanismos de convergência política e de compartilhamento projetual, reduzindo os comportamentos oportunistas ou ideológicos das forças que ali se confrontam; (8) os sentimentos identitários determinam, no nível local, um apego afetivo aos valores paisagísticos e culturais do território. Consideram-se como fundamentais os aspectos ressaltados pelo autor, tendo em vista o tema da presente investigação.

2.3 Situando a questão da especificação de ativos territoriais O foco de análise são experiências de especificação de ativos territoriais do Brasil e de Portugal. Inicialmente se descreve sucintamente as formas de certificação de produtos nos dois países. Ao se tratar conjuntamente as experiências de certificação de ativos territoriais no Brasil e em Portugal, é indispensável lembrar que há uma diferença expressiva entre a quantidade de produtos e o teor das normas em cada um dos casos. Sacco dos Anjos e Caldas (2010) reconhecem que o cenário europeu e brasileiro é muito distinto no que se refere às circunstâncias em que ocorre a emergência de dinâmicas de identidade territorial. Dados de 2011 indicam a existência, nos países da União Europeia, de 1.035 produtos com certificação, dentre Denominações de Origem Protegida (DOP), Indicações Geográficas Garantidas (IGP) e Especialidades Tradicionais Garantidas (ETG). Se a esses dados agregarmos as 1.334 DOP ou Denominações de Origem Controlada (DOC) e as 587 IGP de vinhos, chegaremos a um universo de quase 3.000 produtos registrados (SILVA et al., 2012)6. No Brasil a certificação de produtos com especificidade territorial é feita via a Indicação Geográfica. Esta consiste em duas modalidades: a Indicação de Procedência e a Denominação de Origem. A Indicação de Procedência (IP) faz referência ao nome geográfico de um país, cidade, região ou território que se tornou conhecido como centro de produção, fabricação ou extração de determinado produto ou prestação de serviço. Já a Denominação de Origem (DO) é o nome geográfico de um país, cidade, região ou território que designe um produto ou serviço cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico específico, incluindo fatores naturais e humanos. Assim, a diferença singular entre as formas de Indicação Geográfica está associada às características e peculiaridades físicas e humanas potencializadas pelo território que podem designar uma DO, enquanto que para a IP é suficiente a vinculação do produto ou serviço a um espaço geográfico, independente de suas características e qualidades intrínsecas.7 No território nacional, até abril de 2014 estavam registradas 44 experiências de Indicação Geográfica, sendo 36 nacionais e 8 estrangeiras. Das nacionais, 29 são na espécie Indicação de Procedência e 7 como Denominação de Origem. Todas as estrangeiras são registradas como Denominação de Origem. Em Portugal, destaca-se a quantidade de vinhos com certificação, identificados pela sua região de produção. Para os vinhos utiliza-se a designação Denominação 6 Outras duas obras recentes fazem uma descrição da realidade brasileira em relação ao tema, comparativamente com países europeus: Froehlich (2012), Sacco dos Anjos e Caldas (2010). 7 Conf. Lei 9.279, de 14/05/1996 e Resolução Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) 75/2000. A referida Lei regula os direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, incluindo o registro de produtos ou serviços com especificidade territorial. Voltar ao sumário

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V. R. Dallabrida, J. Ferrão

de Origem Protegida (DOP) para os produtos vitivinícolas cuja originalidade e individualidade estão ligadas de forma indissociável a uma determinada região, local ou denominação tradicional, e cujas qualidades ou características específicas são devidas ao meio geográfico, incluindo fatores naturais e humanos. Estes produtos estão sujeitos a regras específicas de controle que visam garantir a autenticidade e qualidade e podem também ser rotulados como Denominação de Origem Controlada (DOC). Já a Indicação Geográfica Protegida (IGP) é a designação adotada para os vinhos de uma região específica cujo nome adotam na rotulagem, elaborados com pelo menos 85% de uvas provenientes dessa região. Tal como os produtos com DOP/ DOC, são sujeitos a regras específicas de controle. Estes vinhos são normalmente rotulados como Vinho Regional. Os demais produtos certificados, sejam de origem agrícola ou animal, são designados como DOP ou IGP. Já os produtos designados como ETG não estão relacionados com uma origem. Correspondem a produtos agrícolas ou gêneros alimentícios produzidos a partir das matérias-primas tradicionais ou com uma composição tradicional ou um modo de produção e/ou de transformação tradicional que o distinga de outros produtos similares. São distinguidos também produtos cultivados de forma agroecológica.

3 Orientação metodológica e processo de investigação Na investigação aqui referida nos propomos avaliar a situação e identificar os desafios e as possibilidades de avanços nas práticas de tomada de decisão que ocorrem em experiências de governança territorial, sendo estas entendidas como processos de planejamento e gestão de dinâmicas territoriais estruturadas na forma de arranjos cooperativos organizacionais, como as IG e DOC/DOP. Em pesquisa anterior (DALLABRIDA, 2014a), assumimos o desafio de elaborar uma proposta metodológica para avaliação de práticas de governança territorial, já que se entendia ser esta uma forma de diagnosticar a situação de tais práticas em relação ao que a literatura que trata do tema convencionou chamar de governança territorial. Partimos da consulta bibliográfica, sistematizando as concepções de um conjunto de autores e destacando diversas componentes analíticas sobre governança, conforme sintetizado no Quadro 1. Assim, com base em tais concepções estruturamos uma proposta de inquérito, a qual foi aplicada em experiências de governança territorial do Brasil e de Portugal. A proposta está sustentada num conjunto de questões que sintetizam as componentes analíticas destacadas pelos autores pesquisados, conforme Quadro 2. O inquérito foi aplicado em seis experiências, atingindo uma amostra de dezoito atores, entre dirigentes, técnicos e representantes do setor público.

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Governança territorial em arranjos cooperativos…

Quadro 1: Síntese das componentes analíticas sobre governança Autor e Obra

Componentes Analíticas

KOOIMAN, 1993

Visão policêntrica de estado; interações sociopolíticas; interdependência entre atores; compartilhamento de metas

RHODES, 1996

Interdependência entre as organizações; interações contínuas entre membros da rede; jogo de interações, enraizadas em confiança; auto-organização de redes, com significativo grau de autonomia em relação ao Estado

JESSOP, 1998

Auto-organização de redes; negociação; coordenação interorganizacional; descentralização intersistêmica; mediação

STOKER, 1998

Simplificação de modelos e práticas; aprendizagem interativa dinâmica; coordenação de ações entre diferentes atores; visão de mundo comum; integração de responsabilidades; autorregulação

MAYNTZ, 1998

Cooperação; interação entre atores estatais e nãoestatais

JESSOP, 2000

Interdependência recíproca; auto-organização, permanente diálogo e partilha de recursos

CCE, 2001

Controle democrático; responsabilidade coletiva; participação nas decisões; abertura; eficácia; coerência

DALLABRIDA; BECKER, 2003

Governo do território; articulação de atores em redes de poder socioterritorial

FARINÓS, 2005

Lealdade institucional; coordenação de atores; compartilhamento de objetivos; coresponsabilidade

SØRENSEN; TORFING, 2005

Interações autorreguladas; conduta democrática; descentralização; interdependência; pluralidade; negociação; confiança

DALLABRIDA, 2006; 2007; 2011

Partilhamento; cooperação entre atores sociais, econômicos e institucionais; interação entre atores estatais e nãoestatais

JESSOP, 2006

Novas racionalidades governamentais; novos sujeitos de governança

ESPON, 2006

Subsidiariedade; flexibilidade; parceria e participação voluntária; território como matriz de referência; proeminência do Estado nos processos de governança territorial

RHODES, 2007

Desconcentração da autoridade do Estado e do seu exercício; tradições e dilemas dos grupos sociais como referências

FARINÓS, 2008

Compartilhamento; colaboração; inovação; visão territorial compartilhada

DAVOUDI et al., 2008

Coresponsabilidade; abertura; transparência; cooperação; subsidiariedade; reconhecimento e valorização do capital territorial; visão territorial compartilhada

FERRÃO, 2010

Ótica inovadora, partilhada e colaborativa; descentralização, responsabilização, participação, coordenação, cooperação, parcerias e contratualização

FERRÃO, 2011

Concepção de ordenamento do território mais integrada, estratégica, prospectiva e participada; interesse público negociado; legitimação por procura de consensos e negociação; cooperação e coordenação interorganizacional; governança de base territorial

ROMERO; FARINÓS, 2011

Democracia e protagonismo da sociedade civil, com proeminência do Estado; empoderamento da sociedade; equilíbrio entre esfera pública, mercado e sociedade civil; consideração das tradições, instituições e processos

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V. R. Dallabrida, J. Ferrão

Autor e Obra

Componentes Analíticas

FERRÃO, 2013

Relações voluntárias, horizontais e não hierárquicas de cooperação e parceria

ESPON-TANGO, 2012

Integração setorial de políticas relevantes; coordenação das ações dos atores e instituições; interação multi-nível; participação e mobilização das partes interessadas; adaptabilidade à contextos variáveis; potenciação das especificidades territoriais

Fonte: Elaboração própria com base nas obras citadas.

Quadro 2: Dimensões, categorias e critérios para avaliação de práticas de governança territorial Dimensões

Princípios Subsidiariedade (vertical e horizontal) Relacionalidade

A- Atores, poderes e relações

Dimensões

Princípios Integração horizontal

C- Coordenação de Políticas

Integração vertical

Liderança

Eficácia das políticas

Protagonismo estatal

Atendimento da pluralidade

Protagonismo social

Compartilhamento de objetivos e metas

Protagonismo empresarial Resiliência Representatividade

D- Resultados dos processos de governança territorial

Ancoragem democrática Reciprocidade B- Processos de Cooperação e Interdedecisão pendência Transparência Reflexibilidade

Aprendizagem interativa Empoderamento dos atores Territorialização dos processos Gestão territorial integrada

Obs.: Cada um dos princípios foi desdobrado em critérios para a sua mensuração. Ex. Princípio Liderança - Critério: Liderança descentrada e compartilhada.

Governabilidade Fonte: Elaboração própria, com base em Dallabrida (2014a).

Referenciando dimensões, categorias e critérios para avaliação de práticas de governança territorial, foi estruturado um instrumento de pesquisa na forma de inquérito, aplicado a atores envolvidos em experiências de governança territorial no Brasil e em Portugal. Pretendeu-se, como resultado, perceber o posicionamento dos atores das diferentes experiências em relação ao grau de consideração dos indicativos teóricos, com isso podendo se tirar conclusões sobre a qualidade das práticas de governança territorial. Os inquéritos foram aplicados a atores de seis experiências de DOC/DOP em Portugal e de IP/DO no Brasil, atingindo uma amostra de dezoito atores, entre dirigentes, técnicos e assessores, e representantes dos setores social, empresarial e público. Dos trinta inquéritos enviados, conseguimos um retorno de 60%. Mesmo que o universo da amostra possa ser considerado relativamente pequeno, é um indicativo com alguma significância.

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Governança territorial em arranjos cooperativos…

4 Análise e resultados Divide-se a análise que se segue em quatro aspectos: (a) questões de ordem geral referente às experiências observadas no Brasil e em Portugal; (b) observações específicas das experiências brasileiras e portuguesas relacionadas às dimensões ambiental, social, cultural e econômica; (c) questões gerais referentes à estrutura de governança territorial das experiências observadas; (d) análises sobre a qualidade das práticas de governança territorial. Este último aspecto resulta da aplicação de inquérito com atores de três experiências brasileiras e três de Portugal, conforme acima referido.

4.1 Questões de ordem geral referentes às experiências observadas Em primeiro lugar, observações feitas no estudo de experiências de especificação de ativos territoriais de Portugal (DOC/DOP) e do Brasil (IP/DO) permitem questionar a eficácia da proliferação das figuras de proteção e certificação de produtos. Esta situação, em geral, resulta em dificuldades por parte dos consumidores em avaliar as singularidades e diferenciais de qualidade dos produtos protegidos8. Outra questão é o impacto da diferenciação no consumo. Nas visitas de experiências de DOC e DOP de Portugal, verificou-se que apenas parte da produção total vai para o mercado com o selo de certificação, demonstrando que, mesmo em países europeus com uma tradição de produtos certificados que excede aos 100 anos, observa-se que o consumo de produtos diferenciados ainda não é massivo. Esta situação é muito mais significativa no Brasil, onde a certificação de produtos, no caso, na forma de IP ou DO, ocorre apenas a partir dos últimos 20 anos. Mesmo considerando diferenças nas dimensões, o motivo alegado é o mesmo: poucos consumidores ainda tomam como referência para o consumo a questão da certificação. Isso remete à necessidade de estratégias de divulgação diferenciadas das já utilizadas, que apresentem maior eficácia.

4.2 Observações referentes às experiências brasileiras Com base na visitação e estudo de cinco experiências de IG brasileiras, perceberam-se aspectos positivos e desafios de diferentes ordens. No Quadro 3 estão destacadas as questões mais significativas, considerando as respostas dos entrevistados.

8 Coincide com análises feitas em Sacco dos Anjos e Caldas (2010) e Silva et al. (2012). Voltar ao sumário

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Quadro 3: Tipificação das experiências e observações em relação às dimensões da sustentabilidade Dimensão Social Ambiental

Resumo das observações realizadas Experiência 1: Produção de aguardente de cana de açúcar Atende apenas sete produtores e não se trata de atividade de alta empregabilidade Apenas recentemente, começou a preocupação com questões de preservação ambiental e dos solos, havendo ainda utilização de agrotóxicos na produção agrícola

Cultural

Resgata, valoriza e potencializa a cultura e tradição histórica de produção local, havendo uma associação entre a marca do produto e a cidade em que é produzido Econômica Atividade econômica viável, que impacta positivamente sobre o turismo e demais atividades locais e regionais; no entanto, parte da matéria-prima ainda é importada de outras regiões, restringindo a geração de renda e emprego localmente Experiência 2: Produtos de artesanato e de utilidade doméstica a partir da argila natural Social Forte inclusão social, com geração de emprego e renda às famílias da periferia urbana Ambiental Grande preocupação com a questão da preservação ambiental, havendo, no entanto, risco de esgotamento da matéria-prima (argila) no longo prazo Cultural Atividade ancorada nos saberes ancestrais, preservando sua originalidade, no entanto, há o risco de outras experiências reproduzirem estratégias semelhantes Econômica Atividade permite renda mínima para o sustento das famílias envolvidas, tendo forte marketing de mercado, no entanto, opera ainda com baixo preço de venda, impossibilitando uma rentabilidade financeira mais significativa aos envolvidos Experiência 3: Produção de própolis diferenciada a partir da apicultura local Social Viabiliza socioeconomicamente os envolvidos, no entanto, há uma baixa adesão ao associativismo, devido às experiências frustradas, estimulando ações individualizadas Ambiental Atividade sustentável ambientalmente produz alimento que contribui na promoção da saúde humana, com características medicinais Cultural O envolvimento na atividade cria relações de apego com o meio natural, havendo uma consciência de valorização das características específicas do produto Econômica Atividade lucrativa, tendo conquistado o mercado nacional e internacional, impactando positivamente a economia local; há a preocupação em capitalizar as vantagens econômicas localmente, avançando tecnologicamente na industrialização Experiência 4: Produção de vinhos a partir de tipo específico de uva Social

É uma atividade inclusiva, tendo potencial para ampliar a participação de novos associados; caracteriza-se pela forte mobilização da sociedade municipal e regional Ambiental Trata-se de atividade de baixo risco ambiental, no entanto, poderia haver avanços no cultivo da uva, por exemplo, reduzindo ou eliminando o uso de agrotóxicos Cultural Atividade contribui no resgate e valorização da cultura dos antecedentes (imigrantes colonizadores), preservando e difundindo saberes entre gerações (passado e presente) Econômica Atividade viável economicamente, porém ainda com limitações no mercado de consumo; tem potencial para a dinamização de outras atividades econômicas Experiência 5: Produção de vinhos e espumantes diferenciados Social Tem potencial de ampliar as condições de inclusão social, pois, no momento envolve poucos proprietários e empresas locais Ambiental Trata-se de atividade de baixo risco ambiental, no entanto, poderia diferenciar-se, qualificando-se pela não utilização de agrotóxicos na produção Cultural Agrega saberes geracionais de tradição local, associando a produção com a preservação de traços culturais históricos Econômica É uma atividade economicamente viável, possuindo mercado consumidor nacional consolidado, no entanto, precisa avançar, com estratégias de ampliação do consumo Fonte: Elaboração própria. Voltar ao sumário

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Sintetizando, ao analisar experiências brasileiras podem-se destacar os seguintes desafios: (a) reduzido número de sócios nas IG, o que denota baixa capacidade de inclusão social; (b) as IG, em geral, são negócios lucrativos privados que utilizam a estratégia do associativismo para viabilizar-se, talvez mais por exigência legal do que por convicção de necessidade; (c) nas experiências agrícolas percebe-se a falta de mão de obra; (d) há reconhecimento unânime dos entrevistados de que a população pouco conhece o que é uma IG, o que implica limitações no mercado de consumo; (e) necessidade de ampliação do marketing dos produtos; (e) carência de uma cultura solidária e de associativismo; (f) baixa preocupação com as questões ambientais e consciencialização reduzida das possibilidades da produção agroecológica; (g) o impacto econômico das IG pode ser ampliado se estas incluirem outras potenciais atividades, entre elas o turismo, além da integração com outras atividades econômicas locais; (h) por fim, a especificação de ativos territoriais como estratégia de desenvolvimento se apresenta como uma possibilidade, não a única. No entanto, ressaltamos que, de maneira geral, percebe-se nos territórios com IG a valorização da identidade cultural, além de maior dinamismo socioeconômico.

4.3 Observações referentes às experiências portuguesas Em relação às experiências de Portugal, alguns dos desafios coincidem com os destacados nas experiências brasileiras, com realce para a questão da carência de uma cultura solidária e de associativismo e o fato de que, na verdade, trata-se de negócios lucrativos privados que utilizam a estratégia do associativismo para viabilizar-se. Ao alertar sobre esta situação, não se está emitindo qualquer juízo de valor, positivo ou negativo. Trata-se apenas de uma constatação, pois tal situação será favorável para umas finalidades e interesses e desfavorável para outros. Quanto à tipologia das experiências visitadas em Portugal, tem-se a seguinte situação: duas relacionadas à vitivinicultura em regiões portuguesas tradicionais na produção de vinho; uma relacionada à produção de queijos especiais; outras duas relacionadas ao beneficiamento de produtos com especificidade de origem animal. a. Questões relacionadas à dimensão social

Com base nas experiências analisadas na produção de vinhos, de queijo e de produtos de origem animal, é possível observar que são estruturadas sob a forma de comissões nacionais, ou associações, que articulam a produção quanto ao apoio técnico, às normatizações legais, à regulação do volume da produção, à inserção dos produtos no mercado e ao marketing geral, principalmente no setor industrial. Portanto, as relações de trabalho regem-se pelos padrões próprios do sistema empresarial moderno. Já o setor de produção da matéria prima (a uva, o leite e animais) compreende tanto produtores e criadores isolados como organizações empresariais. Alguns setores agregam mão de obra sazonalmente, como na produção de vinho. Em certas regiões, tais atividades são as que mais empregam. b. Questões relacionadas à dimensão ambiental

Em geral, as atividades produtivas analisadas não têm impactos ambientais significativos. Já há alguns anos existe a preocupação com questões de preservação ambiental, no entanto, ainda é pouco significativa a produção agroecológica, havendo

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ainda utilização de agroquímicos no processo produtivo e industrial. O caso mais emblemático, em que o processo produtivo tem uma relação equilibrada com o meio ambiente, é o da produção de animais autóctones. São raças rústicas, menos exigentes em instalações e com cuidados alimentares e quanto à sanidade. Trata-se de um sistema de produção extensiva, em campos abertos, alimentando-se de ervas e frutos silvestres, restos de colheitas agrícolas, complementada com cereais e rações compostas. c. Questões relacionadas à dimensão cultural

Das experiências visitadas, cabe um destaque inicial à produção vitivinícola. O setor mantém uma relação de identidade com a tradição histórica centenária na produção de vinhos. Por isso há uma forte relação de identidade da região com tais tradições, o que leva a manter ativas festividades que marcam as fases de produção vinícola, como o exemplo da vindima (período de colheita). Além das festividades, a tradição é mantida também pela preservação da memória arquitetônica e histórico-cultural, por exemplo, com a presença de museus. No entanto, é possível observar que se mantém viva a relação de identidade com sua história, predominantemente como estratégia de marketing para divulgação dos produtos e como atração turística. Outro caso de destaque é a produção de animais autóctones. Trata-se da preservação de formas de criação do passado, quando ainda não havia a introdução de melhoramento genético no setor. Já no caso do queijo, resgata-se e mantêm-se uma tradição de atividade quase única em algumas regiões, em função de restrições de ordem físico-natural, pois é uma atividade historicamente realizada em regiões de vegetação rasteira e solos pouco aproveitáveis para atividades agrícolas, semelhantes às savanas, em geral com baixa pluviosidade em boa parte do ano. d. Questões relacionadas à dimensão econômica

Mesmo que parte do processo de produção ocorra em áreas de produção familiar, com destaque para o caso do queijo, estamos nos referindo a atividades inseridas no circuito da produção industrial e comercial nacional e internacional. Em especial o vinho, trata-se de um produto de tradição em Portugal que representa um percentual significativo das suas exportações. Portanto, estamos nos referindo a atividades inseridas na lógica de mercado, tendo assim necessidade de ser competitivas, tecnologicamente e em termos de qualidade e preços.

4.4 Questões referentes à estrutura de governança territorial Nas experiências brasileiras, nas quais o estudo pode ser feito de uma forma mais aprofundada, foram constatadas dificuldades das associações de produtores, artesões ou empresários em trabalhar e se relacionar associativamente, situação associada com níveis significativos de centralização de poder, vaidades e interesses individualistas, em detrimento de conquistas coletivas. Questões semelhantes, no entanto com diferentes dimensões e características, puderam também ser observadas nas experiências em Portugal. Por exemplo, uma experiência de DOP visitada iniciou como cooperativa agrícola, a qual recentemente foi fechada, sendo agora operacionalizada por meio de empresas individuais. Quanto à estrutura de governança territorial mais adequada para a inserção no mercado dos produtos com especificidade territorial (DOC/DOP-Portugal ou IP/DOVoltar ao sumário

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Brasil), esta é uma questão de suma importância. No Brasil, há constrangimentos de ordem legal e prática quanto à criação de estruturas destinadas à comercialização coletiva do produto certificado territorialmente. Na unanimidade, no Brasil, as experiências visitadas apresentaram este desafio, pois são estruturadas na forma de associação, a qual legalmente não está habilitada a operar comercialmente no mercado. Perguntavam-se alguns entrevistados: seria o caso de constituir uma cooperativa para a comercialização coletiva? No entanto, outros argumentavam que esta não é uma alternativa adequada, pelo fato de ter impedimento legal de associarem-se a uma mesma cooperativa, juntamente, produtores individuais e empresas. São questões que precisam ser aprofundadas, criando os instrumentos legais adequados para sua operacionalização. No caso de Portugal este problema é resolvido, ao menos em parte, em alguns casos pela constituição de cooperativas encarregadas da industrialização ou da comercialização. Em outros casos, há a estruturação de associações nacionais e, no caso do vinho, as comissões vitivinícolas regionais. Tais associações, ou comissões, assumem o papel de assessorar tecnicamente a atividade, além da promoção comercial, nacional e internacionalmente. Há em Portugal, comparativamente ao Brasil, um maior profissionalismo comercial e de marketing nas atividades produtivas relacionadas aos produtos com certificação. Assim, é possível que alguns avanços já obtidos em Portugal possam, no futuro, ser readequados para as experiências de IG brasileiras, mesmo que em algumas situações sejam necessárias mudanças na legislação.

4.5 Análises sobre a qualidade das práticas de governança territorial A análise dos inquéritos aplicados com atores das experiências de DOC/DOP em Portugal e de IP/DO no Brasil, conforme o Quadro 4, permite fazer algumas observações. Pelos resultados do inquérito, a avaliação dos atores inquiridos das experiências brasileiras e portuguesas como práticas de governança territorial é predominantemente positiva. No Quadro 4 está um resumo das respostas aos inquéritos, apresentando os percentuais de respostas de discordância, as quais permitem análises quanto às características das práticas de governança territorial das experiências consideradas. Considerando a percepção dos atores envolvidos nas experiências, tem-se uma situação favorável quanto à governança territorial. Apenas em sete princípios, a avaliação de discordância é significativa, acima de 25%. A análise se deterá mais nestes elementos. Os princípios que foram avaliados como predominantemente negativos são (pela ordem decrescente): Protagonismo Estatal (Estado como articulador principal das redes); Integração Vertical (integração das políticas oriundas das diferentes instâncias de governo no território); Resiliência (resistência ou maleabilidade de atores e instituições em face das mudanças); Eficácia das Políticas (foco dos resultados nos objetivos definidos coletivamente); Protagonismo Social (participação ativa da sociedade civil); Liderança (descentrada e compartilhada); Integração Horizontal (integração sistêmica entre as políticas com impacto no território).

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Quadro 4: Percentual (%) de respostas de discordância (1 e 2) nos inquéritos do Brasil e de Portugal Dimensão A - Atores, Poderes e Relações Subsidiariedade Perc.

Interação

Liderança

ProEstado

ProSocial

11%

28%

56%

28%

22%

ProEmpresa

Resiliência

17%

34%

Reflexibilidade

Governabilidade

11%

5%

Dimensão B - Processos de Decisão

Perc.

Representatividade

Democracia

Reciprocidade

Interdependência

0%

5%

5%

17%

Transparência 0%

Dimensão C - Coordenação de Políticas Descentralização Perc.

Integração Horizontal

5%

28%

Integração Eficácia das Políticas Vertical 39%

34%

Dimensão D - Resultados dos Processos de Governança Territorial Pluralidade

Partilhamento

Perc. 11% 22% Fonte: Elaboração própria.

Aprendizagem 17%

Empoderamento 22%

Territoria- Gestão Territorial lização 11%

5%

Tomando os primeiros quatro princípios, os quais variaram entre 34 e 56% de respostas discordantes, alguns comentários, pois demonstram aspectos da govenança territorial que representam os desafios mais significativos. Primeiro, na avaliação dos atores inquiridos, o Estado não está desempenhando seu papel de articulador principal nas práticas de governança das experiências analisadas. Significa, na percepção dos atores inquiridos, que o Estado não tem sido eficaz. Em segundo lugar, está colocada a questão da integração das políticas públicas com incidência nos territórios, indicando que há sobreposição de políticas. Em terceiro lugar, aparece a questão da resistência à mudança, a Resiliência, também avaliada negativamente. Este aspecto é significativo, considerando que estas experiências têm como foco a atividade empresarial, na qual estar aberto à mudança, às expectativas do mercado em transformação constante, é na maioria das vezes decisivo para a sustentabilidade das experiências. O quarto aspecto, a eficácia das políticas, as respostas dos inquiridos indicam que as políticas com impacto territorial não estão suficientemente focadas nos resultados nos objetivos definidos coletivamente. Outros três princípios recebem uma avaliação de discordância em 28% das respostas, o que é significativo. Segundo os inquiridos, indicam problemas, em questões, respectivamente de liderança, do protagonismo social e da integração horizontal das políticas territoriais. Este último aspecto tem relação com a questão da integração das políticas públicas, ambas com impacto nos territórios, também avaliada negativamente. Das dimensões das práticas de governança territorial, a que tem maior incidência de respostas discordantes é a que se refere às relações dos atores nos processos associativos, seguida da dimensão referente à coordenação das políticas nos territórios. Tal situação tem relação com o que foi comentado em relação à desintegração das políticas, sejam de origem estatal ou não, além das questões referentes aos problemas de liderança e de resistência às mudanças. Coincide com percepções já formadas quando da visita a algumas experiências, ao conversar com atores envolvidos e dirigentes. Voltar ao sumário

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Mesmo que outras análises possam ser feitas a partir dos dados do Quadro 4, as análises aqui referidas sintetizam os principais desafios quanto às práticas de governança territorial das experiências analisadas.

5 Considerações finais A análise realizada mostrou que tanto os processos mais solidificados de governança territorial, quanto os que possuem uma prática mais recente, seja no Brasil ou em Portugal, carecem de práticas mais qualificadas, o que mantém válido o questionamento: até que ponto o padrão de governança territorial proposto teoricamente tem tradução em termos de realidade factual? Compartilha-se a concepção de autores como Abagli (2004), de que a apropriação do território unicamente a partir da sua capacidade de atrair investimentos e gerar lucratividade tende a consumir de forma predatória os recursos tanto naturais quanto sociais e culturais. Em contrapartida, o desenvolvimento local, tendo como suporte a noção de território, tende a estimular os laços de identificação e solidariedade, garantindo no longo prazo a sustentabilidade. A primeira opção está presente quando se observa que as estratégias de especificação de ativos territoriais utilizam fundamentalmente o associativismo como forma de viabilização de negócios lucrativos e não como princípio, conforme está previsto na legislação sobre Indicações Geográficas (Brasil) ou outras formas organizacionais correlatas existentes em Portugal. Antes de ser uma acusação, se trata de uma constatação, o que reafirma a hipótese orientadora deste estudo de que nas experiências de especificação de ativos territoriais este aspecto não parece ser devidamente considerado, tendo uma relação direta com seu sistema de governança territorial. Ou seja, o fato de que os sinais distintivos dos territórios têm uma dimensão coletiva parece não ser devidamente considerado. Nas entrevistas, ficou evidente a preocupação dos atores envolvidos nas experiências de IG ou DOC/DOP de que a questão da proliferação das figuras de proteção e certificação de produtos merece mais atenção. No mínimo, resulta em dificuldades por parte dos consumidores em avaliar as singularidades e diferenciais de qualidade dos produtos protegidos. Outro desafio é referente à estrutura de governança territorial das IG e DOC/ DOP. Trata-se de avaliar se as estruturas de governança territorial de tais experiências estão ou não devidamente apoiadas em mecanismos institucionais adequados. Experiências em Portugal estão estruturadas na forma de comissões nacionais, ou associações, que articulam a produção quanto ao apoio técnico, às normatizações legais, à regulação do volume da produção, à inserção dos produtos no mercado e ao marketing geral, principalmente no setor industrial. Em outras, principalmente no Brasil, as associações que articulam experiências têm dificuldades para aglutinar os envolvidos. Mesmo em Portugal, há casos em que as associações são pouco operantes, apenas cumprindo questões de legislação. Sem a pretensão de apontar ‘padrões ideais’, apenas refere-se que esta é uma dimensão que merece estudos mais aprofundados, para indicar qual a estrutura que melhor venha contribuir para a sustentabilidade das experiências. De maneira geral, em Portugal, comparativamente ao Brasil, percebe-se um maior profissionalismo comercial e de marketing em relação às atividades com produtos certificados. Voltar ao sumário

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Por fim, quanto ao impacto da especificação de ativos na qualificação do processo de desenvolvimento territorial, reafirma-se o que está presente em boa parte da bibliografia: é uma opção, não necessariamente a única e, em alguns casos, nem é a mais significativa. Outros estudos são necessários para aprofundar o debate e propor indicativos para a superação dos desafios apontados.

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S U M Á R I O

DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E COOPERAÇÃO INTERMUNICIPAL: A VIA DOS CONSÓRCIOS PÚBLICOS* Fernando Luiz Abrucio** Eliane Salete Filippim*** Rodrigo Chaloub Dieguez†

1 Introdução O tema da cooperação federativa tornou-se fundamental na agenda política e de pesquisa no Brasil. Isso tem ocorrido, principalmente, porque a dicotomia centralização versus descentralização mostra-se cada vez mais desgastada como chave para entender a dinâmica do federalismo brasileiro. Em vez desta lógica binária, parte importante dos estudos internacionais e nacionais realça a necessidade de construir mecanismos de coordenação e parceria entre os níveis de governo para resolver dilemas de ação coletiva e problemas das políticas públicas (ver, entre outros, Elazar (1987); Agranoff (2001); Abrucio (2005); Franzese (2010); Lício (2010)). Em consonância com esta visão, duas soluções intergovernamentais têm ganhado força no Brasil: os sistemas de políticas públicas, como o Sistema Único de Saúde (SUS) e seus correlatos noutros setores e as formas de associativismo territorial, em particular, o instrumento dos consórcios entre governos locais. Este texto trata da segunda solução intergovernamental, o associativismo territorial, mais especificamente a construção de Consórcios Públicos. A importância deste tópico federativo deriva da constatação de que os municípios não podem, em muitos casos, resolver sozinhos seus problemas de políticas públicas e obtêm melhor sucesso para resolver questões quando se associam (DANIEL, 2001; CRUZ, 2001; SPINK; TEIXEIRA; CLEMENTE, 2009). Assim ocorre em áreas, como Saúde, Resíduos Sólidos, entre outras, além de consorciamentos multissetoriais para o desenvolvimento (ABRUCIO; SOARES, 2001). *

Este texto é uma versão de parte do artigo: ABRUCIO, F. L.; FILIPPIM, E. S.; DIEGUEZ, R.C. Inovação na Cooperação intermunicipal no Brasil: a experiência da Federação Catarinense de Municípios na construção de consórcios públicos. RAP, Revista de Administração Pública (Impresso), v. 47, p. 1543-1592, 2013. A revista RAP autorizou a publicação parcial do texto original como capítulo de livro. ** Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). E-mail: <fabrucio@gmail.com>. *** Doutora em Engenharia de Produção e Sistemas pela Universidade Federal de Santa Catarina. Pós-doutora em Administração Pública e Governo na EAESP/FGV/SP. Docente do Mestrado Profissional em Administração, Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). E-mail: <eliane.filippim@unoesc.edu.br>. † Mestre em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Valec Engenharia, Construções e Ferrovias S.A., empresa pública vinculada ao Ministério dos Transportes. E-mail: <rodrigoodieguez@hotmail.com>. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-3

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Se aparentemente a melhor saída para os municípios é se associar, isto não quer dizer que necessariamente o farão e, se o fizerem, isso não garante que sua articulação intermunicipal será forte e/ou duradora. Na verdade, muitos estudos realçam as dificuldades para formar e manter fortes ou mesmo unidos os consórcios e outras formas de cooperação formal entre governos locais (DIEGUEZ, 2011; ABRUCIO; SANO, 2013). Diante desta realidade problemática, surgiram estudos analisando casos bem-sucedidos de consorciamento pelo país afora. Vias cooperativas advindas de lideranças municipalistas, de capital social regional, de indução pelos governos estaduais e derivados da Lei dos Consórcios Públicos, para ficar nas explicações mais citadas pela literatura, foram estudadas no processo de formação de consórcios. Pesquisa-se pouco, no entanto, as condições que geram a continuidade destas articulações intermunicipais. Este trabalho procura trazer mais elementos para a compreensão da cooperação intermunicipal no Brasil, a partir do estudo empírico da atuação da Federação Catarinense de Municípios (FECAM) na organização de consórcios públicos intermunicipais em Santa Catarina (Sul do Brasil).1 É um caso singular na experiência federativa brasileira, uma vez que os consorciamentos são produzidos por uma associação municipalista, a qual tem um papel importante não somente na formação como também na manutenção de tais arranjos intermunicipais. Desse modo, é possível observar e compreender como um arranjo associativo de governos locais, que vai além das unidades municipais de cada consórcio, consegue criar e multiplicar parcerias estáveis entre municipalidades. Embora limite a generalização das conclusões, a opção feita pelo estudo de caso permite compreender as características de uma experiência relevante e singular e, a partir do seu entendimento, podem surgir novas formas de ver um fenômeno maior (YIN, 2005). No caso em questão, a análise revela que o modelo adotado pela FECAM permite enxergar a formação e manutenção dos arranjos intermunicipais de maneira diferente da que usualmente aparece no país e nos principais trabalhos sobre o assunto. Isto porque a FECAM é, ao mesmo tempo, uma entidade que aparece como externa aos municípios – podendo, inclusive, mediar os conflitos entre eles –, mas também é resultado da junção entre eles, de modo que eles são parte integrante desta instituição. Há ainda poucos trabalhos sobre a dinâmica de implementação de Consórcios Públicos de Direito Público, que somente começaram a existir a partir da legislação de 2005. Assim, o estudo acrescenta conhecimento ao campo da cooperação intergovernamental num ponto pouco conhecido à medida que observa a inserção dos municípios catarinenses na associação do tipo advocacy, conjugada a um trabalho de assessoria técnica. O texto está organizado da seguinte forma: na primeira seção, após breve introdução, são expostas as principais questões colocadas pelos estudos sobre cooperação intergovernamental. No tópico seguinte, o desenho da pesquisa é apresentado. Na próxima seção, é descrita ação da Fecam no estímulo a consórcios públicos, por meio do fomento ao Consórcio de Informática na Gestão Pública Municipal (CIGA).2 1 Trabalho resultante de pesquisa financiada pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), quando foram estudadas 11 experiências de associativismo territorial no Brasil (ABRUCIO; SANO, 2013). 2 Entende-se aqui que os consórcios intermunicipais são aqueles formados por uma rede federativa em que se constituiu uma arena política de cooperação horizontal entre dois ou mais enVoltar ao sumário

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Conclui-se apresentando de que maneira este estudo de caso pode contribuir para o debate da cooperação intermunicipal.

2 Revisão de literatura: cooperação intergovernamental e consorciamento de municípios A constatação de que os municípios sozinhos não conseguem formular e implementar todas as políticas públicas tem os conduzido a buscar soluções cooperativas, especialmente por meio de consórcios e “a tendência consorciada tem, de fato, se fortalecido nos últimos anos, ganhando novos formatos institucionais, mas os empecilhos à cooperação continuam fortes” (ABRUCIO; SANO; SYDOW, 2011, p. 5). Diante dos problemas locais e de cooperação entre os governos, o caso de Santa Catarina é muito singular na Federação brasileira. Os municípios catarinenses têm constituído associações e federações, como é o caso da FECAM, como uma estrutura não só de advocacy – entendida como uma ação coletiva para identificar, adotar e promover uma causa e/ou determinados interesses dos associados (BRELÁZ, 2007) –, mas também como mecanismo para ajudar a gestão municipal de seus associados, preferencialmente de forma consorciada. Não há em nenhum outro estado uma estrutura associativa municipal que atue desse modo. Numa revisão da trajetória dos consórcios públicos no Brasil, Dieguez (2011) retoma que o consorciamento intermunicipal está previsto no Brasil desde a Constituição de 1937. Já Coutinho (2010) aponta que até a redemocratização eram poucos os consórcios públicos municipais e eles eram fortemente subordinados à política estadual. O fenômeno do consorciamento público se fortaleceu a partir da década de 1990 pela formação de redes federativas na busca de “melhor adequação entre as propriedades virtuosas da competição e da cooperação e da centralização e da descentralização.” (DIEGUEZ, 2011, p. 282). Desde a Constituição de 1988, eles têm se multiplicado pelo país e ganharam, mais recentemente, um novo marco legal, com a Lei n. 11.107/05 dos Consórcios Públicos. Este tipo de consorciamento pode também ser entendido como a articulação de capital social, que, para Bourdieu (1980), é o conjunto de relações e redes de ajuda mútua que podem ser mobilizadas efetivamente para beneficiar indivíduos ou grupos sociais, com vistas a manter ou reforçar seu estatuto e seu poder na sociedade. O encrustamento (embeddedness) é viabilizado a partir de vínculos e redes entre duas ou mais esferas que diminuem a sua distinção, gerando a base de normas e interações que contribuem para a realização de potenciais ganhos conjuntos. Tal relação pode ser alcançada por meio da aplicação criativa de novas formas de construção institucional e mudança organizacional, dependendo, desta forma, mais da maneira como as políticas públicas são formuladas e da existência de interesses compartilhados entre os atores envolvidos e suas capacidades de identificar tal confluência, do que de características histórico-culturais (CASTELLANO, 2007, p. 40-42). Os consórcios intermunicipais de saúde constituem a experiência setorial mais bem-sucedida e com maior número de estudos. Neves e Ribeiro (2006) destacam tes federativos municipais, voltada para a produção compartilhada de decisões sobre políticas públicas. Já a associação não envolve necessariamente a produção de decisões compartilhadas, podendo servir apenas para representação de interesses comuns e a federação é a reunião de associações. Voltar ao sumário

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que tais consorciamentos têm favorecido estratégias inovadoras que geram a produção de soluções regionais pactuadas. Salientam que as coalizões feitas em torno destes consórcios têm aumentado a cooperação entre os participantes, mesmo de diferentes partidos políticos. Em outros temas intersetoriais também têm crescido a mobilização pelo consorciamento. Entre os fatores que são citados na literatura como favorecedores do consorciamento intermunicipal, podem ser destacados os seguintes (ABRUCIO; SANO, 2013):

a. A existência de uma identidade regional prévia que abarque um conjunto de municípios, tornando-se um catalisador político e social que favorece a atuação conjugada. Normalmente este fenômeno é construído ao longo do tempo e/ou por um fato muito marcante que crie laços comuns, e tal identidade regional pode ser mais realçada caso haja forte capital social inscrito nas instituições locais. b. A constituição de lideranças políticas regionais que são capazes, mesmo em contextos adversos, de produzir alianças intermunicipais. c. Questões que envolvem “tragédias dos comuns”, isto é, problemas coletivos que atingem vários municípios de tal modo que a cooperação se torna necessária para que ninguém seja prejudicado. d. A lógica das políticas públicas pode impulsionar formas de consorciamento, especialmente quando suas regras sistêmicas e/ou seus mecanismos de indução financeira apontam neste sentido, como tem acontecido na área de Resíduos Sólidos, na qual a legislação definiu que o governo federal só repassa recursos a municípios que atuarem sob-regime de Consórcio Público. e. O apoio e indução do governo estadual e/ou federal é outro instrumento que pode incentivar a criação e manutenção de consórcios, reduzindo rivalidades e incertezas que possam existir entre os prefeitos. f. Pactos políticos, ad hoc, entre prefeitos e governadores podem favorecer o associativismo intermunicipal quando estão em jogo questões que favoreçam, pelo menos conjunturalmente, a ambos. g. A existência de marcos legais que tornem mais atrativa e estável a cooperação intermunicipal podem incentivar os atores a buscar formas de consorciamento. A promulgação da Lei dos Consórcios Públicos teve, em certa medida, este efeito.

Há vários aspectos que podem dificultar a construção de formas de cooperação no Brasil. Ao comparar o quadro geral de consórcios no Brasil e analisar detidamente 11 experiências, Abrucio e Sano (2011, p. 66-68) apontaram as seguintes variáveis como desfavorecedoras da cooperação intermunicipal: comportamento individualista e autárquico dos municípios; ausência de uma identidade regional, acoplada ao baixo capital social das instituições locais; brigas político-partidárias, entre prefeitos ou destes com o governador; engessamento do Direito Administrativo e de sua interpretação por parte dos Tribunais de Contas, que criam obstáculos ao associativismo intermunicipal; falta de indução federativa advinda dos outros níveis de governo, especialmente dos governos estaduais; gestão pública frágil, o que dificulta a obtenção de informação e conhecimento sobre a montagem de consórcios; os conflitos intergovernamentais em determinadas políticas públicas, como no caso da Educação e seu ineficiente “regime de colaboração”; e o lugar pouco destacado que a questão territorial e, particularmente, a do associativismo, ainda tem na agenda pública brasileira.

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No balanço entre fatores positivos e adversos, de um lado constata-se que as formas de consorciamento têm provavelmente crescido menos do que as necessidades de cooperação intermunicipal, mas, por outro lado, há um aumento e uma diversificação crescentes nos tipos de associativismo territorial no Brasil. Os avanços apontados pela literatura, no entanto, concentram-se fortemente na capacidade de formar consórcios, e a maioria dos estudos empíricos não analisa se houve continuidade destes arranjos intermunicipais. Como aponta Dieguez (2011, p. 293), a questão dos consórcios envolve entender não somente o que leva à sua criação, mas também devem ser explicadas as variáveis que garantem a estabilidade institucional dos consorciamentos.

3 Procedimentos Metodológicos Nesta seção apresenta-se o desenho utilizado na pesquisa que fundamentou este artigo. Adotou-se como estratégia de investigação o estudo de caso único, com a descrição mais próxima de um consórcio público. De acordo com Yin (2005), o caso único tem um enfoque holístico e permite entender melhor situações raras ou novas, como é o caso do Consórcio CIGA. Cabe ressaltar que o estudo de caso deve se cercar de várias fontes de pesquisa e dialogar com as explicações mais gerais, realçando a singularidade do objeto observado e como ele pode ser compreendido. Para Godoy (2010, p. 119), “[...] a especificidade do estudo de caso [...] está no tipo de questão que ele responde cujo foco de interesse está no individual, no específico”. Portanto, o objeto de análise é a cooperação intermunicipal, com foco consórcio público, o CIGA. Compreende-se que este olhar focalizado sobre este evento (a criação e condução do consórcio CIGA), permita fazer emergir reflexões acerca deste tipo de cooperação intermunicipal. Como recomendado por Godoy (2010), para dar robustez a um estudo de caso, deve-se fazer uso de múltiplas fontes de dados. Neste sentido, para a compreensão deste fenômeno particular estudado, a coleta de dados ocorreu nas seguintes fontes: estudo de casos correlatos, análise de documentos, realização de entrevistas semiestruturadas e observação direta da prática dos atores. Os documentos (atas, legislação, publicações) consultados foram aqueles disponibilizados pelo CIGA. Quatro entrevistas semiestruturadas e focalizadas foram realizadas com o Diretor Executivo da FECAM, com os Diretores Executivos do CIGA e da Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento (ARIS). Também foi entrevistada uma técnica do CIGA, no ano de 2011, e novamente para atualização de dados em 2013. Foram ainda realizadas três entrevistas com representantes de três municípios membros do consórcio CIGA, com a finalidade de observar a recepção da atuação do consórcio entre os associados. Para melhor observar os aspectos singulares deste consorciamento fomentado pela FECAM, fizeram-se também duas entrevistas com membros de outros consórcios públicos catarinenses. Para este estudo, a observação se deu também pela participação dos pesquisadores em eventos da FECAM e, particularmente, pela participação em reunião específica de difusão do consórcio CIGA em uma das associações de municípios filiada à FECAM. Os dados observados foram analisados segundo os mesmos critérios

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utilizados para a análise das entrevistas e dados documentais. Os critérios eleitos para busca e análise dos dados e que orientaram a organização, descrição e análise, tanto do caso CIGA, versaram sobre os seguintes aspectos: o tipo do arranjo; os fatores que explicam a formação e criação do arranjo; os mecanismos de indução; as fontes de financiamento; a estrutura administrativa e o setor de atuação; principais relações do arranjo; grau de autonomia; o processo decisório e a inovação; transparência, publicização e comunicação; os instrumentos de avaliação; participação social no arranjo; os resultados; dificuldades encontradas no momento da criação do arranjo; e, por fim, os fatores explicam a permanência e sobrevivência do arranjo.

4 Resultados e Análise O texto está organizado intencionalmente sem uma separação rígida entre apresentação e análise de dados, adotando assim uma estratégia que visa favorecer a reflexão acerca da realidade empírica no momento que ela é apresentada. O associativismo municipalista em Santa Catarina é um dos mais antigos e mais estruturados da Federação brasileira. O estudo de sua experiência singular é uma forma de entender o que há neste caso que poderia ser usado para compreender este caráter seminal, bem como o que existe nesta experiência que poderia ser utilizado para pensar a disseminação de tal associativismo territorial para outros estados. A origem do processo cooperativo aconteceu no nível microrregional nos anos 1960; a primeira associação de municípios do estado foi criada no interior do estado, em Joaçaba, em 1961. Foram criadas por iniciativa dos prefeitos, especialmente aqueles do Oeste, que percebiam certo abandono do interior do estado por parte do governo central de Florianópolis. Uma vez que enfrentavam dificuldades comuns e que, na maioria das vezes, extrapolavam tanto a capacidade de investimento quanto os limites de atuação dos municípios, tais prefeituras resolveram unir forças e criar associações de municípios, num contorno geográfico próximo às já estabelecidas relações anteriores de vizinhança e cooperação. Atualmente existem 22 associações de municípios em Santa Catarina.

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Figura 1: Associações de municípios pertencentes à FECAM

Fonte: FECAM (2013).

O caso catarinense, de formação de consórcios por meio de associação de municípios, parece ser um modelo institucional interessante, não só porque ele tem sido bem-sucedido na conformação desses arranjos, mas também porque o faz por meio de uma estratégia que diminui a desconfiança entre as partes, estabelece diálogo e negociação contínuos com os municípios e implementa este processo mediante uma estrutura profissionalizada e com maior capacidade técnica do que a dos próprios governos locais. A experiência deste associativismo regional e a necessidade de uma entidade que fizesse a interlocução destas associações com o governo estadual e federal fomentaram a criação da Federação Catarinense de Municípios (FECAM) em julho de 1980. Este arranjo associativo de base territorial é constituído de pessoa jurídica de direito privado, de natureza civil, sem fins econômicos, com tempo de duração indeterminado e sede administrativa em Florianópolis (SC). A FECAM tem atividades em diferentes áreas da demanda municipalista, mas o que a diferencia é sua atividade na organização de consórcios intermunicipais. Este foco de atuação originou-se na sua própria finalidade, expressa no Estatuto da FECAM, no Artigo 2: “integrar e promover a cooperação entre os municípios e suas associações, com a criação e participação em entidades da sociedade civil organizada, voltadas ao planejamento, ao desenvolvimento social e econômico local e regional.” A filosofia da cooperação para o enfrentamento de problemas nos quais haja interdependência dos municípios e que norteou a constituição e a natureza da FECAM tem fundamentado a sua ação no fomento e na articulação de consórcios nos mesmos limites geográficos onde já operam as associações de municípios. A partir da publicação da Lei dos Consórcios públicos de direito público, em 2005, da qual os dirigentes da FECAM participaram ativamente do debate, a entidade passou a protagonizar a articulação municipalista por meio da estratégia do Voltar ao sumário

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consorciamento, seguindo sua filosofia de unir forças para solucionar problemas comuns às regiões, racionalizar custos, garantir a continuidade da ação pública, minimizar os efeitos da polarização partidária e incentivar a participação dos municípios. Portanto, a FECAM atua diretamente na criação e organização de consórcios intermunicipais em diferentes áreas, balizando a atuação e acompanhando a efetividade da ação destes. Esta federação contribui de maneira significativa na cooperação intermunicipal de diferentes formas (PROBST, 2011). Diretamente, a FECAM organiza a criação do consórcio, chama para si a responsabilidade de instituí-lo, faz assessoria jurídica e suporte técnico e, em alguns casos, financia o início dos consórcios por meio de custeio para despesas com material de expediente, equipamentos, deslocamentos de profissionais e estrutura física. Indiretamente, a FECAM incentiva a criação de consórcios e fornece assessoria técnica e jurídica após o consórcio entrar em funcionamento.

4.1 O fomento da FECAM ao consórcio CIGA A FECAM fomentou diretamente a criação do consórcio CIGA (Consórcio de Informática na Gestão Pública Municipal) e da ARIS (Agência Reguladora Intermunicipal de Saneamento), que é uma agência constituída de forma igualmente consorciada. A FECAM apoia e orienta cerca de 30 consórcios públicos intermunicipais existentes no território catarinense (BRUSTOLIN, 2011). Nenhuma outra entidade municipalista brasileira tem esta abrangência na indução e acompanhamento de consórcios. Para tomar um caso ilustrativo da ação da FECAM no fomento aos consórcios intermunicipais, elegeu-se, neste estudo, a descrição do papel da FECAM na criação do CIGA, uma vez que este consórcio tem uma estrutura muito bem definida e está em expansão, o que indica seu sucesso. A partir de estudos técnicos de sua atuação na assessoria especializada na área de informática aos municípios, a FECAM propôs aos municípios a criação de um consórcio e desenhou toda sua estrutura administrativa e de serviços, bem como a forma de operacionalização.

4.1.1 Tipo do arranjo O Consórcio de Informática na Gestão Pública Municipal (CIGA) foi criado, por iniciativa da FECAM, em novembro de 2007. Trata-se de um arranjo de Direito Público com regime jurídico de Direito Público. Para motivar os municípios a participar do CIGA, a FECAM realizou reuniões e eventos nos quais divulgou os objetivos e vantagens do consorciamento e convidou os municípios a participar. Segundo Brustolin (2011), foram pelo menos duas reuniões em cada uma das 22 associações de municípios, além da realização de eventos estaduais, chegando a aproximadamente 50 eventos de divulgação e motivação para a participação dos municípios no CIGA. A área total de abrangência que este consórcio poderá atingir é a mesma dos municípios associados à FECAM, isto é, de 293 municípios. Todavia, inicialmente o CIGA foi constituído por apenas 13 municípios que celebraram o Protocolo de Intenções. No início de 2013 o CIGA já conta com 167 municípios consorciados, o que realça a expansão e o sucesso deste modelo associativo. O CIGA tem como objetivo desenvolver ferramentas de governança eletrônica, por meio do emprego de tecnologias da informação e comunicação (TIC). Visa ao

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desenvolvimento, implantação, capacitação, manutenção e suporte de sistemas de tecnologia da informação e comunicação, que permitam o aprimoramento da gestão pública e a inclusão digital.

4.1.2 Fatores explicam a formação e criação do arranjo Entre os fatores explicativos sobre a formação do arranjo, está a necessidade dos municípios adquirirem tecnologias de informação e comunicação (TICs) com menor custo. Os municípios ficavam reféns das empresas que prestam serviços de informática e comunicação oficial. Com o CIGA, além de uma economia de escala, as municipalidades têm maior segurança em perpetuar as ferramentas de informática que precisam e também podem ter maior controle sobre elas, determinando a forma como devem evoluir para atender suas especificidades (BRUSTOLIN, 2011). O consórcio não atua naquilo que já existe na informática dos municípios, mas no desenvolvimento de novas soluções. Como exemplo de seu foco de atuação, o CIGA criou o Diário Oficial dos Municípios (DOM/SC) eletrônico. Dessa maneira, antecipou-se às necessidades dos governos locais, criando uma estratégia para a publicação oficial que sempre se constituiu um problema. Com o DOM/SC, além do princípio da transparência, garante-se maior agilidade e a economia de recursos públicos. Entre os principais atores que agiram no processo de criação do CIGA, vale citar, além da FECAM, o seu centro de tecnologia – que primeiro percebeu a necessidade deste tipo de arranjo – e o CONFAZ-M/SC (Conselho de órgãos fazendários dos municípios de Santa Catarina) que entendiam como necessária a estruturação do consórcio. Cabe uma pequena observação aqui: o CONFAZ-M é mais um exemplo singular da riqueza do associativismo territorial de Santa Catarina. A aceitação do modelo institucional proposto no CIGA foi relativamente tranquila. O governo federal, por intermédio da Receita Federal, foi o que teve maiores dificuldades em reconhecer este consorciamento, negando-se, inicialmente, a dar validade jurídica ao DOM/SC. Entretanto, houve diálogo e negociação entre a FECAM e a União e as pendências foram resolvidas. O governo estadual não esteve envolvido na formação do consórcio, mas rapidamente o reconheceu, fator observado especialmente quando o DETRAN reconheceu a legitimidade do lançamento das multas de trânsito no DOM/SC. Por fim, vale ressaltar o rápido reconhecimento do CIGA pelo Tribunal de Contas de SC. Quanto à base legal, o arranjo foi formalizado após a promulgação da Lei sobre consórcio público de direito público (11.107/2005) e do Decreto Federal n. 6.017/2007. O CIGA está alinhado ainda aos seguintes ordenamentos: a) Lei Municipal, pois todos os municípios que se consorciam ao CIGA precisam ratificar esta participação por meio de Lei enviada à câmara de vereadores; b) Protocolo de Intenções do CIGA promulgado em 29/11/2007; c) Contrato de Consórcio Público, resultado da conversão do Protocolo de Intenções depois de sua ratificação por lei; d) Regimento Interno; e) Resoluções e atos expedidos pela autoridade do consórcio; f) contrato de programa estabelecido com os municípios consorciados. É importante destacar que os cinco primeiros pontos traduzem a natureza institucional e a estrutura organizacional maior do consórcio, ao passo que os contratos de programa viabilizam a operacionalização e a implementação do consorciamento, conferindo efetividade à gestão associada.

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4.1.3 Fonte de financiamento A fonte de financiamento do CIGA é 100% oriunda dos municípios associados. Quanto aos funcionários, a admissão ao quadro funcional do CIGA acontece mediante concurso público. O CIGA tem, no momento, três funcionários: Diretor Executivo e dois Técnicos em TI. Ressalta-se, que o princípio da profissionalização é fundamental as organizações incumbidas de coordenar os arranjos associativos territoriais. Apesar da equipe reduzida, o CIGA tem alcançado seus objetivos. Entrevistas realizadas no âmbito desta pesquisa mostraram a satisfação dos municípios com o DOM/SC. O fator de maior satisfação citado pelos usuários é o da economia gerada em relação à publicação impressa dos atos oficiais. Contudo, os usuários apontam o distanciamento do cidadão que ainda não conhece e não se interessa (na visão deles) pela consulta ao DOM. É possível que a aridez do jargão jurídico utilizado num Diário Oficial, ainda que de interesse local, cause estranheza e dificuldades para a população em geral. Observou-se que na estrutura do CIGA não existe a figura do conselho técnico, o que se constitui uma diferença organizacional relevante em comparação com outros consórcios. Usualmente, os conselhos técnicos dos demais consórcios contam com a participação dos secretários municipais. Comumente costuma haver também na estrutura dos consórcios as câmaras técnicas. Ambos, conselho técnico e câmaras técnicas, buscam conferir maior capacidade de articulação e capilaridade dos consórcios junto à gestão pública municipal, além de favorecer a convergência nas políticas públicas dos municípios.

4.1.4 Grau de autonomia Quanto à autonomia do arranjo do ponto de vista institucional, o CIGA tem grau de autonomia médio em relação à FECAM, pois ela lhe fornece a estrutura física e a legitimidade que necessita para alcançar seus objetivos. Em relação aos municípios consorciados, a dependência financeira é elevada, uma vez que o CIGA depende do que arrecada dos seus membros. Em 2011, a arrecadação mensal do CIGA foi de R$ 28.000; os menores municípios colaboram com R$ 224,00 e os maiores com R$ 2.464,00 ao mês. Já de janeiro a maio de 2013, a arrecadação do CIGA foi de R$ 298.478,00 (média de R$ 74.619,50/mês). Obviamente que não é desejada autonomia do consórcio em relação aos municípios associados, já que ele representa os interesses deles. O desejado é a velocidade de resposta às demandas. Autonomia deve ser conquistada em relação a interesses externos, como interferência partidária e de agentes não previstos no seu estatuto.

4.1.5 Processo decisório e a inovação O processo decisório deste arranjo territorial acontece por meio de uma fase prévia de legitimação na qual as políticas do consórcio são consensuadas entre seus associados. Assim que previamente consensuadas, as decisões de escopo mais abrangente e estratégico são tomadas de forma efetiva na Assembleia Geral. Já as decisões de caráter mais rotineiro e de manutenção são tomadas diretamente pelo Diretor Executivo. Constatou-se na pesquisa que as ações e documentos do CIGA são publicados no seu site e assembleias. Uma forma de verificar a efetividade da transparência dos atos oficiais municipais proporcionadas pelo CIGA se dá por meio do controle de Voltar ao sumário

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acessos das publicações no Diário Oficial dos Municípios de Santa Catarina (DOM/ SC). Técnica do CIGA informou aos pesquisadores que monitora as vistas ao DOM/ SC e que, no ano de 2012, houve 236.140 acessos, enquanto que de janeiro a junho de 2013 houve 184.000 acessos ao DOM/SC.

4.1.6 Instrumentos de avaliação Embora não haja instrumento específico e sistemático de avaliação de resultados, o CIGA serve-se da comparação entre o que foi planejado (Plano de trabalho anual do CIGA) e o que foi implementado (Relatório anual) para analisar seus resultados. Um dos indicadores utilizados é a economia estimada com a publicação dos atos no DOM/SC. Conforme análise do exercício de 2012, a economia de todos os municípios que utilizam o DOM/SC (principal Programa do CIGA) foi de R$ 21.223.240,00, quando somamos a economia estimada de cada município que publicou no DOM/SC.

4.1.7 Participação social no arranjo Observa-se que a participação do cidadão não ocorre de maneira direta, pois quem participa do CIGA são os municípios. O CIGA recebe, no entanto, sugestões e solicitações vindas do público em geral por telefone e por meio do site. Estas sugestões são incipientes em número e constituem um fraco mecanismo de interlocução com o cidadão.

4.1.8 Fatores explicam a permanência e sobrevivência do arranjo Segundo um dos entrevistados (BRUSTOLIN, 2011), são pontos positivos da atuação do CIGA a disseminação de conhecimento e experiências existentes e/ou novas para os municípios, a implementação de políticas de informação e comunicação mais completas e padronizadas, a criação de procedimentos para publicação oficial. Quanto aos pontos negativos, destaca o entrevistado que ainda existe uma limitação de recursos financeiros e precisariam ter uma equipe maior. Aponta, ademais, uma grande dificuldade para o consorciamento nestes moldes no Brasil: o engessamento político-burocrático presente na Lei de Consórcios Públicos, como o observado na necessidade, expressa na Lei, de que algumas decisões do consórcio sejam ratificadas por todos os municípios. Esta regra faz com que em cada mudança e/ou avanço necessários ao CIGA, tenha que haver uma tramitação específica em todas as câmaras municipais para ratificação de tal alteração. Cabe comentar que esta dificuldade de governança não pode gerar um argumento que reduza o peso dos municípios nas decisões consorciadas. Mas é preciso ter maior flexibilidade para que os governos locais não acreditem que o custo de consorciamento seja maior do que atuar solitariamente no campo das políticas públicas. Os dirigentes do consórcio não percebem maiores dificuldades na execução das atribuições do CIGA, e explicam a permanência e sobrevivência do arranjo por três fatores: a) programas objetivos que atendem questões pontuais dos municípios; b) bom canal para resolver problemas comuns dos municípios; e c) estreita relação com a FECAM. É interessante notar que, na visão dos seus dirigentes, há pouca preocupação de que o CIGA se enfraqueça. Ou seja, acreditam que ao atender bem à demanda por economicidade, os gestores públicos municipais tenderão a manter o arranjo. Voltar ao sumário

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De qualquer modo, é essencial ressaltar que sem o aval e o apoio técnico da FECAM, o CIGA provavelmente não teria existido e teria muitas dificuldades de se manter e de se expandir. Aliás, a expansão do modelo foi bastante significativa: ele começou em 2007 com 13 municípios associados, e em 2011 chegou a 81 membros, em 2013 já são 167 municípios consorciados. O sucesso do CIGA, como de resto da própria atuação de apoio ao consorciamento da FECAM, também se expressa em atrair os pequenos e médios municípios da mesma maneira, enquanto na maioria das outras experiências parece que os consórcios públicos intermunicipais concentram-se fundamentalmente nas municipalidades menores (FREITAS JÚNIOR; MESQUITA, 2010). Isso pode ser resultado da atuação integradora e legitimadora da FECAM, que representa o conjunto dos municípios catarinenses, levando assim à atração de municipalidades médias que geralmente preferem não dividir poder com os pequenos. Sobre a possibilidade de interesses conflitantes com outras fontes de serviços similares, como o Diário Oficial do Estado (DOE), não se percebeu a existência de conflito, pois muitos municípios ainda utilizam o DOE para suas publicações, mesmo aqueles que têm o DOM/SC como órgão oficial. Além disso, não se permite a publicação de terceiros (que não municípios) no DOM/SC, os quais continuam a usar o DOE. Em relação aos aspectos político-partidários e às disputas deles originadas, parecem não afetar de maneira significativa os arranjos, seja a FECAM ou os consórcios (PROBST, 2011). É possível que a atuação bem focada e pragmática do CIGA não represente ameaça ao status quo. Contudo, quando os consórcios atingirem áreas que constituem arenas de disputas partidárias, este componente pode fazer emergir conflitos de interesse. Observa-se que estas situações conflitantes ocorrem mais frequentemente nas Regiões Metropolitanas e/ou de forte densidade urbana, com maior ou menor conurbação, o que não é o caso da grande maioria dos municípios catarinenses.

5 Considerações finais A FECAM atua na criação e na manutenção de consórcios intermunicipais por meio da articulação de temas de interesse, partindo de demandas por soluções conjuntas que atendam às problemáticas dos municípios. A adesão do município aos consórcios propostos pela FECAM é livre e se dá conforme o consórcio vai apresentando resultados, especialmente aqueles voltados para a eficiência e a economicidade. Na experiência estudada, observou-se que o argumento da racionalização de recursos é o principal motivador para que o município adote a solução da cooperação intermunicipal. Percebe-se, portanto, uma elevada dose de pragmatismo que orienta a ação dos gestores públicos municipais em Santa Catarina. A saída pela formação de um consórcio fundada nas vantagens econômicas, no caso da FECAM, não é contraditória com a filosofia do associativismo, uma vez que esta instituição é que gerou o colchão de legitimidade e credibilidade que dá base à cooperação. Contudo, é necessário refletir se este aspecto que estimulou a construção da cooperação intermunicipal será suficiente para garantir a sustentabilidade destes consórcios públicos municipais ao longo do tempo. Se, por um lado, a soma do histórico associativista catarinense com o modelo instituição municipalista mediadora fundada em forte profissionalização, ajudando assim municípios mais frágeis do ponto de vista administrativo, são aspectos Voltar ao sumário

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que favorecem a estabilidade do modelo, o conflito com o governo estadual, por conta das SDRs, pode levar a um choque de legitimidades com os prefeitos. Este é um dilema a ser enfrentado no caso da FECAM, o que traz uma lição importante para outras experiências de cooperação intermunicipal: é preciso garantir que a ação cooperativa horizontalizada não tenha choques com as dimensões verticais do federalismo, em particular na relação com o poder político estadual. Entre os aspectos mais positivos da experiência e que pode ser disseminado para outros casos similares, destaca-se que o fundamento da ação da FECAM no consorciamento intermunicipal vem da sua ação de advocacy legitimada junto aos municípios. Outro aspecto relevante nesta experiência é a grande dose de conhecimento técnico e capacidade de gestão presente na equipe da FECAM e do consórcio observado, o CIGA. A especialização na prestação de serviços aos municípios permite que a FECAM gere, acumule e dissemine soluções para as demandas dos municípios. Este aspecto favorece a perspectiva da continuidade da experiência do consorciamento. A construção e a manutenção do consorciamento dependem da capacidade de combinar inovação institucional com inovação no conteúdo da política. O caso apresentado neste estudo, sobre o CIGA, revela um duplo caráter inovador: na forma como se desenvolveu o consórcio, pela via de uma associação de municípios e pelo conteúdo do consorciamento, que é a produção de um Diário Oficial eletrônico para os municípios, cortando custos e, ao mesmo tempo, aumentando a transparência governamental. O que se pode depreender deste caso é que muito do sucesso dos arranjos associativos territoriais está na capacidade de conciliar inovações na forma – rompendo com o modelo muito homogeneizador e compartimentalizado do federalismo brasileiro – e no conteúdo, uma vez que a permanência e a aceitação de tais institucionalidades de consorciamento vinculam-se bastante à obtenção de resultados concretos para um problema de política pública, o que exige muitas vezes um ângulo diferente do padrão até então prevalecente. Quanto aos aspectos mais problemáticos da experiência estudada, aponta-se, primeiramente, a necessidade de fortalecer a participação efetiva da sociedade civil, seja na FECAM, seja nos consórcios por ela fomentados. A criação de canais para efetivar a participação e o controle social, indicadores-chave para a análise de arranjos associativos, poderá fornecer transparência e possibilidade de responsabilização maior para as atividades da FECAM e dos consórcios intermunicipais, além de propiciar a interface com os cidadãos residentes neste território, cujo atendimento de suas demandas é o foco da ação dos governos. Sugere-se, por exemplo, a criação na estrutura decisória dos consórcios de um mecanismo para a participação dos conselhos de políticas públicas que existem em todos os municípios, conforme sua área de atuação, coerente com a dos consórcios. Outro aspecto que apresenta uma oportunidade de melhoria que pode nortear esta e outras experiências de consorciamento, é a implantação de cultura de mensuração dos resultados, por meio da adoção de indicadores de desempenho e de controle sistemático da performance destes indicadores, dando ciência dos mesmos tanto aos municípios associados quanto à sociedade civil. Cabe ressaltar que no aspecto das relações com o poder público de outras esferas, tanto o governo estadual quanto o federal não têm atuado fortemente nesta experiência – no caso estadual chega até a haver uma competição. Para construir um Voltar ao sumário

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bom ambiente de consorciamento, é preciso que haja relações menos competitivas entre o governo estadual e as entidades municipalistas. Evidentemente que conflitos são corriqueiros numa Federação, mas é preciso ter canais de diálogo e respeito mútuo – o pluralismo federativo, tal qual definido por Burgess (1993). O que está em jogo, do ponto de vista do futuro do associativismo territorial brasileiro, é que o governo estadual muitas vezes compete pelo controle dos municípios, quebrando a lógica da autonomia, que permite semear um espaço para os arranjos intergovernamentais dentro do federalismo democrático. Para fortalecer a lógica de consorciamento intermunicipal, seria interessante se os demais níveis de governo se somassem à FECAM no processo de articulação dos municípios para objetivos regionais comuns. O fato é que quanto mais apoio vertical houver às formas de consorciamento, mais chances haverá de se construir uma sólida articulação entre os municípios.

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PARTE II TERRITÓRIOS INTERCULTURAIS, TERRITORIALIDADES EM CONFLITO E IDENTIDADE REGIONAL


S U M Á R I O

CONFLITOS TERRITORIAIS NO NORTE DO RIO GRANDE DO SUL: HISTÓRICO DE POLÍTICAS PÚBLICAS QUE PROVOCARAM A TERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO DE INDÍGENAS E AGRICULTORES Henrique Aniceto Kujawa*

1 Introdução Beatriz Perrone-Moisés (1992, p. 115) ao falar da política indigenista do Brasil Colonial utiliza os adjetivos “contraditória, oscilante, hipócrita”. Entendo que estes mesmos adjetivos podem ser utilizados como síntese da política territorial indígena no Rio Grande do Sul durante o século XX e início do século XXI. A constante oscilação na definição de quais são as terras destinadas aos indígenas e, principalmente, a forma como isso foi e está sendo feito produziu, contraditoriamente, uma oscilação do direito indígena e não indígena sobre as mesmas porções de terra promovendo a territorialização e desterritorialização de diferentes grupos sociais. A análise da trajetória destas políticas públicas permite compreender de que forma elas contribuíram na constituição e reconstituição de territorialidades interferindo em modelos e propostas de desenvolvimento. Podem-se identificar quatro momentos em que na aplicação da política territorial indígena foi definindo o que poderia ser considerado território indígena e não indígena, a saber: a) nas primeiras décadas do século XX quando cria os Toldos Indígenas e considera as demais terras como devolutas e portanto disponíveis para a colonização; b) nas décadas de 1940-60 quando reduz as áreas demarcadas como Toldos Indígenas para a criação de reservas florestais e, principalmente, para vender para agricultores sem-terra; c) na década de 1990 quando restitui os limites dos Toldos Indígenas, expulsando os agricultores que tinham comprado estes lotes do Estado e moravam nestes locais há décadas e restitui o direito indígena sobre este território; d) na última década constitui-se a demanda indígena pela ampliação das atuais e/ou criação de novas Terras Indígenas ocupadas por agricultores desde as primeiras décadas do Século XX, colocando novamente indígenas e agricultores na disputa de um mesmo território. *

Mestre em História. Doutor em Ciências Sociais. Professor titular da Área de Ciências Humanas e Jurídicas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais. E-mail: <hkujawa@unochapeco.edu.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-4

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Objetivamos com este texto fazer o resgate histórico destas diferentes fases buscando trazer elementos que possam contribuir para a compreensão e análise das razões que levaram a adoção destas políticas em cada um dos períodos e de que forma elas produziram processos de territorialização e desterritorialização. Metodologicamente este texto foi construído através de revisões bibliográficas, de fontes documentais e a partir do acompanhamento sistemático que o autor faz destes conflitos na região norte do Estado que compõem diferentes projetos de pesquisas. É preciso esclarecer que a abordagem deste texto faz um recorte temporal, século XX e geográfico, Rio Grande do Sul. O referido recorte geográfico não quer produzir uma falsa compreensão de que a política territorial indígena no Rio Grande do Sul e seus efeitos são diametralmente distintos do restante do país, sabe-se que a Coroa Portuguesa, no período colonial como no Estado Brasileiro (período Imperial e Republicano) as políticas indigenistas seguiam uma padronização em todo território. Por outro lado, a unificação das políticas não podem nos gerar a impressão de que não houveram ou não há especificidades regionais frutos do processo de ocupação/colonização histórica e suas formas de atrelamento aos projetos econômicos, sociais e políticos de integração aos interesses coloniais e, posteriormente de desenvolvimento do projeto de Estado Nação. É justamente destas especificidades que vamos nos ocupar. Da mesma forma ao fazer-se o recorde temporal do século XX, não significa ignorar que houve um conjunto de efeitos da política territorial indígena, no rio Grande do Sul, antes deste período. As ações dos bandeirantes iniciam-se no século XVII já fazendo incursões em busca de indígenas que pudessem se transformar em mercadorias como mão de obra escrava e toda a ação missioneira que resultaram na construção das diferentes reduções jesuíticas (GOLIN, 1998). Mesmo o século XIX foi palco de intensas ações indigenistas no Rio Grande do Sul, desde D. João VI 1 que ao chegar adota medidas para garantir a viabilização dos seus projetos de expansão territorial e de seus interesse na região do Prata, quando posteriormente, durante o período imperial, um conjunto de ações foram adotas no intuito de permitir a expansão econômica para o Oeste do Paraná e Santa Catarina e Norte do Rio Grande do Sul, buscando apaziguar os indígenas kaingang, agrupá-los em áreas determinadas (Toldos) e, na medida do possível, utilizá-los como mão de obra em projetos estratégicos como foi o caso de construção de novas estradas e vias de acesso que ligassem São Paulo ao Rio Grande do Sul (LAROQUE, 2000; 2007; CAFRUNI, 1966; TECHAUER, 2002 ). Portanto, o recorte temporal está relacionado aos limites físicos deste texto; a clareza de que após a proclamação da República no Rio Grande do Sul (assim como no conjunto do Estado Brasileiro) adota-se uma nova postura frente à questão indígena constituindo, desconstituindo e reconstituindo territorialidades. Subdividimos o texto em dois momentos, para além desta breve introdução e considerações finais. Num primeiro momento buscaremos descrever cada um dos quatro momentos supracitados e fazer um esforço de análise dos possíveis fatores que levaram o Estado a produzir, em cada um dos períodos políticos que no decorrer da história se demonstraram contraditórias e conflitantes provocando a territorialização e a desterritorialização de agricultores e indígenas. Num segundo momento buscaremos entender as territorialidades em conflito na atualidade. 1 Uma das ações de D. João VI foi a Carta Regia autorizando a “guerra justa” contas os Kaingang que resistissem ao processo de expansão Portuguesa, por este expediente estavam autorizada a organização de milícias para caçar, aprisionar e escravizar “índios selvagens” (CUNHA, 2009). Voltar ao sumário

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Conflitos territoriais no norte do Rio Grande do Sul...

2 Constituição e desconstituição de territorialidades A trajetória das políticas adotadas pela coroa portuguesa e posteriormente pelo Estado brasileiro embora possa ter diferentes centralidades em cada momento histórico, sempre foi marcado pelos binômios “preservação-extinção”, “integração-autonomia”, “tutela – independência”; atenção baseada em princípios religiosos (ações da igreja e dos missionários) – laico (ação do Estado), tendo o modelo de desenvolvimento e a posse da terra como elementos fundamentais das disputas. Não é nossa pretensão, no âmbito deste artigo, fazer um resgate minucioso de toda a legislação que regulamenta a relação indígena com o Estado português e brasileiro, mas como o objeto da nossa reflexão é o Rio Grande do Sul vamos abordar alguns aspectos que se relacionam com este espaço geográfico e com os índios Kaingang. Os Kaingang pertencem à família linguística dos macro Jê e ocuparam o território do centro-oeste e sul do Brasil. Na região Sul (PR, SC e RS) viveram até o final do século XVIII e início do século XIX com um relativo isolamento, tendo alguns poucos contatos com missionários jesuítas espanhóis. Este distanciamento da sociedade branca deve-se, simultaneamente, ao pouco interesse dos portugueses por estas terras e pelo caráter de resistência dos Kaingang, marcando com violência os primeiros contatos com os “intrusos”. Esta realidade muda com a ampliação do interesse pelo gado sulista e com a intensificação das atividades de tropeirismo, exigindo a constituição de caminhos mais curtos e menos penosos2 que ligassem as vacarias (do mar e dos pinhais) com São Paulo e, também, posteriormente, com o interesse de ocupação dos campos de Guarapuava e Palmas. A resistência Kaingang era tamanha que levou D. João VI, através das Cartas Régias de 1808 e 1809, pelo princípio da “guerra justa”, autorizar/determinar a possibilidade de perseguir, matar e aprisionar (dando o direito a quem os aprisionasse, de utilizá-los como escravos) os índios (principalmente os Kaingang) que estavam dificultando os interesses econômicos em direção ao Sul. Muito embora a possibilidade de escravização indígena tenha sido revogada pelo Ato Adicional de 1834, em nada se modificaram as ações de perseguição e desintegração dos grupos indígenas que se interpunham aos interesses de expansão econômica. Principalmente após a Lei de Terras de 1850, a política do Estado passou a ser o processo de aldeamento dos indígenas para agrupá-los em determinadas áreas, liberando as demais, por onde eles circulavam em busca de suas caças, pesca e coletas, para serem destinada à colonização. Laroque (2000) realiza um extenso estudo das relações estabelecidas entre o Império Brasileiro (1822-89), através das províncias, com os índios kaingang, na tentativa de concentrá-los em determinadas aldeias. O referido autor demonstra que o Estado se utilizou dos conflitos internos entre as tribos kaingang e, simultaneamente, da redução da possibilidade dos índios sobreviverem em seu habitat original para contar com a ajuda de lideranças indígenas no processo de convencimento dos demais para se aldearem ou, então, na perseguição dos grupos que resistiam ao seu modo de vida. 2 Souza Faria (1728-30) construiu o “Caminho da Mata” passando pelo litoral catarinense e atingindo os campos de São Joaquim, Lages e Curitibanos. Mais tarde Cristóvão Pereira Constrói o “Caminho das Tropas” (1730 – 32) ligando os campos de Lages a Vacaria dos Pinhais no norte gaúcho (LAROQUE, 2000). Voltar ao sumário

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2.1 A delimitação dos toldos e a reconstituição da territorialidade indígena. Em que pese o esforço de aldeamento durante o século XIX, no início do século XX eram intensos os conflitos entre os indígenas e os colonizadores. Gagliardi (1989) relata conflitos em São Paulo e Santa Catarina, bem como as denúncias feitas no XVI Congresso Internacional de Americanistas, ocorrido em setembro de 1908 em Viena, de massacres realizados aos índios Kaingang no Sul do Brasil. Em solo nacional, no mesmo período, ocorre um debate na imprensa paulista e carioca, bem como na Revista do Museu paulista entre HermanVon Ihering, que denuncia os constantes ataques dos índios Kaingang no sul do país e defende a tese de que diante da resistência indígena ao processo de civilização a solução seria o seu extermínio. Posição contrária foi expressa por várias vozes positivistas, entendendo que o Estado deveria assumir a tarefa de proteger os indígenas, constituindo espaços para eles, para que, gradativa e voluntariamente, se civilizassem.3 Um dos pontos centrais do debate indigenista no início do século XX é o papel que o Estado deveria cumprir na relação com os indígenas. A tese que prospera é a dos positivistas de que o Estado deveria, através de uma política laica, desenvolver uma estrutura de proteção e integração dos povos indígenas. Fruto deste pensamento positivista, com atuação destacada do Marechal Rondon, surge o Serviço de Proteção aos Índios e Localização dos Trabalhadores Nacionais (SPLITN), em 1910, buscando afastar a atuação missionária e clerical e desenvolver uma estrutura do estado que atendesse à necessidade de proteção e integração dos indígenas. É neste contexto histórico e inserido neste debate, fortemente influenciado pelos ideais positivistas encampados pelo Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), que o Estado Gaúcho intensifica uma política de demarcação das Terras Indígenas. Este processo foi liderado pelo Engenheiro Carlos Torres Gonçalves, então chefe da Divisão de Terras e Colonização (1909-1928). Cabe ressaltar que Gonçalves possuía uma relação estreita com lideranças positivistas nacionais dos quais se destacam Miguel Lemos, Teixeira Mendes e Marechal Candido Rondon e, a este último, deve-se as preocupações, elaborações e ações práticas relacionadas aos povos indígenas (PEZAT, 1997). Claro que, somado a preocupação com a proteção fraternal aos indígenas devemos lembrar que fazia parte da doutrina positivista a defesa de um estado forte capaz de desenvolver a economia, através da sua diversificação, da ampliação da produção de alimentos, do desenvolvimento de estradas e indústrias. Pelos fatores citados e pela existência de um grande contingente de filhos de imigrantes europeus que haviam chegado no final do século XIX e precisavam de novas terras para se estabelecer, o Estado Positivista passou a ter uma grande preocupação com a terras devolutas e com o processo de colonização. Em relação ao controle do estado sobre as terras devolutas que lhes eram de direito, Júlio de Castilhos e depois Borges de Medeiros desenvolvem um marco regulatório4 e ações sistemáticas para identificá-las e destiná-las aos projetos de colonização durantes as primeiras décadas do século XX. Simultaneamente, aos projetos de colonização, manteve-se a preocupação com os nacionaes e com a população 3 Pezat (1997) faz um amplo estudo sobre o pensamento positivista, sua relação com o Partido Republicano Rio-Grandense e a política indigenista. 4 Dentre as principais normas que regulamentaram a ação do Estado do Rio Grande do Sul na questão fundiária estão a Lei Estadual de Terras de 1899, Decreto 313 de Julho de 1900 e o Regulamento de Terras de 1922. Voltar ao sumário

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indígena. Em relação aos primeiros desenvolvem-se projetos de colonização mistas e mecanismos de incorporação dos mesmos nas vendas dos lotes medidos e com posse efetiva. O decreto Estadual 313/1900 é explicito na defesa de que os posseiros nacionais e outros agricultores carentes teriam que ter condições facilitadas para a aquisição e pagamento do lote incluindo a possibilidade de pagar em serviço (RÜCKERT; KUJAWA, 2010, p. 125-128). Na expectativa de proteção aos índios e constituição de novas áreas para loteamento colonial e venda para os descendentes de imigrantes, o Estado do Rio Grande do Sul demarca e delimita, entre 1911 e 1918, onze áreas indígenas5, em terras consideradas devolutas e, portanto, de sua propriedade. Milhares de lotes são vendidos para os colonos. Percebe-se que o estado, ao fazer estas demarcações e loteamento, define o território a ser destinado para os indígenas e o território para os colonos. Se considerarmos que, antes disso, os indígenas circulavam por todo o território, a demarcação das áreas indígenas é, ao mesmo tempo, um cerceamento para os povos ameríndios e a constituição do direito de propriedade para os colonos mediante a compra e a escrituração de lotes. A constituição oficial dos Toldos é a culminância de um política de restrição do território indígena que vinha se intensificando desde meados do século XIX e representou paradoxalmente uma garantia legal para os indígenas e um processo de desterritorialização e reterritorialização. Os indígenas que, pela sua relação com o espaço, com os recursos naturais e características culturais, circulavam por vastas áreas e nelas buscavam o sustento e, simultaneamente, garantiam a sua organização social em torno dos pais e pai-bang (LAROQUE, 2000) passaram a viver em espaços restritos e, inclusive, reunindo-se nos mesmos toldos, lideranças historicamente rivais. As compreensões de espaços, de fronteiras, de relação com a natureza presentes na política indigenista são completamente distintas das cultivadas historicamente pelos indígenas. A lógica tutelar e integracionista do Estado brasileiro busca fazer que os indígenas assumam gradativamente a lógica de desenvolvimento eurocêntrico. Ao mesmo tempo, a ampliação do processo de colonização, através da venda de lotes, reforça a perspectiva dos colonos, em sua grande maioria descendente de imigrantes, como modelo social e econômico representante do “verdadeiro” desenvolvimento.

2.2 A destinação de terras indígenas historicamente demarcadas para assentamento de agricultores: a produção de novas territorialidades A constituição dos Toldos Indígenas, através de sua delimitação e demarcação oficial não representa a interrupção das pressões sobre suas terras provocadas pela expansão agrícola, pela exploração da madeira e pela expansão demográfica. O processo de intrusão em terras ainda consideradas devolutas, principalmente nas chamadas áreas de floresta protetora (RÜCKERT; KUJAWA, 2010) e em áreas indígenas era intenso. Vários fatores contribuíram para a utilização das áreas indígenas por não indígenas, destacamos dois. O primeiro é a perspectiva teórica que orientava as políticas indigenistas objetivando promover a integração dos mesmos na sociedade 5 Os Toldos criados foram: Cacique Doble (1910), Carreteiro ( 1911), Caseiros (1911), Inhacorá (1911), Ligeiro (1911), Nonoai(1911), Serrinha ( 911), Ventarra ( 1911),Guarita ( 1917), Votouro Kaingan ( 1918) e Votouro Guarani (1918). Voltar ao sumário

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nacional e, simultaneamente, tornar a áreas indígenas sustentáveis, ou seja, cada uma das áreas indígenas deveria produzir recursos alimentícios e financeiros para o seu sustento, cabendo aos administradores locais desenvolverem ações no intuito de garantir esse provento.6 Neste sentido, a exploração das riquezas florestais se torna uma política oficial de alternativa para arrecadação financeira. Isso fica claro na justificativa dada pelo Estado do Rio Grande do Sul em 1941 quando reduz as áreas indígenas e cria reservas florestais. Motiva esta proposta o fato de que o Serviço Federal de Proteção ao índio, que, até agora, somente administrava o Toldo Ligeiro, resolveu ampliar sua ação aos demais existentes no Estado e seus delegados, para extrair madeira destinada para a construção de suas casas, estão explorando as matas destinadas aos índios, tendo até concluído um contrato para esse fim no valor de 30 contos de reis. Esta ação poderá fazer que sejam devastadas as florestas que ainda conservam a flora típica dessa região” (apud ASSEMBLEIA LEGISLATIVA DO RIO GRANDE DO SUL, Relatório da CPI do Índio, fls. 31-32).

A mesma CPI deixa muito claro que haviam contratos firmados entre o Serviço de Proteção ao Índio e particulares para extração de madeira. No caso específico da TI de Nonoai, durante muitos anos, estes contratos foram com a empresa Hermínio Tissiani e Sartorreto e Cia. Ltda e, na década de 1960, houve uma nova licitação onde a empresa Julio Gasparotto comprou o direito de retirar três mil pinheiros.7 Mas, a questão central é que o processo de exploração da madeira não se dava apenas a partir dos contratos formais. Estes contratos acabavam sendo apenas uma porta de entrada para a derrubada e roubo generalizado das riquezas florestais. Uma segunda questão a ser ressaltada é pressão existente pela expansão da fronteira agrícola gerada pelo processo de modernização da agricultura e da formação de um número significativo de famílias de agricultores sem terra ou que buscavam terras mais propícias para a sua atividade. Neste contexto, a exploração das terras indígenas passou a ser uma opção, intensificando, desta forma, as práticas do intrusamento e do arrendamento. Entendemos como intrusamento os processos não formais de ocupação de terras indígenas por posseiros que faziam o “arranchamento” e o cultivo de pequenas lavouras. Por serem informais não significa que não tinham o consentimento dos administradores do Estado e de lideranças indígenas numa rede que envolvia vantagens financeiras, processo de corrupção, relações de poder e violência. Carini (2005, p. 152) ao tratar deste tema, tendo como objeto de estudo a Terra Indígena de Serrinha explicita. Os acertos com os guardas florestais, responsáveis pelo posto de fiscalização, ou com os próprios diretores de terras públicas, visando à abertura de roças, a retirada de madeira 6 A ideia de aproveitamento econômico das terras indígenas apreça categoricamente, apenas em 1963 no Decreto 52.339 (Regulamento do Ministério da Agricultura) que estabelece como responsabilidade da agência indigenista “VI- executar trabalhos de aproveitamento econômico das terras indígenas e dos seus produtos, bem como de estimulo ao cultivo e defesa racional do solo e a criação de animais;”, Contudo temos que lembrar que dentro dos pressupostos positivistas, que orientaram a criação do SPI e, em grande mediada a sua administração, está muito presente a concepção evolucionista que entendia que a situação indígena era transitória e que fixação num território e o desenvolvimento da práticas econômicas e da agricultura contribuiria para a construção de valores civilizatórios. Um estudo panorâmico destas políticas pode ser encontrado em Lima (2005). 7 Os contratos com a primeira empresa, pelas informações prestadas pelo responsável do SPI para a CPI, teriam sido queimadas junto com a sede do Posto Indígena de Nonoai. Voltar ao sumário

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e arranchamento definitivo, eram frequentes e envolviam o pagamento de propinas, promessas, parcerias e arrendamentos.

A prática do arrendamento era fruto de contratos estabelecidos entre o SPI, através do administrador do Posto Indígena com agricultores ou pequenos fazendeiros onde se estabelecia o pagamento de 20% da produção para o Posto Indígena. Esta prática era amplamente adotada como pode-se perceber pelo informe que o representante do IGRA (Instituto Gaúcho de Reforma Agrária) à CPI do Índio, através do depoimento de Israel Farrapo Machado mencionando “que ao ficar sabendo oficialmente do problema de intrusão em Nonoai, em 1963, solicita um relatório ao chefe da secção de Faixa de Fronteira, Sr. João Muniz Reis, feito em julho de 1963, onde se constata cinquenta e três arrendatários que mantinham contratos com o Posto Indígena, e quinze intrusos chamados ‘sem terra’ “ (Relatório da CPI, fl. 33). Salienta-se que há uma distinção muito clara da situação dos arrendatários, considerados legais, que tinham contratos e os intrusos que entravam na área, mesmo que muitas vezes com o consentimento do administrador do posto indígena, mas que não tinham contrato formal. Sebastião Lucena da Silva, chefe da inspetoria Regional do SPI em ofício (197 de 04/05/1967) ao Promotor de Justiça de Nonoai menciona que “(...) sendo-lhes possível recorrer desde logo aos interditos possessórios para expulsar os intrusos, procurou, para evitar a eclosão de maiores problemas sociais, legalizar a situação de muitos deles via contrato de parceria ou locação” (Relatório da CPI, fl. 115). Embora haja a distinção entre intrusamento e arrendamento parece que, ao menos no caso de Nonoai, a prática da cobrança, por parte do posto indígena, do arrendamento de 20% era amplamente adotada também para os intrusos, resultando, inclusive, na prática de violência com os agricultores que não aceitassem fazer o referido pagamento. O promotor de Justiça de Nonoai Miguel Ermany Guedes em correspondência ao Chefe do SPI de Curitiba relata que recebe constantemente reclamações e pedidos de ajuda dos intrusos, seja por espancamento ou pela dificuldade de pagar os 20% em função de serem famílias numerosas e cultivarem pequenas porções de terra, em média dois alqueires.8 Além disso, o próprio IGRA cadastrava os agricultores presentes nas áreas indígenas e cobrava os tributos equivalentes, fato este que comprova o pleno conhecimento das práticas de arrendamento e intrusão pelas diferentes instâncias e instituições públicas nas esferas estadual e federal. Somado ao processo de exploração da madeira e intrusão houve também um conflito de competência sobre a administração das áreas indígenas. Enquanto em nível nacional foi criado o SPI responsável pelo processo de demarcação das terras indígenas e desenvolvimento de todas as políticas indigenista de “proteção fraternal”, no Rio Grande do Sul a demarcação das áreas indígenas foi realizada pelo Estado que, entre 1910-18, demarcou 11 áreas indígenas. O processo de administração destas terras indígenas também ficou a cargo do governo estadual, com exceção da TI Ligeiro, hoje no município de Charrua. 8 O relato assim menciona “Uns se queixam de espancamento, que, todavia, é negada por aqueles quem imputam tais fatos. Outros queixam-se de terem sido intimados a desocupar a gleba que ocupam.Outros sim, enfim, se queixam do preço excessivo de arrendamento cobrado pelo Diretor da área. Dizem êles que tôda a produção o Pôsto exige de cada agricultor intruso 20% [...]” (Relatório da CPI, fl. 117). A informação acima é repetida em diversos relatos, presentes no relatório da CPI, de agricultores, vereadores e demais moradores de Nonoai. Voltar ao sumário

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A constituição Federal de 1934 estabelece explicitamente que as terras demarcadas como indígenas são de responsabilidade da União. Na década de 1940 o SPI resolve assumir a administração das Terras Indígenas maiores e mais populosas do Rio Grande do Sul, assumindo a administração da terra indígena de Nonoai, Guarita e Cacique Doble. Embora não se saiba os reais motivos de tal decisão do órgão da união, o certo é que isto não foi bem recebido pelo estado do Rio Grande do Sul, que, no seu entendimento, desenvolvia um trabalho de proteção das terras indígenas e garantia de seu desenvolvimento. O fato de ter que transferir a administração das terras indígenas para a União e a alegação de que o SPI iria derrubar as matas levou o então Interventor Federal no Rio Grande do Sul (Despacho de 28-03-1941) a diminuir as terras indígenas (Nonoai, Guarrita e Serrinha), criando reservas florestais. Na sequência o Decreto número 658 de 10 de março de 1949, determinava que diversas reservas florestais entre elas estão terras anteriormente demarcadas como indígenas. Na continuidade da mesma política que considerava as áreas subtraídas das terras indígenas como sendo de propriedade do Estado, portanto devolutas, os Governos Gaúchos adotam um conjunto de medidas no intuito de modificar a destinação das mesmas, para constituição de reservas florestais, para estações experimentais, para loteamento e venda para agricultores sem-terra e até para uso de instituições filantrópicas9. A Lei 3381 de 6 de janeiro de 1958, autoriza o Estado a alienar terras de sua propriedade localizadas no Município de Sarandi, lugar denominado ‘Serrinha (Relatório da CPI, fl. 281), Loteamento da então Reserva Florestal de 6.624 hectares. O Decreto 13.795 de 10 de julho de 1962 restabelece os limites da reserva Floresta de Nonoai, destinando para colonização a secção Planalto. Pelo despacho de 16 de fevereiro de 1962, processo administrativo 15.703/61, subdivisão dos toldos administrados pelo Estado que passam a ser vendidos em lotes para os colonos. Estes atos do Governo de estado provocam uma nova reestruturação das terras indígenas e, assim como no ato de demarcação no período de 1910-18, estabelece quais são as terras destinadas para indígenas e para agricultores, neste momento, de forma explícita, favorecendo os interesses destes últimos. As políticas de redefinição dos limites territoriais não foram aceitas passivamente pelos sujeitos sociais envolvidos, provocando novos contextos de tensão social. Já no final da década de 1960 esboçam-se reações aos atos do Estado, na maioria das vezes com conivência de funcionário do SPI, que produziam restrição/redução formal das áreas indígenas e/ ou permitiam a intrusão. Dois fatos relevantes, que exemplificam o questionamento desta política, foram a instauração de uma CPI do índio instaurada pela Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul e o movimento dos indígenas em Nonoai. Em relação a CPI do índio, instaurada em 27 de abril de 1967, sua principal motivação foi o conflito de indígenas e agricultores no Toldo de Nonoai, onde se encontravam mais de 600 famílias intrusadas. A referida comissão fez visitas in loco em Nonoai, ouviu diversas pessoas e concluiu em seu relatório (resolução 1605 de 24/10/1968) que as ações do Estado, que reduziu as áreas indígenas e as vendeu para os agricultores, foram inconstitucionais e, portanto, deveriam ser consideradas nulas. Assim, caberia ao governo a responsabilidade de reassentar os agricultores 9 No caso específico da TI Ventarra, nos atuais municípios de Erebango e Getúlio Vargas parte da área foi distribuída para várias entidades, são elas: a Sociedade Amigos de Erebango (20,22 ha), Sociedade Beneficente Jacinto Godoy (67,30 ha) e para a Sociedade Getuliense de assistência ao menor desamparado (51.60 ha), Escola Rural (19,67 ha) e a Mitra Diocesana (6,8 ha). Voltar ao sumário

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indevidamente estimulados a comprar terras indígenas. O relatório da CPI não produziu efeitos práticos, uma vez que, além dos agricultores permanecerem nas terras indígenas que compraram do Estado, ampliava-se a intrusão, principalmente na área de Nonoai. Em 1977, os indígenas de Nonoai, organizam-se e, utilizando-se de diversos mecanismos disponíveis, inclusive a força, expulsaram as famílias de agricultores que moravam e trabalhavam em terras indígenas. Este fato se reveste de significativa importância, pois grande parte destas famílias acabou por engrossar o grupo de agricultores sem-terra que deram origem ao acampamento da Encruzilhada Natalino e ao Movimento dos Sem Terra – MST (MARCON, 1997).

2.3 A constituição de 1988 e o reconhecimento do direito indígena às terras que tradicionalmente ocupam A redução das terras indígenas historicamente demarcadas no Rio Grande do Sul e a manutenção da intrusão, principalmente na TI de Nonoai associado a mudança do tratamento acadêmico para a questão indígena, a constituição de uma rede de apoio aos indígenas e a construção de um movimento indígena em nível de Brasil contribuíram para que, nas décadas de 1970/80, a temática do direito territorial e do desenvolvimento indígena se tornasse pauta acadêmica, social e política. Processo este que resultou na participação efetiva dos indígenas na Assembleia Constituinte e na aprovação de um capítulo específico sobre direito indígena na Constituição de 1988. Diferentes fatores contribuíram para esta conquista, dentre eles podemos citar o movimento intelectual iniciado ainda não final da década de 1960 que buscava alterar a compreensão assimilacionista, defendendo que os povos indígenas da América Latina tinham o direito ao etnodesenvolvimento. Fruto deste debate surge dois documentos internacionais Barbados I (1971) e Barbados II (1977) defendendo uma nova perspectiva para as políticas indigenistas que reconhecessem o direito cultural indígena propondo que o debate sobre desenvolvimento tivesse as diferenças culturais como pressuposto e seu aprimoramento como fim de qualquer projeto de desenvolvimento. Nesta perspectiva, ganham destaque nas elaborações teóricas, a perspectiva da Fricção Interétnica (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1978; 2000) e do Etnodesenvolvimento10 (STAVENHAGEN, 1985). Este debate e a movimentação acadêmica contribuiram significativamente para a articulação do movimento indígena em nível nacional11, mas principalmente para a criação de um Pan Indigenismo, (BITTENCOURT, 2007 p. 55-56). Ou seja, de uma articulação indígena para além dos limites nacionais e, inclusive de seu povo. O fato de serem índios e terem sofrido o mesmo processo de colonização serviria de elemento 10 O surgimento do debate em torno do etnodesenvolvimento pode ser localizado em três grandes eventos. O primeiro, em 1971, que foi o Simpósio sobre “Fricção Interetnica na América Latina”, que resultou na Declaração de Barbados. O segundo foi em 1977, com o Simpósio “Movimento de Libertação Indígena na América Latina”, resultando na Declaração de Barbados II. O terceiro, em 1981, organizado pela FLACSO e UNESCO, intitulado de “Reunión de Expertos sobre etnodesrrollo y Etnocidio em América Latina”, resultando na Declaración de San José. 11 No final da década de 1970 diversas manifestações de associações de intelectuais (principalmente ABA) passam a propagar a necessidade de reconhecer os povos indígenas como nação. Diversas universidades organizam seminários e mesas redondas para discutira a questão indígenas os seus direitos e sua autonomia. A autora ressalta que estacrescente visibilização da questão indígena está inserida ao conjunto dos movimentos que reivindicavam a redemocratização, o respeito aos Direitos humanos e, simultaneamente, a melhoria das condições de vida da população. Voltar ao sumário

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de identidade étnica em torno da qual poderiam se articular e desenvolver projetos e planos de ações para os diferentes povos indígenas. Somado ao movimento intelectual, cresceu o debate sobre a questão indígena envolvendo os diferentes povos indígenas, a sociedade civil organizada, principalmente o CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e o COMIN (Conselho de Missão entre Índios) e diferentes ONGs (Organizações Não-governamentais). Estes diferentes fatores contribuíram para que a Assembleia Constituinte tratasse os índios como sujeitos de direitos (BITTENCOURT, 2007; LACERDA, 2008) Neste sentido, a Constituição de 1988 estabeleceu um capítulo específico sobre o Direito indígena, reconhecendo os seus direitos sociais e culturais bem como legitimando o direito originário sobre as terras ocupadas por comunidades indígenas (artigos 231 e 232; artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), ficando o Estado com a obrigatoriedade de identificá-las e demarcá-las. Seguindo a mesma orientação da Carta Magna, a constituição do Rio Grande do Sul, em seu artigo 32, estabelece que o Estado deve indenizar os agricultores assentados ilegalmente em terras indígenas, reconhecendo formalmente que o estado havia cometido uma irregularidade/inconstitucionalidade. Na década de 1990, sob a luz da nova Carta Magna, fortalece-se o debate sobre a necessidade de restabelecimento dos limites territoriais originalmente demarcados (1910-18) para as terras indígenas do Rio Grande do Sul. A União realiza a redemarcação das Terras indígenas em 1991 e inicia, através da FUNAI, ajuizar, junto ao Supremo Tribunal Federal, ações de inconstitucionalidade buscando anular todos os atos que, entre as décadas de 1940-60 efetivaram a redução das terras indígenas demarcadas. O Estado, por sua vez, constitui pelo Decreto 37.118 de 30/12/1996, um Grupo de Trabalho12 para fazer levantamento das terras indígenas que tinham sido colonizadas irregularmente e apontar a situação específica de cada uma e possíveis soluções. A conclusão do GT é categórica no sentido de apontar que todas as reduções se constituíam em atos de base legal e que o Estado precisava devolver estas áreas paras os indígenas e garantir o processo de ressarcimento aos agricultores através da indenização em dinheiro ou reassentamento. O resultado deste processo foi a restituição dos limites originários das 1113 áreas demarcadas no início do século XX, restando um imenso problema econômico para o Estado para indenizar o conjunto de agricultores e, obviamente, um custo muito grande para as famílias que compraram as terras do Estado e após algumas décadas se viram obrigadas a se retirarem. Este novo processo de desterritorialização e reterritorialização provoca consequências complexas e nefastas para o conjunto de agricultores que pagaram e receberam o título dessas terras do Governo do Estado do Rio Grande do Sul precisaram 12 O grupo de trabalho constituído pelo Governo do estado do Rio Grande do Sul – que tinha entre os seus membros Celso Luís Franco Gaiguer, conhecedor da realidade indígena brasileira, já havia sido presidente da FUNAI e foi um membro (assessor) atuante na Assembleia Constituinte que resultou no capítulo sobre o Direito Indígena – realizou um amplo estudo sobre o processo de colonização em terras indígenas, bem como da realidade de cada área na época do estudo, cujas conclusões indicam que o Governo do Estado deve retirar os agricultores das terras indígenas reassentando-os ou indenizando suas terras (RIO GRANDE DO SUL, 1997). 13 Das terras indígenas historicamente demarcadas vendidas para agricultores nas décadas de 195060 apenas a de Inhacorá os agricultores não foram retirados e a área restituída aos indígenas. Neste caso específico só foi restituído ao indígena a área de 1737 hectares que estava destinada a uma estação experimental agrícola. Voltar ao sumário

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desocupá-las, buscando novos espaços para plantar e, na maioria dos casos, construir um novo habitat para suas famílias14, estabelecer novas relações sociais e culturais. Por outro lado, os indígenas que após anos de luta, recuperam as terras, porém não mais as encontram na condição de outrora. Por várias décadas elas foram modificadas e adaptadas a produção agrícola, portanto mais haviam mais matas nativas, nem ambiente de caça, pesca e coleta. Nem tão pouco os indígenas e suas relações sociais eram as mesmas após décadas longe de suas terras, obrigando-os a buscar sustento de diferentes formas sendo que, na maioria das vezes, impelidos a aproximar-se da sociedade de produção e consumo. Embora recuperaram o direito ao solo, a territorialidade não era mais a mesma, foi necessário reconstruí-la a partir de uma nova realidade.

3 O movimento indígena da retomada: territorialidades em conflitos Concluído o processo de recuperação dos limites originais dos toldos indígenas, inicia-se uma nova etapa de demanda indígena e atuação da FUNAI, que consiste no pleito de ampliação ou constituição de novas áreas indígenas. Em 2004, a FUNAI constituiu um grupo de trabalho com a atribuição de demarcar a terra indígena de Mato Preto15. Logo na sequência, foram publicados os estudos demarcatórios de Passo da Forquilha (municípios de Sananduva e Cacique Doble)16, Votouro (município de Faxinalzinho e Benjamin Constant)17, em fase de conclusão, os estudos relativos a Carreteiro (município de Água Santa), Novo Xingu (municípios de Constantina e Novo Xingu), Inhacorá (município de São Valério do Sul) e Mato Castelhano (município de Mato Castelhano), e com estudos ainda não iniciados em Campo do Meio (municípios de Gentil, Marau e Ceríaco), Pontão ( município de Pontão) ampliação das áreas de Carreteiro ( Água Santa) e a de Cacique Doble ( Cacique Doble). Nestes diferentes locais se estabelecem um conflito de territorialidades envolvendo indígenas e agricultores. Os indígenas buscando recuperar terras que consideram de ocupação tradicional e a partir delas reconstruir territorialidades que foram interrompidas no final do século XIX e início do século XX com o processo de aldeamento e demarcação dos Toldos obrigando-os a viver em áreas restritas liberando as demais para o processo de colonização. A demarcação dos Toldos ali14 Um dos casos emblemáticos deste processo ocorreu na Reserva Indígena de Serrinha. Ver Carini (2005; 2010). 15 Esta área foi declarada pelo ministério da Justiça em setembro de 2012 numa extensão de 4.230 hectares. Neste momento tem 14 famílias indígenas guaranis acampadas na área próximo à ferrovia (desativada) que liga Passo Fundo e Erechim, e na área declarada vivem mais de 385 famílias de pequenos agricultores (O NACIONAL, 4 out. 2012). 16 Esta área foi declarada pelo Ministério da Justiça (Portaria 498 de 25/04/2011) com 1.914,84 hectares. Neste momento os agricultores estão impetrando sua defesa na esfera jurídica, ao mesmo tempo os agricultores ocuparam uma área de terra (escriturada em nome de agricultores) nas margens do Rio Forquilha e estão, desde 2011 cultivando-a, através do sistema de prestação de serviço de outros proprietários. 17 Nesta área a FUNAI já concluiu Relatório de Identificação e Delimitação; os agricultores fizeram a defesa administrativa; a FUNAI acatou e encaminhou para o Ministro da Justiça emitir a Portaria Declaratória; contudo, o parecer da Advocacia Geral da União AGU (Parecer 99/2012/ CEP/CONJUR-MJ/CGU/AGU) é contrário à declaração, pois considerou que se trata de uma ampliação de área, o que estaria vetado pela “condicionante XVII estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal” quando do julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol. Portanto, o processo retornou a FUNAI e não tem novo despacho. Os indígenas estão acampados em uma área particular no centro do povoado de Votouro, próximo à igreja e à escola da localidade. Voltar ao sumário

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jou as comunidades indígenas de diferentes espaços que constituíam a sua territorialidade, matas, locais de pesca e coleta, cemitérios dos antepassados e ao mesmo tempo rompeu com práticas culturais como a circulação, a possibilidade de constituição de diferentes aldeias e a própria disputa entre as lideranças (pay e pay-bang). Salienta-se ainda que, na compreensão indígena e indigenista, o rompimento do contato físico com estes locais não os impediram de permanecer com os vínculos culturais, simbólicos e afetivos com os mesmo. Portanto, a luta indígena seria para recuperar espaços considerados vitais para a reconstrução da territorialidade. Por outro lado, os agricultores, em sua maioria descendentes dos primeiros colonizadores, há mais de um século passaram a viver nestas terras que compraram do Estado e nelas buscaram o sustento e construíram sua história. É fundamental ter presente que vínculo com os agricultores com estas terras não é só de caráter econômico. Diferentes elementos de territorialidade foram se constituindo, desde laços familiares (relações de parentesco), relações comunitárias (salões comunitários, canchas de bochas, campo de futebol) relações religiosas (capelas, grutas, cemitérios) lembranças históricas vinculadas como as casas, pomares, escolas. Portanto, a eventual desocupação das terras reivindicadas pelos indígenas traz à tona não apenas o debate de quem vai indenizar os agricultores pelas suas perdas econômicas (terras e benfeitorias) mas o rompimento de territorialidades constituídas historicamente. Como vimos, este conflito não pode ser entendido como um conflito entre indígenas e agricultores, pois se assim entendermos podemos culpabilizar dois grupos sociais que são vítimas deste processo. O conflito é do modelo agrário desenvolvido pelo Estado, principalmente no último século, em que destina a mesma terra, em momentos diferentes, para índios e para agricultores. O conflito é da política indigenista que desde o tempo do SPI e, em grade medida, continua hoje gestionando as terras indígenas de forma equivocada, o que não contribui para um etnodesenvolvimento a partir da realidade concreta que os indígenas vivem. Somam-se a isso os problemas enfrentados pelos processos de identificação e delimitação das terras reivindicadas pelos indígenas. Destacamos dois: o primeiro é não levar em consideração as especificidades regionais, desconsiderando a realidade dos agricultores envolvidos, categorizando-os de forma genérica e abstrata de “não-índios”. O segundo é a morosidade do processo fazendo com que os conflitos sociais se estendam por logo período provocando a sua intensificação e radicalização.

4 Considerações finais No decorrer do texto, demonstra-se que os atuais conflitos envolvendo indígenas e agricultores têm entre os seus motivadores as políticas públicas territoriais desenvolvidas pelo Estado que destinou as mesmas terras, em momentos diferentes, para indígenas e agricultores. Este processo provou, simultaneamente e de forma alternada, territorialização e desterritorialização de indígenas e de agricultores que ocuparam e desocuparam as mesmas áreas. As consequências tiveram especificidades em cada momento histórico, mas em todos eles provocaram desagregação e rompimentos de vínculos sociais, culturais, simbólicos e econômicos que os respectivos grupos tinham com os espaços que ocupavam. Na última década o movimento indígena denominado de “retomada” (HOLANVoltar ao sumário

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DA, 2010) tem como um de seus objetivos reivindicar a demarcação de novas terras indígenas utilizando-se de diversas estratégias, entre elas o acampamento junto ou próximo das áreas reivindicadas. O debate jurídico sobre a extensão do direito territorial indígena em áreas colonizadas há séculos, as divergências sobre o rito administrativo de Identificação e Delimitação desenvolvido pela Funai e a demora do referido processo18 geram consequências de diferentes ordens. Uma delas é a situação precária vivida pelos indígenas em acampamentos provisórios, em barracos de lona ou casebres sem água encanada e sem rede de esgoto. Como não existe área de cultivo os indígenas destes acampamentos são completamente dependentes da assistência do Estado, mesmo que alguns saiam para trabalhar em cidades vizinhas ou até prestam serviços sazonais no cultivo da maçã e da uva. Obviamente que as condições vividas não se aproximam em nada com o habitat, com as práticas culturais históricas dos indígenas. Nestes casos os indígenas vivem há mais de uma década um processo de desterritorialização que representa uma desagregação cultural provocando mudanças profundas na sua forma de vida. Uma segunda consequência a ser destacada é a intensificação dos conflitos vividos entre indígenas e deles com as comunidades dos agricultores. Em relação aos conflitos internos, a precariedade nas condições socioeconômicas e a desintegração/ alteração dos laços culturais que definiam as lideranças e hierarquia entre eles têm provocado inúmeros conflitos. Para exemplificar podemos citar casos de violência sexual vividos no acampamento de Votouro/Kandoia. Recorrentes conflitos entre dois caciques no acampamento de Mato Castelhano resultaram em acusações mutuas, e por diversas vezes em conflito físicos e até tentativa de homicídio19. Mais recentemente o conflito no acampamento de Passo Grande do Forquilha resultando num indígena morto e oito feridos com arma de fogo.20 Os conflitos entre indígenas e agricultores também possuem gravidade e intensidade. Para além da tensão permanente pela convivência entre indígenas que reivindicam terras que consideram de ocupação tradicional e agricultores que centenariamente vivem nelas, em diferentes momentos ocorreram conflitos físicos resultando em violência por espancamento e mortes. Em Mato Castelhano houve diversos episódios de enfrentamento físico, numa circunstância um agricultor foi espancado por indígenas, em outra o município teve que suspender as aulas, pelo clima beligerante entre as partes, uma vez que nas escolas municipais frequentam filhos de agricultores e indígenas21. No passo Grande do Forquilha também houveram diversos momentos de conflitos físicos sendo que no mais grave, na comunidade do Bom Conselho um indígena e três agricultores ficaram feridos sendo que um deles com traumatismo craniano. (KUJAWA; TEDESCO, 2014). O caso mais emblemático foi o de Votouro/Kandóia no município de Faxinalzinho onde o conflito resultou na morte de dois agricultores por tentarem interromper o bloqueio de estradas promovido pelos indígenas. Embora existam diferentes iniciativas do por parte do Estado, através da Funai e do 18 Passo Grande do Forquilha que é um dos mais antigos desta fase iniciou em 2000, portanto já fazem 15 anos. 19 Vários relatos de conflitos entre os indígenas estão relatados em: MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Comarca de Passo Fundo. Inquérito Civil Público Nº 1.29.004.000751/2005-3. 20 O episódio ocorreu em 13 de março de 2015. Ver notícia sobre o fato em: <http://www.diariodamanha.com/noticias/ver/7566/Conflito+entre+ind%C3%ADgenas+deixa+um+morto+e+nove+feridos>. Acesso em: 14 mar. 2015. 21 Ver notícia sobre o fato em : <http://www.onacional.com.br/regiao/38230/aulas+serao+retomadas+hoje+em+mato+castelhanoer>. Acesso em: 10 mar. 2015. Voltar ao sumário

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Ministério da Justiça, e da sociedade, através de organizações indígenas, indigenista e de agricultores, a complexidade da realidade constituída indica que estamos longe de produzir uma solução para este conflito. Desta forma, processos de territorialização e desterritorialização dos indígenas e/ou dos agricultores persistirão.

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Conflitos territoriais no norte do Rio Grande do Sul...

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CULTURAS MARGINALIZADAS EM PERSPECTIVAS PELO RECONHECIMENTO DA DIVERSIDADE Claudio Luiz Orço* Elizandra Iop**

1 Introdução O processo colonial realizado em território brasileiro promoveu a marginalização de centenas de culturas indígenas e de culturas africanas, impondo a valores, hábitos, costumes e determinando um novo comportamento social. Tal processo se utilizou de mecanismos institucionais, legais e literários para convencer a sociedade da inferioridade indígena e africana, tendo êxito com a formação de uma consciência social hegemônica que contribuiu indiretamente com a discriminação destes, negando a eles condições de vida concedidas aos sujeitos legítimos de um Estado. O texto em questão trata da questão de como se deu a inferiorização das diferenças e o não reconhecimento da diversidade em âmbito nacional, levando milhares a viver as margens da sociedade até o Brasil se reconhecer enquanto Estado pluriétnico. O fortalecimento da marginalidade das diferenças tem no processo de globalização um aliado, que conduz a sociabilidade de forma a inculcar valores, ideias, gostos e padronizar o comportamento social. Para isto aborda as duas vertentes da globalização cultural, a homogeneização da cultura e a fragmentação da cultura como viés para explicar a formação de uma consciência única, no enfraquecimento das identidades sociais e na produção da marginalidade sóciocultural. Para finalizar traz-se para o debate a questão da educação e do multiculturalismo como formas de resistência e enfrentamento a homogeneização da cultura dominante. Sendo que a educação é um forte pilar de sustentação para a promoção de um processo educativo que garanta o reconhecimento da diversidade e a promoção da dignidade humana.

2 A produção das diferenças na condição de subalternidades O processo colonizador no Brasil partiu da premissa que os que aqui habitavam não passavam de animais desprivilegiados da essência humana. Assim, foi sendo gestada a civilização no Novo Mundo, que implicou na transferência de valores *

Doutor em Educação pela UFSC (2012), Mestre em História pela UPF (2008). Professor Titular da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc). Atualmente respondendo pela Diretoria de Graduação da Unoesc Xanxerê/SC. E-mail: <claudio.orco@unoesc.edu.br>. ** Mestre em Educação pela Universidade do Contestado e Unicamp (2004). Atualmente é professora titular da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), nos Campus de Xanxerê e Chapecó. E-mail: <elizandra.iop@unoesc.edu.br>. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-5

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S U M Á R I O


Culturas marginalizadas em perspectivas pelo reconhecimento da diversidade

eurocêntricos para a nova terra, do uso da força militar e da construção de uma verdade justificadora por meio de um discurso justificador. O primeiro ocorreu pelo processo de evangelização que tinha a Companhia de Jesus como protagonista, o segundo pelo próprio colonizador e suas armas e o terceiro pelo uso de discursos. Que de acordo com Foucault, “[...] são procedimentos retóricos, maneiras de vencer, de produzir acontecimentos, de produzir decisões, de produzir batalhas, de produzir vitórias” (2005, p. 142). São narrativas que determina a condição do outro na sociedade, no que tange ao processo de colonização que implicou na compreensão do outro como inferior. Os discursos são entendidos como saberes verdadeiros, porém, o conhecimento não é neutro, ele varia de contexto para contexto de época para época, defendendo interesses de poder. “Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é: os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros” (FOUCAULT, 1986, p. 12). A colonização brasileira não só legitimou a inferioridade do outro, pelo fato de não ter reconhecido a diversidade cultural dos povos como por meio deste teve a possibilidade de usurpar o território “contestado”, produzindo assim a marginalidade dos povos indígenas, que por meio da catequização tiveram enfraquecidas ou destruídas sua identidade cultural. Processo semelhante ocorre com o africano, a diferença é que este não pertencia ao território, este território lhe era estranho, porém, as estratégias de poder para sucumbir suas resistências foram praticamente as mesmas utilizadas com o índio, podendo se dizer que a estes ainda foi usado o tronco como elemento simbólico para acabar com a resistência de um povo sedento por liberdade. O processo colonizador agiu de forma muito mais cruel com estes últimos, pois a estes ainda tiveram a má sorte de serem associados ao mal pela religião católica, o que implicou que tal processo violento procurou desumanizá-los. A religião explicou o negro como descendente de Cam, filho de Noé, amaldiçoado por Noé por lhe ter desrespeitado. Assim a Igreja católica procurou associar a cor negra ao pecado e a tudo que correspondesse a maldição divina. Desta forma o branco lembra vida, purificação, começo sendo utilizado em todos os rituais de generação, já o negro é associado a todos os momentos tristes, inclusive a um dos cerimoniais de maior tabu que é a morte. “Por isso, nas colônias ocidentais da África, mostrou-se sempre Deus como um branco velho de barba e o Diabo um moleque preto com chifrinhos e rabinho” (MUNANGA, 1988, p. 13-14). Este saber que condicionou a condição marginal do negro nas colônias ocidentais ainda impôs a eles a escravidão como única forma de salvar um povo amaldiçoado. Assim foi ocorrendo por século a marginalização do negro na sociedade de influência católica como o Brasil. A ideia da inferioridade do negro ainda é fato nos dias atuais em meio a sociedade que faz uso dos valores tradicionais, como o patriarcado para organizar os processos no cotidiano social. A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em consequências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas ideias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou Voltar ao sumário

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de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem. (HOLANDA, 1995, p. 31).

Ambos, índios e africanos não foram sujeitos e sim objetos no processo colonizador, tendo sua integridade física, moral, cultural e psicológica brutalmente violentadas por interesses ideológicos econômicos, políticos e religiosos. Interesses estes que vão de encontro a usurpação do território brasileiro e de seu desenvolvimento, porém, para isso, tiveram que se apropriarem da essência do colonizado.

3 Globalização: perspectivas culturais na construção das identidades sociais O termo globalização começou a ser utilizado na década de 1980 nos Estados Unidos da América – EUA, e a princípio esteve associado a economia global. Este conceito rapidamente incorporado pelos mass media e posteriormente pelo meio acadêmico, sendo o responsável por oferecer maior precisão ao termo globalização. Atualmente o termo globalização não se restringe ao mundo econômico vindo a ser utilizado para designar a mundialização da cultura. A respeito da globalização cultural há duas vertentes antagônicas. Uma que defende a homogeneização da cultura global e a outra que se opõe a esta, defendendo que o processo que está sendo instaurado pela globalização cultural faz com que seja produzida uma nova diversidade cultural. A globalização no campo cultural pode ser compreendida de várias maneiras. Uma delas é a que defende que no processo da mundialização ocorre uma transferência de identidades culturais relacionadas com o território, já uma outra, apresenta um aspecto transnacional, que não necessariamente esteja relacionado a uma base territorial. Há uma produção cultural global que interage com as diversas culturas nacionais, modificando e ao mesmo tempo sendo modificada, Assim a identidade nacional sofre uma transformação, ou seja, ela não se perde sendo substituída por outra transnacional. Há na verdade, uma interação recíproca entre essas duas realidades. (GIDDENS, 2000, p. 23).

Os indivíduos tendem a construir suas identidades utilizando elementos não da cultura nacional, como música, cinema, esporte. No que tange a globalização da cultura, esta vertente pode ser compreendida na medida em que vamos vendo a sociedade ser contagiada por produtos culturais em diversos setores como hábitos, costumes, alimentação, vestuário, ideias, instituições, brinquedos, músicas, danças e tecnologia. Em praticamente mais da metade dos grandes centros mundiais há um representante do McDonald’s, usa-se tênis e roupas da Nike, escuta-se Lady Gaga, assiste-se MTV, trabalha-se operando a Microsoft ou Apple, comunica-se com o uso de um aparelho celular da Apple e Samsung duas grandes gigantes da economia do mercado internacional. A produção cinematográfica Norte Americana está em todas as partes do mundo, tais produtos são consumidos pela sociedade de massa. Assim, as particularidades culturais locais estão seriamente comprometidas, entendendo que pelo processo de globalização cultural pode haver o enfraquecimento da cultura local vindo a ocorrer a perda das identidades locais. “Como essas ideias e mercadorias, em sua maioria, têm origem Voltar ao sumário

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ocidental, a globalização é percebida como uma ocidentalização disfarçada, ou simplesmente como uma americanização do mundo” (DIAS, 2005, p. 72). A ocidentalização do mundo é vista como a subjugação da cultura aos padrões da cultura dominante representada pelos países do Norte com destaque aos EUA, resultando disso a subalternidade cultural. Pelo viés da globalização econômica, a produção cultural global não está restrita a disseminação da cultura por um determinado país. Pois pela lógica da mundialização da cultura, aquilo que é consumido de forma global se torna produto da cultura global, não importando quem foi o agente “país” que a produziu e a exportou. Isso se aplica a todas as manifestações culturais desde o que se entende por cultura simbólica se estendendo a não simbólica produzidas no cotidiano das sociedades. Sendo a Industria Cultural o veículo de distribuição, inculcação e demonstração da modificação do comportamento social de diferentes grupos culturais. Para Morin, A sociedade é inseparável da civilização, e existe uma civilização mundial, saída da civilização ocidental, que desenvolve o jogo interativo da ciência, da técnica, da indústria e do capitalismo e que comporta um certo número de valores padronizados. Ao mesmo tempo em que comporta múltiplas culturas em seu seio, uma sociedade também gera uma cultura própria. (MORIN, 2002, p. 9).

O outro viés sobre a cultura em um contexto globalizado é o da heterogeneidade cultural, ou seja, a fragmentação da cultura. Este viés subtende-se uma resistência a mundialização da cultura, onde se formam grupos e tribos com ênfase na defesa na diversidade cultural. Octavio Ianni (1996) chamava atenção para este processo, afirmando que a globalização da cultura não teria nada a ver com a homogeneização, pelo contrário, [...] esse é um universo de diversidades, desigualdades, tensões e antagonismos, [...] Trata-se de uma realidade nova, que integra, subsume e recria singularidades, particularidades, idiossincrasias, nacionalismos, provincianismos, etnicismos, identidades e fundamentalismos. [...] As identidades reais e ilusórias baralham-se, afirmam-se ou recriam-se. No âmbito da globalização, abrem-se outras condições de reprodução e reprodução material e espiritual. (IANNI, 1996, p. 33).

O processo econômico da globalização impõe sobre a mundialização da cultura sua fragmentação, levando grupos se organizarem em prol da manutenção da cultura. Porém, há uma tendência de que, grupos que não fazem parte da cultura dominante estejam cada vez mais marginalizados, a deriva de condições dignas de vida e de qualidade de vida. O que os alerta para uma reorganização interna de fortalecimento das identidades sociais. Ainda seguindo o viés da heterogeneidade de cultural em meio ao processo de globalização, “[...] todas as sociedades estão a se tornar cada vez mais multiculturais e, ao mesmo tempo, mais permeáveis” (TAYLOR, 1997, p. 83). Isso devido a imposição de uma cultura sobre a outra. “[...] considera-se que, neste aspecto, as sociedades liberais do Ocidente são extremamente culpadas, em parte devido ao passado colonial, em parte devido a marginalização de segmentos de sua população oriundas de outras culturas” (TAYLOR, 1997, p. 84). Pelo processo de globalização econômica e cultural, a homogeneização de gostos, hábitos, produtos de consumo, fez com que a sociedade viva hoje numa condição em Voltar ao sumário

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que prevalece o consumo e o individualismo, desrespeitando as condições dignas de vida da população. O processo industrial, a parafernália tecnológica e os produtos produzidos por esta última, impulsionou um novo tipo de comportamento na contemporaneidade, o individualismo exacerbado, que surge devido ao crescente processo de trabalho com uso de tecnologias cada vez mais sofisticadas, que primam pelo processo produtivo em detrimento da qualidade de vida do trabalhador, e que disseminam produtos e ideias para quase todas as partes do mundo. O individualismo fenômeno da modernidade sucumbe com os laços de solidariedade entre os indivíduos, estabelecendo o eu acima de tudo. Em ambientes comunitários ainda é possível perceber a força da coletividade, mesmo esta sendo ameaçada constantemente por mecanismos da cultura midiática. Porém, em ambientes mais propensos ao desenvolvimento do capital, impera a condição que o indivíduo está por sua conta e risco. Os laços de amizade, solidariedade e fraternidade foram substituídos pela necessidade de competição e consumo que são fatores necessários para o desenvolvimento do capitalismo representado pela cultura dominante dos grandes centros urbanos. Assim, a imposição de um modelo social determinado pela cultura dominante, pelos processos de colonização, pelo capital e pelas ações públicas estabelecidas politica, social e economicamente determinam a condição de vida da população. Nos centros em que impera o individualismo, não significa dizer que este tem sua condição humana garantida pelo Estado. O que se percebe é que milhares de pessoas estão as margens do modelo produtivo, Esta realidade é exemplificada por ambientes sem infraestrutura urbana, sem segurança, sem acesso ao atendimento à saúde e com os serviços de educação bastante precários. Está sendo produzido nos grandes centros urbanos a sua racionalização como forma de sucumbir à lógica da cultura dominante que procura homogeneizar todos os processos sociais tendo como padrão ideal para eles o da cultura dominante, por meio da sociabilidade dos indivíduos com os produtos da Indústria cultural, que determina o abandono das vivências próprias por vivências alienígenas, sem sentido e significado ao grupo, porém, de grande serventia à cultura dominante. Porém, isso não é aceito sem resistências das comunidades. Devido a isso, vão sendo produzidos tentativas de garantir a sobrevivência da cultura local de cada grupo por meio do fortalecimento da identidade dos territórios locais. A imposição da cultura hegemônica sobre todos os grupos locais, representa uma forma de pensar a sociedade e estabelecer padrões de vivências sociais, que distancia cada vez mais as relações culturais, espaciais e territoriais de um grupo social, fazendo com que a identidade e a cultura destes, se torne ao mesmo tempo universal e individual, a tal ponto que se sentem excluídos de quaisquer processos politico ou social, não se reconhecendo nos processos sociais do cotidiano cultural. Segundo Canclini e Bhabha (1998), o processo de globalização da economia, da tecnologia e da comunicação, intensifica interferências e determina os rumos culturais e fortalece os conflitos entre grupos sociais de diferentes culturas. É dessa forma que o Brasil, foi sendo historicamente constituído como uma sociedade multiétnica e culturalmente híbrida, enfrentando desafios que se acirram em plano regional e nacional na medida em que se intensificam suas relações internacionais. A grande mídia defensora de interesses da classe proprietária tem como intuito formar na grande massa a ideia de que os marginalizados se encontram na situação Voltar ao sumário

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de abandono e pobreza por vontade própria e que estes quando se manifestam em busca de ter seus direitos individuais e sociais garantidos pelo Estado, a grande mídia manipula de tal forma os fatos, passando informações de que estes agem a margem da lei, formando uma ideia de que são grupos de criminosos e não de cidadãos abandonados pelo poder público. Casos como os de indígenas que fecham rodovias, de sem teto que invadem terrenos baldios, de sem terra que invadem áreas improdutivas, de professores que realizam manifestos em frente ao palácio do governo. Do enfrentamento destes grupos com a polícia ou com os proprietários ou o Estado, os primeiros são descritos como invasores, baderneiros, arruaceiros, desocupados, indivíduos que em vez de trabalhar de forma legítima se ocupam em se apropriar do patrimônio privado, dificultando a vida do cidadão de bem e trabalhador brasileiro. Desta forma se estabelece um processo de desumanização cultural que tem na tecnologia dos mass media seu principal agente impulsionador, é visível o processo de desumanização de grupos pela tecnologia da informação, o que compromete a produção e fortalecimento da cultura e de sua identidade social. Assim, percebemos que o diálogo entre o saber adquirido e o saber tradicional reflete uma falsa consciência em relação aos problemas do cotidiano, tanto em relação à cultura, aos territórios e às identidades dos diferentes grupos em diferentes regiões do nosso imenso Brasil. Portanto, a democracia, a cultura e a autonomia dos grupos, povos ou territórios são conceitos que efetivamente precisam ser respeitados para serem compreendidos e vivenciados pela população em geral. A cultura dominante impõe um padrão comportamental sob os grupos marginalizados, resultando no enfraquecimento da identidade cultural. Esse processo de marginalização da cultura e a perda da identidade cultural teve seu início com a colonização que importou valores eurocêntricos e os disseminou por meio da religião que negou a existência da cultura dos territórios indígenas como também dos povos africanos que foram introjetados na cultura dominante. Desse processo resultou a formação de uma consciência única, em que tanto o indígena como o africano não reconheciam mais sua cultura, esta lhe estava estranha, pois pela inculcação de valores superiores estes passaram a marginalizar o índio e o africano. Formou-se uma consciência hegemônica sobre ser índio e ser africano. “Gerações de europeus se convenciam de sua superioridade cultural e intelectual diante da ‘nudez’ dos ameríndios [...] Nesses casos, estabeleceu-se uma relação de poder entre o ‘sujeito’ e o ‘objeto’, a qual não reflete a verdade” (BONNICI, 2008, p. 205). O negro e o índico foram objetos e não sujeitos da colonização, e o resultado desigual refletem hoje na desigualdade sóciocultural da sociedade brasileira. O índio e o negro foram sendo produzidos no cotidiano imaginário da sociedade brasileira como sujeitos degenerados, inferiores e incapazes. A partir da análise das condições de vida da realidade social, política, econômica e cultural dos grupos subalternos, percebe-se que o processo encontra-se relativamente distanciado de um projeto coletivo consistente, que seja capaz de promover a mudança do status de subalternidade dos diferentes grupos sociais. Claro está que devemos considerar que as distintas visões sobre a sociedade, política, cultura e educação são partes de um conjunto mais amplo de relações que acabam dando forma e conteúdo a um sistema social desordenado no qual acabam, por assim dizer, impulsionando entendimentos próprios acerca dos modelos estabelecidos pela própria sociedade. Voltar ao sumário

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4 Educação em perspectiva multicultural para a emancipação A formação do Estado nacional brasileiro está pautado no reconhecimento da plurietnicidade e na pluriculturalidade, o que implica que os Estados não possuem uma composição homogênica, resultando no reconhecimento da diversidade cultural, linguística, religiosa, de gênero, idade, econômica, orientação sexual, porém, no Brasil um Estado pluriétnico teve sua origem somente com a carta de 1988. Até então prevalecia a ideia de um Estado unitário em que imperava o estereótipo masculino, proprietário, racional. A partir deste estereótipo o Estado brasileiro organizou suas instituições sociais para fortalecer a unidade cultural. Enquanto prevaleceu a composição de um Brasil unitário em meio a uma vasta diversidade, foram sendo produzidas as subalternidades em quase todos os espaços de sociabilização, não tendo a dignidade humana como princípio constitucional promovida, em que o Estado é elemento fundante de tal ação. A formação de uma ideia única de cultura teve contribuições de várias áreas, entre elas a educação. Durante séculos a educação brasileira contou com uma proposta hegemônica de educação a todos, independente de credo, cor, “raça”, condição econômica, padrão étnico e linguístico. Assim, os que não se reconheciam tanto na organização do conteúdo – currículo e linguagem eram considerados incapazes intelectualmente, o que resultou no abandono da escola, na repetência dos incapazes, na composição de uma classe social analfabeta. Pois, a cultura da escola reconhecia apenas a cultura vigente, a dominante no processo pedagógico, e por meio desta inculcou valores aos diferentes como sendo verdadeiros, resultando com isso à marginalização das diferenças, ou na palavra de Bourdieu e Passeron (1975) a educação brasileira cometeu violência simbólica com a diversidade cultural. O processo educativo dos anos 1990 em diante tem dado atenção especial a não marginalização da cultura e a promoção da diversidade cultural. Gómez (1998), destaca que a escola deve ter seu processo pedagógico pautado em dois eixos. O primeiro é “O desenvolvimento da função compensatória”, parte do princípio de que nas sociedades industriais avançadas impera a desigualdade e injustiças, apesar de ter uma aparente composição democrática na esfera política, cabendo à escola papel fundamental para compensar tais desigualdades e injustiças desta sociedade. A escola não pode anular tal discriminação, mas sim atenuar seus efeitos e desmascarar o convencimento de seu caráter inevitável, se propõe uma política radical para compensar as consequências individuais da desigualdade social. [...] Com este objetivo deve-se se substituir a lógica da homogeneidade, imperante na escola, com diferentes matizes, desde sua configuração, pela lógica da diversidade. (GOMÉZ, 1998, p. 23).

O segundo eixo trata da “Reconstrução do conhecimento e da experiência”, que consiste em que a escola deva “[...] provocar e facilitar a reconstrução dos conhecimentos, atitudes e formas de conduta que os alunos/as e alunos/ as assimilam direta ou acriticamente nas práticas sociais de sua vida anterior e paralela á escola” (GOMEZ, 1998, p. 25). Na sociedade contemporânea e midiática a escola não é mais o principal veículo de informação, a televisão e a internet recentemente vem ocupando papel de destaque na informação da sociedade e nas crianças e adolescentes desta. A mídia de forma desconexa e sutilmente vai criando concepções ideológicas utilizadas para explicar e compreender os fenômenos humanos, Voltar ao sumário

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sociais e naturais, ou seja, a realidade cotidiana, formando postura de como e quando intervir no meio social. Ou seja, a mídia forma preconcepções sobre diversos ângulos da sociedade e seus fenômenos, cabendo a escola, reconstruir tais concepções acrítica, de forma que a aluno se reconheça enquanto sujeito desta realidade, e que os fenômenos por ele visto tenham sentido no cotidiano, ou seja, que as crianças sejam formadas para ser sujeito da história e não mero telespectador de uma realidade em construção. Pois é evidente que, [...] tanto o mundo das relações sociais que rodeiam a criança como a esfera dos meios de comunicação que transmitem informações, valores e concepções ideológicas cumprem uma função mais próxima da reprodução da cultura dominante do que da reelaboração crítica e reflexiva da mesma. (GOMEZ, 1998, p. 25).

A escola tem por função reconstruir o conhecimento que o aluno traz de casa, de forma crítica e por meio de um processo democrático de educação, que desenvolva na criança autonomia para intervir criticamente na realidade que faz parte. Portanto, cabe a escola desenvolver sua função de modo a que promova a educação multicultural, pois, a escola recebe indivíduos heterogêneos e deve ter uma proposta de educação heterogênea para a promoção da diversidade cultural pela escola. Para Morin (1985), a perspectiva intercultural da educação reconhece o caráter multidimensional e complexo da interação entre sujeitos de identidades culturais diferentes e busca desenvolver concepções e estratégias educativas que favoreçam o enfrentamento dos conflitos, na direção da superação das estruturas socioculturais gerador as de discriminação, de exclusão ou de sujeição entre grupos sociais. Cabe à escola desenvolver um projeto de educação voltado as diferenças culturais, linguísticas, religiosas, econômicas, de orientação sexual e de gênero: Todo projeto supõe rupturas com o presente e promessas para o futuro. Projetar significa tentar quebrar um estado confortável para arriscar-se, atravessar um período de instabilidade e buscar uma nova estabilidade em função da promessa que cada projeto contém de estado melhor do que o presente. Um projeto educativo pode ser tomado como promessa frente a determinadas rupturas. As promessas tornam visíveis os campos de ação possível, compreendendo seus atores e autores. (GADOTTI, 1994, p. 79)

Pela concepção tradicional que vigorou por séculos na sociedade brasileira, esta estabelece modelos e ou padrões sociais de comportamento com base nas relações de poder e dominação social, política, econômica e, principalmente tecnológica e cultural, excluindo dos processos aqueles grupos e pessoas desprovidas do acesso as condições da tecnologia e com experiências de vida cultural diferenciadas dos modelos estabelecidos pela mundialização da cultura. Para Geertz (1978) a compreensão do ser humano, em sua dimensão essencial, pode ser encontrada justamente nas particularidades culturais dos grupos e ou dos povos. Portanto, trata-se de um ponto de vista científico, pois precisamos compreender os fenômenos culturais, não apenas na sua similaridade empírica entre os comportamentos dos diferentes grupos sociais, mas a relação que diferentes grupos, com padrões culturais diferentes, estabelecem entre si. Há a emergência em compreender que somos uma cultura possível, mas não a única. Neste caso, a falta de compreensão sobre a alteridade, aqui colocada enquanto grupo cultural proporciona a formação de uma falsa consciência que implica na não compreensão, na negação da Voltar ao sumário

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diversidade cultural e na riqueza e contribuição que cada grupo tem à humanização da civilização. O reconhecimento e respeito à diversidade cultural implica em dialogo entre as culturas, resultando no entendimento de totalidade de cada um dos grupos envolvidos. Em fins do século XX e meados do séc. XXI, o conceito multicultural está sendo discutido na maioria dos países que possuem sua composição pautada na heterogeneidade, por instituições democráticas e que apresentam uma realidade social resultante de uma colonização discriminatória. Para tal realidade se faz necessário discutir e colocar em prática o conceito de multiculturalismo, que pode ser entendido, como: “[...] a coexistência de formas culturais ou de grupos caracterizados por culturas diferentes no seio das sociedades modernas.” (SANTOS; NUNES, 2003). Outra definição é a dos autores Parekh e Zapata-Barrero, apresentada por Lucas (2010), onde estes procuram demonstrar que o multiculturalismo significa tanto a existência de mais de uma cultura em um mesmo espaço territorial, como também, a existência de processos políticos de reivindicações de direitos por parte dos grupos culturais que fazem parte do Estado Nacional. Ainda o multiculturalismo pode ser compreendido de mais duas formas diferentes, O primeiro exige o reconhecimento igualitário entre as diferentes culturas e sustenta que as discriminações contra as diferenças culturais devem ser eliminadas, defendendo, ao mesmo tempo, que, para funcionar de modo adequado, uma sociedade precisa estabelecer uma cultura política compartilhada. Neste tipo é valorizado o pluralismo cultural e o direito individual de todos poderem participar livremente de sua cultura. O segundo tipo, mais apegado ao relativismo cultural, propõe o reconhecimento e a proteção de diferentes grupos culturais, como sujeitos próprios de direito coletivo. Reclama a manutenção das entidades como realidades que possuem direito em si mesmas, pela importância determinante que têm na definição da identidade de seus integrantes. (LUCAS, 2010, p. 186).

Mesmo com várias definições de multiculturalismo por autores diferentes e vieses diferentes, todos apresentam algo em comum, que é a busca por projetos e conteúdos emancipatórios e contra hegemônicos, pautados em lutas e resistência pelo reconhecimento das diferenças e da diversidade. Destacamos aqui o papel das instituições sociais e de políticas públicas para possibilitar a saída de diversas culturas do estado de marginalizados em que ao longo da formação do Estado brasileiro o processo de colonização e depois o de imperialização foi impondo sobre os diferentes. A educação é uma forte instituição social que quando pensada e gestada de forma democrática, possibilita o reconhecimento, o respeito e a promoção dos diferentes de modo que as diferenças sejam mantidas nas suas especificidades, porém, com as mesmas condições e oportunidades que é conferida aquela parcela da sociedade que é tida como normal e que sempre foi beneficiada em detrimento das diferenças, e que sempre teve seus direitos garantidos seja no campo individual, social e político. Cabe à educação realizar uma formação sólida, crítica pautada em valores contra hegemônicos para promover não somente a dignidade humana das diferenças, mas também a emancipação social. Pois, somente uma ação educativa pautada em um currículo multiculturalista terá condição de enfraquecer os efeitos de um currículo hegemônico sobre a formação da consciência e do comportamento social dos estigmatizados como diferentes, garantindo assim, a saída do estado marginal, alienado, subjugado pela cultura dominante e conduzi-los a emancipação social. Voltar ao sumário

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Culturas marginalizadas em perspectivas pelo reconhecimento da diversidade

Outro enfoque educativo em que a educação deve se pautar para promover a diversidade, é o diálogo com as culturas, de modo específico no Brasil com a cultura indígena e acultura afro-brasileira. Assim, este novo processo educacional consiste em uma educação intercultural, que tem por intuito fortalecer os grupos culturais subalternos, de modo a fortalecer a identidade pessoal e cultural dos grupos sociais frente a conflitos provocados por processos em um primeiro momento de aculturação e atualmente de globalização econômica e cultural, que vem excluindo os diferentes grupos étnicos de processos culturais legítimos e promovendo com isso a exclusão dos diferentes das vivências simbólicas do próprio grupo de origem. O conceito de interculturalidade foi utilizado em um primeiro momento para “[...] indicar o conjunto de propostas de convivência e de relação democrática e criativa entre culturas diferentes” (FLEURI, 2009, p. 39). Percebe-se a aqui a possibilidade do diálogo entre as culturas, de modo que, ocorra a compreensão sobre as diferenças e a promoção destas. Este diálogo deve ocorrer entre as culturas, porém, o diálogo deve ser orientado pelo conhecimento objetivo, real da cosmovisão que cada grupo possui em relação a sua cultura. Um diálogo que parte pelo conhecimento interno da cultura e não um conhecimento que advém pelo olhar do outro e de fora da cultura. Aqui cabe a educação desenvolver projetos educacionais que garanta o conhecimento polissêmico da diversidade cultural e com isso consiga produzir uma consciência de respeito a todas as diversidades e para todas as diversidades. Somente assim pode-se falar em educação democrática e cidadã. Em que consiste a educação intercultural? [...] consiste em auxiliar as pessoas a se apropriarem do código que possibilita acessar o universo do outro, ou seja, os valores, a história, a maneira de pensar, de viver, entre outros. [...] Assim é possível inferir que a educação intercultural sugere que as pessoas aprendam a se habituarem a olhar, mediados por uma ótica diferente. Propõem mudanças cognitivas e emocionais que as levem a compreender como os outros pensam e sentem, e nesse processo retornem a si mesmos mais conscientes das suas próprias raízes culturais. (COPPETE; FLEURI; STOLTZ, 2012, p. 244).

Portanto, a educação é elemento preponderante para a construção de uma realidade social mais justa e com menos desigualdade social. Uma sociedade em que as diferenças não serão mais vistas enquanto algo estranho e sim, como algo natural. Mas para isso, é necessário que o princípio da equidade social seja promovido, que é, tratar os iguais de forma igual e os diferentes de forma diferente. Somente assim, a dignidade humana dos marginalizados na sua essência será promovida e as diferenças terão espaço, vós e vez na sociedade.

5 Considerações finais Os temas tratados neste texto revestem-se de extrema importância para o campo sociológico, antropológico e educacional. Pois estes nos esclarecem como o outro foi sendo produzido em terras brasileiras, foi sendo produzido como o estranho e desta forma foi sendo marginalizado, suas práticas culturais foram sendo desmanteladas e as poucas práticas culturais que foram sendo cultivadas, foram-na clandestinidade, deste processo que levou a subalternização das culturas, resultou no enfraquecimento e perda das identidades sociais destes grupos. Voltar ao sumário

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C. L. Orço, E. Iop

O outro colonizado teve sua cultura negada por séculos, de modo que ele próprio se convencesse de que o que era dito a seu respeito era realmente verdade, o que nos faz hoje ver e dizer, que principalmente o índio e o negro, mas isto pode se estender as demais diversidades, que eles são preconceituosos com sua própria condição, que eles mesmos se discriminam, e isso realmente é fato, pois foram séculos ouvindo de todos os lados que eles representavam o perigo em uma sociedade branca e proprietária. A marginalização destes segmentos sociais tem contato com o apoio dos mass media, que inculcam a todos valores hegemônicos, fazendo com que se forme com isso uma consciência unitária. No processo de globalização econômica e cultural, este apresenta dois viéses, o da homogeneização e o da fragmentação da cultura, porém, pode se perceber que em ambos a identidade está sendo enfraquecida, mesmo que de formas diferentes, mas em ambos os casos ocorre ou a massificação da cultura ou sua fragmentação, que neste último caso, as culturas necessitam se reorganizarem para reconstruírem a identidade cultural. Além dos mass media, outra área que contribui para a negação da diversidade foi a educação, que por meio de uma proposta pedagógica hegemônica não reconheceu a diversidade no interior das escolas, realizando por meio de um currículo unitário e de uma determinada visão de mundo a exclusão dos diferentes, levando estes a se constituírem enquanto classe sem acesso portanto, a cultura letrada e erudita. Porém, conclui-se que a educação atualmente vem repensando suas práticas pedagógicas e currículo, pelo fato de se constituir enquanto uma educação democrática e heterogênea, que tem por intuito uma educação para todos e o reconhecimento e promoção da diversidade. Para isso coloca-se como desafio novas funções para a escola do século XXI, funções estas pautadas no multiculturalismo, já que o Estado brasileiro se reconhece enquanto um Estado pluriétnico, ou seja, em território brasileiro se reconhece a existência da diversidade cultural.

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Culturas marginalizadas em perspectivas pelo reconhecimento da diversidade

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PARTE III DINÂMICAS TERRITORIAIS, DESENVOLVIMENTO RURAL E AGRICULTURA FAMILIAR


DINÂMICAS TERRITORIAIS DE DESENVOLVIMENTO RURAL: LAÇOS FRACOS E INSTITUIÇÕES EM EXPERIÊNCIAS DA AGRICULTURA FAMILIAR NA REGIÃO SUL DO BRASIL* Anelise Graciele Rambo** Claudio Machado Maia*** Clério Plein† Camila Vieira da Silva†† Eduardo Ernesto Filippi††

1 Introdução À luz de experiências de inserção de agricultores familiares em novos mercados1, visualizam-se múltiplas relações de poder que imprimem novos usos do território e tem transformado o espaço rural. Estes usos e transformações decorrem tanto das relações estabelecidas entre atores locais2 quanto pela influência de atores externos a este local, ou seja, organizações e instituições de múltiplas escalas, o que remete ao acesso de políticas públicas. É possível considerar que os mercados constituem uma das formas de interação da agricultura familiar com o restante da sociedade, o que vem a imprimir novos usos e transformações no espaço. Por um lado, existe uma visão dominante de que * **

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Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por meio do Edital MCT/CNPq/MEC/CAPES N º 02/2010. Doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS (2011). Docente do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). E-mail: <ane_rambo@yahoo.com.br>. Doutor em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Docente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). E-mail: <claudiomaia.dr@ hotmail.com>. Doutor em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul com estágio sandwich no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná. (UNIOESTE). E-mail: <clerioplein@ig.com.br>. Doutora em Desenvolvimento Rural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2013), pós-doutorado em Desenvolvimento Rural pela UFRGS (2014) e pós-doutoranda em Agriculturas Amazônicas na Universidade Federal do Pará. Docente do Programa de Pós-Graduação em Agriculturas Amazônicas (UFPA). E-mail: <camivs@gmail.com>. Doutor em Economia Política (Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, França, 2004). Docente nos Programas de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos Internacionais [PPGEEI] e em Desenvolvimento Rural [PGDR]. Professor Colaborador no Programa de Pós-Graduação em Economia [PPGE]. Professor Visitante na Université Paul-Valéry - Montpellier 3 (2015). E-mail: <edu_292000@yahoo.com>. Considera-se o novo em relação aos mercados habitualmente acessados pelos agricultores envolvidos nas experiências. Agricultores, entidades representativas, órgãos de pesquisa e extensão, ONGs.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-6

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S U M Á R I O


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os agricultores são totalmente dependentes do mercado, e por outro, uma visão alternativa de que os mercados são construções sociais. Neste sentido, propõe-se utilizar três abordagens: a territorial, valendo-se de conceito de território enquanto poder, do geógrafo Claude Raffestin, a Nova Sociologia Econômica (NSE), valendo-se das contribuições de Mark Granovetter, destacando a questão dos laços fracos e a Nova Economia Institucional (NEI), considerando o conceito e o papel das instituições trazidas por Douglass North. Ao entender o território enquanto relações de poder (RAFFESTIN, 1993), e por sua vez, o poder numa perspectiva relacional não restrito ao jurídico-político do Estado, mas de natureza econômica, simbólica, resultante de relações sociais e múltiplos atores, entende-se que tanto a NSE quanto a NEI são inerentes à dinâmica territorial do desenvolvimento em geral e do desenvolvimento rural em particular. Para demonstrar esses elementos, o presente artigo está estruturado em sete seções. Segue esta introdução, uma seção que trata a abordagem territorial do desenvolvimento rural. Em seguida, são apresentadas questões relativas à NSE e à NEI que importam às discussões sobre as dinâmicas territoriais de desenvolvimento. Na sequência segue-se com a apresentação dos estudos de caso. Em seguida, analisa-se o papel dos laços fracos e das instituições. Por fim, constam as considerações finais e referências bibliográficas.

2 Compreendendo o desenvolvimento rural enquanto dinâmica territorial As abordagens territoriais estão cada vez mais presentes nas discussões tanto da academia quanto das políticas públicas, em especial, àquelas voltadas ao desenvolvimento rural. A diversidade de estudos nesta perspectiva traz consigo uma multiplicidade de significados. Nesta pesquisa, propõe-se uma abordagem política de território, a partir das contribuições de Claude Raffestin, bem como de uma perspectiva integradora/relacional, a qual considera que não há vida sem, ao mesmo tempo, atividade econômica, poder político e criação de significado, de cultura. Por conseguinte, o território é concebido a partir da imbricação de múltiplas relações de poder, ora mais materiais, das relações econômicas e políticas, ora mais simbólicas, das relações culturais (HAESBAERT, 2004). Raffestin (1993) compreende o território enquanto produto dos atores sociais, do Estado ao indivíduo, passando por todas as organizações, pequenas ou grandes. São esses atores que produzem o território, composto por tessituras, nós e redes3. É a partir deste sistema territorial (tessituras, nós e redes) que é exercido o controle, originando as relações de poder. Ao considerar as experiências de inserção em novos mercados realizadas por agricultores familiares, a priori, são observadas diferentes relações de poder entre 3 A tessitura ou malha é a base, ou o substrato do território, é o que há de mais concreto e enraizado. Seus limites são definidos pela ação dos nós ou dos pontos, os quais estabelecem redes ou fluxos, reforçando os limites ou as fronteiras dessa malha e dando dinamicidade ao território. Os pontos simbolizam a posição dos múltiplos atores territoriais, representando locais de poder e referência. Atores e redes relacionam-se ainda com nós externos a tessitura, ou então, com atores de escalas externas, tornando este território mais dinâmico e fluido. Voltar ao sumário

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Dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural...

múltiplos atores de distintas escalas. Estas relações sugerem sinergias e assimetrias, envolvem costumes, hábitos, normas, regras e leis. Envolvem dinâmicas e redes locais, bem como extra-locais (regionais, estaduais, nacionais...). De modo a compreender estas relações e redes entre atores e escalas, ou então, entre estruturas sociais e condições institucionais, propõe-se trazer para a discussão, elementos da NSE e da NEI. O exercício de poder dos atores sobre o espaço se dá por meio de estruturas organizacionais que são mediadas ou atuam sob condições institucionais, que, ora limitam, ora potencializam as experiências desencadeadas localmente. Além disso, as próprias estruturas organizacionais podem dar origem a instituições na escala que atuam, na medida em que passam a ser referência para a ação dos atores daquele recorte. Assim sendo, considera-se desenvolvimento territorial como uma expressão que inclui o desenvolvimento de localidades e se refere a processos de mudança sócio-econômica, pautado em objetivos como (1) o aperfeiçoamento do território entendido como um sistema físico e social estruturalmente complexo, dinâmico e articulado, (2) o aperfeiçoamento da sociedade ou comunidade que habita esse território; (3) o aperfeiçoamento de cada pessoa, que pertence a esse território (BOISIER et al., 1995). Considera-se que a abordagem territorial vai ao encontro da ideia de desenvolvimento como liberdade de Amartya Sen. Ou seja, o desenvolvimento enquanto remoção das restrições que limitam as escolhas e oportunidades das pessoas, um processo de alargamento das liberdades (SEN, 1999). Na medida em que os atores exercem poder por meio de diferentes iniciativas, impregnando novos usos do território para atender seus interesses, são criadas possibilidades de alargamento de suas liberdades.

3 A Nova Sociologia Econômica e a dinâmica territorial do desenvolvimento rural A Nova Sociologia Econômica surge com os escritos de Mark Granovetter, a partir da década de 1970, quando o autor volta seus esforços no sentido de compreender os mercados enquanto extrapolações de redes sociais. Três proposições principais orientam sua reflexão: a ação econômica é uma forma de ação social; a ação econômica é socialmente situada; e as instituições econômicas são construções sociais (GRANOVETTER, 1985, 1990; SWEDBERG; GRANOVETTER, 1992). Focando o mercado, o autor considera que a maior parte do comportamento humano está enraizado (embeddedness) em redes de relações interpessoais. O homem, em maior ou menor grau, sempre elaborou seus cálculos econômicos a partir da sua inserção em redes sociais. A natureza dessas redes e a posição do ator nelas deveriam ser pontos de partida para a análise da vida econômica. Os atores não se comportam nem tomam decisões como átomos fora de um contexto social, e nem adotam de forma servil um roteiro escrito para eles. Suas tentativas de realizar ações com propósitos estão imersas em sistemas concretos e contínuos de relações sociais (GRANOVETTER, 2007). Nessa perspectiva, o mercado é entendido como lugar de articulação entre agentes e assim, o fato econômico é um fato social e estas articulações oferecem acesso a recursos (STEINER, 2006). Ao observar as relações sociais, Granovetter (1973) trata dos laços fortes e laços fracos. Os laços fortes referem-se àqueles de parentesco e amizade. São mais funcionais à mobilização de recursos apoiados na solidariedade e derivados de relações Voltar ao sumário

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sociais, cuja intensidade dos contatos e a pequena distância social entre os atores são características centrais. Os laços fracos, por sua vez, são aqueles que têm por principal característica a mobilização de recursos localizados na esfera pública, proporcionam o acesso a recursos fora do âmbito da rede social mais restrita, representada pelos laços fortes. Enfim, os laços fortes e, sobretudo, os laços fracos, a priori, se fazem presentes nos casos pesquisados, tanto no momento de sua formação, quanto na medida em que interagem com atores que vão além de sua rede social, o que mostra uma interação entre diferentes escalas ou níveis, como tratado por Granovetter (1973). Entende-se, portanto, que conceitos como embeddedness, redes sociais, laços fortes e laços fracos podem contribuir nas análises das dinâmicas territoriais do desenvolvimento, sobretudo para compreender como as experiências de inserção em novos mercados se constituem no local. Entretanto, embora possibilite compreender como os atores, ou neste caso, como os agricultores familiares se mobilizam, buscando a inserção nos mercados, considera-se que há elementos para além das estruturas sociais, bem como da escala local, que interferem na dinâmica territorial do desenvolvimento rural. É neste momento que as instituições, ou, as regras do jogo das quais trata Douglass North, interferem na dinâmica dos jogadores e de suas estruturas sociais.

4 A Nova Economia Institucional e a dinâmica territorial do desenvolvimento rural Na análise da dinâmica territorial do desenvolvimento rural, entende-se que a abordagem de Granovetter permite melhor compreender as estruturas sociais, enquanto a abordagem institucional de Douglass North permite interpretar as condições institucionais que mediam e atuam sobre as experiências de inserção em mercados. Para Souza (2006, p. 39), “a contribuição do neo-institucionalismo é importante porque a luta pelo poder e por recursos entre grupos sociais é o cerne da formulação de políticas públicas. Essa luta é mediada por instituições políticas e econômicas que levam as políticas públicas para certa direção e privilegiam alguns grupos em detrimentos de outros”. Douglass North focaliza a formação de instituições políticas e econômicas e suas conseqüências no desempenho econômico através dos tempos. Quanto à definição de instituições, North as entende como as regras do jogo em uma sociedade ou, as coerções projetadas que moldam a interação humana. Em consequência, elas estruturam incentivos nas trocas humanas – políticas, sociais ou econômicas. As mudanças institucionais moldam a forma como as sociedades evoluem ao longo do tempo e, portanto, seriam a chave para compreender mudanças históricas. As instituições podem ser tanto formais – leis e constituições formalizadas e escritas, em geral impostas por um governo ou agente com poder de coerção – quanto informais – normas ou códigos de conduta, formados em geral no seio da própria sociedade (NORTH, 1990). As organizações incluiriam corpos políticos, econômicos e sociais, referindo-se a grupos de indivíduos ligados por algum motivo comum para atingir determinados objetivos. Incluem órgãos políticos, organismos econômicos, entidades sociais

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e órgãos educacionais. Em outras palavras, as instituições seriam as regras do jogo enquanto as organizações seriam os jogadores (NORTH, 1990). Para North (1990), as instituições não apenas constrangem escolhas como também modelam o comportamento. Destaca que é preciso haver instituições que ampliem o leque de oportunidades a fim de promover o surgimento das organizações necessárias (NORTH, 1994). O autor considera que o desempenho das organizações estaria pautado na existência de “boas” instituições, ou seja, aquelas que garantem o pleno funcionamento do mercado. A possibilidade de ação ou atuação dos atores depende dos arranjos institucionais nos quais estes estão inseridos. Frente ao mencionado, surge uma questão: o que seriam “boas” instituições em sociedades com grandes desigualdades sócio-econômicas e, sobretudo no espaço rural marcado por uma diversidade significativa de atores e atividades? Neste contexto, como se dá a relação entre estruturas sociais e as condições instituições em diferentes escalas? Portanto, é pertinente levar em conta que as instituições atuantes sobre estruturas sociais, nem sempre estão enraizadas nos contextos sob as quais atuam. Fernández (2008) destaca que as regras, dinâmicas, atores e instituições globais e nacionais penetram permanentemente as realidades locais e regionais e tendem a criar múltiplas desigualdades e subordinações que explicam a persistência e aprofundamento das assimetrias regionais. Tal afirmação permite considerar que instituições e as mudanças institucionais envolvem relações de poder e, compreender como isso se expressa nas estruturas sociais, faz parte de uma análise territorial do desenvolvimento rural.

5 Dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural no Sul do Brasil A seguir serão apresentadas as experiências a partir das quais se pretende demonstrar como a dinâmica territorial do desenvolvimento rural vem sendo potencializada a partir do fortalecimento dos laços fracos que, mediatizados por diferentes instituições, acessam políticas públicas para viabilizar a inserção em novos mercados.

5.1 O Programa Municipal de Desenvolvimento Agroindustrial Pacto Fonte Nova/RS O processo de constituição desta experiência foi iniciado em 1998, inclusive com a criação do selo de qualidade Fonte Nova, quando lideranças do município iniciaram a implantação de ações, que viriam a mudar o perfil produtivo de algumas propriedades rurais. Um programa de desenvolvimento local, denominado Pacto Fonte Nova foi criado, no qual agroindústrias foram sendo instaladas por ações conjugadas do produtor com órgãos de assistência técnica e decisões políticas da administração pública. Seu objetivo consistiu em diminuir o sistema de monocultura, que levou muitos agricultores a vivenciar situações de “fracasso” nas propriedades rurais (CERVI, 2006). Em dezembro de 2002 foi criada a Cooperativa das Atividades Agroindustriais e Artesanais do Pacto Fonte Nova – Cooper Fonte Nova. Conforme Cervi (2006), o processo cresceu e, em 2003, entendeu-se que o foco deveria incluir o turismo rural, Voltar ao sumário

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pois se tornou necessário pensar uma organização para receber o grande número de turistas e pesquisadores que chegavam ao município. Crissiumal hoje é conhecido como “Terra das Agroindústrias”. Ao participar do Programa, o produtor tem o apoio técnico das entidades que atuam no município com relevante participação do escritório municipal da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater) em conjunto com a Prefeitura. Foi constituído o Conselho de Desenvolvimento Rural, criando fundos de desenvolvimento com dotação orçamentária, e mantendo a Legislação Sanitária e o Serviço de Inspeção Municipal. Também é de responsabilidade da Prefeitura manter o convênio com a Emater, firmar parcerias com os organismos de extensão, para que os agricultores envolvidos possam estar preparados tecnicamente, e aperfeiçoando-se através de cursos e de treinamentos. Para dar maior apoio ao Pacto, o poder público municipal, se valeu de dispositivos institucionais como a criação do Fundo de Desenvolvimento Agropecuário de Crissiumal (Fundac), Lei Municipal N° 1.365, de 1997, que permite a participação do poder público municipal no financiamento do investimento físico de empreendimentos; além da Lei Municipal N° 1.433, de 1998 que institui o Programa de Fortalecimento Agroindustrial “Pacto Fonte Nova”. Em 2001, pela Lei Municipal N° 1.615, é instituído o Conselho Municipal de Representação Popular (CMRP). Este Conselho participa das decisões tomadas acerca do desenvolvimento do município. Em 2009, é implementada a Lei Municipal N° 2.385 que cria o Programa Desenvolver e autoriza o Poder Municipal a conceder incentivos aos agricultores familiares. O Fonte Nova conta hoje com 31 empreendimentos4, em 2011 gerou mais de 210 empregos diretos, industrializa cerca de 100 produtos e o faturamento bruto anual de 2002 foi de mais de R$ 1,5 milhão de reais (PACTO FONTE NOVA, 2011).

5.2 A produção de etanol pela agricultura familiar no noroeste do RS A trajetória de produção de etanol no noroeste do RS tem sua gênese na organização social desta região, a qual se torna mais expressiva a partir da mobilização dos atores locais diante dos problemas gerados pela Revolução Verde, a partir da década de 1970. São estas mobilizações que dão origem a Associação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais Fronteiriços (ASTRF). Esta entidade foi um ator importante na constituição da Cooperativa dos Produtores de Cana de Porto Xavier (Coopercana), outro marco da organização regional. A história da Coopercana tem início em 1984 quando é constituída a Alpox S/A (Usina de Álcool de Porto Xavier), incentivada pelo Proálcool. As divergências entre sócios majoritários (empresários) e minoritários (agricultores familiares) e o desencadeamento de uma crise financeira na usina levou a constituição da Coopercana, formada pelos agricultores familiares e funcionários. Nesse processo, foi fundamental a mobilização das igrejas, do Sindicato de Trabalhadores Rurais (STR), da ASTRF e da Cooperativa de Pequenos Agricultores de Porto Xavier (Coopax) para 4 Compõem o programa, agroindústrias produtoras de derivados de mel, leite, carne, cana de açúcar, mandioca, frutas, conservas, bolachas, pães, cucas e tortas, erva mate, hortigranjeiros e frutas, vassouras, sabão, artesanato e tijolos. Um dos ramos da agroindústria que mais se destaca é o voltado ao processamento da cana de açúcar, podendo-se citar o caso da cachaça orgânica exportada para a Alemanha e Estados Unidos. Voltar ao sumário

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Dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural...

motivar e organizar agricultores e funcionários em prol da criação da Cooperativa5. Ambas, ASTRF e Coopercana são marcos da organização local e, junto a outros atores, são parceiras nos 11 projetos de microdestilarias. Essa trajetória de mobilizações e organizações abre um espaço de discussão sobre a produção de etanol por pequenos grupos de agricultores familiares. Outro motivo que contribui para a expansão é o fato da cultura já estar presente em grande parte das pequenas propriedades rurais daquela região (embora para o autoconsumo), bem como a existência de um micro-clima favorável, idêntico ao tropical. A partir das primeiras ações em prol da constituição da microdestilaria do município de Dezesseis de Novembro e do interesse manifestado em diferentes municípios, a ASTRF e a Arede junto com o Poder Público Municipal e STRs dos municípios interessados, Coopercana, Cooperativa de Eletrificação e Desenvolvimento da Fronteira Noroeste Ltda. (Cooperluz), a Cooperativa Central da Agricultura Familiar Ltda. (Unicooper), ONG Políticas Públicas - Outro Mundo é Possível (PPOMP), implementam o Fórum de Energias Renováveis Missões e Fronteira Noroeste. O Fórum propõe apoiar a elaboração dos projetos técnicos das microdestilarias (AMARAL, 2007). Outra organização ligada às microdestilarias é a Unicooper, formada pelas cooperativas da agricultura familiar, que incentivam a produção, processamento e comercialização de produtos diversificados e alternativos ao plantio da soja. A Unicooper possui como foco a produção de alimentos, destinados ao Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). No intuito de incentivar a diversificação produtiva, a Unicooper apoia também a produção de etanol. Ao todo são 11 projetos em municípios do noroeste do RS, dos quais 05 microdestilarias estão instaladas e 03 produzindo etanol. Segundo Bernardi (2010) estes projetos envolverão cerca de 400 famílias entre agricultores e assentados da reforma agrária. Estas agroindústrias valeram-se de recursos de diferentes políticas públicas evitando o acesso ao Programa Nacional de Produção e Uso do Biodiesel (PNPB). Os atores locais consideraram este, pouco adequado às especificidades da agricultura familiar regional. Construiu-se o consenso de que o Programa poderia levar ao retorno da monocultura da soja, ou seja, de encontro ao esforço regional de diversificar a produção e as fontes de renda dos agricultores familiares. Quando da realização da pesquisa de campo, as duas experiências mais desenvolvidas foram analisadas. No caso do município de Dezesseis de Novembro, cinco famílias se reuniram em torno da produção de etanol. No ano de 2008 foram produzidos 30.000 litros. A Associação obteve recursos do Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat) e do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) Agroindústria. Toda produção do etanol, até o momento, é comercializada de modo informal, sendo a demanda maior que a produção. No caso da Associação Agrícola São Carlos (Aasca) do município de Porto Xavier, ainda não havia produção de etanol, porém esta associação apresenta uma produção diversificada. Também formada por cinco famílias, basicamente jovens e mulheres, 5 A Coopercana conta com cerca de 300 associados que cultivam cana em propriedades de 5 a 20 ha, totalizando em 2007, cerca de 2,5 mil hectares produzindo cana. Mesmo sendo a única usina de etanol do Estado, atende a apenas 4% da demanda do RS. Voltar ao sumário

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a agroindústria produz derivados de cana, tais como, melado, melaço, açúcar mascavo e cachaça, produção esta orgânica e sem utilização de fogo nos canaviais. No intuito de ampliar as alternativas de renda e diversificação da produção, a Aasca produz panifícios e picles, incentivada pelo PAA e Pnae, além de recursos obtidos pelo Pronat. Atualmente depende da adequação dos equipamentos para passar a produzir etanol.

5.3 Comercialização de Pinhão na região de Lages/SC Nos últimos anos vem sendo realizadas articulações entre os Ministérios do Meio Ambiente (MMA), do Desenvolvimento Agrário (MDA) e do Desenvolvimento Social (MDS), numa tentativa de integração de ações de combate à pobreza, conservação da biodiversidade e de apoio à agricultura familiar. Estas propostas iniciam com o Plano Nacional de Promoção das Cadeias de Produtos da Sociobiodiversidade (PNPSB), cujo objetivo é desenvolver ações integradas para a promoção e fortalecimento das cadeias de produtos da sociobiodiversidade. Na Mata Atlântica as primeiras iniciativas estão acontecendo com a priorização da cadeia do pinhão, erva-mate, juçara e piaçava. Decorre disso, e da possibilidade de entrada destes produtos nas compras públicas e na política de preço mínimo, o esforço da Cooperativa Ecoserra e do Centro Vianei6 em mediatizar a venda de pinhão por grupos agroecológicos sócios da Cooperativa, também assistidos pelo Centro. São exemplos dessas ações: (a) a venda de pinhão para formação de estoque para o PAA, pelos grupos agroecológicos sócios da Ecoserra e atendidos pelo Centro Vianei; (b) a reforma de uma agroindústria desativada para o processamento de pinhão, com vistas à venda para alimentação escolar (Pnae) e para turistas da região, por um grupo agroecológico de Urubici7. No caso da comercialização do pinhão para a formação de estoque, a cooperativa tem encontrado problemas, pois há a exigência de uma qualidade mínima do pinhão e da embalagem. Os agricultores necessitam ainda levar o pinhão até o município de Lages8, onde fica a sede da cooperativa. Ademais, na venda do pinhão para o PAA, o pagamento não é feito à vista. Para entregar a atravessadores, a exigência em qualidade e embalagem é menor: os mesmos buscam o pinhão na casa do agricultor e fazem o pagamento à vista. Observou-se que para o pinhão existe uma “regra informal” de que o pagamento deve ser à vista, pois é com o dinheiro do pinhão que os agricultores pagam suas dívidas. Ademais, a diferença do preço pago entre o PAA e o atravessador é praticamente inexistente. Em relação à agroindústria a expectativa é maior. Embora tenha entrado em funcionamento em 2010, esta começa a ser implementada em 2003, por meio de uma negociação entre a prefeitura de Urubici, o grupo agroecológico, a Ecoserra e o Centro Vianei, que obtiveram por meio de comodato, o terreno e a estrutura de uma antiga escola desativada da comunidade. Com o intuito de conseguir recursos 6 O Centro Vianei de Educação Popular é uma ONG fundada em 1983, com atuação nos movimentos e organizações populares e na assessoria aos trabalhadores rurais organizados ou em processo de organização. 7 O grupo é composto por 11 famílias. Deste grupo, 03 agricultoras também possuem uma panificadora junto com um café, onde servem café colonial, almoços e vendem produtos por elas beneficiados. Os recursos para o café e para a panificação também foram obtidos por projetos da Ecoserra e Centro Vianei. 8 Os agricultores que fornecem pinhão são de toda a região serrana: Urubici, Painel, São Joaquim, etc. Voltar ao sumário

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para as reformas e equipamentos, o Centro Vianei e a Ecoserra elaboraram projetos encaminhados tanto para editais do governo federal quanto para organismos internacionais e fundações. É também, por meio de articulações destas duas entidades que se conseguiu um protótipo de uma máquina para descascar pinhão, o qual está em funcionamento para teste na agroindústria. Atualmente, o grupo agroecológico está processando pouca quantidade de pinhão. Contudo, está em negociação por intermédio do Centro Vianei e da Ecoserra a venda do pinhão processado para o Pnae, o que tem se mostrado promissor para os agricultores que só comercializavam pinhão in natura.

5.4 Produção e comercialização de plantas medicinais9 no município de Turvo/PR A agricultura familiar é uma das categorias sociais mais atingidas pelos problemas econômicos do município de Turvo, localizado na região central do Estado do Paraná, a qual apresenta baixos índices de desenvolvimento. Estes problemas são agravados pela falta de alternativas de produção e geração de renda. As famílias de agricultores estão inseridas em pequenas áreas remanescentes da floresta de araucária, no bioma da mata atlântica. Nestas áreas, historicamente predominou uma forma de organização denominada Faxinal, na qual as áreas de cultivo para subsistência, com milho e feijão, eram separadas das áreas de criação animal, utilizadas de forma comunitária, onde os animais eram criados soltos e se alimentavam principalmente dos produtos da floresta. Na referida região, está inserido o Instituto Agroflorestal Bernardo Hakvoort (IAF), ONG que desde 1995 vem desenvolvendo trabalhos com os agricultores familiares do município, baseados na agroecologia, conservação e preservação ambiental. A solução encontrada foi a viabilização de alternativas de renda sustentáveis do ponto de vista social, ambiental e econômico no ambiente de floresta. Entre as alternativas, destaca-se o cultivo e o manejo de plantas medicinais nativas, que atualmente representa a maior fonte de renda dos agricultores familiares acompanhados pelo IAF. O processo teve início em 1996, quando, principalmente as agricultoras, se reuniram em grupos e realizaram cursos de capacitação. O objetivo do projeto foi consorciar a preservação ambiental com fontes de geração de renda para os agricultores familiares que vivem nos faxinais, utilizando de forma sustentável os recursos da floresta para a melhoria da qualidade de vida das famílias. Em janeiro de 2006, os agricultores sentiram a necessidade de fundar uma cooperativa com o objetivo de organizar o processo de comercialização de plantas medicinais e outros produtos oriundos da floresta, como é o caso da erva mate e do pinhão. Trata-se da Cooperativa de Produtos Agroecológicos, Artesanais e Florestais de Turvo (Coopaflora) que atualmente é composta por 96 agricultores. A cooperativa adota a marca Arvoredo Brasil para identificar seus produtos. Considerando a produção entre 1998 (240Kg/anuais de plantas desidratadas e 31 famílias envolvidas) e 2009 (63.428 240Kg/anuais e 170 famílias), importa destacar que a partir de 2006 houve um aumento significativo na produção. Isso decorre da parceria da empresa Natura com o IAF através de um projeto social com comunidades tradicionais. Isso se reflete no aumento do número de famílias que participam, bem 9 Inclui plantas aromáticas e condimentares. Voltar ao sumário

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como, no aumento de produtos comercializados, incrementando as rendas auferidas com as plantas medicinais. Do ponto de vista das técnicas produtivas, destaca-se a adoção dos sistemas orgânicos e agroecológicos. O processo de certificação é feito por três certificadoras: Ecovida, Ecocert e Imo, sendo produzidas e comercializadas 29 espécies10. A comercialização desta produção é realizada por vários canais, no Brasil e no exterior (EUA e França). Conforme dados fornecidos pelo IAF, a produção não consegue atender a demanda crescente pelos produtos. Para o ano de 2011 havia demanda para 94.300 Kg, porém, a produção girava em torno de 69.215 kg.

6 Analisando o papel dos laços fracos e das instituições nas dinâmicas territoriais Quanto ao papel dos laços fracos na inserção em novos mercados, este demonstra grande importância. Nos casos das microdestilarias, observou-se que a gênese das associações produtoras de etanol decorre de uma trajetória histórica regional de mobilização dos atores em torno de suas demandas e necessidades. Além disso, uma experiência anterior de produção de etanol, aliada a cultura existente em torno do cultivo da cana de açúcar também incentivou os projetos. Ou seja, há um significativo enraizamento histórico desta experiência. Já nas demais experiências, os laços fortes mostram-se menos atuantes, destacando-se o fortalecimento dos laços fracos ao longo das trajetórias. Granovetter (1973) enfatiza que os atores não se comportam nem tomam decisões como átomos, nem adotam de forma servil um roteiro escrito para eles. Portanto, a maior parte do comportamento, inclusive a ação econômica, estaria enraizada em redes de relações interpessoais. Embora isto esteja presente nas quatro experiências analisadas, fica mais evidente no caso das microdestilarias. O enraizamento histórico e as redes que se formaram em torno das experiências, contribuíram para que os atores locais deixassem de acessar o PNPB, pois consideravam que este ia de encontro às ações de incentivo a diversificação produtiva na região, além de possibilitar à agricultura familiar apenas o fornecimento de matérias-primas para a indústria e não seu processamento pelas famílias. Por outro lado, o enraizamento também é uma característica evidente nas experiências analisadas. Ou seja, os novos mercados nos quais os agricultores se inserem resultam de relações interpessoais e de uma trajetória histórica anterior, pautada em potencialidades já existentes e que passam a ser exploradas ou potencializadas nos territórios analisados. No que se refere às instituições que mediatizam o processo de inserção dos agricultores nos mercados, visualiza-se especificidades que merecem ser detalhadas. Para North (1990), as boas instituições seriam aquelas que garantem o pleno funcionamento do mercado. Diante disso, é possível afirmar que o Estado é uma das instituições de grande importância para a inserção dos agricultores familiares nos diferentes mercados. 10 São elas: alcachofra, alecrim, alfazema, calêndula, camomila, capim limão, carqueja, cavalinha, chapéu de couro, endro, espinheira santa, funcho, guaco, macela, manjericão, manjerona, maracujá, melissa, menta, mil folhas, orégano, pata de vaca, perpétua, pitanga, poejo, salvia, sete sangrias, tanchagem, tomilho. Voltar ao sumário

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Decorrente da ação do Estado pode-se citar a Lei N. 11.326 de 2006 que institucionaliza a agricultura familiar, dando maior suporte as demais políticas voltadas à mesma (Pronaf, PAA, Pnae, Pronat). Souza (2006), afirma que a luta pelo poder e por recursos entre grupos sociais é o cerne da formulação de políticas públicas, as quais podem privilegiar grupos em detrimento de outros. No caso da Lei N. 11.326, a agricultura familiar é fortalecida, representando mudanças institucionais que vem moldando a forma como a sociedade, ou como estes atores sociais vêm evoluindo (NORTH, 1990, 1994). Vale destacar que tanto a referida Lei quanto o Pronaf (primeira política pública voltada à agricultura familiar) são resultados da interação entre as instituições e organizações e vem modelando a evolução institucional no Brasil no que se refere ao rural (NORTH, 1994). Enfim, o Estado – suas legislações e políticas públicas – caracteriza uma instituição que tem contribuído para a inserção dos agricultores familiares em novos mercados. Já as especificidades surgem quando se passa a analisar as instituições nas escalas locais das experiências. O Pacto Fonte Nova é a experiência na qual as instituições locais mostram-se mais consolidadas, sobretudo enquanto regras formais, uma vez que o próprio Pacto foi institucionalizado por meio de Lei Municipal. Deste modo, o Fonte Nova passa a estruturar incentivos nas trocas humanas: (a) trocas políticas, no que se refere às relações entre atores, Estado, sociedade civil e mercado que resultam em normas formais (leis municipais ) e informais (o consenso em torno de produzir, comercializar e consumir produtos locais, por exemplo); (b) trocas sociais, representadas pela cooperação entre atores de diferentes segmentos, visando externalidades positivas para a agricultura familiar e para a comunidade local. Trocas econômicas, uma vez que o Fonte Nova é um programa que incentiva a produção agroindustrial. Diferente do Pacto, no caso das microdestilarias, a distinção entre organizações e instituições não é evidente. Se as instituições são as regras do jogo e as organizações os jogadores (NORTH, 1990), na escala regional é possível afirmar que as instituições estão enraizadas nas próprias organizações. Por exemplo, organizações como Arede, o Fórum de Energias Renováveis e a própria Coopercana, além de serem atores ativos nas trajetórias das microdestilarias – jogadores – também se tornam referências na escala regional, orientando comportamentos, moldando a interação humana, estruturando incentivos nas trocas humanas. Outra especificidade quanto às instituições ocorre no caso do mercado do pinhão na região de Lages. Este caso é marcado por uma norma informal, qual seja, o pagamento à vista do pinhão. Esta norma, por vezes, tem limitado a adesão às políticas públicas como PAA e Pnae, cujas regras parecem pouco adequadas à realidade local dos agricultores familiares. Assim, esta regra informal pode caracterizar um elemento de path dependence, ou seja, uma influência do passado sobre o presente capaz de interferir no futuro (NORTH, 1994). No caso de Santa Catarina, destacam-se instituições mediadoras como a Ecoserra e o Centro Vianei e, no caso da comercialização das plantas medicinais no Paraná, o IAF e a Rureco, instituições estas que assumiram importante papel de mediação entre os agricultores e as políticas públicas – uma espécie de ponte entre os agricultores e o mercado. Enfim, a trajetória das experiências aponta que, tanto as organizações locais que assumem caráter de instituições nesta escala, quanto as regras e políticas públicas que emanam do Estado, influenciam o uso e a transformação do território por parte

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dos agricultores familiares. Deste modo, as instituições têm fornecido estruturas de incentivos às experiências locais. Ademais, quanto ao acesso a políticas públicas, pode-se observar que a inserção dos agricultores em novos mercados passa por estas. Se por um lado, as experiências têm sua gênese marcada pelo fortalecimento de laços fracos, por outro, estas acessam os mercados por meio das políticas públicas, consideradas aqui condições institucionais. Abramovay e Veiga (1999) tratam da importância das políticas quando afirmam que a exploração da nova dinâmica territorial supõe políticas públicas que estimulem a formulação descentralizada de projetos capazes de valorizar os atributos locais e regionais no processo de desenvolvimento. O desenvolvimento rural não acontecerá espontaneamente como resultado da dinâmica das forças de mercado, mas na elaboração das políticas capazes de promovê-lo. Nos quatro casos, observa-se que as políticas públicas têm potencializado as experiências, ora influenciando seu fortalecimento por meio do aumento do número de associados, ora dando origem a novas organizações, permitindo a inserção nos mercados. Pecqueur (2005) também salienta que as formas de desenvolvimento territorial são diversas e específicas às situações, e exigem uma ação pública adequada. Portanto, o desafio do Estado está em construir condições institucionais capazes de abarcar a diversidade que marca a agricultura familiar, que só nos casos analisados, passa pela produção de alimentos, combustíveis, plantas medicinais e atividades turísticas.

7 Considerações finais Pelas análises das trajetórias dos casos nos três estados do Sul do Brasil é possível afirmar que as experiências são representativas do que vem se denominando nova ruralidade. Ou seja, um rural não mais enquanto oposição ao mundo urbano, um espaço de atividades e ocupações agrícolas. O rural hoje se caracteriza por uma diversidade de ocupações, serviços e atividades produtivas, por novas funções não exclusivamente produtivas, bem como por sua revalorização e uma maior interação ativa e recíproca do rural com o urbano e vice-versa (KAGEYAMA, 2008; SCHNEIDER, 2009). Neste sentido, pode-se citar além da produção de alimentos, também o seu processamento, sobretudo aqueles comercializados via PAA e Pnae, a produção e comercialização de etanol, cachaça, vassouras, plantas medicinais, os roteiros turísticos em torno do pinhão e do Pacto Fonte Nova. Estas são experiências que, por diferentes trajetórias, levam à inserção dos agricultores familiares em novos mercados, diferentes daqueles nos quais os agricultores habitualmente se inseriam. Estas o fazem, por conta dos laços fracos, das instituições e das políticas públicas envolvidas no processo. É possível ainda visualizar diferentes trajetórias e dinâmicas territoriais de desenvolvimento rural, na medida em que os atores locais têm reforçado seu poder sobre o território por meio de novos usos políticos (criação de associações, cooperativas, acesso a políticas públicas, como PAA, Pnae, Pronaf, Pronat...) e econômicos (comercialização de diferentes produtos agroindustriais, de plantas medicinais, de pinhão, de etanol). Ou seja, começa a ocorrer uma expansão das liberdades dos agricultores familiares a partir do fortalecimento dos laços fracos e consequentemente inserção em novos mercados. Esta inserção possibilita aos agricultores a capacidade Voltar ao sumário

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de realizar funcionamentos (capability to function), ou seja, oportunidades de escolha acerca de possíveis estilos de vida, na perspectiva apresentada por Sen (1999). Deste modo, pode-se considerar que está havendo um aperfeiçoamento do território, da sociedade e dos indivíduos, como trata Boisier (1995). As experiências têm promovido o aperfeiçoamento do território, na medida em que vem contribuindo para a diversificação das atividades produtivas e a inserção nos mercados, têm incentivado a produção de alimentos, bem como atividades mais sustentáveis, pelas iniciativas de produção orgânica ou agroecológica. A produção do etanol, embora não seja um alimento, está integrada aos demais sistemas de produção, e também representa uma atividade mais sustentável, por substituir combustíveis fósseis. Tem promovido o aperfeiçoamento da sociedade que habita os territórios pelos alimentos disponibilizados à comunidade (pelo PAA, Pnae), pela produção de plantas medicinais e pelo fornecimento de um combustível menos poluente. Além disso, têm promovido o aperfeiçoamento das pessoas, pois, segundo os próprios atores envolvidos, a auto-estima vem aumentando e novas fontes de renda estão sendo proporcionadas. Os depoimentos abaixo procuram evidenciar isso. Por outro lado, ainda há desafios a serem superados na promoção do desenvolvimento rural, seja por parte dos atores diretamente envolvidos nas experiências, seja por parte dos policymakers e das políticas públicas. Alguns desafios remetem à capacidade de negociação de preços; possibilidade para atender a demanda pelos produtos; a legislação ambiental pouco adequada à diversidade de realidades da agricultura familiar; descompassos entre liberação de recurso e a safra; falta de tecnologia apropriada ao pequeno porte da agricultura familiar; falta de crédito específico para fomentar produtos da sociobiodiversidade; falta de mão de obra, saída dos jovens e o consequente envelhecimento da população rural; necessidade de políticas que além do crédito, incentivem à produção e comercialização, destinem recursos à educação, inovação tecnológica, infraestrutura social, de saúde, de lazer, de mobilidade para o espaço rural. Com base no que foi apresentado ao longo deste artigo considera-se que as experiências de organização local analisadas, resultam de um processo de embededness e vêm sendo potencializadas pelo fortalecimento dos laços fracos, e pela interação com instituições de múltiplas escalas, dando origem às dinâmicas territoriais de desenvolvimento, evidenciando a hipótese inicialmente levantada.

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S U M Á R I O

A COOPERAÇÃO NA AGRICULTURA FAMILIAR DO TERRITÓRIO ALTO URUGUAI CATARINENSE (SC), BRASIL Carlos Eduardo Arns*

1 Introdução O presente texto está embasado na apresentação realizada no Seminário Territórios, Territorialidades e Desenvolvimento Regional, realizado na Universidade Comunitária da Região de Chapecó em 2014, e cujos elementos foram extraídos da dissertação de mestrado do mesmo autor (ARNS, 2010). A apresentação vinculada à mesa 2 - Governança Territorial, Desenvolvimento Rural e Cooperação do referido seminário, buscou demonstrar a longa e profícua trajetória de construção da cooperação na região Oeste Catarinense em seu processo de desenvolvimento; visibilizar a grande diversidade e complexidade da cooperação construída, especialmente na agricultura familiar e, por fim, destacar alguns elementos da relação das diferentes estratégias de cooperação da agricultura familiar com a política de desenvolvimento territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) implementada no Território Rural do Alto Uruguai Catarinense (TAUC). Este capítulo está estruturado nos seguintes tópicos: uma introdução que problematiza algumas das principais mudanças em curso no chamado “mundo rural” e a importância da compreensão do papel da cooperação nesse processo; uma sucinta apresentação da trajetória da cooperação no Brasil, com suas fases e limites; a cooperação no Oeste Catarinense e sua relação com o processo de ocupação territorial e suas diferentes fases; uma caracterização da cooperação no TAUC, apresentando dados do trabalho de campo sobre os principais tipos, formas e práticas de cooperação identificadas no território, bem como, a caracterização das estratégias da cooperação da agricultura familiar identificadas; por fim, nas considerações finais, se apresenta a relação destas estratégias e seus atores com a política territorial. A partir dos anos de 1990, mas especialmente nos anos 2000, diversos estudos acadêmicos discutem um conjunto de rápidas e profundas mudanças em curso, bem como suas consequências já visíveis e as em perspectiva, no chamado “mundo rural”. Algumas das principais questões em foco estão o envelhecimento e masculinização da população residente no meio rural, com o constante êxodo, especialmente das jovens, a compreensão do rural para além do agrícola/setorial, o desenvolvimento *

Mestre em Desenvolvimento Regional. Atuou como docente do curso de Agronomia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) e como coordenador do Programa Permanente de Extensão Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-Unochapecó). E-mail: <tchearns@yahoo.com.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-7

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de novas atividades econômicas em florescimento (pluriatividade), bem como novos papéis (multifuncionalidade) em atribuição ao espaço rural, dentre outras. Diante dessas mudanças em curso, torna-se relevante compreender o papel e as contribuições da cooperação, bem como as estratégias construídas pelos diferentes sujeitos sociais do campo, para o enfrentamento de seus contextos e construção de sua reprodução social. A cooperação enquanto prática social tem acompanhado a trajetória da humanidade, se manifestando de forma diferente nos diferentes contextos históricos, no entanto, com o surgimento do capitalismo, apresenta-se também como movimento social, pois como apontam Jesus e Tiriba (2003) são dois os sentidos da cooperação, o sentido de ação e o sentido de movimento, sendo que aqui trataremos mais especificamente a cooperação enquanto movimento social.

2 A cooperação no meio rural brasileiro No esforço de ampliar e qualificar a compreensão da trajetória da cooperação no Brasil, diversos autores apresentam diferentes fases, etapas, ou períodos deste processo. Neste sentido, a partir do desenvolvimento da legislação cooperativista brasileira, Bulgarelli citando Schneider (1999, p. 401-406), define quatro períodos no desenvolvimento do cooperativismo:

a. Implantação: este período se estende desde o início até 1932. Neste período o Estado estabeleceu apenas algumas normas gerais e comuns às formas associativas, em especial sindicatos e cooperativas, podendo ser considerado de grande autonomia; b. Consolidação parcial: período de 1932 a 1966, em que surge a primeira lei específica ao cooperativismo, “o decreto n. 22.239/32, que dá razoável liberdade de constituição e funcionamento, define a natureza jurídica própria das cooperativas e ao mesmo tempo marca com vigor sua inspiração nos princípios rochdaleanos”. Marca também o início do processo claro de envolvimento do Estado com o movimento cooperativista, cuja dinamização ficou a cargo dos sindicatos marcados por uma visão corporativista. c. Centralismo estatal: período compreendido entre 1966 a 1971, delimitados pelo decreto-lei Nº. 59/66 até a Lei 5.764/71, caracterizado pela intensa intervenção do Estado (SCHNEIDER, 1999, p. 403): “[...] o Estado chamou a si a incumbência de orientar a política nacional de cooperativismo, para adaptá-las às reais necessidades da economia nacional e seu processo de desenvolvimento.” Ao mesmo tempo em que manteve a orientação doutrinária do período anterior, passou a desconsiderá-la na prática ao interferir fortemente na autonomia das cooperativas. d. Renovação das estruturas: estende-se de 1971 em diante, marcada pela implementação da Lei 5.764/71, que se caracteriza por ser “[...] simultaneamente liberal, paternalista e intervencionista” (SCHNEIDER, 1999, p. 405), levando a uma progressiva perda de autonomia pelas ingerências e perda de representatividade, com a criação do registro obrigatório e “contribuição compulsória” para uma única organização nacional, a OCB.

Desde seu início em final dos anos de 1880 até final dos anos de 1980, praticamente o transcurso de um século, se identifica basicamente dois tipos de cooperativismo: 1. Cooperativismo tradicional: presente na chamada “economia colonial”, desde o final do século XIX a meados do século XX, cuja finalidade era de organizar a poupança local, de transformação e comercialização dos excedentes da produção camponesa em formação, conformando a estratégia do Estado de abastecimento Voltar ao sumário

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A cooperação na agricultura familiar...

das cidades. O aspecto cultural e religioso constituem-se nos elementos ideológicos legitimadores. As organizações cooperativas mais comuns eram as “caixas rurais” e as cooperativas coloniais e/ou mistas; 2. Cooperativismo empresarial: começa a se tornar hegemônico a partir de meados dos anos 1950, garantindo o interesse e forte controle do Estado. Assume uma nova racionalidade econômica de remuneração do capital investido na atividade primária, isto é, o lucro. A cooperação adquire um novo sentido prático - uma estratégia de competição. As cooperativas crescem em patrimônio e diversificam suas atividades comerciais ao passo que se tornam seletivas nas atividades produtivas primárias e no tipo de produtor. As cooperativas tornam-se especializadas do “tipo tritícolas”. Surgem, de um lado, na ação modernizadora do Estado, que percebeu a possibilidade de serem excelentes repassadoras de tecnologias, disciplinadoras da produção e da aplicação do crédito agrícola. De outro lado, como mecanismos de defesa dos agricultores que, modernizados ou em vias de fazê-lo, precisavam assegurar-se de um processo de comercialização eficiente. Para Seibel (1994, p. 25) esses dois tipos de cooperativas [...] revelam diferentes estágios de desenvolvimento das forças produtivas, diferentes estágios de subordinação do campesinato ao modo de produção capitalista no campo e também estágios diferenciados de penetração do Estado nas relações econômico-sociais no campo. De acordo com Schneider (1999) e outros, o papel do cooperativismo brasileiro apresenta duas características marcantes, sendo a primeira como agente organizador do campesinato, reproduzindo as relações de subordinação e dominação do campesinato e, segundo, como agente de dominação, tem servido de instrumento e complemento ao papel do estado no campo, reproduzindo as funções de dominação inerentes ao próprio Estado, favorecendo o avanço do capitalismo no campo. A partir da literatura consultada é possível identificar três grandes desafios do cooperativismo em sua trajetória ainda presentes na atualidade: 1. Encontrar mecanismos que permita conciliar ou reconciliar a expansão (integração) da organização cooperativa, como empresa de negócios, com a possibilidade de controle democrático e da participação efetiva dos associados na gestão da sua organização; 2. Pensar o desenvolvimento sustentável, considerando que o cooperativismo ainda hegemônico se constitui em instrumento estratégico e privilegiado do estado e das classes patronais rurais, no processo de “modernização dolorosa”, que reforçou e aprofundou as desigualdades sociais e regionais; 3. Estabelecer a solidariedade e a cooperação dentro do sistema cooperativista, que sempre foram mais formais do que reais, diante do processo da globalização liberal que exacerba a competitividade entre as organizações (cooperação e intercooperação).

O enfrentamento desses desafios vai exigir do movimento cooperativista atual brasileiro uma profunda revisão de suas concepções, práticas e estratégias, mas também vai exigir do Estado a construção de regulamentação adequada ao papel social que o cooperativismo pode desempenhar no desenvolvimento sócio econômico para a construção de um país justo e sustentável.

3 A cooperação no Oeste Catarinense A região Oeste Catarinense é uma das seis regiões geográficas, definidas pelo IBGE em Santa Catarina, com uma área equivalente a um quarto do território estadual. Essa região é constituída pelas microrregiões Colonial Oeste e Colonial Vale Voltar ao sumário

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do Rio do Peixe, envolvendo 118 municípios, abrangendo uma área de 25.300 km² e uma população de aproximadamente 1,1 milhões de habitantes. É uma região bastante vasta e diversa, seja em termos de relevo, de climáticas e de condições hídricas, ou população ocupante, e que tem apresentado um conjunto de elementos comuns em sua trajetória de desenvolvimento, também apresenta diferenciadas dinâmicas internas, variando ao longo da história (ROVER, 2007; DE MARCO, 2004; TESTA et al., 1996). Na formação desta região identificam-se três processos consecutivos de ocupação do espaço regional, sendo o primeiro constituído pela ocupação desenvolvida pelas populações indígenas, o segundo promovido pelo povoamento dos “luso-brasileiros”, também “chamados caboclos ou sertanejos” e, por fim, o terceiro, cuja ocupação foi promovida pelo Estado com a vinda de migrantes europeus, em sua maioria já seus descendentes. A partir desses três processos de ocupação, Campos (1987) dentre outros, apontam quatro fases no processo desenvolvimento da região. A primeira se estendeu do início da colonização até meados da década de 1930, caracterizando-se pela produção de subsistência e gestação do pequeno capital comercial. A segunda compreendida pelo período de 1935 a 1945, caracterizada pelo crescimento do capital comercial e sua expansão em busca do excedente camponês. Já a terceira compreende o período que se estende de 1945 a 1965 caracterizada pelo surgimento do grande capital agroindustrial e a mercantilização da produção camponesa. A quarta e última fase, inicia a partir de 1965 e se estende até o presente, caracterizada pelo processo de monopolização do capital agroindustrial e pela modernização seletiva da pequena produção mercantilizada. A cooperação no espaço rural do Oeste Catarinense passa por três fases diferenciadas, todas analisadas e compreendidas dentro do terceiro processo de ocupação territorial promovida pela iniciativa privada com apoio do Estado. A primeira fase se estende de aproximadamente 1920 a meados dos anos 1960, onde o sistema de produção era rudimentar, baseado na queimada como preparo do solo e na rotação de área como meio de recuperação da fertilidade do solo, com pequena produção excedente. Portanto, a cooperação era constituída por organizações de cooperação de abrangência municipal ou mesmo de comunidade e/ou comunidades próximas, geralmente denominadas de sociedades rurais, associações comunitárias ou cooperativas mistas ou também chamadas de coloniais, cuja finalidade era auxiliar na resolução dos problemas comunitários de beneficiamento e comercialização dos excedentes dos sistemas de policultivo das unidades de produção e/ou organização da poupança local através das caixas rurais. A segunda fase se inicia a partir do golpe militar de 1964 e se estendendo até meados dos anos de 1980. Esse período foi marcado pela repressão política, a subordinação da agricultura à indústria colocada à jusante e a montante do setor da produção agropecuária, concomitantemente ao processo de efetivação da chamada modernização da agricultura, com a instalação da agroindústria (1945 a 1964) na região, já considerado final do sistema colonial. Nesta fase as cooperativas foram chamadas a cumprir novo papel no desenvolvimento agrícola regional, especialmente nas regiões sul e sudeste. De um lado coube-lhes o papel de organizar a pequena produção de excedentes pulverizada em extenso território, visando garantir o abastecimento das cidades com sua industrialização emergente, com alimentos e Voltar ao sumário

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matérias primas abundantes e baratas e, de outro, introduzir o pacote tecnológico da modernização (máquinas, equipamentos, fertilizantes, agrotóxicos e as sementes melhoradas). Configurou-se uma situação de acesso ao mercado para uma significativa parcela de agricultores familiares, que conduziu a constituição de um sistema produtivo, que embora diversificado, introduziu certa homogeneidade produtiva, social e econômica. Nesta fase as cooperativas passam por um processo de mudança de sua natureza jurídica, deixando de ser mista para se constituírem em tritícola (especializadas), assumem um caráter empresarial e uma gestão “profissional” (executada por grupos seletos que assumem e se reproduzem no comando). Passam a ser fortemente apoiadas e controladas pelo Estado. A terceira fase compreende o período de meados dos anos de 1980 e se estende até a primeira década de século XXI. Nesta fase a cooperação se caracteriza pela consolidação do cooperativismo tradicional de caráter empresarial, fortalecendo e ampliando sua capacidade de industrialização/beneficiamento das matérias primas da agricultura familiar integrada/associada. Mas, paralelamente e em permanente confronto, essa fase se caracteriza também pelo surgimento de um “novo movimento de cooperação”, que nasce no bojo dos movimentos sociais como o MST (Movimento dos Sem Terra), MAB (Movimento dos Atingidos por Barragens), MPA (Movimento dos Pequenos Agricultores) e o MMC (Movimento das Mulheres Camponesas). Especialmente em seu início, esse processo é marcado pelo trabalho da Igreja liderada pelo Bispo Dom José Gomes, a partir de um amplo trabalho de formação desenvolvido pelos chamados “grupos de reflexão” através metodologia do VER-JULGAR-AGIR. Esse processo inicia com a retomada da constituição de pequenas associações comunitárias ou municipais, recuperação e forte incentivo a práticas de cooperação como os mutirões, troca de dias, roças comunitárias, até a constituição de formas organizativas específicas de condução das ações de cooperação. Posteriormente, especialmente nos anos 2000, intensifica-se o estímulo a constituição também de pequenas cooperativas municipais. Marca ainda essa fase da cooperação na região o surgimento de organizações de cooperação no meio urbano, identificadas e envolvidas no movimento de economia solidária, que passa a se estruturar a partir dos anos de 1990.

4 A cooperação no TAUC Para melhor compreender a cooperação no Território Alto Uruguai Catarinense (TAUC) a partir dos dados da pesquisa de campo é importante destacar alguns dos principais elementos que caracterizam esse território. O primeiro elemento a ser destacado é que o TAUC juntamente com outros três territórios, compõe a grande região oeste catarinense. Esses territórios foram constituídos a partir da política federal do MDA conduzida especialmente pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), a partir de 2003. Desde o início do processo de colonização, nos anos de 1920, a partir de empresas colonizadoras, até a constituição do TAUC em 2004, este território apresenta grande semelhança em seu padrão de desenvolvimento com o processo verificado na região oeste catarinense como um todo. O segundo elemento a destacar é que os 15 municípios que constituem esse território estão organizados também na Associação de Municípios do Alto Uruguai Voltar ao sumário

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Catarinense (AMAUC), constituída também por 15 municípios, sendo que apenas um município do território não pertence a Associação de municípios e vice-versa. No entanto, os mesmos 15 municípios do TAUC também constituem ainda duas Secretarias de Desenvolvimento Regional (SDR) como unidades intermediárias de gestão do Governo do Estado de Santa Catarina: a SDR de Concórdia com seis municípios e a SDR de Seara com oito municípios. Isso demonstra a identidade comum presente neste conjunto de municípios. O terceiro elemento caracterizador do TAUC é sua forte ruralidade. O território não possui nenhum centro urbano com mais de 100 mil habitantes, e apenas um dos municípios (Concórdia) possui uma densidade demográfica superior a 80 hab./ km², que poderia ser utilizada como parâmetro de urbanidade de acordo com os critérios sugeridos por Veiga (2007). Para Veiga (2007) no Brasil todos os municípios de até 20 mil habitantes, podem ser considerados rurais. Assim, dentre os 15 municípios que constituem o Território 10 possuem uma população menor que 5 mil habitantes, abrangendo 32.751 habitantes e representando 23,4% do total da população; por outro lado, os 13 municípios que possuem menos de 10 mil habitantes somam 55.599 habitantes, que representam 39,7% do total da população do território. Os dois municípios mais populosos são Seara e Concórdia, com 17.121 (12,2%) e 67.249 habitantes (48,0%), respectivamente (IBGE, 2007a). Desta forma a população rural sobe de 37,9%, de acordo com o IBGE, para 52% do total da população. Outro indicador da forte ruralidade do TAUC é o seu sistema produtivo, que se apresenta altamente especializado para o mercado, pois os cinco principais produtos representam 93,7% do total do valor bruto da produção agropecuária, enquanto os dez principais produtos aumentam esse índice em apenas em 4,7%, ou seja, passa para 98,4% do total, no ano agrícola 2000/2001 (ICEPA, 2003). Portanto, o território em questão, pode ser considerado essencialmente rural, a partir do qual deve ser pensado ou repensado o seu desenvolvimento. Isso posto, passaremos a apresentar os dados empíricos do levantamento de informações sobre os tipos, forma e práticas de cooperação, buscando caracterizar e identificar as estratégias de cooperação da agricultura familiar no TAUC. No desenvolvimento do estudo foram coletadas informações em 14 dos 15 municípios do território, nos quais foram realizadas entrevistas com lideranças, gestores públicos e técnicos locais. Em 11 desses 14 municípios visitados, foi possível reunir as equipes locais, sendo que em 3 municípios só foi possível realizar entrevistas individuais. Foram ouvidas 66 pessoas do território (93%) e 5 pessoas de fora, totalizando 71 entrevistados. Deste conjunto 49 (69%) tinham formação de nível médio ou superior e exerciam funções técnicas, enquanto 22 entrevistados (31%) eram agricultores e exerciam funções de direção junto às organizações. Foram preenchidas ao todo 61 fichas técnicas de caracterização dos diferentes tipos de Organizações de Cooperação Agrícola (OCA) identificadas no estudo, em 13 dos 14 municípios. A caracterização das diferentes categorias criadas para as organizações identificadas foi realizada com base nas fichas e entrevistas, a partir de alguns aspectos considerados mais relevantes para o estudo proposto, como por exemplo, as finalidades, os aspectos organizacionais e econômicos da cooperação, o apoio e assessoramento recebido dentre outros. No entanto, não foi possível chegar ao mesmo grau de detalhamento em todos os tipos de organizações encontradas, mas mesmo assim, foi possível apresentar os principais tipos de organizações de cooperação encontradas Voltar ao sumário

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no território, identificar e caracterizar as diferentes estratégias de cooperação da agricultura familiar no TAUC. Inicialmente podemos identificar dois principais modelos de organização da cooperação enquanto movimento: a cooperação convencional (no sentido de convencionada) e a cooperação alternativa (no sentido de que se diferencia da primeira). A cooperação convencional é a categoria de organizações de cooperação composta exclusivamente por organizações do tipo cooperativas de grande porte que se orientam pela lógica empresarial capitalista. São organizações mais antigas e ligadas ao movimento tradicional do cooperativismo conforme visto anteriormente. No TAUC foram encontradas três cooperativas desse modelo.

1. A Cooperativa de Produção e Consumo de Concórdia (COOPÉRDIA), surge em 1967, tem sua origem e sua principal base de atuação no Território Alto Uruguai Catarinense (COPERDIA, 2009). 2. Cooperativa Regional Alfa (COOPERALFA), surge em 1967 é a maior cooperativa do estado de Santa Catariana, presente em várias regiões do estado prelo processo de incorporação (“compra”) de outras cooperativas regionais com problemas de gestão e viabilidade financeira, com sede (matriz) em Chapecó/SC (COOPERALFA, 2009). 3. Cooperativa Rio do Peixe (COOPERIO), constituída em 1969, com sede em Joaçaba/SC (COPERIO, 2009). Cabe esclarecer que em 2011 foi iniciado (após a conclusão do presente estudo) e concluído em 2013 o processo de incorporação desta pela COPERDIA, que passa a ser a segunda maior cooperativo do gênero em Santa Catarina.

Todas essas cooperativas nasceram com abrangências municipais, Concórdia, Chapecó e Joaçaba, respectivamente, constituindo-se posteriormente em organizações regionais. Estão ligadas a FECOAGRO (Federação das Cooperativas Agropecuárias) e a OCESC (Organização das Cooperativas de Santa Catarina), bem como a OCB (Organização das Cooperativas do Brasil) (FECOAGRO, 2009). Estas também compõem a Coopercentral (Cooperativa Central Oeste Catarinense), fundada em 1969, que é a detentora da marca AURORA em torno da qual se unem12 cooperativas filiadas e formam o principal elo entre os mais 62 mil produtor e o consumidor (AURORA, 2015). Neste mesmo campo, podemos incluir um segmento/parte do cooperativismo de crédito, mesmo considerando as particularidades do segmento do crédito, que enfrentou momentos bastante conturbados no caso do Brasil, sendo proibido seu funcionamento por um longo período. As Cooperativas de Crédito Rural tiveram condições de reorganizar sua atividade a partir de 1984, sendo que a grande maioria das cooperativas (re)surge a partir de meados dos anos de 1990, sob a coordenação e controle das cooperativas agropecuárias (de produção), razão pela qual comungam da mesma lógica e práticas desse modelo de cooperativa, mesmo que voltado para o segmento do crédito. Por outro lado, a cooperação alternativa se diferencia da cooperação convencional pela multiplicidade de tipos de organizações articuladas, pela menor capitalização e menor número de sócios. A abrangência destas organizações geralmente é municipal ou de comunidade, seu caráter é familiar/comunitária, constituídas para atender a outras necessidades/demandas não abarcadas pelas cooperativas convencionais. É nesta categoria que o estudo foi dirigido, podendo ser dividida em cinco grandes subgrupos ou subcategorias:

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1. Organizações de cooperação comunitárias: foram encontradas 215 Associações Comunitárias, 95 Associações Esportivas, 95 Clube de Idosos, 169 Clubes de Mães, 28 Grupos Culturais, 34 Grupos de Jovens e 18 escolas rurais, em 215 comunidades de 8 municípios do TAUC. 2. Organizações de cooperação para gestão de infraestrutura compartilhada: foram identificadas 123 Associações de Gerenciamento de Máquinas e Equipamentos em volvendo 8.216 famílias; 314 Organizações de Gerenciamento de Água, envolvendo 5.694 famílias; 382 Grupos de Telefonia Rural, envolvendo 4.903 famílias e 47 Condomínios de Secadores em 13 municípios alcançados pelo estudo. 3. Organização de cooperação de produtores por atividades especializadas: foram encontradas 5 organizações desse tipo a Associação Catarinense de Criadores de Suínos (ACCS); Associação de Criadores de Bovinos (ACCB); Associações de Criadores de Aves (ACCA); Associações de Piscicultores; Associação de Apicultores; 4. Associações de Microbacias – ADMs: foram identificadas pelo estudo atingiu-se 33 ADMs, envolvendo 4232 famílias de 8 municípios. Porem, segundo a Epagri Regional, no território existia naquele momento (2009), 76 organizações ADMs, abrangendo 292 comunidades rurais e envolvendo 8.515 famílias. 5. Organizações de cooperação em rede para produção, transformação, comercialização: nessa subcategoria, incluímos basicamente dois tipos de organizações de cooperação: as cooperativas municipais de produtores de leite e as cooperativas agroindústrias em rede. Em 14 municípios abrangidos pelo estudo, foi possível obter informações sobre esses tipos de organizações, sendo que em 2 municípios possuem apenas cooperativas de produtores de leite, enquanto em 12 municípios foram identificadas 14 cooperativas de pequenas agroindústrias (como são chamadas), e que, por sua vez, também organizam os pequenos produtores sócios em “linhas” ou “grupos” de leite.

Cooperativas municipais de produtores de leite Foram identificadas 4 cooperativas de produtores de leite no Território, das quais apenas a Cooperpaial, com 63 sócios, se encontra ativa; as demais – Irani (200 sócios), Seara (sem informação) e Xavantina (170 sócios) – encontravam-se desativadas ou inativas até final de 2008. O número médio de sócios dessas três cooperativas é de 144 produtores, um pouco superior à média das demais organizações aqui estudadas. Em Lindóia do Sul e em Concórdia, as cooperativas municipais em conjunto com outras organizações locais articulam as chamadas linhas de leite, sendo que as desses dois municípios possuem 55 e 170 participantes, respectivamente. Em Lindóia do Sul, vem sendo organizada uma cooperativa desse tipo a partir da linha de leite, juntamente com a Copafal e o forte apoio da Epagri e da prefeitura municipal. Embora essas cooperativas sejam constituídas a partir de uma atividade específica (leite), foram incluídas em tal categoria por serem formadas por pequenos produtores que, em sua maioria, ainda possuem os sistemas de produção diversificados quando comparados com os sistemas de produção de suinocultores e avicultores, e que buscam nesta atividade uma alternativa ao sistema tradicional de integração da região. Atuam em forte articulação com todo o conjunto de organizações de apoio e fortalecimento da agricultura familiar como os sindicatos dos trabalhadores da agricultura familiar (SINTRAFs), movimentos sociais como o MST, MAB, MPA, MMC, prefeituras/secretarias municipais da agricultura, igreja, ONGs. Vale lembrar que é muito comum em toda a região uma ou várias comunidades se organizarem nos chamados grupos ou linhas de leite. O objetivo desses grupos é aumentar o volume de produto negociado conjuntamente com os compradores Voltar ao sumário

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concorrentes, podendo eles mesmos fazer o recolhimento ou terceirizar esse serviço. Os resultados da organização são imediatos e visíveis pela dimensão que alcançam, pois vários relatos de equipes apontam ganhos de preço, que variam de 20 a 50%, processo também identificado e descrito por Testa et al. (2003) e Dorigon (2006).

Cooperativas de Serviços em Apoio às Agroindústrias Familiares de Produção Nessa categoria, são incluídas todas as pequenas cooperativas de abrangência municipal que dão suporte às agroindústrias familiares de pequeno porte (individuais ou associativas) e ao processo de comercialização dos produtos industrializados e in natura, principalmente da horticultura, em feiras livres locais ou fora do município de origem, bem como nos mercados institucionais criados pelas politicas do PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar). Nos 14 municípios pesquisados, em 12 foram encontradas 14 cooperativas desse tipo, que, juntas, somam a participação de 553 famílias sócias – correspondendo a uma média de 39,3 sócios/famílias por cooperativa. A organização de cooperação é do tipo - cooperativa, mas que se diferencia das cooperativas empresariais pelo quadro social (perfil do sócio), pela abrangência municipal, pelas múltiplas finalidades, dentre outras características. Quanto à forma de expressão da cooperação, pode ser definida como de prestação de serviço, muito embora não seja essa a compreensão de todos entrevistados. Com relação à área em que ocorre a cooperação nestas cooperativas, pode variar de organização para organização, bem como variar dentro da organização de grupo para grupo de associados. Com relação aos aspectos econômicos, por ser predominantemente de prestação de serviço, foram evidenciados como os principais serviços de apoio prestados por essas cooperativas a comercialização, o transporte e distribuição dos produtos, a contabilidade (tributária e fiscal), a qualidade da produção e inspeção sanitária, o marketing, organização dos produtores, a gestão do empreendimento/unidade, a formação e capacitação dos associados, integração social e assessoria técnica. Essas cooperativas viabilizam a transformação e comercializam um mix com mais de 100 produtos, originários de cinco principais atividades criatórias: suínos, aves – corte e postura –, gado de leite, gado de corte, apicultura; seis culturas como milho, feijão, trigo, mandioca e cana de açúcar; várias espécies de hortaliças e frutíferas de clima temperado e tropical, em aproximadamente 120 unidades agroindustriais de pequeno porte. Ao mesmo tempo em que os diversos produtos das varias criações e culturas comercializadas pelas cooperativas são típicas dos sistemas especializados da integração e dominantes no sistema produtivo do território, como visto anteriormente, pode-se observar a ampliação de possibilidades com a presença de várias outras espécies dos policultivos típicos dos sistemas tradicionais do campesinato regional. Soma-se às famílias ligadas às agroindústrias o grande número de famílias que produzem e comercializam produtos in natura, como é o caso da grande maioria dos produtores de hortaliças e de frutas que comercializam diretamente nas feiras ou mesmo através da venda direta em domicílio. No levantamento de campo, embora não fosse o foco do trabalho, foram identificadas “Feiras Livres” e “Casas Coloniais” em 10 dos 14 municípios pesquisados. Essas cooperativas são estruturas leves e ágeis, desburocratizadas e constituídas para dar suporte às famílias e aos seus sistemas produtivos; portanto, os investimentos Voltar ao sumário

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são feitos pelas famílias nas suas unidades produtivas e não o inverso, na cooperativa. As famílias cedem em comodato as suas unidades para a cooperativa por tempo determinado, geralmente por cinco anos ou mais, dependendo do tipo de unidade/investimento. Esse é o ponto onde se revelam o compromisso e a confiança entre as diversas famílias sócias. O patrimônio da cooperativa não é constituído por investimentos coletivos, mas por investimentos e projetos das famílias (individuais ou em grupo) posteriormente colocados em comum através de termo particular de comodato. Com relação às cooperativas de crédito do modelo alternativo, que se autodenomina de “interação solidária”, cabe esclarecer que estas, diferentemente do modelo convencional apresentado anteriormente, surgiram por dentro e a partir do denso, rico e complexo conjunto de organizações constituídas pelo campesinato da região oeste catarinense iniciado em meados dos anos de 1980, assim como a maioria das organizações citadas e brevemente descritas anteriormente. A Rede Cresol, no TAUC, constituiu-se de 4 cooperativas de crédito filiadas a Base Integração sendo elas: Credi-Seara, Credi-Concórdia, Credi-Ipumirim e Credi-Irani.

4.1 Outras formas de organização identificadas na região No que se refere às Cooperativas de Trabalho, esse tipo de organização, foi identificada em apenas um município (Ipumirim), constituída ainda na segunda metade dos anos de 1990, mas que atualmente se encontra inativa, iniciando com 74 pessoas de comunidades rurais. A finalidade era de prestar consultoria, realizar auditorias, serviços rurais e manter as famílias no campo. Em outros municípios, como Lindóia do Sul e Piratuba, foi relatada a existência de discussão e interesse em constituir cooperativas de trabalho, como forma de ajudar a resolver em parte o problema dos operadores das associações de máquinas. Identificou-se também a existência de uma Colônia de Pescadores, constituída por 76 pescadores (famílias) dos municípios de Concórdia e entorno que se localizam as margens do rio Uruguai. Também participam 2 famílias de Joaçaba, município fora do território. A maioria dos pescadores se concentra em dois municípios: Concórdia, com 50 pescadores; Alto Bela Vista, possui 10; Itá, com 5, Piratuba, também com 5; e ainda Arabutã e Lindóia com 2 famílias cada, de acordo com a informação do presidente da colônia. Dados do MDA registravam 97 pescadores, pois incluem outros municípios do território como: Ipumirim (7), Paial (6), Presidente Castelo Branco (6). Os pescadores no TAUC, mas também em toda região oeste, permaneceram invisibilizados até há bem pouco tempo, sendo recente sua trajetória de organização.

5 As estratégias de cooperação no TAUC A partir do vasto, complexo e denso conjunto de organizações de cooperação identificadas pelo estudo, foi possível verificar três estratégias de cooperação1 diferentes entre si, desenvolvidas pela agricultura familiar no TAUC, quais sejam: da 1 Considera-se que uma estratégia de cooperação constitui-se em caminho, um rumo definido por um

conjunto de organizações de cooperação da agricultura familiar, orientadas por sentido, significado e objetivos da cooperação, que determinam as práticas, as ações e as relações destas com seus participantes e com seu entorno.

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cooperação comunitária funcional; da cooperação empresarial competitiva e, da cooperação solidária autogestionária, que serão brevemente caracterizadas a seguir.

5.1 A estratégia da cooperação comunitária funcional A estratégia de cooperação comunitária funcional é constituída pelas organizações de tamanho médio e estrutura simples, abrangendo o conjunto ou uma parte das famílias de uma ou mais comunidades, cuja finalidade principal é prestar apoio às atividades produtivas das unidades familiares de produção e às necessidades de suas comunidades. As principais categorias de organizações que compõem essa estratégia de cooperação são as organizações de cooperação comunitária como as associações comunitárias, associações ou clubes esportivos, clube de idosos, clube de mães, grupo de jovens. Estes tipos de organizações de cooperação tem a finalidade maior de atender necessidades de diferentes grupos sociais das comunidades e das necessidades das comunidades de modo geral. Outra categoria que compões esta estratégia de cooperação são as organizações de cooperação para a gestão de infraestrutura produtiva de uso comum composta especialmente pelas associações de máquinas, associação de gerenciamento da água e grupo de telefonia rural. Estes tipos de organizações de cooperação têm como principal finalidade atender demandas das unidades produtivas em suas principais atividades, especialmente quando voltadas ao mercado, bem como de infraestruturas de interesse e necessidade comum, mas de difícil acesso individual. Também podem ser incluídas nessa estratégia as Associações de Desenvolvimento das Microbacias (ADMs), embora, como visto anteriormente, elas introduzam novos elementos na organização, no funcionamento e na finalidade da cooperação. Essas organizações tem sua origem marcada no processo de colonização da região, fortemente enraizadas na cultura camponesa dos migrantes de origem européia. Estas organizações cumpriram importante papel, especial em sua fase inicial, período em que as comunidades se multiplicaram rapidamente, a partir do agressivo fomento das empresas colonizadoras. As comunidades, desde seu início, constituíam uma Diretoria de Igreja ou um Conselho Comunitário, que posteriormente foram se transformando em Associações Comunitárias, isso já em fins dos anos de 1980, de acordo com os relatos. Em muitas comunidades, a igreja e a comunidade aparecem representadas na mesma organização, enquanto em outras elas são organizações distintas, mas articuladas em diferentes graus. A partir desta organização geral, surgiam as demais organizações diante de dificuldades ou oportunidades comuns identificadas. Com a “ausência” do Estado (distância física das instituições do Estado e seus poucos instrumentos de apoio), essas organizações cumpriram várias funções: construção de infraestruturas e equipamentos comunitários (Igreja, salão de festas, campo de futebol, construção e manutenção de estradas, pontes), regulação da vida social etc. A partir dos anos de 1960 e 1970, com o processo de avanço do modo capitalista de produção, houve rompimento da autonomia das unidades produtivas, provocado pelas mudanças nos sistemas de cultivo, criação e nas práticas e técnicas de produção agropecuárias, ampliando-se a diferenciação entre as famílias (FERRO, 2006). Porém a gestão da comunidade mantém certa autonomia na maioria delas, embora Voltar ao sumário

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impactada à medida que se constituiu em espaço de disputa de interesses, agora cada vez mais diferentes entre si. Nesse período o Estado, através de assistência técnica e extensão rural (ACARESC), passa exercer influencia sobre as propriedades, lideranças e comunidades, mas o seu enfraquecimento nos anos de 1980 favoreceu o fortalecimento das agroindústrias e cooperativas empresariais competitivas através do fomento agropecuário (GREGOLIM, 2002). Nos anos de 1980 até meados dos anos de 1990, quase sempre apoiados na ação da Igreja, se constituem o novo sindicalismo e os movimentos sociais como o MST, MAB, MPA, MMC (POLI, 2006, 2002; UCZAI, 2002), que também se articularam na comunidade como base de organização e mobilização do amplo e profícuo processo de resistência, do qual surge um conjunto de organizações enraizadas nas principais comunidades como é o caso dos grupos de mulheres camponesas, grupos de jovens, grupos de apoio, etc. A partir da promulgação da nova Constituição Federal, em 1988, o Estado iniciou um processo de descentralização, marcando “a passagem de um Estado interventor para um Estado ordenador de macropolíticas e fomentador de iniciativas locais, abre-se assim a possibilidade da atuação e participação local mais ativa”. Isso se manifestou inicialmente em algumas das áreas estratégicas de atuação mais tradicionais, como saúde, educação, previdência social, assistência social, dentre outras, e, mais recentemente, nas políticas de abordagem territorial (RAMBO; FILIPPI, 2009, p. 144). Esse processo, somado ao movimento emancipatório, possibilitou a aproximação do Estado em relação ao cidadão. No entanto, a maioria destes desconhecia o Estado, outros tantos o viam como inimigo nas suas lutas por reconhecimento de direitos, como na condição de segurado especial dos camponeses junto a previdência social, igualdade às mulheres (licença maternidade, saúde da mulher, reconhecimento como agricultora/trabalhadora rural e não como doméstica), terras aos indígenas e sem-terras etc. (POLI, 2002; GREGOLIN, 2000). A aproximação do Estado, principalmente através das prefeituras municipais começa a se efetivar a partir de meados dos anos 1990, mas especialmente nos anos 2000 com a implementação das diversas políticas sociais e agrícolas, marcadas pela participação dos beneficiários através de suas organizações. Essa estratégia de cooperação possui uma grande diversidade de organizações, que vai desde grupos informais até as associações totalmente legalizadas e estruturadas para a execução de complexos serviços comunitários e/ou públicos. Algumas dessas organizações se modificam para incorporar novas funções e possibilitar relações antes não previstas, como é o caso de muitos Conselhos Comunitários ou Associações Comunitárias. Estas, além da gestão das questões comunitárias tradicionais ligadas à religião, aos equipamentos comuns, à regulação e ao funcionamento da vida comunitária (definição do calendário anual de eventos/atividades, organização e realização dos eventos comunitários etc.), passam a assumir novas responsabilidades, como a representação em vários espaços de gestão de políticas públicas municipais (conselho de saúde, educação, assistência social, agricultura etc.). Algumas destas passam a prestar e/ou gerenciar também serviços particulares/privados relativos aos sistemas produtivos (preparo e plantio, colheita, produção de silagem etc.), bem como públicos e/ou comunitários. Na prática, as prefeituras vinham fazendo esses serviços para a produção, sendo que agora repassam os recursos para que as organizações comunitárias o façam. Ou seja, as prefeituras acabam interferindo nas organizações. Voltar ao sumário

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Nessa estratégia de cooperação, novas organizações também surgem para facilitar ou permitir acesso a tecnologias ou infraestruturas de interesse comum, como é o caso das associações ou grupos de telefone (centrais), associações ou grupos de água ou poço artesiano, associações ou grupos de máquinas. Estas se diferenciam das organizações comunitárias, e suas práticas das de períodos anteriores. O principal ator e forte indutor dessas mudanças nas organizações e práticas de cooperação nos anos 2000 é o Estado, representado especialmente pelas prefeituras municipais, o que se reflete na implementação de políticas públicas federais, estaduais ou mesmo locais e na forma como constrói a relação com as comunidades rurais. Em especial as organizações comunitárias, como os Clubes de Idosos, Clube de Mães e mesmo as Associações Comunitárias e Associações de Desenvolvimento da Microbacia, têm captado/recebido recursos públicos para a realização de suas finalidades ou mesmo para desenvolver ações em parceria com outras organizações.

5.2 A estratégia da cooperação empresarial competitiva A estratégia de cooperação empresarial competitiva capitalista é constituída pelas grandes cooperativas agropecuárias e de crédito, voltadas principalmente para a realização da comercialização da produção e o fornecimento de insumos e crédito para o processo produtivo, em especial de algumas cadeias produtivas das grandes commodities. Nessa estratégia de cooperação, não há espaço para outro tipo de organização que não a cooperativa, destacando-se no TAUC as cooperativas de produção e comercialização (Coperdia) e as cooperativas de crédito (Sicoob-Crediauc). Essas cooperativas mantiveram forte relação com os bancos (Banco do Brasil e BESC atualmente incorporado pelo BB). A estratégia de cooperação empresarial começou a se forjar mais claramente a partir do final dos anos 1960, podendo-se até precisar bem o ano de 1967, como verdadeiro marco. Naquele ano, constituíram-se algumas das principais cooperativas, as de Chapecó e Concórdia, por exemplo, no oeste de Santa Catarina, como parte de um movimento deflagrado simultaneamente em todo o estado. É preciso compreender esse movimento dentro do contexto da ditadura militar e de seu projeto desenvolvimentista, no qual a agricultura cumpria importantes funções, como a de produzir alimento farto e barato para a classe operária em expansão através do processo de industrialização pesada do País; exportar produtos demandados pelo mercado externo como forma de equilibrar a balança de pagamento com o financiamento do desenvolvimento industrial; constituir-se em mercado consumidor da emergente indústria nacional, como forma de superação do “agrário atrasado” pelo “agrícola moderno” (GRAZIANO DA SILVA, 1982; BRUM, 1985; GREGOLIN, 2000). Nesse projeto, o Sul do País apresentava as condições concretas, dentre as quais se destacavam o tipo de camponês, que buscava o mercado, pois produzia alimentos com excedentes, e a melhor capacidade de incorporação das novas tecnologias de produção industrial (insumos e maquinários agrícolas). Porém, esses camponeses – milhares –, dispersos e sem estrutura, não tinham capacidade de responder à demanda planejada. Então o Estado propôs e estimulou a constituição de duas organizações importantes para o desenvolvimento desse projeto nacional: o sindicato e a cooperativa.

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Os sindicatos, em especial, foram criados como forma de controle social do Estado, aproximando dessa população serviços sociais públicos (ficha para atendimento médico, odontológico, jurídico, dentre outros) através de sua condição de organizações não públicas. Essa relação de dependência do Estado para a manutenção da prestação dos serviços limitou sua atuação política de reivindicação e de luta pelos direitos da categoria. Por essa razão, passaram a ser chamados de assistencialistas ou também de “sindicatos pelegos”, na linguagem popular da região (MEDEIRO, 1989). Complementarmente, também as cooperativas passaram a desempenhar um importante papel no projeto nacional de desenvolvimento do período militar. Cabia a elas reunir a produção dispersa, de pequena escala, em pontos estratégicos, para o que o governo disponibilizou recursos através de programas específicos (Aquisição do Governo Federal, AGF, e Empréstimo do Governo Federal, EGF) para dotá-las de toda a infraestrutura necessária ao recolhimento, beneficiamento e à armazenagem da produção familiar excedente. Os dois instrumentos – sindicato e cooperativa – utilizados pelo regime militar em seu projeto de desenvolvimento cumpriram um importante papel político de promoção de uma ruptura na lógica de organização comunitária, constituindo, referenciando e empoderando um novo tipo de liderança (popular, mas não mais referenciada apenas na comunidade estrita e sim na ampliada – municipal/regional – em termos de abrangência e segmentada em termos de representação e defesa de interesses). Isso se confirma no fato de que ambos os instrumentos surgiram no mesmo ano (1967), nos mesmos lugares, estimulados pelos mesmos agentes, o serviço de assistência técnica e extensão rural – à época chamada de ACARESC – e o Banco do Brasil, que contaram com a anuência da Igreja naquele momento. E assim as cooperativas iniciaram sua trajetória de empresariamento na agricultura. Numa primeira fase, comercial (anos 1970 e 1980), onde as unidades de produção diversificadas não representavam um problema; naquele período, a comunidade ainda era o espaço de articulação e vivência comum, forte e, o esforço de cooperação se dava na venda da produção, principalmente de grãos, e na compra de insumos e máquinas, atendendo a expectativas concretas e imediatas dos camponeses da região, ainda havia ações de cooperação entre pessoas. Os principais agentes (o gerente e o técnico da cooperativa) eram do “município” ou da “região”. O camponês é considerado cooperado sempre que comercializa, mas é sócio apenas uma vez por ano, quando “participa” da assembleia. Na segunda fase, avançou também para a industrialização (mais fortemente a partir dos anos de 1990 em diante) e, nesse período, a comunidade definitivamente deixou de ser o espaço de articulação e vivência da cooperação nessa estratégia, restringiu-se aos núcleos de associados e às diversas subcategorias criadas (suinocultores, avicultores, bovinocultores etc.), então espaços diferentes para o mesmo sujeito social – o agricultor. A cooperação nessa fase precisa ser competitiva, ou seja, cooperar para competir. O camponês compete consigo mesmo como agricultor (produtor de alimentos e de sua subsistência) X produtor (matéria-prima para a indústria) e com o seu vizinho como negócio (na aquisição de máquinas e nas próprias atividades de mercado – pocilga ou aviário). A cooperação é individual, do camponês com a organização – a cooperativa, para quem, a agricultura deixa de ser um modo de vida para ser um setor econômico, em que a produção agropecuária se tornou um negócio de grande movimentação de capital, com alto risco, gerenciado por Voltar ao sumário

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um produtor profissional de mentalidade empresarial, conforme preconizava o Estatuto da Terra de 1964. Consideramos a cooperação empresarial competitiva uma estratégia de cooperação, pois busca claramente a inserção dos camponeses no mercado através de sua transformação sociocultural a partir dos valores da sociedade capitalista, onde a cooperativa constitui-se no objeto central em detrimento da própria unidade camponesa.

5.3 A estratégia da cooperação solidária autogestionária A estratégia de cooperação autogestionária é constituída pelas pequenas cooperativas e associações familiares de abrangência municipal, que buscam prestar serviços de apoio na comercialização e qualificação da produção e produtos, buscando verticalizar a produção nas unidades de produção grupos familiares de cooperação, geralmente informais em suas comunidades. Para dar conta desse complexo projeto, foram constituídas novas formas organizativas, como as cooperativas de crédito de interação solidária, para articular o crédito rural do recém-criado Pronaf, em 1996; também foram constituídas mais recentemente as Cooperativas Familiares (municipais ou supra municipais), com a finalidade de articular a produção das unidades agrícolas ou agroindustriais dos grupos e/ou pequenos agricultores familiares, viabilizando sua inserção legalmente amparada nos mercados locais e regionais, o que possibilita também a participação em feiras municipais, estaduais, nacionais e, inclusive, com participação em espaços internacionais. O tipo de organização que se destaca nessa estratégia de cooperação é a pequena cooperativa de abrangência municipal, mas que não pode ser vista isoladamente. Essa estratégia de cooperação é constituída por um conjunto de diferentes tipos de organizações articuladas e que cooperam entre si, dentre as quais podem ser destacados os sindicatos, as cooperativas de crédito de interação solidária, a Apaco e a Ucaf (bases de serviço), a articulação com diferentes redes como a Rede Ecovida e a Rede de ONGs (Abong). Ou seja, uma vasta e complexa rede organizacional, como definiu Mior (2006) uma rede sócio técnica. Essa estratégia como visto anteriormente, nasce no processo de resistência e construção de alternativas à crise do sistema de produção colonial provocada pelo avanço do modo de produção capitalista no campo, através da industrialização e modernização dependentes. É no seio dos movimentos sociais que se constitui o que foi denominado por alguns autores de Movimento de Cooperação Agrícola, como elemento constitutivo de seu projeto de agricultura e sociedade (ARNS, 1991; PRIM, 1996). Vários autores apontam que o conjunto de experiências em construção e o acúmulo de discussão das organizações levaram ao surgimento da Associação de Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (Apaco) no final de 1989. A partir de meados dos anos de 1990, essa cooperação cresceu em complexidade organizativa em cada movimento, constituindo dinâmicas próprias e independentes entre si, ou seja, o MST, o MPA e o movimento Sindical da Agricultura Familiar constituíram cada um a seu modo, a organização de cooperação. Na construção da cooperação solidária autogestionária no TAUC, atuaram de forma decisiva o Movimento Sindical da Agricultura Familiar, a Apaco e a Epagri (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina). Essa estratégia de cooperação se caracteriza pela defesa da agricultura familiar como modo Voltar ao sumário

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de vida e, portanto, muito mais que um setor de produção de matéria-prima para a indústria. Propõem a construção de novas relações sociais de produção baseadas na cooperação e solidariedade.

6 As interfaces entre as estratégias de cooperação e o desenvolvimento no Território Alto Uruguai Catarinense A partir da visualização da diversidade, densidade e complexidade de organizações de cooperação existente no TAUC, busca-se aqui estabelecer algumas das interfaces entre as diferentes estratégias de cooperação da agricultura familiar do TAUC com o processo de desenvolvimento territorial em curso. Com relação à territorialidade a primeira observação que merece atenção, é que os documentos analisados sobre o TAUC evidenciaram que o processo de implementação da política territorial do governo federal coordenado pelo MDA ainda se encontra fortemente demarcada por um recorte setorial, ou seja, o rural e, neste, o agrícola, com um privilegiamento do segmento da agricultura familiar em seus grupos mais organizados, mas que representa um significativo avanço/conquista para um conjunto de reinvindicações e lutas históricas. O Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) e o Plano Safra Territorial (PST), que se constituem nos principais instrumentos-guia para a atuação do colegiado territorial, não apresentam nenhuma estratégia clara ou explícita para a cooperação ou o papel desta no processo de desenvolvimento do Território Alto Uruguai Catarinense. Portanto, como instrumentos orientadores não contribuem diretamente no apoio às diferentes estratégias de cooperação do TAUC. Isso se deve à não participação direta da representação das diferentes estratégias de cooperação no próprio colegiado territorial, nem no processo de gestão territorial. No entanto, a política de desenvolvimento territorial do MDA no TAUC vem sendo claramente orientada e protagonizada pelas organizações ligadas à estratégia de cooperação solidária autogestionária, através da atuação intensiva e articulada da Fetraf (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar) e da Epagri Regional de Concórdia (Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina). Nesse sentido, mas de modo mais particular, foi possível identificar diferentes formas de relacionamento das estratégias de cooperação da agricultura familiar do TAUC com a política de desenvolvimento territorial rural do MDA, como veremos a seguir.

6.1 Estratégia de cooperação comunitária funcional A estratégia de cooperação comunitária se caracteriza, dentre as três identificadas, como a que se encontra em processo de maior transformação. Essas transformações, como observado anteriormente, vêm ocorrendo claramente a partir de 1995 e abrangem várias dimensões de suas organizações, suas comunidades e seu entorno. Essa estratégia de cooperação, de acordo com os relatos de informantes do presente estudo, parece ter dialogado mais, e foi impactada de forma um pouco mais Voltar ao sumário

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efetiva, no período de vigência da linha de crédito denominada Pronaf Infraestrutura (PROINF), com vigência apenas no período de 1997/2002, como modalidade do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), criado efetivamente em 1996. De acordo com Mattei (2006, p. 50), essa linha de crédito tinha como “finalidade planejar investimentos em infraestrutura dos municípios”, incentivando a participação dos agricultores na tomada de decisão. Para Mattei (2006, p. 50), a ampliação da participação dos agricultores [...] parece indicar que o programa ajudou a ampliar o nível de conscientização dos agricultores, ao mesmo tempo em que propiciou condições para que os agricultores repensassem suas próprias formas de organização, fundamentais para o desempenho das políticas públicas a eles endereçadas.

No entanto, neste estudo, particularmente no trabalho de campo, os relatos apontam para mudanças, em especial nas organizações comunitárias, num sentido menos positivo: a perda da autonomia, o fortalecimento da visão imediatista e economicista das relações, o uso político das organizações na relação com o poder público local. Cabe destacar, no entanto, que esse não era o foco da presente pesquisa, o que não permitiu uma maior compreensão sobre esse processo nos municípios do TAUC beneficiados por essa política no período de sua vigência, nem seu impacto posteriormente. Para isso, faz-se necessário um estudo mais específico e aprofundado com vistas a compreender mais e melhor essa relação, também para entender como se desenvolveram esses processos em cada município, do conjunto no território, e suas repercussões nas organizações locais. Com relação à atual política territorial, ficou evidente que essa estratégia de cooperação encontra-se pouco envolvida, pois suas organizações não se encontram representadas no colegiado territorial de forma direta e talvez nem indireta, além do que suas necessidades e seus interesses se diluem nas ações mais abrangentes, agora supramunicipais e/ou territoriais, ou, ainda, além-território, gerenciadas por outros atores, em especial os sindicatos, movimentos sociais e órgãos públicos regionais. Essa estratégia de cooperação vem construindo mecanismos de relação cada vez mais adaptados às necessidades do poder público local, com o qual se relaciona privilegiadamente ou quase exclusivamente desde o início dos anos 2000. Essa relação se guia pelos interesses das duas partes: as organizações de cooperação na busca do atendimento de necessidades muitas vezes mais específicas de suas comunidades ou dos sistemas de produção de um grupo de famílias/comunidades; o poder público local atendendo às pressões sociais (reivindicações) ou normativas, por exemplo, os Termos de Ajuste de Conduta (TAC), como é o caso do dejeto de produção animal, em particular da suinocultura, emblemático nesse território. Essa mediação dos interesses vem sendo gestada e gerenciada nos CMDRs. Esse espaço, no entanto, não vem sendo usado nem tem feito parte do espaço de gestão da política territorial. Nos documentos da política territorial do TAUC e nos relatos, não aparece nenhum mecanismo de relacionamento nem qualquer experiência em que os CDMRs tenham sido envolvidos.

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6.2 Estratégia de cooperação empresarial competitiva Dentre as três identificadas, a estratégia de cooperação empresarial é a mais antiga e consolidada quanto a estrutura, conjunto de lideranças, tipo de organização e prática de cooperação, com atividades produtivas e processos produtivos bem definidos. Essa estratégia, claramente, não dialoga nem participa da política territorial, pois não se encontra representada direta e oficialmente no colegiado territorial do TAUC, de acordo com a atual composição dos dois núcleos (dirigente e técnico) do colegiado territorial, pois não se constituiu em executora de nenhum projeto territorial no período analisado. Isso ficou evidente na falta de conhecimento dos representantes entrevistados sobre a política territorial, pois, quando perguntados se conheciam as políticas territoriais que se desenvolvem na região do Alto Uruguai Catarinense, apresentaram dificuldades de reconhecê-las. Mas depois de esclarecidos sobre o que se tratava em especial a política do MDA e o foco do presente estudo, todos os entrevistados reconheceram o não conhecimento da política e tiveram dificuldade em defini-la. De acordo com os principais representantes dessa estratégia de cooperação, isso se deve à falta de convite, mas também à consideraram a política territorial ideologizada e identificação de cunho partidário. Como o movimento cooperativista ao qual pertencem se propõe apartidário, não cabe a participação. No entanto, considerando as observações de campo, que permitiram caracterizar essa estratégia de cooperação e sua principal forma de organização – a cooperativa –, é possível constatar que esse desinteresse com a política territorial vai além das diferenças político-partidárias. Deve-se também ao fato de que os interesses dessa estratégia de cooperação se encontram quase exclusivamente voltados à cooperativa como organização empresarial, não valorizando os interesses diversos dos camponeses, de suas comunidades e de seu entorno. Deste modo, na maioria das vezes, o que interessa aos agricultores de modo geral não é objeto de suas ações. Essas afirmações podem ser claramente identificadas na fala do então ministro da agricultura Reinhold Stephanes, reconhecido cooperativista: O equivocado censo relativo a um grupo fortemente heterogêneo de produtores rurais, intitulado de agricultores familiares, ganhou uma leitura apressada e trouxe à tona uma disputa que vai tomando proporções absurdas, dentro e fora do governo. [...] O conceito central correto que interpreta tais diferenças é o da sociabilidade capitalista, processo social que gradualmente transforma as que produzem para o próprio sustento, integrando-as economicamente. Assim, em certo momento histórico se verificará a existência apenas do segundo grupo, com todos os produtores sendo ativos agentes econômicos. (Valor Econômico, 24 fev. 2010).

Como se observa na fala do então Ministro, que é também a concepção dominante no movimento cooperativista liderado pela OCB, as diferenças são reduzidas à dimensão econômica, desconsiderando as dimensões socioculturais e a possibilidade de uma dimensão econômica regida por valores e princípios não capitalistas, que na sua matéria são desqualificadas como “românticas e utópicas”. Como o processo de constituição da política territorial se apresenta numa perspectiva de inclusão social, não setorial e, portanto, não necessariamente voltada prioritariamente para as atividades principais dessas cooperativas, ou mesmo focada nesse tipo de organização no TAUC, observa-se desinteresse quanto à participação dessa estratégia de cooperação em tal política pública. Voltar ao sumário

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6.3 Estratégia de cooperação solidária autogestionária Essa estratégia de cooperação solidária autogestionária, dentre as três estratégias de cooperação identificadas, é a que efetivamente vem participando do processo de desenvolvimento territorial e se apropriando dos resultados. Pode ser considerada a estratégia mais recente e se apresenta dividida em dois conjuntos de forças com crescente dificuldade de interagir no TAUC. Isso se deve à participação de suas lideranças consolidadas e experientes, mas em especial à determinante participação dos seus principais agentes fomentadores: de um lado a força do movimento sindical da agricultura familiar (Fetraf), de outro a Epagri, particularmente sua coordenação regional. A força liderada pelo movimento sindical, identificado como FETRAF-SUL (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar do Sul do Brasil), é composta pelos Sindicatos Regionais da Agricultura Familiar de Concórdia e de Seara, pelas cooperativas de crédito rural ligadas à Cresol Central, no TAUC lideradas pela Base Integração (Seara), pelas cooperativas agroindustriais, COPAFAS (Seara) e COOPAFAC (Concórdia), e pelo Instituto de Cooperação da Agricultura Familiar de Santa Catarina, com sede em Concórdia. Esse conjunto é muito criativo e propositivo e tem uma grande capacidade de articulação e de pressão. Possui grande clareza e convicção de seus princípios orientadores, envolvendo um conjunto de dirigentes, lideranças e agricultores experientes, esclarecidos, formados na participação das históricas lutas e mobilizações produzidas pelos movimentos sociais da região desde a década de 1980. Muitos líderes são agricultores jovens com maior formação escolar, nível médio (colégio agrícola) e também nível superior, em cursos articulados pelas suas próprias organizações, cujas famílias sempre estiveram engajadas nos movimentos sociais e nas ações da Igreja (Católica e Luterana). A força liderada pela Epagri destaca-se pelo trabalho de formação, acompanhamento e articulação da coordenação regional do programa agregação de valor da Epagri Regional de Concórdia. De certo modo, a Regional de Concórdia é inovadora dentro da empresa, pela concepção e pelo envolvimento com a construção de alternativas para a agricultura familiar, seu trabalho nessa direção já vem desde o início dos anos de 1990. Ela apresenta em sua estratégia a constituição de cooperativas municipais articuladas na Central das Cooperativas da Agricultura Familiar (Cecaf), contando para isso com o apoio e a participação dos técnicos locais (municípios) e das prefeituras, quase sempre com ações conveniadas (Epagri/prefeituras). Suas lideranças não possuem o mesmo histórico de participação nas lutas da agricultura familiar, têm uma participação mais discreta nos sindicatos e pouco envolvimento com os movimentos sociais. Constituída pelas famílias que já possuíam como tradição a venda em domicílio, a industrialização caseira em pequena escala, as famílias envolvidas atuam de forma mais individual. A participação dessa estratégia é facilitada pelo amplo e complexo grau de organização constituído através da articulação de diferentes frentes de atuação da agricultura familiar, como sindicatos; movimentos sociais, como o MPA, MMC, MAB; surgimento do Partido dos Trabalhadores como uma força política e constituição de gestões mais democráticas em vários municípios, destacando-se o município de Concórdia. Essas experiências de governos locais mais abertos à participação popular têm possibilitado que lideranças dos movimentos sociais assumam principalmente

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as secretarias de agricultura, abrindo espaço para a incorporação de experiências desses movimentos e o apoio a seus instrumentos de desenvolvimento, dentre eles a cooperação agrícola, em particular o fomento à agroindústria familiar associativa de pequeno porte e as cooperativas de crédito com interação solidária. Ficou bastante evidente também que a própria política de desenvolvimento territorial é, em parte, fruto da própria luta dos movimentos sociais por políticas públicas descentralizadas e mais adequadas à diversidade de realidades existentes. Isso configurou um desenho institucional que favorece esses segmentos da agricultura familiar mais organizado e preparado para participação ativa nos novos espaços de gestão partilhada, como é o caso do colegiado territorial. A linguagem, os instrumentos e as articulações construídas facilitam a compreensão e a comunicação destes em detrimento de outros grupos sociais, como os indígenas, populações tradicionais, produtores maiores e integrados ao complexo industrial das carnes e grãos do TAUC. Outro elemento que parece favorecer esse segmento da agricultura familiar no processo de desenvolvimento no TAUC é o volume de recursos disponibilizados pela política territorial. Por serem poucos os recursos, da ordem de R$300 a 400 mil por ano, acabam não sendo interessantes para os projetos maiores, como é o caso das cooperativas empresariais e de outros segmentos fortes do agronegócio do território. Mas, para projetos menores e descentralizados, e numa perspectiva de integração entre territórios, como é a proposta da política e também dos movimentos sociais do campo, esse recurso passa a ser interessante. No entanto, a participação na política territorial permanece ainda muito direcionada pela disputa dos poucos recursos disponibilizados, ou seja, o entendimento dos principais atores envolvidos sobre desenvolvimento territorial ainda não avançou para a gestão do conjunto de recursos externos e internos presentes no território. Isso pode ser verificado nas limitações dos instrumentos de gestão territorial (PTDRS e PST), que carecem de referenciais de processo de desenvolvimento territorial, ou seja, persiste a setorialidade, na produção agrícola e no favorecimento de alguns segmentos. Isso explica em parte, ao menos, as afirmações de vários informantes, de que os segmentos da agricultura familiar predominantes na condução da política territorial no TAUC têm apresentado resistência ao envolvimento de novos e mais atores sociais, em especial dos urbanos e dos rurais mais consolidados, como é o caso dos agricultores associados às cooperativas empresariais.

7 Considerações finais Incialmente cabe frisar a existência de uma grande e rica diversidade de experiência de cooperação exitosa em todo o Território Alto Uruguai Catarinense como também em toda a região oeste catarinense. Deste modo a cooperação se constitui em elemento-força das organizações, do trabalho e da vida, no TAUC e, por extensão, na região oeste catarinense como um todo. O estudo tornou possível perceber o processo de mudanças pelo qual a cooperação da agricultura familiar do TAUC vem passando em sua trajetória. Também foi possível identificar alguns fatores provocadores das mudanças, evidenciadas a partir de meados dos anos de 1990, dentre os quais destacamos dois principais:

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◆◆ A descentralização desencadeada a partir da Constituição Federal de 1988 que promove a aproximação do cidadão com o estado e as politicas públicas, ao atribuir mais e novas responsabilidades, especialmente aos municípios; ◆◆ A constituição do PRONAF em 1996, que de um lado legitima todo um conjunto social organizado em um longo período de luta por reconhecimento e, por outro inicia a construção de politicas públicas para sujeitos sociais até então desconhecidos do estado elitista, burocrático e centralizado. Essas duas dimensões através de processos mais participativos, provocam mudanças, tanto na sociedade civil organizada, quanto estado.

Esses fatores criaram condições para um tratamento diferenciado do campesinato em sua diversidade e particularidades: mulheres, jovens, quilombolas, pescadores, ribeirinho, barreiros, indígenas, entre outros. Neste sentido, mesmo diante dos limites identificados, deve ser compreendido e ressaltado que a política de apoio ao desenvolvimento territorial do MDA/SDT, representa um significativo avanço em termos de política pública e de participação social, também em termos de inclusão de segmentos antes alijados por completo da formulação e execução de políticas públicas, se considerarmos que os agricultores familiares nunca antes o haviam feito de forma tão intensa. A implementação da política territorial tem sido um importante aprendizado, tanto para o governo quanto para as organizações da sociedade civil envolvidas. O trabalho de campo possibilitou constatar também que existe muito pouca informação organizada e sistematizada sobre a cooperação nas organizações e instituições locais e regionais. A maioria das informações ainda é de domínio pessoal, pois se encontra apenas com as pessoas que realizaram o trabalho ou vem atuando junto às organizações de cooperação. A visita e observação in loco possibilitou perceber uma significativa diferenciação entre municípios e segmentos ou grupos sociais, nos tipos, formas, número de organizações de cooperação e tempo de existência das experiências, bem como da relação destas com o poder público local e vice-versa. Porém, ainda se tem muito para observar, ouvir e conhecer pessoas, organizações - uma realidade de muitas realidades. Ou seja, se faz necessário novos estudos em múltiplos aspectos aqui apenas tangenciados. Percebeu-se que há pouca ou nenhuma troca de experiência entre as pessoas, organizações e experiências existentes. Existe muito pra apreenderem uns com os outros e isso precisa de incentivo e apoio financeiro, material, mas especialmente de apoio pedagógico adequado para processos sociais, coletivos que apontam para valores muito diferentes dos propugnados pela atual sociedade capitalista.

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A AGRICULTURA FAMILIAR DO OESTE CATARINENSE E A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO MODELO COOPERATIVO EM TORNO DOS MERCADOS DOS PRODUTOS COLONIAIS Clovis Dorigon*

1 Introdução Este texto se propõe a analisar as interações existentes entre as estratégias de qualidade, desenvolvimento territorial e a agricultura familiar da região oeste catarinense. Para tanto, se apoia em resultados de diversos estudos a respeito dos “produtos coloniais” realizados na região oeste catarinense (DORIGON, 2008; DORIGON; CERDAN, 2010; DORIGON; RENK, 2011; DORIGON; RENK; SILVA, 2012). Entendemos por produtos coloniais os alimentos elaborados artesanalmente pelos descendentes de famílias italianas e alemãs, que no século XIX migraram para o Rio Grande do Sul e deste para o oeste de Santa Catarina no início do século XX em busca de novas terras. Trata-se de um conjunto de produtos tradicionalmente processados no estabelecimento rural pelos agricultores - os “colonos” - para o autoconsumo familiar, tais como salames, queijos, doces e geleias, conservas de hortaliças, massas, biscoitos e açúcar mascavo, suco de frutas, vinho, dentre outros (DORIGON, 2008). São, portanto, produtos que mobilizam o saber-fazer dos imigrantes, transmitidos de geração em geração. O oeste catarinense é conhecido nacionalmente por ter desenvolvido o mais importante polo de produção-transformação de carne suína e de aves da América Latina. Atualmente a região abriga algumas das principais empresas produtoras de proteína animal do mundo, tais como a BRF, JBS, Aurora, dentre outras, as quais são grandes players globais do setor de alimentos. Na origem de tais empresas está uma agricultura familiar diversificada, que lhes fornece matéria prima. A presença deste grande complexo de indústrias agroalimentares na região tornou-a reconhecida nacional e internacionalmente como grande produtora de derivados de proteína animal. Assim, a imagem da região frente ao restante do País está associada à produção de alimentos processados. Porém, a partir da década de 1980 as empresas agroalimentares de grande escala iniciaram um intenso processo de concentração da produção da matéria prima, especialmente na suinocultura, levando a exclusão de milhares de produtores do mercado. Tal exclusão gerou o colapso nos sistemas de produção das pequenas propriedades rurais, pois 70% delas possuem até 20 hectares de área e os grãos produzidos em suas *

Doutor em Engenharia de Produção. Doutorado sanduiche pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS) de Paris. Pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri). E-mail: <cdorigon@epagri.sc.gov.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-8

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pequenas áreas eram transformados em ração para os suínos, que agregavam valor a estes estabelecimentos rurais. Os dejetos das criações, por sua vez, eram utilizados na adubação das lavouras de milho, fechando assim um ciclo sustentável. Como reação à crise, a partir de meados da década de 1990, a produção de leite vem ganhando importância econômica na região, tornando-se uma das principais regiões produtoras de leite do Brasil. Ao mesmo tempo, parcela destes agricultores familiares voltou-se para seus conhecimentos tradicionais na produção e processamento de alimentos, dedicando-se de forma progressiva à construção de um mercado de produtos de qualidade diferenciada, os “produtos coloniais” (DORIGON, 2008). Tal tradição esteve, inclusive, na base do surgimento das primeiras indústrias agroalimentares de grande escala. Os produtos coloniais, que antes se destinavam apenas ao autoconsumo dos agricultores e cujo excedente era comercializado via no mercado informal, via relações de confiança entre produtores e consumidores vêm conquistando um espaço crescente no mercado regional. Por serem produtos consumidos desde a tenra idade pela população da região, os produtos coloniais remetem à infância, ao campo, à natureza, ou seja, trazem boas lembranças, em especial para as populações que vivem na cidade, mas que têm ligação com o meio rural (DORIGON, 2008). É necessário ressaltar também que este apelo de produtos coloniais não se restringe apenas à região oeste de Santa Catarina, mas se estende a praticamente todo o estado, e abrange também ao Serra Gaúcha e ao Noroeste do estado do Rio Grande do Sul e Sudoeste e Oeste do Estado do Paraná. Ou seja, os produtos coloniais estão presentes nas regiões de presença importante de descendentes de imigrantes italianos e alemães. Entretanto, a região oeste de Santa Catarina possui suas especificidades, que a diferencia das demais do Sul do Brasil, razão pelo qual nos ateremos a ela e nossas análises. Assim, atualmente os produtos coloniais representam a principal opção para os agricultores familiares da região de se reinserirem de forma autônoma aos mercados agroalimentares, devido à ruptura, analisada por Wilkinson (2008), do modelo de integração vertical1 entre indústria e a agricultura de base familiar. Destaca-se que os produtos coloniais, por adotarem processos e técnicas de produção de pequena escala e por não usar insumos químicos (conservantes, corantes, dentre outros aditivos industriais) e sim métodos tradicionais de processamento e conservação são também vistos como produtos “naturais”, próximos do que se denomina de produção orgânica ou agroecológica (DORIGON, 2008). Aqui, estabelece-se uma ponte com o que Portilho [2008], apoiada em Miller, chama da politização do consumidor e ambientalização do consumo (DORIGON; RENK, 2011).

2 Uma breve caracterização da região analisada A região oeste de Santa Catarina abriga em torno de 1,15 milhões de habitantes, distribuídos em 118 municípios (40% das cidades do estado), dos quais aproximadamente 30% vivem no meio rural. 1 Entende-se por “integração vertical” o sistema de contratos pelo qual as indústrias agroalimentares

fornecem as matrizes, a alimentação, a medicação, a assistência técnica e garante a compra dos animais, cabendo aos agricultores os investimentos nas instalações e equipamentos e a mão-de-obra demandada pela criação.

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A colonização da região oeste foi realizada por empresas privadas, que adquiriam grandes extensões de terras do Estado e as subdividiram em pequenos lotes de terras, em geral com áreas de aproximadamente 22,4 hectares – ou 10 alqueires -, unidade denominada de “colônia”. Atualmente, a região possui aproximadamente 80 mil estabelecimentos rurais, dos quais 95% são ocupados por agricultores familiares e possuem área inferior à 50 hectares (IBGE, 2007). A policultura é uma das características dos sistemas agrícolas, associando lavouras e criação animal – suínos e aves produzidos para as grandes indústrias agroalimentares. Entretanto, a crise causada pela exclusão dos agricultores destes mercados de commodities, geraram graves efeitos não somente para a meio rural, mas para o conjunto da região, pois as pequenas cidades do oeste catarinense são fortemente dependentes da agricultura. Tal crise pode ser mais bem compreendida ao analisarem-se os dados censitários. Observa-se significativa alteração demográfica no oeste de Santa Catarina. O crescimento populacional tem ficado abaixo da média do estado, o que significa menor número de filhos por família e menor número de braços para as atividades rurais. Os dados indicam o envelhecimento da população rural e queda no índice de endorreprodução. No período 1991-2000 a população total da região cresceu a apenas 5,4% (0,54 ao ano) e a rural decresceu em 20% (-2,49% ao ano). Nesse mesmo período, o Estado de Santa Catarina apresentou uma taxa de crescimento demográfico de 17,8% (1,83% ao ano). Ao fazermos esta mesma comparação do período de 2000/07, observa-se que a população total cresceu apenas 8,4% (1,2% ao ano), abaixo, portanto, da taxa de crescimento do estado, que foi de 9,7% (1,3% ao ano). Embora as taxas de crescimento populacional total da região oeste tenham se aproximado da total do estado no período de 2000/07, observa-se que o meio rural continua perdendo população, a uma taxa anual de 1,4%. Assim, continua a ocorrer o êxodo rural, tanto para as cidades da região como para fora dela. Em números absolutos o meio rural do Oeste de Santa Catarina perdeu 38.812 habitantes no período entre 2000 e 2007. Além do esvaziamento demográfico e o consequente enfraquecimento econômico e político regional, a população que está migrando para outras regiões é majoritariamente composta por jovens e, dentre estes, os que possuem um nível de escolaridade maior, conforme constatado em pesquisa realizada por Silvestro et al. (2001). Este fenômeno migratório acelera ainda mais o empobrecimento e limita a construção de opções de desenvolvimento regional, devido à perda de sua mão de obra mais qualificada. A partir dos meados dos anos de 1990, e como resposta a este fenômeno importante de exclusão, uma parcela destes agricultores familiares começam a produzir e a comercializar os “produtos coloniais”. Destaca-se que estes produtos já eram comercializados pelas mulheres no mercado informal local desde o início da colonização – sobretudo queijo, ovos e carne de galinha colonial criadas soltas, produtos transformados e preparados em suas cozinhas. Tais mercados de proximidade funcionavam a partir de relações de confiança entre produtores e consumidores. Mas é bem mais tarde que os agricultores familiares, individualmente ou organizados em pequenos grupos (de três a cinco famílias de vizinhos ou parentes ) e com o apoio das prefeituras, da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) e de ONGs, especialmente a Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense, passam a formalizar esta produção construindo as “agroindústrias familiares rurais”. Voltar ao sumário

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Assim, a partir da reputação e da imagem positiva dos produtos coloniais tem início a construção de um mercado de produtos agroalimentares com atributos de qualidade específica, artesanais, que se se distinguem daqueles da grande indústria agroalimentar. Portanto, os mercados dos produtos coloniais se caracterizam pela predominância da venda direta nas casas dos consumidores ou dos próprios agricultores e nas feiras livres municipais das principais cidades da região. (DORIGON, 2008; DORIGON; CERDAN, 2010; DORIGON; RENK, 2011). Nos últimos anos os produtos coloniais têm acessado também os mercados institucionais, especialmente via Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), ou o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Assim, só após já ter construído uma demanda no mercado informal os agricultores constroem suas agroindústrias familiares para formalizar sua produção a viabilizar seu negócio em termos técnicos e econômicos. Essa dinâmica explica as baixas taxas de empreendimentos que não se viabilizam, contrastando com iniciativas similares realizadas em outras regiões. O recente desenvolvimento e mobilização em torno dos produtos coloniais podem ser entendidos como uma reação de um território frente às sérias ameaças. Dentre as quais se destacam a exclusão das atividades tradicionais, o empobrecimento, o êxodo rural e o consequente esgarçamento do rico tecido social que, até recentemente, era parte da vida comunitária destes agricultores, ameaçando as próprias perspectivas futuras da região como um todo. Note-se também que estes produtos já são comercializados fora da região, sobretudo via corrente migratória - Centro-Oeste ou até mesmo o Norte e Nordeste (DORIGON, 2008; 2010). Outra perspectiva promissora é via restaurantes nas grandes cidades. Muitos destes restaurantes e churrascarias são de propriedade de pessoas no Sul do Brasil, especialmente nas cidades da Região Oeste de Santa Catarina, o que mostra uma forte relação entre estes descendentes de imigrantes – especialmente os de origem italiana - e a gastronomia. Isso também foi verificado em entrevistas com chefs de cozinha, o que representa perspectiva promissora via a alta gastronomia (DORIGON, 2008; 2010). O que, aliado ao fato de que a região oeste é o lar de grandes grupos de alimentos, pode formar uma imagem da região relacionada à produção de alimentos e à gastronomia, com efeitos significativos sobre a economia regional.

3 A emergência de uma Economia da Qualidade no Oeste Catarinense Para compreender a valorização dos produtos coloniais pelos consumidores faz-se necessário localizá-los junto ao conjunto de valores da cultura da região em análise. Argumenta-se que em torno do resgate cultural e do saber-fazer tradicional dos agricultores está em construção uma economia da qualidade. Os produtos coloniais seriam então a materialização destes valores sob a forma de produtos alimentares pertencentes aos hábitos alimentares dos grupos sociais em questão. Por exemplo, ao se tomar os imigrantes italianos originários do Vêneto como objeto de analise, percebe-se a valorização dos produtos consumidos tradicionalmente por estes habitantes ainda hoje na sua região de origem, passando pela Serra Gaúcha, Oeste de Santa Catarina, Sudoeste do Paraná, Mato Grosso, indo até os estados da Região Norte e ao Sudoeste da Bahia. Assim, os produtos coloniais remetem às noções de identidade e ao sentido de pertencimento a uma determinada cultura e território. Voltar ao sumário

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Para analisar estas relações entre mercado, cultura e território recorre-se a Teoria dos Sítios Simbólicos de Pertencimento, a qual tem como seu principal autor Hassam Zaoual (2003, 2006a, 2006b) em colaboração com Serge Latouche (1999) e Panhuys (2006), dentre outros2. A noção de Sítios Simbólicos de Pertencimento foi formulada a partir de uma crítica radical aos modelos de desenvolvimento imposto pelos países ricos aos demais. Estes autores denunciam a falência dos modelos de “desenvolvimento transposto” em que o livre mercado se impõe sobre as demais dimensões da vida humana, tais como as diferentes culturas, a diversidade e o respeito ao meio ambiente. Zaoual propõe uma mudança profunda em direção a novos valores e a promoção de uma economia plural, integrando a intervenção pública, o setor das organizações de economia social e solidária e uma parte do mercado. A articulação destas várias dimensões da vida social deveria ocorrer concomitantemente com a implicação dos cidadãos no quadro de seu território local. Zaoual (2003) argumenta que estas propostas encontram atualmente condições favoráveis devido ao recente êxito de iniciativas de descentralização, de governança e de desenvolvimento local nos próprios países onde a globalização tem suas origens e seu motor. Segundo Zaoual (2003), o fracasso do desenvolvimento nos países do Sul e as incertezas das economias de mercado nos países do Norte geram confusão no modo de representar o mundo e de nele agir. Estas tensões e recomposições seriam a raiz da afirmação das identidades e dos territórios. Assim, em todos os lugares, cada vez mais, as pessoas sentiriam a necessidade de se inserir em locais de pertencimento: Na medida em que cresce o global, também amplia-se o sentimento do local. As razões deste paradoxo são múltiplas, entre as quais mencionamos a seguinte: a globalização, sinônimo de mercantilização do mundo, introduz localmente um tipo de incerteza e de vertigem na mente humana. Uma das maneiras de reagir a isso consiste na busca da certeza de que somente a proximidade pode garantir, até certo ponto, o sentimento de pertencer. (ZAOUAL, 2003, p. 21).

Para se contrapor ao que denomina de “economia da violência”, Zaoual (2003) enfatiza a potência dos contextos de atuação dos atores e o enraizamento da economia nas crenças e nas microssociedades locais. Em contraposição ao homo oeconomicus, resultado do discurso da globalização, Zaoual propõe o conceito de homo situs, sob o argumento de que os homens nunca reagem de maneira idêntica em todos os lugares, pois suas racionalidades se constroem socialmente em um determinado lugar – “in situ”. Essas racionalidades situadas seriam diversas, compósitas, flexíveis, complexas e abertas. Esta concepção do humano e do social abre a perspectiva para Zaoual formular seu conceito de Sítio Simbólico de Pertencimento, definido como: De modo essencial, cada sítio é uma entidade imaterial que impregna o conjunto da vida em dado meio. Ele possui um tipo de caixa preta feita de crenças, mitos, valores e experiências passadas, conscientes ou inconscientes, ritualizadas. Ao lado deste aspecto feito de mitos e ritos, o sítio possui também uma caixa conceitual que contém seus conhecimentos empíricos e/ou teóricos, de fato, um saber social acumulado du2 Para uma análise mais desenvolvida a respeito da aplicação deste enfoque teórico no contexto brasileiro, ver a tese de doutorado de Dantas (2003), em que a autora, com base na Teoria dos Sítios Simbólicos de pertencimento, analisa a valorização dos produtos de cana-de-açúcar do Brejo Paraibano. Voltar ao sumário

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rante sua trajetória. Enfim, os atores em dada situação operam com sua caixa de ferramentas que contém seu saber-fazer, técnicas e modelos de ação próprios ao contexto. (ZAOUAL, 2006, p. 32).

Sinteticamente, o sítio simbólico de pertencimento pode ser entendido como um marcador imaginário de espaço vivido. Ou seja, trata-se, de acordo com Zaoual (2003), de uma entidade imaterial (ou intangível) que impregna o conjunto do universo local dos atores. A abordagem teórica dos Sítios Simbólicos de Pertencimento representa uma ferramenta de análise que permite integrar a identidade regional à noção de território e de cultura, dos quais a economia de uma determinada região é resultado. Estas singularidades podem ser mais bem compreendidas ao se adotar a perspectiva proposta por Zaoual no que diz respeito à necessidade de uma civilização da diversidade que, por sua vez, está enraizada em um determinado território: Torna-se lógico que a escala mais pertinente seja a do território. Enquanto espaço simbólico e cognitivo, o sítio magnetiza os comportamentos e marca profundamente os códigos, as normas, as convenções, as instituições locais e, finalmente, o meio local circundante. Tal como a mão invisível do mercado o sítio é uma estrutura imaginária de coordenação econômica e social, mas ele associa instantaneamente as duas dimensões, contrariamente ao mercado. Assim, toda governança deve se abrir ao sítio e adotar suas singularidades (cultura, valores e instituições). (ZAOUAL, 2006, p. 18).

O conceito de sítio, segundo Zaoual, pode ser aplicado a múltiplas escalas e organizações, como um bairro, uma cidade, uma região, uma localidade, uma etnia, um país, uma cultura. Assim, para a aplicação da noção de sítio, é preciso situá-la empiricamente, definindo a escala a ser adotada. Mas, existiria na região Oeste Catarinense um Sítio Simbólico de Pertencimento? E, em caso afirmativo, que dados empíricos poderiam sustentar esta afirmação? Expõe-se a seguir alguns argumentos visando sustentar a afirmação da existência, nesta região, de pelo menos um Sítio Simbólico de Pertencimento, tomando novamente como exemplo alguns aspectos culturais e simbólicos dos imigrantes italianos e de seus descendentes. A opção de buscar justificar empiricamente a existência do Sítio a partir da população de origem italiana se deve à alta proporção da mesma na composição demográfica e a sua forte influência socioeconômica e cultural na região. A título de exemplo de dados empíricos, discute-se brevemente o mito da cucagna e as histórias do Nanetto Pipetta. A Mérica3, para o imaginário dos imigrantes vindos da Europa, era a terra da Cucagna. Renk (2000), ao analisar o processo de reprodução social dos colonos no Oeste Catarinense, faz a seguinte referencia à cucagna: 3 De acordo com Renk (2000), para os imigrantes italianos, a vinda para a Mérica significava independência dos senhores de terras para os quais trabalhavam, conquistando assim a liberdade pela possibilidade de serem donos de suas próprias terras. Segundo Grosselli (apud RENK, 2000, p. 77), “Nos passaportes, portanto, não se indicava Estados Unidos ou Brasil, Argentina ou Guatemala, mas somente ‘América’ e assim também para os documentos oficiais. [...] De resto, ‘América’ significa um outro mundo e quem a este se dirigia tinha decidido dar um passo grande, grandiossíssimo, sem mais retorno. Escrever ‘América’ nos passaportes era, portanto, como dar um adeus a quem partia: pouco importava se depois ele se dirigia ao Chile ou Uruguai. Era um outro mundo, sem retorno”. Voltar ao sumário

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Os migrantes a Palmitos4, tal qual seus antepassados, quando entraram no Brasil, vieram impulsionados pela utopia de um país de abundância, de um “paraíso perdido”, numa terra onde corria “leite e mel”, onde “os pombos estavam assados, com garfos e faca à espera dos comensais”: o país da Cocanha. (RENK, 2000, p. 103).

Para Renk (2000), o mito da Cocanha tem suas origens no imaginário medieval e representava a utopia da abundância, referindo-se a Ginzburg (1987), como o autor que explora estes aspectos da utopia camponesa (GINZBURG, 1987 apud RENK, 2000, p. 104). Em alguns momentos a cocanha era associada à abundância e em outros como espaço de liberdade, de quebra de convenções e opressões, obtida pelo deslocamento do contexto geográfico ao social. No Brasil a obra Nanetto Pipetta: Nassuo in Itália e vegnuto in Mérica per catar la Cuccagna5 de autoria de Frei Aquiles Bernardi, difundiu o mito da cucagna entre os imigrantes italianos e seus descendentes no Sul do Brasil. De acordo com Gardelin (1975): NANETTO PIPETTA é uma obra que espelha, com extraordinária perfeição, a adaptação dos primeiros colonos à nova terra. Frei Paulino (Aquiles Bernardi) era um observador sagaz e ouvia as narrativas dos mais velhos. [...] Nanetto vem para a América em busca da cucagna (a perspectiva do enriquecimento). Passa por uma série de infortúnios e de aventuras... Através das palavras do autor e de Nanetto, é possível estabelecer a filosofia de vida dos colonos. E retomar muitos aspectos que impulsionaram as primeiras decisões.

Assim, para as análises desenvolvidas neste texto, a obra de Nanetto Pipetta pode ser entendida como uma expressão escrita e uma representação do Sítio, contendo os mitos fundadores dos imigrantes e seus descendentes, seus valores, revelações, sofrimentos e experiências do grupo social em questão. Embora as histórias de Nanetto Pipetta tenham sido escritas na década de 20 do século passado, atualmente ainda é bastante conhecida nas regiões de colonização italiana originárias do Vêneto (Sul do Brasil e algumas do Centro Oeste e Norte, para onde migrou parte de seus descendentes). A difusão da obra não ocorre apenas de forma escrita, mas também via teatro, através de encenações das aventuras do personagem. É ainda relativamente comum haver grupos de teatro na região, ligados a universidades e a associações da cultura italiana ou independentes, os quais fazem apresentações das histórias de Nanetto Pipetta, normalmente em ocasiões festivas ou precedendo jantares italianos, feitos à base de produtos coloniais, o que mostra também a forte relação cultural com a culinária regional. Os hábitos alimentares destes imigrantes e seus descendentes estão também fortemente presentes em Nanetto Pipetta. Uma de suas histórias mais populares retrata a primeira vez que Nanetto Pipetta se depara com um pé de bananeira, planta até então desconhecida para o imigrante recém-chegado ao Brasil. Perdido na mata e com fome, ao ver o cacho de banana, logo pensa tratar-se de salames6: 4 Palmitos é um município localizado a aproximadamente 40 km de Chapecó, no qual Renk (2000) realizou sua pesquisa de campo. 5 Em dialeto vêneto: “Nanetto Pippetta, nascido na Itália e vindo à América para encontrar a Cocanha”. Tradução nossa. 6 Na terra da cucagna os salames dariam em árvores. Voltar ao sumário

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Orpo, na pianta de salámi... [...] Allora el gá visto dalla parte de lá on boschetto de piante co le foie larghe, ma larghe. – Chi sá che no le me daga de magnare calcossa ste piante... El ze andato live, el vede come dei salami piccadi tutto intorno a on ramo, che nol ghin podeva pi dal peso. – Orpo, na pianta de salami! Che boni che no i gá da éssare?!... Ghe ne gera de verdi e de dai, de grande e de píccoli. El fá on sforzo desumano, el riva a picarse a on graspo di sti salami. […] Dopo el gá chietá on tocheto. Proa saiáree sti salami e i gera boníssimi. (BERNARDI, 1990, p. 91). Puxa, uma planta de salames... [...] Então ele avistou do lado de lá um pequeno bosque com plantas com folhas largas, mas largas. – Quem sabe não me dão algo para comer estas plantas... Ele foi até lá, ele vê como se fossem salames pendurados todos em torno de um ramo, o qual não podia com seu próprio peso. – Puxa, uma planta de salames! Que bons que não devem ser?!... Havia de verdes e de amarelos, de grandes e de pequenos. Ele faz um esforço desumano, se pendura em um cacho destes salames. [...] Depois ele pegou um pedacinho. Experimenta estes salames e eles eram boníssimos 7.

Esta passagem retrata toda a simbologia e expressão cultural relacionadas a estes alimentos para estes imigrantes e seus descendentes, ainda presentes atualmente na região, o que ajuda a explicar a demanda e valorização destes produtos pelo mercado local e regional e sua relação com o Sítio Simbólico de Pertencimento. A noção de sítio é importante também para se compreender a extensão dos mercados dos produtos coloniais, pois estes produtos circulam dentro do sítio, não se restringindo à região Oeste, acompanhando as regiões colonizadas por uma das correntes migratórias mais características do Brasil: oriundos da Europa (Norte da Itália, Alemanha e Polônia), no final de século XIX se instalaram na Serra Gaúcha e, posteriormente se dirigiram ao Oeste de Santa Catarina, Sudoeste do Paraná, Centro Oeste e Norte. Pode-se argumentar que, no que diz respeito à construção social de mercados, a noção de sítio se aproxima da de redes sociais de Granovetter (1973, 1985, 1991), no interior das quais os produtos coloniais circulam. Entretanto, pensar a região enquanto um Sítio Simbólico de Pertencimento permite melhor incorporar as análises das relações com o território e das questões culturais, pois estas últimas estão intimamente relacionadas aos hábitos alimentares que determinam a demanda por produtos com atributos específicos. Ao se analisar a região como um Sítio Simbólico de Pertencimento, estes valores passam a ganhar relevância analítica, o que permite observar a densa rede de relações, de mitos, crenças e experiências passadas, conscientes ou inconscientes que ganham materialidade via “produtos coloniais”. Valores que estão, de certa forma, impregnados nestes produtos e que são captados e valorizados pelos consumidores. Observa-se empiricamente este fenômeno, por exemplo, ao se analisar os dados da pesquisa de mercado em que os consumidores das principais cidades de Santa Catarina os veem como produtos “feitos com carinho”, “honestos”, “que trazem boas lembranças”, “saudáveis/naturais”, dentre outros atributos positivos. A noção de Sítio permite também perceber a recente valorização e mobilização em torno dos produtos coloniais como uma reação criadora do Sítio às ameaças às 7 Tradução nossa. Voltar ao sumário

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quais o mesmo está submetido. Dentre as principais ameaças destacam-se exclusão das atividades tradicionais, o empobrecimento, o êxodo rural e o próprio esgarçamento do rico tecido social que até há pouco tempo compunha a vida comunitária (TÖNNIES, 1973) destes colonos, comprometendo as próprias perspectivas futuras da Região como um todo. Os descendentes dos imigrantes europeus, tendo-se deslocado da Serra Gaúcha para o Oeste Catarinense, construíram, em poucas décadas, um formidável parque agroalimentar e uma importante rede de cooperativas. Ao ocorrer o desenraizamento, de acordo com os termos de Polanyi (2000), dessas estruturas econômicas do Sítio, uma parcela de agricultores, embora ainda pequena, mas apoiada por ONGs, sindicatos, prefeituras, órgãos do estado e do governo federal, dentre outros atores, passou a buscar opções para reagir à exclusão e à fragilização do Sítio. Assim, os “produtos coloniais”, por serem portadores desses valores, passaram a aglutinar aliados, dentre os quais consumidores, que ao adquiri-los, sinalizam seu interesse em preservar algo que está sob a ameaça de desaparecer, devido à fragilização do principal alicerce sobre o qual a economia da região foi construída: a agricultura familiar diversificada. Ou seja, os “produtos coloniais” podem ser vistos como um esforço do Sítio para que o “colono” consiga manter-se de forma digna no meio rural.

4 Os mercados dos produtos coloniais e a formação de redes de cooperativas Em torno do mercado de produtos coloniais está em formação uma importante rede de pequenas cooperativas. Em pesquisa realizada em 2010 pela Epagri havia em todo o estado 140 cooperativas e 263 associações, que envolviam 21 mil associados. A estas cooperativas e associações davam suporte técnico e organizacional a 1.894 agroindústrias familiares rurais, das quais 836 estavam localizadas na região oeste de Santa Catarina (MARCONDES et al., 2012). Estas cooperativas buscam manter as vantagens do agricultor individual (direito à previdência8), ao mesmo tempo que permite o acesso à ao mercado formal e facilita a comercialização (WILKINSON, 2014). Como observamos na tabela abaixo, do total das 1.891 agroindústrias familiares rurais, 1.647 (87,1%) são de propriedade individual e envolvem 4.333 pessoas e 244 agroindústrias são grupais (12,9%), envolvendo 2.768 pessoas. A maioria destes proprietários são os mesmos que trabalham nas agroindústrias e 80% da mão de obra provém das famílias proprietárias.

8 Os agricultores no Brasil têm o direito à condição de Segurado Especial da Previdência Social, assegu-

rada pela Constituição Federal de 1988, pela qual os agricultores se aposentam com um salário mínimo mensal, as mulheres aos 55 anos e os homens aos 60 anos. Caso os agricultores constituam uma empresa, legalmente deixam de serem agricultores para tornarem-se “empresários”, sendo regidos por outra legislação. A cooperativa resolve este problema, pois se associam na condição de agricultores.

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Tabela 01: Número de proprietários e sócios/cooperados das agroindústrias - 2009 Agroindústria Individual Grupal Total

(2)

Número de agroindústrias

(%)

Nº de pessoas (1)

(%)

1.647

87,1

4.333

61,0

244

12,9

2.768

39,0

1.891

100

7.101

100

(1) Número de associados ou cooperados para as agroindústrias grupais ou de familiares para as individuais. (2) Não se obteve esta informação de três das 1.894 agroindústrias. Fonte: MARCONDES et al. (2012).

É relevante observar também que os proprietários das agroindústrias são mais jovens que os proprietários dos estabelecimentos rurais e que 25% das agroindústrias estão sob a responsabilidade de mulheres, enquanto que para o caso dos demais estabelecimentos rurais esta percentagem é de apenas 7,5%. Ou seja, a produção de produtos coloniais atrai mais o interesse da população jovem e das mulheres do que a produção de matérias primas (produção de suínos, aves, leite e grãos e fumo) para as indústrias agroalimentares de grande escala. Em relação às agroindústrias grupais, 81% delas têm no máximo nove sócios, sendo que a 51,6% tem entre três a cinco sócios. Outro aspecto a se ressaltar é que, embora 87,1% destas agroindústrias sejam individuais, 595 (36,1%) delas participam de alguma forma de organização, como cooperativa ou associação. Cabe ressaltar também a importante participação de jovens e de mulheres nestas redes de cooperação: 19% destas organizações são dirigidas por mulheres e metade destas cooperativas e associações são dirigidas por pessoas com até 45 anos (MARCONDES et al., 2012). Assim a presença feminina e de jovens é maior tanto nas agroindústrias familiares rurais como nas redes de cooperativas criadas para lhes dar suporte quando comparadas às atividades agrícola ligadas à produção de commodities. Destaca-se aqui, portanto, o estímulo que os mercados dos produtos coloniais dão à organização dos agricultores, com formação de redes de cooperação. Este modelo de pequenas cooperativas, mais flexíveis e descentralizadas, representa grande potencial, não só econômico, mas também para romper o isolamento e revitalizar o tecido social das comunidades rurais e pequenas cidades e vilas da região. Isso não significa que as cooperativas tradicionais têm menos importância. Mas essas formas descentralizadas de organização e produção incluem geralmente agricultores que não estão ligados à grande indústria agroalimentar ou às grandes cooperativas (DORIGON; CERDAN, 2010). Em relação à questão do êxodo rural, se tal fenômeno social é visto como problema devido à perda da população mais jovem e, na maioria das vezes, a mais qualificada, por outro lado, o retorno de tais jovens pode desempenhar um importante papel na reconversão produtiva. Embora necessite ser mais bem dimensionado, não restam dúvidas da importância de tal fenômeno, na medida em que alternativas econômicas para além da produção de matérias primas são cada vez mais de vital importância para a sobrevivência da agricultura familiar e das comunidades rurais. Podem-se estabelecer comparações entre os jovens que permanecem no meio rural com aqueles que saem para trabalhar como garçons em restaurantes e churrascarias ou então com aqueles que vão para a Serra Gaúcha trabalhar na viticultura. Ao retornarem, posteriormente, acionam tais conhecimentos para montar seus empreendimentos e estabelecem pontes valorativas entre o meio rural e o urbano,

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C. Dorigon

pois ao interagir com os consumidores percebem a demanda por produtos coloniais nos centros urbanos. Assim, não é por acaso que são muitos destes filhos de agricultores os que estão à frente das agroindústrias familiares rurais, em iniciativas de turismo rural ou na organização das pequenas cooperativas de agroindústrias familiares rurais, ou em outras atividades tidas como inovadoras para a região, indo além da produção de matéria prima para a grande agroindústria (DORIGON, 2008; DORIGON; RENK, 2014).

5 Considerações finais A análise dos mercados de produtos coloniais na região oeste de Santa Catarina indica tratar-se não apenas de um simples mercado ou mercados, mas de um conjunto de valores profundamente arraigados na cultura dos migrantes que vieram do Norte da Itália e da Alemanha para o Sul do Brasil. Embora importantes, as qualidades intrínsecas dos produtos coloniais significam apenas uma das dimensões destes mercados, cujas raízes estão imersas na cultura e nos valores herdados dos imigrantes, compartilhados pelos seus descendentes, fazendo parte de seu patrimônio histórico e coletivo (DORIGON, 2008). Assim, o consumo de produtos coloniais pode ser visto como um sinal de setores mais amplos da sociedade mostrando que valorizam esta agricultura familiar tão impregnada culturalmente e de conhecimentos tradicionais, com potencialidade de ir além de simples produtora de matérias primas para as indústrias agroalimentares e produzir produtos de qualidade diferenciada (DORIGON, 2008). Embora ainda num nível modesto em termos de valores e volumes produzidos e de agricultores mobilizados, os mercados de produtos coloniais podem contribuir para reforçar a imagem da região, agora não mais apenas como produtora de alimentos de consumo de massa, mas também de produtos de qualidade diferenciada. A produção de produtos coloniais, além de queijos, salames, doces, geléias e conservas, podem resultar também na produção de ativos intangíveis (STORPER, 1997) que beneficiariam, por transbordamento, o conjunto da economia da Região. Os mercados de produtos coloniais têm um importante componente de aprendizado e podem ser analisados como um processo de inovação pela tradição (CALLON, 2004). A venda de produtos coloniais permite a integração do aprendizado adquirido junto ao mercado, com o resgate, a revalorização e a reapropriação do conhecimento tradicional e do saber-fazer dos colonos. Como resultado tem-se um complexo processo de desenvolvimento de seus próprios projetos, de métodos de produção, de tecnologias, de marcas e de introdução de produtos produzidos tradicionalmente para o consumo familiar ao mercado. Esta valorização dos conhecimentos tradicionais tem importantes efeitos também sobre a valorização destas populações rurais. Ou seja, contribui para o resgate da autoestima e da noção de cidadania destes colonos (DORIGON, 2008). Talvez esteja aí uma das explicações de haver uma importante presença de jovens nas agroindústrias familiares rurais e, dentre eles, de moças. E contrariamente ao levantado em pesquisas anteriores em que os jovens que permaneciam no meio rural eram os que tinham menor nível de instrução formal (SILVESTRO et al., 2001), observa-se que, na maior parte dos casos, os jovens que trabalham na produção de produtos coloniais nas agroindústrias familiares rurais estudam, muitos deles Voltar ao sumário

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em cursos superiores afins, como engenharia de alimentos ou em administração de empresas. Outro fator importante que desperta o interesse dos jovens está relacionado às atividades em si, menos penosas que as tradicionais, como o trabalho na lavoura ou com criações. Estes jovens não mais estão dispostos a desenvolver apenas atividades que pouco valoriza seus conhecimentos, como a produção de suínos, aves, fumo e grãos. Nos produtos coloniais, a partir do resgate de sua tradição e de seu saber-fazer, o espaço de aprendizado e de inovação é imenso (DORIGON; RENK, 2014). O crescimento dos mercados dos produtos coloniais coincide com a valorização e o resgate das culinárias regionais no Brasil, enquanto portadoras da riqueza representada pela diversidade. Pode-se observar este processo nos vários eventos ligados à gastronomia realizadas nas maiores cidades do Brasil como São Paulo e Rio de Janeiro, a qual permite que os produtos coloniais se façam presentes junto à imensa diversidade de produtos, produtores, biomas e diversas culturas brasileiras. Neste evento os produtos coloniais começam a ser vistos pelos consumidores como parte desta diversidade, ou seja, não apenas da culinária brasileira, mas de um movimento maior, representando a contribuição dos imigrantes e seus descendentes na própria formação do País. Ou seja, os produtos coloniais começam a ser vistos, simbolicamente, como portadores dos valores presentes no maior núcleo da agricultura familiar brasileira, formada pelos descendentes de imigrantes que vieram para o Brasil “par fare la Mérica”. Os valores desta agricultura familiar estão presentes nestes produtos, os quais os brasileiros começam a reconhecer e a valorizar. Assim, os produtos coloniais ensaiam os primeiros passos para acessar outros mercados além daqueles percorridos via redes de proximidade. Embora ainda se trate de movimento modesto, mostram que o acesso a outros mercados além do regional constitui um processo embrionário, mas promissor. A valorização dos produtos alimentares artesanais, aqui denominados de “coloniais”, também coincide com um período de mudança no setor agroalimentar no Brasil, em que os consumidores estão começando a reconhecer os valores do mundo agroalimentar artesanal. Portanto, o conceito de “qualidade” começa a ser problematizado pelos consumidores, impulsionado pela crescente preocupação com os problemas de saúde associados industrialização crescente da produção de alimentos, preocupações com o bem-estar dos animais e com as questões ambientais e sociais. E os produtos coloniais passam a serem percebidos como “bons produtos” por atores sociais como como os chefs de cozinha e assim passam a ter a possibilidade de acessar os grandes centros urbanos do Brasil e a alta gastronomia. Ressalta-se, entretanto, a importância que a produção de matérias primas tem e continuará a ter para a economia da região, em especial o leite. Entretanto, os dados analisados neste texto mostram claramente que a produção destes produtos de base não é mais o único caminho. Assim, a Região ensaia os primeiros passos na produção de produtos diferenciados – os produtos coloniais -, “bons, limpos e justos”, conforme o lema do Slow Food. O desafio posto para a Região é, portanto, conseguir manter vivo este mundo rural, fortemente ameaçado de desaparecer devido ao grande êxodo rural, sobretudo dos jovens, enquanto negocia a transição de produtora apenas de matérias primas para os produtos de qualidade diferenciada, o que não constitui um processo fácil e exige uma enorme capacidade de mobilização e de construção de consensos. Voltar ao sumário

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E, um passo fundamental nesta direção é reconhecer e valorizar a riqueza representada pelos conhecimentos tradicionais dos agricultores familiares e sua contribuição para a valorização do território.

6 Referências CALLON, M. Por uma nova abordagem da ciência, da inovação e do mercado. O papel das redes sócio-técnicas. In: PARENTE, A. (Dir.). Tramas da rede. Porto Alegre: Sulina, 2004. p. 64-79. DANTAS, L. C. Desenvolvimento local e valorização de produtos dos engenhos de cana-de-açúcar em base territorial: o caso do brejo paraibano. 2003, 204 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Engenharia de Produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2001. DORIGON, C. Mercados de produtos coloniais da Região Oeste de Santa Catarina: em construção. 2008, 437 f. Tese (Doutorado em Engenharia de Produção) – Programa de Engenharia de Produção, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 437 p. DORIGON, C. O Mercado Informal dos Produtos Coloniais da Região Oeste de Santa Catarina. In: V ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS DO CONSUMO; I ENCONTRO LUSO-BRASILEIRO DE ESTUDOS DO CONSUMO. Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: ENEC, 2010. DORIGON, C.; RENK, A. Técnicas e métodos tradicionais de processamento de produtos coloniais: de miudezas de colonos pobres aos mercados de qualidade diferenciada. Revista de Economia Agrícola, Instituto de Economia Agrícola, São Paulo, v. 58, n. 1, p. 101-113, jan./jun. 2011. DORIGON, C.; RENK, A.; SILVA, C. A. Produtos coloniais como narrativa de comida e migração no oeste catarinense. 28ª REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Anais... São Paulo: Associação Brasileira de Antropologia, 2012. p. 1-21. DORIGON, C.; RENK, A. Juventude rural e reconversão produtiva rumo a produtos de qualidade diferenciada. In: RENK, A.; DORIGON, C. (Org.) Juventude rural, cultura e mudança social. Chapecó : Argos, 2014. p. 35-76. DORIGON, C. & CERDAN, C. La valorisation des Savoir Faire au service d un territoire: les produits coloniaux de la région Ouets de l etat de Santa Catarina - Brésil. In: SÉMINAIRE INTERNATIONAL EAAE-SYAL - Dynamique Spatiale dans les Systèmes Agroalimentaires. Anais... Parma: Séminaire International EAAE-SYAL - Dynamique Spatiale dans les Systèmes Agroalimentaires, 2010. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Agropecuário 1995/1996/2006. Santa Catarina. Rio de Janeiro, 2007. LATOUCHE, S. L’approche culturelle: le site et la niche. In: LATOUCHE, S.; NOHRA, F.; ZAOUAL, H. Critique de la raison économique. Introduction à la théorie des sites symboliques. Paris: L’Harmattan, 1999. p. 59-78. MARCONDES, T. et al. Os empreendimentos de agregação de valor e as redes de cooperação da agricultura familiar de Santa Catarina. Florianópolis: Epagri, 2012. Disponível em: <http://docweb. epagri.sc.gov.br/website_cepa/publicacoes/Agregacao_valor.pdf>. Acesso em: 19 nov. 2014. PANHUYS, H. Do desenvolvimento global ao sítios locais: uma crítica metodológica à globalização. Trad. Michel Thiollent. Rio de Janeiro: E-papers, 2006. 145 p. (La fin de l’occidentalisation du monde? De l’unique au multiple). PORTILHO, F. Consumidores de produtos orgânicos: discursos, práticas e auto-atribuição de responsabilidade ambiental. Anais... Porto Seguro: ANPAS, 2008. RENK, A. Sociodicéia às avessas. Chapecó: Grifos, 2000. 440 p. SILVESTRO, M. L. et al. Os impasses sociais da sucessão hereditária na agricultura familiar. Florianópolis: Epagri; Brasília: NEAD/Ministério do Desenvolvimento Agrário, 2001. 102 p. STORPER, M. The Regional World. NewYork; London: The Guilford Press. 1997. 338 p.

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S U M Á R I O

AGRICULTURA FAMILIAR, JUVENTUDE E COOPERATIVISMO: CAPITAL SOCIAL IMPRESCINDÍVEL AO DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL RURAL Reinaldo Knorek*

1 Introdução O tema deste texto trata sobre a importância do capital social para o fortalecimento da agricultura familiar e da juventude rural no município de Bela Vista do Toldo- SC, com a criação da COOPERFAP – Cooperativa de Fortalecimento da Agricultura Familiar do Planalto Norte Catarinense. Desta forma, a reflexão desdobra-se na descrição da formação da cooperativa, o perfil jovem dos atores envolvidos, suas motivações e suas percepções sobre aspectos ligados aos conceitos de associativismo, cooperativismo, capital social, políticas públicas e desenvolvimento territorial rural e as interações entre os fatores descritos e a influência na constituição da cooperativa de fortalecimento da agricultura familiar. O texto aborda reflexões sobre desenvolvimento, capital social, agricultura e juventude, e em destaque a configuração da COOPERFAP, sobretudo, a participação do jovem agricultor no processo da sustentabilidade do cooperativismo como alicerce ao desenvolvimento territorial rural.

2 O estado da arte sobre desenvolvimento Ao discorrer o conceito sobre desenvolvimento, pode-se imaginar e até confundir-se com crescimento econômico. Aparentemente, essa discussão não é novidade e a preocupação com a qualidade de vida da população, por exemplo, tem na sua conotação a amplitude do conceito no viés, neste contexto, o desenvolvimento territorial rural. Sachs (2000, p. 61), afirma que o desenvolvimento ocupa o centro de uma constelação semântica incrivelmente poderosa. Não há nenhum outro conceito no pensamento moderno que tenha influência comparável sobre a maneira de pensar e o comportamento humano. Na linguagem coloquial, o desenvolvimento descreve um processo pelo qual são liberadas as potencialidades de um objeto ou de um organismo, para que esse alcance a sua forma natural, completa e amadurecida. Daí o uso metafórico do termo para explicar o crescimento natural de plantas e animais. (SACHS, 2000, p. 62) *

Doutor em Engenharia de Produção. Docente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da Universidade do Contestado (UnC/Canoinhas). Email: <reinaldok@unc.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-9

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Fala-se ou se conceitua desenvolvimento a partir de adjetivos como: o econômico, humano, social, regional, local, global, territorial, de projetos, físico e muitos outros, o que faz da aberta missão de intelectuais, buscarem, sobretudo, conceituar o termo desenvolvimento, porém é necessário, nesse viés de discussões, que sejam nas mais alternadas formas de conhecimentos: tanto inter, como multidisciplinar. Nesse sentido, para cada área do conhecimento e atividade humana, o termo desenvolvimento teria suas especificidades e especialidades inerentes ao contexto percebido pelos autores. Como exemplo, alguns adjetivos podem ser conexos ao tema: o desenvolvimento econômico, ambiental, rural, social, psicológico, urbano, empresarial, cultural, territorial rural, os citados anteriormente, enfim entre outros termos. Pode-se, ainda, adjetivar o termo para se consolidar numa análise de qual situação, texto, contexto se está raciocinando, refletindo e referindo: nesse caso o conceito de desenvolvimento. Propondo-se abranger conceitualmente o desenvolvimento e crescimento, nos amparamos em Boisier, quando este afirma que: Com razão se chama usualmente o crescimento como “econômico” e o desenvolvimento como “social” (mais precisamente, da sociedade), ou simplesmente não se adjetiva para denotar, justamente, sua multidimensionalidade. Conceitos diferentes, mas completamente articulados. (BOISIER, 2011, p. 64).

Com relação ao desenvolvimento territorial rural, há certa aceitação de vários autores, sobre a precisão do conceito elaborado. Um exemplo, definido por Buarque pode ser explicitado quando afirma que se trata de: um processo endógeno registrado em pequenas unidades territoriais e assentamentos humanos capaz de promover o dinamismo econômico e a melhoria da qualidade de vida da população (BUARQUE, 2010). É expressiva a quantidade de instituições privadas e públicas que, de uma maneira ou outra, estão envolvidas com esse tema. Nos governos, em suas várias esferas seja federal, estadual ou municipal, têm surgido várias políticas públicas e programas que buscam o desenvolvimento das comunidades, dos territórios e das regiões (DENARDI, 2000). Aparentemente, a discussão do tema desenvolvimento local, no Brasil, é recente, pois apenas há alguns anos começou-se a falar de tal conceito com mais intensidade. (JOYAL, 2004). Quando se diz “local”, não se deve pensar em “restrito”, na medida em que “todo desenvolvimento é local, seja ele um distrito, uma localidade, um município, uma região, um território, um país ou uma parte do mundo. A palavra local não é sinônima de pequeno e não se refere necessariamente à diminuição ou redução” (FRANCO apud JOYAL, 2004, p. 53). Nos estudos relacionados ao desenvolvimento local e suas implicações, parece ser necessário, ao se pensar em políticas públicas e projetos que busquem sua implementação, em cuidados para que o mesmo não seja apenas uma reação a um estado de coisas. Segundo Milani, destacam-se três riscos: o primeiro deles é o risco do localismo, que aprisiona atores processos e dinâmicas de modo exclusivo ao seu local, a sua geografia mais próxima, sem fazer as necessárias conexões com as outras escalas de poder. O segundo risco é pensar ser possível o desenvolvimento local autônoma e independentemente de estratégias de desenvolvimento nacional e internacional, ou seja, conceber estratégias locais de desenvolvimento como se estas não tivessem relação de interdependência, por exemplo, com políticas nacionais de ciência e tecnologia, ou negociações mundiais

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sobre a liberalização do comércio. Um terceiro risco é a atomização do desenvolvimento local, com o corolário da fragmentação de iniciativas não necessariamente coerentes entre si (MILANI, 2004, p. 39). Diante de tantas variáveis possíveis e influências que podem condicionar o desenvolvimento de um determinado espaço territorial, considera-se, ainda o capital social inerente à comunidade que habita o tal espaço. A visão econômica tradicional destaca o papel das condições naturais, da capacitação humana, dos investimentos públicos e privados para o processo de crescimento e desenvolvimento econômico, porém recentemente a literatura sobre capital social vem apontando que as variáveis econômicas não são suficientes para explicar o processo, pois a organização social e participação cívica também ocupam um papel importante no processo da construção histórica do desenvolvimento (RODRIGUEZ et al., 2012, p. 232)

2 O capital social e desenvolvimento Muitas discussões sobre o entendimento do que é o conceito de capital social, tem orientado discussões acadêmicas e a agenda política. Destaca-se que os primeiros registros sobre esse tema, remontam a 1916, quando Lyda Hanifan construiu uma definição de capital social, partindo da ideia de valor econômico das redes sociais (MILANI, 2003). Aprofundando-se, pode-se entender capital social, como um mecanismo onde as pessoas estão organizadas e articuladas. Assim, uma região possui capital social quando existem organizações sociais atuantes, que comunicam entre si, também, quando existem confiança e espírito de cooperação entre as organizações sociais, entre elas e as instituições. (ZAPATA, 2007). Outro autor referenciado quando se fala em capital social é Robert Putnam, sendo que para o mesmo, confiança é uma relação que se constrói com base em relações recíprocas de ajuda mútua, de comprometimento dos compromissos e contratos acertados entre as pessoas. A confiança gera cooperação, assim como a cooperação pode gerar confiança. (PUTNAM, 2006). Ainda sobre confiança, e suas implicações, no Brasil, a maioria da população desconfia de outras pessoas o que pode ser um entrave e gerar maior custo de transação (BIALOSKORSKI NETO, 2001). Para Borges (2012), podem-se visualizar as implicações da falta de confiança: [...] é extremamente difícil comprovar a relevância do capital social para as pessoas, as quais entendem que somente o seu esforço poderá trazer lucros e desenvolvimento. Da mesma forma, ninguém quer ajudar o outro sem ter uma retribuição, receoso de sentir-se explorado. (BORGES, 2012, p. 81)

Contribuindo, ainda, para a demonstração da importância da existência da confiança, numa comunidade e remetendo ao conceito de capital social, se destaca a seguinte afirmação: “O capital social é indispensável dentro de uma sociedade. Possibilita a realização de determinados projetos que se baseiam na confiança mútua. Um exemplo de projeto baseado na confiança mútua são as associações de crédito rotativo” (BORGES, 2012, p. 81). Nestas associações, uma espécie de poupança informal, os participantes contribuem, mensalmente, com um valor que é destinado, por sorteio, para algum dos seus membros, sendo o sorteado, impedido de o ser novamente, até que todos possam ter sido contemplados. Mesmo tendo já recebido a

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sua parte, é importante para a manutenção da confiança no grupo, que cada membro continue a contribuir com o grupo, esse tipo de associação existe em muitos grupos e culturas, do mundo todo (PUTNAM, 2006). Ao mesmo tempo, o associativismo representa uma alternativa importante de viabilização das atividades econômicas, oferecendo aos trabalhadores e pequenos produtores da agricultura familiar, uma opção justa e coletiva de participar do mercado com melhores condições de concorrência. Por meio da cooperação formal entre associados afins, a produção e sua comercialização, de bens e serviços, podem ser muito mais rentáveis, tendo-se em vista que o objetivo é alicerçar uma estrutura coletiva na qual todos eles podem ser beneficiados. Knorek (2012) citando o World Bank, conceitua o capital social como: “therules, norms, obligations, reciprocity and trustembedded in social relations, social structures and society’sinstitution alarrangements which enable members to achieve their individual and community objectives”. Nesse sentido, esse conceito se refere a regras, normas, obrigações, reciprocidade e confiança embutidas nas relações sociais, nas estruturas sociais e nos arranjos institucionais que a sociedade permite aos sócios alcançarem tanto na esfera individual como nos objetivos da própria comunidade organizada. De acordo com Boisier (2011)1, os conceitos e a função do capital social, assim se definem: El capital social eslo que permite a losmiembros de una comunidad, confiar el uno enelotro y cooperar enlaformación de nuevos grupos o en realizar accionesencomún. Se basaenlareciprocidad difusa. Una comunidadcon elevado capital social alcanzamayores logros con recursos dados. Se reconoce la existencia de capital social en la densidad del tejido social. Esunbien público y por tanto hay una tendencia a sub-invertirenél. (BOISIER, 2011)

O mesmo autor apresenta algumas conclusões importantes sobre o desenvolvimento endógeno de um território: El crecimiento económico de un territorio es función principal de la interacción del sistema con su entorno, del intercambio de energía, información y materia (se trata de un sistema cuasi-aislado). Ello explica que el crecimiento contenga un alto grado de exogeneidad (BOISIER, 2011).

Boisier, ainda destacou que o desenvolvimento territorial está baseado na sinergia do capital social e destaca: El desarrollo territorial es función primordial de la complejidad del sistema territorial, de la sinapsis y de la sinergía cognitiva. Ello explica que el desarrollo sea siempre un proceso endógeno, necesariamente descentralizado y de escala social y territorial pequeña. (BOISIER, 2011).

O grau de sinergia que envolve o capital social, como mediação do fortalecimento da sociedade, dará o sentido das ações coletivas que estimulam o cidadão a ter opiniões firmes e cobrar, sobretudo, de governantes um melhor desempenho - por meio de políticas públicas - que tornem imprescindíveis essas ações de mudanças. 1 Palestra ministrada por Boisier no Seminário sobre Cultura e Desenvolvimento, realizado no dia 30 de abril de 2011 em Canoinhas-SC e organizado pelo Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional. Voltar ao sumário

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Para Putnam (2006) a cidadania o civismo e a democracia, estão relacionados ao capital social caracterizando o conceito de comunidade cívica, destacando as diferenças entre as regiões que estão relacionadas às raízes histórico-culturais, denominadas pelo autor como as mais cívicas e organizadas e que estão baseadas na cooperação, confiança, normas de reciprocidade na coletividade do território. É a confiança social a chave para a cooperação e o ganho de desenvolvimento nas redes de engajamento cívico. Essas ideias se associam na configuração do capital social como destaca Putnam: 1) Grupos e redes – considera a participação do cooperado em organizações sociais formais e informais, bem como as vantagens dadas e recebidas nestas relações; 2) Rede (Individual) – trata das relações de amizade informal que o cooperado tem em seu cotidiano; 3) Confiança e solidariedade - leva em conta dados sobre a confiança nos relacionamentos interpessoais do cooperado, inter e extrafamiliar; 4) Ação coletiva e cooperação - investiga as relações de trabalho na célula familiar, nos produtos em conjuntos e na punição de ações oportunistas; 5) Informação e comunicação – como se dá o fluxo de informações e a facilidade de comunicação dos cooperados na comunidade e com outras regiões; 6) Coesão e inclusão social – buscar identificar como se processam as interações entre os cooperados inter e intra-cooperativa; 7) Autoridade (ou capacitação) [empowerment] e ação coletiva – envolve o nível de empoderamento psicossocial dos cooperados e ainda a capacidade dos cooperados de agir agregadamente. Os grupos e redes, a rede individual, a confiança, a ação coletiva, as informações, a coesão e inclusão social e a autoridade são ideias, sobre o capital social elaborada por Putnam (2006) que se expandem nas possibilidades de aplicação em diversos trabalhos que tentam compreender a influencia do mesmo em projetos de desenvolvimento local e regional. A aplicação do capital social se identifica nos impactos sobre a melhora de renda e a influência da ação coletiva na comunidade. O Banco Mundial em estudo intitulado “Social Capital Initiative”2 apresenta resultados da avaliação do capital social na sustentabilidade de projetos voltados ao desenvolvimento local e territorial. Para Baquero, (2003, p. 95) uma diferença importante entre o capital social e outras formas de capital é que o capital social existe em uma “relação social”. Reside nas relações e não no indivíduo, como é o caso de habilidades que advém do capital humano. É constituído em coletividades institucionalizadas tais como: universidades, corporações, governos, associações informais de pessoas em que, o conhecimento e as visões de mundo, formam-se e são transferidas na coletividade. Capital social não são simplesmente um atributo cultural, cujas raízes só podem ser fincadas ao longo do tempo ao longo da formação de muitos povos e gerações. Ele pode ser criado – desde que haja organizações suficientemente fortes - para sinalizar aos indivíduos as alternativas que eles podem, por meio de seus comportamentos políticos, transportar na coletividade a vontade do indivíduo. Esse envolvimento entre os atores é o que pode ser observado na configuração e na diferença, entre desenvolvimento e estagnação, entre uma região e outra.

2 O Capital Social Initiative (SCI), financiado pelo Governo da Dinamarca, foi estabelecido em 1996 para avaliar o impacto do capital social sobre a eficácia dos projetos de desenvolvimento e contribuir para o desenvolvimento de indicadores para acompanhamento e metodologias para medir o seu impacto. Voltar ao sumário

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3 A importância da agricultura familiar no desenvolvimento com a juventude Maluf (2004), além da economia para acontecer o desenvolvimento territorial rural, destaca a importância social da agricultura de base familiar, pois, segundo este, esta seria a maneira mais adequada de ocupação do espaço rural, sendo que a promoção dos pequenos agricultores e os jovens desencadearia uma maior equidade e inclusão social, conjuntamente com uma maior oferta de alimentos à população, além de que esta seria mais diversificada, de melhor qualidade e obtida de uma forma mais sustentável. Devido, à representatividade da Agricultura Familiar (AF), o setor público deve promover políticas que permitam o crescimento desta atividade. De forma resumida, os municípios, os Estados e a União devem oferecer infraestrutura, assistência técnica e extensão, estudos e pesquisas, fiscalização e controle ambiental, as devidas regularizações pertinentes e, por fim, organizar a respectiva comercialização, e, além disso, a implantação de políticas públicas, voltadas a este setor da agricultura, pode indicar um reconhecimento, por parte dos governos, da sua importância no contexto nacional, aparentando possuir, o termo agricultura familiar, com mais expressão na década de 90. Esse reconhecimento político foi ancorado por dois eventos que tiveram um impacto significativo no meio rural brasileiro na década de 1990. O primeiro refere-se à militância dos movimentos sociais no campo, liderados, principalmente, pelo sindicalismo rural ligado à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG), destacando-se o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) onde se destina a estimular a geração de renda e melhorar o uso da mão de obra familiar, por meio do financiamento de atividades e serviços rurais agropecuários e não agropecuários desenvolvidos em estabelecimento rural ou em áreas comunitárias próximas. Esse movimento está reivindicando o apoio institucional às categorias de pequenos agricultores rurais que eram constantemente deixados de lado no quadro das políticas públicas. Em resposta a essas pressões, cria-se no ano de 1996 o PRONAF (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar), no qual o Estado reconhece e legitima a existência da agricultura familiar enquanto uma categoria social (SCHNEIDER, 2004). As políticas públicas, quando utilizadas para o desenvolvimento das associações e cooperativas, podem ter um efeito positivo, entretanto, parece ser importante manter bons níveis de independência para com o poder público, a fim de se evitar o clientelismo, este sim, segundo Denardi (2000), é prejudicial às ações coletivas: [...] tem crescido bastante, nos últimos anos, o número de organizações de cunho social e econômico. É certo que muitas delas estão nascendo “de cima para baixo” a partir de iniciativas de agentes externos, inclusive para ter acesso a recursos de programas governamentais. Quando isso acontece, ficam reforçados os vínculos clientelistas de dependência e dominação. (DENARDI, 2000, p. 09).

Na agricultura familiar, tem se observado diferentes tipos organizacionais, tais como, associações e cooperativas, que inseridas no âmbito da agroindústria, têm realizado negociações comerciais intrínsecas aos produtos agropecuários, se inserindo no ramo do agronegócio. Voltar ao sumário

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O Agronegócio pode ser considerado o conjunto de todas as operações e transações envolvidas desde a fabricação dos insumos utilizados, das operações de produção nas unidades agropecuárias, até o processamento e distribuição, além do consumo dos produtos agropecuários in natura ou industrializados. (RUFINO apud ARAÚJO, 2008, p. 16).

Ao se pensar no papel das agroindústrias e cooperativas, como condutoras do agronegócio, considerar-se-ia primordial a ideia de que a produção de alimentos poderia ser fomentada, de forma direta, pelas próprias organizações e com isso promoverem o desenvolvimento territorial rural. Procurando-se desvincular o conceito de que um agricultor familiar não poderia fazer parte de um agronegócio, surgem, então, as cooperativas como ferramentas de desenvolvimento do agronegócio e/ou como ferramentas de desenvolvimento territorial. A fim de demonstrar a importância que estes empreendimentos de cunho associativo, podem apresentar como instrumentos de se inserir no mercado ou agronegócio, de maneira adequada, para a agricultura familiar pode-se citar a afirmação de Souza: A produção agrícola aumenta também por que embalagem adequada e resfriamento reduzem o risco de prejuízo em relação à bens perecíveis, por ocasião da comercialização. Em relação à este ponto, parece fundamental a criação de pequenas unidades industriais e de armazenagem no interior de alguns municípios selecionados, principalmente onde se concentrassem pequenas propriedades. Uma extensão alternativa seria o estímulo ao beneficiamento de produtos no próprio local da produção agrícola. Muitos agricultores não vendem os seus produtos no mercado pela dificuldade de transporte dos mesmos até as cidades ou vilas. (SOUZA, 2012, p. 217).

Conforme a afirmação acima, as cooperativas da agricultura familiar e suas agroindústrias, colocar-se-iam como importante alternativa de inclusão dos agricultores familiares no mercado do agronegócio. Tal inclusão poderia fomentar o desenvolvimento local-regional. Ao se discutir o cooperativismo, numa visão sistêmica, destaca-se, para o entendimento conceitual, que o mesmo está classificado em treze (13) ramos distintos: 1) agropecuária; 2) de consumo; 3) de crédito; 4) educacional; 5) especial; 6) de infraestrutura; 7) de habitação; 8) mineral; 9) de produção; 10) de saúde; 11) de turismo e lazer; 12) de trabalho; e, 13) de transporte de cargas e passageiros. Quando apreciamos o cooperativismo como uma das ferramentas de desenvolvimento e de integração da economia regional, certamente destaca-se a importância do cooperativismo como grande potencial, que sem dúvidas leva o desenvolvimento territorial ou local-regional, pois ele pode: a) Fortalecer o espírito gregário (associativo); b) Promover a estruturação do Capital Social; c) Identificar e aproveitar as potencialidades locais e regionais ainda não exploradas; d) Promover o Planejamento Estratégico (participativo); e) Formar/ integrar redes (negócios, comunicação, tecnologia, etc); f) Promover capacitação/formação (aumentar o valor agregado cultural); g) Formação de poupança própria (local/regional); h) Atração de investimentos/consumidores; i) Ampliar o valor agregado dos produtos e serviços, e, sobretudo, ajudará essa juventude que vive no meio rural a dar continuidade ao sistema de produção rural. Sobretudo, na intenção do desenvolvimento sustentável, tanto na sucessão das propriedades rurais, como na garantia da produção fomentada pela agricultura familiar de subsistência, ou seja: almejar a sucessão rural para se ter futuro promissor na vida do campo. Voltar ao sumário

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

Ao embasar os desafios a serem arcadas pelas cooperativas diante da globalização, principalmente, as pequenas cooperativas e/ou as que possuem em sua formação agricultores familiares e jovens empreendedores rurais, em seus quadros associativos, destaca-se que a sustentabilidade dos mesmos que pode está na força do capital social que deve ser construído na integração e na união de todos. Assim a promoção da produção e, sobretudo, voltar-se para a sucessão das propriedades rurais, certamente também promoverá o desenvolvimento do território rural. Segundo Rodrigues (1999), ex-presidente da ACI3 as cooperativas comporiam um singular setor da economia, em cujos ditames encontram-se a ênfase na busca do equilíbrio, tanto entre a busca da eficiência econômica quanto no aspecto social. Tal característica seria o seu primordial desafio frente à globalização, pois elas teriam que ser, ao mesmo tempo, eficientes e competitivas, mas justas e com vistas ao desenvolvimento equilibrado dos seus associados. Entretanto, apesar destes objetivos traçados na busca uma maior eficiência econômica, esperara-se, então, que esta referida modernização das cooperativas não acabe levando ao sistemático sacrifício dos princípios e ideais cooperativistas e, também, que seja preservado o pequeno produtor rural que compõem a agricultura familiar no Brasil.

4 A constituição da COOPERFAP e os jovens agricultores A constituição da Cooperativa de Fortalecimento da Agricultura Familiar do Planalto Norte Catarinense (COOPERFAP)4 representada pela logomarca na figura nº 1, será objeto de análise, considerando sua formação e envolvimento de atores jovens na criação e desenvolvimento da mesma em Bela Vista do Toldo, SC. Figura 01: Logomarca da COOPERFAP

Fonte: COOPERFAP (2014). 3 ACI: Aliança Cooperativa Internacional, tem sua sede em Genebra na Suíça. Foi criada em 1895. É uma associação não-governamental que tem como função básica preservar e defender os princípios cooperativistas. Também é conhecida pela sua sigla em inglês, ICA (ACI, 2013). 4 Dados obtidos a partir da Dissertação de Mestrado de Marcelo Tokarski defendida em 2013 no Programa de Mestrado em Desenvolvimento Regional da UnC/Canoinhas. Voltar ao sumário

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A caracterização do desenvolvimento da cooperativa buscou no capital social, o ponto de investigação e de argumentação da análise sobre o pensamento dos jovens e da sustentabilidade da COOPERFAP, como um novo negócio no município de Bela Vista do Toldo. Para tal análise foram realizadas perguntas sobre as características sociais, demográficas e profissionais com todos os atores envolvidos na configuração da cooperativa: tanto os jovens como os adultos. Tais dimensões buscam identificar a idade, o gênero, o estado civil, a escolaridade, as informações sobre a propriedade, a área das propriedades, seus conhecimentos de cooperativismo e suas experiências cooperativistas. No quadro nº1, são apresentados dados sobre o município de Bela Vista do Toldo - SC, onde se identificou que o mesmo está abaixo da média nacional em comparação com o IDHM, IDHM-Renda, pois sobressai que o município é extremamente rural 85,92%, e que os jovens neste setor, 75,48% vivem de ocupação nas atividades da agropecuária. Tabela 01: Dados estatísticos sobre o Município de Bela Vista do Toldo - SC Dados

Brasil

Bela Vista do Toldo

IDHM

0,727

0,675

IDHM Renda (2010)

0,739

0,624

Probabilidade de sobrevivência até 40 anos (2010)

94,37

93,83

% dos ocupados no setor agropecuário - 18 anos ou mais (2010)

13,55

75,48

8.630.227

250

População masculina de 20 a 24 anos (2010) População total (2010)

190.755.799

6.004

População rural (2010)

29.830.007

5.157

População urbana (2010)

160.925.792

847

Rendimento médio dos ocupados - 18 anos ou mais (2010)

1296,19

601,58

% dos ocupados sem rendimento - 18 anos ou mais (2010)

5,58

18,37

% dos ocupados no setor serviços - 18 anos ou mais (2010)

44,29

13,26

74,24

80,95

% de 18 a 24 anos com fundamental completo (2010). Fonte: Atlas Brasil (2013).

Outro dado considerável é que o município com a população de 6004 habitantes em 2010, desses totaliza 5.157 que residem no meio rural e somente 847 no meio urbano. Ao ser identificados os sócios fundadores da COOPERFAP, por idade, destaca-se um equilíbrio entre as idades dos mesmos. Dos atores entrevistados, 30% são jovens de até 26 anos. Entre os entrevistados, destaca-se que 58% estão com idade entre 26 e 45 anos e, 12% estão acima dessa idade. Esse fato sobre a idade é determinante nesta análise, pois se entende que a maioria dos atores são pessoas de meia idade - com experiências de trabalho na atividade da agricultura familiar - e que se firmam como atores de vivências constituídas na idade produtiva. Em análise sobre a formação do capital social de uma cooperativa, Putnam, refere-se aos altos índices de engajamento social, encontrados em uma organização constituída por pessoas em meia idade (PUTNAM, 2006), porém ao se pensar na sustentabilidade da mesma, tendo em vista a sucessão da diretoria e continuidade das atividades, constatou-se que quando a formação de uma cooperativa constituída, por atores jovens, este

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

fato pode contribuir de forma positiva. Como visto na formação da COOPERFAP a maioria são atores com idade média e somente 12%, desses atores, estão com idade superior a 55 anos. Gráfico 01: Idade dos sócios da COOPERFAP

Fonte: Dados de Pesquisa (2013). Fonte: Dados de Pesquisa (2013)

Estes dados representam que a cooperativa possui uma configuração significativa de sócios entre de 18 aque 35 aanos, constituindo Estesa faixa dados etária representam cooperativa possui uma uma formação configuraçãojovem e madura, essencial para a sustentabilidade da mesma, na medida em que a significativa de sócios entre a faixa etária de 18 a 35 anos, constituindo uma formação maioria dos entrevistados pode vivenciar significativa parcela de idades produtivas, jovem e madura, essencial para a sustentabilidade da mesma, na medida em que a maioria como associados da COOPERFAP, mas que contam também, com uma provável dos entrevistados pode vivenciar significativa parcela deQuando idades produtivas, como a experiência de vida por parte dos associados fundadores. questionados associados da COOPERFAP, mas que contam com uma provável experiência respeito da escolaridade, dos entrevistados, 65% também, tem o ensino médio completo. Já o restante dos entrevistados somados resultou em 35% e declararam-se, 10% da ende vida por parte dos associados fundadores. Quando questionados acom respeito sino fundamental incompleto, 15% completo e 10% com ensino médio incompleto. escolaridade, dos entrevistados, 65% tem o ensino médio completo. Já o restante dos Certamente a presença de associados com ensino médio completo ajudará a cooentrevistados somados resultou em 35% e declararam-se, com 10% ensino fundamental perativa ser sustentável. Nessa direção, Putnam (2006), em sua obra Comunidade incompleto, 15% completo e 10% com ensino médio incompleto. Certamente a presença e Democracia – a experiência da Itália Moderna, afirma que a educação tem papel de associados com eensino médio completodas ajudará a cooperativa ser sustentável. Nessa fundamental na atitude comportamento pessoas, configurado, uma relação direção,entre Putnam (2006), em sua obra eComunidade e Democracia – a experiência da Itália de positividade nível educacional capital social. Com relação à configuração jurídica das terras,afirma foi perguntado a respeito propriedadedas das Moderna, que a educaçãoaos tementrevistados papel fundamental na atitude da e comportamento mesmas: pessoas, se esta configurado, próprias ou arrendadas. Os dados apontam que grande maioria, uma relação de positividade entre nível educacional e capital social. 85%, desenvolve as suas atividades produtivas em terras próprias, nesse caso, cabe Com relação à configuração jurídica das terras, foi perguntado aos entrevistados a respeito aqui uma observação, na medida em que os jovens entrevistados entendem o termo da propriedade das mesmas: se esta próprias ou arrendadas. Os dados apontam que grande “próprio”, que as terras pertencem a sua família. Apenas 15% exercem as suas ativimaioria, 85%, desenvolve as suas atividades produtivas terras próprias,das nesse caso, a dades produtivas em terras arrendadas. Com relação ao em arrendamento terras, uma observação, na medida da em COOPERFAP. que os jovens entrevistados entendem o termoda proporçãocabe é deaqui 15% entre os fundadores Dentre os fundadores COOPERFAP, a maioria, 55%, são pessoas que nunca participado de outra “próprio”, que as terras pertencem a sua família. Apenashaviam 15% exercem as suas atividades empresa cooperativa. Segundo Putnam a transparência atos e o conheprodutivas em terras arrendadas. Com(2006), relação ao arrendamento dasnos terras, a proporção é cimento mútuo, por parte da sociedade, dos regulamentos e do funcionamento das de 15% entre os fundadores da COOPERFAP. Dentre os fundadores da COOPERFAP, a instituições, é fator de potencialização da confiança entre as pessoas. De acordo com maioria, 55%, são pessoas que nunca haviam participado de outra empresa cooperativa. esse mesmo autor, a confiança é um dos componentes primordiais de desenvolvi(2006), a transparência mento de Segundo capital Putnam social (PUTNAM, 2006). nos atos e o conhecimento mútuo, por parte da dos regulamentos e do funcionamento das instituições, é fator de o Aindasociedade, questionou-se se os mesmos possuíam conhecimentos específicos sobre cooperativismo, os objetivos de formação de uma cooperativa e, ainda se eles tinham algum conhecimento sobre o histórico deste movimento. Segundo as respostas obtidas, 65% afirmaram ter conhecimentos sobre cooperativismo, já as alternativas “te-

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R. Knorek

nho pouco” e “tenho parcialmente”, cada uma obteve 15% de respostas afirmativas, perfazendo um total de 30% de fundadores da cooperativa que declararam terem, então algum conhecimento, mas não tão substancial. Apenas 5% (no caso, um entrevistado) declara não ter nenhum conhecimento sobre cooperativismo. Em um segundo momento da pesquisa, buscou-se analisar as possíveis sinergias do capital social, na formação da COOPERFAP. Sobretudo, as perguntas procuravam saber, da parte dos atores entrevistados, qual seria, nas suas percepções, o nível de envolvimento, suas participações nas ações da cooperativa, suas disposições em auxiliar na formação da mesma. Para fins de delimitação desta fala no seminário, se destaca a resposta de que quase a totalidade dos entrevistados, 95%, afirma possuir algum conhecimento sobre cooperativismo, ao se analisar as respostas, sobre a disposição para o engajamento participativo e, sobretudo, a aceitação das premissas cooperativas. Preliminarmente, pode-se afirmar que existe uma discrepância significativa entre o discurso e a prática dos atores entrevistados, ao observar-se os resultados das respostas à seguir, que arguiu os atores à respeito de seus conhecimentos sobre cooperativismo, as premissas desse movimento, os direitos e as obrigações, de cada associado e os objetivos da formação de uma cooperativa. Os princípios cooperativistas, como adesão livre e voluntária, gestão democrática, participação econômica dos sócios, autonomia e independência, educação, formação e informação, intercooperação e preocupação com a comunidade, donde cada sócio ao conhecer plenamente, tais princípios, configurar-se-ia, então, em condição de potencialização e sinergia das atividades, conjuntas, dos associados. Com apenas 10% de atores declarando possuir tal conhecimento pleno, pode-se vislumbrar um cenário de risco e dificuldades administrativas e/ou a aceitação, destas, por parte do quadro de associados da COOPERFAP. A teoria do capital social pode ajudar a entender e explicar a importância das relações sociais no desenvolvimento de uma comunidade, dentre as suas preconizações, sobressaem-se as interações recíprocas de uma comunidade ou grupo, visando o seu desenvolvimento econômico, social e cívico-democrático. Com relação ao desenvolvimento das características de civismo e prática democrática, espera-se que a participação em uma comunidade cooperativa possa potencializar interações sociais que levem ao desenvolvimento de cidadãos mais críticos e fiscalizadores da coisa pública. Além deste aspecto do capital social, Putnam enfatiza outro: “A confiança promove a cooperação. Quanto mais elevado o nível de confiança numa comunidade, maior a probabilidade de haver cooperação. E a própria cooperação gera confiança” (PUTNAM, 2006, p. 180). Assim, a participação cooperativista geraria um ciclo virtuoso de retroalimentação do processo de desenvolvimento pessoal e da comunidade representando que se trabalhar de forma cooperativista, significa indivíduos organizados e defendendo os seus interesses em grupo, de forma a ter mais força para enfrentar os problemas comuns. Quanto questionados ao aspecto sinérgico do capital social estar implícito, as respostas, foram às seguintes: 70% disseram compreender totalmente, 20%, que compreendem parcialmente. Já 5% afirmaram não compreender e, mais 5%, que não sabiam responder. Analisando os dados apresentados, 90%, então, estariam, em algum grau, sob a condição de compreender a importância de se trabalhar de forma cooperativa, buscando soluções, para os problemas comuns com a força dos jovens empreendedores rurais. Buscou-se também captar a percepção dos atores sobre o impacto das políticas públicas, tanto para o Voltar ao sumário

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

cooperativismo, quanto para a agricultura familiar, além dos jovens inseridos nesse processo de formação da cooperativa e do entendimento das ações do governo por meio de políticas públicas. Os aspectos relacionados às políticas públicas e seus impactos na agricultura, tais como: importância da obtenção de recursos públicos via projetos, se os recursos públicos podem ajudar à cooperativa, a percepção sobre o poder público municipal, a utilização do PRONAF, a fumicultura e a possibilidade de se desenvolverem cooperativas, da agricultura familiar, sem a ajuda de recursos públicos. Através da leitura, no momento das entrevistas, de um texto explicativo sobre políticas públicas, buscou-se também conhecer o nível de entendimento, por parte dos atores sobre o que são políticas públicas. Após a leitura era realizado o questionamento sobre o referido entendimento. Como resultado, obtiveram-se os seguintes resultados: 30% afirmaram entender o que são políticas públicas; 25% disseram entender parcialmente; 20% responderam que entendem pouco; 15% disseram que não entendem e, 10%, afirmaram não saberem responder. Antes da realização desta pergunta, apresentou-se uma definição de política pública, dizendo que política pública é o conjunto de ações desencadeadas pelo Estado brasileiro, em todos os seus segmentos, federais, estaduais e municipais. Estas ações podem ser realizadas em parcerias com organizações não governamentais e, como visto mais recentemente, com a iniciativa privada também. Considerando as políticas públicas como sendo diretrizes, premissas norteadoras de ação do Estado, regras e procedimentos para o relacionamento entre o poder público e a sociedade, composta por leis, programas e linhas de financiamento. Com 75% dos atores declarando possuir, em algum grau, entendimento sobre políticas públicas, pode-se afirmar que haveria uma parcela de cooperados com mais predisposição à cobrança do Estado, no concernente à boa aplicação e desenvolvimento das políticas públicas voltadas à realidade da agricultura familiar e/ou cooperativismo. Gráfico 02: Entendimento sobre políticas públicas

Sem políticas públicas, é possível desenvolver cooperativas

15%

40% É possível

Não é possível

25%

Muito difícil Não sei responder 20% Fonte: Dados de Pesquisa (2013).

Fonte: Dados de Pesquisa (2013)

Poder-se-ia, ainda, considerar que 55% os atores estão cientes da importância das políticas públicas como mecanismos em benefício de sua cooperativa. Como considerar que 55% os pode-se atores estão da importância relatado noPoder-se-ia, histórico daainda, formação da COOPERFAP, dizercientes que a cooperativa das acessar políticasvárias públicas como em benefício de sua públicas: cooperativa. Comoaprorelatado soube fontes demecanismos recursos oriundos de políticas projetos 5 vados nos Programas do SC-Rural, MDA e pode-se Território daque Cidadania . Incluso no histórico da formação da COOPERFAP, dizer a cooperativa soubedessa acessar 5 Segundo o Portal da Cidadania do Governo Federal (2011), os Territórios da Cidadania: “Tem como várias fontes de recursos oriundos de políticas públicas: projetos aprovados nos objetivos promover o desenvolvimento econômico e universalizar programas básicos de cidadania por meio uma estratégia territorial 5sustentável. A participação Programas do de SC-Rural, MDAdee desenvolvimento Território da Cidadania . Incluso dessa ótica, não

surpreende a relação entre o exposto acima que abordou a concordância, dos atores 153 à

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respeito da importância da obtenção de recursos públicos, via projetos, para incentivar as atividades cooperativistas. Como resultado sobre a importância de recursos oriundos de políticas públicas, obteve-se as seguintes respostas: 80% dos atores concordam


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ótica, não surpreende a relação entre o exposto acima que abordou a concordância, dos atores à respeito da importância da obtenção de recursos públicos, via projetos, para incentivar as atividades cooperativistas. Como resultado sobre a importância de recursos oriundos de políticas públicas, obteve-se as seguintes respostas: 80% dos atores concordam completamente; 10% concordam parcialmente; 5% discordam parcialmente e 5% não souberam responder se as mesmas contribuíram para a sustentabilidade da cooperativa. Com a maioria, 80%, dos atores afirmam acreditar ser importante a obtenção de recursos públicos, por parte das cooperativas e pode-se idealizar o reflexo do trabalho que estes atores fazem desenvolvimento em aceitar a submissão de vários projetos encaminhados a editais como dos da FAPESC (Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina) e o MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário) entre outras fontes de recursos públicos. Alguns resultados evidenciados nas fotos 1 e 2, foram obtidos via projetos de pesquisa e de desenvolvimento no meio rural: sem o apoio dos órgãos governamentais, citados acima, a COOPERFAP não se concretizaria nesse processo de desenvolvimento territorial rural. Fotos 01 e 02: Equipamentos e maquinários comprados com financiamentos públicos

Fonte: Dados coletados em visitas na cooperativa em 06 ago. 2014.

Segundo Putnam (2006), quanto mais cívica uma região, mas eficaz o seu governo. Governo mais eficaz, significa desenvolver com mais qualidade as suas ações, dentre elas, as políticas públicas, em todos os setores. Em relação à investigação da percepção sobre se as políticas públicas ajudam ou não no desenvolvimento de cooperativas, do nível global para o local, a pergunta abordou a concordância dos atores a respeito da ajuda, ou não, por parte do poder público municipal, ao desenvolvimento da COOPERFAP. As respostas, nas entrevistas, indicaram que 30% concordam completamente com a afirmação proposta; 25% afirmaram não saberem responder; empatados, ambos com 20%, aparecem os que concordaram parcialmente e os que discordaram parcialmente e, finalizando, 5% disseram discordar completamente que o poder público local é importante para fomentar o desenvolvimento. É importante enfatizar que a COOPERFAP, nos anos de 2011 e 2012, por meio de projetos desenvolvidos com o apoio da equipe técnica e contrapartidas financeiras recebeu recursos no montante de R$ 564.583,00 com o qual adquiriu equipamentos para ampliar a sua agroindústria. Sabe-se que o Programa Nacional de Fortalecisocial e a integração de ações entre Governo Federal, estados e municípios são fundamentais para a construção dessa estratégia” (PORTAL DA CIDADANIA DO GOVERNO FEDERAL, 2011). Voltar ao sumário

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

mento da Agricultura Familiar (PRONAF), configura-se, atualmente, como uma das principais políticas públicas voltadas ao desenvolvimento da agricultura e das suas instituições, pois, dentro deste programa, existem linhas específicas de auxílio a empreendimentos, tanto individuais, quanto coletivos (AYUB, 2012). Dentro deste contexto, perguntou-se aos atores se estes já haviam utilizado, ou não recursos via PRONAF. Segundo os dados apresentados, chama a atenção o baixo percentual, pois somente 35% dos associados de da cooperativa da agricultura familiar, que declararam já terem utilizados recursos via PRONAF. Já 65%, responderam que nunca haviam utilizados recursos oriundos do PRONAF, em suas atividades produtivas. Apesar da baixa utilização do PRONAF, entre os atores da formação da COOPERFAP, autores como Cazella et al (2004), comentam sobre a importância dessa política pública locais: “Pela primeira vez na história do país, uma política de financiamento destinada exclusivamente à agricultura familiar, foi lançada pelo governo federal, e os agricultores familiares tornaram-se os principais atores de inúmeras iniciativas de desenvolvimento local” (AUED apud CAZELLA et al., 2004, p. 61). Ainda nesse contexto, perguntou-se aos atores se, havendo a possibilidade de se diversificar a produção nas propriedades, seria possível diminuir a produção de tabaco ou substituí-lo por outras culturas voltadas à agricultura familiar. Respondendo à este questionamento, 80% concordaram e 20% discordaram. Ao se visualizar a informação de que 80% de sócios fundadores da COOPERFAP acreditam na possibilidade de diminuição ou abandono da cultura do fumo, pode-se dizer que existe um cenário favorável às decisões coletivas, em assembleia, que visem desenvolver projetos e ações neste sentido. De acordo com a presidente da COOPERFAP, a Senhora Regina M. David Schimborski, juntamente com Knorek, Joyal e Tokarski, na foto nº 3 e na foto nº 4 que demonstraram a diversificação na produção entre o fumo e o pepino, a mesma afirma: “Lutar no fumo é muito sofrido, nós agricultores e os jovens agricultores precisamos ajudar a achar outras coisas para esse povo fazer, desde sua fundação, pode-se observar que desenvolver alternativas à fumicultura é uma das premissas desta cooperativa”. A luta a presidente se refere é a diversificação nas atividades de produção dos agricultores pesquisados com a consolidação da COOPERFAP, que estimulou o desenvolvimento de alternativas como a produção de pepinos para conservas, os mesmo teriam novas fontes de recursos para sobreviverem no meio rural, principalmente, os jovens produtores rurais.

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Fotos 03 e 04: Busca de alternativas para a diversificação da agricultura familiar

Fonte: Dados coletados em visitas na COOPERFAP em 2013.

Na percepção dos atores se os mesmos consideram serem importantes projetos que auxiliem os agricultores, familiares a manter-se no meio rural, os entrevistados acreditam ser muito importante, pois é um fator de desenvolvimento do município. Os dados obtidos nessa direção revelam que 75% acreditam totalmente na importância de se manter os agricultores no meio rural e 25%, afirmaram acreditar parcialmente nesta importância. Pode-se observar que não havendo discordância, com relação à importância de existirem apoio a projetos, empreendimentos, associações e demais institucionalizações que visem apromover a fixação do agricultor familiar no campo, os fundadores da COOPERFAP poderiam ser considerados atores de uma iniciativa de cunho cooperativo, que visa satisfazer a busca de alternativas produtivas, combatendo o êxodo rural. Além disso, pode-se afirmara que a agricultura familiar estaria ligada à dimensão espacial-territorial do desenvolvimento, devido às suas características, ao proporcionar a distribuição populacional de uma forma mais equilibrada no território, ao se comparar com a agricultura patronal e fortemente direcionada ao agronegócio, normalmente associada à monocultura. Desta foram, a discussão dessas ideias deveria ser lembrada nos debate sobre os rumos para a construção de um desenvolvimento sustentável no meio rural. Ao serem questionados a respeito da competência dos gestores públicos regionais em apoiar projetos como os que envolvem esta cooperativa, os dados obtidos indicaram que 20% concordam completamente; 50% concordaram parcialmente; 5% discordaram parcialmente e 25% não souberam responder. Diante dos dados apresentados, observa-se uma tendência das pessoas desconfiarem da coisa pública e da capacidade/competência gerencial dos gestores públicos que ocupam os cargos na região. Putnam (2006) em sua obra Comunidade e Democracia destaca a interessante frase de Pietr Kropotkin: “Cada um por si e o Estado por todos” (KROPOTKIN apud PUTNAM, 2006, p. 175). Putnam (2006) demonstrou, em seus estudos, que sociedades dominadas por forte centralismo, como nas ditaduras ocidentais e nos países ex-comunistas do leste europeu, anos de vivência sob estes regimes podem destruir os estoques de capital social: “Muitas das ex-sociedades comunistas tinham parcas tradições cívicas antes do advento do comunismo, e o totalitarismo malbaratou até mesmo esse escasso capital social” (PUTNAM, 2006, p. 193). Para finalizar apresentando o entendimento do termo competência, segundo Zarafian (2001 apud SLOMSKI, 2012) de que a competência dos gestores seria fruto da interação sinérgica dos conhecimentos, habilidades e atitudes no exercício

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

de suas funções. Slomski ainda reforça que a administração pública sofre críticas há séculos no que se refere a ineficiência dos serviços públicos (SLOMSKI, 2012, p. 01). Nessa direção os dados da pesquisa demonstram que 20% de atores que disseram concordar com a existência de competência, por parte dos gestores públicos locais-regionais, estes somados aos 50% que declararam concordar parcialmente, ainda pode-se dizer que existiria, então, um nível mediano de confiança, por parte dos fundadores da COOPERFAP, na existência de competência gerencial, nos quadros de dirigentes públicos de sua região. Em consonância com as informações acima, reitera-se a importância de uma dada comunidade e/ou associação empreendedora possuir capital social e não apenas esperar pelo bom desempenho dos governantes, pois: “[...] o desempenho de um governo regional está de algum modo estreitamente relacionado com o caráter cívico da vida social e política da região”. As regiões onde há muitas associações cívicas, muitos leitores de jornais, muitos eleitores politizados e menos clientelismo parecem contar com governos mais eficientes (PUTNAM, 2006, p. 112). Como explicitado anteriormente por Putnam, o uso dos estoques de capital social não diminuem com seu uso, pelo contrário, quanto mais se usam, mais eles aumentam (PUTNAM, 2006). De acordo com os dados apresentados, chama a atenção o fato de como municípios ou regiões com características semelhantes, com grande presença da agricultura familiar e jovens vivendo das atividades agrícolas conseguiram alcançar, com o tempo, padrões de desenvolvimento desiguais e isto também se aplicaria às organizações existentes. Para o autor, o diferencial pode ser a presença e uso do capital social. Assim a permanência de jovens agricultores no meio rural, produzindo para sua sobrevivência e melhoria, tanto na qualidade de vida como no crescimento econômico, faz-se de fundamental importância à sustentabilidade da agricultura familiar, para o desenvolvimento territorial rural em município que tem, sobretudo, na matriz de produção voltada as atividades agropecuárias.

5 Considerações finais Ao finalizar a fala proferida no Seminário Regional Território Territorialidades e Desenvolvimento Regional realizado na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) na mesa de debates sobre Agricultura Familiar, Juventude e Territórios Rurais, destaca-se que na expectativa do tema que foi exposto sobre desenvolvimento e capital social como fortalecimento da agricultura familiar e permanência da juventude no município de Bela Vista do Toldo com a criação da COOPERFAP, penso que as ações relacionadas à mesma, sobretudo, o cooperativismo como uma ferramenta de desenvolvimento nas dimensões do local-regional-global fundamenta-se quando é implantada a partir da uma sólida configuração de sinergia que envolve os atores e o capital social. Essa sinergia é o ápice da garantia de sustentabilidade que pode fazer da COOPERFAP, uma cooperativa fundada a partir da participação de agricultores jovens envolvidos na agricultura familiar, que buscam alternativas de renda para eles e suas famílias, num ambiente fortemente marcado pela influência da fumicultura, no âmbito da agricultura familiar regional. Contando com 43 associados em 2014, distribuídos em cinco municípios, a COOPERFAP enfrenta as dificuldades inerentes à falta de capitalização financeira de seus associados, a grande maioria sendo de pequenos produtores e/ou filhos e esposas destes Voltar ao sumário

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que vislumbraram, na cooperativa, uma possibilidade de aumentar seus rendimentos e, assim, permanecerem no meio rural, desenvolvendo atividades produtivas concomitantemente à fumicultura ou visando substituí-la, como atividade principal de suas propriedades. Com relação aos resultados apresentados, conclui-se que o capital social e suas implicações, é fator fundamental para a sustentabilidade da COOPERFAP. Essa sustentabilidade implicaria na manutenção do seu quadro associativo, principalmente com os jovens, diante das dificuldades enfrentadas e visando o crescimento como entidade coletiva de desenvolvimento econômico e social no território rural, sobretudo os municípios consolidados com a matriz fundamentada em atividades agropecuárias. Como condições apontadas nesse sentido, pode-se citar a necessidade, tanto por parte da direção da COOPERFAP, quanto por parte dos agricultores envolvidos, no sentido de incentivar a formação de novas lideranças que possam, ao longo do tempo, ir assumindo a direção da cooperativa como força motivadora das ações em direção de jovens que darão continuidade na intensidade da força de vontade que os mesmos trazem como parte de um sonho a ser melhorado e realizado. Finalizando, reafirma-se a importância de se potencializar o capital social nas organizações, pois, prédios, máquinas, plantas, sementes, enfim, o “mundo das coisas”, nada é sem a presença do ser humano. E, se essa presença for devidamente entendida em seus aspectos relacionais e incentivada dentro da potencialização, respeito e valorização do capital social existente nas comunidades e/ou empreendimentos coletivos, somente assim pode-se afirmar que o caminho do cooperativismo leva ao desenvolvimento e a sustentabilidade de um local ou uma região quando o capital social faz parte da sinergia entre jovens empreendedores voltados ao tripé: econômico, social e ambiental de desenvolvimento.

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Agricultura familiar, juventude e cooperativismo...

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S U M Á R I O

POSSIBILIDADES E LIMITES DAS AÇÕES IMPLEMENTADAS NO TERRITÓRIO OESTE PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL Rosana Maria Badalotti* Maria Luiza de Souza Lajus** Cristiane Tonezer***

1 Introdução As origens do debate acerca de políticas de desenvolvimento com contornos diferenciados às políticas desenvolvimentistas iniciaram a partir dos anos 90, pós- constituição de 1988, como decorrência do processo de reforma do Estado e de reestruturação do território (RUCKERT, 2005, p. 33). Tal debate vai culminar em ações governamentais e discussões nos anos 2000 que pretendiam construir as bases para uma política nacional que possibilitasse uma ação coordenada dos diferentes níveis de governo no território nacional. Neste sentido, a categoria de território emergente é diferente na noção geopolítica de Estado-Nação. O Estado-Nação não é o território per si, mas sim o local das diversas relações sociais e também de atuação do Estado, em que “[...] o território emerge como nova unidade de referência para a atuação do Estado e a regulação das políticas públicas” (SCHNEIDER, 2004, p. 102). A perspectiva da institucionalização da ação coletiva e do retorno do ator na gestão de estratégias de desenvolvimento passa a constituir elemento fundamental na formulação e implementação das políticas de desenvolvimento a partir dos anos 2000 que passaram a adotar a abordagem territorial, à medida que se pretende um novo modo de pensar o desenvolvimento relacionado a práticas mais “alternativas”, caracterizadas “pela confrontação entre poderes heterogêneos, pouco previsíveis e dificilmente hierarquizáveis” (ANDION, 2007, p. 74). Partindo de premissas e princípios desta natureza, o Programa de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) enfatiza que o alcance dos processos de desenvolvimento sustentável depende de fatores externos e de um conjunto de ações que incidem sobre eixos centrais de intervenção que se constituem em áreas de resultados do programa. *

Doutora em Ciências Humanas. Docente do Programa de Mestrado de Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). E-mail: <rosana@unochapeco.edu.br>. ** Doutora em Serviço Social. Docente do Programa de Mestrado de Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). E-mail: <mlajus@unochapeco.edu.br>. *** Doutora em Desenvolvimento Rural. Docente do Programa de Mestrado de Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). E-mail: <tonezer@unochapeco.edu.br>. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-10

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Para tanto, considerando a heterogeneidade dos territórios, cada local deverá estabelecer um Plano Territorial, que não fique restrito a objetivos genéricos, mas sim às áreas de resultados: a gestão social dos territórios, o fortalecimento do capital social, a dinamização econômica dos territórios rurais e a integração de políticas públicas (MDA, 2003). Considerando estas reflexões, que situam alguns pressupostos teóricos e institucionais que têm orientado discursivamente a formulação e implementação de políticas e programas governamentais, nos propomos a analisar as possibilidades e limites para o desenvolvimento rural, tendo em vista ações implementadas no Território Oeste1, situado no estado de Santa Catarina como parte das estratégias de intervenção do programa citado. Do ponto de vista metodológico nos baseamos em dados bibliográficos e documentais. Os dados primários foram obtidos através de pesquisa documental em fontes produzidas pelo MDA e Secretaria do Desenvolvimento Territorial (SDT) e Associação dos Pequenos Agricultores do Oeste Catarinense (Apaco), agente mediador das ações desenvolvidas no território até 2013.2 Este texto está estruturado nas seguintes partes: a primeira aborda teoricamente e conceitualmente noções como desenvolvimento, território, desenvolvimento territorial e rural buscando relacionar a literatura aos princípios que orientam a abordagem do referido programa. A segunda trata sobre o processo de planejamento das ações e estratégias para o Território Oeste com ênfase para os critérios de definição dos projetos e eixos previstos no Plano de Desenvolvimento do território. Por fim, a última apresenta dados e informações sobre as ações e projetos desenvolvidos, buscando problematizar sobre as possibilidades e limites dos mesmos para o desenvolvimento rural.

2 Desenvolvimento, território, desenvolvimento territorial e rural Esteva (2000) chama a atenção para os princípios ideológicos, políticos e éticos que orientam os processos de desenvolvimento, sugerindo a desconstrução de tal ideia que comumente está associada à metáfora da evolução, do crescimento e da maturação. É nesta perspectiva de descontrução do desenvolvimento como um dado natural e associado apenas a lei da escassez que compartilhamos com as ideias de Esteva, sobre a importância de pensar o desenvolvimento enquanto um processo de construção social vinculado à esfera econômica, política e ética, enquanto um processo integrado de expansão de liberdades. As reflexões de Amartya Sen (2000) de que o desenvolvimento não se reduz a crescimento econômico, mas sim como um processo integrado de expansão de liberdades substantivas interligadas, tais como disposições sociais e econômicas (serviços de educação e saúde), direitos civis, liberdade de participação política, respeito aos diferentes valores sociais e costumes, igualdade entre os sexos, entre outros, 1 Na ocasião da pesquisa, o referido território estava constituído por 25 municípios, com população total de 325.476 habitantes, população urbana de 252.616 habitantes (51%) e rural de 72.800 (49%) (IBGE, 2010). 2 A partir de 2014, a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) passou a coordenar atividades de 11 Territórios Rurais e da Cidadania nos estados do Paraná e Santa Catarina mediante termo de cooperação técnica estabelecido com o MDA e o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Voltar ao sumário

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são fundamentais para compreender os limites e possibilidades das concepções e processos que orientam as políticas públicas e sociais na contemporaneidade. A intervenção das e nas políticas públicas ocorre necessariamente em um território; porém, cabe ressaltar que tal território é construído para além da dimensão administrativa, sem desprezo a esta. Nesse sentido, o território ou a territorialidade, devem ser compreendidos como produto de movimentos sociais e políticos (HARVEY, 1992) ou, ainda, como um espaço definido e delimitado por e a partir de relações de poder, caracterizando-se pela intenção do homem com o solo, consistindo num campo de forças, numa teia de relações sociais que, juntamente com a sua complexidade interna, define um limite e uma alteridade; portanto, territórios são relações sociais projetadas no espaço (SOUZA, 1995). Nesta perspectiva, compreende-se o território em seu caráter multimensional, que envolve dimensões políticas, econômicas, culturais e simbólicas marcadas pela cooperação e conflitos, expressadas pelas relações produzidas pelos atores sociais em um campo de forças e relações de poder (MARTIN, 1997). Haesbaert (2004) sinaliza a existência de duas dimensões inter-relacionadas para compreender o território: a simbólico-cultural e a político-disciplinar. A última é caracterizada pela ação do Estado, organizações sociais e políticas, e diretamente relacionada ao conceito de poder. Isso significa que o território através de suas diferentes instâncias de poder político se organiza em escalas de ação, “constituindo uma complexa rede de interações cujos interesses políticos se materializam no território” (CASTRO, 2005, p. 128). Em relação às tendências contemporâneas que têm orientado os estudos e políticas sobre o desenvolvimento territorial, Favareto (2010) realiza uma síntese sobre o que denomina de literatura científica e normativa. Tanto um campo quanto outro estão orientados por referências internacionais as quais têm imprimido nas diretrizes e experiências de políticas para o desenvolvimento de regiões rurais no Brasil a discussão sobre desenvolvimento territorial. Favareto (2010, p. 23-24) enfatiza que a experiência de indução ao desenvolvimento rural que têm influenciado significativamente estudiosos no mundo e a elaboração de políticas públicas se trata do programa Ligações Entre Ações de Desenvolvimento das Economias Rurais, mais conhecido como Leader que surgiu em 1991, como Iniciativa Comunitária da União Europeia, “nos marcos de um amplo processo de discussão sobre as formas de planejamento de políticas no continente, em crescente preocupação com as discrepâncias entre regiões”. Em relação aos avanços afirma que este tipo de projeto “possibilita ir-se além da definição setorial”, entretanto, o sucesso nesta direção depende da “maneira como são combinadas às expectativas dos atores sociais”. Tal expectativa está assentada em uma visão interacionista que normalmente não considera as diferenças e conflitos de interesses entre os atores. De acordo com Schneider (2004) a definição do desenvolvimento rural não é uma tarefa fácil e vêm se formulando em torno das transformações econômicas e institucionais observadas nos anos recentes. Neste sentido, vários teóricos perceberam a necessidade de repensar “as abordagens analíticas e os enfoques que até então eram utilizados como referências teóricas para definir o desenvolvimento rural”. (p.93). Segundo o autor, neste debate a preocupação dos estudiosos tem girado em torno de quatro elementos-chave: “a erradicação da pobreza rural, a questão Voltar ao sumário

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

do protagonismo dos atores sociais e sua participação política, o território como unidade de referência e a preocupação central com a sustentabilidade ambiental”. (SCHNEIDER, 2004, p. 94). Para Freitas, Freitas e Dias (2012), a noção de desenvolvimento rural surge como alternativa teórica, pois pretende se opor a concepção de desenvolvimento agrícola que durante muito tempo orientou as reflexões teóricas e as ações de planejamento de políticas públicas desenvolvimentistas baseadas na modernização agrícola. A emergência de uma abordagem territorial do desenvolvimento rural no que se refere às políticas públicas adquire, portanto, um caráter normativo, na medida em que define formas de intervenção e gestão e “requer um aparato institucional que lhe garanta suporte”. Freitas, Freitas e Dias (2012) ao se referirem ao programa do MDA, afirmam que o mesmo “institui a necessidade de criação de Colegiados de Desenvolvimento Territorial, que possuem a função de serem espaços de concertação e discussão sobre os rumos dos territórios rurais”. (p. 1589). Considerando a diversidade de enfoques e o caráter normativo que têm orientado as chamadas abordagens territoriais, Favareto (2010) afirma que não existe uma teoria do desenvolvimento territorial, mas experiências empíricas que precisam ser compreendidas. No caso do Brasil, tal debate passou a permear o campo acadêmico e institucional a partir dos anos 90, período em que emergem importantes mudanças no meio rural e no desenho institucional das políticas públicas, decorrência de um processo de reformulação do papel do Estado e de organização da Sociedade Civil. Nesta direção, Schneider (2010, p. 299), enfatiza que a abordagem territorial do desenvolvimento rural surge em um contexto de redefinição do papel do Estado e do realinhamento dos instrumentos tradicionais de promoção do desenvolvimento, tendo em vista o redirecionamento da intervenção estatal, pois “em lugar dos investimentos diretos e de corte setorial, caberia ao Estado criar condições e certo ambiente a partir do qual os agentes privados pudessem, eles mesmos, fazer a alocação, supostamente mais eficiente, dos recursos humanos e materiais”. Na mesma esteira de preocupação de Favareto (2010), compartilhamos do pressuposto de Andion (2007, p. 97-8) de que a ideia de desenvolvimento territorial deve ser compreendida como integradora de duas dimensões analíticas interdependentes: a dimensão empírica e a dimensão normativa. A dimensão empírica pressupõe a análise do desenvolvimento territorial na condição de processo e a maneira pela qual ele é colocado em prática por meio de ações territoriais. A dimensão normativa o percebe como uma finalidade a ser alcançada.

3 A abordagem territorial do Programa de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais Um dos principais objetivos do referido programa é sugerir uma nova maneira de “conceber e de implementar políticas públicas que enfatizem o desenvolvimento rural sustentável” (SDT/MDA, 2005a, p. 6). A concepção de desenvolvimento proposta pretende construir um desenvolvimento multissetorial, na medida em que se pretende priorizar questões emergenciais como “o acesso a terra, combate à fome, pobreza, indigência, doenças endêmicas, garantia à habitação, segurança e trabalho” (SDT/MDA, 2003, p. 20).

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O programa concebe o desenvolvimento como um plano a ser construído através do protagonismo dos diferentes atores sociais em que a noção de desenvolvimento territorial busca associar diferentes dimensões, e não significar apenas um resultado ou um fim “em si mesmo”. Para tanto, sugere um recorte territorial, onde deverão ser estabelecidas relações e processos sociais entre Estado e sociedade. É a partir dessas relações que se produzem diagnósticos para cada território rural, de acordo com suas realidades específicas. O processo de desenvolvimento territorial pressupõe uma relação contínua entre as políticas públicas (nacional, estadual etc.), planos, projetos, proposições, que deverão demandar de consultas à sociedade civil e retornar em forma de diagnóstico para cada território rural. Neste sentido, o plano a ser construído em cada território é resultado de processos desenvolvidos de forma contínua e constante a partir de um “ciclo de gestão” (SDT/MDA, 2005c, p. 6) que pressupõe planejamento, organização e controle social por parte dos agentes sociais envolvidos. Somente após esse processo será possível implementar as ações, verificar os resultados e impactos e finalmente avaliar o alcance do programa nacional. Na sequência trataremos do processo de planejamento das ações do Território Oeste dando destaque para a institucionalização da ação coletiva e do ‘retorno do ator’ na gestão de estratégias de desenvolvimento conforme enfatizado por Andion (2007).

4 Espaços de institucionalidade e ações coletivas para o desenvolvimento no Território Oeste Na região oeste de Santa Catarina, as experiências de desenvolvimento que envolvem diferentes agentes sociais e territorialidades demonstram que muitas delas nasceram de iniciativas de organizações locais, outras nasceram das relações de parcerias com atores externos, o Estado por exemplo. Muitas delas produziram redes de organizações e movimentos sociais fundados em vínculos de parceria (FAVERO; GRAMACHO, 2004, p. 4). A atuação de movimentos sociais rurais a partir de 1980 e das ONGs na década de 1990 caracterizam os espaços de institucionalidade e ações coletivas voltadas para a busca de alternativas na agricultura familiar da região, em que passa a se estabelecer uma relação mais estreita e diferenciada entre a agricultura familiar e a busca de alternativas de viabilização econômica e reprodução social para este segmento. Neste contexto podemos destacar o papel de diferentes mediadores que passaram a constituir uma Rede de Viabilização da Agricultura Familiar, objetivando principalmente a assessoria técnica e política, a captação de recursos e a implementação de políticas públicas voltadas principalmente para a inclusão sócio-econômica de agricultores familiares vulnerabilizados socioeconomicamente (BADALOTTI, 2003). No caso investigado observamos que os espaços de atuação de processos sociais e políticas públicas de desenvolvimento territorial e rural não se restringem somente ao Estado, estendendo-se para outras esferas sociais não governamentais, como é o caso dos movimentos sociais, ONGs, conselhos, fóruns, etc. Teorias mais recentes associadas à Ciência Política e Sociologia Política, têm buscado definir as novas formas de atuação da sociedade civil e os novos espaços públicos de participação e deliberação de diversas problemáticas e temas. Estudos empíricos têm demonstrado Voltar ao sumário

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

a importância das diferentes formas de arranjos participativos e como os mesmos se combinam com as instituições políticas tradicionais. Segundo Dagnino e Tatagiba (2007, p. 11) se trata de “reconhecer a complexidade do processo de construção democrática, na diversidade de dimensões, sujeitos e espaços que ele envolve”. Deste processo surgem ONGs como a Apaco, criada em 1989 e que em função de um acúmulo de capital social e articulação com diferentes atores vinculados a agricultura familiar vem atuando e assessorando historicamente projetos e ações voltadas para o desenvolvimento da agricultura de grupo na região Oeste de Santa Catarina. Esta associação entre 2004 e 2013 atuou como articuladora das ações do PRONAT no Território Oeste. Essa atuação tem se efetivado a partir de um processo de planejamento e execução de projetos que pretende, – de acordo com os princípios do programa nacional – envolver diferentes agentes sociais da região. Esses processos pressupõem a participação de diferentes atores locais e regionais, para a constituição de redes organizativas e produtivas visando ações coletivas voltadas para o desenvolvimento territorial. A gestão desses processos deve estar pautada, portanto, na participação da sociedade civil e dos diferentes níveis de governo, visando à discussão, formulação, articulação, pactuação e ao controle social das políticas públicas. À luz da reflexão de Avritzer e Pereira (2005) podemos afirmar que esses processos pretendem se constituir em inovações institucionais híbridas democráticas. Os autores denominam “instituições híbridas” “as formas institucionais que envolvem a partilha de espaços de deliberação entre as representações estatais e de organizações da sociedade civil” (CUNHA, 2007, p. 26).

4.1 Processo de planejamento das ações e estratégias para o Território Oeste3 O território Oeste está constituído pela totalidade dos municípios integrantes da Amosc, por três municípios (Novo Horizonte, São Bernardino e São Lourenço do Oeste) da Associação dos Municípios do Noroeste Catarinense (Amnoroeste) e por dois municípios (Campo Erê e Saudades) da Associação dos Municípios do Entre Rios (Amerios). A configuração territorial do Território Oeste ainda está perpassada pelo cruzamento das Secretarias de Estado de Desenvolvimento Regional do Estado de Santa Catarina, onde se identifica a presença de municípios da Secretaria Regional de Chapecó (9 municípios), da Secretaria de Maravilha (4 municípios), da Secretaria de São Lourenço do Oeste (4 municípios), assim organizadas pelo governo do Estado de Santa Catarina. O oeste catarinense caracteriza-se pela marcada presença da atividade agroindustrial focada na produção de alimentos e suas cadeias correlatas. Todavia, com a globalização e frente às políticas econômicas mundiais dominantes, na década de 1990, as atividades produtivas no estado sofreram duramente pela perda de competitividade, aliada aos impactos sociais e ambientais nas escalas urbana e regional, provocados pela concentração e intensidade dessas mesmas dinâmicas produtivas, configurando uma situação de esgotamento, que tem necessitado um redirecionamento mais equilibrado (VIEIRA; CUNHA, 2002). O modelo de desenvolvimento adotado para a região determinou a exploração 3 Parte das informações e dados que seguem foram sintetizados das seguintes fontes e constituem resultados de análises documentais: Badalotti e Oliveira (2012); Badalotti, Lajus e Mendes (2013) e Badalotti (2013). Voltar ao sumário

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R. M. Badalotti, M. L. de S. Lajus, C. Tonezer

irracional dos recursos naturais existentes e tem promovido uma saturação e exploração desordenada dos recursos naturais, resultando em degradação ambiental (perda da fertilidade dos solos, extinção da cobertura florestal e poluição dos solos e dos recursos hídricos). A erosão hídrica é o principal causador da degradação dos solos, e apresenta-se como conseqüência da retirada da proteção vegetal, do uso do solo fora de sua aptidão e da não adoção de práticas conservacionistas. Além destes fatores, destaca-se a criação de suínos e aves, cujos dejetos incorretamente armazenados e tratados acabam chegando aos corpos hídricos, comprometendo a qualidade da água, restringindo seu uso nas atividades produtivas e de lazer. Alia-se a isso, a falta de esgoto sanitário na quase totalidade das cidades da Região. Diversos fatores influenciaram para se chegar à situação atual, Testa et al. (1996) menciona, por exemplo: a alta densidade demográfica rural; a concentração expressiva da suinocultura e avicultura, com alta produção de dejetos e sérias implicações ambientais; o esgotamento dos recursos naturais, explorados acima de sua capacidade de uso; e a atividade de várias agroindústrias que geram efluentes com alto potencial poluidor. Segundo o autor, além dos fatores conjunturais citados, contribuíram para a crise fatores estruturais como: escassez de terras nobres, que somam cerca de um terço da área da região; grande distância dos principais mercados consumidores; esgotamento da fronteira agrícola e estrutura fundiária pulverizada, com solos declivosos e pedregosos. Em função dessas mudanças estruturais e conjunturais, as famílias de agricultores passaram a buscar novas estratégias de reprodução social, entre as quais se destacam a atividade leiteira, atividades não-agrícolas juntamente com a combinação das atividades tradicionais e convencionais, o que têm apontado para uma dimensão multifuncional e pluriativa da agricultura familiar. A partir dos anos 1990 passa a se estabelecer uma relação mais estreita e diferenciada em relação a outros períodos históricos entre a agricultura familiar e a busca de alternativas de viabilização econômica e reprodução social no Oeste Catarinense. Neste contexto podemos destacar o papel de diferentes mediadores que passaram a constituir uma Rede de Viabilização da Agricultura Familiar, objetivando principalmente a assessoria técnica e política, a captação de recursos e a implementação de políticas públicas voltadas principalmente para a inclusão sócio-econômica de agricultores familiares fragilizados socioeconomicamente. Deste processo surgem ONGs como a Apaco, dentre outras organizações sociais que hoje integram a coordenação do Território Oeste Catarinense, lócus desse estudo (BADALOTTI, 2003; 2005; 2008; 2009) A agricultura familiar, segundo Testa et al. (1996), encontrou na atividade leiteira uma oportunidade de utilizar os recursos disponíveis na propriedade transformando-a em potencial fonte de renda. Assim, além de ser uma atividade de subsistência o leite emergiu como uma atividade comercial, que trabalhada por grande número de produtores, tendo grande alcance social. Se por um lado a bovinocultura leiteira tem sido responsável por gerar uma alternativa de renda e manutenção no campo para um grande número de famílias, por outro, como toda a atividade econômica ela já iniciou um processo de seletividade, impondo condições aos produtores para permanência com viabilidade econômica (ROVER et al., 2009). De acordo com a Apaco (2005a), na maioria dos municípios do território existe organização de cooperativas de leite, formadas por agricultores familiares descaVoltar ao sumário

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

pitalizados que produzem até 50 litros de leite por dia. Essas cooperativas estão organizadas por uma Rede de Cooperativas de Leite – a Ascooper –, que surgiu em 2002 objetivando agregar os pequenos produtores de leite dos municípios da região. Diferentes estudos sobre a cadeia produtiva do leite e os processos de constituição de redes cooperativas no Oeste Catarinense tem demonstrado que tais alternativas constituem importantes estratégias de viabilização econômica e social, de inclusão social e fator de competitividade no mercado local e regional, principalmente pela via da cooperação. A atividade produtiva leiteira em todo o seu ciclo – desde a produção até a certificação – têm envolvido diferentes atores sociais vinculados a projetos de desenvolvimento da agricultura familiar e do desenvolvimento rural da região (TESTA et al., 2003; SCHUBERT; NIEDERLE, 2009; ANSCHAU; ROVER, 2010; WINCKLER, 2010; ANSCHAU, 2011). As ações e estratégias para o território Oeste entre 2004 e 2013 foram planejadas a partir de espaços denominados de oficinas, dos quais participavam representantes do Núcleo Dirigente e Técnico, constituindo o Colegiado de Desenvolvimento Territorial cuja composição era formada por entidades governamentais e não governamentais da região. O colegiado do Território Oeste possui como objetivo planejar ações e atividades, avaliar propostas de projetos e o processo de implementação e execução dos projetos já aprovados. Essas oficinas constituem também espaços de discussões temáticas e conceituais relacionadas aos eixos estratégicos de desenvolvimento, orientadores das ações, projetos e programas territoriais. Identificaram-se diferentes momentos de planejamento e elaboração que constituem etapas ou ciclos de gestão do território Oeste a partir do ano de 2005. Entre as temáticas das oficinas, podemos destacar gestão e planejamento do território oeste catarinense; estudo propositivo de dinamização das economias do território Oeste; planificação e gestão do território Oeste; gestão e elaboração do Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) do Território Oeste; gestão social dos territórios rurais – análise e definição dos instrumentos de gestão social. Conforme enfatizado anteriormente, as oficinas constituem espaços de planejamento, proposição e avaliação de projetos e ações para o território. Estes espaços de discussão seguem critérios temáticos e conceituais definidos a priori chamados de eixos estratégicos. Os eixos estratégicos para as ações a serem realizadas no território foram assim definidos: Eixo 1 – trata do desenvolvimento das cadeias produtivas, com ênfase na cadeia do leite (cadeias do mel, artesanato regional, agroflorestal, piscicultura, frango caipira, plantas medicinais, fruticultura e horticultura, agroindústrias familiares e suinocultura alternativa); Eixo 2 – comercialização; Eixo 3 – educação no campo (inclusão social, formação e capacitação para os agricultores familiares); Eixo 4 – meio ambiente (produção agroecológica, plantas medicinais, saneamento ambiental, alimentação de subsistência, proteção e preservação de nascentes). (APACO, 2005a). A fim de identificar as ações implementadas no Território Oeste, apresentamos na sequência os critérios que deveriam ter sido considerados para a definição dos projetos a serem encaminhados ao MDA, bem como um levantamento de projetos executados e alguns ainda em execução e montante de recursos no período de 2003 a 2014 de acordo com dados disponibilizados em sítio do MDA. Os recursos

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R. M. Badalotti, M. L. de S. Lajus, C. Tonezer

relativos aos projetos são oriundos do Proinf – Pronaf Infraestrutura modalidade de financiamento voltada ao apoio de projetos de infraestrutura e serviços em Territórios Rurais (BRASIL/MDA, 2015).

4.2 Projetos implementados no Território Oeste Em relação aos critérios para a definição dos projetos foram identificados os seguintes: - devem beneficiar um maior número de agricultores familiares; - devem ser intermunicipais; devem contemplar os eixos estratégicos; - devem estar articulados com organizações e associações; - devem realizar articulação com o poder público; - devem contemplar experiências já existentes; - devem incluir as questões de gênero e da juventude; - devem ser estratégicos para o desenvolvimento territorial; - devem preferencialmente ter foco na região; - devem ter embasamento social (APACO, 2005a). Para a definição das prioridades, elaboração, escolha e trâmite legal dos projetos, os territórios deveriam se guiar pelas orientações institucionais do MDA que define critérios obrigatórios para a indicação e priorização de projetos territoriais, que deverão ser seguidos pelos colegiados territoriais. Como critérios obrigatórios devem ser observados os seguintes: os projetos devem estar vinculados aos eixos temáticos ou aglutinadores dos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS); os projetos devem ter caráter de integração territorial ou intermunicipal; os projetos devem atender o público beneficiário das ações do MDA como agricultores (as) familiares, assentados (as) da Reforma Agrária, quilombolas, indígenas, pescadores (as) artesanais e extrativistas; para os projetos de empreendimentos econômicos e/ou sociais, deve-se indicar a forma de gestão que inclua a participação do colegiado territorial e público beneficiário; os projetos de agroindústrias devem ser destinados a grupos com maior dificuldade de acesso ao crédito, como jovens, mulheres, quilombolas, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas e indígenas, e a agricultores (as) familiares que se enquadrem no Grupo B do PRONAF; no caso de municípios/territórios que apresentam baixo dinamismo econômico, os projetos agroindustriais podem também contemplar agricultores (as) familiares que se enquadrem no Grupo C do PRONAF (MDA/SDT, 2007, p. 1-2). Considerando os critérios obrigatórios definidos pelo MDA, identificaram-se nos documentos analisados que o Território Oeste dos projetos executados entre 2003 a 2013 realizou ações relacionadas prioritariamente a investimentos pontuais voltados exclusivamente aquisição de máquinas, equipamentos, veículos, móveis, construção de unidades e serviços relacionados a adequação e reformas de instalações, e ações de apoio à agricultura familiar que não ficam claras no objeto descrito no documento disponibilizado pelo MDA e totalizam entre 2004 a 2014 um montante de recursos no valor de R$ 5.799.000,00. As ações consideradas neste total foram aquelas que no documento publicado pelo MDA configuram situação normal concluída e prestação de contas final concluída, sendo que do total de 112 ações identificadas, 93 constam nesta classificação. Não foram consideradas as ações que se encontram classificadas em situação normal atrasada, prestação de contas final atrasada, em situação normal não iniciada, contratada com cláusula suspensiva não iniciada e extinta não iniciada configurando 12 ações. Também não foram consideradas sete ações datadas de 2014 em que o objeto não foi especificado, totalizando um valor de R$ 932.660,00. (BRASIL/MDA, 2015).

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

Como consideração inicial e exploratória em relação a estes dados, podemos afirmar considerando somente o objeto descrito no documento consultado que o Território Oeste de uma maneira geral não atendeu aos critérios definidos acima. Entretanto, como não tivemos acesso aos projetos para analisar qualitativamente a identificação do objeto, a justificativa da proposição, as metas e estimativas de custo, bem como a metodologia de execução para alcançar cada meta não temos elementos para avaliar em que medida as ações executadas atenderam ao público-alvo priorizado pelo MDA, se caracterizam como iniciativas e ações intermunicipais, se articuladas a organizações e associações; se vinculadas aos eixos estratégicos definidos no PTDRS e se finalmente são estratégicas para o desenvolvimento territorial. O que se observa, é que o Território está cumprindo a “articulação” com o poder local, na medida em que maioria das proposições tem como executor responsável as prefeituras municipais, o que em nossa avaliação pode estar caracterizando mais uma estratégia de “prefeiturização” na distribuição dos recursos, do que um planejamento local ou regional. Geraldi (2012), afirma que a territorialização das políticas, não têm efetivamente garantido a descentralização política e financeira dos municípios, mas sim municipalizado a atuação da escala nacional, gerando na escala local, “uma competição entre as municipalidades por investimentos públicos e privados”. Afirma ainda que “[...] a escala local se responsabiliza pela implantação dos projetos na medida em que se enquadra nos critérios definidos pela escala nacional – como é o caso da prerrogativa da existência de instituições territoriais para o MDA” (p. 163). No que se refere a cadeia produtiva do leite entre 2003 e 2009 foram identificadas 16 ações, sendo 2 como parte de outras propostas, não sendo possível, portanto, auferir o valor para o investimento destas ações para a cadeia produtiva. Neste sentido consideramos apenas 14 ações que totalizaram o montante de R$ 2.233. 100,00. No que se refere a estas ações foram identificados investimentos em máquinas, equipamentos diversos para industrialização, armazenagem e resfriamento do leite (principalmente tanques isotérmicos). Observa-se que mesmo que o montante de recursos seja razoável, as ações de investimento são muito pontuais e em sua maioria estão voltadas para garantir a qualidade do leite, tendo em vista a integração dos agricultores familiares a lógica de mercado. Por outro lado, podemos afirmar também que há uma preocupação por parte dos atores institucionais envolvidos com a gestão do território, em apoiar mesmo que de forma mais tecnicista ações voltadas para a cadeia produtiva, considerando prte deste segmento a agroindustrialização. A constatação de que a cadeia produtiva do leite se constitui em importante estratégia de desenvolvimento rural e regional, foi observada nos estudos já citados, o que nos leva a reafirmar que o fortalecimento e transformação da agricultura familiar no referido território tem dependido da atividade leiteira, que a partir dos anos 2000 vem se constituído em uma importante estratégia de enfrentamento ao predomínio das grandes agroindústrias convencionais de industrialização de alimentos, das quais a maioria dos agricultores familiares da região até meados dos anos 90 estiveram vinculados, principalmente às atividades de integração na suinocultura e avicultura. Considerando a importância de ações voltadas para a mobilização, capacitação e formação dos diferentes atores territoriais, identificamos que ações desta natureza se concentraram entre o período de 2004 a 2007, totalizando 13 ações de mobilizaVoltar ao sumário

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ção e formação para a cooperação agrícola, gestão solidária, capacitação para gestão participativa e planejamento das ações do território, formação e capacitação de famílias assentadas, entre outras previstas de maneira generalizada como seminários, cursos que não estão explicitados nas informações disponibilizadas pelo MDA. Entretanto, identificou-se somente uma ação em 2008 de apoio a Educação do campo e adequação do Centro de Profissionalização da Agricultura Familiar situado em unidade municipal, no valor de 100.000,00. Em 2010, realizou-se também, ação desenvolvida por Cooperativa Central Cresol tendo em vista a qualificação do sistema de cooperativas solidárias de crédito rural no valor de R$ 479.660,00. Das 15 ações identificadas, somente uma delas teve como responsável executor uma prefeitura municipal, as demais foram executadas por cooperativas de crédito e produção, sindicatos, ONGs de apoio e assessoria a agricultura familiar e cooperação agrícola, entre outras entidades.

5 Considerações finais Considerando o objetivo proposto em torno, em linhas gerais podemos afirmar que do ponto de vista discursivo, identificamos nas premissas do programa proposto pelo MDA, bem como no processo de gestão e planejamento e ações implementadas pelo Território Oeste, elementos que dialogam com a literatura. Por exemplo, a multimensionalidade do território conforme pensada por Martin (1997), Haesbaert (2004) e Castro (2005) pode ser identificada na concepção do programa do MDA e nas ações de desenvolvimento rural e territorial propostas pelo Território Oeste quando da definição de eixos amplos que possam superar iniciativas setoriais, como aquelas vinculadas somente a atividades agrícolas ou convencionais, tais como a produção de matérias primas (suínos, aves, leite, etc) voltadas para as grandes empresas ou cooperativas da região. Isso significa afirmar que empiricamente o Território Oeste, mesmo que timidamente, vêm se mobilizando e planejando para a implementação de ações políticas e produtivas que possam criar mecanismos integrados de expansão de liberdades substantivas tais como disposições sociais e econômicas, direitos civis, participação política, entre outros (SEN, 2000). Neste sentido, os processos de indução ao desenvolvimento e implementação de políticas públicas têm pressuposto mecanismos de reformulação do papel do Estado e participação da Sociedade Civil, a partir da institucionalização da ação coletiva e do “retorno do ator” na gestão de estratégias de desenvolvimento. Tais mecanismos têm se desenhado no processo de mobilização e planejamento das ações do Território Oeste, que envolve diferentes agentes sociais na busca de alternativas para a agricultura familiar e para o desenvolvimento territorial, a exemplo dos Colegiados de Desenvolvimento Territorial, constituído por entidades governamentais e não governamentais. O espaço de tais colegiados têm se constituído em inovações institucionais híbridas na proposição de eixos estratégicos de desenvolvimento, projetos e programas territoriais entre os quais se destacam eixos estratégicos para o desenvolvimento das cadeias produtivas, agroindustrialização, comercialização, educação no campo e meio ambiente. A análise bibliográfica e documental realizada em relação ao cruzamento dos dados primários nos revela em um primeiro momento que as premissas do MDA, Voltar ao sumário

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

no que diz respeito ao Plano de Desenvolvimento do Território Oeste vêm se construindo, principalmente no apoio as cadeias produtivas alternativas – com especial foco para a cadeia produtiva do leite. A constatação de que a cadeia produtiva do leite se constitui em importante estratégia de desenvolvimento territorial, nos permite reafirmar que o fortalecimento e transformação da agricultura familiar no referido território tem dependido da atividade leiteira, que a partir dos anos 2000 vem se configurando como uma ação de enfrentamento ao predomínio das grandes agroindústrias convencionais de industrialização de alimentos, das quais a maioria dos agricultores familiares da região até meados dos anos 90 estiveram vinculados, principalmente às atividades de integração na suinocultura e avicultura. As atividades vinculadas às cadeias produtivas e agroindústrias familiares, desde que orientadas para processos mais alternativos, diferenciados do mercado convencional, e baseados em princípios de autogestão poderão se constituir em perspectivas contra hegemônicas à globalização econômica representada pelos grandes conglomerados agroindustriais privados ligados “à lógica da produtividade com dominância cada vez maior de capitais industriais e transnacionais”, bem como a “especialização, escala e qualidade associadas à produção de alimentos padronizáveis, de baixo custo e alcance global” (MIOR, 2005, p. 262). Apesar das ações de mobilização e planejamento estarem orientadas por grandes eixos estratégicos, identificamos também limites para a gestão do Plano dos territórios, quando verificamos a participação de um número reduzido de municípios ou mesmo a não concretização dos princípios da política que sugere a articulação entre os municípios e diferentes atores da sociedade, o que significa que os consensos e acordos em territórios rurais não são tão simples, na medida em que exige “mudanças na gestão dos municípios e impedindo muitas vezes o apoio a dinâmicas produtivas locais” (SABOURIN, 2007, p. 731). A concentração em investimentos em equipamentos e infraestrutura revela não somente uma lógica “tecnocrática e profissional” por parte dos proponentes, mas também um problema de operacionalização do “financiamento dos projetos, os mesmos dependem de verbas anuais, o que leva a fragmentação dos projetos que passam por diferentes estágios (elaboração, aprovação e execução), dificultando a implementação de projetos mais amplos e intersetoriais” (SABOURIN, 2007, p. 731). É possível afirmar também que a construção de um Plano de desenvolvimento rural, requer um planejamento a médio e longo prazo, a construção de uma cultura e capital social voltado para a lógica da proposta do MDA, o que na maioria das vezes escapa ao “real”. As prioridades são definidas levando-se em consideração “as possibilidades e limitações das ações”, medidas através de uma reflexão que busca confrontar o “ideal” e o “real”, ou, como afirmam os planejadores, através do “confronto do futuro desejado versus futuro possível”. (APACO, 2006). As ações e projetos propostos pelo Território Oeste com base nos eixos estratégicos orientadores em seu PTDRS, considerando as especificidades do referido território constata-se que na atualidade o apoio principalmente às cadeias alternativas produtivas se constitui em importante estratégia para o desenvolvimento territorial desse território, tendo em vista que as atividades agroindustriais estão concentradas nas mãos de poucas empresas voltadas principalmente para o mercado internacional e globalizado.

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R. M. Badalotti, M. L. de S. Lajus, C. Tonezer

As particularidades socioeconômicas do território rural oeste em torno da pequena produção familiar demonstram as potencialidades desejadas pelos formuladores de projetos e políticas dessa natureza em relação ao desenvolvimento sustentável, entretanto, essas potencialidades não confluem ainda em projetos intersetoriais e de alcance regional.

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Possibilidades e limites das ações implementadas no território oeste...

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PARTE IV DESCENTRALIZAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS E DESENVOLVIMENTO


HÁ ALGUMA RELAÇÃO ENTRE DESCENTRALIZAÇÃO, POLÍTICAS PÚBLICAS, DESENVOLVIMENTO REGIONAL E GLOBALIZAÇÃO? Cláudio Machado Maia*

1 Introdução Este texto foi elaborado a partir de palestra proferida no Seminário Regional Território Territorialidades e Desenvolvimento Regional realizado entre os dias 07 e 08 de novembro de 2014 na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ) no âmbito da mesa temática “Descentralização, Políticas Públicas e Desenvolvimento”, sobretudo, contribuindo para uma alternativa interpretativa sobre globalização, o Estado e o processo de desenvolvimento. Considera-se que os estudos sobre globalização apresentam vastas perspectivas de interpretações e o caráter multifacetário das transformações observadas relacionadas com as diferentes associações entre mudanças globais e conseqüências locais. Cabe aqui esclarecer um pouco mais sobre este termo. Este processo de mudança tem sido modificado ao longo do tempo e adquirido diferentes significados. Conforme afirma Sztompka (1995), as sociedades antigas vivenciaram um completo mosaico de unidades sociais, que viviam frequentemente isoladas e eram extremamente diversificadas. Haviam múltiplas entidades políticas separadas, que iam desde as hordas, as tribos, os reinos, os impérios, até a forma relativamente recente de dominação, que são os Estados-Nação. Haviam economias independentes, fechadas, autárquicas, e variadas culturas indígenas que conservavam sua identidade única. A sociedade atual apresenta um quadro completamente diferente (SZTOMPKA, 1995, p. 111-112). Neste ínterim, houve enorme processo de mudança, cujos pontos de intersecção, contato e ruptura local estão descritos ao longo da história da humanidade. Por outro lado, Moreira (2006, p. 17) descreve que, Globalização é um conceito recente e polissêmico que, mau grado o vastíssimo e sempre crescente acervo bibliográfico que lhe é dedicado, está longe de se poder considerar consolidado e de aceitação universal. Neste texto globalização é entendida como o resultado de um processo dialético e desigual de compressão do espaço e do tempo que envolve um sistema de forças muito diversificadas. Forças econômicas, sociais, políticas, ideológicas e até religiosas que, desde as últimas três décadas do século XX, vêm modelando e remodelando a divisão internacional de trabalho, favorecendo a acumulação de capital e promovendo a homogeneização dos comportamentos e dos consumos humanos ou a elas se opõem. (MOREIRA, 2006, p. 17). *

Doutor em Desenvolvimento Rural. Professor Titular e Docente do Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (UNOCHAPECÓ). Santa Catarina, Brasil. E-mail: <claudiomaia.dr@hotmail.com>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-11

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S U M Á R I O


Cláudio Machado Maia

Nesta perspectiva, no centro da globalização está o capital financeiro internacional que desenvolve estratégias para adaptar os padrões de acumulação a condições geoeconômicas e geopolíticas em mudança acelerada num ambiente econômico de crescimento do poder de compra de parte significativa dos países e populações mais diretamente envolvidos pelos fenômenos acima descritos. Conforme Moreira (2006), embora a globalização tenha ambição planetária, tem, sobretudo que ver com os países da tríade EUA, Europa Ocidental e Japão, deixando muitas áreas e populações mais pobres como meros sujeitos passivos ou completamente a parte das manifestações econômicas do fenômeno.

2 Globalização Globalização é uma palavra que possui diferentes significados, quer seja para estudiosos do assunto, quer seja para cientistas sociais, políticos, executivos, independentemente do contexto ou objetivos aplicados à utilização do termo. Entretanto, para muitos, sobretudo para os interessados na área econômica, significa a integração dos mercados. No século XVIII, Adam Smith chamou de protecionistas as ideias do velho mercantilismo, as quais pretendiam restringir a entrada de produtos estrangeiros, entendendo que o comércio internacional aumentaria os mercados e daria eficiência aos países que se especializassem em certos produtos. A integração dos mercados é considerada como inevitável, por vir com uma onda de novas tecnologias. Por outro lado, a globalização também é afetada por opções que os paises fazem – às vezes conscientes, às vezes acidentais. E, embora a mudança tecnológica aproxime as nações, as políticas escolhidas podem afastá-las. A globalização atual não é inédita, e ela tem aumentado e diminuído ao longo dos anos à medida que as nações escolhem suas respectivas políticas. A integração dos mercados, nada mais é do que a fusão de muitos em um só. A integração global dos mercados implica a eliminação das diferenças de preço entre os paises, já que todos os mercados tornam-se um. Sugestivamente, um exercício de como acompanhar o avanço da globalização é verificando as tendências de semelhança de preços nos países. Conforme Kishtainy (2013, p. 229), a globalização só decolou realmente nos anos 1820, quando as diferenças de preço passaram a diminuir, o que foi causado por uma revolução nos transportes – com o advento dos navios a vapor e das ferrovias, a invenção da geladeira e a abertura do Canal de Suez – o que reduziu o tempo de viagem entre a Europa e a Ásia. Do século XX em diante o avanço tecnológico ajuda a integrar os mercados, fazendo com que a globalização parecesse irreversível. E, sendo que boa parte dessa inovação tecnológica foge ao controle direto dos Governos. Por outro lado, os governos podem impor tarifas e outros tipos de barreiras ao comércio, restringindo e taxando importações e dificultando o comércio. Na modernidade, uma das mais surpreendentes reversões do processo de globalização ocorreu na Grande Depressão nos anos de 1930, quando os paises entraram em recessão e os governos impuseram tarifas objetivando fazer com que os consumidores procurassem produtos nacionais. Entretanto, neste ambiente, os países e regiões que tem obtido melhores resultados na economia nos últimos anos foram aqueles que conseguiram com maior Voltar ao sumário

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Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas...

eficiência dirigir e controlar políticas públicas externas que beneficiassem seus interesses, priorizando seus atores locais no processo de desenvolvimento. Conforme Machado (2003, p. 15), “a decisiva capacidade de controles de alguns atores em tal cenário é, portanto, elemento chave para se entender o desenvolvimento desigual, fragmentado e contraditório que se observa hoje nos diferentes locais”.

2.1 Uma perspectiva de abordar a globalização Uma perspectiva de análise para abordar a globalização é desenvolvida por Rodrik (2002, p. 1), naquilo que define como trilema político da economia global (ver a Figura 1), descrevendo que o sistema estado-nação, políticas democráticas e integração econômica total não são compatíveis. Segundo o autor, a globalização é uma alternativa de melhoria do padrão de vida, ao mesmo tempo em que a democracia garanta que as decisões políticas possam ser tomadas pelos que são diretamente afetados por elas (ou pelos seus representantes) e não se abdicando da autodeterminação que se exprime através dos Estados-nação. E, que não é possível assegurar simultaneamente essas três condições, uma vez que seguir a direção de mercados globais sem governança global é insustentável. Quanto muito, para diferentes situações, assegura-se que ocorram no máximo duas destas condições (ou pólos) do trilema. Figura 1: O trilema político da economia mundial Integração econômica profunda Camisa de força de ouro Estado independente

Federalismo global Democracia

Fonte: elaborado a partir de Rodrik (2002, p. 25) e Kishtainy (2013, p. 231).

Satisfazer os três pólos ao mesmo tempo, levaria a uma situação extrema que mais pareceria de ficção científica. Situação que, por mais que sejam poderosas as forças globalizadoras, não parece viável num horizonte temporal de médio prazo, mostrando-se claramente incompatível com os processos democráticos correntes e com a manutenção de uma ordem mundial baseada em Estados-nação soberanos e independentes. Importa esclarecer que se a hegemonia ideológica neoliberal pode legitimamente ser considerada como condição necessária para a globalização que conhecemos, não pode ser tida como condição suficiente. Uma vez que outras condições são necessárias e levadas em consideração. Tal trilema resulta do fato de que uma integração econômica profunda dos mercados, ou mais completa, requer a remoção de variações institucionais entre os paises; o que não considera que cada eleitorado nacional quer tipos diferentes de instituição. Por exemplo, comparando com os eleitores dos EUA, os europeus tendem a preferir Estados bastante assistencialistas. Logo, uma “estrutura mundial única” onde as nações não existam, significaria ignorar as preferências do eleitorado de alguns paises, o que conflitaria com a democracia, onde os governos ficariam no que o

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Cláudio Machado Maia

jornalista americano Thomas Friedman chamou de “camisa de força de ouro” – um único eleitorado internacional e dissolução das nações (KISHTAINY, 2013, p. 231). No contexto atual, o mundo se encontra longe da camisa de força de ouro e de um possível federalismo global. Assim como os estados tem buscado se fortalecer, a persistente diversidade institucional entre os países indica que as variadas preferências importam. Desde a Segunda Guerra Mundial, o trilema de Rodrik tem sido resolvido com o sacrifício da integração profunda. Os mercados têm se aproximado muito ante a diversidade de instituições dos países. Rodrik (2002) chama de compromisso de Bretton Woods às instituições mundiais criadas após a Guerra – Acordo Geral de Tarifas de Comercio (GATT), o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional – tais como organizações na forma de uma integração controlada que visavam evitar a catastrófica crise vivida nos anos 1930. Por outro lado, a partir dos anos 1980, com a era da liberalização viu-se o compromisso de Bretton Woods se enfraquecer, sobretudo com a agenda política cada vez mais voltada para uma integração profunda. Rodrik (2002), afirma que a diversidade institucional deve ser preservada em detrimento de uma integração profunda. O desejo dos eleitores europeus de assistencialismo e sistemas públicos de saúde não é apenas econômico, mas sua visão de justiça. A diversidade institucional reflete esses valores diferentes. Na prática, existe mais de um caminho institucional para uma economia saudável. Os requisitos para o crescimento nos paises em desenvolvimento atuais podem ser diferentes dos das nações desenvolvidas. (KISHTAINY, 2013, p. 231).

Pode-se refletir que a imposição de um modelo institucional mundial corre o risco de colocar uma camisa de força nos países, sufocando seus processos de desenvolvimento. E, sendo assim, a globalização pode ter limite, e que talvez possa ser que a fusão completa das economias não seja desejável, nem factível. Na Figura 2, a partir da perspectiva de abordar a globalização, procura-se refletir acerca da dinâmica do processo de globalização. Figura 2: Interpretação alternativa sobre a dinâmica da globalização A globalização total exige dos países a harmonização da regulamentação e das legislações comerciais

Essa harmonização exigira ou um governo mundial ou a destruição da democracia nos países

Nenhum dos dois é factível nem desejado pelos eleitores

A globalização dissemina a tecnologia, mas também é restringida por barreiras como tarifas comerciais

Antigamente, os governos faziam opções diferentes sobre o nível das barreiras e, portanto, sobre o caminho da globalização

A globalização não é inevitável

Fonte: elaborado a partir de Kishtainy (2013, p. 228).

Logo, assim como, considerando-se as colocações apresentadas anteriormente por Rodrik, entende-se que uma integração econômica profunda é inalcançável num contexto em que as nações e a política democrática ainda exerçam um poder considerável. Voltar ao sumário

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Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas...

2.2 Uma progressiva abertura do mundo Na perspectiva de uma análise da globalização apresentada em Paulet (2009), o contexto inspirador do progresso tecnológico tem dois rostos: de um lado, a aldeia planetária que se unifica; e de outro lado, a difusão, que é muito desigual. Um modelo de mecanização agrícola europeu ou norteamericano desenvolvido para aquela realidade e que, no entanto, é adotado pela agricultura brasileira. A internacionalização dos pacotes tecnológicos, a mecanização, representou uma fase da mundialização (chamada de mondialisation, pelos franceses) ou globalização (chamada de globalisation, nos países anglófonos), que só fez acentuar os movimentos da população, com a desestabilização dos campos. Situação em que os Estados, com suas políticas, tentam limitar o êxodo, assim como os espaços rurais que sequer possuem potenciais têm poucas chances de serem repovoados. Neste contexto, duas etapas preliminares caracterizam o processo de mundialização: a internacionalização e a transnacionalização. Segundo a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a mundialização desenvolveu-se em diversas fases. A princípio, a internacionalização corresponde à etapa mais antiga deste processo, na qual as empresas se abrem para o exterior desenvolvendo suas exportações. A internacionalização é caracterizada pelo aumento dos fluxos de exportação. Portanto, o comércio internacional é muito antigo, e o mundo da antiguidade já conhecia muitos intercâmbios. Entretanto, conforme Paulet (2009, p. 12), foi na segunda metade do século XIX que se produziu a verdadeira internacionalização do comércio, quando a Inglaterra ao adotar o livre-comércio entre 1848 e 1875, está na origem dessa diversificação geográfica dos mercados. Já, a transnacionalização, caracteriza-se pelo aumento dos investimentos e das implantações no exterior. Sobretudo depois da 2ª Guerra Mundial, a transnacionalização correspondeu a uma segunda etapa do processo, caracterizada pelo incremento dos investimentos diretos no exterior (as deslocalizações). Por exemplo, em 1950, estes investimentos limitavam-se aos setores agrícolas e de mineração, ou seja, as matérias-primas. E, a partir de 1960, é a indústria que atrai grande parte dos investimentos: as empresas se tornam, então, transnacionais ao atravessar as fronteiras graças à liberação dos intercâmbios e dos fluxos de capitais. E, à internacionalização dos mercados adiciona-se assim um fator maior: a partir da década de 1960, os países industriais mandam fabricar no exterior uma parte cada vez maior de sua produção. As últimas décadas do século XX ofereceram um contraste marcante em relação aos períodos anteriores. A palavra mundialização surgiu em 1964, mas não com o significado atual, pois se via a época da oposição Leste-Oeste. Os termos mundialização e globalização designavam apenas territórios que se abriam para o comércio internacional. Em 1989, a destruição do muro de Berlim marcou a o início da desagregação de toda a organização geopolítica, econômica e social dos países do Leste Europeu e da URSS, que deixou de existir em 1991, onde o fato importante é a passagem de todos estes Estados para a economia de mercado. O fim da bipolaridade do planeta. Sendo assim, a terceira fase da mundialização sucede, portanto, à internacionalização e à transnacionalização. Esta etapa tem causas complexas, e as representações mentais dos habitantes da maioria dos países mal assimilam a amplitude das transformações e, em particular, das relações internacionais. Voltar ao sumário

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Seja como for, a abertura dos mercados se torna realidade. Depois da queda do muro de Berlim, foi, sobretudo, a tecnologia que criou uma revolução das relações internacionais: seria ela o fundamento do poder geopolítico e geoeconômico?! A terceira fase desta transformação é, então na sua origem, chamada em francês de mondialisation (mundialização) e de globalisation (globalização) nos países anglófonos. Em tais condições, como diferenciar essas duas palavras, levando em consideração as ideologias que interpretam os fenômenos? Embora seja difícil construir uma explicação simples, é possível dizer que a mundialização é o crescimento da interdependência dos países e dos habitantes, fazendo desaparecer as fronteiras. Tal integração é simultaneamente econômica, social e cultural: o planeta seria como uma aldeia única (aldeia global) (SOUSA; CURVELLO; RUSSI, 2012). Na década de 1970, a escola neoliberal americana, sob o governo Ronald Reagan, explicava que os produtos estavam dentro deste “sistema-mundo” e que qualquer intervencionismo das organizações e das nações era inútil. Nestas condições compreende-se a ampliação do debate. A globalização designaria, sobretudo, a mundialização econômica, ou seja, os mercados de bens, de serviços, de trabalho e de capitais em escala, de todo o planeta. A liberdade no coração do sistema. A mundialização repousa, antes de tudo, sobre uma ideologia dominante e sobre uma concepção unitária do mundo: o espaço geográfico não teria rupturas nem barreiras. Ou, na mente da maioria dos observadores, a mundialização está associada à noção de livre comércio, de capitalismo e de liberalismo. Logo, o enfoque globalizador encontra sustento em um conjunto de perspectivas acadêmicas e de instituições internacionais que sentenciam a diluição dos espaços nacionais e seus respectivos Estados-Nação ante o avanço do processo de globalização. O quadro de interpretação geral sobre o qual se elaboram os enfoques se sustenta na existência de um processo de globalização que relativiza os espaços nacionais a partir do crescimento nos fluxos de comércio, bens e serviços e a internacionalização da produção através de redes que operam globalmente, assim como o destacado processo de integração e expansão dos mercados financeiros. Agora, frente a este contundente (e hegemônico) planejamento, tem surgido uma corrente de aportes acadêmicos (e de agencias internacionais) que tem reafirmado o papel estratégico (e inclusive determinante) que cumpre os espaços (regionais) nacionais, no sentido de preservação das especificidades nacionais na configuração das variedades de capitalismo (RODRIK, 1998).

3 Uma breve discussão sobre o conceito de região O estado nacional vem sofrendo profunda redução de sua capacidade de regulação, em decorrência da ampliação do poder supranacional. Por outro lado, o surgimento de novas formas de organização econômica e política requerem cuidadosa análise do papel que lhes cabe nesse novo cenário mundial. Os debates mais antigos voltaram-se para um regionalismo relacionado à junção de países para formar grandes blocos econômicos, como a União Europeia, NAFTA e o MERCOSUL, basicamente, enfocando as questões econômicas que associadas aos acordos de livre comércio e de integração econômica. Voltar ao sumário

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Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas...

Como a partir dos anos 90, o debate vem se ampliando, com a inclusão do regionalismo no contexto das transformações do sistema político internacional e nacional, passou-se a falar num “novo regionalismo” que assume novos tipos, formatos e objetivos e incorpora todas as áreas de cooperação e de alcance global. Por ser novo, esse novo regionalismo carece de fundamentação conceitual, o que muito preliminarmente é aqui sugerido, ao se dar importância ao significado do novo regionalismo no contexto da globalização. A questão regional ganhou bastante importância com o surgimento do estado moderno. Na Europa, a questão da centralização e da uniformização administrativa e suas relações com a diversidade espacial, física, cultural, econômica e política foi responsável por novas discussões em torno de conceitos como o de nação, estado, autonomia territorial e região. Também foi neste contexto histórico que despontou a Geografia como disciplina independente, tendo a região como um de seus conceitos básicos. Como a noção de modernidade conduzia à dissolução dos lugares, ao afrouxamento dos laços entre as pessoas e ao enfraquecimento da idéia de comunidade, o discurso regional tornou-se muito importante para a constituição da unidade nacional (GIL, 2002, p. 63). Conforme descreve Gil (2002, p. 65), nas últimas décadas do século XX, acentuou-se o debate acerca do regionalismo e novas concepções foram acrescentadas. Em artigo datado de 1988, intitulado The new regional geography in English and French-speaking countries, Anne Gilbert1 estabelece a distinção entre três abordagens sobre o conceito de região na “nova geografia regional”. A primeira das abordagens entende a região como a organização espacial dos processos sociais associados ao modo de produção capitalista com um modo específico de produção e que concentra numa base política. Tal acepção tem sido comum entre geógrafos que adotam um ponto de vista marxista e que enfatizam a regionalização da divisão social do trabalho, do processo de acumulação capitalista, da reprodução da força-de-trabalho e dos processos políticos e ideológicos. No entendimento da segunda acepção, a região como um cenário para interação social, o qual desempenha um papel fundamental na produção e reprodução de relações sociais. Tal abordagem emerge do fato de o espaço, suas dimensões simbólicas e ideológicas e suas bases materiais serem construtos sociais e culturais. O espaço, tal como os padrões sociais, vinculam-se estreitamente com os processos sociais, culturais e naturais, mas não pode ser entendido como um poder causal capaz de determinar processos sociais. O social e o espacial são entendidos como constituintes e produtos ao mesmo tempo (GIL, 2002, p. 65). A terceira acepção enfatiza a cultura como o primeiro ponto de partida, concentrando-se em problemas como identificação regional e identidades regionais. A região é entendida primariamente como um conjunto de relações entre um grupo específico e um lugar particular, como uma apropriação simbólica de uma porção do espaço por um determinado grupo (GIL, 2002, p. 65). Os impactos do processo de globalização e da revolução tecno-científica tem exigido mudanças contextuais e estruturais em torno do conceito de região. Logo, a região deve ser entendida como uma estrutura flexível, cujos limites não são necessariamente 1 GILBERT, Anne. The new regional geography in English and French-speaking countries. Progress in Human Geography, v. 12, n. 2, 1988. Voltar ao sumário

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fixados em termos geográficos ou jurisdicionais, mas em função de múltiplos aspectos, tais como: vinculação de atividades produtivas, articulações sociais, fatores produtivos predominantes, empreendimentos comuns e problemáticas concretas. Estas problemáticas, que podem se referir a demandas sociais, desafios competitivos, negociações com outras instâncias estatais e a fuga de fatores regionais de produção constituem atualmente o mais importante aspecto considerado pelo chamado novo regionalismo. (GIL, 2002, p. 65).

Geógrafos e cientistas sociais, inicialmente na Europa e depois na América, dedicaram-se ao estudo de um novo regionalismo, o qual foi definido por Scott (1997), como o mais importante motor da construção da vida econômica mundial onde, conforme esses estudiosos, uma nova polis pode emergir das novas realidades econômicas, culturais e sociais, por meio do casamento de novas urbanidades com velhas cidades renovadas e reabilitadas. Sendo que, desde fim dos anos 1980 a maioria dos estudos em torno do regionalismo, tem tratado, sobretudo, sobre questões econômicas associadas aos acordos de livre comércio e integração econômica2. Conforme Becker (2002) em seus estudos, tanto na prática política quanto nas análises e considerações teóricas, não há consenso e nem condições de proximidade de um conceito ou noção unificada sobre o novo regionalismo. Entretanto, é evidente que cada vez mais as regiões são levadas a concorrerem entre si na busca de condições favoráveis e de atração para localização de investimentos produtivos em seu território. Consequentemente, parece necessário mobilizar e articular os agentes regionais do desenvolvimento, considerando sua participação crescente e direta no processo de desenvolvimento contemporâneo.

4 A participação social, a governança e o desenvolvimento (regional) Logo, refletir sobre globalização e políticas públicas no âmbito de um processo de desenvolvimento nos remete às práticas participativas da sociedade civil vis-a-vis a problemática e as políticas de promoção do desenvolvimento. Conforme Bandeira (1999), a participação da sociedade civil guarda especificidades em âmbito tanto territorial quanto temático. Em âmbito territorial, tais práticas participativas referem-se a espaços sub-regionais, ou seja, espaços intermediários entre o estado e o município, em que não se encontram instâncias político-administrativas correspondentes. Em âmbito temático, buscam promover não a implementação de ações específicas ou setorialmente bem delimitadas, mas, ao contrário, a articulação social em caráter permanente, visando influenciar o processo de tomada de decisões públicas que se refiram ao desenvolvimento regional. (BANDEIRA, 1999, p. 4).

Nos últimos anos, as principais instituições internacionais3 de promoção e fi2 Justificável, já que a formação de blocos regionais os quais dão origem a comunidades econômicas, tais como o Mercado Comum Europeu, o NAFTA e o MERCOSUL constituem o lado mais evidente deste novo regionalismo. Esse novo regionalismo, também se manifesta em decorrência da ação de mecanismos micro-regionais e meso-regionais. E, de maneira bastante especial em relação às cidades-região globais, definidas por Scott como as grandes áreas metropolitanas com mais de um milhão de habitantes que estão conectadas aos processos de transformação econômica e social que vêm ocorrendo em escala mundial (GIL, 2002, p. 66). 3 Banco Mundial, Bando Interamericano de Desenvolvimento (BID), United Nations Development Programme (UNDP). Voltar ao sumário

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Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas...

nanciamento do desenvolvimento têm incorporado práticas participativas às suas rotinas operacionais. No Brasil, cada vez mais é aceita a idéia de que é necessário criar mecanismos que possibilitem participação mais efetiva e direta da comunidade na formulação, no detalhamento e na implementação das políticas públicas. Enfoque que, em parte, é fruto do processo de democratização do país, e por outro lado, se deve a uma nova abordagem que tem predominado no contexto internacional. Para Bandeira (1999, p. 7), o estabelecimento de mecanismos sólidos de participação nesse nível geográfico exige esforço prévio de construção institucional que leve ao surgimento e à consolidação de organizações que se dediquem em caráter permanente a conscientizar a comunidade sobre a natureza dos problemas regionais, buscando, simultaneamente, envolvê-la na formulação e na implementação de ações voltadas para a superação desses problemas. Nesse sentido, surge espaço para ressuscitar a região, não somente econômica mais socialmente construída, onde o sistema capitalista recupera (ou quem sabe, se apropria) o espaço para o diferente, o diverso, o plural, o heterogêneo, numa construção que onde diversificar, diferenciar e pluralizar transformaram-se em pressupostos e objetivos viabilizadores de inserções diferenciadas e diferenciadoras, logo, alternativas das múltiplas regiões no processo de desenvolvimento global. Onde as historias locais, as tradições, os desejos e fantasias localizados, possuem espaço para colocar em concorrência as múltiplas regiões. Ou, lembrando Gil (2002, p. 65) onde região pode ser entendida como um cenário para interação social, o qual desempenha um papel fundamental na produção e reprodução das relações sociais. Abordagem que emerge do fato de o espaço, suas dimensões simbólicas e ideológicas e suas bases materiais serem construtos sociais e culturais.4

5 Considerações finais Logo, se para Rodrik (2002), a globalização é uma alternativa de melhoria do padrão de vida, ao mesmo tempo em que a democracia garanta que as decisões políticas possam ser tomadas pelos que são diretamente afetados por elas (ou pelos seus representantes) e não se abdicando da autodeterminação que se exprime através dos Estados-nação. E, seja, o entendimento de que na gênese do processo de globalização interessante ao capital financeiro internacional estão as decisões políticas. Também, é interessante observar que importa nessa gênese um processo que ao longo dos anos leva à indispensabilidade da intervenção do Estado na economia, ao estilo keynesiano. Ainda, considerando os enfoques que sustentam a existência de um processo de globalização que relativiza os espaços nacionais a partir do crescimento nos fluxos de comércio, bens e serviços e a internacionalização da produção através de redes que operam globalmente, caracterizando-se num destacado processo de integração e expansão dos mercados financeiros. Frente a este contundente (e hegemônico) planejamento, tem surgido uma corrente de aportes acadêmicos (e de agencias internacionais) que tem reafirmado o papel estratégico (e inclusive determinante) que cumpre os espaços (regionais) nacionais, no sentido de preservação das especificidades nacionais na configuração das variedades de capitalismo (RODRIK, 1998). Observando-se uma renovada importância do local e uma tendência para estimular culturas regionais. O regional, o 4 Ao que muitos autores enfatizam ao desenvolver interpretações sobre capital social. Voltar ao sumário

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desenvolvimento regional passa a incorporar a articulação de agentes oriundos dos mais variados segmentos da sociedade civil. O regional remetendo à compreensão de busca de autonomia, sobretudo, porque requer considerar aspectos relacionados às demandas sociais, desafios, negociação com instâncias governamentais em busca de um espaço (mercado) a partir de políticas públicas. Como aponta Becker (2002, p. 35), fica-se surpreso quando alguns autores afirmam que é em função de seu histórico de valores culturais acumulados regionalmente, ou do “capital social” existente, que algumas regiões conseguem responder positiva e ativamente aos desafios regionais da globalização contemporânea construindo seus próprios modelos de desenvolvimento. Para tanto tais regiões, conseguem desenvolver suas potencialidades e aproveitar as oportunidades decorrentes da dinâmica global de desenvolvimento. Ao combinarem eficientemente o desenvolvimento de suas potencialidades locais com o aproveitamento eficaz das oportunidades globais oferecidas pelo processo de desenvolvimento contemporâneo, constituindo uma dinâmica própria regional. Algo que só é possível, abrindo caminho para a crescente participação social no processo de decisão e construção regional e garantindo a adaptação rápida às constantes mudanças provenientes do dinamismo global do desenvolvimento contemporâneo. Assim, distintos processos de desenvolvimento regional passam a depender diretamente das diferentes dinâmicas de envolvimento social das comunidades. O que remete às considerações de Becker (2002, p. 36; 40), [...] uma antiga tese de que o desenvolvimento não é a causa, mas a consequência da democracia (TOURAINE, 19965) e esta, por sua vez, é resultado da organização social. Em consequência, e conforme afirma Bobbio (19916), uma sociedade organizada é uma sociedade mais democrática, ao que emenda de imediato Touraine, uma sociedade mais democrática é uma sociedade muito mais desenvolvida. (BECKER, 2002, p. 40).

Portanto, hipoteticamente, “as diferentes dinâmicas de desenvolvimento regional dependem de uma crescente organização social das comunidades regionais”, o que significa um melhor envolvimento político nas decisões e definições dos rumos do desenvolvimento regional. Da mesma forma, uma melhor participação política leva, consequentemente, a um maior desenvolvimento econômico das comunidades regionais (BECKER, 2002, p. 40).

Referências BANDEIRA, Pedro Silveira. Participação, articulação de atores e desenvolvimento regional. IPEA, Textos para discussão, n. 630, fev.1999. BECKER, Dizimar Fermiano. A economia política do (des)envolvimento regional. Redes, v. 7, n. 3. p. 35-59, set./dez. 2002. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Trad. Roneide Venâncio Majer. 7. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. (A Era da Informação: economia, sociedade e cultura; v.1). GIDDENS, Anthony. As conseqüências da Modernidade. Oeiras: Celta, 1992. GIL, Antonio Carlos. Redes cooperativas regionais e governança. Redes. v. 7, n. 3, p. 61-84, set./dez. 2002. 5 TOURAINE, Alain. O que é democracia? Petrópolis: Vozes, 1996. 6 BOBBIO, Norberto. O Marxismo e o Estado. Rio de Janeiro: Graal, 1991. Voltar ao sumário

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Há alguma relação entre descentralização, políticas públicas...

KISHTAINY, Niall (Ed.). O livro da economia. Trad. Carlos S. Mendes Rosa. São Paulo: Globo, 2013. [The Economics Books. New York: Dorling Kindersley Limited, 2012.]. MACHADO, Jorge Alberto. La globalização (des)controlada: crisis globales, desajustes econômicos e impactos locales. São Paulo: Tendenz, 2003. 300 p. MOREIRA, Manuel Belo. Globalização econômica: gênese e reflexões prospectivas. In: RIELLA, Alberto (Org.). Globalizacion, desarrollo y territorios menos favorecidos. Montevideo: Rosgal S.A., 2006. PAULET, Jean-Pierre. A mundialização. Trad. Celina Portocarrero. Rio de Janeiro: FGV, 2009. RIELLA, Alberto (Org.). Globalizacion, desarrollo y territorios menos favorecidos. Montevideo: Rosgal S.A., 2006. RODRIK, Dani. Feasible globalizations. Harvard University, 2002. Disponível em: <http://ksghome.harvard.edu/~drodrik/Feasglob.pdf>. Acesso em: 20 out. 2009. RODRIK, Dani. Symposium on globalization in perspective: an introduction. The Journal of Economic Perspectives, v. 12, n. 4. p. 3-8, autumn 1998. SCOTT, Allen. The limits of globalization: cases and arguments. Londres: Routledge, 1997. SOUSA, Janara; CURVELLO, João José; RUSSI, Pedro (Orgs.). 100 anos de McLuhan. Brasília, DF: Casa das Musas, 2012. SZTOMPKA, Piotr. Sociologia del Cambio Social. Madrid: Alianza, 1995. WALLERSTEIN, Immanuel. America and the world: the twin towers as metaphor. Charles R. Lawrence ll Memorial Lecture. Brooklyn College, Dec., 5, 2001. Disponível em: <http://essays.ssrc.org/ sept11/essays/wallerstein_text_only.htm>. Acesso em: 18 fev. 2012.

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S U M Á R I O

VARIÁVEIS DA DESCENTRALIZAÇÃO POLÍTICO-ADMINISTRATIVA EM SANTA CATARINA, BRASIL* Walter Marcos Knaesel Birkner**

1 Introdução A fim de situar o leitor, cabe rápida apresentação da Descentralização político-administrativa em Santa Catarina. Ela surge em 2003, com a criação de 29 Secretarias de Desenvolvimento Regional - SDR1, por iniciativa do governo que assumia naquele ano. Com o passar dos anos, atingem o número de atuais 36 SDR, representando uma política governamental, criada com o propósito geral de descentralizar o processo administrativo e político decisório do estado catarinense. O presente texto se pretende parte de uma seqüência de análises publicada a partir do esforço de autores, cujo objeto tem sido o referido processo de descentralização2. Em produção anterior, Birkner; Tomio (2011) apresentaram uma avaliação geral do processo, além do apontamento de três aspectos gerais, sendo 1) pontos fortes, 2) pontos fracos e 3) apresentação de dados estatísticos sobre investimentos governamentais nas SDR no período de 2003 a 2008. A apresentação dos dois primeiros aspectos foi o resultado de regularidades identificadas entre as respostas de centenas de entrevistados e inquiridos, envolvidos com a descentralização catarinense (IPAC, 2009).3 O terceiro aspecto se referiu a uma relação entre investimentos governamentais e densidade demográfica. No estudo citado, a avaliação geral do processo foi considerada positiva pela maioria dos 432 inquiridos, notadamente pelo caráter inovador e pela expectativa geral que a descentralização gerou em responder a demandas a muito expressas pelas comunidades regionais. Em relação aos pontos fortes e fracos, a descentralização teria multiplicado o ambiente do diálogo regional, aproximado a estrutura *

Texto produzido a partir de resultados obtidos de Pesquisa financiada pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado de Santa Catarina (Fapesc), intitulada Experiências de Descentralização e Reforma da Gestão Pública no Brasil: um estudo comparativo entre os estados de SC, CE, MG, BA, PE e ES. ** Doutor em Ciências Sociais. Consultor-sócio do Instituto de Pesquisa, Asses. e Consultoria de Blumenau - IPAC, consultor do Instituto Brasileiro de Administração Municipal - IBAM e do Instituto Veritas de Educação-SC, além de avaliador do Instituto de Pesquisa Educacional Anísio Teixeira - INEP. Professor no Centro Universitário Facvest, Lages, SC. E-mail: <b-walter@ hotmail.com>. 1 Atualmente denominadas Agências de Desenvolvimento Regional. 2 Nessa direção, considere-se o extraordinário esforço de Dallabrida (2011), reunindo mais de vinte artigos sobre o tema, em que a comparação entre os casos catarinense e gaúcho é feita de maneira esclarecedora, especialmente entre as páginas 370 e 396. Ver também Birkner (2008), sobre estudo comparativo entre Minas Gerais, Santa Catarina e Ceará. 3 A esse respeito, ver IPAC (2009), relatório de pesquisa realizada com 432 integrantes das SDR e de seus respectivos Conselhos de Desenvolvimento Regional. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-12

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Variáveis da descentralização político-administrativa...

do governo estadual às regiões, além de ter aumentado a atenção aos municípios menores. Por outro lado, os principais problemas seriam a falta de maior autonomia orçamentária e financeira, além da falta de qualificação e capacitação dos operadores e participantes da descentralização nas SDR e seus conselhos congêneres. Por último, em relação aos investimentos nas SDR, o artigo demonstra relação significativa entre aportes financeiros e densidade populacional - ou eleitoral, se quisermos. Não obstante, o texto que apresentamos agora sugere a apreciação de duas variáveis adicionais. A primeira delas estabelece relação de razoável coerência entre, de um lado, os investimentos governamentais regionais e, de outro, evasão/baixo crescimento demográfico. Normalmente esse fator demográfico encontra-se associado à menor renda per capita e ou IDH_M baixo. Nessa direção, aparece uma coerência parcial em relação a um dos objetivos da descentralização, qual seja, o de favorecer as regiões com evasão/baixo crescimento e economicamente menos dinâmicas. A segunda variável é coadjuvante da primeira. Sugere relação entre maior investimento per capita e evasão/baixo crescimento. Para tanto, consideramos a vigência da descentralização no período de 2003 a 2008, e comparamos os movimentos demográficos da última década do século XX e primeira do século XXI. A importância disso está relacionada ao objetivo de combate à “litoralização”, isto é, à evasão demográfica de oeste para leste, expresso pela política das SDR. Antes de seguir, é nosso dever fazer uma advertência geral acerca da nossa pretensão analítica e interpretativa. Ela tem limites, sendo necessário admiti-los, não por modéstia, mas para escapar da ingenuidade intelectual que sempre nos ameaça. Nessa direção, lembremos que o tratamento das duas variáveis que analisamos aqui contém, por sua vez, outras variáveis, algumas das quais são momentaneamente desconhecidas ou mesmo incomensuráveis. Isso torna a interpretação imperfeita, não obstante ela mereça consideração ao menos parcial, na medida em que apresenta dados empíricos e respeito à lógica.

2 Regionalização dos investimentos e coerência com os objetivos da descentralização Consideremos, o primeiro objetivo da descentralização catarinense, qual seja, o de favorecer os municípios e regiões com negativo ou baixo desempenho demográfico, condição normalmente combinada com baixos índices de desenvolvimento, salvo exceções. Em relatório produzido em 2009, um dos pontos fortes da descentralização teria sido o favorecimento aos municípios menores, a maioria dos quais caracterizados pela evasão e ou baixo crescimento. (IPAC, 2009). Portanto, duas considerações são importantes no sentido de justificar a importância de testar este primeiro objetivo da descentralização catarinense. Primeiramente, considere-se a “institucionalidade pactuada na Constituição Federal de 1988, (em que) todos os municípios brasileiros tornaram-se entes federativos dotados de autonomia política, financeira, administrativa e normativa, independentemente da população ou qualquer outra característica da municipalidade”. Em segundo lugar, trata-se de lembrar que, “[...] apesar dessa generalizada autonomia, pequenos municípios, devido à incapacidade de recolher recursos fiscais suficientes e organizar uma governança capacitada, são muitas vezes incapazes de exercer plenamente essa autonomia” (BIRKNER; TOMIO, 2011, p.16). Em outras palavras, Voltar ao sumário

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W. M. K. Birkner

suas condições de auto-sustentabilidade e desenvolvimento são em geral insuficientes. No estado de Santa Catarina, 232 dos seus 293 municípios têm menos de 20 mil habitantes, o que representa 79% deles (IBGE, 2010). Pois bem, é na perspectiva do atendimento a municípios com evasão ou baixo crescimento demográfico, além de baixos índices de desenvolvimento, que apresentamos os dois quadros seguintes, a fim de testar a consecução do objetivo governamental de favorecê-los. O número de 12 SDR para compor o ranking é uma escolha arbitrária, não obstante coincidindo com um terço do número total de Secretarias. Nesse sentido, deve o critério ser entendido como o resultado de uma divisão em três grupos de situação demográfica, considerando (1) um grupo extremo na condição de evasão ou baixo crescimento, além de (2) um grupo intermediário, e (3) o terceiro grupo, em situação inversa ao primeiro. Tabela 1: Ordem da relação das SDR, segundo critério de investimento per capita Investimento total (em milhões)

PIB per capita ano 2003

Posição PIB 2003

Investimento per capita [arredondado]

01-Caçador

508,2

10.447,93

14

4.863,00

02-Maravilha

321,0

10.137,62

16

4.230,00

03-Campos Novos

171,8

10.730,13

13

3.124,00

04-Brusque

578,7

11.295,86

10

2.914,00

11.986,83

08

2.728,00

SDR

05-São Lourenço

161,4

06-Seara

132,7

2.718,00

07-Quilombo

59,4

2.647,00

08-Chapecó

565,9

14.118,52

06

2.623,00

09-Curitibanos

172,0

9.309,53

18

2.606,00

10-Ituporanga 11-Itajaí 12-Canoinhas

169,2

8.589,37

23

2.540,50

1.080,0

7.887,36

27

2.515,50

287,5

8.792,03

21

2.274,50

Fonte: Diretoria de Estatística e Cartografia –SPG/SC (2008).

Tabela 2: Ranking das doze SDR com os piores desempenhos demográficos e relação com investimento público per capita SDR

Posição em relação à evasão e baixo crescimento

Posição investimento per capita

Região do estado

São Lourenço do Oeste

1

5

Oeste

Quilombo

2

7

Oeste

Palmitos

3

20

Oeste

São Miguel do Oeste

4

14

Oeste

Dionísio Cerqueira

5

36

Oeste

Ituporanga

6

10

Centro leste

Maravilha

7

3

Oeste

Itapiranga

8

31

Oeste

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Variáveis da descentralização político-administrativa...

Posição em relação à evasão e baixo crescimento

Posição investimento per capita

Região do estado

Concórdia

9

22

Oeste

Canoinhas

10

12

Norte

Campos Novos

15/3

2

Oeste

Seara

16/3

6

Oeste

SDR

COEFICIENTE

13,5

Fonte: Elaboração do autor (2014).

Considerando o ranking das doze SDR com maior investimento público per capita, pode-se observar que sete delas aparecem na tabela 2. São elas as SDR de Campos Novos, Maravilha, São Lourenço D’Oeste, Seara, Quilombo, Ituporanga e Canoinhas. Nessa direção, é possível identificar a relação entre evasão/baixo crescimento com investimento governamental per capita maior. Em termos percentuais, se poderia supor que foi de 60% a proporção do cumprimento dos objetivos da descentralização. Poderia ser uma mera coincidência, resultante de inúmeras variáveis, mas o fato é que sete entre as doze mais necessitadas receberam recursos per capita maiores. Na esteira da curiosidade, tentamos auferir algum nexo das condições das outras cinco SDR. Lembremo-nos: são elas, Caçador, Brusque, Chapecó, Curitibanos e Itajaí, cujas microrregiões não figuram no grupo demográfico mais problemático. Portanto, essas cinco “privilegiadas” merecem observação mais atenta. Nosso propósito, lembremos, é o de testar a capacidade de materialização dos objetivos da descentralização. Nessa direção, apresentaremos caso a caso, iniciando com a SDR de Caçador, observando que, com exceção do município homônimo-sede, que eleva o índice demográfico da região, os outros municípios componentes dessa microrregião apresentam crescimento populacional baixo ou negativo, normalmente combinado com baixo IDH_M (IBGE, 2010). Inclusive, esta SDR compreende dois dos municípios com os piores IDH_M do estado, sendo eles Calmon e Matos Costa (Ib.) Não obstante, na década seguinte, a microrregião mostrou variação do crescimento populacional negativa. Por extensão, cabe lembrar que esta SDR está inserida na região histórica do Contestado. Se esse conjunto de considerações for aceitável, a preferência no investimento per capita parece justificável. Teríamos então 66% na proporção do cumprimento dos objetivos, ou seja, dois terços dos casos. A segunda SDR é Brusque. Esta região não apresenta, de longe, os problemas do grupo identificado na tabela 2 – ao contrário, estaria no outro extremo. Mas sua SDR aparece entre as que mais receberam recursos. Não há uma explicação aparente. Nesse caso, é necessário reconhecer os limites da análise, tornando a interpretação geral imperfeita. Dentro desses limites, só seria possível especular, recorrendo a suposições como a força política, a densidade demográfica e eleitoral, a injeção de recursos em uma grande obra pública aguardada há tempos e que tenha tido grande impacto quantitativo no montante de investimentos, nesse período de seis anos. Ou ainda, que o montante de investimentos tivesse sido composto por recursos emergenciais em resposta a alguma catástrofe, como foi justamente o caso das microrregiões de Brusque, Blumenau e Itajaí, justamente no último ano do período analisado. São suposições sujeitas à comprovação, mas cujas informações não estão, por hora, disponíveis. Neste caso, não se reforça a regularidade que buscamos. Voltar ao sumário

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W. M. K. Birkner

No caso de Curitibanos, uma verificação mais apurada também é necessária. Sua SDR é a nona colocada em investimento per capita. E, embora não apareça entre as doze com maior evasão ou baixo crescimento na década de 90, o município homônimo, tomado isoladamente, apresentou decréscimo populacional de 14,62% nessa mesma década (SANTA CATARINA, 2008). Além disso, os municípios que a compõe têm baixos índices de desenvolvimento, assim como a microrregião de Caçador, que é limítrofe. Não obstante, trata-se de uma microrregião do oeste, de perfil extrativista e madeireiro, portanto, estagnada economicamente e pertencente à região histórica do Contestado, o que é também o caso de Caçador. Por extensão, vale dizer que, no seu conjunto, a região do Contestado é reconhecida como a menos dinâmica do estado e merecedora de atenção especial. Nesse caso, a preferência no investimento per capita seria novamente justificável e estaríamos diante de uma proporcionalidade de 75% de justificação aos maiores investimentos per capita, em consonância com os objetivos da descentralização. O caso da SDR de Chapecó também suscita questionamento. Independente de a região ter um PIB per capita alto e crescimento populacional nas duas últimas décadas, é preciso considerar que Chapecó é o maior centro urbano de toda região oeste catarinense. Isoladamente é um dos municípios que mais cresce no Estado. Por conta disso, seu capital político pode ter peso proporcional na distribuição dos recursos estaduais. Além disso, pode haver quesitos estratégicos relacionados ao desenvolvimento e em benefício do ente federativo como um todo, respaldando decisões estratégicas fora dos objetivos da descentralização sem, contudo, comprometê-los. Aliás, essa é também uma variável a ser levada em conta e de difícil mensuração, tratando-se, se quisermos, de “razões de Estado”. As mesmas razões de Estado estão sempre e claramente presentes quando um investimento privado é anunciado e algum beneficio governamental é solicitado como contrapartida. A doação de um terreno, a construção de um acesso, uma pavimentação ou isenção fiscal são variáveis que fogem à lógica restrita de uma política de descentralização, quando a decisão final da localização de um investimento privado cabe diretamente aos investidores, preferindo ou preterindo uma região ou cidade. O fato é que isso impactará a proporcionalidade da distribuição dos investimentos governamentais, causando desigualdades que, contudo, não são sinônimos de prejuízo ou desequilíbrio de forças políticas. De toda maneira, muitos dos municípios de abrangência da SDR de Chapecó, todos pequenos, apresentam decréscimo populacional, fato ofuscado pelo vigoroso crescimento da cidade sede (IBGE, 2010). Novamente, dentro dos limites analíticos, somos levados a reconhecer que a insuficiência leva a uma interpretação imperfeita e a definição sobre a justificação para o maior investimento per capita torna-se, nestas condições, subjetiva. Na dúvida metódica, excluamos a SDR de Chapecó do grupo mais problemático, embora reconhecendo os limites tênues que pudessem justificar a sua inclusão no mesmo grupo, principalmente pelas condições de seus municípios vizinhos. Se não o fizéssemos, estaríamos com uma proporcionalidade de 85%. Restaria o caso da SDR de Itajaí. Sua região também não faz parte do grupo “problemático” de evasão ou baixo crescimento. Ao contrário, é provavelmente a região com o maior crescimento demográfico do estado catarinense nos últimos anos. Some-se a isso que, tomada isoladamente, Itajaí reflete o crescimento econômico Voltar ao sumário

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Variáveis da descentralização político-administrativa...

mais vigoroso do estado, principalmente pela sua privilegiada condição geográfica e portuária. Mais uma vez, estamos diante da interpretação imperfeita, diante de desconhecidas “razões de Estado”. Com toda a vulnerabilidade que lhe for imputável, nossa análise permite sugerir uma proporcionalidade de pelo menos 75% no cumprimento do objetivo de favorecer as SDR das regiões demograficamente e ou economicamente menos dinâmicas. Assim, das doze SDR pertencentes a esse grupo de regiões, nove delas teriam a sua preferência justificada, em consonância com os objetivos da descentralização. Se esse resultado for apenas uma coincidência, fruto da combinação anárquica de fatores aleatórios terá sido ao menos uma boa coincidência. Se, por outro lado, o resultado tiver sido intencionalmente obtido, os operadores da descentralização terão demonstrado razoável eficiência. Enquanto isso, na condição do agente estatal ante os múltiplos interesses da sociedade, o governo terá demonstrado seu papel estratégico e sua necessária, embora relativa, soberania de propósitos. Em relação à segunda tabela, o quadro analítico permite visualizar a mesma proporcionalidade inicial encontrada inicialmente na tabela 1. Assim, das doze SDR com os maiores índices de evasão ou baixo crescimento demográfico, sete delas aparecem no grupo de melhor investimento per capita. Resta tentar entender por que as outras cinco SDR não estão nesse grupo. Tratemos logo dos três primeiros casos. São estes as SDR de Dionísio Cerqueira, São Miguel do Oeste e Palmitos. O caso mais extremo e paradoxal é o da SDR de Dionísio Cerqueira, quinta microrregião com maior índice de evasão e última em investimento governamental per capita. Não há razão aparente para essa condição, como também nos escapa alguma hipótese mais crível. Não é muito diferente o caso da SDR de Palmitos. A região aparece com o terceiro maior índice de evasão demográfica na década de noventa e é a vigésima em recebimento de investimento per capita. Também não há explicação ou hipótese aparente. Por extensão, aparece o caso menos extremo de São Miguel do Oeste, que apresenta problemas de evasão e tem o 14º índice de investimento governamental per capita. Não há, portanto, razões aparentes para esta incoerência em relação aos propósitos da descentralização. Poderíamos apenas lançar hipóteses frágeis como conflitos e disputas políticas que produzissem distanciamento entre essas SDR e o governo estadual. Seria, de toda maneira, uma infeliz coincidência, visto que as três microrregiões formam uma extensão territorial em que a primeira é vizinha da segunda e esta da terceira, chegando até a fronteira com a Argentina, onde Dionísio Cerqueira tem um posto alfandegário, fato que também não parece analiticamente relevante. Do ponto de vista estatístico, estaríamos inicialmente diante da mesma proporcionalidade no atendimento às microrregiões menos dinâmicas, ou seja, 60% das regiões demograficamente menos dinâmicas tiveram maior investimento per capita. Restariam ainda dois casos a serem interpretados. São os casos de Concórdia e Itapiranga, que figuram entre as microrregiões de baixo crescimento demográfico na década de noventa e não estão entre as primeiras doze em investimento per capita. Aqui aparece novamente o encontro entre baixo crescimento demográfico com alto PIB per capita e alto IDH_M. Como não temos informações sobre a média do IDH_M regional, consideremos os municípios sede. No caso de Concórdia, seu IDH é alto (0,840) e seu PIB per capita é simplesmente o primeiro do estado. O caso de Itapiranga segue a mesma direção. Seu IDH é alto (0,832) e, embora não conste Voltar ao sumário

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W. M. K. Birkner

o PIB per capita, é preciso dizer que a sua microrregião compõe o menor índice de analfabetismo no Brasil (INEP, 2010). A falta de mais dados não deve nos impedir de reconhecer que não se trata, nem longinquamente, de uma microrregião pobre, seja pela quase inexistência de analfabetismo, pelo baixo índice de desemprego (IBGE, 2010), seja por outras razões que ficam evidentes em visita in loco. Nos dois casos, de todo modo, houve retomada do crescimento demográfico na década seguinte, como em quase todas as regiões catarinenses. Nessa direção, se a tabela 2 fosse reorganizada para mostrar o ranking de PIB per capita e IDH_M, seguramente Concórdia ficaria em primeiro lugar e provavelmente Itapiranga ficaria em segundo. Até mesmo numa lista geral, as duas estariam muito bem colocadas. Portanto, essa composição PIB per capita e IDH altos poderia muito bem justificar a ausência dessas duas SDR entre as doze primeiras da tabela 1, que se refere a investimento per capita. A partir da análise das tabelas 1 e 2, podemos afirmar que na maioria dos casos percebe-se uma combinação de evasão ou baixo crescimento, somados a índices de desenvolvimento baixo, com maior proporcionalidade de investimento governamental per capita. Assim, os objetivos específicos de priorizar municípios que combinam problemas demográficos com baixos índices de desenvolvimento, e combater a “litoralização”, estariam razoavelmente contemplados. Desse modo, nossa análise da tabela 1 sugere uma proporcionalidade de 75% no atendimento do primeiro objetivo. Para chegar a esse percentual, lembremos, inserimos arbitrariamente as SDR de Caçador e Curitibanos, limítrofes entre si, na condição de representantes das microrregiões mais carentes. É um critério naturalmente questionável, contudo coerente. Primeiramente, porque essas microrregiões, sendo do oeste do estado, apresentaram perda no crescimento e na variação populacional na segunda década analisada. Em segundo, fazem parte da problemática região histórica do Contestado. Para melhor ideia, pelos baixos índices de desenvolvimento, o Contestado é a única região catarinense contemplada no Programa Territórios da Cidadania do governo federal. O fato é que, no geral, a maioria das regiões mais necessitadas segundo o critério de evasão/baixo crescimento/PIB per capita/IDH_M baixos foi priorizada em termos de investimento per capita. Não se pode dizer que regiões ricas ou fortes politicamente como Florianópolis, Joinvile, Jaraguá do Sul, Videira, Joaçaba, Timbó, Criciúma e Tubarão tenham sido privilegiadas, porque os números não mostram isso. Se for mero resultado do acaso, não terá qualquer valor interpretativo para o processo de descentralização. Mas se isso for o resultado de decisão governamental no sentido do cumprimento dos desígnios do processo, então terá boa utilidade na análise dessa política governamental. Testemos agora o segundo objetivo, cuja análise nos sugere a segunda variável interpretativa. Lembremos que o segundo objetivo aqui considerado é o de combate ao fenômeno da “litoralização”.4 Comparamos aqui as tabelas 3 e 4.

4 Expressão que passou a ser utilizada em referencia ao movimento de evasão demográfica do oeste para a faixa litorânea catarinense. Voltar ao sumário

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Variáveis da descentralização político-administrativa...

Tabela 3: Representativa da Variação Populacional das SDR’s – Região Litorânea

Fonte: Diretoria de Estatística e Cartografia/SPG/SC (2008).

Tabela 4: Representativa da Variação Populacional das SDR’s – Interior do estado

Fonte: Diretoria de Estatística e Cartografia - SPG/SC (2008).

A comparação entre as tabelas acima mostra, respectivamente, as movimentações demográficas das regiões litorâneas e do interior nas décadas de noventa e seguinte. A percepção mais imediata nessa comparação nos revela primeiramente que houve um significativo movimento de “litoralização” na década de noventa. É notável o enfraquecimento demográfico do interior, principalmente nas regiões mais a oeste do estado, enquanto as regiões litorâneas cresceram significativamente. Na seqüência, é possível perceber que esse processo foi significativamente reduzido na década seguinte. Repare-se que na tabela 3, das onze SDR litorâneas, somente uma demonstrou crescimento na variação populacional da década de noventa para a seguinte. Já na tabela 4, relativa às SDR do interior do estado, o que se percebe é que das 25 microrregiões, mais da metade registrou crescimento na variação populacional em relação à década anterior. Nessa perspectiva, é possível observar que a “litoralização” desenfreada da década de noventa foi contida na década seguinte. A segunda variável, portanto, sugere uma relação hipotética entre a vigência da política de descentralização e o estancamento do processo de “litoralização”. Os

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W. M. K. Birkner

agentes governamentais perceberam essa relação e, a partir do ano de 2009, o governo tratou de demonstrá-la como resultado das ações coordenadas do processo de descentralização. Isto é, associou o estancamento da “litoralização” diretamente à política de descentralização do governo. Através das reuniões dos Conselhos de Desenvolvimento Regional – CDR, vinculados a cada SDR, o governo estadual tratou de demonstrar à sociedade os investimentos anualmente realizados e vinculá-los ao crescimento econômico regionalmente mais equilibrado. Durante as reuniões dos CDR pelo estado, em 2009, foram rotineiras as visitas dos agentes governamentais da Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão. Nessas ocasiões, o governo tratou de demonstrar a relação entre os investimentos e o processo de estancamento da “litoralização”. Todavia, conquanto o governo tenha sido enfático e categórico em apresentar essa relação como prova de eficiência do processo de descentralização, trata-se de uma hipótese muito difícil de ser comprovada, dado o grau de complexidade que uma demonstração mais ampla e rigorosa requereria. Mais crível é que provavelmente a política de descentralização tenha tido uma parcela de responsabilidade sobre isso e talvez menor do que um conjunto de outras variáveis. A principal variável, igualmente de dificílima mensuração, pode simplesmente ter sido o crescimento econômico brasileiro no período, associado a políticas públicas que aumentaram durante esse mesmo período, inclusive com a significativa política de transferência de rendas da União. Estudos econômicos sobre os impactos regionais dessa variável também não parecem à disposição. Nesse sentido, é de difícil comprovação mais criteriosa essa relação sugerida de maneira publicitária pelo governo, para atestar sua eficiência. Independente das dificuldades de mensurar o impacto que a descentralização teve no combate à “litoralização” é possível perceber que, por coincidência ou intenção, os investimentos per capita favoreceram as regiões nas quais o efeito da evasão ou baixo crescimento esteve presente. Nesse sentido, vale uma observação adicional sobre a tabela 1. Das doze SDR com maior investimento governamental per capita, oito estão no oeste catarinense; uma está no planalto norte catarinense e faz divisa com o oeste, fazendo parte inclusive da região histórica do Contestado; e a décima fica localizada no centro do mapa catarinense. Essas dez microrregiões têm dois aspectos correspondentes entre si, além de oito serem da região oeste, onde o efeito da “litoralização” foi mais drástico. O primeiro é que todas têm base econômica significativamente apoiada na agricultura ou, em menor proporção, no extrativismo. E o segundo aspecto que une as dez é que todas apresentam problemas de variação demográfica ora negativos ora de baixo crescimento na década de noventa, quando não decresceram. A exceção é a SDR de Chapecó, pelo vigor da cidade sede, mas em detrimento de cidades do entorno. Portanto, reafirma-se a regularidade no sentido de priorizar investimentos em microrregiões que sofreram com o processo de “litoralização”. Ao aceitarmos o critério, aqui arbitrário, de considerar as 12 SDR que mais receberam investimentos per capita, teremos uma regularidade. Admitindo isso, consideremos que oito SDR são do Oeste Catarinense, uma é de região limítrofe com o Oeste e faz parte do Contestado (caso da SDR de Canoinhas); agora somemos a SDR de Ituporanga (situada no centro do estado e que sofreu significativa evasão). Entre as doze que mais

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Variáveis da descentralização político-administrativa...

receberam recursos per capita, 10 foram afetadas pelo fenômeno da “litoralização”. Desta forma, poderíamos admitir que houve uma proporcionalidade de investimentos relacionados diretamente ao combate à “litoralização” da ordem de 83%.

3 Considerações finais A quantidade de variáveis explicativas para uma distribuição do investimento público torna difícil a sua verificação. Seria desejável utilizar um IDH regional, como melhor critério de análise, o que também vale para a relação PIB per capita. Regionalmente, tais dados não estão informados. Há de se considerar ainda que certos investimentos públicos podem tornar desproporcional o investimento per capita realizado num período curto como o que se tem à disposição para a nossa análise. Para melhor compreensão, é necessário admitir que entre os critérios de distribuição dos recursos públicos se inserem variáveis como o jogo de forças políticas, fatores emergenciais, a densidade eleitoral de cada região, uma representação parlamentar que pode unir ou dividir certas microrregiões em desacordo com a divisão geopolítica das SDR, entre outros fatores. Não obstante, ao verificar as tabelas contidas neste artigo, podemos inferir uma relação parcial e potencial entre investimento público per capita e evasão demográfica ou baixo crescimento populacional, fatores freqüentemente somados a IDH_M e renda per capita menor. A constatação deste problema real na década de noventa no estado de Santa Catarina fez surgir o neologismo “litoralização”. O que, não obstante, constatamos foi o recuo do problema na década subseqüente. Por conseguinte, o governo estadual não perdeu a oportunidade de tirar partido desse fato, sugerindo sua relação causal com a descentralização, a fim de justificar sua política. Críticos ao processo de descentralização em Santa Catarina não tem faltado. E a maior parte das críticas não é desprovida de sentido. O que varia é a disposição dos analistas em compreender o sentido histórico e inovador desse processo, faltando por vezes a compreensão sobre o tempo de amadurecimento de um processo que esbarra em resistências conservadoras. Alguns são os que desacreditam o processo pela “falta de participação social”. Essa será uma das discussões que teremos de enfrentar nas próximas análises sobre o tema, inclusive porque não parece haver demonstrações claras de que ampla participação social garanta eficiência. Na mesma direção, há os que denunciam o caráter demagógico-eleitoreiro, além do aspecto meramente fisiológico da descentralização catarinense. Essas críticas, entre outras que existem, merecem atenção e também serão motivo de novas análises. Na mesma importância estão as críticas quanto à incapacidade de a descentralização atacar as desigualdades regionais. Sobre essa crítica também nos deteremos, embora já tenhamos demonstrado estatisticamente alguma coerência entre o objetivo geral de atacar os desequilíbrios inter-regionais através de investimentos públicos per capita mais altos em regiões menos dinâmicas. O desafio é tornar a análise mais complexa, munidos de dados, para verificar se estamos tratando de uma relação evidente, ou o acaso gerou apenas uma correlação formidável.

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W. M. K. Birkner

Referências BIRKNER, Walter M. K. & TOMIO, Fabrício R. de L. Três aspectos da política de descentralização em Santa Catarina. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional, v. 7, n. 3, p. 3-26, set./ dez. 2011, Taubaté, SP, Brasil. BIRKNER, Walter M. K; TOMIO, Fabrício R. de L.; BAZZANELLA, Sandro Luiz. A descentralização em Santa Catarina. Revista de Administração Municipal. out./dez. 2010, a. 57, n. 275. BIRKNER, Walter M. K. Desenvolvimento regional e descentralização político-administrativa: um estudo comparativo de Minas Gerais, Ceará e Santa Catarina. In Revista de Sociologia Política, Curitiba, PR, v. 16, n. 30, 2008. DALLABRIDA. Valdir Roque. Gestão territorial e desenvolvimento: descentralização, estruturas subnacionais de gestão do desenvolvimento, capacidades estatais e escalar espaciais da ação política. In: DALLABRIDA Valdir Roque (Org.). Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político administrativa. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. FILLIPPIM, E.; HACK, K. M.; ROSSETTO, A. M. Participação cívica no processo de descentralização do desenvolvimento regional: a atuação dos CDR em SC. In: DALLABRIDA Valdir Roque (Org.). Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político administrativa. Rio de Janeiro: Garamond, 2011 IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Censo Demográfico, 2010. Brasília: IBGE, 2010. INEP (Instituto Nacional de Pesquisa Educacional Anísio Teixeira). Censo Escolar. Brasília: INEP, 2010. IPAC (Instituto de Pesquisa, Assessoria e Consultoria de Blumenau). Avaliação do Desempenho Institucional das SDR. Canoinhas: Universidade do Contestado, 2009. ROVER, Oscar J.; MUSSOI, Eros Marion. A reinvenção da relação Estado-Sociedade através da gestão pública descentralizada: uma análise da descentralização política em Santa Catarina, Brasil. In: DALLABRIDA Valdir Roque (org.) Governança territorial e desenvolvimento: descentralização político administrativa. Rio de Janeiro: Garamond, 2011. SANTA CATARINA. Governo do Estado. Secretaria de Estado de Planejamento e Gestão de SC. Diretoria de Estatística e Cartografia/SPG, Florianópolis, 2008. SIEBERT, Claudia. Desenvolvimento regional em Santa Catarina: reflexões, tendências e perspectivas. Blumenau: Furb, 2001.

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S U M Á R I O

POLÍTICAS PÚBLICAS E TERRITORIALIDADES: UM OLHAR NA PERSPECTIVA DA PROMOÇÃO DA SAÚDE Maria Elisabeth Kleba*

1 Introdução O convite a participar de um painel para debater a relação entre descentralização de políticas públicas e desenvolvimento me provocou a resgatar reflexões e experiências no campo da saúde, em que tenho atuado há mais de 30 anos, a maior parte com inserção na região Oeste de Santa Catarina. Posso citar aqui alguns movimentos importantes que tive oportunidade de acompanhar, apoiar ou participar efetivamente, tendo como protagonistas mulheres trabalhadoras (urbanas e rurais), comunidades indígenas ou grupos de usuários do sistema de saúde, em busca de melhores condições de vida, de justiça e de maior acesso aos serviços públicos. Entre esses, destaco a luta pela demarcação de terra (comunidade indígena Chimbangue, em Chapecó) e a luta pela implantação e consolidação do Sistema Único de Saúde (SUS), apoiada de forma significativa, durante os anos 1990, pela Pastoral da Saúde em nível regional1. Como professora da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) há aproximadamente 25 anos, tenho me inquietado com inúmeras questões afetas ao cotidiano de pessoas e coletivos, em busca de conhecer melhor fatores condicionantes de sua situação de vida e saúde, bem como potencias que sustentam suas iniciativas de enfrentamento à condições adversas e de criação de alternativas para bem viver. Para contribuir com reflexões nesse painel, trago a questão dos adolescentes e suas famílias, que vivem e convivem em territórios urbanos muitas vezes desprovidos de infraestrutura, com difícil acesso à serviços públicos e maior exposição à condições de risco e vulnerabilidade social. O crescente envolvimento de adolescentes e adultos jovens em situações de drogadição ou diferentes formsa de violências torna este um problema de saúde pública relevante, preocupação de famílias, agentes públicos e comunidade em geral. Tomando conhecimento das atividades desenvolvidas pela Rede de Atendimento à Infância e Adolescência (RAIA) em Chapecó e tendo a oportunidade de orientar pesquisa – realizada por profissionais engajados nessa rede – sobre cultura de lazer, vulnerabilidades e trabalho multiprofissional junto à adolescentes e suas famílias, *

Doutora em Filosofia pela Universidade de Bremen – Alemanha (título convalidado como Doutora em Enfermagem pela UFSC). Docente dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e Saúde da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). E-mail: <lkleba@unochapeco.edu.br>. 1 Sobre essa experiência ver: KLEBA, Maria Elisabeth. Descentralização do Sistema de Saúde no Brasil: limites e possibilidades de uma estratégia para o empoderamento. Chapecó: Argos, 2005. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-13

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M. E. Kleba

chamou-me a atenção a falta de políticas públicas mais efetivas na “construção de espaços de produção social e ambientes saudáveis, favoráveis ao desenvolvimento humano e ao bem viver” (BRASIL, 2014). A relação deste tema com o painel proposto se justifica à medida que as condições de vida e saúde de pessoas, famílias, grupos e coletividades sofrem influência de inúmeros fatores sociais, econômicos, culturais e ambientais, os quais têm maior ou menos impacto de acordo com a disponibilidade, o acesso e a capacidade de utilizar recursos individuais, organizacionais ou políticos para construir alternativas mais favoráveis ao viver e conviver saudável. A política de saúde tem um papel relevante na produção de recursos favoráveis ao empoderamento, na criação de oportunidades de convivência, de respeito à vida, de fortalecimento de vínculos e no desenvolvimento de tecnologias sociais que atuem na redução das violências e na construção de práticas solidárias, fomentando a cultura da paz (BRASIL, 2014). Nessa perspectiva, o desenvolvimento sustentado é um dos temas transversais da Política Nacional da Promoção da Saúde (PNPS), que estabelece entre seus objetivos favorecer o desenvolvimento seguro, saudável e sustentável, fomentando o debate sobre os modos de produção e de consumo que resultem no aumento da vulnerabilidade e risco à saúde. No texto a seguir apresento um breve resgate da política de saúde no Brasil, a partir da criação do SUS, buscando destacar estratégias ministeriais que vem orientando o processo de descentralização do sistema de saúde, bem como iniciativas de fomento à práticas de promoção de saúde como corresponsabilidade governamental. Na sequência, teço reflexões sobre o território como espaço de produção social e de promoção da saúde, lugar construído, percebido e significado pelos atores que dele se apropriam, no qual o desenvolvimento se reflete por meio de elementos materiais e imateriais. Para finalizar, analiso a configuração de redes de promoção à saúde e de proteção social, na perspectiva intersetorial, destacando entre seus desafios a capacidade de estabelecer parcerias efetivamente dialógicas e participativas, as quais gerem oportunidades de empoderamento compartilhado, favorecendo o bem viver das pessoas e coletividades.

2 Descentralização e territorialização como eixos orientadores na organização do Sistema Único de Saúde O Sistema Único de Saúde (SUS), desde sua criação no Brasil a partir da Constituição Federal de 1988, tem como uma de suas diretrizes a descentralização administrativa e operacional, por meio da integração das ações e dos serviços públicos de saúde, em redes regionalizadas e hierarquizadas, sob gestão única em cada esfera governamental (BRASIL, 1988). Nessa perspectiva, a preocupação com a definição de territórios para delimitar população e área de abrangência sob responsabilidade de cada ente federado sempre esteve presente nos documentos que orientam a gestão pública nessa área. Durante a primeira década de sua implementação, a ênfase maior foi dada à municipalização, tendo em vista a necessidade de promover uma cultura de maior responsabilização e engajamento dos atores em nível local, sem perder de vista a lógica da regionalização da rede de ações e serviços do SUS, na perspectiva da gestão solidária.

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Políticas públicas e territorialidades...

Em 1996, a Norma Operacional Básica do SUS (NOB SUS/96) salienta a necessidade de os gestores dos diferentes níveis de governo pactuarem ações e investimentos, de modo a garantir maior acesso e qualidade aos serviços, bem como maior equidade e otimização de recursos. Para isso, institui a Programação Pactuada e Integrada (PPI), que deveria ser elaborada de forma dialogada, respeitando-se a autonomia dos municípios, mas também reiterando-se a responsabilidade dos estados na conformação da rede regionalizada de forma equitativa. Nessa programação, deveria ser observado o princípio da integralidade na organização das ações de saúde, “traduzindo todo o conjunto de atividades relacionadas a uma população específica e desenvolvidas num território determinado, independente da vinculação institucional do órgão responsável pela execução destas atividades” (BRASIL, 1996, p. 18). A NOB SUS/96 enfatiza ainda a necessidade de fomentar estratégias no sentido de reorientar o modelo assistencial, considerando três campos de atenção à saúde, os quais incluiriam todo o espectro de ações relativos à promoção, proteção e recuperação da saúde: da assistência às pessoas e coletividades; das intervenções ambientais, que incluem relações e condições dos espaços de vida e trabalho; e das políticas externas ao setor da saúde, que interferem nos determinantes do processo saúde doença das pessoas e coletividades, “de que são partes importantes questões relativas às políticas macroeconômicas, ao emprego, à habitação, à educação, ao lazer e à disponibilidade e qualidade dos alimentos” (BRASIL, 1996). Em 2001, o Ministério aprova a Norma Operacional da Assistência à Saúde (NOAS 01/01), com vistas a aprofundar a descentralização e ampliar a ênfase na regionalização, garantindo maior equidade na alocação dos recursos e no acesso dos usuários aos serviços e ações de saúde. Como instrumento norteador de gestão, introduz o Plano Diretor de Regionalização (PDR), indicando conceitos chaves tais como a Região de Saúde, definida como: [...] base territorial de planejamento da atenção à saúde, não necessariamente coincidente com a divisão administrativa do estado, a ser definida […] de acordo com as especificidades e estratégias de regionalização da saúde em cada estado, considerando as características demográficas, socioeconômicas, geográficas, sanitárias, epidemiológicas, oferta de serviços, relações entre municípios, entre outras. (BRASIL, 2001).

A exemplo da NOB SUS/96, a elaboração do PDR, sob coordenação da secretaria estadual de saúde, deveria envolver o conjunto de municípios da região definida como unidade assistencial, estabelecendo o papel de cada município e as estratégias de integração intermunicipais, de forma a garantir o acesso da população aos serviços de saúde. Este documento enfatiza a organização e prestação de serviços assistenciais, não abordando, porém, questões relativas à mudança do modelo de atenção como a promoção de saúde, a integralidade, a intersetorialidade e a participação social. Em 2006, é aprovado o Pacto de Gestão, que propõe radicalizar a descentralização das atribuições do Ministério da Saúde para estados e municípios e reforçar a territorialização da saúde, estruturando regiões sanitárias e instituindo colegiados de gestão regional. O Pacto de Gestão define Regiões de Saúde como [...] recortes territoriais inseridos em um espaço geográfico contínuo, identificadas pelos gestores municipais e estaduais a partir de identidades culturais, econômicas e sociais, de redes de comunicação e infra-estrutura de transportes compartilhados do território. (BRASIL, 2006, p. 6). Voltar ao sumário

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Preconiza cooperação e solidariedade entre os entes federados envolvidos, bem como o “respeito à identidade expressa no cotidiano social, econômico e cultural na composição da Região de Saúde” (p. 6). Apesar de não mencionar algum modelo de atenção, enfatiza o princípio da integralidade como orientador da organização das regiões e das ações e serviços de saúde. Em relação à promoção da saúde, apresenta esta como um de seus objetivos e prioridades; no entanto, ao propor a elaboração e implementação de uma Política Nacional da Promoção da Saúde (PNPS), expressa uma concepção restrita, à medida que a identifica como adoção de hábitos saudáveis pela população, de modo que esta internalize “a responsabilidade individual da prática de atividade física regular, alimentação saudável e combate ao tabagismo” (BRASIL, 2006, p. 2). Mais recentemente, a Portaria Nº 4279, de 30 de dezembro de 2010, buscando fomentar a superação da fragmentação da atenção e da gestão nas regiões de saúde, apresenta diretrizes para a estruturação de Redes de Atenção à Saúde, dentre as quais o fortalecimento dos órgãos que institucionalizam a gestão compartilhada entre governo estadual e gestores dos municípios que constituem uma região de saúde. Nesta Portaria, a Rede de Atenção em Saúde constitui-se por meio da articulação de ações e serviços de densidades tecnológicas diversas, com vistas a assegurar a integralidade do cuidado com efetividade e eficiência. Caracteriza-se pela formação de relações horizontais entre os pontos de atenção com o centro de comunicação na Atenção Primária à Saúde (APS), pela centralidade nas necessidades em saúde de uma população, pela responsabilização na atenção contínua e integral, pelo cuidado multiprofissional, pelo compartilhamento de objetivos e compromissos com os resultados sanitários e econômicos. (BRASIL, 2010, p. 4).

Nessa perspectiva, os espaços de cuidado são reconhecidos como “espaço de construção de sujeitos e de subjetividades, um ambiente que tem pessoas, sujeitos, coletivos de sujeitos, que inventam mundos e se inventam e, sobretudo, produzem saúde” (BRASIL, 2010, p. 6). Essa Portaria destaca a necessidade de mudança do modelo de atenção à saúde, centrado na doença, no atendimento à demanda espontânea, para um modo de organizar [...] que construa a intersetorialidade para a promoção da saúde, contemple a integralidade dos saberes com o fortalecimento do apoio matricial, considere as vulnerabilidades de grupos ou populações e suas necessidades, fortalecendo as ações sobre as condições crônicas. (BRASIL, 2010, p. 15).

As ações intersetoriais são apontadas como mecanismos para fortalecer e fomentar a implantação da PNPS na Rede de Atenção em Saúde, configurando redes de compromisso e corresponsabilidade, com vistas a reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde relacionados aos determinantes sociais (BRASIL, 2010; BRASIL, 2014). Em 2014, o Ministério da Saúde aprova a nova Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS), apresentando como seu primeiro eixo operacional a territorialização. Neste eixo, reafirma a regionalização como princípio fundamental do SUS, orientador da descentralização das ações e serviços de saúde, bem como da organização da Rede de Atenção em Saúde na abrangência das regiões de saúde (BRASIL, 2014).

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Outros dois eixos da PNPS destacam a articulação e cooperação intra e intersetorial, as quais requerem diálogo entre diferentes setores e diferentes áreas de um mesmo setor, com vistas a compartilhar planos, metas, recursos e objetivos comuns. Transversalizar a promoção da saúde na Rede de Atenção em Saúde implica favorecer “práticas de cuidado humanizadas, pautadas nas necessidades locais, na integralidade do cuidado, articulando com todos os equipamentos de produção da saúde do território;” requer ainda […] articular com as demais redes de proteção social, vinculando o tema a uma concepção de saúde ampliada, considerando o papel e a organização dos diferentes setores e atores, que, de forma integrada e articulada por meio de objetivos comuns, atuem na promoção da saúde. (BRASIL, 2014, p. 4).

3 O território como foco de intervenção na implementação do princípio da atenção integral na saúde Outra política relevante na configuração do território como lugar de produção da saúde e, nessa perspectiva, espaço delimitado para organização e implementação de ações e serviços de saúde é a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB). Instituída pelo Ministério da Saúde a partir de 2006, esta política destaca entre seus objetivos a efetivação do princípio da atenção integral, apresentando estratégias para o fomento de ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, que impactem na situação de saúde e nos fatores que influenciam a vida das pessoas e coletividades. Nesse sentido, a PNAB é “desenvolvida com o mais alto grau de descentralização e capilaridade, próxima da vida das pessoas”, por meio “de práticas de cuidado e gestão [...], dirigidas a populações de territórios definidos, considerando a dinamicidade existente no território em que vivem essas populações” (BRASIL, 2011, p. 19). Além disso, orienta-se por princípios como vínculo, humanização, autonomia, responsabilização e participação social, reconhecendo o sujeito em sua singularidade e inserção sociocultural. Como uma de suas diretrizes fundamentais, a PNAB estabelece a adstrição de territórios como estratégia que viabiliza, de forma equitativa, o planejamento e a programação descentralizada, bem como o desenvolvimento de ações intra e intersetoriais “com impacto na situação, nos condicionantes e nos determinantes da saúde das coletividades de constituem aquele território” (BRASIL, 2011, p. 20). O território, conforme define Santos (apud BREVILHERI; NARCISO; PASTOR, 2014), é um espaço de pertencimento. Espaço que integra objetos e ações, envolvendo elementos naturais e obras criadas pelos homens ao longo da história. O território expressa, ainda, as ações das pessoas num cotidiano presente, as quais evidenciam projetos em disputa quanto ao uso do espaço. Para Haesbaert (apud MOYSÉS; SÁ, 2014), o território é lugar de manifestação de poder em suas diferentes formas. Poder simbólico, que considera subjetividades, o imaginário, a identidade e o sentimento de pertencimento ao local. Poder que permite a apropriação do espaço. Na visão de Santos, “a produção social do contexto local está [...] intimamente relacionada ao cotidiano da população e às relações sociais dinâmicas, muitas vezes influenciadas por relações de poder de dominação e apropriação deste espaço” (MOYSÉS; SÁ, 2014, p. 4324). Voltar ao sumário

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Por outro lado, […] territorialidades são a “razão de ser” dos territórios, conferindo-lhes existência, seja material ou imaterial. Segundo Raffestin, a territorialidade é composta por três elementos: senso de identidade espacial; senso de exclusividade; e compartimentação da interação humana no espaço. Sua função é a manutenção do território, ou seja, sua defesa, garantindo equilíbrio entre as sociedades e a natureza. (MOYSÉS; SÁ, 2014 p. 4324).

A territorialidade constitui um dos princípios da PNPS, quando esta orienta que sejam consideradas singularidades e especificidades dos territórios no processo de intervenção intra e intersetorial, com vistas à produzir melhorias na situação de saúde, bem como em seus condicionantes e determinantes. Nessa perspectiva, o reconhecimento de contextos locais e o respeito às diversidades devem nortear o planejamento de ações territorializadas de promoção de saúde, favorecendo “a construção de espaços de produção social, ambientes saudáveis e a busca da equidade, da garantia de direitos humanos e da justiça social” (BRASIL, 2014, p. 2-3). Sobre a estratégia de territorialização, Santos e Rigotto (2011) problematizam o modo como esta tem sido utilizada pelos trabalhadores e gestores da saúde, em especial vinculados à Atenção Básica. Esses autores constatam uma tendência em restringir o potencial que esta diretriz apresenta para a descrição das condições de vida bem como na identificação de questões relativas à saúde e na definição de iniciativas de intervenção no cotidiano da vida das pessoas e coletividades humanas. Essa crítica é destacada ainda por Brevilheri, Narciso e Pastor (2014, p. 57), as quais ponderam que, “apesar de todos os avanços da legislação do SUS em relação à dimensão territorial, ainda há limites que restringem a prática cotidiana aos aspectos administrativos, expressando uma área geográfica delimitada na qual uma população está referida”. Para estas autoras, este é um dos desafios da política de saúde; a redução das desigualdades socioterritoriais implica identificar as reais necessidades das populações, mas também suas potencialidades, diversidades e particularidades. No reconhecimento do território é essencial que sejam considerados os processos produtivos instituídos no espaço geográfico delimitado como adstrito ao serviço, mas também nos espaços que constituem seu entorno, os quais influenciam a saúde dos moradores e seu meio ambiente. Entre estes processos, devem ser identificados centros de produção de culturas diversas e divergentes, que podem promover mudanças, influenciando os modos de subjetivação dos diferentes grupos sociais e as identidades coletivas. Isso possibilita aos profissionais da saúde estabelecer vínculos com o lugar, ao mesmo tempo em que podem adequar as “ações de saúde à singularidade de cada contexto sócio-histórico específico” (SANTOS; RIGOTTO, 2011, p. 403). Para Brevilheri, Narciso e Pastor (2014), no planejamento de ações e serviços públicos mais efetivos devem ser instituídos processos de gestão cooperativa entre as diferentes políticas, com vistas a desenvolver ações intersetoriais articuladas. Estas ações devem refletir a heterogeneidade das demandas produzidas nos territórios nos quais se materializam as condições de vida das pessoas e coletividades, buscando impactar para uma melhor qualidade de vida e diminuir as situações de vulnerabilidade e desigualdade socioambientais. Essa perspectiva é destacada pela PNAB, que refere entre seus valores fundantes

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[...] o respeito às diversidades, que reconhece, respeita e explicita as diferenças entre sujeitos e coletivos, abrangendo as diversidades étnicas, etárias, de capacidade, de gênero, de orientação sexual, entre territórios e regiões geográficas, dentre outras formas e tipos de diferenças que influenciam ou interferem nas condições e determinações da saúde. (BRASIL, 2014, p. 2).

Uma iniciativa que tem se mostrado como estratégia viável para o desenvolvimento da promoção da saúde por meio de ações intersetoriais é o movimento das Redes de Cidades e Comunidades Saudáveis, com diversas experiências bem sucedidas no Brasil. Essas redes tem como premissa a construção de alianças locais como condição “para melhorar as condições sociais, ambientais e sanitárias nos espaços onde as pessoas vivem, trabalham, estudam e se relacionam” (MOYSÉS; SÁ, 2014, p. 4326). Nessas iniciativas, os temas priorizados para intervenção levam em consideração necessidades e potencialidades identificadas pelos sujeitos implicados, fortalecendo sua autonomia e seu empoderamento, e incentivando a realização de planejamentos que levem em conta o território e os desejos das pessoas que ali vivem e convivem.

4 Território e redes de atenção na promoção da saúde de adolescentes e suas famílias Entre os documentos que fundamentam a instituição de um novo modelo de atenção, que possa se contrapor ao modelo hegemônico centrado na doença, no atendimento à demanda espontânea e na agudização das condições crônicas é a Portaria 4279, de dezembro de 2010, que orienta a organização das Redes de Atenção à Saúde (RAS) (BRASIL, 2010). Nesta portaria, a implantação das RAS devem levar em conta [...] a necessidade de uma organização que construa a intersetorialidade para a promoção da saúde, contemple a integralidade dos saberes com o fortalecimento do apoio matricial, considere as vulnerabilidades de grupos ou populações e suas necessidades, fortalecendo as ações sobre as condições crônicas. (BRASIL, 2010, p. 15).

A RAS, de acordo com este modelo de atenção, constitui-se mecanismo de articulação entre diferentes serviços e atores, estabelecendo seu foco de intervenção a partir das situações demográficas e epidemiológicas, bem como dos determinantes sociais, que impactam sobre a saúde de um território delimitado. A RAS institui-se a partir de uma estrutura operacional, tendo a Atenção Primária à Saúde (APS) como ordenadora de sua constituição e coordenadora do cuidado prestado aos indivíduos, famílias e comunidades. Entre seus atributos, a APS inclui a integralidade da atenção, que exige da equipe de saúde o reconhecimento das necessidades de saúde mas também os recursos para abordá-las; a centralidade na família e a abordagem familiar, permitindo o estabelecimento de vínculos que favoreçam a confiança mútua e a responsabilidade compartilhada; e a orientação comunitária, com vistas a garantir o planejamento e o desenvolvimento de ações de acordo com as especificidades de populações específicas (BRASIL, 2010). Destaca-se entre as ferramentas desenvolvidas para a institucionalização da RAS a gestão integrada da clínica, que compreende como objeto de cuidado os problemas Voltar ao sumário

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de saúde, não apenas as doenças, o que requer a compreensão das situações que agravam os riscos e a vulnerabilidade das pessoas. É necessário reconhecer no diagnóstico da situação de saúde de uma determinada comunidade, que “os problemas ou condições de saúde estão em sujeitos, em pessoas, por isso, a clínica do sujeito é a principal ampliação da clínica, que possibilita o aumento do grau de autonomia dos usuários, cabendo uma decisão compartilhada do projeto terapêutico” (BRASIL, 2010, p. 9). Para a gestão da clínica, busca-se identificar riscos em grupos específicos, reconhecendo fatores e situações a que estão expostos, os quais fundamentam sua priorização na prestação de cuidados de prevenção, de promoção ou assistência à saúde. Entre as estratégias para a implantação da RAS, o Ministério da Saúde estabelece a organização da gestão e do planejamento [...] das variadas ações intersetoriais, como forma de fortalecer e promover a implantação da Política Nacional de Promoção da Saúde (PNPS) na RAS de modo transversal e integrado, compondo Rede de compromisso e co- responsabilidade para reduzir a vulnerabilidade e os riscos à saúde vinculados aos determinantes sociais. (BRASIL, 2010, p. 17).

Uma experiência de rede intersetorial, constituída na perspectiva da proteção social para o enfrentamento de situações de risco e vulnerabilidade é a Rede de Atendimento à Infância e Adolescência (RAIA), criada em 2006 no município de Chapecó, Santa Catarina. Como iniciativa do Serviço Social da Promotoria Pública da Comarca de Chapecó, em parceria com os cursos de Psicologia e de Serviço Social da Unochapecó, bem como com a Secretaria da Assistência Social do município, a RAIA tem como objetivo promover o diálogo entre profissionais vinculados aos serviços públicos de assistência social, educação, saúde e segurança, além de outros atores governamentais e da sociedade civil engajados no atendimento voltado à crianças, adolescentes e suas famílias. A RAIA visa promover o desenvolvimento de ações articuladas e contínuas, tendo sua constituição vinculada aos territórios delimitados pelos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS) do município, conformando assim seis núcleos de intervenção descentralizada. A infância e adolescência são fases de exposição à inúmeras situações de vulnerabilidade, considerando especificidades do ciclo vital nessa faixa etária. Sem dúvida a família, no sentido ampliado que esta instituição adquire na contemporaneidade, pode exercer importante papel de apoio ao desenvolvimento na infância e na puberdade. No entanto, o enfrentamento de muitas situações de risco e vulnerabilidade socioambientais requerem suporte do poder público por meio de políticas e programas efetivos. Em um estudo sobre a RAIA em Chapecó, Machado e Silva identificaram inúmeras situações que indicavam negligência de familiares ou falhas relativas aos serviços e às políticas públicas, provocando um déficit na garantia dos direitos básicos à proteção social desse grupo social (MACHADO; SILVA, 2010). Buscando compreender quais as dificuldades encontradas no desenvolvimento de suas ações, profissionais da RAIA envolvidos no estudo referiram, entre outras, a falta de adesão, envolvimento e engajamento das famílias nas atividades propostas, compreendendo que isso decorreria do fato de que “muitas vezes estas não estão de acordo, ou não compreendem a importância e a gravidade dos fatos, ou simplesmente, porque não faz sentido determinada intervenção naquele momento, já que elas se encontram satisfeitas com seu cotidiano” (MACHADO; SILVA, 2010, Voltar ao sumário

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p. 47). Por outro lado, destaca-se também práticas dos profissionais que, muitas vezes, direcionam-se a “apagar incêndios” ao invés de realizarem ações preventivas, na perspectiva de evitar que situações de violência e outros riscos ocorram. Nesse estudo, as falas dos entrevistados parecem indicar uma concepção dos profissionais sobre sua atuação restrita ao atendimento de casos, não mencionando iniciativas de comunicação com as famílias ou com a comunidade na perspectiva de planejar, definir e desenvolver ações conjuntas, com impacto sobre sua realidade socioambiental e os fatores condicionantes de sua situação de vida. Isso pode evidenciar uma concepção sobre usuários (crianças, adolescentes e suas famílias) como “objetos do cuidado”, com déficits e necessidades, ao invés de compreende-los como sujeitos que também têm potencialidades, cujas iniciativas para enfrentar problemas, criar alternativas de superação e garantir condições para bem viver podem ser válidas e valiosas. Matumoto, Mishima e Pinto (2001) analisam a tendência de os profissionais dos serviços de saúde estabelecerem relações com os usuários tratando-os como objetos e não como sujeitos do cuidado. Para estas autoras, uma relação humanizada requer reconhecer o papel protagonista das pessoas, compreendendo sua potencia na produção da vida cotidiana e da realidade social. Como ser de relações, são portadores de projetos de vida, sendo influenciados mas também influenciando o meio em que vivem, bem como outros seres humanos com quem convivem. Lopes e Malfitano (2006, p. 511), em relato de experiência sobre o projeto Rotas Recriadas: crianças e adolescentes livres da exploração sexual em Campinas-SP, consideram que a formação tem previsto poucos elementos que apoiem a atuação dos profissionais no campo social, “não se direcionando para a dimensão territorial, da convivência, da superação da clínica e da manutenção das singularidades de cada história”. A PNAB (BRASIL, 2012) e a PNPS (BRASIL, 2014) reafirmam a necessidade de os trabalhadores da saúde reconhecerem os usuários como parte de um sistema socioambiental complexo e dinâmico, visando integrar em seu processo de cuidar não apenas o contexto social onde esses vivem, mas principalmente esses usuários como protagonistas em seu processo de viver e conviver. Território e corresponsabilidade são conceitos enfatizados nessas políticas, como essenciais na promoção de ações de reconhecimento, valorização e apoio aos modos que a comunidade enfrenta condições desfavoráveis e constrói e/ou utiliza recursos em favor de seu bem viver. Ao reconhecer as condições adversas a que as famílias estão sujeitadas, como irregularidades relacionadas à moradia, maior proximidade com o tráfico e práticas de drogadicão, bem como dificuldades de acesso a equipamentos públicos, é fundamental que os profissionais articulados na RAIA compreendam a importância de envolver a participação de diferentes organizações no desenvolvimento de ações mais efetivas (MACHADO; SILVA, 2010). Isso é reiterado pela PNPS, quando destaca a necessidade de instituir processos participativos e dialógicos na definição de prioridades e de agendas para a promoção de saúde, identificando diferenças e especificidades relativas as condições e oportunidade de vida, reconhecendo e valorizando os diversos saberes (popular, tradicional e científico) e reforçando as ações comunitárias (BRASIL, 2014). Em estudo recente sobre cultura e práticas de lazer, envolvendo adolescentes e familiares vinculados a iniciativas da RAIA em Chapecó, constatou-se a preferência Voltar ao sumário

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deste grupo por práticas de convivência como jogar futebol, dançar, almoçar em família ou ainda frequentar campings para acessar e usufruir recursos hídricos como piscina ou rio. No entanto, os entrevistados referem muita dificuldade e restrições de acesso aos espaços que possibilitem práticas de lazer e convivência, seja por serem locais privados, com custos significativos para acessar, seja por exigir deslocamento para localidades distantes de sua comunidade, seja ainda por apresentarem riscos por falta de manutenção (equipamentos quebrados, lixo e estrutura danificada, por exemplo) ou por ocupação frequente de usuários ou comércio de drogas (MANFRIN, 2014). Zingoni (2009) problematiza a capacidade enfrentada por comunidades que não contam com relações consolidadas entre seus moradores, nem por identidade, nem por parentesco, tampouco por procedência, resultando em sentimentos e práticas opostos à solidariedade. Muitas vezes nessas comunidades a proximidade das moradias, “a privacidade exposta aos vizinhos, o som em alto volume, as brigas de casais, o lixo próximo, a água suja que corre no terreno vizinho, os roubos, o alcoolismo e as drogas são fatores da convivência diária que acabam dificultando as relações mais solidárias” (ZINGONI, 2009, p. 28). O enfrentamento de situações dessa natureza ultrapassa a capacidade e a responsabilidade de setores como saúde, educação e assistência social, exigindo parceria entre administração municipal com outros órgãos do poder público e entidades da sociedade civil, na perspectiva de garantir ações de curto, médio e longo prazo em favor da construção de políticas públicas e de ambientes favoráveis à convivência saudável na comunidade. Nessa perspectiva, o lazer pode constituir-se em potencia na socialização das famílias nessas comunidades, à medida que estimula, mobiliza e promove o direito ao convívio social por meio de atividades lúdicas que promovem relações de convivência e vizinhança, “entendendo-se o lúdico como as vivências culturais prazerosas, significativas para os sujeitos, fundadas no exercício da liberdade e, por isso, mobilizadoras de desejos e estratégias sociais transformadoras da realidade” (ZINGONI, 2009, p. 28). Tais argumentos vem ao encontro de valores fundantes da PNPS, tais como a solidariedade e a felicidade: I - a solidariedade, entendida como as razões que fazem sujeitos e coletivos nutrirem solicitude para com o próximo, nos momentos de divergências ou dificuldades, construindo visão e metas comuns, apoiando a resolução das diferenças, contribuindo para melhorar a vida das pessoas e para formar redes e parcerias; II - a felicidade, enquanto auto-percepção de satisfação, construída nas relações entre sujeitos e coletivos, que contribui na capacidade de decidir como aproveitar a vida e como se tornar ator partícipe na construção de projetos e intervenções comuns para superar dificuldades individuais e coletivas a partir do reconhecimento de potencialidades. (BRASIL, 2014, p. 2).

Machado e Silva (2010, p. 25), citando Türck, referem como condição para a constituição de redes a interação de pessoas, com vínculos em diferentes espaços sociais, e sua disponibilidade para compartilhar afeto e conhecimento, “aspecto fundamental para qualquer ação que implique a construção coletiva de solidariedade”. Zingoni (2009) defende a necessidade de programas que possam fomentar junto às famílias valores que atribuam significado à vida cotidiana, e não apenas visem

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atuar sobre as condições materiais de vida. Por outro lado, essa autora argumenta que políticas de lazer efetiva requerem ações articuladas com outras políticas, tais como políticas de transporte, de trabalho (garantindo renda mínima e disponibilidade de tempo livre, por exemplo), entre outras. Nessa perspectiva, a PNPS aponta entre seus temas prioritários a promoção do desenvolvimento sustentável, envolvendo a promoção, mobilização e articulação de [...] ações governamentais, não governamentais, incluindo o setor privado e a sociedade civil, nos diferentes cenários, como cidades, campo, floresta, águas, bairros, territórios, comunidades, habitações, escolas, igrejas, empresas e outros, permitindo a interação entre saúde, meio ambiente e desenvolvimento sustentável na produção social da saúde em articulação com os demais temas prioritários. (BRASIL, 2014, p. 5-6).

A PNPS aponta ainda como competência das secretarias municipais da saúde, a promoção da participação e do controle social, bem como o reforço as ações comunitárias de promoção da saúde nos territórios (BRASIL, 2014). A Carta de Ottawa (1986, s/p), documento da 1ª Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, define a promoção da saúde como “processo de capacitação da comunidade para atuar na melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle desse processo”. Para aumentar a capacidade de atuação das pessoas, grupos e comunidades, é necessário garantir acesso igualitário a recursos como informações, ambientes favoráveis, habilidades e experiências saudáveis e oportunidades de fazer escolhas que contribuam para uma vida mais sadia. A saúde é construída e vivida pelas pessoas dentro daquilo que fazem no seu dia-a-dia: onde elas aprendem, trabalham, divertem-se e amam. A saúde é construída pelo cuidado de cada um consigo mesmo e com os outros, pela capacidade de tomar decisões e de ter controle sobre as circunstâncias da própria vida, e pela luta para que a sociedade ofereça condições que permitam a obtenção da saúde por todos os seus membros. (CARTA DE OTTAWA, 1986).

A promoção da saúde requer parcerias e ações coordenadas entre todos os atores e setores da sociedade, como uma responsabilidade global. Nesse sentido, a PNPS adota entre seus princípios a participação social, considerando a visão dos diferentes atores e a corresponsabilidade no planejamento, execução e avaliação das ações; a autonomia, identificando potencialidades e desenvolvendo capacidades em vistas de escolhas conscientes sobre ações; o empoderamento, preconizando o estímulo para que sujeitos e coletivos assumam o controle sobre decisões e escolhas que favoreçam suas condições de vida (BRASIL, 2014). Para Zingoni (2009), iniciativas públicas e comunitárias que apoiem iniciativas das famílias e grupos sociais no associativismo ou na formação de grupos de convivência, favorecem o processo de aproximação e socialização dos membros dessas famílias, fortalecendo sua autoestima e o sentimento de identidade coletiva. Isso implica reconhecer que as políticas de lazer envolvem práticas que abordam emoções e desejos, com potência de promover a construção da liberdade e da alegria de conviver e compartilhar. Essa compreensão enuncia a construção e consolidação de redes sociais, nas quais os serviços públicos de saúde se constituem elos importantes no processo de empoderamento das pessoas, famílias, grupos e comunidades, com capacidade de Voltar ao sumário

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gerar relações solidárias e impactos favoráveis nas estruturas institucionais e políticas da sociedade. Competência técnica, compromisso político e práxis ética são dimensões essenciais na atenção à saúde comprometida com a construção de condições favoráveis ao protagonismo dos sujeitos envolvidos nos processos do cuidar em favor da vida.

5 Algumas considerações finais A promoção da saúde, uma das dimensões fundamentais do cuidado em saúde propostas pelo SUS, apresenta a territorialização como estratégia de sua operacionalização, destacando a importância de identificar problemas e potencialidades e reconhecer singularidades e especificidades dos indivíduos, famílias e comunidades na definição de prioridades de intervenção. Nessa concepção, os diferentes sujeitos (usuários, trabalhadores e gestores de diferentes setores públicos e iniciativas não governamentais) assumem papel protagonista na construção social da saúde, sendo corresponsáveis na identificação, criação e no desenvolvimento de iniciativas para superar os problemas e construir modos, relações e espaços favoráveis ao bem viver. Como princípios fundamentais da promoção da saúde, a autonomia e o empoderamento dos sujeitos devem ser reconhecidos e favorecidos nesse processo, tendo a participação dos diferentes atores, grupos e coletivos na construção de intervenções compartilhadas sobre fatores determinantes e condicionantes da saúde. É fundamental, nesse sentido, superar pré-conceitos restritos e restritivos de território e usuários como espaços e grupos de risco. Os territórios da atenção à saúde são lugares e pessoas com carências, problemas e necessidades, mas também com saberes, dinâmicas e potenciais criativos e criadores. A construção de espaços favoráveis, nos quais pessoas, famílias e grupos sociais possam desenvolver práticas cooperativas e solidárias, bem como sentimentos de pertencimento e identidade coletiva, requer disposição e envolvimento dos indivíduos, mas também engajamento dos trabalhadores e compromisso da gestão pública. Para que um território se constitua como espaço de felicidade, segurança, inclusão e justiça social, todos os atores devem assumir-se como partícipes, cabendo contudo à gestão pública o fomento e a garantia de políticas, programas, serviços e ações que apoiem e viabilizem essa ação compartilhada. A Rede de Atendimento à Infância e Adolescência (RAIA) institui uma oportunidade em Chapecó para articular setores e efetivar parcerias na territorialização, constituindo em cada território lugar de encontros e de trabalho compartilhado em favor da vida. Um lugar de muitas cores, percebidas à medida que os olhares estiverem abertos e interessados pelos múltiplos caleidoscópios formados no cotidiano da vida social.

Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988. ______. Lei Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e os serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 24 set. 1990.

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Políticas públicas e territorialidades...

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S U M Á R I O

PERSPECTIVA TERRITORIAL NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Iraci de Andrade*

1 Introdução A motivação para estudar o território e a Política de Assistência Social a partir da análise da produção social do espaço surge de uma inquietação: em que medida a análise histórico-dialética sobre a produção social do espaço contribui para ampliação da visão crítica do Serviço Social, considerando especialmente o território enquanto eixo estruturante do Sistema Único de Assistência Social (Suas) e os desafios postos ao fortalecimento do protagonismo popular na efetivação dos direitos sociais? Nesse percurso, revela-se que o processo de enriquecimento da sociabilidade do ser social se expressa na complexificação das relações sociais de produção e na sua diferenciação cada vez maior da natureza. Acrescenta-se que, decorrente do movimento sócio-histórico, a diferenciação entre homem e natureza, sob o domínio das relações sociais assentadas na propriedade privada, se expressa com toda a sua força na produção do espaço-mercadoria. Desse modo, identifica-se que, na atualidade, o espaço social sob o domínio do capital financeiro e aliado aos Estados nacionais, torna-se componente estratégico usado como condição, meio e produto fundamental para sua reprodução em escala mundial. Por conseguinte, a produção social do espaço apresenta-se enquanto processo encharcado de contradições, resultante do trabalho humano sob o domínio do capital e da propriedade privada. Nesses termos, abordar o atual contexto socioeconômico político, ou, ainda, o agravamento da questão social, exige incluir a dimensão representada pelo espaço social. Acredita-se, pois, que a noção de espaço socialmente produzido contribuiu decisivamente para a apreensão da heterogeneidade, complexidade e das desigualdades que caracterizam as distintas formas de sua produção, apropriação, valor e uso, nos diferentes momentos históricos da sociedade. Com efeito, cada parcela de território usado, ao mesmo tempo em que expressa um conteúdo particular, arrasta, em seu movimento socioterritorial, a totalidade do modo de (re)produção social da sociedade. Portanto, emerge, do movimento contraditório e dinâmico do território usado, um terreno fértil para o desenvolvimento de novas ações, destacando-se a produção de conhecimentos e estratégias voltada ao atendimento das demandas sociais da população; o estímulo à organização popular coletiva e o fortalecimento de uma nova cultura política.

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Mestre e Doutora em Serviço Social pela PUC-RS. E-mail: <iraci_andrade@hotmail.com>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-14

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Perspectiva territorial na política de assistência social

2 A produção social do espaço O debate de cunho marxista sobre a produção social do espaço encontra-se, de maneira original, na construção teórica do filósofo francês, Henri Lefebvre. A reflexão sobre o espaço social surge, no pensamento do autor, a partir de profunda análise das obras de Karl Marx, problematizando a reprodução das relações sociais, o processo da organização do espaço no contexto das lutas de classes e a expansão territorial do sistema capitalista. Na análise realizada sobre a’produção do espaço’, Lefebvre (1973, p. 79-80) destaca que o conceito de produção possui duplo sentido, ou seja, um sentido estrito e um sentido mais amplo. Nas palavras do autor: A dupla acepção do termo decorre de que ‘os homens’ em sociedade produzem ora coisas (produtos), ora obras (todo o resto). [...] Produzir, em sentido amplo, é produzir ciência, arte, relações entre seres humanos, tempo e espaço, acontecimentos, história, instituições, a própria sociedade, a cidade, o Estado, em uma palavra: tudo. A produção de produtos é impessoal; a produção de obras não se compreende se ela não depende de sujeitos”. O sentido do conceito não faz referência somente à produção material stricto sensu, mas define-se a partir das relações envolvidas no processo produtivo como um todo, bem como, as instituições responsáveis pela reprodução dessas mesmas relações, a saber: o direito, a família, o sistema jurídico, o Estado e etc. A produção refere-se também, de acordo com o autor, à produção de fatos, de acontecimentos históricos, de conflitos e de guerras.

O duplo sentido destacado por Lefebvre faz referência à produção material stricto sensu, das relações envolvidas no processo produtivo como um todo, assim como do conjunto das instituições que reproduzem essas mesmas relações (o direito, a família, o sistema jurídico, Estado). Nesse sentido, a produção refere-se também à produção de fatos, de acontecimentos históricos, de conflitos e guerras. Com esse direcionamento teórico, ganha centralidade a categoria trabalho. Nesse enfoque, o aporte teórico apresentado na obra Ontologia do Ser Social (LUKÁCS, 1979), expressa a particularidade do ser social por sua ação estar teleologicamente orientada num incessante fazer-se. Tratando-se, pois de processos sociais, o ser social se constitui enquanto sujeito central da produção conscientemente orientada em busca do novo, diferentemente das esferas orgânica e biológica. Assim, no fazer-se ser social, o homem vai distinguindo-se da natureza, essencialmente, por meio de sua atividade humana conscientemente orientada e teleologicamente posta. Seguindo o mesmo raciocínio, para Marx (2004, p. 211), o trabalho constitui-se em fundamento ontológico-social do ser social, definindo-o enquanto [...] um processo de que participam o homem e a natureza, processo em que o ser humano, com sua própria ação, impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza. [...] Atuando assim sobre a natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua própria natureza.

Dito isso, infere-se que o homem, ao transformar sua própria natureza por meio do trabalho, acaba por modificar, com o mesmo ato, a “natureza” da natureza, ou seja, a natureza humanizada por meio do trabalho social do homem - o espaço social. Desse modo, busca-se evidenciar o trabalho como fundamento ontológico-social do ser social e do espaço social. Nesse processo social, verifica-se que a mesma

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medida em que o ser social desenvolve-se e se humaniza, os limites naturais recuam, aprofundando o caráter social da totalidade da produção da vida humana e da natureza. Em outros termos, afirma-se que a produção social do espaço encontra-se imbricado no mesmo processo da humanização do homem. Nessa perspectiva, Produzir e produzir espaço são dois atos indissociáveis. Pela produção o homem modifica a Natureza Primeira, a natureza bruta, a natureza natural, [...]. É por essa forma que o espaço é criado como Natureza Segunda, natureza transformada, natureza social ou socializada. O ato de produzir e, ao mesmo tempo, o ato de produzir espaço. (SANTOS, 2008b, p. 203).

Seguindo a abordagem construída por Santos é possível afirmar que a produção social do espaço não tem lógica própria; em vez disso, esta se constitui em componente integrante do modo de produção da sociedade. Com efeito, pode-se considerar que a perspectiva de Santos encontra-se filiada à proposta teórica de Lefebvre (1973, p. 18-20), a respeito da concepção da produção social do espaço. Ciência do Espaço? Não. Conhecimento (teoria) da produção do espaço. A ciência do espaço (matemática, física, etc.) é do domínio da lógica, da teoria dos conjuntos e coesões, sistemas e coerências. O conhecimento do processo produtivo, que faz entrar na existência social este produto que é o mais geral de todos – o espaço – é do domínio do pensamento dialético, que lhe apreende as contradições. É neste espaço dialetizado (conflitual) que se consuma a reprodução das relações de produção. É este espaço que produz a reprodução das relações de produção, introduzindo nelas contradições múltiplas, vindas ou não do tempo histórico.

Diante do exposto, explicita-se a perspectiva dialética materialista e histórica de Lefebvre, relativo à concepção do espaço a partir de sua produção social. Tais aportes, certamente, representam importante contribuição para a renovação do conceito de espaço, articulada a uma teoria crítica da sociedade. Da mesma forma, a conceituação do espaço, enquanto produção social resultante da ação humana, converge para a concepção da geografia, enquanto ciência da sociedade e não ciência da natureza. Nesse sentido, o movimento da geografia crítica brasileira afirma que o objeto da Geografia [...] passa a se limitar ao universo da materialidade social e da história humana. Ele não poderá mais ser posto como a “superfície terrestre”, pois esta é fundamentalmente uma realidade natural (a história humana é secundária na discussão da gênese da terra), mas dirá respeito, claramente, a algum processo social referido a esta, à ação humana sobre a terra. O objeto não poderá também ser definido como “espaço”, e sim sua produção e uso pela sociedade. (MORAES; COSTA, 1984, p. 59).

Nota-se que o aprofundamento e amadurecimento da reflexão crítica sobre o espaço geográfico possibilitaram a superação e o estabelecimento de novos parâmetros. Assim, a partir da nova perspectiva assumida pela geografia crítica, o desenvolvimento da sociedade e seu espaço compõem um processo histórico indissolúvel. Nesse sentido, a produção social do espaço sustenta-se na perspectiva aberta pelo materialismo histórico-dialético, afirmando-se como produto sócio-histórico da humanidade. Desta feita,

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[...] a medida em que a sociedade produz e reproduz sua existência de um modo determinado, este modo imprimirá características históricas específicas a esta sociedade e consequentemente influenciará e direcionará o processo de produção espacial. (CARLOS, 2008, p. 33).

Na perspectiva descrita, o espaço produzido expressará o conteúdo das relações sociais estabelecidas no processo de produção geral da sociedade. Portanto, torna-se central a noção de que o espaço geográfico encontra-se em movimento constante, correspondendo às características das relações sociais historicamente determinadas. Dessa forma, a noção de movimento e produção do espaço possibilita trazer para a cena do debate o atual contexto da sociedade capitalista, globalizada e profundamente desigual. Emerge a questão de como se configura a dinâmica da produção espacial, a partir das relações capitalistas de produção. Segundo Lefebvre (2008, p. 159), com a política do espaço hegemonizada pelo capital, se da produção de coisas no espaço à produção do espaço planetário. Nas palavras do autor, Segue-se que o espaço torna-se estratégico. Por estratégia, entendamos que todos os recursos de um determinado espaço dominado politicamente servem de meios para visar e atingir objetivos à escala planetária, e mesmo além dela. As estratégias globais são ao mesmo tempo econômicas, científicas, culturais, militares e políticas.

Na referida acepção, as classes sociais dominantes tornam o espaço instrumental, utilizando-o de forma a dispor ou a dispersar a classe trabalhadora conforme seus interesses; organizar os fluxos conforme as necessidades de suas instituições, estabelecendo o controle do espaço, ou, ainda, da sociedade, ao poder hegemônico do capital. Apoiando-se no conceito de reprodução das relações sociais, desenvolvido por Lefebvre (1973), revela-se que, em tempos de globalização, o espaço inteiro apresenta-se como lugar da reprodução das relações sociais de produção. Subjaz aí a propositura do duplo caráter do espaço, ou seja, sua condição de meio de produção (terra) e parte integrante das forças sociais de produção (espaço).

3 Produção/apropriação desigual do espaço Nesse processo sócio-histórico altamente contraditório, abrangente e inacabado, o espaço apresenta-se como “produto” e “condição” para o estabelecimento de novos processos, apontando a implacável direção de sua reprodução (CARLOS, 2011). O destaque para a perspectiva da reprodução aponta para a compreensão da totalidade social, englobando os processos de realização e acumulação do capital e da vida humana, abarcando as dimensões objetiva e subjetiva da realidade social. Por certo, considerando-se as fases precedentes, o modo capitalista de produção representou um salto qualitativo no desenvolvimento das forças produtivas. É, pois, nesse espaço conflitivo, que se reproduzem as relações de produção, com novas e múltiplas contradições do novo tempo histórico. Assim, o capitalismo, formação socioeconômica historicamente determinada, revela-se como prodigioso acúmulo do desenvolvimento e complexificação das relações sociais. Nesse enfoque, Marx (2008, p. 1.079) desenvolve a “fórmula trinitária”, a fim de explicitar os três elementos (capital, terra e trabalho) que constituem o processo de produção social da sociedade burguesa. Nas palavras do autor,

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Capital - juro; propriedade fundiária, propriedade privada da terra, no sentido moderno, corresponde ao modo capitalista de produção - a renda (fundiária); trabalho assalariado - salário. Nessa forma encontrar-se-ia, portanto, a coesão entre fontes de renda. Como o capital, o trabalho assalariado e a propriedade fundiária são formas sociais historicamente determinadas, respectivamente, do trabalho e da terra monopolizada e ambas estão em correspondência com o capital e pertencem à mesma formação econômica da sociedade.

Dessa maneira, Marx revela que as relações de produção capitalista convertem a unidade composta pelos três elementos da fórmula trinitária, em “coisas e entidades autônomas”, apresentando-os à sociedade de forma separada e independente. Com isso, a práxis burguesa, que permeia o espaço produzido, utiliza-se do caráter mistificador e dissociado de expressar as relações sociais de produção, a fim de ‘camuflar’ a lógica mercantil e as contradições que lhe são inerentes. Nesse enfoque, identifica-se a utilização recorrente de estratégias urbanísticas segregativas, impondo às populações empobrecidas a ocupação de áreas periféricas dos centros urbanos, desprovidas, na maioria das vezes, do acesso a serviços públicos básicos. Tais práticas, desenvolvidas pelas políticas públicas urbanas, buscam, de forma incessante, dissimular as desigualdades e as contradições socioterritoriais decorrentes da lógica mercantil da produção/apropriação desigual do espaço capitalista. Em convergência com o exposto, observa-se que a adoção de um código único orientado pela mercantilização do espaço social produzido, aprofunda as contradições expressas no processo de acumulação da riqueza e da propriedade e na generalização da miséria. Assim, a complexificação da questão social objetivada no território acaba por desnudar a ordem mundial ditada pelo capital. Nesses termos, pactua-se com o pensamento, desenvolvido por Harvey (2005, p. 150), de que o sistema capitalista globalizado na busca da reprodução de seu domínio sobre o espaço social, [...] se esforça para criar uma paisagem social e física da sua própria imagem, e requisito para suas próprias necessidades em um instante específico do tempo, apenas para solapar, despedaçar e inclusive destruir essa paisagem num instante posterior do tempo. As contradições internas do capitalismo se expressam mediante a formação e a reformação incessante das paisagens geográficas. Essa é a música pela qual a geografia histórica do capitalismo deve dançar sem cessar.

Nessa lógica argumentativa, o mercado e o espaço apresentam-se como forças modeladoras da sociedade, relevando-se, numa trama complexa e articulada, capaz de assegurar a produção e a reprodução de diferenças profundamente desiguais, contraditórias e alienadas. Nesse enfoque, afirma-se que “[...] como o ‘mercado é cego’, para os fins intrínsecos das coisas, o espaço assim construído é, igualmente, um espaço cego para os fins intrínsecos dos homens” (SANTOS, 2007b, p. 80). O espaço social produzido/apropriado pela lógica do mercado, portanto, apresenta-se como fonte de privação e negação da vida humana. Infere-se que o processo da alienação acaba por produzir uma compreensão da realidade socioespacial parcial, limitada e fragmentada. Na referida ordem societária, o processo de alienação social encontra-se vinculado ao fato do processo de produção do espaço ocorrer de forma socializada, enquanto sua apropriação ocorre de Voltar ao sumário

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Perspectiva territorial na política de assistência social

forma privada, desigual e segregada. Diante dessa dinâmica, o urbano apresenta-se com a nova síntese do modo de reprodução do espaço na contemporaneidade. Nessa perspectiva, a gestão da cidade realiza-se sob a perspectiva empresarial, adotando-se como estratégia política a busca incessante de novos capitais, tornando-a assim, cada vez mais competitiva o mercado mundial. Portanto, no estágio atual de urbanização, a hierarquização desigual dos espaços, produtora do aprofundamento da segregação socioterritorial, ocorre no processo de reprodução geral da sociedade. Nesse mesmo plano, os territórios periféricos, as ocupações irregulares, favelas, áreas de risco ambiental, entre outros, geralmente caracterizados pela precária infra-estrutura de serviços públicos básicos, constituem unidade contrária indissolúvel em relação às parcelas de território valorizadas pelo capital, onde o acesso e uso são determinados pela lógica da apropriação desigual do espaço produzido. Desse modo, importa destacar que o território usado pelas parcelas mais espoliadas da classe trabalhadora, em sua maioria usuários da Assistência Social, não pode ser compreendido e analisado sem relacioná-lo com a totalidade que compõe a realidade socioespacial em suas diferentes escalas e dimensões. Diante desse contexto, revela-se o caráter altamente contraditório do Estado liberal burguês, pois, ao tempo que assume o papel fundamental no processo de organização do espaço voltado às exigências da reprodução do capital, contraditoriamente, é tensionado a intervir na preservação do espaço da reprodução da vida, cada vez mais restrito e precarizado pela lógica do mercado. Assim, o Estado, enquanto agente principal da regulação e distribuição espacial dos equipamentos urbanos, capturado pela lógica do capital, acaba por exacerbar as contradições sociais de classe materializadas na produção/apropriação desigual do espaço. Decorrentes dessa dinâmica, as políticas públicas desenvolvidas pelo Estado capitalista, configuram-se em menor grau como instrumento de regulação do que como mecanismos reveladores de uma sociedade retalhada pelos inconciliáveis interesses de classes antagônicas (LOJKINE, 1997). Vislumbra-se, assim, o Estado como produto histórico da sociedade, expressando o conjunto das correlações sociais constitutivas da sociedade burguesa. Com isso, impõe-se ao Estado burguês o desenvolvimento da capacidade de “[...] se relacionar com todas as classes sociais para legitimar e fortalecer sua base de sustentação permitindo as condições necessárias à reprodução e à expansão do modo de produção capitalista” (PEREIRA, 2008, p. 147). Ora, tal perspectiva de análise aponta que a direção hegemônica das ações do Estado, converge para a mesma direção dos interesses dos capitais privados em detrimento da reprodução do déficit social nos espaços de reprodução da vida (escolas, unidades de saúde, praças, transporte, saneamento, etc.). Somam-se aos elementos já expostos, a afirmativa de que O desenvolvimento do ciclo do capital requer uma aliança com o poder político, na medida em que só o Estado pode atuar em grandes parcelas do espaço, direcionar investimentos, criar políticas de intervenção, produzir infra-estrutura e “colocar em suspensão” o estatuto da propriedade privada do solo urbano, liberando, desse modo, as áreas ocupadas para novas atividades (CARLOS, 2008, p. 139).

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Partindo do pressuposto de que o uso do espaço produzido na sociedade capitalista é determinado pela lógica da mercadoria, as contradições sociais de classe expressam-se nas contradições do/no espaço. Nesse contexto, Damiani (2008) salienta que a luta de classes passa o ocupar a totalidade do espaço, abarcando o cotidiano. Nesses termos, referenciando Ajzenberg (2005), afirma que as reivindicações apresentadas pela classe trabalhadora tornam-se cada vez mais abrangentes, incluindo a habitação, o ensino, a cultura, o lazer, ou seja,o direito à cidade. Desta dinâmica, resulta que “[...] jamais tenha sido tão forte a exigência de síntese e de totalidade concreta pretendida pela classe operária” (DAMIANI, 2008, p. 39). Desse modo, o caminho das reflexões expressas revela interesses antagônicos de classe, defrontados no processo de produção/apropriação do espaço social direcionado aos interesses econômicos e, por outro lado, o espaço social enquanto condição, meio e produto para a reprodução da vida. Nessa direção analítica, a luta antagônica pelo direcionamento do uso do espaço social explicita-se na compreensão de Lefebvre (1973, p. 98), da seguinte forma: Se o espaço se torna lugar da re-produção (das relações de produção), torna-se também lugar de uma vasta contestação não localizável, difusa, que cria o seu centro às vezes num sítio e logo noutro. Essa contestação não pode desaparecer, pois é o rumor e a sombra prenhe de desejo e de expectativa que acompanha a ocupação do mundo pelo crescimento econômico, pelo mercado e pelo Estado.

Assim sendo, no atual contexto mundial, ao tempo que o espaço objetiva as relações de poder, da mesma forma se torna o lugar da reprodução das relações sociais de produção. Nesse sentido, aponta-se que os rumores e a sombra prenhe da contestação, constituem unidade contraditória à lógica da mercadoria. Daí que a (re)produção do espaço sob o domínio da reprodução capitalista implica a complexificação da questão social, considerando que a lógica da mercadoria se contrapõe à realização da vida humana. Em síntese, verifica-se que o território, enquanto produto, condição e meio da reprodução das relações sociais de produção capitalista, encontra-se encharcado de lutas e contradições de classe. Diante do exposto, torna-se central, no desenvolvimento da ação territorial do Suas, considerar o direcionamento político-econômico que conduz, de forma hegemônica, o processo de produção, apropriação e domínio do espaço socialmente produzido. Explicita-se, assim, a exigência da análise crítica, a fim de identificar e problematizar as múltiplas dimensões inerentes a uma abordagem territorial, especialmente por parte dos sujeitos que pretendem, por meio de determinada política pública social, garantir a efetivação de um conjunto de direitos de cidadania.

4 Desafios da gestão territorial do SUAS: o território usado em questão As reflexões conceituais, até aqui desenvolvidas, possibilitam aprofundar o debate sobre a gestão territorial do Suas e, de forma especial, acerca da categoria território usado, elaborada por Milton Santos. Para tanto, destaca-se inicialmente, a diferença entre políticas territoriais e políticas territorializadas. Enfatiza-se que, nas políticas territoriais, o território é elemento central e definidor do processo de formulação e gestão do conteúdo da política pública em questão. Por sua vez, nas políticas territorializadas, o território é considerado depositário/palco Voltar ao sumário

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Perspectiva territorial na política de assistência social

do desenvolvimento das ações planejadas, independentemente das particularidades das realidades socioterritoriais (AUTÉS apud KOGA, 2003). Assim, a perspectiva territorial, eixo estruturante do novo modelo de gestão do Suas, poderá ser adotada sob diferentes compreensões e distintas direções políticas. Dito isso, importa ressaltar aqui, dois direcionamentos. Em um, a perspectiva territorial é tomada como fator que impulsiona a inovação e a democratização do caráter público da política. A realidade socioterritorial, ou o território usado, é assumido como fator central em seu processo de planejamento, gestão, avaliação e controle social. Nessa perspectiva, é fundamental o protagonismo popular, ou seja, à população usuária (sujeitos coletivos da produção social do território usado) garante-se o seu lugar de direito, a condição de protagonistas. Vale destacar, que a gestão participativa “[...] prevê a existência de um cidadão ativo, qualificado não apenas para controlar de forma passiva a gestão, mas também para interferir nela, direcioná-la, submetê-la a sua vontade” (NOGUEIRA, 2005, p. 146). A gestão participativa não se afasta dos múltiplos conflitos e contradições da realidade socioterritorial. Antes disso, esforça-se para acolher e legitimar, no espaço público, as lutas e reivindicações coletivas apresentadas pela população. Entretanto, também é possível que a direção política do processo de implementação do Suas siga a perspectiva territorializada, compreendendo o território simplesmente como um espaço físico geográfico, subdividido político-administrativamente, a fim de localizar onde será implantado determinado equipamento ou serviço socioassistencial. Nessa perspectiva, o território é esvaziado de sentido e a população permanece como simples demandatária de serviços e benefícios. Outro elemento, a ser considerado no novo desenho de gestão instituído pelo Suas, aponta para sua efetivação de forma intersetorial, ou seja, realiza-se de forma articulada com as demais políticas setoriais, a fim de garantir o atendimento integrado de múltiplas demandas apresentadas pela população, ao mesmo tempo e no mesmo lugar. O pressuposto da territorialidade encontra-se, assim, diretamente associado à intersetorialidade. Nesse ponto, as seguranças socioassistenciais1 devem ser asseguradas por redes estruturadas, conforme as desigualdades socioterritoriais existentes. Assim, A operacionalização da Política de Assistência Social em rede, com base no território, constitui um dos caminhos para superar a fragmentação na prática dessa política. Trabalhar em rede, nessa concepção territorial significa ir além da simples adesão, pois há necessidade de se romper velhos paradigmas, em que as práticas se construíram historicamente pautadas na segmentação, fragmentação e na focalização, e olhar 1 Segundo a PNAS/2004, as seguranças são assim definidas: (a) Segurança de Sobrevivência, alcançada através de benefícios continuados e eventuais que assegurem proteção social básica a idosos e a pessoas com deficiência sem fonte de renda e sustento; a pessoas e famílias vítimas de calamidades e emergências; situações de forte fragilidade pessoal e familiar, em especial às mulheres chefes de família e a seus filhos; (b) Segurança de Convívio, conseguida através de ações, cuidados e serviços que restabeleçam vínculos pessoais, familiares, de vizinhança, de segmento social, mediante a oferta de experiências socioeducativas, lúdicas, socioculturais, desenvolvidas em rede de núcleos socioeducativos e de convivência para os diversos ciclos de vida, suas características e necessidades; (c) Segurança de Acolhida, efetivada através de ações, cuidados, serviços e projetos operados em rede com unidade de porta de entrada destinada a proteger e a recuperar as situações de abandono e isolamento de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos, restaurando sua autonomia, capacidade de convívio e protagonismo mediante a oferta de condições materiais de abrigo, repouso, alimentação, higienização, vestuário e aquisições pessoais desenvolvidas através de acesso a trabalho socioeducativo. Voltar ao sumário

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a realidade, considerando os novos desafios colocados pela dimensão do cotidiano, que se apresenta sob múltiplas formatações, exigindo enfrentamento de forma integrada e articulada (BRASIL/PNAS, 2005, p. 44).

Certamente, responder a tal direcionamento requer a construção de uma nova engenharia política, que garanta a formatação das ações públicas a partir do conteúdo da realidade social. Para tanto, inúmeros são os desafios a serem enfrentados e estratégias a serem desenvolvidas no processo de construção de uma nova cultura política de gestão das políticas públicas. Trata-se, pois, do estabelecimento de nexos orgânicos com as demais políticas, com vistas a superar as estruturas altamente burocráticas e fragmentadas, envolvendo densas relações de poder que historicamente segmentaram as políticas sociais, assim como as submeteram à lógica das políticas econômicas. Com isso, destaca-se a exigência do aprimoramento de estratégias políticas que possam somar forças nessa direção. No enfrentamento desses desafios expressos pela PNAS, o território usado (urbano e rural) expressa, em sua concretude, as reconfiguração postas pelo agravamento da questão social, pelas diferentes formas de precarização e superexploração do trabalho, pelo retraimento de espaços e serviços públicos, assim como pelo desenvolvimento de novas formas de segregação socioterritorial, que redefinem constantemente as desigualdades e a luta pela vida travada cotidianamente pela população. Torna-se necessário, portanto, a apreensão crítica da dinâmica da questão social no movimento da realidade, envolvendo o estudo de processos concretos que articulem sujeitos e territórios, identificando as expressões particulares que assume em cada ‘pedaço’ de território usado, abrangendo a objetividade e subjetividade da vida cotidiana. Nos meandros deste debate, evidencia-se que a questão urbana e a social constituem fenômenos entrelaçados por uma totalidade sócio-historica altamente contraditória e expropriadora, materializada em territórios profundamente segregados e fragmentados, reservando-se à classe trabalhadora empobrecida o desenvolvimento de múltiplas estratégias de sobrevivência através do mercado e da cidade informal. Diante desse contexto, impossível desassociar as particularidades que caracterizam as frações de territórios precarizados da totalidade socioespacial que os reproduzem. Em outros termos, restringir a análise sobre as frações de territórios, ocupado pela população usuária da Assistência Social, desconsiderando-se as conexões e relações que estabelecem com o processo geral de reprodução do espaço social capitalista, significa optar por uma abordagem territorial altamente funcional à lógica segregativa de produção social do espaço capitalista. Diante do exposto, importa destacar que, facilmente, o senso comum presente na sociedade associa a conceituação de território, à ideia de espaço físico geográfico. Em sua produção clássica, A Geografia – Isso Serve, em Primeiro Lugar, para Fazer a Guerra, publicada em 1976, Lacoste (2007, p. 33), denuncia a instrumentalização político-ideológica da geografia desenvolvida pelos estados-maiores. Nas palavras do autor, Essa forma socialmente dominante da geografia escolar e universitária, na medida em que ela enuncia uma nomenclatura e que inculca elementos de conhecimento enumerados sem ligação entre si (o relevo – o clima – a vegetação – a população...) tem o resultado não só de mascarar a trama política de tudo aquilo que se refere ao espaço Voltar ao sumário

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Perspectiva territorial na política de assistência social

[...]. A geografia dos professores funciona, até certo ponto, como uma tela de fumaça que permite dissimular, aos olhos de todos, a eficácia das estratégias políticas, militares, mas também estratégias econômicas e sociais que uma outra geografia permite a alguns elaborar.

Da afirmativa de Lacoste, importa destacar que, dependendo da perspectiva teórico-metodológica adotada acerca do espaço social ou território, é possível dissimular ou, contrariamente, desvendar as diferentes estratégias socioeconômicas e político-culturais das relações socioespaciais. Desse modo, chama-se a atenção para a centralidade do debate crítico em torno da gestão territorial do Suas, da categoria território, e, de forma especial, da categoria ‘território usado’, construída por Milton Santos. Dessa maneira, defende-se que a perspectiva assentada nos referenciais da geografia crítica faz toda a diferença no desenvolvimento da abordagem territorial prevista pela PNAS e NOB-Suas. Nesse campo de análise, compreende-se que a abordagem territorial da PNAS, referenciada na geografia crítica, contém elementos capazes de potencializar e inovar o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento a inúmeros constrangimentos vividos pela população usuária, decorrentes do atual modelo capitalista de produção social do espaço. Assim, os processos sociais com os quais a PNAS depara-se e é chamada a intervir, passam a ser compreendidos como processos socioterritoriais. Dito de outra forma, a incorporação da dimensão do território requer constante revisão histórica, especialmente considerando que, É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele o objeto de análise social. [...] O que ele tem de permanente é ser nosso quadro de vida. Seu entendimento e, pois, fundamental para afastar o risco da alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco da renúncia ao futuro. (SANTOS, 2008e, p. 137).

Na perspectiva anunciada, o extenso mosaico socioterritorial brasileiro, altamente desigual e encharcado de contradições, apresenta-se como resultado do processo histórico em seu permanente fazer-se, assim como base material e social para futuras ações humanas. Portanto, na perspectiva anunciada, toda ação humana realiza-se em determinado espaço. Conclui-se que não existe espaço social sem a ação humana (trabalho), do mesmo modo que não há ação humana (trabalho) fora do espaço. O território usado deve ser compreendido a partir da atuação de um conjunto de forças sócio-históricas que o faz heterogêneo, desigual e combinado. Com esse direcionamento, a incorporação da perspectiva territorial, pelo Suas, aponta necessariamente para uma dimensão político-metodológica, no sentido da utilização de referenciais capazes de identificar as múltiplas desigualdades e contradições socioterritoriais, de forma que o conjunto das ações públicas desenvolvidas correspondam à dinâmica do espaço habitado pela população usuária. Daqui se depreende que o espaço é produção concreta da ação humana, decorrente da busca incessante pela satisfação de suas necessidades. Infere-se que a adoção da categoria território usado revela-se como campo privilegiado da ação humana, considerando, especialmente, que é por meio dele que se revela a estrutura da sociedade, assim como a complexidade das relações implicadas em seu uso. Essa perspectiva crítica opõe-se às reflexões e práticas fragmentadoras

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I. de Andrade

que rompem com a totalidade e a processualidade social existente entre o lugar e o mundo. Nesse movimento dialético, “o lugar não é um fragmento, é a própria totalidade em movimento que, através do evento, se afirma e se nega, modelando um subespaço global” (SILVEIRA, 1993, p. 204). Com efeito, o movimento histórico da sociedade é compreendido como permanente fazer-se no espaço e pelo espaço. A partir de tais afirmativas, avalia-se que a definição de “território vulnerável”, realizado pela PNAS, não expressa o conteúdo e o direcionamento dado por Milton Santos ao conceito de território usado. Portanto, torna-se urgente a problematização acerca da definição e compreensão dos ‘territórios vulneráveis’, assim como o aprofundamento do debate acerca da concepção de território a partir da geografia crítica brasileira. Com efeito, avalia-se que território usado contém inúmeras potencialidades capazes de qualificar a ação política dos sujeitos envolvidos no fazer da olítica de Assistência Social. Sob esse prisma, destaca-se que território [...] refere-se ao território usado, o território encharcado de vida, de resistências, de sonhos, produzido cotidianamente por sujeitos que, através das relações sociais estabelecidas, expressam, na concretude do território, as particularidades do conteúdo da sociedade inteira, com suas múltiplas contradições. (ANDRADE, 2012, p. 175).

Com efeito, avalia-se que a reprodução de estratégias de afastamento das contradições socioespaciais, separando-se, territorialmente, as desigualdades e os conflitos sociais, subtrai-se a potencialidade da produção do espaço a partir das contradições concretas existentes. Por certo, nesse enfoque reside especial desafio no sentido do Cras afirmar-se em espaço público privilegiado para legitimação de movimentos de contestações a essa ordem segregativa e reprodutora da precarização das condições de vida de imensos contingentes populacionais. Em suma, requer-se a construção das estratégias políticas e de condições objetivas, para que o conjunto dos trabalhadores sociais da olítica de Assistência Social possa atuar ativamente e dar concretude aos direitos socais, aliando-os ao adensamento político-organizativo da população usuária. Ademais, acredita-se que somente processos socialmente organizados e politicamente orientados, com leitura crítica da realidade vivida, potencializará a ampliação do protagonismo popular, o aprofundamento da gestão democrática da política e a apropriação do território socialmente produzido. Infere-se que tais afirmativas revelam potencialidades possíveis à produção de novas descobertas e novas racionalidades a serem desencadeadas pela olítica de Assistência Social, numa perspectiva territorial crítica. Portanto, faz-se urgente a superação da visão gerencial caracterizada pela preocupação em definir os recortes administrativos estabelecendo as fronteiras dos territórios da precariedade, a fim de localizar as famílias usuárias, os equipamentos e serviços da olítica de Assistência Social. Sem negar a existência da dimensão político-administrativa necessária ao processo de gestão do conteúdo da política nas diferentes escalas territoriais, torna-se essencial, estabelecer as devidas conexões entre o local e o global; a ordem próxima e a ordem distante; os territórios precários e os territórios produtores da precariedade, enfatizando a unidade contraditória e em permanente movimento.

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Perspectiva territorial na política de assistência social

5 Considerações finais Os elementos abordados visam contribuir para o adensamento teórico e político acerca da perspectiva territorial do Suas, considerando o processo de produção social do espaço nos marcos da sociedade urbanizada, globalizada e profundamente segregadora e desigual. Segundo esses parâmetros, a Assistência Social integra o universo das relações contraditórias estabelecidas entre Estado e sociedade civil, no âmbito dos conflitos e da luta de classes que caracteriza o processo de produção e reprodução do capitalismo, recusando-se, assim, uma perspectiva restrita ou unilateral. Nessa lógica argumentativa, torna-se primordial, para a efetivação da Política da Assistência Social numa perspectiva territorial, a apreensão da categoria produção social do espaço, bem como a dimensão crítica-dialética da categoria território usado. E essa apreensão só é possível para aqueles que lançam mão de instrumentos referenciados no método crítico. Por conseguinte, o fazer-se da sociedade capitalista acontece no mesmo ato da produção de seu espaço, constituindo, assim, uma unidade indissolúvel e altamente contraditória. Com esse viés analítico, supera-se a compreensão de território como espaço físico geográfico, e aproxima do movimento no território usado, contribuindo assim para a insurgência do novo, do que ainda não se objetivou, mas já existe como potência a ser realizada. Desse modo, reafirma-se a importância do modelo de gestão proposto pela PNAS/Suas avançar no fortalecimento de uma opção clara pela construção de nova cultura pública, radicalmente democrática, universalista e asseguradora de direitos sociais. Nesses termos, pensar o território como condição de produção da vida e disputa de nova ordem societária, significa dar sentido ao conjunto das ações da Política de Assistência Social como espaço contraditório na luta pela apropriação democrática do espaço social por todos aqueles que o constroem e habitam.

Referênciais ANDRADE, Iraci de. Território e assistência social: uma análise do serviço social a partir da produção social do espaço. Tese (Doutorado em Serviço Social) - Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Lei Orgânica da Assistência Social. Brasília, nov. 2004. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Norma Operacional Básica - NOB/Suas, Brasília, nov. de 2006a. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais. Resolução n. 109, de 11 de novembro de 2009. Brasília, 2009c. Publicada no Diário Oficial da União, em 25 de novembro de 2009. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. Secretaria Nacional de Assistência Social. Política Nacional de Assistência Social - PNAS/2004 e Norma Operacional Básica - NOB/Suas, Brasília, nov. 2005b. CARLOS, Ana Fani A. A (re)produção do espaço urbano. São Paulo: Edusp, 2008. ______; CAMPOS, Andrelino. Metrópoles em mutação: dinâmicas territoriais, relações de poder e vida coletiva. Rio de Janeiro: Revan: Faperj, 2008.

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I. de Andrade

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PARTE V RELATOS DE EXPERIÊNCIA – ARTICULAÇÃO PARA O DESENVOLVIMENTO: PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS E MOVIMENTOS SOCIAIS


S U M Á R I O

ARTICULAÇÃO TERRITORIAL E PROGRAMAS GOVERNAMENTAIS: CRIAÇÃO E FUNCIONAMENTO DOS NÚCLEOS DE EXTENSÃO DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL - NEDETS Enise Barth Teixeira* James Luiz Berto**

1 Introdução A Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) através da chamada pública da Coordenação do Programa de Pesquisa em Ciências Sociais Aplicadas e Educação (COSAE)/Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) 2013 assumiu a condução de dois projetos que envolvem Territórios Rurais e da Cidadania em Santa Catarina e no Paraná. O projeto intitulado “Consolidação da abordagem territorial como estratégia de desenvolvimento rural sustentável para Santa Catarina”, envolve oito Territórios Rurais (Alto Uruguai, Alto Vale do Itajaí, Alto Vale do Rio do Peixe, Extremo Oeste, Extremo Sul, Oeste Catarinense, Serra Catarinense e Serra Mar –) e um Território da Cidadania (Planalto Norte) no estado de Santa Catarina. Por sua vez, o projeto “Governança na perspectiva da gestão social de territórios da cidadania de Santa Catarina e Paraná: uma estratégia para o desenvolvimento regional sustentável e solidário” contempla dois Territórios de Santa Catarina (Planalto Catarinense e Meio Oeste do Contestado) e dois Territórios do Paraná (Paraná Centro e Cantuquiriguaçu). A contratação desses projetos se desenvolve dentro de uma nova estratégia de apoio aos Colegiados Territoriais, que a princípio teve duas principais motivações. Em primeiro lugar, a dificuldade em manter a continuidade do apoio através dos projetos com ONGs, devido à regulação existente, e por envolver efetivamente as Instituições de ensino públicas (Universidades e Institutos) no apoio aos Colegiados Territoriais. A abordagem territorial, dentro dessa política, apresenta uma visão integradora de espaços, atores sociais, agentes e políticas públicas, tem como pano de fundo a redução de desigualdades, o respeito à diversidade, a solidariedade, a justiça social. Dessa forma, essa política de desenvolvimento territorial busca viabilizar a inclusão. Não é qualquer desenvolvimento que interessa, e sim um desenvolvimento que promova a superação das desigualdades1. *

Doutora em Engenharia de Produção. Professora da Universidade da Fronteira Sul (UFFS). Bolsista de Extensão do CNPq/MDA..E-mail: <enise.teixeira@uffs.edu.br>. ** Doutor em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Professor da Universidade da Fronteira Sul (UFFS). Bolsista de Extensão do CNPq/MDA. E-mail: <james.berto@uffs.edu.br>. 1 Conforme o documento Orientações Gerais para Elaboração de Projeto CNPq/MDA, 2013. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-15

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Articulação territorial e programas governamentais…

O presente artigo traz alguns elementos que serviram de base para a construção do programa de apoio aos Colegiados Territoriais através dos Núcleos de Desenvolvimento Territorial (NEDETs), alguns resultados alcançados na sua execução (parcial) e desafios que são percebidos. Os itens 2 a 4 são baseados nos materiais orientadores propostos pelo MDA para construção dos projetos que são as Orientações Gerais para Elaboração de Projeto CNPQ/MDA 2013 (2013) e Orientações Operacionais, Atribuições de cada Projeto e da SDT, Principais Atividades e Perfil da Equipe Técnica do Núcleo de Extensão em Desenvolvimento Territorial (2013).

2 A Política de Desenvolvimento Territorial A Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), órgão integrante do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA), vem desenvolvendo desde 2003 uma estratégia com o objetivo de promover e apoiar as iniciativas da sociedade civil e dos poderes públicos nos territórios rurais, visando o desenvolvimento sustentável, com redução das desigualdades regionais e sociais e integração das dinâmicas territoriais ao processo de desenvolvimento nacional. Na perspectiva da política governamental o território constitui-se como espaço socialmente organizado, onde se mobilizam os atores regionais em prol do seu projeto de desenvolvimento. O mesmo é um espaço adequado para: a gestão social e descentralizada de políticas públicas; a execução integrada dessas políticas; a articulação entre agências e órgão públicos dos diferentes níveis (municipal, estadual e federal) em um ambiente horizontal; a articulação de diferentes atores sociais, fortalecendo uma cultura de participação social e de discussão na esfera territorial. No âmbito do Plano Plurianual (PPA) 2012-2015, estas ações foram estruturadas no Programa 2029 Desenvolvimento Regional, Territorial Sustentável e Economia Solidária, com base em dois objetivos principais: a. Consolidar um modelo de governança territorial baseado na gestão social, com o compartilhamento, entre poder público e sociedade civil organizada, da formulação, gestão e controle das políticas públicas, com especial atenção à superação das desigualdades de renda, gênero, raça, etnia e geração, consolidando a abordagem territorial como estratégia de desenvolvimento sustentável para o Brasil Rural; b. Fortalecer as políticas voltadas para a inclusão produtiva e a consolidação de redes socioeconômicas da agricultura familiar no âmbito dos territórios rurais, considerando as práticas da economia solidária, com especial atenção à população rural em condição de extrema pobreza.

Para apoiar o desenvolvimento sustentável dos territórios rurais, a estratégia implementada pela SDT/MDA está estruturada a partir de três elementos fundamentais: o território (espaço e sociedade), a institucionalidade territorial (participação e representatividade) e a visão de futuro (um plano territorial de desenvolvimento). Os Colegiados Territoriais são arranjos institucionais dos quais se espera que assumam a gestão de um conjunto cada vez mais diversificado e amplo de iniciativas territoriais que concretizem os procedimentos necessários à promoção do desenvolvimento, por intermédio de processos de organização, capacitação, planejamento, articulação institucional e gestão social de iniciativas que enfrentem as restrições

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E. B. Teixeira, J. L. Berto

ao desenvolvimento e estruturem instrumentos de políticas públicas que sejam fundamentais para destravar as soluções de desenvolvimento sustentável do território. O futuro da política de desenvolvimento territorial exige um significativo avanço na integração das políticas para o Brasil Rural e uma consequente ampliação do universo de ações governamentais, que adotam a abordagem territorial. Isso requer o fortalecimento da articulação institucional entre os órgãos federais e os entes federados, e a consolidação da participação social nos territórios. Neste sentido, os desafios desta política estão também relacionados com o apoio contínuo às instâncias colegiadas. As ações de extensão universitária, focadas no apoio técnico, assessoramento e acompanhamento a estas instâncias, têm enorme potencial de qualificá-las em suas atribuições de Gestão Social de políticas públicas, frente a descentralização destas instituições, por meio da criação de campus avançados das Universidades Federais e da criação dos Institutos Federais de Ensino no interior do país. Em 2009, a Secretaria de Desenvolvimento Territorial, em parceria com o CNPQ, realizou a primeira iniciativa de integração de universidades federais e estaduais por meio de Edital conjunto para apoiar a constituição e execução do Projeto Células de Acompanhamento e Avaliação2. Esta iniciativa teve por objetivo articular institucionalmente e operacionalmente as Universidades, os Territórios Rurais e a SDT para o estabelecimento do Sistema de Gestão Estratégica do Programa Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais, estimulando o desenvolvimento dos processos de acompanhamento, avaliação e informação nos territórios por meio de Células de Acompanhamento e Informação, viabilizando a geração e sistematização de conhecimentos, o desenvolvimento de capacidades humanas e organizacionais, o desenvolvimento dos territórios rurais e o aperfeiçoamento da gestão e dos investimentos públicos. Dentre as ações de extensão realizadas, os principais resultados obtidos apontam para a uma vinculação das equipes acadêmicas à dinâmica da política pública por meio de um sistema de monitoramento do desempenho dos colegiados e das ações territoriais; criação de laços institucionais entre as equipes acadêmicas e as ações dos atores territoriais a ela relacionados por meio de entrevistas, participação em reuniões das instâncias colegiadas, seminários, palestras, atividades pontuais de assessoramento, etc; produção e disponibilização aos colegiados, de diagnósticos sobre a situação de desenvolvimento do Território, contribuindo para que o mesmo qualifique suas ações, produção de recomendações que podem contribuir para a qualificação e implementação dos Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS), dentre outros resultados. O objetivo geral dos Projetos de Extensão de Desenvolvimento Territorial é: contribuir para a consolidação da abordagem territorial como estratégia de desenvolvimento sustentável para o Brasil Rural e da articulação das políticas públicas integrantes da matriz do Programa Territórios da Cidadania, por meio da articulação institucional e operacional de Universidades Públicas Federais e Estaduais, dos Institutos Federais de Educação Tecnológica, das instâncias de gestão social dos Territórios Rurais e da Secretaria de Desenvolvimento Territorial. 2 Edital MDA/SDT/CNPq – Gestão de Territórios Rurais nº 5/2009. Voltar ao sumário

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Articulação territorial e programas governamentais…

Quanto aos objetivos específicos se destacam os seguintes:

I. À produção de dados, informações e conhecimentos com vistas á elaboração de pesquisas: 1. Realizar o levantamento de dados sobre o Colegiado Territorial, incluindo: (i) composição, (ii) funcionamento; (iii) agenda; (iv) especificidades dos segmentos sociais priorizados; 2. Realizar o levantamento de projetos apoiados pela SDT/MDA nos Territórios; 3. Realizar o levantamento de políticas públicas efetivadas no Território, com ênfase nas ações que compõem a matriz do Programa Territórios da Cidadania; 4. Realizar o levantamento, acompanhamento e avaliação da evolução dos indicadores de desenvolvimento territorial trabalhados pelo Projeto Células; 5. Levantar dados relacionados com a ação dos Colegiados Territoriais e projetos de inclusão produtiva e agricultura familiar, com ênfase nos seguintes temas: crédito, comercialização, novas tecnologias produtivas e assistência técnica. II. À difusão de métodos e tecnologias sociais voltadas para a gestão social: 1. Qualificar, conjuntamente com o Colegiado Territorial e em diálogo com a SDT, metodologia de planejamento visando à criação da Matriz de Gestão Territorial do Plano Safra, realizando a priorização de ações e projetos para o desenvolvimento territorial sustentável e tendo como base os Planos Territoriais de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS), os Planos Territoriais de Cadeias Produtivas e Planos Safras Territoriais; 2. Estabelecer mecanismos e metodologias de acompanhamento e avaliação da implementação de projetos de inclusão produtiva, com ênfase nos apoiados diretamente pelo MDA, tais como, PROINF, Pronaf, ATER, bem como no PAA e PNAE; 3. Qualificar metodologia para implementação e articulação de políticas públicas integrantes da matriz do Programa Territórios da Cidadania – PTC, em suas diferentes esferas; 4. Difusão de conhecimentos III. Ao monitoramento, avaliação e assessoria técnica aos Colegiados Territoriais: 1. Fortalecer os Colegiados Territoriais por meio de ações de assessoria técnica que qualifiquem a organização e funcionamento das suas instâncias; 2. Implementação de mecanismos que permitam ao Colegiado Territorial e às suas instâncias o monitoramento de suas ações e procedimentos, da implementação e dos resultados de projetos de inclusão produtiva e das demais políticas públicas incidentes no território; 3. Subsidiar os Colegiados Territoriais com os resultados do acompanhamento, monitoramento e avaliação para o aperfeiçoamento do processo de gestão social; 4. Fortalecer e qualificar processos de comunicação do território com a SDT e demais parceiros; 5. Proporcionar efetividade à implementação de políticas públicas para a Agricultura Familiar, incluindo esta categoria social (conforme estabelecido na Lei nº 11.326, de 24/07/2006) nas dinâmicas de produção e comercialização, e contribuindo para sua articulação com ações do Programa Territórios da Cidadania.

3 Os Núcleos de Desenvolvimento Territorial (NEDETs) Os NEDETs são constituídos por um Professor Coordenador de Núcleo, um Assessor Territorial para Gestão Social, um Assessor Territorial para Inclusão Produtiva e um Estudante de Graduação. Voltar ao sumário

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E. B. Teixeira, J. L. Berto

As atividades a serem realizadas pelos núcleos são:

◆◆ Registrar e acompanhar, a partir de sistema específico, as informações sobre a composição, funcionamento e agenda do Colegiado Territorial e sobre a execução de projetos apoiados pela SDT/MDA, visando subsidiar os Colegiados e a SDT com resultados do acompanhamento, monitoramento e avaliação para o aperfeiçoamento do processo de gestão da estratégia de desenvolvimento territorial; ◆◆ Assessorar os Colegiados Territoriais que integram o Programa Territórios da Cidadania – PTC na implementação de metodologia que visa a efetivação das ações e articulação com instâncias municipais, estaduais e federais; ◆◆ Assessorar os Colegiados na implementação de metodologia para elaboração, articulação e monitoramento da Matriz de Gestão Territorial do Plano Safra; ◆◆ Realizar levantamento de informações, visando o acompanhamento e avaliação da execução das ações propostas e dos projetos apoiados pela SDT/MDA no território; ◆◆ Realizar, em sintonia com as ações propostas pela SDT, as seguintes reuniões da institucionalidade territorial: -- 03 reuniões anuais (06 reuniões no total do projeto) de Núcleos Diretivos e/ou Comitês Setoriais e/ou Câmaras Técnicas do Colegiado Territorial; -- 02 reuniões anuais (04 reuniões no total do projeto) das plenárias dos colegiados e suas instâncias. ◆◆ Apoiar atividades de pesquisa sobre temas relacionados à articulação e implementação de políticas públicas de desenvolvimento rural e inclusão produtiva, com abordagem territorial.

4 Resultados, avanços e aplicações esperados Com a execução das ações propostas nos dois projetos de extensão a Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), objetiva alcançar os seguintes resultados: a. Geração de informações e conhecimentos disponibilizados como insumo para as atividades de ensino, pesquisa e extensão; b. Incremento de capacidade de Gestão Social dos Colegiados Territoriais e suas instâncias; c. Qualificação e integração do planejamento territorial às diversas instâncias e redes de implementação de gestão das políticas públicas; d. Ampliação da efetividade da implementação das políticas públicas que contribuam para o desenvolvimento territorial constantes do Programa Territórios da Cidadania; e. Integração da UFFS ao processo de Desenvolvimento territorial dos territórios da cidadania; f. Articulação de outras Universidades e instituições de pesquisa das regiões de atuação deste projeto com a UFFS e integração ao processo de desenvolvimento territorial, cumprindo papel relevante na sua indução; g. Divulgação de trabalhos científicos com os resultados da parceria por meio de publicações realizadas pela SDT/MDA.

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Articulação territorial e programas governamentais…

5 Implementação dos Projetos: principias atividades desenvolvidas e principais desafios 5.1 Atividades Desenvolvidas Na implementação da nova metodologia foi estabelecida uma estratégia de descentralizar as coordenações dos NEDETs de forma a aproximar essas dos Colegiados e dos assessores. Atualmente, nas coordenações têm-se professores da UFFS (5), da UFSC (2), de Institutos Federais (3), de Universidade Estadual (1), e de Universidades Comunitárias (2). Essa estratégia tem se mostrado acertada, visto que a maior proximidade do Coordenador com o território, no geral tem trazido melhores resultados devido a maior facilidade que o Coordenador tem em perceber a realidade do território e dos atores locais e também devido a maior proximidade com os assessores. Inicialmente fez-se necessário conhecer as realidades dos territórios, das suas organizações e da história do desenvolvimento dessa política nesses territórios. Evidenciaram-se diferentes estágios de atuação dos territórios, sendo que para alguns o apoio é efetivamente na discussão e ampliação das ações dentro da política dos territórios, enquanto em outros é preciso rearticular o colegiado, fruto de “altos e baixos” da política, ou mesmo dos conflitos internos. As principais atividades realizadas neste período de execução dos projetos foram: 1. Diagnóstico do funcionamento dos colegiados. 2. Acompanhamento do Plano Safra: -- PROINF - identificação dos projetos implementados nos Territórios, identificação da situação de execução, ações no sentido de auxiliar na implementação desses projetos nos Territórios; Discussão e encaminhamento dos PROINF em 2014 e 2015; -- Microcrédito – Identificação da operação do microcrédito nos Territórios e de demanda; -- ATER - diagnóstico de ATER existentes nos Territórios (com destaque para ATER pública) a fim de possibilitar a gestão social e subsidiar a formatação de novas propostas de ATER pública; -- PNAE e PAA – identificação da execução dessas políticas públicas nos Territórios e a participação dos agricultores e suas organizações; 3. Organização e realização de plenárias, reuniões do núcleo dirigente, câmaras técnicas foram realizadas, além de seminários temáticos nos territórios com destaque para a questão da comercialização; 4. Apoio às conferências de segurança alimentar, juventude e de ATER, esta última em curso; 5. A construção ou o resgate dos regimentos dos Colegiados.

5.2 Principais Desafios No primeiro ano de funcionamento dos NEDETs foram identificados os seguintes desafios:

◆◆ Nessa busca da articulação dos colegiados, independente da fase que os mesmos se encontravam nota-se um constante questionamento do papel do colegiado, ou seja, diante de tantos outros fóruns porque o colegiado territorial se constituiria num espaço “privilegiado” de discussão e promoção do desenvolvimento?

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E. B. Teixeira, J. L. Berto

Um dos grandes desafios na articulação das Políticas Públicas nos Territórios é a consolidação do Colegiado como um espaço de diálogo dos diferentes atores sociais em relação ao desenvolvimento sustentável e inclusivo. O desafio se dá em duas linhas: uma delas é em relação aos atores locais, tanto do poder público, como da sociedade civil, de construírem o Colegiado Territorial como um espaço onde é possível, a partir de objetivos comuns, construir um projeto de desenvolvimento e buscar coletivamente as condições para sua implementação. A outra é o empoderamento do colegiado a partir de ações do Governo Federal que valorizarem a participação do Colegiado Territorial na condução das políticas públicas nos Territórios. As duas não são excludentes, muito pelo contrário, necessitam ocorrer simultaneamente, pois uma sinalização efetiva do Governo Federal nesse sentido despertaria os atores locais a valorizarem o Colegiado Territorial, assim como, o Governo terá muito mais disposição em redesenhar as suas políticas caso os Colegiados se consolidem. ◆◆ Em relação ao PROINF: tem se observado que os projetos apoiados pelo têm privilegiado atores mais articulados, fortalecendo o crescimento das atividades já existentes e não necessariamente se caracterizando como estratégia de desenvolvimento do território mais inclusivo. ◆◆ As chamadas de ATER são outro exemplo de políticas que poderiam estar articuladas com a Política Territorial, porém a discussão e execução passam longe das discussões dos Colegiados (e dessa forma dos projetos de desenvolvimento ali elaborados) e nem dialoga com os problemas do território, pois possuem outra configuração geográfica, que dificulta sua própria gestão. ◆◆ O PAA e PNAE são programas que tem construído uma forte interação com a política territorial e o Colegiado. Estas políticas têm sido fundamentais para o fortalecimento da inclusão produtiva, mas ainda não dá autonomia e emancipação aos agricultores, tornando-os dependentes, insatisfeitos e, por vezes, acomodados a uma alternativa de renda e que em alguns casos é insuficiente.

6 Considerações finais Os projetos de extensão de desenvolvimento territorial foram concebidos pela SDT/MDA, cabendo à UFFS a operacionalização dos mesmos e a constituição das condições internas para a criação e funcionamento dos NEDETs, que são as estruturas de apoio aos colegiados territoriais. Os Territórios apresentam uma grande diversidade em termos de organização do Colegiado e da participação dos atores locais, refletindo diretamente no trabalho desenvolvido pelos NEDETs. Enquanto alguns territórios avançam efetivamente na construção de ações para promoção do desenvolvimento, outros têm dificuldades na efetivação do colegiado. Entre os principais desafios enfrentados pelos NEDETS estão o constante questionamento em relação ao papel do colegiado e a política de desenvolvimento territorial implementada pelo Governo Federal e o fato das políticas públicas, inclusive propostas pelo MDA, não apresentarem sintonia com a Política Territorial, o que enfraquece a articulação dos atores territoriais.

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Articulação territorial e programas governamentais…

Referências BRASIL, Ministério da Integração Nacional. Programa 2029: Desenvolvimento Regional, Territorial Sustentável e Economia Solidária. [2015?]. Disponível em: <http://www.mi.gov.br/pt/c/document_library/get_file?uuid=bac7d393-9927-4580-ad96-9fe3e68066f0>. Acesso em: 20 nov. 2015. BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Agrário. Orientações gerais para elaboração de projeto. CNPq/MDA 2013. [Anexo recebido via e-mail]. 2013. BRASIL. Ministério de Desenvolvimento Agrário. Orientações operacionais, atribuições de cada projeto e da SDT, principais atividades e perfil da equipe técnica do núcleo de extensão em desenvolvimento territorial. [Anexo recebido via e-mail]. 2013.

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S U M Á R I O

O PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL - TERRITÓRIOS DA CIDADANIA: A EXPERIÊNCIA DO PLANALTO NORTE CATARINENSE Arnaldo Luiz Milan* Dunia Comerlatto**

1 Sobre a Política de Desenvolvimento Territorial Desde 2003, o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), por meio da Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT), tem implementado estratégias e ações visando a promoção e apoio às iniciativas da sociedade civil e dos poderes públicos na busca de reduzir desigualdades e integrar dinâmicas territoriais ao processo de desenvolvimento nacional em territórios rurais. A partir de abordagem territorial, o “Brasil rural” - concebido como espaço de produção econômica, convívio social e de relação com a natureza - busca superar a falsa dicotomia entre urbano e rural ao valorizar o patrimônio natural e cultural de comunidades. Com isso, reafirma identidades, valorizando “ativos” próprios de regiões e territórios, bem como os atores que neles vivem, se identificam e se mobilizam coletivamente. Constituído por municípios com características semelhantes, o território se torna um espaço socialmente organizado a fim de alcançar um projeto de desenvolvimento. As características de um território como unidade de planejamento se constituem pela: (1) gestão social e descentralizada das políticas públicas de desenvolvimento rural; (2) execução de forma integrada dessas políticas; (3) articulação entre as agências e órgãos de diferentes instâncias do poder público nos níveis federal, estadual e municipal, em um ambiente horizontal, fortalecendo o pacto federativo; (4) articulação de diferentes atores sociais, fortalecendo a cultura de participação social e elevando o patamar de discussão do estrito interesse local, para esfera de maior complexidade territorial; (5) integração de órgãos públicos.

1.1 Concepção e histórico A Política de Desenvolvimento Territorial no Brasil foi instituída em 2003 sob o lema: “Rural é espaço de vida”, no governo do então presidente Luiz Inácio Lula da *

Graduado em Ciências Econômicas. Assessor de Gestão Social (ATGS) do Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) no Projeto “Consolidação da Abordagem Territorial em Santa Catarina.”. E-mail: <milan.territorio@gmail.com>. ** Doutora em Serviço Social . Docente do Programa de Mestrado de Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). E-mail: <dunia@unochapeco.edu.br>. http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-16 http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7

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O programa de desenvolvimento territorial - territórios da cidadania…

Silva. Na esteira dessa política, cria-se em 2008 o Programa Territórios da Cidadania. No Brasil, os territórios da Cidadania abrangem: 1.852 municípios brasileiros e 42,4 milhões de habitantes. Desse total de habitantes, 13,1 milhões pertencem à população rural, atingindo 46% do total do país, sendo: 1,9 milhões de famílias agricultoras, 525,1 mil famílias assentados pela Reforma Agrária, 810 Comunidades Quilombolas (66% do total do país), 317 Terras Indígenas (52% do total do País) e, 210,5 mil famílias de pescadores (54% do total do país). A Figura 1 mostra essa distribuição. Figura 1: Distribuição dos 120 Territórios da Cidadania no Brasil, 2014

Fonte: Portal Territórios da Cidadania/MDA.

Em Santa Catarina, conforme mostra a Figura 2, os territórios somam 11, sendo sendo dois Territórios da Cidadania, na abrangência do Meio Oeste Contestado e Planalto Norte Catarinense e, nove de Identidade Rural: Oeste Catarinense; Alto Uruguai; Planalto Catarinense; Alto Vale do Rio do Peixe; Serra Catarinense; Alto Vale do Itajaí; Extremo Oeste; Serra Mar; e, Extremo Sul. Observa-se que há duas regiões que ainda não estão demarcadas como territórios. Figura 2: Distribuição dos 11 Territórios da Cidadania do Estado de Santa Catarina

Fonte: DFDA/SC; MDA, 2014. Voltar ao sumário

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A. L. Milan, D. Comerlatto

2 O Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense: identificação, organização e institucionalidade O Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense é composto por 14 municípios: Campo Alegre; São Bento do Sul; Rio Negrinho; Mafra; Itaiópolis; Papanduva; Monte Castelo; Major Vieira; Três Barras; Canoinhas; Bela Vista do Toldo; Irineópolis; Porto União; e, Matos Costa. A Figura 3 mostra a localização geográfica desses municípios na abrangência desse Território. Figura 3: Localização Geográfica dos municípios de abrangência do Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense

Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000, 2010 e Contagem da População 2007 (PTDRS 2011-2016).

O Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense composto por seus 14 municípios, ocupa uma área total de 10.439 km², o que representa 10,9% da superfície de Santa Catarina. A população desse Território em 2010 era de 356.551 habitantes (6,3% da população estadual), sendo que entre 2000 e 2010 Santa Catarina teve um crescimento Populacional de 16,7% e a população do Território cresceu apenas 6,38% nesse período intercensitário. Dois municípios apresentaram crescimento populacional negativo entre 2000 e 2010: Matos Costa (-11,7%) e Monte Castelo (-0,1%). Os demais, foram positivos: São Bento do Sul (14,7%), Major Vieira (8,3%) e Irineópolis (7,4%) sendo os que registraram as maiores taxas de crescimento populacional. Dos 14 municípios, apenas quatro possuem menos de 10.000 habitantes: Matos Costa (2,829), Bela Vista do Toldo (5.974), Major Vieira (7.478) e Monte Castelo (8.341). Três outros municípios tem mais de 50.000 habitantes, são eles: São Bento do Sul (75.047), Canoinhas (52.754) e Mafra (52.622), concentrando 50,6% da população do Território. Ressalta-se que o município de São Bento do Sul concentra 21% (um quinto) da população de todo o Território, conforme a Tabela 1. Voltar ao sumário

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O programa de desenvolvimento territorial - territórios da cidadania…

Tabela 01: Território Planalto Norte, população total e variação percentual por município: 200, 2007 e 2010

Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000, 2010 e Contagem da População 2007 (PTDRS 2011-2016).

A Tabela 2 abaixo mostra que a maioria dos municípios do Território Planalto Norte teve decréscimo da população rural no período intercensitário 2000-2010 exceto Irineópolis (2,3%) e Bela Vista do Toldo (0,1%) que registraram pequena elevação da população rural no período. Dentre os 14 municípios, quatro registraram decréscimo percentual superior ao valor do Território (-6%) com expressiva perda de população em Rio Negrinho (- 30,8%) e Matos Costa (29,6%). Essa diminuição da população rural do referido Território se encontra inferior a do estado (-12%) e da região Sul (-14%) e no mesmo patamar da variação do Brasil (- 6%). Tabela 02: Território Planalto Norte: população total, urbana e rural e percentual de população urbana e rural

Fonte: IBGE. Censo Demográfico 2000, 2010 e Contagem da População 2007 (PTDRS 2011-2016).

O Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense foi criado em 2009 e no período até 2011 construiu seu segundo – Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) e de lá para cá adotou sua logomarca de identificação, a saber:

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A. L. Milan, D. Comerlatto

Figura 4: Logomarca do Território Planalto Norte Catarinense

Fonte: PTDRS 2011-2016.

A visão de futuro que o grupo de entidades participantes do Território acima referido estabeleceu imprime ações e metas projetadas para um espaço de cinco anos. Essa projeção, com o intuito de viabilizar a agricultura familiar por meio de uma nova matriz produtiva - baseada em agricultura ambiental e economicamente sustentável e voltada para a soberania alimentar das famílias e para o mercado, organizando-se em redes cooperativas e para proporcionar acesso à educação, saúde, lazer e qualidade de vida ao meio rural. Sua missão está em fortalecer o exercício da gestão do Desenvolvimento Territorial, na busca de: promover alternativas que dêem sustentabilidade à agricultura familiar; fortalecer os processos de organização cooperativista e comercialização solidária; contribuir na melhoria da qualidade de vida, na redução do êxodo rural, na valorização de geração e gênero e na busca de estratégias de preservação ambiental, adaptadas à realidade do Planalto Norte Catarinense. Nessa direção, participação, ética, transparência, cooperação, formação permanente, transversalidade das ações, responsabilidade social, sustentabilidade e valorização cultural e histórica, constituíram-se os fundamentos para a gestão desse Território. Passados oito anos desde a criação desse Território, consolidou-se um processo de integração de ações coletivas entre as entidades da Agricultura Familiar do Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense. Foram estruturadas diversas experiências que já existiam e criadas outras novas formas de organização da comercialização e do processamento de produtos da agricultura familiar. Ainda, foram investidos recursos em ampliação de obras, melhoria de equipamentos, caminhões e veículos utilitários que permitiram adequar as pequenas organizações a participarem de programas institucionais de comercialização, tais como: Programa de Aquisição de Alimentos (PAA); Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); Feiras-Livre e Super-Mercados. E, mais, via Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) foram aplicados mais de três milhões de reais em benefício da agricultura familiar. Somam-se a esse volume de recursos outras fontes financiadoras: aprovação em editais de capacitação, como é o caso da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER); emendas parlamentares e recursos municipais. Desse modo,

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O programa de desenvolvimento territorial - territórios da cidadania…

pequenas organizações da agricultura familiar, como associações, grupos e pequenas cooperativas puderam ter acesso a recursos públicos voltados ao atendimento de suas demandas. Importante destacar também, que apesar de haver recursos provenientes do MDA para custeio, grande parte dos trabalhos foi realizada pelo esforço de pessoas e organizações governamentais e não governamentais que assumiram despesas em apoio logístico. Isso tem gerado processos de potência nessa região que, tradicionalmente, enfrenta dificuldades para o fortalecimento da agricultura familiar. Assim, com o acesso a programas e projetos instituídos fica possível enfrentar dificuldades que afetam o segmento rural familiar no contexto do referido Território.

2.1 Organização e Institucionalidade O Território Planalto Norte Catarinense que faz parte do Núcleo de Extensão e Desenvolvimento Territorial do Planalto Norte Catarinense (Nedet) conta com o projeto Consolidação da Abordagem Territorial como estratégia de desenvolvimento rural sustentável para Santa Catarina. A Coordenação Geral está com da Universidade Federal da Fronteira Sul/ Chapecó (UFFS) e a Coordenação Local com o Instituto Federal de Santa Catarina/ Canoinhas (IFSC). Vinculada a essa coordenação estão as Assessorias Territoriais: para Gestão Social (ATGS); de Inclusão Produtiva (ATIP); e, de Inclusão Produtiva da Base de Serviços Territoriais (BST). Ainda, estão o Instituto de Estudos e Assessoria ao Desenvolvimento, de Chapecó (Ceades) e a Associação dos Municípios do Planalto Norte (Amplanorte), com sede em Mafra/SC, é Gestora do “kit Território” e mantém uma sala como sede do Território da Cidadania. São realizados intercâmbios e discussões com a Universidade do Contestado - Campus de Canoinhas e Mafra.

2.2 Parcerias estabelecidas As parcerias estabelecidas com a sociedade civil e o Governo na abrangência do Território Planalto Norte Catarinense acumulam um número e uma diversidade significativos de organizações e setores, a saber: 18 Cooperativas – Coarpa, Comsol, Cooperdotchi, Cooperpomares, Unipafi, Sisclaf (leite) e outras; Associações de Agricultores(as) Familiares - AF (Hortibento, Apicultores, Mulheres e Assentamentos de Reforma Agrária e outras; 14 Prefeituras - Seaplan, Fórum dos Secretários Municipais de Agricultura, Centro de Referência de Assistência Social - Cras; três Associações de Municípios: Amplanorte (10); Amarp e Amunesc; duas Agências de Desenvolvimento Regional com sede em Mafra e Canoinhas; quatro instituições de pesquisa - Embrapa, Epagri, Unitagri e Cooptrasc; duas Instituições de Ensino Superior - IFSC e UnC; dois Institutos Ambientais - ICMBio (Instituto Chico Mendes de Biodiversidade), Flona (Floresta Nacional de Três Barras); Consórcio Quiriri (APAs de Campo Alegre, São Bento do Sul, Rio Negrinho e Corupá); Um órgão estadual de Defesa Sanitária – Cidasc (Companhia Integrada de Desenvolvimento Agrícola de Santa Catarina; duas organizações sindicais - Fetaesc/ Contag (Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Santa Catarina, filiada à Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura), Fetraf (Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar filiada a CUT (Central Única dos Trabalhadores e sindicatos); dois Movimentos Sociais: MPA (Movimento Voltar ao sumário

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A. L. Milan, D. Comerlatto

dos Pequenos Agricultores), MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra); Uma organização de Agroecologia - Rede Ecovida; e, Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária; entre outras organizações).

2.3 Gestão do Território A gestão do Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense é coordenada pelo Conselho de Desenvolvimento Territorial (Codeter). Desse Conselho, participam em torno de 60 Entidades/Organizações/Instituições, sendo que a maior instância decisória é a Plenária Territorial. Figura 5: Plenária Territorial realizada em Mafra / SC, no dia 25 de setembro de 2014

Foto: Arquivo da Assessoria Territorial.

A gestão desse Território é apoiada por um Núcleo Diretivo (ND), espaço em que participam diretamente 29 organizações, uma Câmara Técnica de Inclusão Produtiva (CTIP), contando com a participação direta de 16 Entidades. Ainda, compondo a gestão do referido território, estão os Grupos de Trabalho (GTs) que são organizados por ramo de atividade e /ou cadeia produtiva, somando cinco GTs em atividade: Apicultura – Entreposto do Mel SBS; Agroecologia – Rede Ecovida; Cooperativismo – 18 Cooperativas atuantes, SC Rural/Epagri; Turismo Rural – Epagri e Amplanorte; Leite: Planorte Leite – Epagri e Amplanorte; Além desses GTs ativos, tem-se discutido a construção de mais quatro Grupos de Trabalho: Água e Solos; Erva-Mate; Mulheres; e, Jovens.

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O programa de desenvolvimento territorial - territórios da cidadania…

2.4 Políticas públicas prioritárias O Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense tem participado de uma gama de programas e projetos instituídos como políticas públicas em nível nacional, quais sejam: Minha Casa Minha Vida Rural (PNHR); Pronatec Campo; Luz para Todos; Saúde; Estratégia de Gestão Territorial do Plano Safra; Chamadas públicas de ATER (agroecologia e sustentabilidade); Mercados institucionais (PAA e PNAE); Infraestrutura (Proinf); Desenvolvimento de assentamentos rurais (Terra Forte e Renegociação de dívidas)

3 Questões para refletir... Apesar desses programas e projetos que estão em execução no Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense e que, em certa medida, vêm apoiando o seu desenvolvimento, algumas questões imprimem desafios em face das ações implantadas. Desafios esses que persistem, necessitando de reflexão e debate para que se possa avançar de modo inovador, qualificado e efetivo nas ações em desenvolvimento e a serem desnvolvidas. Destacam-se questões relacionadas ao Proinf, quais sejam: (1) quem é responsável para fazer a gestão dos projetos propostos pelos Colegiados Territoriais? (2) como construir projetos, realmente com abrangência territorial? (3) como fazer para envolver os gestores públicos a participarem efetivamente da Política de Desenvolvimento Territorial? (4) como alcançar efetividade na participação das organizações sendo que todas têm suas questões corporativas para encaminhar?

4 Referências BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. Disponível em: <http://www.territoriosdacidadania.gov.br/dotlrn/clubs/territriosrurais/one-community?page_num=0>. Acesso em: 31 out. 2014. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. PROINF – Infraestrutura e Serviços nos Territórios Rurais. Disponível em: <www.terraforte13.com.br/proinf.php>. Acesso em: 01 nov. 2014. BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em <www.ibge.gov.br/>. Acesso em: 28 out. 2014. MIRANDA, C.; TIBURCIO, B. (Orgs). Reflexões sobre políticas de desenvolvimento territorial. Brasília: IICA, 2010. (Série Desenvolvimento Rural Sustentável; v. 11).

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S U M Á R I O

PROJETO TECENDO A REDE DE RECICLAGEM: FORTALECIMENTO DA ECONOMIA SOLIDÁRIA NO OESTE DE SANTA CATARINA Graciela Alves de Borba Novakowski*

1 Introdução No atual cenário do sistema capitalista estão imersos os catadores de recicláveis e os conflitos entre essa categoria de profissionais, o governo e os “atravessadores” ou “sucateiros” (empresas do comércio de resíduos e sucatas) onde esses últimos exploram os catadores, especialmente os informais, no momento em que vendem seus resíduos coletados durante o dia, semana, mês de trabalho. Tal ocorrência acaba por afastar o catador de reciclagem do protagonismo pessoal lhe mantendo refém da miséria ao auferir pouca renda com a venda de seu trabalho, pois são os compradores do material reciclado que determinam o valor do seu custo de produção (SILVA, 2010). A região oeste do Estado de Santa Catarina, delimitada ao sul pelo Estado do Rio Grande do Sul, ao norte pelo Estado do Paraná, a oeste (província de Missiones - Argentina) e ao leste pela região do Planalto de Santa Catarina, é denominada de Mesorregião Oeste Catarinense constituída de cinco pólos regionais. Ao todo são 118 municípios organizados em sete associações de municípios e 10 Secretarias de Desenvolvimento Regional (SDRs). Nesta região estima-se que existam mais de 600 famílias de catadores e catadoras, sendo que a maioria está desenvolvendo suas atividades de maneira informal, poucos estão organizados em associações e/ou cooperativas. Apesar dos recentes avanços nos processos organizativos, dados do Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) revelam que grande maioria de catadores e catadoras de materiais recicláveis ainda atua de forma individualizada e precarizada, sem nenhum tipo de suporte organizativo e vulnerável às formas de exploração do trabalho, sobretudo na comercialização dos materiais coletados. É neste contexto social e econômico da região Oeste do Estado de Santa Catarina, que se origina a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), enquanto programa permanente de extensão da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) que tem por finalidade promover a inserção na economia formal de grupos sociais excluídos ou em situação de risco, a partir de sua organização para o trabalho, na perspectiva da autogestão. Sua missão é apoiar iniciativas de economia solidária, cooperativas, associações de produtores e outras formas de organização econômica autogestionárias, contribuindo para o desenvolvimento *

Mestre em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapeco), Assistente Social e Técnica de Extensão ITCP/ Unochapeco. E-mail: <gracielan@unochapeco.edu.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-17

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Projeto tecendo a rede de reciclagem...

social e econômico do Oeste catarinense. Visa, também, auxiliar na formulação e execução de políticas públicas, destinadas ao fomento dessas experiências, articulando sua ação com a de outros atores sociais comprometidos com a elevação da qualidade de vida e com a ampliação da cidadania (ITCP/Unochapecó, 2016). Partindo deste cenário e contexto, este relato de experiência traz observações e reflexões exploratórias sobre um dos projetos aprovados pela ITCP/Unochapecó, junto ao Governo Federal, o Projeto ¨Tecendo a Rede de Reciclagem no Oeste Catarinense” foi elaborado para a chamada pública SENAES/MTE1 004/2011, aprovado e ora em execução pela Incubadora. O projeto tem como objetivo fomentar a construção da rede de catadores da região Oeste de Santa Catarina, a partir dos territórios em construção e fortalecer as organizações e empreendimento econômicos solidários constituídos principalmente por catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis em situação de extrema pobreza, teve seu inicio em dezembro de 2012 e está atingindo um universo de 19 municípios, 12 empreendimentos econômicos solidários e aproximadamente 250 catadores e catadoras de materiais recicláveis na região Oeste do Estado de Santa Catarina. O projeto foi aprovado pela ITCP/Unochapecó em parceria com MTE/SENAES, com período de execução de 2012 a 2014, sendo que sua execução foi aditada para dezembro de 2016. O Projeto Tecendo a Rede de Reciclagem teve seu iniciou em dezembro de 2012 e abrange um universo de 19 municípios e aproximadamente 250 catadores e catadoras de materiais recicláveis na região Oeste do Estado de Santa Catarina.

2 Metodologia O projeto Tecendo a Rede de Reciclagem está organizado e articulado a partir dos Territórios, buscando constituir redes territoriais de empreendimentos e, a partir deles uma rede regional de organizações de catadores de material reciclável do oeste de Santa Catarina. Para sua execução o projeto buscou identificar e articular as organizações de catadores de material reciclável e as entidades e organizações que estejam prestando algum tipo de apoio. Para a execução do projeto, o mesmo foi pensado em três fases complementares, sendo elas: 1ª fase: Diagnóstico e estudo da realidade da cadeia produtiva na região oeste de Santa Catarina; 2ª fase: Mobilização e articulação dos atores envolvidos direta e indiretamente com a execução do projeto; 3ª fase: Construção da rede de catadores e de entidades de apoio na cadeia produtiva do material reciclável na região oeste de Santa Catarina. No processo de diagnóstico da cadeia produtiva foi realizado um cadastramento das organizações de catadores já inseridos em organizações associativas e suas famílias, bem como das organizações de apoio e suas ações. O estudo foi desenvolvido pelos agentes territoriais contratadas via projeto. As agentes realizaram visitas a cada município do território que possuíam entidades de apoio, catadores e organizações de catadores. Em parceria com os municípios (contatados por telefone e agendamento prévio) buscaram realizar o cadastramento das famílias envolvidas na cadeia produtiva do material reciclável a partir das informações já disponíveis junto aos órgãos públicos locais, através das jornadas. Também 1 Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e Secretaria Nacional de Economia Solidária (Senaes). Voltar ao sumário

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G. A. de B. Novakowski

foram realizadas visitas in loco para a conferência das informações secundárias e complementação com informações primárias coletadas a campo. Para realizar as três fases e concomitantemente ao processo de sensibilização/ articulação realizou-se um diagnóstico dos catadores em 19 municípios envolvendo 275 catadores. Utilizou-se de entrevista semiestruturada, cuja técnica apresenta como vantagem sua flexibilidade e a possibilidade de rápida adaptação. Realizou-se também observação participante no campo de trabalho, bem como pesquisa documental a partir de documentos fornecidos pelos municípios e entidades locais. Após a compreensão da cadeia e identificação dos envolvidos no processo, a próxima etapa buscará definir estratégias de formação para agentes públicos, demais atores envolvidos, bem como para os catadores e suas organizações. A partir do cadastramento, a equipe do projeto auxiliará na organização dos grupos de catadores por municípios e territórios, levando em consideração suas potencialidades e limitações. Com os grupos em processos de organização em nível local e regional, será iniciada a discussão sobre a formação da rede e a integração com as demais regiões já organizadas no Estado. A organização em rede possibilitará a obtenção de várias vantagens às associações devido à união delas em torno de objetivos comuns. Neste sentido, serão desenvolvidas atividades de formação e capacitação como encontros, seminários e visitas de troca de experiência, envolvendo os catadores, gestores públicos e atores locais participantes no processo. O projeto Tecendo a Rede de Reciclagem ao contribuir na construção da rede de catadores através da metodologia descrita visa consolidar e aproximar as organizações locais e regionais de uma Rede mais ampla constituída pela Organização Estadual e Movimento Nacional de Catadores.

3 Contextualização do Universo A região Oeste de Santa Catarina apresenta uma população de 840.725 mil pessoas, destas somente 303.837 pessoas vivem no meio rural, correspondendo a 36,13% da população (IBGE, 2010). Entre os municípios que constituem a região, Chapecó é destaque, pois apresenta maior população e é considerada pólo regional pelo aporte de empresas e agroindústrias localizadas no município, além de ser referência para os serviços de média e alta complexidade para o território. A economia desta região mantém-se assentada sobre a produção agropecuária fortemente integrada a indústria, mas concentrada em poucos produtos (soja, milho, fumo, suínos, aves e mais recentemente o leite) e cada vez concentrada em menor número de famílias produtoras. Essa região caracteriza-se, ainda, por concentrar um numero expressivo da população rural do estado, entanto, verifica-se um contínuo processo de constituição de vazios populacionais (extinção de comunidades) em pequenos municípios essencialmente rurais, que perdem população ou quando as mantém, concentram-nas nas áreas urbanas. Portanto, as características geográficas, demográficas, socioculturais, bem como, produtivas dessa região contribuem para limitações muito particulares com relação ao funcionamento da cadeia produtiva dos recicláveis e da organização dos catadores. Contribui de forma decisiva a existência de um grande número de pequenos municípios com uma densidade populacional relativamente baixa que possuem nenhuma ou pouca família atuando na reciclagem. Voltar ao sumário

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Projeto tecendo a rede de reciclagem...

Os municípios da região que concentram maior população, citadas anteriormente não apresentam volumes expressivos capazes de garantir escala para melhorar os preços praticados pelos intermediários que se aproveitam dessa realidade. Isso se torna mais agravado, na medida em que essas cidades se encontram relativamente distantes (entre 50 e 100 km) umas das outras, contribuindo para o isolamento dos grupos de catadores e suas organizações. Isso também tem promovido a competição entre os municípios, dificultando, tanto a organização das associações e cooperativas, quanto a sua articulação externa. Nesse sentido, com o objetivo de promover a gestão dos resíduos sólidos, bem como a inclusão social e valorização profissional dos catadores de materiais recicláveis foi promulgada a Lei 12.305, em 02 de agosto de 2010, a qual instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Segundo Rauber (2011) com a sanção da PNRS, o Brasil passa a ter um marco regulatório na área dos resíduos sólidos, promovendo alento e respaldo à luta pela sustentabilidade, prevendo mecanismo para o maior equilíbrio entre o desenvolvimento social, econômico e ambiental. A Lei 12.305/10 menciona ações de inserção e organização de catadores de materiais recicláveis nos sistemas municipais de coleta seletiva, assim como, possibilita o fortalecimento das redes de organizações desses profissionais e a criação de centrais de estocagem e comercialização regional (BRASIL, 2010). Desta forma, a Política Nacional de Resíduos Sólidos está voltada àqueles que vivem da catação de resíduos sólidos, garantindo financiamento aos municípios que executarem o serviço de coleta seletiva junto às cooperativas de catadores de materiais recicláveis, objetivando a inclusão social desses trabalhadores (PEREIRA, 2011). Considerando o público atendido pela ITCP, nos últimos quatro anos o movimento dos catadores de materiais recicláveis na região teve um apoio e suporte para sua organização enquanto cadeia produtiva.

4 Ações desenvolvidas no âmbito do Projeto Tecendo a Rede de Reciclagem A proposta do projeto Tecendo a Rede de Reciclagem é fomentar a construção da Rede de Catadores na região Oeste de Santa Catarina, a partir dos territórios rurais existentes, buscando constituir redes territoriais de empreendimentos. Nesse sentido, várias foram as ações de identificação, sensibilização e mobilização dos catadores, em parceria com entidades e, principalmente, com o poder público municipal, visando à construção da Rede. Inicialmente, para execução do projeto na região, buscou-se identificar os municípios e empreendimentos de catadores com potencialidade para formação de uma rede. Referente a isso, pelo fato de alguns municípios na região passarem por um forte processo de urbanização, sendo eles São Miguel do Oeste, São Lourenço do Oeste, Pinhalzinho, Xanxerê, Concórdia, Joaçaba e principalmente Chapecó, priorizou-se a inclusão desses no projeto. Como o projeto está organizado por territórios, implica no estabelecimento de circuitos territoriais de execução das ações, desenvolvido preferencialmente pelo agente territorial. Para execução das atividades do Projeto nos quatro territórios foram contratadas quatro agentes territoriais. As ações formativas desenvolvidas com os empreendimentos de catadores de materiais recicláveis foram organizadas em Voltar ao sumário

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G. A. de B. Novakowski

cursos, oficinas e seminários, enquanto que os processos de assessoria e assistência técnica foram desenvolvidos por meio de jornadas técnicas. Os agentes territoriais realizaram o diagnóstico de 19 (dezenove) municípios envolvidos no processo, distribuídos nos 04 territórios rurais. Esse diagnóstico foi realizado por meio de pesquisa documental via internet dos dados dos municípios, como caracterização, população, aspectos socioeconômicos, ambientais, entre outros relevantes. Também foram realizados contatos com as Secretarias Municipais de Assistência Social para buscar dados dos catadores no município, como quantidade e forma de organização. A segunda etapa consistiu na sensibilização e articulação com o poder público municipal e parceiros dos respectivos municípios, tais como: Associação dos Municípios do Extremo Oeste Catarinense (AMOESC), do Alto Irani (AMAI), do Meio Oeste Contestado (AMMOC), Secretaria de Desenvolvimento Regional de São Miguel do Oeste (SDR), Consórcio Nacional de Segurança Alimentar e Desenvolvimento Local (CONSAD), Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (EPAGRI), Fórum de Resíduos Sólidos de Chapecó (FRSC), Instituto Saga e Consórcio Intermunicipal Velho Coronel (CVC). Com o intuito de firmar parceria realizaram-se visitas locais aos municípios, nas quais foi apresentado o projeto, seus objetivos e metodologia, bem como, definição do plano de ação juntamente com os parceiros envolvidos no processo. Concomitante ao processo de articulação e consolidação de parceria com o poder público dos municípios, foram identificados 18 (dezoito) empreendimentos de catadores, sendo eles: 02 Cooperativas; 09 Associações e 07 municípios com catadores individuais com potencialidade para formalização. No decorrer do processo, 07 (sete) dos 19 (dezenove) municípios não continuaram no Projeto. Estes municípios eram os que não tinham Empreendimentos de Catadores formalizados e que dependiam principalmente da intervenção do poder público municipal para estruturá-los, com barracão e equipamentos, para posteriormente dar início o trabalho coletivo, bem como, garantir que o material reciclável fosse destinado aos catadores. Dos 07 (sete) municípios apenas 01 (um), não teve o trabalho formalizado por opção dos catadores, que preferiram continuar no trabalho individual. Concomitante ao processo de sensibilização/articulação realizou-se um diagnóstico dos catadores. Para isso, a abordagem utilizada foi entrevista semiestruturada, cuja técnica apresenta como vantagem sua flexibilidade e a possibilidade de rápida adaptação. Nessa atividade, realizou-se também uma observação participativa no campo de trabalho e de pesquisa documental. O objetivo da entrevista foi coletar informações como: gênero; mulheres chefe de família; idade; escolaridade; condição previdenciária; renda mensal e per capta; benefícios sociais; condições de moradia; saúde; tempo na profissão; função na profissão; origem do material; uso de equipamento de proteção individual; motivação pra ser catador; se possui outra renda; relacionamento social e indicação de melhorias. Ao final do diagnóstico nos municípios foram cadastrados 275 catadores de materiais recicláveis. Na etapa do diagnóstico realizou-se também o diagnóstico das associações e cooperativas de catadores, no qual foram abordados dados como: identificação; histórico; gestão; infraestrutura; organização política e social; condições de trabalho; qualificação e formação; visão da gestão dos resíduos sólidos; demandas da Voltar ao sumário

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Projeto tecendo a rede de reciclagem...

organização; dificuldade e desafios. Com base nos resultados do diagnóstico das associações e cooperativas propuseram-se novos métodos de administração e controle financeiros, que foram trabalhados com os associados e/ou cooperados por meio de oficinas e jornadas e visitas técnicas. Para a apresentação dos dados do diagnóstico dos catadores ao poder público municipal e entidades parcerias foram realizados Seminários Municipais e para a devolução dos dados das Organizações de Catadores aos catadores foram realizadas oficinas nos Empreendimentos envolvidos. No que refere a formalização dos grupos informais de catadores, o projeto por meio de seus agentes territoriais, formalizaram 05 (cinco) novos empreendimentos de forma associativa, acompanhando e auxiliando diretamente a elaboração do estatuto e demais documentações legais. Alguns resultados obtidos por meio do diagnóstico realizado sobre os empreendimentos podem ser visualizados na tabela a seguir: Tabela 1: Resultado do diagnóstico aplicado Empreendimentos Econômicos Solidários (EES)

Município

Formalização (documentação)

Ano de Número de constituição associados

Associação de Agentes Ambientais

Guarujá do Sul/SC

Estatuto Social, Ata

2013

04

Grupo Informal

São José do Cedro/ Estatuto Social, SC Ata

2013

07

Associação de Catadores de Materiais Recicláveis

Guaraciaba/SC

Estatuto Social, Ata de fundação, CNPJ

2008

09

Cooperativa Sagrada Família -

São Miguel do Oeste/SC

Estatuto Social, CNPJ

2009

11

Associação ACOMAR

São Miguel do Oeste/SC

Estatuto Social, CNPJ

1999

27

Estatuto Social, Ata, CNPJ

2013

15

Associação de Catadores São Luiz Cooperativa de Reciclagem COOPREPI

Pinhalzinho/SC

CNPJ, estatuto, Ata

2006

17

Associação dos Recicladores Raio de Luz – AMARLUZ

Chapecó/SC

CNPJ, Estatuto, Regimento interno e Ata

2009

17

Associação de Materiais Recicláveis - São Francisco

Chapecó/SC

CNPJ, Estatuto, Regimento interno, Ata

2005

09

Associação de Catadores de Materiais Recicláveis Nova Vida – ASMAVI

Chapecó/SC

CNPJ, Estatuto, Regimento interno,Ata

2011

11

AMPREX

Xaxim/SC

Em formalização

2014

26

Associação dos Recicladores Xanxerenses Amigos da Natureza – ARXAN

Chapecó/SC

CNPJ, Estatuto, Ata

2006

20

Associação de Catadores Vida Nova

Xanxerê/SC

CNPJ, Estatuto, Ata

2013

15

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G. A. de B. Novakowski

Empreendimentos Econômicos Solidários (EES)

Município

Formalização (documentação)

Ano de Número de constituição associados

Associação ACOMAR

Joaçaba/SC

CNPJ, Estatuto, Regimento interno, Ata

2007

11

Associação de Catadores Bentevi

Concórdia –SC.

CNPJ, Estatuto e Ata

2012

14

Associação Recoplástico –

Joaçaba/SC

CNPJ, Estatuto, Ata

2013

05

Grupo Informal

Capinzal/SC

Em formalização

2014

08

Arsol

Chapecó/SC

Em formalização

2014

06

Grupo Informal

Catanduvas/SC

Em formalização

2014

06

Fonte: Elaboração da autora (2015).

Na terceira etapa, que compreende a construção da rede, foram realizadas atividades de formação e assessoria técnica dos empreendimentos de catadores. Nesse sentido, as atividades consistiram em capacitações com cursos, palestras, oficinas, jornadas e jornadas técnicas sobre os seguintes temas: economia solidária, Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), Saúde e Segurança do Catador, Coleta Seletiva, Diferentes formas de Empreendimentos Econômicos Solidários, Gestão Documental, Desenvolvimento Sustentável, Políticas de Inclusão Social, Controle Financeiro e Autogestão, entre outros. Paralelamente a formação dos empreendimentos, as ações do projeto se concentraram também na mediação dos conflitos internos dos empreendimentos.

5 Considerações finais Embora o foco esteja no trabalho técnico, à atuação da ITCP busca articular também a dimensão formativa e pedagógica dos empreendimentos. As demandas e necessidades mais trabalhadas referem-se à assessoria, à organização e viabilização administrativa, orientação contábil e jurídica, plano de negócio, construção do regimento interno, planejamento da produção. Muitas destas capacitações acabam desencadeando novos processos de gestão nos empreendimentos o que leva, consequentemente, a atendimentos de demandas específicas, considerando a necessidade e trajetória de cada grupo. Grande parte do trabalho desenvolvido pela Incubadora é custeado por recursos externos, oriundos da aprovação de projetos via chamadas transversais de editais públicos como: MTE, PRONINC, MDS, FINEP, CNPq entre outros. Sobre a percepção do problema dos resíduos sólidos, constatou-se que, tanto em grande parte da literatura encontrada sobre o tema, quanto na compreensão presente no imaginário coletivo dos sujeitos envolvidos com a problemática na região, encontram-se fortemente associados às condições de áreas urbanizadas e grandes cidades, ou seja, os pequenos municípios essencialmente rurais, caso da maioria dos municípios da região em foco, tem dificuldade em reconhecer e visualizar a dimensão do problema dos resíduos sólidos e seus impactos em nível local ou para além desta dimensão.

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Projeto tecendo a rede de reciclagem...

Isto pode contribuir para a explicação do uso da medida simples de terceirização da coleta e tratamento dos resíduos locais adotada pelos gestores locais em sua grande maioria. Os primeiros contatos com os municípios e as organizações de catadores, confirmaram o isolamento dos catadores em seus municípios e do número reduzido de organizações existentes na região. Observou-se também a falta de conhecimento das organizações umas em relação às outras, bem como ausência de informação sobre políticas públicas de apoio e desconhecimento dos catadores da Lei 12.305/2010 e, portanto, dos direitos e potencialidade existentes e, por outro lado, das responsabilidades e exigências agora estabelecidas a eles, bem como aos demais segmentos envolvidos na cadeia produtiva. No que se refere à organização, observa-se que maioria dos empreendimentos carecem de formalização. As organizações formalizadas através de registros e documentos, como, por exemplo, Estatuto e ata de fundação registrada, regimento interno de funcionamento, livros de registros, entre outros, encontram-se com sua documentação desatualizada ou em condição irregular. Ficou perceptível a falta de compreensão do significado e da organização em rede, de seu potencial para a melhoria das condições e inserção dos catadores na organização e funcionamento da cadeia produtiva na região oeste de Santa Catarina. Sobre os gestores públicos municipais, identificou-se um significativo desconhecimento por parte dos mesmos, tanto em nível de executivo, quanto do legislativo, sobre a realidade dos catadores, da cadeia produtiva e da nova ambiência institucional em construção no país e seus reflexos e responsabilidades locais, em relação ao material reciclável, pois, no início da execução das atividades de campo do projeto em março de 2013, nenhum dos municípios contatados possuía o seu plano de gestão de resíduos sólidos. Na maioria dos municípios, não existe um setor com pessoas e atribuições claramente definidas para a gestão dos resíduos sólidos, sendo que a resolução deste problema se encontra dispersa em diferentes setores públicos (secretarias ou departamentos) e sem um profissional ou servidor de referência e mesmo com conhecimento e atribuição definida. No que se refere a profissionais envolvidos, se destaca a atuação principalmente da Secretaria de Assistência Social e mais especificamente dos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que busca dialogar com os catadores para pensar na formulação de uma política que possa contemplar suas necessidades e interesses. Outros segmentos atuam através da militância em causas sociais e ambientais, ou ainda, por interesse próprio, em função do envolvimento na cadeia produtiva do material reciclável. A realidade encontrada demonstrou que os gestores públicos estavam relativamente preocupados com o prazo final de elaboração da sua política local, pelo risco de perderem o acesso a recursos públicos federais, mas sem a compreensão e importância do envolvimento dos catadores no processo. Sobre os Planos Municipais de Gestão de Resíduos Sólidos (PMGRS), a atitude da maioria dos gestores públicos locais foi realizar a contratação de empresa privada especializada para a elaboração do plano municipal em curto espaço de tempo e sem seguir minimamente as recomendações da política nacional e das proposições do guia elaborado pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA). Esse tipo de decisão reforça ainda mais o não comprometimento do poder público local Voltar ao sumário

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G. A. de B. Novakowski

na gestão dos resíduos sólidos, pois não contribui para a formação, qualificação de recursos humanos próprios com conhecimento e domínio da problemática visando uma gestão eficiente. Em relação à participação dos catadores, a maioria dos municípios envolvidos diretamente com o projeto e dos demais municípios abrangidos indiretamente a partir do recorte territorial adotado, de acordo com a proposição da chamada pública Senaes/MTE 004/2011, não apresentava iniciativas e ações concretas de envolvimento dos catadores na discussão e resolução do problema dos resíduos sólidos locais, nem na construção dos PMGRS acessados.

Referências BRASIL. Política Nacional de Resíduos Sólidos, Lei 12.305. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2 ago. 2010. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/.../lei/l12305.htm> Acesso em: 22 mai. 2014. BRASIL. Ministério do Trabalho e Emprego. Edital de Chamada Pública SENAES/MTE n. 004/2011. Fomento a Empreendimentos Econômicos Solidários e Redes de Cooperação atuantes com Resíduos Sólidos constituídas por Catadores e Catadoras de Materiais Reutilizáveis e Recicláveis. MTE/ SENAES, Brasília, DF, 2011. Disponível em <www.mte.gov.br>. Acesso em: 14 dez. 2015. IBGE. Dados populacionais. Censo 2010. Disponível em: <http://www.censo2010.ibge.gov.br/sinopse/index.php?uf=42&dados=0>. Acesso em: 17 jan. 2015. MNCR. Cadastro Nacional de Grupos de Catadores Associados ao MNCR. 2005. Disponível em: <http://www.mncr.org.br/box_2/noticias-regionais/catadores-se-apropriam-de-novas-tecnologias-para-organizar-a-categoria>. Acesso em: 17 abr. 2015. PEREIRA, T. C. G. Política Nacional de Resíduos Sólidos: nova regulamentação para um velho problema. Direito e Justiça, v. 11. n. 17, 2011. Disponível em: <http://srvapp2s.urisan.tche.br/seer/ index.php/direito_e_justica/article/view/719>. Acesso em: 24 maio 2014. RAUBER, M. E. Apontamentos sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos, instituída pela Lei Federal 12.305, de 02/08/2010. Revista Eletrônica Gestão, Educação e Tecnologia Ambiental. v.4. n. 4, Disponível em: <http://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs2.2.2/index.php/reget/ article/view/3893/2266>. Acesso em: 12 mai. 2014. SILVA, Maria das graças e. Questão ambiental e desenvolvimento sustentável. Um desafio ético-político ao serviço social. São Paulo: Cortez 2010 UNOCHAPECÓ. Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP). Disponível em: <https://www.unochapeco.edu.br/incubadora-tecnologica-de-cooperitivas-populares>.

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S U M Á R I O

AS JOVENS DO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS EM SANTA CATARINA (MMC/SC): PERSPECTIVAS E PROJETOS DE VIDA Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto*

1 Introdução Este texto apresenta um relato sobre experiência de pesquisa realizada junto às jovens do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina (MMC/SC), dialogada e compartilhada pela autora, que tem como ponto de referência a militância no interior deste movimento desde os primórdios de sua organização até os dias atuais. Este relato foi apresentado durante o Seminário Regional: Território, Territorialidades e Desenvolvimento Regional, provocada pela mesa temática Agricultura familiar, juventude e territórios rurais ocorrido nos dias 06 e 07 de novembro de 2014 na Universidade Comunitária da Região de Chapecó / Unochapecó/SC. A presente reflexão tem como base alguns aspectos da pesquisa que resultou na dissertação de mestrado em Ciências Sociais sobre as jovens do MMC/SC, no seu trabalho, nas relações de hierarquia na família e projetos de vida. Tais elementos estão mais bem explicitados na dissertação de mestrado sobre as jovens do MMC/SC (GASPARETO, 2009). Da mesma forma, a partir da experiência em ensino, pesquisa, planejamento, e militância junto ao Movimento principalmente considerando a problematização em torno das perspectivas e projetos de vida dessas jovens, busca-se pensar a relação com processos de desenvolvimento regional que articula e integra as particularidades criadas nos territórios visualizando as dinâmicas da sociedade, compreendendo-as para além dos limites setoriais, ultrapassando as ideias de crescimento econômico. A partir de um contexto de lutas históricas e buscando formas de enfrentamento às condições insuficientes de reprodução social das famílias, essas jovens vão conquistando maior visibilidade dentro do Movimento de Mulheres Camponesas. Algumas questões se colocam: Como se posicionam as jovens no MMC e no interior de suas famílias? Em que medida os conhecimentos, as habilidades, as atitudes trabalhadas no MMC/SC, atendem às buscas de realização dessas jovens? Que aspectos da experiência das mulheres e de suas famílias, são representadas pelas narrativas das jovens quando elaboram seus projetos de vida e suas expectativas? Será que a proposta do MMC/SC, relativa ao Projeto de Agricultura Camponesa está atendendo às demandas colocadas pelas jovens e pelas suas famílias? Que aspectos do projeto *

Doutoranda em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz (UNISC). Professora do curso de Pedagogia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). E-mail: <sirlei@unochapeco.edu.br>.

http://dx.doi.org/10.18256/978-85-99924-87-7-18

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S. A. K. Gaspareto

de agricultura camponesa resultado da experiência do MMC/SC pode influenciar nos projetos de vida dessas jovens? O texto trata num primeiro momento as jovens camponesas e seu envolvimento no MMC/SC, ressaltando de que neste espaço as jovens não se constituem enquanto coletivo à parte, setorizado, mas envolvem-se na dinâmica geral das lutas, da organização, da formação e da perspectiva geral enquanto Movimento. Esclarecendo que as questões vividas pelas jovens são questões assumidas pelo MMC/SC e vice-versa, principalmente àquelas relacionadas ao Projeto de Agricultura Camponesa. Em seguida, a partir das demandas trabalhadas explicitam-se algumas das dificuldades apresentadas pelas jovens durante a pesquisa.

2 As jovens camponesas e seu envolvimento no MMC/SC O MMC/SC, desde início dos anos de 1990 vem se debatendo sobre os dilemas, buscas e projetos de vida das jovens. O grupo pesquisado na referida dissertação se caracteriza por ser participante ativo no cotidiano do MMC. O estudo mostrou que o debate em relação à construção de um projeto de agricultura camponesa faz parte da militância no movimento, motiva as jovens, porém, quando se confrontam nas suas perspectivas de vida e trabalho, explicitam-se impasses em relação às possibilidades de permanecerem no campo. É interessante esclarecer que no início da década de 1980 este movimento era conhecido inicialmente como Organização das Mulheres Agricultoras (OMA), quando se caracteriza e define-se como movimento social, no estado de Santa Catarina é assumido como Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA), tendo como base de sua organização a realidade vivida pelas famílias de agricultores que enfrentavam os impactos da modernização da agricultura, tais como: endividamento nos bancos, baixos preços dos produtos agrícolas e fim dos subsídios agrícolas. O surgimento deste Movimento se dá em meio a um contexto específico da região Oeste onde a dinâmica de atuação de vários outros movimentos e organizações da igreja, tais como as Comunidades Eclesiais de Base – CEBs, as pastorais sociais, a Comissão Pastoral da Terra – CPT, sindicatos, associações, o Sindicato de Trabalhadores Rurais - STR, o Movimento de Atingidos pelas Barragens - MAB, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, entre outros, estão presentes e atuam de forma articulada. Nos demais estados do Brasil, neste período, as mulheres do campo também estão se organizando em lutas específicas e gerais, se articulam por região e nacionalmente. Em 2004 houve a unificação de todos os movimentos autônomos de mulheres do campo transformando-se no Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil MMC do Brasil. Esta unificação foi resultado das lutas realizadas nos estados e a nível nacional, que de certa maneira foi levando as camponesas a conquistarem visibilidade social, o que possibilitou explicitar as contradições de gênero, classe e etnia. Ao longo dessas três últimas décadas, considerando as transformações vivenciadas na agricultura e nas condições de reprodução social da família, as mulheres organizadas no Movimento de Mulheres Camponesas, foram ressignificando suas lutas, projetos e perspectivas em relação ao campo. A problemática das jovens camponesas está presente e faz parte da dinâmica interna do MMC, bem como o envolvimento dessas jovens é parte desse processo de constituição enquanto Voltar ao sumário

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As jovens do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina (MMC/SC)...

Movimento. Salienta-se de que essas jovens, não constituem um grupo monolítico. Algumas iniciaram sua militância através de um convite de colegas, outras ainda, recém casadas foram sendo motivadas pelo próprio companheiro que militava em outras esferas sociais. Outras, desde criança acompanhavam suas mães, em atividades do Movimento. Em muitas ocasiões, seja através dos cursos, encontros formais e informais, atos públicos, algumas dificuldades das jovens também foram ganhando visibilidade, como o acesso à terra, à educação, à renda e autonomia em relação aos pais. Resultado disso é que muitas jovens passaram a buscar alternativas fora das atividades agrícolas, isso pode ser constatado em vários trabalhos realizados em diversas regiões do Brasil (STROPASOLAS, 2002; MALLMANN, 2004; WEISHEIMER, 2005; CASTRO, 2005; WANDERLEY, 2006; MENEZES, 2009). Assim, diversos motivos às levam até o Movimento, entretanto a possibilidade de continuidade do estudo, para muitas delas, esteve no foco de suas preocupações quando pensam em seus projetos de vida. A participação no Movimento possibilita-as a refletirem sobre si mesmas, sobre suas vidas em família, bem como passam a socializar diferentes concepções em relação à vida camponesa e ao papel social1 que a mulher ocupa na família. Algumas dessas jovens gradativamente foram se envolvendo em atividades promovidas pelo movimento. Na luta pelos direitos, compõem as direções internas coordenando ações no movimento sendo que pouco a pouco foram assumindo uma maior inserção neste espaço. Elas são filhas de pequenos agricultores, descendentes de famílias oriundas na sua maioria do Rio Grande do Sul em décadas passadas. Vivem em regime de economia familiar, cuja agricultura caracteriza-se pela produção do auto-consumo e de renda.

3 As demandas e dificuldades das jovens camponesas Durante o trabalho de pesquisa sobre as jovens do MMC/SC buscou-se analisar como as demandas específicas das jovens foram se constituindo como um objeto de atenção do MMC na região oeste de Santa Catarina. Entre os aspectos considerados para o estudo estão: o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) na região oeste de Santa Catarina; as jovens militantes do MMC e suas características de idade e escolaridade, bem como a iniciação no movimento; a jovem camponesa como uma construção política; as propostas do MMC para as jovens e os projetos de vida das jovens. Em relação às dificuldades encontradas pelas jovens, estas destacaram três questões que consideram fundamentais para a conquista de autonomia quando se pensa na elaboração de seus projetos de vida. A falta de acesso a terra, a falta de acesso à renda, e falta de acesso para a continuidade e manutenção do estudo. Esta problemática explicita o quadro real da juventude do campo que pode ser mais bem compreendida pelos dados oficiais. 1 Estudo de Weisheimer (2004) destaca que, entre os fatores desfavoráveis para à permanência das mulheres no meio rural, está à atribuição de um papel social subordinado aos homens no interior da hierarquia familiar que marcaria sua socialização na agricultura. Em sua pesquisa, constatou que as moças envolveram-se menos nas atividades agrícolas, seu trabalho cotidiano é menos valorizado e principalmente doméstico. Entram dificuldades de rendimentos financeiros advindos da agricultura e propriedade da terra, impactam na visão crítica do trabalho agrícola e modo de vida de seus pais. Voltar ao sumário

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S. A. K. Gaspareto

De acordo com dados (IBGE, 2000) os jovens brasileiros na faixa etária de 15 a 24 anos, somam 34,1 milhões de pessoas, correspondendo a 20,1% do total da população; em áreas rurais vivem 5,9 milhões de jovens. Pode-se perceber que de acordo com esses dados, apenas 17,3% dos jovens brasileiros moram na zona rural. Cada vez mais os jovens trocam o campo pela cidade. Isto não apenas sinaliza para os problemas vividos no meio rural, tais como: enfraquecimento da agricultura familiar, falta de mão-de-obra no campo, sobrecarga do mercado de trabalho na zona urbana, entre outros, bem como se apresenta enquanto preocupação presente nos Movimentos Sociais relação ao campo e ao futuro destes jovens. De acordo com Longo (2011), o Censo Escolar 2002, do Ministério da Educação e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP), aponta que 94% dos estudantes do ensino médio residentes no campo frequentam escolas urbanas. Dados do IBGE alertam que o ponto máximo de migração do meio rural para o urbano está entre 15 e 19 anos para as mulheres e 20 e 24 anos para os homens. Um dos problemas decorrentes desta situação é o envelhecimento do meio rural. Cerca de 24% dos agricultores têm mais de 60 anos. 22,8% dos adolescentes do campo estão fora da escola. Adolescentes da área rural têm quase quatro vezes mais possibilidade de ser analfabetos do que os da área urbana, sendo que 65,1 % dos estudantes rurais encontra-se em situação de defasagem idade/série, de acordo com os dados do MEC/INEP. Dados do INEP alertam para a baixa escolaridade dos professores do campo (apenas 9% são formados em universidades) e a baixa remuneração (o salário é quase metade em relação àqueles que trabalham em áreas urbanas). Segundo o Censo 2000 (IBGE), apenas 1,56% dos universitários do País eram jovens do campo, com idade entre 15 e 24 anos. Uma pesquisa feita por Camarano e Abramovay (1999), revela que a partir dos anos 1990, a migração é mais comum entre rapazes com idade entre 20 a 24 anos e moças de 15 a 19 anos, antes desse período, esse movimento era mais comum entre pessoas de 30 a 39 anos. Abramovay também alerta e chama atenção durante Seminário Nacional de Assistência Técnica, realizado em Brasília no ano de 1997 para a desertificação do campo enquanto ameaça ao desenvolvimento regional. “O esvaziamento dos campos, longe de garantir a preservação harmoniosa da natureza, corresponde antes de tudo a um enorme desperdício de recursos e potenciais, que poderiam ser aproveitados na luta contra a exclusão social” (ABRAMOVAY, 1997, p. 1). O que se pode perceber é que o êxodo rural tem hoje a cara da juventude do campo, razão pela qual as famílias rurais cada vez mais têm dificuldade de apresentar sucessores, intensificando-se assim o envelhecimento e a masculinização do campo. De acordo com dados do MDA (2010), 69% desses homens jovens desejam permanecer no meio rural como proprietários e 32% dessas mulheres jovens almejam se estabelecer no meio rural, caso houvesse condições para atenderem suas necessidades e demandas. Em relação às jovens camponesas, estas são praticamente invisíveis quando se pensa nos dados sobre agricultura: 82% das mulheres rurais que não recebem nenhum tipo de pagamento vivem em famílias cuja renda vem unicamente da agricultura; 14% em famílias mistas, 3% em famílias não agrícolas e o restante 1% nos domicílios dependentes das transferências do Estado ou remessas. A maioria das mulheres classificadas como inativas produzem para o auto consumo da família (FAO, 2013). Esta realidade intensifica ainda mais o processo de masculinização do campo. Voltar ao sumário

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As jovens do Movimento de Mulheres Camponesas em Santa Catarina (MMC/SC)...

Neste sentido, a realidade atual de grande parte das famílias que vivem no meio rural é de endividamento sem condições de repartir renda para a juventude. Ainda prevalece a lógica da dependência e subordinação da produção a agroindústria transnacional, em que pese algumas conquistas, principalmente no que se refere às políticas públicas, constata-se que falta política agrícola para a agricultura familiar e camponesa, entre outros. Daí o questionamento posto pelas jovens? Será que alguém tem como perspectiva o sofrimento, o trabalho duro sem a valorização, a dupla jornada, sem renda, a não visualização da possibilidade de ascender numa profissão, de viver dignamente?

4 O que dizem as jovens sobre o projeto de agricultura camponesa Vale destacar que o processo de lutas de resistência e enfrentamento no campo também é histórico, permanente. Os resultados são os mais diversos, porém nem sempre respondem às necessidade dado a agressividade e rapidez com que o sistema do capital se repensa e se recoloca na sociedade. Como exemplo, podemos citar a Lei 11.326/ 2006, que se coloca como uma conquista para os agricultores e as agricultoras familiares. Conhecida como “Lei da Agricultura Familiar”, ela estabelece as diretrizes para a formulação da Política Nacional da Agricultura Familiar e Empreendimentos Familiares Rurais no Brasil. Entre os aspectos assegurados na lei estão: ◆◆ não deter área maior do que quatro módulos fiscais; ◆◆ utilizar predominantemente mão de obra da própria família nas atividades econômicas do seu empreendimento; ◆◆ ter renda familiar predominantemente originada de atividades econômicas vinculadas ao próprio estabelecimento ou empreendimento; ◆◆ dirigir o estabelecimento ou empreendimento com auxílio de pessoas da família.

Interessante e necessário seria um estudo, confrontando os impactos desta Lei na atualidade agrária e agrícola brasileira. Ainda sobre a pesquisa junto às jovens do MMC/SC, é interessante mencionar outros elementos explicitados pelas mesmas. Em relação à família as jovens recusam o modelo de família patriarcal, a desvalorização do trabalho feminino, a dupla jornada, não considerada como trabalho. Se recusam a uma vida de privação. Desigualdade na questão patrimonial, entre outras marcas do patriarcado presente na família. Apontam para a necessidade de superação da cultura hierarquizada que inferioriza a mulher, a jovem, o campo, a produção de auto sustento. Em se tratando das propostas criadas no interior do MMC, as jovens destacaram que o projeto de agricultura camponesa significa para elas, e assim o concebem, como um processo de construção e se constitui enquanto espaço importante de envolvimento das mesmas. Propicia novas sociabilidades que ampliam suas perspectivas em relação aos projetos de vidas. Entretanto as principais necessidades para sua efetiva viabilidade por parte das jovens é o acesso a terra e políticas públicas que viabilizam condições para sustentação e permanência no campo. Neste sentido, as jovens destacaram elementos para viabilizar o projeto de agricultura camponesa, cujas características destacam-se: Um projeto que contemple a família toda. Acesso às politicas “do bem viver” sejam elas, lazer, educação, transporte, saúde, comunicação. Ter um pedaço de terra, com acesso à qualificação técnica e Voltar ao sumário

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acesso às novas tecnologias. Acesso a subsídios agrícolas: crédito, seguro. Ter direito à educação e a educação como direito. O acesso ao estudo. Participação. As jovens buscam resolver o problema de auto sustentação. Ter uma vida em comunidade. Planejamento no sentido de recuperar a relação natureza e biodiversidade. Oportunidades de Lazer. Ludicidade com direito a integrar grupos de teatro, música, dança. Independência e autonomia das jovens. A Divisão do poder na produção, nas decisões políticas. Emancipação das mulheres e das jovens. Qualificação dessas jovens na continuidade do movimento. Para as jovens, o projeto de agricultura camponesa do MMC, se coloca como uma proposta que se contrapõe ao Processo de urbanização e assalariamento do campo urbanização do campo. Mediação para conseguir condições de trabalho que resultará na renda. As perspectivas e posições das jovens sinalizam para o debate em torno de um novo horizonte camponês que se dá no cotidiano e pelo enfrentamento político. Num contexto de luta de classes recoloca o debate em relação ao modelo de agricultura e de sociedade. O que nos possibilita pensar no ethos enquanto subjetividade. Reporta-nos aqui ao ethos do colono, ou seja, “uma espécie de síntese dos costumes, os valores de identidade social. Uma espécie de carga histórica e cultural presente em cada indivíduo, herdada de seus antepassados e reconstruída no cotidiano” (FRANZEN, 2013). É possível estabelecer concordância com a visão de Tedesco (1998), onde o ethos do colono seria o estilo, a marca, o modo de ser, que se constrói socialmente em função dos processos, da natureza, da manifestação de seus modos de vida e de seu entorno social. De acordo com este autor, as condições materiais de produção do modo de vida colonial, estão vinculadas a processos sociais nucleados em torno da família, da organização do trabalho, da comunidade, da vizinhança e do parentesco, do mundo exterior, da sua organização social para a sobrevivência, para a sociabilidade, para o domínio da natureza e para a construção da individualidade (TEDESCO, 1998). Esta realidade, no interior do MMC está presente na mística que aponta para o “bem viver” anima/motiva as jovens em relação aos projetos de vida. E, permanentemente recoloca questões como: Que sociedade queremos? Que humanidade? Como trabalhar a questão ambiental? A que desenvolvimento regional nos referimos? Em se tratando de um evento que trata sobre desenvolvimento regional, será interessante considerar, ao pensar na juventude rural, sobre a necessidade de diferenciar crescimento econômico do conceito de desenvolvimento. Boisier destaca que, mesmo havendo relações entre os dois conceitos eles são distintos, “[...] desenvolvimento e crescimento são conceitos estruturalmente distintos: intangível o primeiro, material o segundo, com tudo o que ele implica; sem dúvida não conhecemos a natureza da relação entre ambos, já que claramente não se trata de questões independentes.” (BOISIER, 2003, p. 2). Para Haddad (1999), esta distinção é fundamental quando se busca pensar processos de desenvolvimento regional. O autor deixa claro que pode haver crescimento econômico sem que haja desenvolvimento econômico, regional. Daí a importância de ter presente esta distinção, quando se busca trabalhar em torno da concepção de um processo de desenvolvimento regional que abrange diferentes realidades. A localização e a implantação de novas atividades econômicas numa região podem elevar os seus níveis de produção, de renda e de emprego a um

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ritmo mais intenso do que o crescimento de sua população, sem que, entretanto, ocorra um processo de desenvolvimento econômico e social (HADDAD, 1999, p. 9). Celso Furtado, citado por Boisier (2003), defende a ideia de desenvolvimento enquanto um processo social e cultural, e apenas secundariamente econômico. Lenzi (2000) discute a ambiguidade em torno do tema desenvolvimento, no sentido de que, por um lado, apresenta benefícios e, por outro, intensifica problemas, principalmente quando é confundido com crescimento econômico (expansão material). Bacelar defende a necessidade, a possibilidade e a pertinência de se formular e implementar uma Política Nacional de Desenvolvimento Regional no Brasil. Um tema que desapareceu da pauta de discussão nacional nesses tempos de hegemonia das ideias liberais onde se prefere defender que o mercado será capaz de comandar a vida do País, inclusive sua dinâmica regional. “Um país continental e heterogêneo como o Brasil não pode ser entregue apenas às decisões ditadas pelas regras do mercado. Pode e deve ter uma política pública ativa de desenvolvimento regional” (BACELAR, 1999, p. 60). Essas questões nos levam a refletir, também, sobre o desafio de se pensar outras formas de intervenção no meio social, ou seja, de uma concepção e prática de desenvolvimento regional, que se situe para além da mercantilização do campo e da vida. Urge destacar que estas dimensões teórico-práticas de desenvolvimento regional, de caráter crítico e superador, já estão sendo explicitadas nas dinâmicas e práticas criadas pelas mulheres e jovens do MMC, no sentido de enfrentar os processos de opressão e exclusão. Isto significa dizer que suas lutas buscam a construção da autonomia camponesa agroecológica e feminista, cujo teor político, econômico e ideológico se situam “para além do capital”. Estas questões e concepções aqui explicitadas são de certa maneira refletidas no cotidiano das jovens mulheres do MMC/SC, sendo pouco a pouco tomadas para si e gradativamente possíveis de serem reelaboradas, principalmente pelos processos de lutas evidenciadas no Movimento. “A luta liberta, conscientiza, politiza, transforma a sociedade e os coletivos humanos” (ARROYO, 2012, p. 52). As lutas no MMC sempre foram de resistência e de enfrentamento. Se for verdade que o padrão atual de acumulação do capital em tempos demarcados pelas tecnologias da informação, vem transformando o conceito de ocupação, em que se constata um novo paradigma de emprego, mais flexível, precário, desprovido de garantias de estabilidade associada ao padrão convencional, causando perplexidade, no campo, particularmente para as mulheres, é também possível pensar que as diferentes formas encontradas pelas camponesas para enfrentarem a realidade de exclusão, modificam posturas, condutas, comportamentos criando outras perspectivas e novas concepções de vida.

5 Considerações finais Tendo em vista alguns dos aspectos observados, sustenta-se a convicção de que o MMC, desde seu surgimento até os dias atuais, através de suas formas de organização de base, de mobilização política, de formação de quadros militantes, vai se constituindo, em um agente de transformação social. Alinhado à Via Campesina, tem se destacado na luta pelos direitos das mulheres e por um projeto de agricultura camponesa agroecológica. A luta ofensiva contra as transnacionais é considerada neste movimento, como elemento-chave que explica a tentativa de destruição da Voltar ao sumário

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agricultura camponesa e o avanço de uma sociedade na perspectiva neoliberal e adquire importância visto que cada vez mais o campo se evidencia como um espaço conflituoso, de disputa, de concorrência, de diferentes concepções e também passa por profundas alterações como:

a. No aspecto físico ou estrutural é visível a concentração e o processo de minifundização da terra que, desde a colonização da região oeste catarinense têm intensificado a expulsão das famílias camponesas, principalmente da juventude. Ficando mais evidente com a modernização da agricultura que mexeu centralmente no jeito de viver e de fazer agricultura. Com o avanço do monocultivo intensificou-se a perda da diversidade vegetal e animal e o controle do território está sob domínio de empresas transnacionais. b. No aspecto ambiental, os bens naturais são visto como mercadoria que devem ser explorados concentrando a riqueza nas mãos de poucos. c. No aspecto humano, em decorrência desse modelo de agricultura química, industrial, percebe-se o processo de envelhecimento do campo onde cresce o número de famílias sem sucessores. A migração das jovens do meio rural para cidade tem acentuado o processo de masculinização no campo. Bem como é possível observar as conseqüências do crescente processo de urbanização e assalariamento do campo. Cada vez mais pessoas que moram no campo trabalham como assalariadas normalmente numa agroindústria. d. No aspecto subjetivo ainda é forte a descrença, o desanimo, em relação ao trabalho do campo. O sentimento de inferioridade, desprezo e desqualificação da profissão de agricultora associado à cultura patriarcal de dominação, opressão, discriminação da mulher mantém e agrava em muitos casos situações de violência, o que têm levado as jovens a re-eleborarem suas perspectivas e projetos de vida. e. Outro fator é em relação à ausência de políticas publicas ou aquelas que se apresentam são insuficientes para assegurar condições de garantia de preços justos dos produtos e renda para as famílias.

A falta de renda na maioria dos casos, a pouca terra também influencia nas escolhas das jovens camponesas. Constatou-se também que, quando se trata da divisão social do trabalho ainda são expressivas as relações nas quais estão presentes a invisibilidade do trabalho feminino. Em que pese a contribuição social da luta das mulheres contra a dominação/opressão e pela igualdade, o trabalho da mulher, em muitos casos, continua sendo considerado e reproduzido como simples “ajuda”. Isso também se repete na experiência das jovens seja no lazer, no convívio social, no cotidiano de suas vidas. É visível, nas narrativas a reprodução de características da família patriarcal camponesa, reproduzidas nas relações sociais gênero e de classe. Renova-se a crença de que o MMC não apenas recupera e reafirma a categoria campesinato enquanto um ator político, ativo, atuante, bem como, é nele que as jovens também aprendem a re-colocar novas categorias, numa perspectiva diferente. Tanto do ponto de vista de seu histórico de luta contra o capital na sociedade brasileira e internacional, bem como, das relações sociais de gênero e de classe. É, portanto, essa nova ação das mulheres que possibilita nesse movimento a construção de um novo sujeito, dentro de uma categoria mais ampla do campesinato, que são as jovens camponesas. Foi a partir da experiência das mulheres e do MMC que muitas jovens passaram a re-elaborar suas concepções em relação à família e ao papel “atribuído” à mulher camponesa. As jovens passaram a não mais aceitar como “natural” esse universo de privacidade atribuído à mulher. As jovens da primeira década do segundo milênio querem viver diferentes de seu pai e sua mãe, buscam Voltar ao sumário

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outras profissões, estão em busca de formulações que sinalizam para perspectivas de “uma vida melhor”. O debate e a luta em torno do Projeto de Agricultura Camponesa, a busca de autonomia, bem como a possibilidade de acesso ao estudo, foi destaque para a maioria das militantes entrevistadas quando falaram sobre seus projetos de vida e suas perspectivas. As jovens explicitaram elementos que consideram fundamentais para a experiência camponesa: “Ter um pedaço de chão; Ter direito à educação e a educação como direito; Tem que ser um projeto que contemple a família toda; Precisa participação; Ter uma vida em comunidade; Precisa Planejamento; Oportunidades de Lazer; Independência e autonomia das jovens; Emancipação das mulheres e das jovens”. Assim, a leitura estabelecida neste trabalho, permitiu dialogar com as jovens camponesas, com um campesinato re-colocado pelas mulheres do MMC, enquanto identidades que vão sendo construídas no percurso de ações e práticas sejam elas, histórica, social, política de seus sujeitos. Entre os desafios está a necessidade de luta para superar a cultura hierarquizada que inferioriza a mulher, a jovem, o campo, a produção de auto sustento entre outros. Isto só será possível no processo de construção de uma identidade propositiva de resistência e de projeto. Retomar princípios da agricultura camponesa agroecológica parece ser um caminho acertado para se contrapor a esse “modelo” de agricultura química imposto historicamente sendo que este só será possível com a viabilização de políticas sociais públicas. Resta perceber que: Se as jovens pesquisadas não apresentam uma discussão “mais elaborada” em relação aos seus projetos pessoais isso não significa afirmar que elas carecem de perspectivas para suas vidas. Evidencia-se que, o destaque feito pelas mesmas em relação a falta da terra, falta de renda, dificuldades em relação ao acesso ao estudo, falta de soberania, constituído enquanto necessidades das jovens e da família camponesa, é mais um apelo que vem fortalecer o processo de cobrança a ser feita às instituições responsáveis pelos próprios sujeitos que sofrem com tais privacidade vividas no campo, bem como a necessidade do movimento na reavaliação de suas bandeiras e formas de luta nas quais as jovens estão inseridas. Da mesma forma, um dos impasses evidenciados durante a pesquisa foi perceber que as militantes, não raras exceções, ainda limitam-se a cumprir tarefas designadas pelo movimento. As suas ações específicas “de jovens”, entre elas, os cursos, encontros, entre outros, carecem de elaboração propositiva de bandeiras que contemplam as suas necessidades, advindas das próprias jovens. Por fim, há que se reconhecer que as jovens camponesas do MMC, estão permanentemente re-colocando questões mediadoras tanto no âmbito estrutural quanto conjuntural, na perspectiva de um novo horizonte para a família, em relação ao trabalho e à vida camponesa que por conseguinte, deverão ser ouvidas, respeitadas e valorizadas pelos movimentos sociais, pelas instituições públicas e pela sociedade. Pois se considera as jovens camponesas enquanto agentes fundamentais para se pensar os processos de desenvolvimento regional.

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S. A. K. Gaspareto

Referências ABRAMOVAY, Ricardo. Anais do seminário nacional de assistência técnica e extensão Rural. Uma nova extensão para a agricultura familiar. 1997. ARROYO, Miguel G. Outros sujeitos, outras pedagogias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012. BOISIER, S. Y si el desarrollo fuese uma emergência sistémica? Revista Del CLAD Reforma y Democracia, Caracas, Venezuela, n. 27, out. 2003. BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Agrário. MDA. Estatística do Meio Rural 2010-2011. 4. ed. Brasília, 2011. Disponível em: <http://www.mda.gov.br/sitemda/sites/sitemda/files/ user_arquivos_64/pageflip-4204234-487363-lt_Estatsticas_do_Meio_R-1481281.pdf>. Acesso em: 01 jan. 2015 CAMARANO, A. A. & ABRAMOVAY, R. Êxodo rural, envelhecimento e masculinização no Brasil: panorama dos últimos 50 anos. Rio de Janeiro: IPEA, 1999. FRANZEN, Douglas Orestes. Colônia Porto Novo: a experiência de uma colonização étnica e confessional no extremo oeste catarinense. In: TEDESCO, João Carlos. 2013. GASPARETO, Sirlei Antoninha Kroth. As jovens do movimento de mulheres camponesas (MMC): trabalho, família e projetos de vida. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Federal de Campina Grande. Campina Grande, 2009. LENZI, C. L. O modelo catarinense de desenvolvimento. Uma ideia em mutação? Blumenau: FURB, 2000. HADDAD, P. R. A concepção de desenvolvimento regional. In: HADDAD, P. R. et al. (Org.). A competitividade do agronegócio e o desenvolvimento regional no Brasil: estudos de clusters. Brasília, DF: CNPq; Embrapa, 1999. LONGO, Adilor Eduardo. Motivações para a evasão de jovens rurais: um estudo de caso a partir da comunidade de Nossa Senhora Aparecida, Marau/RS (2011). Disponível em: <http://www.pime.org. br/missaojovem/mjjovensrural.htm>. Acesso em: 01 jan. 2015. MALLMANN, Cleiton Franz. A visão dos jovens agricultores de São Carlos (SC) sobre o mundo rural. Dissertação (Mestrado). 2004. MENEZES, M.A. Juventudes rurais do Nordeste: trabalho, migrações e movimentos sociais. Rel. Pesquisa CNPq, 2009. STROPASOLAS, Valmir Luiz. O mundo rural no horizonte dos jovens: o caso dos filhos/as de agricultores familiares de Outro (CS). Tese (Doutorado em Ciências Humanas) - Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2002. TEDESCO, João Carlos. Terra, trabalho e família: ethos e racionalidade produtiva no cotidiano camponês. Tese de doutoramento apresentado no Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Unicamp. 1998. WANDERLEY, M.N. B. Juventude rural: Vida no campo e projetos para o futuro. Projeto de Pesquisa, Relatório de Pesquisa, CNPq, 2006. WEISHEIMER, Nilson. Juventudes rurais: mapa de estudos recentes. Ministério de Desenvolvimento da Agrário/Estudos NEAD, Brasília, 2005.

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S U M Á R I O

SOBRE OS(AS) AUTORES(AS) Anelise Graciele Rambo Professora do Departamento Interdisciplinar da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS). Mestrado em Geografia e doutorado em Desenvolvimento Rural. Tem experiência na área de Geografia Humana e Desenvolvimento Rural, atuando principalmente nos seguintes temas: território, desenvolvimento territorial, agricultura familiar, escalas geográficas, políticas públicas. E-mail: <ane_rambo@yahoo.com.br>.

Arnaldo Luiz Milan Graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Assessor de Gestão Social (ATGS) do Território da Cidadania Planalto Norte Catarinense pela Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) no Projeto “Consolidação da Abordagem Territorial em Santa Catarina.”. E-mail: <milan.territorio@gmail.com>.

Camila Vieira da Silva Professora no IFPA/Campus Avançado Vigia e Coordenadora do Curso Técnico Subsequente em Recursos Pesqueiros na Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestrado em Recursos Genéticos Vegetais e doutorado em Desenvolvimento Rural. Pós-doutorado em Desenvolvimento Rural pela UFRGS e pós-doutoranda em Agriculturas Amazônicas na Universidade Federal do Pará. Tem experiência na área de Agronomia, atuando principalmente nos seguintes temas: canais de comercialização de produtos oriundos de extrativismo, manejo de populações naturais, extrativismo, etnobotânica, etnoecologia e agroecologia. E-mail: <camivs@gmail.com>.

Carlos Eduardo Arns Possui mestrado em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul (2010). Foi professor no curso de Agronomia da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) por 22 anos. Tem experiência na área desenvolvimento rural, atuando principalmente nos seguintes temas: extensão rural, planejamento e diagnóstico participativos, economia solidária (associativismo/cooperação), agroecologia e estágio de vivência. Coordenou programas de extensão universitária como a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP-Unochapecó) e o programa permanente de extensão Apoio a Processos Participativos de Desenvolvimento Local (PAPEL). 259


Cláudio Luiz Orço Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc/Xanxerê). Mestrado em História e doutorado em Educação. Diretor de Graduação da Unoesc/ Xanxerê. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Patrimônio Cultural (GEPPAC), da UNOESC. Atua principalmente nos temas vinculados a Educação, Educação Intercultural e suas relações com a cultura e identidade, bem como patrimônio cultural. E-mail: <claudio.orco@unoesc.edu.br>.

Cláudio Machado Maia Professor titular da Área de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), curso de Ciências Econômicas e Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais, com doutorado em Desenvolvimento Rural. Atua principalmente nos temas referentes à análise de processos de desenvolvimento e integração regional, sociologia econômica aplicada, análise regional, desenvolvimento rural, agricultura familiar e sustentabilidade e temas vinculados ao processo de desenvolvimento territorial, governança e integração regional desde uma perspectiva comparada entre Mercosul e União Européia, com ênfase para as regiões menos favorecidas. E-mail: <claudiomaia.dr@hotmail.com>.

Clério Plein Professor da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) na graduação de Economia Doméstica e Serviço Social. Professor colaborador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Desenvolvimento Rural Sustentável da Unioeste/campus de Marechal Candido Rondon (PR) e no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Agroecologia e Desenvolvimento Rural Sustentável na UFFS/campus de Laranjeiras do Sul (PR). Mestrado e doutorado em Desenvolvimento Rural, com estágio sandwich no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (Portugal). E-mail: <clerioplein@ig.com.br>.

Clóvis Dorigon Pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina. Mestrado em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade, com doutorado em Engenharia de Produção e doutorado sanduíche pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Tem experiência na área de Sociologia, atuando principalmente nos seguintes temas: mercados de produtos alimentares de qualidade diferenciada, agricultura familiar, agroindustria familiar rural, desenvolvimento rural, desenvolvimento regional e sucessão hereditária. E-mail: <clovisdorigon@gmail.com>.

Cristiane Tonezer Professora da Área de Ciências Exatas e Ambientais da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais. Mestre em DesenvolviVoltar ao sumário

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Sobre os(as) autores(as)

mento Rural, com doutorado em Desenvolvimento Rural. Atua principalmente nos temas referentes ao desenvolvimento territorial, desenvolvimento regional e desenvolvimento rural, políticas públicas, políticas sociais, agricultura familiar, geração e gênero, gestão agroindustrial. E-mail: <tonezer@unochapeco.edu.br>.

Dunia Comerlatto Professora da Área de Ciências Humanas e Jurídicas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), curso de Serviço Social e Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais, com mestrado e doutorado em Serviço Social. Coordena o referido Programa desde 2014 e integra o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Participação Social. Desenvolve pesquisas relacionadas aos temas: conselhos gestores; gestão de políticas públicas; políticas públicas a grupos específicos e intersetorialidade. E-mail: <dunia@unochapeco.edu.br>.

Eduardo Ernesto Filippi Professor nos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu em Estudos Estratégicos Internacionais e em Desenvolvimento Rural da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestre em Economia Rural e Doutor em Economia Política pela Université de Versailles - Saint-Quentin-en-Yvelines, França. Desenvolve pesquisas relacionadas aos temas: Evolução da Economia Brasileira Contemporânea - Economia e Meio Ambiente - Economia Política Internacional - Cooperação Sul-Sul - Economia dos CPLP - Desenvolvimento socioeconômico. E-mail: <edu_292000@yahoo.com>.

Eliane Salete Filippim Professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado Profissional em Administração. Doutora em Engenharia de Produção e Sistemas e pós-doutora em Administração Pública e Governo na EAESP/FGV/SP. Editora-chefe da RACE. Suas pesquisas e produção técnica estão focadas em redes e cooperação interorganizacional com ênfase para o desenvolvimento regional e em gestão de pessoas nos temas: gestão da diversidade; aprendizagem e gestão do conhecimento. E-mail: <eliane.filippim@ unoesc.edu.br>.

Elizandra Iop Professora da Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc/Campus de Xanxerê e Chapecó). Mestrado em Educação. Tem experiência na Área das Ciências Sociais com ênfase em Sociologia da Educação, Sociologia Urbana, Sociologia Rural, Antropologia Jurídica e Urbana. Na Área da Educação, atua em História da Educação, Sociologia da Educação, Filosofia da Educação e Metodologia da Pesquisa. E-mail: <elizandra.iop@unoesc.edu.br>.

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Enise Barth Teixeira Professora da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS/campus Chapecó) no Curso de Administração. Mestre em Administração e doutora em Engenharia de Produção. Membro e coordenadora do Núcleo de Estudos em Cooperação (NECOOP). As áreas de interesse em pesquisa são: ensino e pesquisa em Administração, cooperativismo e economia solidária, micro e pequena empresa familiar, educação, aprendizagem e comportamento organizacional. E-mail: <enise.teixeira@uffs.edu.br>.

Fernando Luiz Abrucio Professor e pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV/SP). Mestrado e doutorado em Ciência Política. Presidente da Associação Nacional de Ensino e Pesquisa do Campo de Pública (ANEPCP). Pesquisa temas nas áreas de Ciência Política, Administração Pública, Políticas Públicas e Política Comparada, com ênfase em questões relacionadas à Educação, às Relações Intergovernamentais e o Federalismo, bem como sobre Reforma do Estado e gestão pública. E-mail: <fabrucio@gmail. com>.

Flávio Sacco dos Anjos Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), junto aos Mestrados em Sistemas de Produção Agrícola Familiar e em Desenvolvimento Territorial e Sistemas Agroindustriais da UFPel. Mestrado em Sociologia, doutorado em Agroecología, Sociología y Estudios Campesinos pela Universidad de Córdoba, Espanha, pós-Doutorado junto ao Departamento de Antropologia Social da Universidade de Sevilha, Espanha, pós-doutorado junto ao Departamento de Ciência Política e Social da Università della Calabria. Em 2015 atuou como pesquisador junto ao Centro de Desenvolvimento Rural da Universidade da Calábria e como Professor Visitante da Università degli Studi di Cagliari, Itália. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Sociologia Rural e Sociologia do Desenvolvimento, atuando principalmente nos seguintes temas: agricultura familiar, políticas públicas, pluriatividade, agricultura familiar, segurança alimentar e construção da qualidade na produção agroalimentar. E-mail: <saccodosanjos@gmail.com>.

Graciela Alves de Borba Novakowski Mestre em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó). Assistente Social e Técnica de Extensão na Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP) da Unochapecó. E-mail: <gracielan@unochapeco.edu.br>.

Henrique Aniceto Kujawa Professor da Área de Ciências Humanas e Jurídicas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais. Professor da Voltar ao sumário

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Sobre os(as) autores(as)

Faculdade Meridional (IMED). Mestrado em História e Doutorado em Ciências Sociais. Tem experiência na área de História e Ciências Sociais, atuando principalmente nos seguintes temas: direito humano à saúde, movimentos sociais, controle social das políticas públicas de saúde, conflitos territoriais entre agricultores e indígenas e agricultores e quilombolas. E-mail: <hkujawa@unochapeco.edu.br>.

Iraci de Andrade Professora em cursos de especializações. Atua como assessora e consultora à instituições públicas, conselhos de políticas públicas e organizações populares, com metrado e doutorado em Serviço Social. Tem experiência na Área de Gestão de Políticas Sociais, com ênfase na Política de Assistência Social e Sistema Único de Assistência Social - SUAS. E-mail: <iraci_andrade@hotmail.com>.

James Luiz Berto Professor da Universidade da Fronteira Sul (UFFS/campus Chapecó). Mestrado em Engenharia Agrícola e doutorado em Recursos Hídricos e Saneamento Ambiental. Tem experiência na área de Engenharia Agrícola, com ênfase em Engenharia de Água e Solo, atuando principalmente nos seguintes temas: Balanço de nutrientes, Gestão ambiental, Dejetos suínos. E-mail: <james.berto@uffs.edu.br>.

João Ferrão Investigador coordenador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (UL) e coordenador do Grupo de Investigação “Ambiente, Território e Sociedade” e do Conselho dos Observatórios do ICS-UL. É representante do Conselho dos Reitores das Universidades Portuguesas no CNADS (Conselho Nacional do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável). É pró-reitor da Universidade de Lisboa para a sociedade e comunidades locais. Doutorado em Geografia Humana pela UL. Investiga sobre temas relacionados à geografia, ordenamento do território e políticas de desenvolvimento local e regional. E-mail: <joao.ferrao@ics.ul.pt>.

Maria Elisabeth Kleba Professora na Área de Ciências da Saúde da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), do curso de enfermagem e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrados em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e em Ciências da Saúde. Mestrado em Enfermagem, com doutorado em Filosofia pela Universitat Bremen e pós-doutorado em enfermagem pela UFSC. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Gestão em Políticas Públicas, bem como na área da Educação, com ênfase no Ensino em Saúde. Atua principalmente nos seguintes temas: planejamento e gestão em saúde; participação comunitária e controle social; educação em saúde e ensino na saúde. Coordena o Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Participação Social. E-mail: <lkleba@unochapeco.edu.br>.

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Maria Luíza de Souza Lajús Assistente social. Atuou como professora (1990 - 2016) na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), curso de Serviço Social e Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais, com Doutorado em Serviço Social. Tem experiência na área de Ciência Política, com ênfase em políticas públicas referente à assistência social, habitação e gestão de territórios. E-mail: <mlajus@unochapeco.edu.br>.

Reinaldo Knorek Professor da Universidade do Contestado (UnC/campus Canoinhas) junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Desenvolvimento Regional. Doutor em Engenharia de Produção, Pós-doutorando pela Universidade Nova de Lisboa (UNL). Desenvolve pesquisas sobre os seguintes temas: sistemas produtivos, gestão e administração pública e privada; tecnologia e inovação territorial; planejamento estratégico; atividades produtivas rurbanas; cooperativismo e associativismo; movimentos sociais; questões agrárias; agricultura familiar e estruturação de agronegócio, arranjos produtivos locais; incubadoras tecnológicas; território da cidadania e administração de empresas. E-mail: <reinaldok@unc.br>.

Rodrigo Chaloub Dieguez Mestre em Ciências Sociais. Possui interesse em Ciência Política com ênfase em federalismo e relações intergovernamentais, neoinstitucionalismo e processos decisórios, política municipal e avaliação de políticas públicas. E-mail: <rodrigoodieguez@hotmail.com>.

Rosana Maria Badalotti Professora da Área de Ciências Humanas e Jurídicas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais e em Educação, com doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas. Editora-chefe da Revista Grifos. Desenvolve pesquisa com ênfase nos seguintes temas: desenvolvimento rural, regional e territorial em interface as políticas públicas e sociais; agricultura familiar, trabalho e gênero; organizações e ação política na sociedade regional; educação e diversidades sócioculturais. E-mail: <rosana@unochapeco.edu.br>.

Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto Professora titular na Área de Ciências Humanas e Jurídicas da Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó) no curso de Pedagogia. Mestre em Ciências Sociais e Mestre em História, doutoranda em Desenvolvimento Regional. É membro do Grupo de Pesquisa em Desenvolvimento Regional. Militante do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC). E-mail: <sirlei@unochapeco.edu.br>.

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Sobre os(as) autores(as)

Valdir Roque Dallabrida Professor da Universidade do Contestado (UnC/campus Canoinhas) junto ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu, Mestrado em Desenvolvimento Regional. Mestrado e doutorado em Desenvolvimento Regional, com pós-doutorado no Instituto de Ciências Sociais (ICS) da Universidade de Lisboa (PT). Editor-chefe da Revista DRd-Desenvolvimento Regional em debate. Coordenador Geral da Rede Iberoamericana de Estudos sobre Desenvolvimento Territorial e Governança. Tem atuação acadêmica em torno dos seguintes temas: Teorias e Políticas de Desenvolvimento; Região e Desenvolvimento Regional; Governança Territorial e Desenvolvimento; Marketing Territorial; Território, Ativos Territoriais, Identidade Territorial, Indicações Geográficas e Desenvolvimento Territorial. E-mail: <valdirroqued897@ gmail.com>.

Walter Marcos Knaesel Birkner Atuou como professor da Universidade do Contestado (1995 - 2016) no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenvolvimento Regional. Professor do Centro Universitário Facvest, Lages, SC. Mestre em História Política do Brasil, com doutorado em Ciências Sociais. É consultor-sócio do Instituto de Pesquisa, Assessoria e Consultoria de Blumenau/SC e consultor do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (Ibam) e do Instituto Veritas de Educação/SC, além de avaliador do Instituto de Pesquisa Educacional Anísio Teixeira (Inep). Atua com interesse temático no desenvolvimento regional e no capital social, além de descentralização e federalismo. E-mail: <b-walter@hotmail.com>.

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