Anderson Ribas
Delicada Mente
Anderson Ribas
Delicada Mente
editora
S Ăƒ O PAU L O - 2 0 1 1
editora
© Editora Lexia Ltda, 2011. São Paulo, SP CNPJ 11.605.752/0001-00 www.editoralexia.com
Editores-responsáveis Fabio Aguiar Alexandra Aguiar Projeto gráfico Fabio Aguiar
Diagramação e capa Equipe Lexia Revisão Renata Ferreira de Almeida Baldi
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação - CIP R482d Ribas, Anderson DelicadaMente / Anderson Ribas. -- São Paulo: Lexia, 2011. 500 p. ISBN 978-85-63557-59-9 Inclui bibliografia
1. Literatura - Brasileira 2. Contos I. Título.
CDD –B869 Ao adquirir um livro você está remunerando o trabalho de escritores, diagramadores, ilustradores, revisores, livreiros e mais uma série de profissionais responsáveis por transformar boas ideias em realidade e trazê-las até você. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser copiada ou reproduzida por qualquer meio impresso, eletrônico ou que venha a ser criado, sem o prévio e expresso consentimento do autor. Impresso no Brasil. Printed in Brazil.
Ainda que eu ande pelo vale das sombras da morte, nĂŁo temerei mal algum... Porque Ele estĂĄ comigo. Salmo 23
Dedicatória
É com muito amor que dedico esta obra a minha mãe, sem dúvida a pessoa mais importante em minha trajetória de vida. Sem sua presença e seus constantes cuidados nada seria possível, nada teria o valor necessário ao caráter que se fez em mim. É a pilastra da minha vida. Eu te amo! Foi com meu pai que aprendi a sonhar e foi inspirado nos sonhos dele que nasceu este livro, que agora tenho a honra de dedicar a ele também, muitos anos depois de ter sido levado pelos anjos.
Agradecimentos
Antes de qualquer outra palavra, agradeço a Deus, pois sem Ele eu nada seria. Não foi fácil essa jornada e todos aqueles que me acompanharam sabem das dificuldades com que chegamos até aqui. Fui abençoado com amigos e acontecimentos que conspiraram a favor de Delicada Mente, mas obra maior está operando em mim através da fé que Deus me deu. A Ele devo tudo que tenho e sou! Onde tudo começou? Com minha amiga, Dra. Viviane Soavinski Barcelos, a primeira pessoa a dizer siga em frente, depositando em mim uma confiança que eu mesmo não tinha. Obrigado, Vivi! E seguindo em frente descobri o teatro e toda sua magia!! Lembro do mestre e amigo João Luis Fiani e toda a equipe do Teatro Lala Schneider, da Cia Máscaras de Teatro e do Núcleo de Profissionalização Teatral. Foi com eles que dei meus primeiros passos em direção a Delicada Mente, mesmo sem saber ainda. O curso de teatro continua ativo, recebendo outros iguais a mim, em busca de conhecimento, amigos e aventuras que só o teatro pode nos proporcionar. Obrigado, Fiani! Devo muito ao meu mestre de plantão e amigo nas horas difíceis, Rogério Bozza. Foi o primeiro a ler meus textos, entusiasmar-se com eles e me presentear
com suas palavras de incentivo, sua presença constante em minha vida e com a direção do meu primeiro drama escrito para o teatro, A Feto. Através da sua brilhante direção o espetáculo foi apresentado ao público de forma primorosa. Graças a ele continuei escrevendo. Obrigado, Rogério! Jamais teria chegado até aqui sem o apoio, o carinho, o amor e as muitas conversas com meu amigo e irmão de coração, Jacir Antônio Criminácio. Foram dias e noites entre conversas aparentemente absurdas sobre a vida de cada personagem deste livro, sobre os acontecimentos que nos cercavam durante as conversas, filosofando entre um copo e outro de cerveja, até que nos perdíamos em devaneios. Muitas vezes rimos, em outras tantas choramos juntos! Sem ele, eu e Delicada Mente não estaríamos aqui hoje. Obrigado, meu amigo Jacir! Durante o trajeto uniu-se a nós o “pequeno” Diego, que com o passar dos dias aprendi a chamar de irmão mais novo. Diego Almeida participou ativamente das discussões sobre as estórias de Delicada Mente e também foi ele quem me levou à ideia do título. Sua participação foi essencial na elaboração desse trabalho. Obrigado, Diego! Não me perdoaria se não tivesse aceitado a primeira carona da minha super amiga Regina Kreusch Razzolini. Foi o início de uma linda amizade! Não conheço outra pessoa que deixaria o esposo, o neto e os filhos na copa de sua casa, enquanto na sala ao lado, durante muitos finais de semana, debruçou-se comigo nas revisões, revisões e intermináveis revisões de Delicada Mente. Estendo este agradecimento ao seu neto Gabriel, aos seus filhos Paola, Jean Carlo e Marlon e ao seu esposo Vico. Obrigado, meus amigos, pela paciência em dividir comigo a sua avó, mãe e esposa! Um agradecimento especialíssimo ao esposo da Regina, o Dr. Edelvino Razzolini Filho, o meu amigão Vico, pois durante as inúmeras caronas que peguei com o casal, comentei sobre meu desejo em escrever um livro e... Sem deixar que eu terminasse a frase ele disparou: - O prefácio é meu, pode deixar comigo! E disse isso sem saber sobre o que eu escreveria. Esse foi um voto de confiança do qual eu jamais esquecerei, confiança esta depositada em mim por um ilustre Professor, Escritor e Doutor, entre outros talentos e reconhecimentos. Inclusive aproveito a ocasião e parabenizo-o pela indicação ao Prêmio Jabuti 2010. Parabéns, meu amigo Vico!
Em um momento muito difícil da minha vida, cheio de dívidas e sem qualquer alternativa visível, recorri a um velho amigo que, sem pestanejar, estendeume a mão mais uma vez, provando que além de um exemplo em sua vida pessoal e profissional é também um homem generoso. Obrigado, Vilson Hardt! Agradeço a todos os integrantes do grupo Eurobrasil que me acolheram como a um verdadeiro amigo desde a primeira vez em que lá estive. Muito, mas muito obrigado a todos! Sou grato aos amigos que durante esse longo percurso estiveram presentes com seu carinho, atenção e muitas vezes compreensão com este pretenso escritor: Dr. Gilberto Taques de Camargo, a quem ouso chamar de meu segundo pai, sempre presente nas horas mais difíceis; Min Yum Kim, pelas inúmeras vezes em que me auxiliou financeira e moralmente; Valmir Azevedo por sua primeira revisão neste livro; Renata Ferreira de Almeida Baldi por sua revisão ortográfica e sugestões; Odair e Matilde Menegasso por acreditarem em mim; Rogério Batistini por seus comentários; Gisele Passaúra, Alessandra Schlemm e Wagner Cândido pelas inúmeras vezes que me ouviram ao telefone, lendo os rascunhos de futuros textos desse livro; ao amigo Edeson Marco Ferreira Pinto, por suas palavras de carinho; a amiga Vilma pelo entusiasmo com que ouviu e leu minhas estórias... Enfim, o fato é que não foram poucos a participar desta fascinante empreitada. Agradeço do fundo do meu coração a todos que direta ou indiretamente contribuíram na criação dos personagens, das nuances e estórias presentes nesta obra. Sem a colaboração de tantos que aqui não estão relacionados e que não são poucos, Delicada Mente não seria possível. A todos o meu Muito Obrigado!
Prefácio
Preambular uma obra é sempre um desafio, independentemente do gênero literário ou do estilo de redação do autor. Porém, é sempre uma honra quando o autor nos convida a estabelecer os prolegômenos de sua obra, posto isso significar que ele nos tem em elevada estima e consideração. Portanto, muito me alegro em apresentar este livro escrito pelo Anderson, além de agradecer pela deferência, sobretudo porque esta não é minha especialidade. Para facilitar minha tarefa, divido essas considerações iniciais em duas partes, a primeira para apresentar o autor e a segunda para falar da obra em si. Escrever sobre o Anderson Ribas é um prazer, porque ele é uma pessoa de convivência prazerosa, a quem tive a oportunidade de conhecer há alguns anos atrás quando minha esposa começou a estudar teatro, como uma forma de passatempo até decidir-se pela profissionalização. Foi assim que conheci o Anderson, em um palco de teatro, arte que ele domina como poucos (embora ultimamente tenha se afastado dos palcos, o que é uma lástima para o teatro paranaense). O Anderson é uma dessas pessoas apaixonadas pela vida, com uma imaginação fértil e extremamente criativo, capaz de criar um roteiro na mesa de um bar, com uma facilidade impressionante. Também é uma daquelas pes-
soas com um coração enorme, capaz de sensibilizar-se pelas dores e dramas alheios de uma forma surpreendentemente bela. É um amigo sincero, leal, delicado, generoso e, ainda, divertido (qualidade difícil de se encontrar nas pessoas nos dias cibernéticos atuais). É esta sua forma de ser e de viver que o leva a querer expressar-se, “colocar no papel” suas ideias e sentimentos, o que para quem convive com ele é algo fantástico. Já tomei contato com várias obras suas (principalmente peças para teatro), algumas com qualidade superior, outras nem tanto (mais por culpa de maus diretores e/ou atores do que culpa do autor). Porém, todas me emocionaram (ou me divertiram) muito. Preferi começar escrevendo sobre o autor para que o leitor possa compreender meus comentários sobre a obra, uma vez que autor e obra sempre se confundem, no final das contas. Portanto, vamos à obra. DelicadaMente, por si só, já é um título extremamente inquietante. Seria relativo a ternura? À delicadeza? À leveza? Ou, então, à debilidade, fraqueza ou fragilidade? Por outro lado, seria relativo a uma mente delicada, terna, leve, débil, fraca ou frágil? Todos esses sinônimos e formas de pensar no título passaram pela minha mente ao tomar contato com os primeiros originais da obra, levando-me afoitamente à leitura de mais de trezentas páginas em apenas um único final de semana. Já na primeira página do primeiro capítulo me deparo com um poema denso e carregado de dubiedades que insinuam o que vem pela frente, sem deixar, contudo, antever absolutamente nada, instigando-me a continuar, saboreando delicadaMente cada uma das páginas do livro. O texto é denso, com uma narrativa instigante, usando a linguagem do povo simples, do interior, refletindo a realidade do dia a dia das pessoas simples que vivem longe dos centros urbanos, retratando a vida nos rincões longínquos desse imenso país. Interessante destacar que a narrativa inclui um período negro da nossa história, a ditadura militar (iniciada com o golpe de 31 de março de 1964 e que somente se encerra com a eleição de Tancredo Neves em 1985), perpassando alguns aspectos marcantes dessa época de nefasta memória, com lucidez e coragem. Ao retratar o envolvimento de “Nhô Chico” com os militares, até a
tortura e assassinato de seu filho, o Anderson faz isso de uma forma brilhante e muito hábil. Porém, convém esclarecer que delicadaMente não é mais uma obra sobre a ditadura militar, esse é apenas mais um dos enredos (são vários que se entrelaçam) habilmente inseridos pelo Anderson ao longo do texto. O livro apresenta a história de várias Marias, cada qual com seu próprio drama, dificuldades, esperanças, fracassos, sucessos, infortúnios e felicidades. Também conta a história de João e Francisco, personagens centrais, que levam vidas completamente distintas até se encontrarem para cumprir o que o destino lhes reserva por culpa dos pecados de seus predecessores. O enredo segue apresentando várias histórias que, em algum momento do livro, se entrelaçam em torno das histórias de João e Francisco, de tal forma que o leitor fica preso à trama, muito bem urdida, de forma a imaginar como ocorrerá a ligação entre os diferentes personagens, cada qual com sua própria história dentro do contexto apresentado pelo Anderson. São histórias de vida iguais às histórias de tantas pessoas com as quais nos deparamos no cotidiano sem sequer perceber seus dramas pessoais, seus anseios, suas ilusões, decepções, sofrimentos, alegrias, tormentos... O Anderson consegue contar essas histórias de forma verdadeira, sem escorregar para a pieguice, nem exacerbar comportamentos inadequados, como o do médico Gentil, que ocupa importante espaço na mente de Francisco, assim como sua vivência no garimpo após deixar Mirazito. A descrição que o Anderson faz de uma corrutela é genuinamente impressionante, algo que somente quem viveu essa experiência pode descrever. A vida no garimpo, extremamente difícil, com todos os personagens aí presentes, comerciantes, prostitutas, garimpeiros, marginais, religiosos, entre tantos outros, são retratados de uma forma precisa, cristalina, fazendo com que o leitor sinta-se partícipe do dia a dia ali reinante. Porém, a história da vida de Francisco, até conhecer Murilo (ou João), é o fio condutor da história que levará o leitor a compreender o que o Anderson quis dizer ao escolher como título a junção das palavras delicada e mente. Assim, o leitor se surpreenderá com o final da história, bem como com a leveza com que delicadaMente, o Anderson conduz sua narrativa vi-
gorosa, sutil e poética, apesar da violência que impera ao longo da história da vida de seus personagens. Espero ter despertado a curiosidade do leitor, porque não revelei absolutamente nada das inúmeras histórias que acontecem ao longo da trama arquitetada pelo Anderson. Quem quiser conhecer a história da Zuleica, da Regina, do Jacir, do Siri, da Cenira, do Otávio, do dr. Gentil e de tantos outros personagens, vai ter que ler o livro. Desejo ao Anderson muito sucesso com este que espero seja apenas o primeiro de muitos livros que ainda hão de vir. Edelvino Razzolini Filho
Sumário
Capítulo 1 Labirinto - 1985
25
Capítulo 2 Soldadinhos de Chumbo - 1964
37
Capítulo 3 A Chuva - 1985
47
Capítulo 4 Vida e Morte - 1965
51
Capítulo 5 Casa Grande - 1966
57
Capítulo 6 Santíssima Trindade - 1985
61
Capítulo 7 Filhos do Acaso – 1967
63
Capítulo 8 Passatempo - 1968
73
Capítulo 9 Da Terra à Terra - 1985
81
Capítulo 10 Ancas de Menina Moça - 1969
83
Capítulo 11 O Cárcere - 1969
89
Capítulo 12 Sangue Bugre - 1969
93
Capítulo 13 Cidade Luz - 1969
99
Capítulo 14 A Rosa da Praça - 1969
103
Capítulo 15 Contraindo Matrimônio - 1969
111
Capítulo 16 Sonho de Matar a Dor - 1969
121
Capítulo 17 Brindando ao Futuro - 1970
127
Capítulo 18 Vícios - 1970
135
Capítulo 19 Não Somos Mais Crianças - 1974
143
Capítulo 20 Delírios - 1976
149
Capítulo 21 Vingança de Sangue - 1976
165
Capítulo 22 Doutor por Excelência - 1976
173
Capítulo 23 Mulheres Trocadas - 1977
177
Capítulo 24 A Arte do Amor - 1977
183
Capítulo 25 Uma Rosa, Um Siri e Outras Milícias - 1979
189
Capítulo 26 Hotel do Lixo na Boca do Luxo - 1980
195
Capítulo 27 Cordeiro de Deus - 1983
203
Capítulo 28 Ruídos - 1983
207
Capítulo 29 A Negra Velha - 1983
211
Capítulo 30 A Viagem - 1983
215
Capítulo 31 “Currutela” - 1983
219
Capítulo 32 Irmãos - 1983
225
Capítulo 33 O Comandante e a Diva - 1983
231
Capítulo 34 A Jura - 1983
239
Capítulo 35 Moças, Fadas e Donzelas do Mundo Novo - 1983
241
Capítulo 36 O Outro Lado da Rua - 1984
247
Capítulo 37 Novos Amigos - 1984
251
Capítulo 38 O Cheiro da Morte - 1984
259
Capítulo 39 O Pecado dos Homens - 1984
265
Capítulo 40 Antes do Amanhecer - 1984
269
Capítulo 41 No Escuro - 1984
283
Capítulo 42 A Vida por Um Olhar - 1984
289
Capítulo 43 Amor Quase Perfeito - 1984
297
Capítulo 44 Irene: Apenas Mais Uma - 1984
305
Capítulo 45 Moça Bandida - 1984
313
Capítulo 46 Na Madrugada - 1984
317
Capítulo 47 Rio dos Mortos - 1984
331
Capítulo 48 Melhor Amigo - 1984
339
Capítulo 49 Menino Homem – 1984/1985
343
Capítulo 50 Paralelos - 1985
347
Capítulo 51 O Diário - 1985
359
Capítulo 52 Notícias do Meu Brasil - 1985
363
Capítulo 53 Palavras Contidas - 1985
367
Capítulo 54 À Noite, Os Anjos se Calam - 1985
379
Capítulo 55 As Graças de Maria - 1985
389
Capítulo 56 Uma Semente no Coração dos Tolos - 1985
399
Capítulo 57 Na Lama - 1985
407
Capítulo 58 Olga - 1985
413
Capítulo 59 Adeus - 1985
419
Capítulo 60 De Homem pra Homem - 1985
423
Capítulo 61 Maria do Rio - 1985
429
Capítulo 62 Romaria - 1985
435
Capítulo 63 Silêncio – 1985/1987
439
Capítulo 64 Pai - 1987
447
Capítulo 65 Dores, Medos e Amores - 1987
453
Capítulo 66 Cenira - 1987
461
Capítulo 67 Poeira - 1987
465
Capítulo 68 Com os Pés Descalços - 1987
479
Capítulo 69 Um Mundo Lá Fora – 1987/1989
493
Capítulo 1
Labirinto – 1985
O som de um tiro... O cheiro de ferro fundido... O gosto do líquido vermelho... Chuva intensa... Há esperança... Depois das águas... Trégua e silêncio... Num profundo poço... De amarguras... Sua respiração... Manteve-se ofegante... Em seus pensamentos... A tormenta não passava. Por fora, ouvia-se o barulho das goteiras... Por dentro, um turbilhão de emoções... Gemendo... Ardendo... Trepidando...
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Numa labareda sem fim... Queimando seu peito... Doendo seus pensamentos... Rasgando suas lembranças... Escorrendo com as águas... Em goteiras continuas... Cegas... Embriagadas... Cortantes... Uma ladainha, anunciando a proximidade das trevas eternas. – O inferno aos pecadores iguais a você! Assim diria o Padre se pudesse vê-lo naquele momento, se soubesse, se conseguisse perceber os rancores de sua alma. Noutras ocasiões, o som das águas fora inspiração às paixões desmedidas, amores proibidos, um sono embalado ao tilintar da chuva, mas não neste momento, não neste momento onde o medo o tomava por inteiro. Medo, que há muito deixara de ser seu companheiro. Não conseguia lembrar-se de um momento sequer onde houvesse dito: – Eu tenho medo... Não, nunca antes. Medo... Esta única e solitária palavra fazia-o estremecer... Em lembranças... Da última vez era apenas um menino, uma criança e, como tal, sentia medo por esse ou aquele motivo. Antes, não poderia se defender e corria às saias da mãe, agarrando-se nelas, choramingando e contando seus medos. Não demorava, e era socorrido com palavras carinhosas e alentadoras, próprias das mães. Agora, homem feito, ainda sentia medo. Suas emoções pendiam entre lágrimas por um amor perdido, palavras desmedidas, atos impensados, ilusões de uma vida desperdiçada...
Quem poderia julgar? Ninguém. Há tempos a solidão batera à sua porta. Não havia quem pudesse alcançar seus limites. Nem ele próprio saberia defini-los naquela hora. Em um breve momento, num segundo reluzente, ele conseguiu lembrar e falou consigo mesmo: – Só tem uma pessoa... Mas esse alguém não mais o entenderia, não agora e ele sabia disso. O ruído das águas escorrendo a sua volta fazia-o lembrar de chuvas passadas. Algumas mansas, outras violentas. Todas deixaram suas marcas. Nesta noite, seu corpo e sua alma se encontravam encharcados, banhados em dores derramadas, decorridas, envelhecidas... Florestas imensas circundavam a pequena vila, tão úmidas e quentes quanto às ruas de terra, onde haviam imensas poças d’água, tomando conta de lado a lado, impedindo a passagem de veículos menores. O lamaçal invadira o lugar todo, sendo aquela a época das chuvas de verão. Ele correu em desespero por várias daquelas vielas alagadas, por onde antes caminhara calmamente. Antes... Antes a cidade lhe pertencia, cada ruela, esquina, beco, toda ela. Mas não nesta noite, quando alguns sentimentos voltavam, emergiam de um passado longínquo. Ele imaginou-os mortos ou esquecidos... Não estavam. E não conseguiu evitar que transbordassem... Numa fúria incontrolável. E depois... Depois teve de fugir, correr e se esconder na escuridão da noite, mesmo sabendo ser inútil a sua fuga. Antes... Antes estava vivo como nunca se sentira... Antes... Havia muito tempo sua vida acabara... Seus amores de... Foram-se todos.
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As mulheres que o amaram... Os companheiros com quem andou... As pessoas, com quem fez amor... Mesmo sem ter amado... Perderam-se no tempo, no antes... Poderia se perguntar tudo de novo, mas nunca encontraria as respostas, não chegaria a elas. As dores e os medos poderiam ir, mas então ele se sentiria vazio, pois foram seus companheiros durante toda uma vida. Poderia rir desses pensamentos insanos, de suas loucuras vividas, de tantas perguntas sem respostas... Poderia simplesmente rir... Afundado nas lembranças do passado... Ecoando em ilusões... A vida parecia tomar algum sentido e apesar de não compreender, ele sabia que a morte o faria por ele. Buscara por ela durante tanto tempo, que talvez a tivesse encontrado finalmente. Talvez devesse se deixar envolver pelos braços desta desconhecida senhora... A morte... Perdeu seus sonhos de infância... A sinceridade inocente da criança dentro dele... Fora-lhe roubada... Arrancada... Tirada pelo próprio viver. A rebeldia da juventude, fugida de suas mãos, ganhou outros rumos. Estes inesperados, impalpáveis, incontáveis... Não quis ferir, magoar, perder àqueles que tanto amava e mesmo assim se foram todos. Então se perdeu em pensamentos... Lembranças, ilusões... Não deveria ter-se deixado levar, mas não conseguiu manter sua lucidez, e agora não conseguia mais voltar... Sentia vergonha por ter sido tão fraco. Assim estava:
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Frágil... Perdido... Suas mãos arranhavam as laterais de um profundo poço... Escuro e frio... Mesmo assim não conseguia sair. Tudo se perdeu... Tudo se foi... As lembranças do passado o perseguiam a cada instante, em cada sonho, em cada palavra... Sentiu-se dopado e sabia que, a qualquer momento, poderia cair. Cair ainda mais naquele infinito poço. A qualquer momento... Não queria lembrar, mas não podia esquecer... Eram pensamentos perdidos, rasgados, machucados, enquanto ele continuou a corrida por uma vida perdida. Antes... Antes o tempo pareceu não existir... Agora não houve tempo, não era mais tempo de desviar da lama onde caminhara durante toda sua vida. Não, não desviou das poças, encharcando-se do barro formado aqui, ali, em todo lugar, em tudo à sua volta e dentro dele mesmo. Dos homens ele poderia fugir. Das águas... Da lama... Nunca. Elas mantinham encharcadas as suas lembranças. Ele correu... Correu... Correu até não restar mais fôlego em sua alma, entrando em becos, vielas entre as casas pobres do vilarejo, pensando facilitar sua fuga naquele labirinto de miséria. Era uma fuga sem rumo, porém necessária. Não tinha condições de colocar ordem em seus pensamentos, nem mesmo conseguia lembrar-se de como chegou até ali. Mesmo tentando, era melhor não pensar... – Por quê? Por quê? Não havia resposta... Não a encontrava. Todos os seus caminhos foram tortuosos até então. Quando pensou descobrir a paz, perdera-a tão rapidamente, tão facilmente que, mesmo se
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arriscando a encontrar os motivos, não conseguia. Com a sonhada paz, perdera também o pouco conquistado em caminhadas pelo mundo à sua volta. Assim foram todos os seus caminhos perdidos, supostamente esquecidos. Agora não poderia fugir por muito mais tempo. As goteiras, o som das águas tilintando ao seu redor, pareciam gemer, ecoando dentro dele, respingando por todos os lados. Uma multidão enfurecida o perseguia. Por vezes, ouviu os brados furiosos que o faziam correr ainda mais... Correr em qualquer direção... Era tudo em que pensava... Evitando outras emoções. Ele correu por vários quarteirões, esgueirando-se pelas ruelas estreitas entre comércios e bordéis, todos fechados pelo adiantado da hora, da alta madrugada. – Melhor assim... – Pensou ele. Nessa noite sem luar, sua visão alcançava dois ou três metros além dele mesmo. O tempo era curto e não poderia parar ou pensar nos caminhos a seguir. Não, não poderia! Corria sem direção, deixando seus pés o guiarem na penumbra da noite. Sua intuição deveria acertar nos passos corridos. Em suas andanças, tempos antes, pudera conhecer todos aqueles lugares. Cada bordel daquela cidade, cada buraco onde antes caminhara acompanhado, percorria agora sozinho. Novamente sozinho corria por sua vida. Isso nunca fora estranho a ele... A vida toda... Correndo... Finalmente chegou aonde seus pés o guiaram. Foi então que os sentimentos pediram por nova chance, uma possibilidade a mais, um olhar de perdão, um ato de compaixão... Não haveria... Ali, naquele local, parou sua corrida, dando tempo aos pulmões. Com a respiração ofegante, lembrou da primeira vez em que estivera ali. Coincidência ou não, seus instintos o levaram de volta ao princípio.
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Chegou aos fundos de um “Bordel Abandonado”, parando sua corrida desenfreada. Escondeu-se por detrás de algumas tábuas soltas, encostadas ao fundo da velha casa. Sua maior aliada ainda era a escuridão da noite. Pensou em rezar, como aprendera com o Padre numa infância distante. Não, não adiantaria rezar, ajoelhar-se, falar com... Não! Deus o havia abandonado há tempos. Melhor seria atentar aos movimentos à sua volta. Alguém poderia se aproximar, já que não eram poucos os perseguidores. Alguém poderia tê-lo visto. Sua arma estava em punho, mas não poderia usá-la. Se atirasse, chamaria a atenção dos outros, dos muitos outros. Então seria encontrado e punido. Sentou sobre os pés, encolhendo-se ao máximo. Agarrava-se aos joelhos, buscando conter algumas lágrimas que já lhe escorriam pela face. Não queria pensar em nada, mas era inútil a tentativa de calar as lembranças, as últimas e derradeiras. Ouviu... Passos se aproximando... Outros se afastando. Seriam os mesmos? Sentia-se só, largado em descaminhos de sua vida, abandonado à sorte dos passos alheios. Eram sombras que o perseguiam, as sombras do passado, de um passado próximo, de outro distante e perdido, de tantos outros que sempre o rondavam, cercavam, feriam... Aqueles que o perseguiam seriam os fantasmas do seu passado? Não, não eram espectros, aqueles que o caçavam. Antes fossem. Sendo assim mais fácil se desvencilhar deles. Naquele momento, as sombras davam lugar a perseguidores de carne e osso e, caso o descobrissem, fariam dele um fantasma. Passaria ele a atormentar seus vilões, vingadores, assassinos, seres que buscavam por sangue, pelo seu sangue. Ele não se entregaria facilmente, afinal não tivera culpa de nada. Tudo fora apenas um acaso do des-
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tino. Acontecera muito rápido e impensado. E quando dera conta do seu ato, já era tarde demais para voltar atrás. Então sua vida tomou outro rumo, este indesejado, imposto pelas circunstâncias, levando-o a sacrificar o seu melhor destino, obrigando-o a correr, fugir, esconder-se como um marginal. Não estava mais ofegante pela corrida. Algumas vezes, prendeu a respiração no intuito de ouvir os passos da morte, vezes se aproximando, noutras se dispersando. Seria aquela a hora da verdade? Seria aquele o momento exato... Encontrado pela morte... Para enfim abrandar sua vida? Talvez não adiantasse se esconder. Mas o medo... Mantinha-o abrigado... Naquele instante... Sonhou deixar aquele lugar, aquela cidade, o estado, o país... Se possível fosse... Deixaria o mundo todo para trás... Longe dele... Fora dele. Mesmo assim, o mais distante possível ainda o faria chorar as lembranças, as marcas, as dores... Elas iriam com ele, fosse para onde fosse. Ao longe, ouvia alguns gritos de homens e mulheres alardeando: – Ele tem que morrer... E ele falava consigo mesmo: – Parece com grito de desespero, de ódio. Eles não sabem o que é ódio! Um desespero descabido. Aqueles que o buscavam nada tinham com o assunto. O desejo de sangue daquela multidão enfurecida só seria saciado quando o encontrassem. O desejo pelo seu sangue escorrendo de volta a terra. Eles continuavam a bradar, anunciando demônios, rondando seu esconderijo:
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– Ele foi por ali... – Gritavam alguns. – Vamos cercar ele por lá... – Retrucavam outros. Eram seres sedentos por suas próprias vinganças, sobre a vida miserável dos que por lá passavam, cada qual com suas histórias, cada qual com seus rancores em vidas desprovidas de qualquer sorte... Privadas de um Deus... Quem sabe? Quem poderia saber naquele momento... Onde as emoções reduziam as razões a nada... As juras de vingança nada haveriam de ter com ele. Corriam, esbravejavam, vociferavam com toda a ira armazenada em suas pobres histórias. Queriam dilacerar seus próprios fantasmas através daquele fugitivo. Se assim o fosse, faria ele a personagem principal de uma velha história contada de pai para filho. Seria ele o Cordeiro de Deus e pagaria por todos os pecados... De todos os habitantes... Da pequena vila chamada por todos de “Vila dos Pecados”. A pequena Babilônia escondida por entre florestas desabitadas, servindo de cenário para um novo conto de terror... Alguém deveria pagar. E alguém estava prestes a quitar todas as dívidas do mundo ao seu redor. Não, não seria ele imolado como a um cordeiro! Qualquer que fosse o seu destino... Não seria aquele. Os fundos do “Bordel Abandonado” serviam de depósito para grandes tambores de óleo vazios. Em pé ou tombados, alguns empilhados, outros espalhados num terreno bastante grande. A casa fechada era apenas mais uma das muitas construções erguidas às pressas e precariamente por toda a cidade. Exatamente naquele local se encontrava o fugitivo, ajoelhado como quem reza sobre a lama deixada pela chuva, abrigado por detrás de tábuas molhadas, respingando nele suas goteiras. Em seu rosto escorriam algumas lágrimas silenciosas, escondidas de si mesmo. Os caçadores pareciam ter-se acalmado ao longe, não podendo se ouvir
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seus passos, ou suas vozes. Os gritos de fúria se calaram, restando apenas os sons das goteiras sobre os tambores. Novamente ele pensou no abandono de si mesmo, no desamparo de sua alma gritando por nova chance. Seria inútil: – De que vale viver assim? Eram cochichos inaudíveis, imperceptíveis, incrédulos. Com o mínimo possível de ruídos, aos poucos levantou, deixando para trás seu esconderijo e só então percebendo o quanto se enganara: à sua frente havia alguém esperando por ele. Não conseguiu conter um suspiro de tristeza, surpresa e esperança: – Você? Não houve qualquer resposta além do olhar acusador à sua frente. Insistiu: – Eu sinto muito! Depois de um momento veio a resposta, quase sussurrada: – Eu também. – Eu não queria isso. – Ah, não? – Eu não queria nada disso – esperou alguns segundos para completar –, eu não quis. – Agora não importa mais. A figura à sua frente levantou o braço, apontando a arma ao peito do fugitivo. Suas mãos tremiam e seu olhar se mostrava perdido num “espaçotempo” longe dali, distante de qualquer possibilidade de voltar atrás. Matálo-ia simplesmente, não haveria alternativa. Não tinha forças e não queria se defender. Encarou seu caçador e insistiu: – Me perdoa. – Não – Foi a única resposta, seca e amarga. – Se é assim, pode atirar. – Eu sei. Aquelas palavras foram cravadas em seu peito como uma faca longa
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e afiada. Pode sentir a dor de uma punhalada, atravessando-o sem piedade. Entre lágrimas, esperou a execução. Através dela encontraria a paz ou queimaria pela eternidade, no fogo do inferno. Não importava mais, nada mais importava. Não desviou os olhos. O som do tiro foi abafado pelas trovoadas, que recomeçaram com todas as forças de sua natureza. Ele soltou sua arma, cambaleou para frente, ajoelhou-se na lama, tombando em seguida para o lado. A chuva recomeçava tão robusta quanto prometiam os sons vindos dos céus, batendo forte nos tambores, causando um rufar ensurdecedor a ambos. A caçada chegava ao seu fim, onde a caça parecia jazer entre poças de água, lama e sangue. O caçador olhou a arma em suas mãos trêmulas, não acreditando em seu feito. Numa reza inconsciente falou ao corpo estendido à sua frente: – Por que tinha que acabar assim? Por quê? Colocando a arma na cintura, por debaixo da camisa, buscou enxugar as lágrimas misturadas às águas da chuva, e se foi... Falando consigo mesmo como se fosse com o outro: – Quem sabe agora você encontre o teu tão sonhado destino... E se foi... Caminhando para longe...
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Capítulo 2
Soldadinhos de Chumbo – 1964
A ditadura foi instaurada no país com o golpe militar de 31 de março de 1964. Dessa data em diante a nação brasileira é marcada a ferros pelo autoritarismo militar. Os direitos foram suprimidos por deveres de total submissão aos novos governantes. Nos grandes centros, onde se podia encontrar com mais facilidade representantes da elite intelectual e financeira do país, as perseguições não encontravam limites. Muitos desapareciam sem explicações. Aqueles que se atrevessem a questionar, corriam o risco de alcançar o mesmo destino. O silêncio ou o total apoio aos desmandos militares era, por assim dizer, a lei imposta à sobrevivência.
No interior do país, para as classes menos favorecidas financeira e intelectualmente, a vida continuava sem grandes alterações. Fome é fome, seja qual for o regime político no país. Poderíamos dizer que este sim é o Brasil dos Brasileiros. E não estaríamos mentindo. A casa era pequena. Foi construída com sobras de madeiras arrumadas aqui e ali, por este ou aquele vizinho condescendente e que, por certo, não via
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mais necessidade em tais sobras. Outras vieram doadas pelos proprietários da fazenda. A pequena residência ficava há cinco quilômetros da sede principal. À sua frente havia uma varanda coberta. Dentro e fora, a casa era de chão batido. Muitas vezes, quando chovia, as águas invadiam o pouco espaço por onde transitavam mãe, três filhos e o pai, quando se encontrava por lá. Esta não era uma falha na construção, e sim a falta em concluí-la. Trabalho este, deixado para depois pelo homem da casa. Um dia, quem sabe, viesse a acabar. Até o presente momento não colocou mais as mãos em tal obra. Toda a cobertura do pequeno paiol consistia em palhas, galhos e folhas secas colhidos nos arredores. As frestas entre as tábuas convidavam os ventos a entrar todas as horas do dia. Os beirais da casa, apesar de bastante largos, não cumpriam sua função, não impedindo a entrada, nada bem-vinda, das chuvas gordas da região. No entanto, era época de seca. Havia mais de três meses não chovia em Mirazito, pequeno município do Estado de Pisadeira. Em pouco tempo o poço estaria seco. Muitas plantações haveriam de se perder pela falta d’água. Dentro da casa uma única parede separava a cozinha do quarto. Algumas tábuas faziam às vezes de camas, sendo duas. Encima os colchões, desgastados pelo tempo e pelo uso. Num dos cantos do quarto havia três tábuas pregadas, servindo de prateleiras, onde eram estocados os mantimentos. O cheiro de fumaça e gordura era constante, impregnando as roupas, os corpos... Na cozinha havia um fogão de barro, que servia de aquecimento nos dias de inverno. Ele estava sempre a queimar lenhas, dia e noite. Ao lado dele, um pequeno caixote de madeira sustentando um balde de ferro com água. Logo acima, uma concha feita de casca de coco pendurada em um prego. Era água de beber. Nas paredes, muitos pregos. Roupas penduradas no quarto, panelas na cozinha. Outros caixotes serviam de bancos em volta de uma pequena mesa encostada à parede, onde eram servidas as refeições. Sobre ela, alguns pratos de ferro, já meio amassados. No lado oposto à porta de entrada, uma janela. Por fora uma grande prancha de madeira servindo de pia. Sobre ela, uma bacia
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sempre com água. A vinte metros da casa, seguindo pelos fundos dela, outra construção em meio a algumas árvores e arbustos. Duas portas dividiam a privada do local para banho. Tinham o necessário à sobrevivência da família. Não havia motivos para reclamações. Todos nasciam, cresciam e morriam acostumados com o tudo que lhes fora concedido pelos patrões... E pelo bom Deus. Maria Menina. Maria Mulher. Maria Esposa. Maria mãe. Esta era a vida de Maria, que estava entre o oitavo e nono mês de gravidez do seu quarto rebento. Maria Mulata, em outra época, fora chamada de Maria Bonita. O tempo passou... A vida de casada e o fardo de menina mãe, fizeram dela Maria Madura, tendo envelhecido antes do tempo natural, deixando para trás a beleza de sua juventude. No fogão crepitavam as lenhas cortadas pelo filho mais velho. A chaleira encima dele borbulhava suas águas. No caso de alguma visita, o chimarrão não demoraria a sair. A chaminé anunciava a toda gente que Maria Mãe estava em casa. Com uma enxada nas mãos, Maria Lavradora fazia o possível para reviver as poucas hortaliças deixadas pela seca. Carpia um pouco, ajoelhava-se, movia a terra com as mãos, arrancava algumas raízes jogando-as fora, outras seriam replantadas, levantava-se apoiada no cabo de sua ferramenta e olhava a horta. – Mardita seca! Soltando o instrumento de trabalho colocava as mãos em suas costas, esticando-se ao máximo. A barriga já lhe pesava, as dores no corpo eram, a cada dia, mais intensas. Passava uma das mãos por sobre o vestido, procurando sentir sua cria.
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– Se acarme, fio. Ocê já vai saí, num farta muitio mais. Ocê num sabe a dor que eu tô nos meus quarto. Com uma mão nas costas e outra em sua barriga, sentia os movimentos da criança cada vez mais ativos. Seus outros filhos brincavam no largo terreiro. Ora brigavam, ora riam, corriam, gritavam... Maria olhava-os de longe, lembrando de seu esposo que há oito meses não dava suas caras por ali. Os dias passavam mais tranquilos sem a presença do homem. – Mió de anssim. – Sussurrava ela. Em seguida fazia o sinal da cruz, arrependendo-se do pensamento pecaminoso. Colocava-se a rezar em voz baixa, culpando-se por sua heresia. Aprendera desde muito cedo suas obrigações como esposa e mulher. Eram as leis divinas: a mulher devia obediência ao marido em qualquer circunstância. Talvez fosse uma herança de Eva, a primeira pecadora conhecida. Por tal pecado, todas as outras deveriam pagar pela eternidade. E assim o era... Maria obedecia às leis divinas e ao seu esposo. Quanto a ele, não se sabia onde encontrá-lo. Mesmo assim, deixara ordens expressas: – Lugá de muié é em casa, cuidano dos fio. Eu tô viajano, mais enquanto eu tivé fora, num quero sabê docê bateno perna por aí. Tamo entendido?” – Eu nem que saio de casa, home. – Num me responda, muié. – Ordenava ele, encerrando o assunto. E assim se fazia. Ela esperava-o por quanto tempo se fizesse necessário. Maria Esposa cuidaria da casa. Maria Mãe dos filhos. Maria Mulher deveria estar sempre aberta a recebê-lo como homem... Sua obrigação era estar com o marido. A tarde caía mansamente. Algumas galinhas soltas pelo terreiro cacarejavam, mas logo se calariam e dariam lugar a outros sons, de outros pássaros, grilos, sapos e tantos outros, próprios de uma fazenda. Há
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alguns passos da mãe estavam suas crias. O mais velho guiava os outros dois, dizendo-se peão boiadeiro, galopando em seu galho seco de um lado ao outro do terreiro, sempre seguido pelos mais novos. Volta e meia gritava-lhe a mãe: – Num pisa nas minhas pranta, que eu já falei. Ai meu Deus do céu, é hoje que eu perdo minha cabeça... Vão tudo apanhá co cabo da enchada... Eu tô avisano... Ocêis vão vê... Cuidado co as minhas fror... Ao lado da casa havia um pequeno jardim, com umas poucas sobreviventes da seca, regadas com muita economia, diariamente, por Maria. Com os gritos, os filhos se afastavam, mas não levava muito tempo, esqueciam das ordens recebidas. E lá estavam eles novamente. Fazia-se um vício a ladainha de Maria. Façamos justiça dizendo que não são todas as mães abençoadas com tal paciência. Esse era, sem dúvida, o caso de Maria, que nascera para a maternidade. O seu mais velho contava com nove anos, a menina oito e, o mais novo quatro. Todos os três montados em seus galhos, correndo pelo quintal, enquanto Maria caminhava de volta até a varanda da casa. Encostando a enxada ao lado da porta, sentou com dificuldade, num caixote próximo a soleira. Olhou os filhos e sorriu. Lembrou dos seus tempos de infância, onde, na mesma idade, não tinha tempo para brincadeiras. Acompanhava seus pais à roça, plantando e colhendo milho, feijão e outros tantos. Lá passava seus dias, sendo aquele o costume da época e do local. Aos treze anos foi vendida ao fazendeiro, dono das terras onde agora morava. Seu pai a entregou ao homem. – O sinhô vai cuidá bem da minha fia, num vai? – Tá desconfiado, homem? Pode levá ela de volta. – Rosnou o comprador. – Não, sinhô. Tô descunfiado, não. Nóis percisa do dinhero. Só preguntei por preguntá. – Então, pega teu dinheiro e vai simbora. – Sim, sinhô.
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Não passou muito tempo e ela engravidou, sendo obrigada a casar. O patrão escolheu um dos peões da fazenda e chamou o Padre, casando-os sem grandes alaridos. Dali em diante, pelos destemperos da vida, fizera-se Maria Esposa e Maria Mãe. Agora se dava ao luxo de ter os filhos por perto. Ao contrário dela, eles não precisavam seguir às roças, correndo soltos como Deus sempre quis. No seu tempo, não se pensava dessa forma. Crianças não tinham mais que deveres e obrigações e quanto menor o poder financeiro da família, mais cedo elas caíam na lida. O que, nesse aspecto, não mudou muito de lá para cá. Nos maiores centros urbanos as tropas militares invadiam as ruas, mostrando sua força e a dita soberania do país. O governo alçava todos os poderes de vida e morte sobre a população. Já no quintal de Maria, suas crias invadiam um o espaço do outro, correndo montados em seus cavalos brancos, próprios dos príncipes de contos de fadas. A mulher, apoiando-se nas laterais da porta, levantou pesadamente. Estava na hora de preparar o jantar. O tempo parecia anunciar as esperadas chuvas, mas não era a primeira vez. Noutras, os avisos foram enganosos. Ela olhou o céu através da janela dos fundos, enquanto amarrava um lenço em sua cabeça. – Mió memo é previni. Caminhando sempre vagarosamente e com cuidado, voltou até a varanda. – João! – Gritou, chamando o filho mais velho. – Que foi, mãe? – João, vai cortá lenha prá mãe e despois recóie as galinha que vai chovê. – Já vô, mãe. – Num é já vô, é tô ino. É prá í agorinha memo que eu tô mandano, antes que chova. – Tá bão, mãe. – Era normal usar certo ar de reclamação. – E num me faça cara feia, senão a vara de marmelo vai cantá! – Tá bão, mãe. – E ocêis dois, entra. Chega de brincadera por hoje. – Ah, mãe! – Reclamou a filha. – Num me desobedece, ora essa.
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– Tá bão, tamo ino. Maria olhou para o balde de água quase vazio. Virou a pouca água sobre a bacia na janela e foi ao poço atrás da casa. Ele estava quase seco. Gritou às crianças: – Hoje ocêis num vai tomá banho. Dexá prá manhã – repetiu –, mardita seca. João, cortando lenha, olhava sua mãe ao lado do poço. – Ô mãe, já num tem bastante lenha? – Não, João. Corta mais que tô mandano. – Tá bão. A criança em sua barriga não acontecera por sua vontade, assim como João. Maria fora tomada à força. Pensava nisso todos os dias de sua existência. Nunca se queixara a ninguém, não havia a quem. O patrão a pegou. Ele gostava de meninas novas... Emboscou-a em seu quarto. Deitou-a sobre a cama. Arrancou suas roupas. Saciou seus desejos. Grávida, foi obrigada a casar. O senhor das terras escolheu seu marido, que nunca soubera da verdade. Vivia bêbado, caído pelos cantos da grande fazenda. Quando o menino nasceu, dera-lhe o nome do pai de criação... João. Sendo assim mais difícil o homem desconfiar da verdade. Esta nova barriga viera da mesma forma, sem o consentimento de Maria, e sem o conhecimento do seu esposo. Com as lenhas cortadas, as galinhas recolhidas no pequeno paiol e o balde abastecido de água, todos se recolheram. A noite chegou, tão calma quanto havia sido a mansidão da tarde. As crianças brincavam agora no interior da casa. Novamente João guiava os menores, marchando e cantando:
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– Marcha sordado, cabeça de papér, quem num marcha direito, vai preso pro quarté... A canção da moda fora aprendida durante uma visita a casa grande. Os filhos de outros empregados sabiam-na decorada, repassando aos filhos de Maria a lição aprendida. Soldadinhos de uma era regada a chumbo... Cantarolavam e marchavam. Maria ria, sentada num dos caixotes ao lado do fogão, volta e meia abrindo as panelas e mexendo os cozidos com uma colher de pau. Sondava os pequenos com o rabo dos olhos, comparando-os e se perguntando em silêncio: – Será que só eu vejo as diferença? Meu Deus do céu, o mais véio é a cara do pai dele. Se ele pudesse adivinhá! Devia de sê herdêro dessas terra tamém. A menina e o filho mais novo eram legítimos, filhos do seu casamento. Em nada pareciam com João. Maria tinha o nome da mãe. Quando nascera, seu pai, ainda bêbado, dera a ordem: – Eu tô dizeno que vai se chamá Maria. Quem manda nessa birosca sô eu. Num vô percisá chamá duas vêiz. É só gritá Maria, se num vié a mãe, vem a fia. E caiu num riso frouxo, desmaiando em seguida ao lado do fogão. O terceiro filho se chamava José por orientação do Padre. Devia homenagear os Santos e, obviamente, a Santa Madre Igreja. Uma vez por mês era celebrada uma missa na fazenda a pedido dos patrões. Todos os empregados deviam comparecer. Essas eram as ordens e todos às cumpriam. João, Maria e José eram os filhos de Maria. Ao que viria, teria ainda de escolher um nome. Não sabendo se era menina ou menino, aguardaria o nascimento. As vizinhas apostavam numa menina. Suas intuições e suas rezas pediam por um menino, escapando assim a má sorte dela própria. O verdadeiro pai do rebento não dissera nada. Após o ato... Manteve-se afastado. As brasas no fogão trepidavam. Sobre ele, as sobras do jantar esperariam uma possível volta do marido. Se chegasse sem aviso, teria o de comer.
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Maria passou um pano úmido nos corpos dos filhos, sendo este o banho naquela noite. Depois levou o lampião até o quarto e se ajoelhou, rezando acompanhada pelos filhos. Após as orações rotineiras colocou as crianças nas camas. João e José dormiriam numa, enquanto Maria mãe e Maria filha, noutra. Com os olhos abertos apreciava seus filhos. – Mãe! – Era o seu mais velho. – O que é, João? – Será que o pai vai vortá inda hoje? – Num sei, João. Dorme, que agora num é hora de conversê. – Mais, mãe... – Num tem mais nem menos. Cala a boca e dorme, moleque. Ô coisa mais triste, viu! – Esperou um momento – João... – O que é, mãe? – Dorme com Deus, fio. – Amém! – Respondeu o menino, com um sorriso nos lábios. Ela temia por seus filhos. As bebedeiras do marido sempre terminavam em violentas brigas. Cada filho seu tinha as marcas dos rompantes do pai. Maria olhou uma última vez as crianças e apagou o lampião. Voltou a rezar em silêncio. Naquela noite nem a chuva, nem seu esposo haviam aparecido. Por graça de Deus... Ou obra do destino.
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