Doutor Arrowsmith
Doutor Arrowsmith Sinclair Lewis Tradução de Lúcia Helena de Seixas Brito
Título original em inglês: Arrowsmith Copyright © 1925 by Houghton Mifflin Harcourt Publishing Company. Copyright © renewed 1952 by Michael Lewis. Amarilys é um selo editorial Manole. Editor-gestor: Walter Luiz Coutinho Editor: Enrico Giglio Produção editorial: Luiz Pereira Preparação: Vivian Milano Revisão: Mariana Tiemi Kavashita Editoração eletrônica: Anna Yue Capa: Axel Sande / Gabinete de Artes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lewis, Sinclair, 1885-1951. Doutor Arrowsmith / Sinclair Lewis ; tradução de Lúcia Helena de Seixas Brito. -- Barueri, SP: Amarilys, 2016. Título original: Arrowsmith ISBN 978-85-204-4200-5 1. Ficção norte-americana I. Título. 16-00575 CDD-813 Índices para catálogo sistemático: 1. Ficção : Literatura norte-americana 813 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por Xerox. A Editora Manole é afiliada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos. Edição brasileira – 2016 Editora Manole Ltda. Av. Ceci, 672 – Tamboré 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel.: (11) 4196-6000 – Fax: (11) 4196-6021 www.amarilyseditora.com.br | info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil
Para o Dr. Paul H. De Kruif, a quem devo não apenas a maior parte das informacões médicas e bacteriológicas presentes nesta história, mas também a ajuda na idealização da própria fábula em si – pela sua compreensão acerca dos persona‑ gens como pessoas vivas, por sua filosofia como cientista. Com este agradecimento, quero registrar nossos meses de companheirismo no trabalho deste livro, nos Estados Unidos, na Índias Ociden‑ tais, no Panamá, em Londres e em Fontainebleau. Quisera eu poder reproduzir nossas conversas ao longo do dia, e as tardes no laboratório, os restau‑ rantes à noite e o deque à alvorada durante nossa viagem a vapor pelos portos tropicais.
capítulo 1
A
carroça, que meneava por entre bosques e pântanos da região descampada de Ohio, era conduzida por uma garota maltrapilha de cator‑ ze anos. Os ocupantes da carroça haviam sepultado a mãe da menina ao lado do rio conhecido pelo belo nome de Monongahela e a própria filha lhe cobrira a cova com torrões de grama. O pai, acometido pela febre, estava deitado encolhido sobre o chão da caçamba e, ao lado dele, brincavam os irmãos e as irmãs da garota – crianças sujas, esfarrapadas, alegres. A menina estancou o veículo em uma bifurcação do caminho de rel‑ va, e o homem doente falou, com a voz trêmula: — Emmy, é melhor ir para aquele lado, na direção de Cincinnati. Acre‑ dito que se pudermos encontrar seu tio Ed, ele nos receberá. — Ninguém vai nos receber — disse ela. — Vamos continuar até onde pudermos chegar. Vamos para oeste! Existe por lá uma porção de coisas novas que eu pretendo ver! Ela cozinhou o jantar, colocou as crianças na cama e sentou‑se sozi‑ nha junto ao fogo. Essa menina era a bisavó de Martin Arrowsmith. II Sentado, de pernas cruzadas, na cadeira de exames do consultório de Doc Vickerson, um rapaz lia o Anatomia de Gray. O nome dele era Martin Ar‑ rowsmith, oriundo de Elk Mills, no estado de Winnemac.
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A população de Winnemac (que no ano de 1897 não passava de um antiquado vilarejo com suas casas de tijolos vermelhos, recendendo a maçã) suspeitava que aquela cadeira ajustável, de couro marrom, que Doc Vicker‑ son utilizava tanto para procedimentos simples quanto para as raras extra‑ ções de dentes e as frequentes horas de repouso, fora, no início de sua exis‑ tência, uma cadeira de barbeiro. Imperava também no local a profunda convicção de que no passado seu proprietário respondera pela denomina‑ ção de Dr. Vickerson; contudo, já havia muitos anos que ele passara a ser conhecido apenas como Doc – um homem cheio de caspa e muito menos flexível do que a cadeira. Martin era filho de J. J. Arrowsmith, o gerente do Bazar de Confecções Nova York. Como consequência de puro atrevimento e muita obstinação, ele se tornara, já aos catorze anos, um assistente informal (e incontesta‑ velmente não remunerado) de Doc. E quando este saía para atender a cha‑ mados da população, o rapaz tornava‑se responsável pelo consultório – muito embora ninguém jamais tivesse sido capaz de compreender que responsabilidade era essa. Ele era um garoto delgado e não muito alto. Seus cabelos, assim como os olhos inquietos, eram escuros, e sua pele era incomumente clara. Esse contraste lhe conferia um ar de ardente volubi lidade. O formato anguloso da cabeça e a razoável largura dos ombros asseguravam o aspecto viril de sua figura, eliminando qualquer possível traço de feminilidade e daquela sorumbática timidez que os jovens cava‑ lheiros do mundo das artes denominam sensibilidade. Quando ele erguia a cabeça para escutar, sua característica expressão de autoridade e inde‑ pendência ficava evidenciada pelo movimento de elevação e involuntário tremor da sobrancelha direita, ligeiramente mais alta do que a esquerda, deixando entrever um espírito combativo – um olhar de impertinente in‑ terrogação que costumava incomodar seus professores e o superintenden‑ te da Escola Dominical. A exemplo da maioria das pessoas que habitavam Elk Mills antes da imigração eslavo‑italiana, Martin era um típico representante da raça pura anglo‑saxônica americana, ou seja, o resultado da combinação das etnias germânica, francesa, escocesa, irlandesa, provavelmente um pouco da es‑ panhola, decerto uma pequena dose das cepas agrupadas como “judeus” e uma grande porção do grupo étnico inglês que, por sua vez, advém da
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mistura de bretão, celta, fenício, romano, germânico, dinamarquês e sue‑ co primitivos. Não se pode afirmar com certeza que o impulso de Martin, ao se unir a Doc Vickerson, fosse pautado pelo pleno e virtuoso desejo de se tornar um grande médico. Ele de fato admirava a equipe do doutor por seu ofício de fazer curativos em contusões provocadas por pedras, dissecar esquilos e explicar as surpreendentes e misteriosas questões contidas na fisiologia, mas, ao mesmo tempo, não era completamente imune à ambição de exer‑ cer tal glória no seio desse grupo, do mesmo modo que dela desfrutava o filho do ministro episcopal, um indivíduo capaz de fumar um charuto in‑ teiro sem sofrer as inconveniências das náuseas. Assim sendo, nessa tarde, Martin se entregou com determinação à leitura da seção sobre o sistema linfático e, à medida que balbuciava as palavras longas e incompreensíveis, provocava um zumbido que tornava ainda mais soporífero aquele recinto poeirento. Das três salas ocupadas por Doc Vickerson, essa era a mais importan‑ te. Situada sobre o Bazar de Confecções Nova York, ela tinha vista para a Rua Principal. Em um dos lados do recinto ficava a imunda sala de espera e no outro, o quarto de Doc, um viúvo idoso que não dava a mínima im‑ portância àquilo que denominava “minúcias femininas”. Desse modo, o quarto, com sua escrivaninha bamba e suas cobertas bolorentas, só via si‑ nal de limpeza quando dos raros ataques de higienização sofridos por Martin. A sala principal desempenhava, ao mesmo tempo, o papel de escritó‑ rio de negócios, sala de consulta, centro cirúrgico, sala de estar, covil de jogos de pôquer e depósito de armas de fogo e apetrechos de pescaria. Apoiado em uma parede de reboco marrom ficava um armário de coleções zoológicas e curiosidades médicas e, ao lado dele, o objeto mais assusta‑ dor e fascinante nunca antes visto naquele mundo pueril de Elk Mills – um esqueleto com um lúgubre dente de ouro. À noite, quando Doc estava au‑ sente, Martin aproveitava para engrandecer seu prestígio entre os mem‑ bros da equipe. Ele os conduzia através da indescritível escuridão e acen‑ dia um fósforo de enxofre dentro da mandíbula do esqueleto. Preso na parede, via‑se um quadro esmaltado sobre o qual se apoiava um pequeno peixe empalhado – ambos trabalhos de confecção caseira. Ao lado do forno enferrujado, uma caixa de serragem descansava em cima de
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um oleado pegajoso, com as fibras puídas. Na mesma mesa gasta pelo uso ficava uma pilha de notas relativas a débitos de “devedores caloteiros”, de quem Doc vivia prometendo exigir pagamento imediato, mas de quem ja‑ mais, em hipótese alguma, agora ou no futuro, iria receber. Para o laborio‑ so doutor, em se tratando daquela cidade murmurante, um ou dois anos, uma ou duas décadas, um ou dois séculos significavam a mesma coisa. No canto mais insalubre, ficava uma pia de ferro fundido, usada com mais frequência para a lavagem dos pratos sujos de ovos do café da manhã do que para esterilização dos instrumentos. Em sua borda descansavam um tubo de ensaio e um anzol quebrados, um frasco de pílulas esquecido e sem identificação, um tacão com pregos nas pontas, uma bituca de cigar‑ ro amassada e um bisturi enferrujado fincado em uma batata. A desoladora falta de esmero que dominava toda a sala era a alma e o símbolo de Doc Vickerson. Tanto mais excitante do que a monótona pilha de caixas de sapato do Bazar Nova York, ela representava um chamariz de questionamentos e aventuras para Martin Arrowsmith. III O garoto levantou a cabeça e ergueu sua indagativa sobrancelha. Da escada, vinha o som dos passos desajeitados de Doc Vickerson. Ele estava sóbrio! Martin não teria necessidade de ajudá‑lo a se deitar. Contudo, o fato de Doc passar primeiro pelo corredor antes de ir para seu quarto era um mau sinal. O garoto escutou atentamente. Ele ouviu quando o outro abriu a parte de baixo do lavatório, onde mantinha suas garrafas de rum da Jamaica. Depois de um longo gorgolejo, o invisível dou‑ tor guardou a garrafa e fechou a porta, chutando‑a com determinação. Ape‑ nas um drinque; as coisas ainda estavam sob controle. Se o homem entras‑ se imediatamente na sala de consultas, Martin estaria a salvo. Mas ele permaneceu no quarto. Martin suspirou quando ouviu as portas do lava‑ tório serem apressadamente abertas outra vez e escutou o som de mais um trago – e depois um terceiro. O andar de Doc denotava mais entusiasmo quando ele entrou no escritório – uma massa humana cinzenta com uma massa de bigodes cin‑ zentos; uma forma vasta, irreal e indefinida, como se fosse uma nuvem as‑
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sumindo momentaneamente a forma de um homem. Em uma rápida in‑ vestida, como a de alguém que deseja evitar uma discussão a respeito de seu ato de transgressão, Doc se dirigiu resmungando, com passos curtos e desajeitados, até a cadeira de sua escrivaninha. — O que você faz aqui, meu jovem? O quê? Eu sabia que o gato iria ar‑ ranjar confusão se eu deixasse a porta destrancada. Ele parou de falar e sorriu, para demonstrar que estava gracejando – as pessoas costumavam interpretar mal o humor de Doc. Depois, retomou seu discurso em tom mais sério, esquecendo algumas vezes qual era o as‑ sunto de que falava: — Lendo o velho Gray? Muito bem! São apenas três os livros da biblio‑ teca de um médico: Anatomia de Gray, a Bíblia e Shakespeare. Estude. Você pode se tornar um grande doutor. Estabeleça‑se em Zenith e ganhe 5 mil dólares por ano – tanto quanto um senador dos Estados Unidos! Estabele‑ ça uma meta audaciosa. Não deixe as coisas lhe escorrerem pelos dedos. Pratique. Faça uma faculdade antes de ir para a escola de medicina. Estu‑ de. Química, latim. Adquira conhecimentos! Eu trabalho duro... não tenho filhos, não tenho ninguém. Sou apenas um velho bêbado. Mas você... mé‑ dico proeminente. Ganhe 5 mil dólares por ano... “A esposa de Murray tem endocardite. Não consigo fazer nada por ela. Precisa é de alguém que lhe segure a mão. A estrada está uma desgraça. O canal transbordou... tudo inundado. Maldito azar... “Endocardite e... “Pratique. É isso o que você precisa fazer. Os fundamentos. Saber quí‑ mica, biologia. Eu nunca soube. A senhora do reverendo Jones pensa que tem úlcera gástrica. Precisa se operar na cidade. Úlcera... que diabos! Ela e o reverendo comem demais... “Por que não consertam aquele canal? Também não seja um bêbado inveterado como eu. Aprenda a ciência básica. Vou explicar.” Muito embora o rapaz fosse um jovem como tantos outros do vilarejo, dado a atirar pedra em gatos e brincar de pega‑pega, ficou inebriado com a ideia da caça ao tesouro, que assomava em sua mente à medida que Doc se esforçava para transmitir seu ponto de vista a respeito do orgulho de aprender, da universalidade da biologia, da triunfal exatidão da química. O doutor não passava de um homem velho, gordo, sujo e sem virtudes. Sua
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gramática era duvidosa, seu vocabulário assustador e as referências que fazia ao rival, o bom Dr. Needham, eram verdadeiramente chocantes. No entanto, ele evocava em Martin a imagem de substâncias químicas que ex‑ plodiam com excessivo barulho e mau cheiro, e de pequenos animais visí‑ veis apenas em um microscópio – aqueles que os olhos de nenhum garoto de Elk Mills jamais contemplaram. A voz de Doc ia aos poucos se tornando mais pastosa. Ele estava afun‑ dado em sua cadeira, com os olhos embaçados e a boca frouxa. Martin pediu‑lhe que fosse para a cama, mas o doutor insistiu: — Não preciso de cochilo. Não mesmo. Agora me escute. Você não gosta, mas... sou um velho. Vou compartilhar com você tudo o que apren‑ di. Mostrar as coleções. O único museu de toda a região. Um pioneiro da ciência. Centenas de vezes Martin havia se entregado com submissão à obser‑ vação dos espécimes guardados na estante coberta de verniz marrom des‑ cascado: os besouros e os pedaços de mica; o embrião de um bezerro de duas cabeças; os cálculos biliares removidos de uma respeitável senhora, cujo nome Doc citava entusiasticamente a todos os visitantes. O doutor es‑ tacou diante da caixa, agitando seu enorme e trêmulo dedo indicador. — Veja aquela borboleta. O nome é Porthesia chrysorrhoea. O Dr. Nee‑ dham não seria capaz de lhe contar isso! Ele não sabe o nome que se dá às borboletas! Não se importa se você pratica ou não. Você se lembra daque‑ le nome agora? Em seguida ele se voltou para Martin e falou: — Você está prestando atenção? Está interessado? Sim? Oh, diabos! Ninguém se importa em conhecer meu museu... uma pessoa sequer. Só um em toda a região, mas... sou mesmo um velho fracassado. — É muito bem organizado! Sinceramente! — declarou Martin. — Olhe aqui! Olhe aqui! Está vendo isso? Na garrafa? É um apêndice. Fui o primeiro nesse lugar a retirar um. Eu consegui! O velho Doc Vicker‑ son fez a primeira apendicectomia nesse istmo do bosque. Pode acreditar! E o primeiro museu também. Não é muito grande, mas... é um começo. Não joguei dinheiro fora como o Dr. Needham. Eu comecei a primeira co‑ leção... fui eu que comecei! Ele desmoronou em cima da cadeira, lamentando‑se.
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— Você está certo. Vou dormir. Estou exausto. Todavia, quando Martin o ajudou a ficar em pé, ele se desvencilhou, alcançou com esforço sua escrivaninha e olhou para trás vacilante. — Preciso lhe dar uma coisa... começar o seu treinamento. Não se es‑ queça do velho homem. Será que alguém se lembrará dele? Doc tinha nas mãos sua venerada lupa que durante anos usara no es‑ tudo das plantas. Ele observou Martin enfiar a lente no bolso, suspirou, ten‑ tou dizer alguma coisa mais e, em silêncio, caminhou com passos trôpe‑ gos na direção de seu quarto.