Abdullah – Escravo de Deus – Editora Letras

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abdullah ESCRAVO DE DEUS


CÍLVIO MEIRELES

abdullah ESCRAVO DE DEUS


Abdullah – Escravo de Deus Copyright © Cílvio Meireles Copyright © Editora Letras 1ª edição: junho de 2017 Todos os direitos reservados à Editora Letras Rua Engenheiro Rebouças, 1078 – Sala 42 Centro – Foz do Iguaçu – PR CEP: 85851-190 www.editoraletras.com.br Revisão: Rodrigo Silva Karina Silva Edgard Dawa Diagramação: Editora Letras Capa: Kevin Monteiro Foto: Graziela da Cas M498a Meireles, Cílvio, 1977 Abdullah: escravo de Deus / Cílvio Meireles. – Foz do Iguaçu, PR : Editora Letras, 2017. 288p. : 21 cm ISBN 978-85-66209-58-7 1. Biografia. 2. Cultura árabe. 3. Islamismo. 4. Cristianismo. I. Título. CDD: 920 CDU: 929 Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei n° 9.610, de 19/02/1988. É expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia autoriazação, por escrito, da editora.


Dedicatória

À

memória de meu pai Kassem, que através da sua firmeza no ensino religioso e bom caráter me ensinou a amar a Deus e sempre tentar agradá-Lo. Suas valiosas lições e princípios, embora ofuscados em alguns pontos pela doutrina islâmica, nunca me deixaram esquecer, mesmo quando eu estava nas mais densas trevas, que havia um Deus nos céus. Honro sua memória ensinando o que aprendi dele ao meu filho, agora, pela luz da fé verdadeira que está em Cristo Jesus.


Agradecimentos

P

rimeiramente a Deus, que me salvou da escuridão e me transportou para o reino do Filho do seu amor. A todos os irmãos, professores e pastores que me ajudaram e ajudam nesta caminhada. A todos aqueles que incentivaram e apoiaram a publicação deste livro. À minha esposa Sol por estar sempre ao meu lado me auxiliando na vida e no ministério. Que o Senhor use este livro para glorificar o Seu nome e que aqueles que o lerem possam também, assim como eu, conhecer a doutrina verdadeira.


Sumário Prefácio 11 Prólogo 15

Parte I – Líbano Minhas Origens O Dia do Meu Nascimento Uma Tragédia na Minha Infância A “Normalidade” Retorna O Meu Alistamento na Milícia O Treinamento A Missão Suicida A Explosão O Início das Dúvidas Sobre a Minha Luta A Despedida da Minha Terra Natal

21 35 39 45 49 53 61 67 73 79

Parte II – Colômbia Minha Chegada em um País Longe de Casa O Meu Encontro com o Mundo das Drogas O Novo Emprego Sujo A Ligação para Minha Mãe A Morte do Meu Pai O Início do Consumo de Drogas

85 87 91 97 101 109


parte iii – Brasil Capitão Juan, um “Cristão” Contrabandista Minhas Tatuagens A Chegada na Fronteira do Brasil

119 127 129

parte iv – Paraguai Finalmente Alguém da Minha Família Drogas e Crimes Um Encontro Quase Mortal A Ilha das Cobras O Dia da Minha Morte Cristãos na Cadeia O Dia em que eu Realmente Falei com Deus

141 145 153 161 171 181 185

parte v – Brasil e Paraguai A Minha Recuperação 191 O Meu Batismo nas Águas 195 Aprovado para a Liberdade 199 Perseguido por ser Apóstata 201 O Sequestro 205 Ameaças de Muçulmanos Sunitas 209 Eu Perdi o Controle 213 Mudanças e Belos Encontros 217 Um Encontro de Amor “Quase” Perfeito 227 O Meu Casamento 233 O Encontro com Minha Mãe 239 Gratidão 241 Pastor Estêvão, Uma Palavra 247 Personagens da História 269 Glossário 279


PREFÁCIO

E

sta é uma história real que não poderia deixar de ser publicada. A vida de Abdullah ultrapassa o inacreditável e chega às fronteiras da fé. Crescer em uma nação que raramente desfruta de paz, pode influenciar as mentes mais tranquilas e pacíficas. Abdullah é um reflexo da violência gerada por homens ambiciosos que lutam por uma causa própria usando uma bandeira religiosa. O Líbano já teve muitos donos, e até hoje é uma terra dividida que vive em alerta, à espera do próximo conflito. Quando nasce, a criança libansesa recebe uma certidão de nascimento e um passaporte para que possa fugir imediatamente se precisar. Não há como entender a vida de Abdullah de outra forma a não ser admitindo que há nela um plano divino. Para um muçulmano nascer em um hospital cristão no Líbano, ser cuidado por uma enfermeira cristã, ser livre


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da morte por várias vezes – e algumas delas com ajuda de um cristão – não se há de ter dúvidas que a mão de um Ser superior esteve em tudo isso. No Líbano, ao se alistar para fazer parte de um movimento para a libertação do seu país, conseguiu passar por rígidas seleções de guerra e se destacou, chegando a ser escolhido para a mais alta honra: tornar-se um homem-bomba. E ele, de fato, levou sua missão até o estágio final. Mas o explosivo, que era para ser infalível, falhou. Diante do confronto entre obedecer ao livro sagrado do Islã ou à sua liderança, Abdullah é descartado e precisa fugir para sobreviver, sendo obrigado a abandonar a terra natal, a qual ele tanto se dedicou a defender, arriscando a própria vida. A Colômbia foi para ele como uma miragem no deserto, conquistou a confiança de gente grande e desfrutou de muito poder, ajudando a expandir o tráfico de drogas. Para ele, a causa das suas lutas havia mudado, já não eram mais pelo Islã, e sim por sua sobrevivência. Seguranças, mulheres, dinheiro, bens e um produto desejado fizeram parte da vida de Abdullah na Colômbia. Mas um erro pôs tudo a perder. Após a morte do pai, ele quebra a regra básica entre os traficantes – quem vende não usa. Mais uma vez precisou voltar à posição e ao status de um nômade do deserto, sem-terra, lei e ninguém. 12


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Seu desejo agora era chegar ao Paraguai. Mas até chegar lá, ele deveria cruzar o caminho de muita gente: revolucionários, uma senhora idosa, um “cristão” contrabandista, empresários, bandidos e outros que, de algum modo, se tornaram coadjuvantes desta história e, acima de tudo, estendiam a linha cristã que nunca havia sido quebrada, embora ele ainda não percebesse isso. Por onde passava recebia ajuda, mas a imaturidade e o vício faziam com que todos os recursos sumissem como em um passe de mágica. Por fim, chegou ao Paraguai, o destino desejado. Reencontrou o irmão e começou uma nova vida, mas sem sorte, pois o cenário que encontrou era da ilegalidade. Mais uma vez, as influências de sua realidade o levaram a descer ao fundo do poço. Desta vez, parecia não haver volta, um ciclo do mal que o cercava e sufocava. As cicatrizes foram aumentando, passou a viver como mendigo, seu currículo de crimes já estava muito extenso, não havia muita coisa a ser feita, a vida perdia a graça para Abdullah, só lhe restava a morte, mas nem essa o queria. No fundo do poço, apareceu uma luz que abriu-lhe os olhos para entender o seu destino. Já sem esperança, encontrou a linha que Deus havia traçado para ele. Assim nasceu um novo homem. Após prisões, facadas, socos, drogas pesadas, morte, fuga e muitas outras coisas ruins, um novo ser aparece andando nas ruas das cidades da fronteira para confrontar a fé dos seguidores de sua antiga crença. 13


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Desta vez, ele sabia o que fazer, sua missão era: testemunhar o amor de Jesus Cristo. Hoje vive uma nova vida, uma nova fé, as coisas fazem sentido agora, a sua alma está em paz. Cílvio Meireles Jornalista

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PRÓLOGO

E

m um fim de tarde chuvoso, em setembro de 2016, eu estava esperando Abdullah em frente a um lugar onde ele gosta de tomar café com seus amigos e familiares. Para mim, ele já estava dez minutos atrasado, para ele, um árabe, estava no horário. Ao chegar, disse que estava em uma reunião com nossos amigos e também pastores, Paulo e Rodrigo, em sua residência, por isso a demora. Eu estava fazendo uma extensa pesquisa para escrever um livro sobre Jihad e como ele havia sido terrorista, seria a pessoa ideal para uma entrevista. Ao longo da conversa, decidi fazer uma pergunta a ele: – O que você acha de escrever sua história? Eu posso fazer isso se quiser. Ele nunca havia levado muito a sério a ideia de publicar algo sobre o seu passado, embora já tivesse recebido propostas; mas, por serem mais comerciais, ele as rejeitou. Expliquei como eu iria conduzir todo o


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processo e que tinha experiência nisso, aos poucos ele foi me ouvindo e refletindo sobre a ideia, chegou a gostar, mas precisava ouvir a opinião de seus pastores. No fim do nosso café, ele já estava animado com a ideia do livro e eu, aceitado o desafio de engavetar dois outros nos quais estava trabalhando para me dedicar apenas ao dele. – Vou falar com o Paulo e com o Rodrigo e daqui há uma semana te dou a resposta – ele disse. Ele pagou a conta e logo nos despedimos. Eu conheci o Abdullah em 2008, quando me mudei para Foz do Iguaçu. Lembro-me da primeira vez que o pastor Estêvão pediu oração na igreja por um muçulmano que ele iria encontrar e tentar levar para uma casa de recuperação. Poucos dias depois do pedido de oração, ele apareceu em nossa igreja com o pastor. Abdullah tinha cara de bandido, trazia tatuagens que, à primeira vista, pareciam aquelas feitas por detentos e era cheio de cicatrizes de ferimentos a bala e faca, estava com a cabeça raspada e faltavam alguns dentes, não tinha nada a ver com o Abdullah da capa deste livro. O que me chamou a atenção foi a alegria que ele demonstrava sentir por estar em nosso meio naquele dia. Tenho muita sorte por ser a pessoa que escreveu a história dele e também por ser testemunha ocular de quase tudo o que ele viveu no Brasil e no Paraguai, vi suas costas ainda vermelhas das surras e ouvi tudo de primeira mão. 16


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Cinco dias após a nossa reunião, naquela tarde de setembro, ele me deu a resposta, seus pastores haviam aprovado a ideia. Antes de falar com Abdullah, eu já havia conversado com eles também, inclusive com o Estêvão, e todos apoiaram. Marcamos nossos encontros para gravar as entrevistas na igreja, começamos no dia 21 de setembro de 2016, uma quarta-feira, das dez ao meio-dia. As reuniões eram realizadas uma vez por semana, sempre que possível, pois ele sempre viajava muito para contar seu testemunho. Eu sempre me impressionei como ele se lembrava naturalmente de tantos detalhes do seu passado, sei que é comum que alguém que tenha passado anos usando as drogas mais pesadas, tenha problemas de perda de memória, mas esse não foi o caso do Abdullah, ele se lembrava dos mínimos detalhes. Sempre fazíamos uma oração juntos antes das entrevistas, creio que Deus trazia à sua memória o que deveria ser registrado. Foram vários encontros até março de 2017. Eu guardava os primeiros áudios em um pen drive, mas um dia, perdi todos os dados, já tinha umas cinco entrevistas. Eu fiquei em pânico, mas tentei me acalmar. Depois de muita luta, softwares e dias, consegui recuperar tudo o que havia sumido, foi um alívio. Depois disso, passei a gravar também com o celular. Eu demorei para contar isso para ele, só disse que precisávamos orar mais. Eu sou o único leitor que teve o privilégio de conhecer a história de Abdullah de vários ângulos, pois 17


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eu vi suas lágrimas caírem quando ele falou do amigo José, do seu pai e de outros momentos também. Decidi deixar este livro o mais fiel possível aos áudios gravados. Minha intenção foi fazer com que o leitor sinta que está ouvindo a história direto do Abdullah, por isso deixei em primeira pessoa. Este não é um documento completo sobre sua vida, e sim dos eventos mais importantes. Para alguns nomes – marcados com asterisco – foram usados pseudônimos, os demais, assim como nomes de lugares e datas são totalmente verídicos. Espero que este testemunho alcance lugares onde nossas vozes não chegam, e que acima de tudo, o nome de Deus seja glorificado. Boa leitura! Cílvio Meireles Jornalista

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parte I

LĂ­bano


CAPÍTULO I

MINHAS ORIGENS

M

eu nome é Abdullah Hassan, e por motivos de segurança uso um pseudônimo. Eu nasci em 1970, em um hospital cristão, Qalb Yesua (Coração de Jesus), na época o maior do país. Ele ficava no bairro Bashura, em Beirute, Líbano. Meu pai, Kassem, era do norte do Líbano, filho de um líder religioso islâmico, um xeique. Meu avô se chamava Muhammad, ele cuidava de uma mesquita e fazia a chamada para a oração1. Ele era um homem muito influente e respeitado na sua região, dava aulas de como fazer a chamada para a oração e ensinava sobre a fé islâmica. Ele morava longe de Beirute, 1 A oração é um dos cinco pilares da fé islâmica, que são como mandamentos. É uma obrigação o muçulmano orar cinco vezes ao dia, e se a oração for feita na mesquita, é considerada mais forte. A chamada para a oração, conhecida como Azan, em árabe, é realizada por um líder religioso, pode ser feita dentro ou fora da mesquita. Antigamente, usava-se apenas a voz, hoje os alto-falantes em forma de funil predominam nos minaretes. A chamada é a mesma para todos os muçulmanos, independente do grupo.


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a aproximadamente 200 km. Uma das razões para morar tão longe da capital é que, naquela época, os muçulmanos xiitas eram desprezados e não eram bem-vindos na capital, onde o cristianismo maronita2 era predominante. Como meu pai era o filho mais velho, após a morte do meu avô, ele passou a cuidar dos seus irmãos. Muitas vezes pedi a meu pai que falasse sobre a vida do meu avô Muhammad. Ele me dizia que ele havia sido um homem honesto, que nunca havia tido problemas com ninguém e que ele liderava uma mesquita. Meu pai aprendeu tudo com ele, para um muçulmano, um filho é um discípulo. De fato, papai foi educado pelo meu avô e assumiu a liderança islâmica para ensinar e repassar tudo para seus filhos. Infelizmente, não tive o privilégio de conhecer meu avô, porque ele faleceu quando meu pai tinha 15 anos de idade. Vovô teve três filhos e duas filhas, ele foi casado com uma só mulher3. Na verdade, a família do meu pai não gostava da ideia do homem ter mais de uma esposa, ainda que a religião permitisse ter várias. E isso não era porque eles eram pobres ou moravam em uma 2 Os maronitas são cristãos que, apesar de reconhecerem a autoridade do papa, não seguem os costumes da Igreja Católica Romana. Possuem um rito próprio e celebram a missa na língua siríaca. É uma igreja tradicional do Líbano e por muito tempo foi a crença predominante no país. 3 Na crença islâmica, acredita-se que o homem pode ter até quatro esposas ao mesmo tempo. É preciso cuidar da cada uma igualmente. A qualquer momento o marido pode trocar de mulher ou deixá-la, já a mulher não tem direito de ter outros maridos. Em alguns países, são até honradas publicamente se não se casarem novamente após ficarem viúvas. 22


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cidade pequena, mas por crerem que o Alcorão é mal interpretado nesse assunto. Minha avó se chamava Hajji Zainab, era uma mulher muito querida. Meus avós eram libaneses, e vovô não era apenas um líder religioso, mas também tinha um cargo respeitado e de orgulho para a família, pois liderava, conciliava e organizava a cidade onde morava, Hadata, que fica muito próxima da Palestina. As pessoas transitavam normalmente entre os dois países, iam ao trabalho, inclusive montadas em mulas, burros e cavalos, isso na região que hoje pertence aos israelenses. A guerra entre os árabes e Israel começou em 1948, após ser criado o Estado de Israel. Antes todos viviam na mesma terra, judeu, palestino, árabe e cristão, todos em paz. Segundo meu pai, nunca houve problemas entre judeus e árabes ou muçulmanos em nossa terra, inclusive havia nela uma sinagoga judaica, que foi protegida na época da guerra, ninguém mexeu com ela. É bom falar dessa guerra porque poucos brasileiros conhecem a respeito. Foi o Brasil que deu o último voto para criar o Estado de Israel, e muitos árabes, mesmo que não declarem abertamente, têm um certo rancor do Brasil por causa disso. Hoje é difícil encontrar um muçulmano, árabe ou libanês, que fale bem de Israel. Antes do surgimento de líderes cruéis, o clima era de paz. Havia até mesmo casamentos entre árabes e judeus, inclusive na capital do Líbano não aconteciam problemas entre as crenças. 23


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Meu pai fez muitos negócios com judeus. Eles não são maus como os árabes pensam, pessoas boas e ruins há em todo lugar. Não existia muro dividindo o povo em Jerusalém, lá as três religiões (cristianismo, judaísmo e islamismo) adoravam, não havia conflitos, todos viviam em paz. Os judeus iam ao templo islâmico para ver a forma de adoração, e os muçulmanos e cristãos iam à parte judaica para saber mais sobre a Bíblia e a Torá e, principalmente, sobre a adoração dos judeus. Meu avô e meu pai passavam por áreas de outras crenças por curiosidade e ainda achavam interessante ver os religiosos praticando atos segundo as escrituras deles. Não existia esse rancor que se vê hoje. Judeus, árabes, libaneses, palestinos e sírios, todos moravam juntos e viviam bem. Infelizmente, maus líderes mudaram tudo, por amor ao dinheiro e ao poder. Meu avô faleceu dentro da mesquita em que trabalhava. Ele teve um infarto na hora que estava ensinando. A vida dele era 90% na mesquita e 10% em casa, porque a cidade era pequena e não podia ter dois líderes, assim, ele tinha muita responsabilidade. Minha avó era uma mulher guerreira, plantava figo, azeitona, tabaco, trigo e muitas outras coisas para vender, ela muitas vezes dormia no meio da plantação para cuidar dela. Havia tanta paz que a pessoa podia dormir em qualquer lugar. Na época dos meus avós a pessoa que saía de casa, tinha a certeza que iria voltar, hoje não é assim. 24


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Lembro-me de uma história sobre minha avó, pode não parecer, mas meu pai e meus tios confirmam como verdadeira. Em nossa cidade havia uma hiena, animal assustador, carnívoro e feroz, as pessoas com medo não passeavam à noite nessa região. Um dia, minha avó foi dormir no local onde plantava figo para vigiar e cuidar dos animais, quando voltava ao amanhecer, encontrou a hiena, ela brigou com o bicho usando um pau que tinha na mão, minha avó dizia que subiu nas costas da hiena e fez com que o animal a levasse até sua casa. Essa é uma história que passa de geração em geração na minha família, e isso nos traz muito orgulho. Dizem que um marido, amável e forte em casa, escolhe uma mulher mais forte ainda, para que quando ele morrer, ela possa cuidar de tudo na sua ausência. Assim, uma vez que ela dominou um animal selvagem, poderia dominar a casa e a família, ser a líder da casa. A minha mãe Siham, nascida em 1943, é de uma cidade chamada Ayta Al Jabal, lugar muito próximo do norte do Líbano. Esse lugar pertence aos xiitas, os maiores líderes por serem descendentes do profeta Maomé. A minha mãe é descendente do profeta do Islã. A família dela vem da linhagem: Nasrallah, Abdullah, Mourtada e Hussein. Os líderes xiitas que vemos na televisão usando uma faixa preta na cabeça são da linhagem original do profeta, e os que usam faixa branca não são descendentes, mas podem ser líderes. Isso é muito forte entre os xiitas, porque eles escolheram um líder com vínculo sanguíneo 25


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com o profeta para comandar o Islã. Por exemplo, você pode ver o líder do Irã, Ali Khamenei, usando a faixa preta, ele é descendente de Maomé. Os seguidores sabem quem continuou na linhagem durante as gerações. A faixa preta na cabeça dos líderes simboliza luto pelos membros da família do profeta Maomé que foram assassinados, como Ali, Fátima, Hassan e Hussein, nomes muito conhecidos entre os xiitas. Se um muçulmano tem esses nomes de batismo, significa que possuem identidade xiita. Antes a faixa era verde e depois ficou preta como sinal de luto. A filha do profeta, Fátima, casou-se com o primo dele, Ali, e gerou Hassan, Hussein e outros doze netos, que geraram outros, e assim, até os nossos dias. Os seguidores do Islã têm muito respeito por uma família da linhagem de Maomé. Eu sou descendente de Maomé por parte de mãe. Minha linhagem se chama Mirza, que significa misturado, eu não sou “puro”, pois minha mãe se casou com um homem de outra linhagem, só que xiita, pois ela não poderia se casar com um homem de outro grupo. Meu avô, o pai da minha mãe, aceitou que meu pai se casasse com ela mesmo ele não sendo de uma família da linhagem de Maomé, isso somente aconteceu porque meu pai era de uma boa família e filho de um líder muçulmano. O casamento dos meus pais, ao contrário do que muitos podem pensar, não foi arranjando. As cidades 26


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deles são muito próximas e meu avô, por parte de pai, era muito conhecido e respeitado como líder na comunidade. Ele representava muitas cidades, era o único líder. O pai da minha mãe também era um líder local e da linhagem de Maomé, por isso meus avós se conheciam antes de meus pais se casarem. Minha mãe era a filha mais velha e meu pai o primogênito. Era comum os pais levarem os filhos para se encontrarem em eventos religiosos, festas como a de Hussein (Ashura). São nesses eventos que os pais apresentam os filhos e sempre acontece casamento, e foi assim que meus pais se conheceram e gostaram um do outro. Minha mãe tinha 16 anos quando meu pai a encontrou. Ele tinha 18, quando ela completou 21 anos e ele 23, se casaram. Mesmo sendo de uma linhagem pura, minha mãe não se vestia de preto como fazem as mulheres muçulmanas xiitas. Uma coisa muito importante sobre o povo libanês é que nós somos considerados árabes por causa da língua, pois fomos invadidos e dominados pelos árabes, mas o Líbano não é um país inserido totalmente na cultura árabe. O libanês tem um pouco mais de liberdade nas tradições islâmicas, são radicais e firmes na doutrina, teoricamente, mas na prática, muitos costumes como o uso da burca e outras coisas não são totalmente seguidos nas cidades. Já quem vai para a Palestina, o país vizinho, vê as mulheres mais cobertas, pois é uma região comandada pelo movimento extremista Hamas. 27


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O uso da burca foi uma imposição da doutrina wahabita e sunita. É algo mal-entendido, porque no livro dos muçulmanos, o Alcorão, segundo meus avós e meu pai, ela não é obrigatória. Embora seja bom ensinar a se cobrir e ser prudente, é um ato de respeito entre famílias de paz. Meus pais, quando se encontraram pela primeira vez, não namoraram. Meu avô pediu minha mãe em casamento para meu pai, e ela aceitou, pois papai era um homem de boa aparência e de boa conduta, ele tinha 23 anos. Minha mãe chamou a atenção do meu pai com seus olhos azuis e pele clara. Como é comum na cultura árabe foi feito um acordo de casamento. Meu avô materno faleceu em 2009, com 110 anos, ele se chamava Sayyid Ahmad e para o funeral dele, fizeram uma grande homenagem. Minha família sempre dizia que ele era firme e forte, mesmo já idoso trabalhava e andava a cavalo. A causa da morte, segundo minha mãe, foi ele ter parado de trabalhar. Quando se casou, meu pai já trabalhava bastante, pois meu avô já havia morrido, mas antes de partir consagrou o casamento. Depois da morte do meu avô, papai administrou os seus bens. Ele tinha um irmão mais novo, Hussein, que não era um bom administrador. Ele penhorou terras em jogos de baralho, sem que meu pai soubesse disso, pois trabalhava na capital, então os bens sumiram. Mas, pouco a pouco, meu pai começou a recuperar tudo. 28


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Hoje só tenho uma tia da família do meu pai. Minha mais forte lembrança dele é de um homem muito trabalhador, que sempre praticava a doutrina islâmica em casa. Havia muito respeito em tudo, meu pai observava nossa conduta. Ele trabalhava com venda de sapatos. Papai comprava e importava da Itália, viajava para lá e trazia mercadorias até o Líbano, eram lindos modelos de sapatos italianos, coisa de boa qualidade. Mais tarde, abriu uma pequena fábrica para fazer sapatos femininos. Meu pai trabalhava duro fora de casa e minha mãe cuidava da casa e dos filhos. Eles se casaram no norte do Líbano em 1956, e depois fizeram outra festa na capital. O motivo de duas festas foi o tamanho da família, que era enorme, cinco irmãos e oito irmãs, todos religiosos e da linhagem de Maomé. A festa durou sete dias ininterruptos, muitos nem dormiam. Cada dia vinha uma parte, uns iam e outros vinham. A família não participa toda de uma só vez, pois é muita gente para comemorar todos juntos, dá muito trabalho e não há como os noivos darem atenção a tanta gente de uma só vez, por isso os muitos dias de festa, a regra é que ninguém falte. A quantidade de dias depende do tamanho da família, quanto mais pessoas, mais dias de festa, assim todos participam. Quem sofre mais nessa história são os noivos, pois eles têm que dar atenção a todo mundo, e domem de 29


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duas a três horas por noite, o descanso é maior durante o dia. Claro que em uma festa assim tem muita comida, dança folclórica antiga, cânticos islâmicos, briga de espadas, dança a cavalo, demonstração de força. Também há danças para mulheres e homens solteiros. Toda essa exibição resulta em mais casamentos, as mulheres que querem um homem forte para casar ficam observando. A festa foi em Saha Al Ama, a parte principal da cidade, um local para festas e eventos de todo o tipo. Era uma área para reunir pessoas e festejar por sete ou dez dias, pois muitas famílias moram longe, e assim, demoram a chegar. A carne era principalmente de cordeiro, a bebida chá e café, não havia refrigerante. Por curiosidade, eu me lembro de uma bebida chamada Gelol, era como um refrigerante de tâmara, algo nacional, tinha um sabor horrível, mas o povo gostava pois era único. Seguindo a tradição, meu pai pagou o dote para minha mãe. Papai contava que quando eles brigavam, falavam em dividir o dote, então nós perguntávamos: – Por que o senhor não a deixou? – Eu não podia, pois o dote dela foi muito caro – respondia. Claro que queríamos saber o que ele havia dado de presente para ela. Ele disse que deu cinco vacas, três mulas, dois burros e cinco ovelhas. O dote é para a esposa, ela pode cuidar como quiser, mas há maridos espertos, que querem que a mulher cuide do dote 30


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para depois tomá-lo de volta, só que minha mãe foi inteligente, doou tudo para o pai dela. O dote é uma forma de garantia para os pais da noiva, pois se o noivo tem dinheiro para pagá-lo, significa que ele terá dinheiro para cuidar da esposa. Papai pagou caro, a gente sempre brincava que esse dote dava para alimentar uma cidade inteira, meu pai amava muito a minha mãe. Uma vez eles brigaram e minha mãe foi para casa de seu pai por dois dias, papai sofreu tanto que ficou doente. Ele chorava e dizia que amava a minha mãe e não a queria deixar, os filhos para ele sempre estavam em segundo plano. Mesmo sendo muçulmano e com permissão da religião para ter outras esposas, meu pai só gostava de uma mulher, isso é um exemplo que ele nos deixou. Claro que alguns irmãos meus não seguiram isso, tenho irmãos que têm mais de uma esposa e um deles já está no quarto casamento, mas esse comportamento não foi influência de meu pai e avô. Na verdade, meu pai nos desafiava sobre isso, ele dizia que o foco da passagem do Alcorão sobre o direito de casar com quatro mulheres – a sura An Nissa, aya 3 – está em o homem cuidar dos órfãos e não em casar com uma jovem que nunca foi casada. Segundo a interpretação deles do Alcorão, é proibido ter uma mulher que nunca foi casada como outra esposa, o correto é cuidar das viúvas, se unir com uma mulher que tenha cinco ou seis filhos para ajudar a cuidar dos órfãos. 31


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O primeiro filho que meus pais tiveram foi minha irmã Fátima. Eu sou o quinto entre nove irmãos, nem todos estão vivos, um morreu na África de malária, ele se chamava Munir. É cultural nomear o primeiro filho ou filha com nomes de pessoas importantes da religião islâmica. Se nasce um menino dá-se, por exemplo, o nome de Muhammad, se nasce uma menina, Fátima, que foi a primeira filha do profeta do Islã, os xiitas gostam muito de dar esse nome para as meninas. Minha irmã mais velha foi minha segunda mãe. Meus pais se casaram em 1956 e meu pai estava ansioso para ter filhos, claro que ele queria um menino, mas ele não ligava muito. Acredita-se que a doutrina muçulmana veio para salvar as meninas também, pois os árabes, antes do Islã, tinham uma prática de matar meninas quando nasciam, enterrando-as vivas. Esse é um argumento muito usado pelos muçulmanos para falar sobre o cuidado do Islã para com as mulheres, que antes eram consideradas uma maldição. Existe uma sura, a At Taquir, aya 8-9, onde está escrito: “Quando a filha, sepultada viva, for interrogada: Por que delito foste assassinada?”. Essa passagem do Alcorão foi recitada para combater a cultura dos antigos árabes de matar as meninas ao nascer. Muitos pensavam que meu pai iria dar continuidade ao trabalho do meu avô na mesquita, mas na verdade foi meu tio Musa que assumiu essa responsabilidade. Ele ficou na mesquita e meu pai se casou e mudou para a 32


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capital. Hoje a cidade está maior e a mesquita ainda está de pé e tem mais líderes. O problema é que muita coisa mudou, pois a política do Hezbollah é que manda, não há como deixar de pertencer a um partido. O Líbano é um país totalmente dividido, uma cidade pode ter muitos donos, e o que é permitido em um bairro, pode não ser em outro, assim surgem as brigas. Ao chegar na capital do Líbano, meu pai foi trabalhar como comerciante. Em 1965, ele viajou para o Egito, pois os egípcios faziam lindos abajures. Papai era um bom negociante, viajava muito, o passaporte dele era de comerciante, ele ia aonde queria. Na época da guerra do Líbano, ele foi trabalhar na África, isso foi em 1978. Em 1995, ele foi para o Paraguai, e também esteve no Brasil. Apenas em 1997, ele voltou para o Líbano e morreu com 63 anos. Mesmo viajando tanto, não deixava minha mãe desamparada, houve um tempo que ele parou de viajar pois estava doente de saudade da esposa. Disse que não podia mais ficar longe dela. Era um homem bom e emotivo. Minha irmã Fátima (1962) foi a primeira a nascer, depois de um ano Muhammad (1963). Quando nasceu meu irmão, o primeiro homem, meu pai festejou matando um cordeiro na entrada de casa, pois ele conseguiu trazer um menino ao lar. Meu pai tinha muito dinheiro na época, o motivo desse sacrifício do cordeiro ainda é confuso, acredita-se que remeta à história do profeta Abraão, que ao tentar sacrificar o filho, recebeu de Deus 33


CÍLVIO MEIRELES

um cordeiro como provisão, não sabemos se ele tirou isso da Bíblia ou do Alcorão. Os filhos continuaram a vir. Ghada nasceu em 1965, ainda tenho contato com ela, um dia desses o filho dela estava aqui comigo em casa. Depois veio Ali (1968), que está no Líbano. Eu (1970), Armando (1972) que está no Paraguai, depois de quatro anos Malek (1976), seu nome significa rei, Bilal (1981) que nasceu depois de cinco anos. Oito filhos no total, mais Munir que nasceu e logo morreu, foi entre Ali e eu. Meu pai estava em uma boa situação financeira quando todos os filhos nasceram. Morávamos em Beirute, em um apartamento grande que pertencia a nossa família e ficava em uma região de cristãos maronitas. Havia muitos prédios grandes em nossa cidade, o apartamento onde morávamos, por exemplo, ficava no sétimo andar. Tinha quatro quartos, seis varandas, uma sala grande, dois banheiros, cozinha e área de serviço. Esse não era nosso único imóvel, meu pai tinha construído outra casa em outra cidade, Hadata, que tinha dois andares e sete quartos. No apartamento tinha um quarto para meninas, mas os filhos mais novos também dormiam lá, quando um saía de casa o quarto dele era logo ocupado. O apartamento era tão grande que eu andava de bicicleta pelos cômodos.

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