escritos judaicos
organização Jerome Kohn e Ron H. Feldman tradução Laura Degaspare Monte Mascaro Luciana Garcia de Oliveira Thiago Dias da Silva
escritos judaicos
Título original em inglês: The Jewish Writings Copyright © 2007 by The Literary Trust of Hannah Arendt and Jerome Kohn Amarilys é um selo editorial Manole. editor-gestor: Walter Luiz Coutinho editor: Enrico Giglio produção editorial: Luiz Pereira preparação: Susana Yunis e Ana Maria Fiorini revisão: Natália Aguilar capa, projeto gráfico e composição: Daniel Justi Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Arendt, Hannah, 1906-1975. Escritos judaicos/Hannah Arendt; tradução Laura Degaspare Monte Mascaro, Luciana Garcia de Oliveira, Thiago Dias da Silva; – Barueri, SP : Amarilys, 2016. Título original: The Jewish writings. 1. Antissemitismo 2. Holocausto judeu (1939-1945) 3. Judeus - História - 1789-1945 4. Judeus - História - 1945- 5. Sionismo I. Título. 16-04413 CDD-305.8924 Índices para catálogo sistemático: 1. Escritos judaicos : Sociologia 305.8924 Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores. É proibida a reprodução por Xerox. A Editora Manole é filiada à ABDR – Associação Brasileira de Direitos Reprográficos Edição brasileira – 2016 Editora Manole Ltda. Av. Ceci, 672 – Tamboré – 06460-120 – Barueri – SP – Brasil Tel. (11) 4196-6000 – Fax (11) 4196-6021 www.amarilyseditora.com.br | info@amarilyseditora.com.br Impresso no Brasil | Printed in Brazil
sumário
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nota dos tradutores
13
prefácio: Uma vida judaica: 1906-1975, por Jerome Kohn
47
uma nota sobre o texto
51
história das publicações
57
introdução: O judeu como pária: o caso de Hannah Arendt (1906-1975), por Ron H. Feldman parte i Os anos 1930
111
o iluminismo e a questão judaica
133
contra círculos privados
137
assimilação original. Um epílogo para o centenário da morte de Rahel Varnhagen
147
a reclassificação profissional da juventude
151
um guia para a juventude: Martin Buber
155
jovens vão embora para casa
161
o julgamento gustloff
167
a questão judaica
173
antissemitismo parte ii Os anos 1940
289
a questão da minoria
301
a guerra judaica que não está acontecendo. Artigos do Aufbau, outubro de 1941 a novembro de 1942
369
entre o silêncio e a mudez. Artigos do Aufbau, fevereiro de 1943 a março de 1944
387
a organização política do povo judeu. Artigos do Aufbau, abril de 1944 a abril de 1945
443
a política judaica
447
por que o decreto crémieux foi revogado
461
novos líderes surgem na europa
467
um caminho para a reconciliação dos povos
477
nós, refugiados
493
o judeu como pária. Uma tradição oculta
525
criando uma atmosfera cultural
531
história judaica, revista
543
a moral da história
551
stefan zweig. Os judeus no mundo de ontem
569
a crise do sionismo
581
herzl e lazare
591
sionismo reconsiderado
635
o estado judeu. Cinquenta anos depois, para onde nos levou a política de Herzl
653
para salvar a pátria judaica
671
as virtudes da personalidade. Uma crítica de Chaim Weizmann: Statesman, Scientist, Builder of the Jewish Commonwealth
675
trilha única pra sião. Uma crítica de Trial and Error: The Autobiography of Chaim Weizmann
679
o fracasso da razão. A missão de Bernadotte
687
sobre a “colaboração”
691
novo partido palestino. A visita de Menachem Begin e os objetivos do movimento político discutidos parte iii Os anos 1950
699
paz ou armistício no oriente médio?
737
magnes, a consciência do povo judeu
739
a história do grande crime. Uma resenha de Bréviaire de la haine: le III Reich et les Juifs, de Léon Poliakov parte iv Os anos 1960
755
a controvérsia eichmann. Uma carta a Gershom Scholem
765
respostas às perguntas de samuel grafton
783
o caso eichmann e os alemães. Uma conversa com Thilo Koch
791
a destruição de seis milhões. Um simpósio da Jewish World
799
“o formidável doutor robinson”. Uma resposta por Hannah Arendt
821
posfácio: “Grande Hannah”, minha tia, por Edna Brocke
835
agradecimentos
839
cronologia
847
índice remissivo
nota dos tradutores
a t r a d u ç ã o r e a l i z a d a pa r a e s t a p r i m e i r a e d i ç ã o e m português do livro The Jewish Writings, foi realizada principalmente a partir da edição original americana de Jerome Kohn e Ron H. Feldman, publicada em 2007. Os textos aqui reunidos foram escritos por Hannah Arendt em alemão, francês ou inglês, considerando a própria trajetória de vida da autora, que embora tenha como língua materna o alemão, foi obrigada a sair de seu país com a eclosão da Segunda Guerra Mundial, tendo vivido na França a partir de 1933, e nos Estados Unidos a partir de 1941. Embora a referência primária para esta tradução tenha sido a edição dos textos em inglês, é preciso destacar que para os textos escritos em francês, utilizamos os originais para sanar eventuais dúvidas, além de termos realizado um cuidadoso trabalho de cotejo. Nos caso dos textos originalmente em alemão, sempre que tivemos acesso a estes, aplicamos o mesmo método.
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Esta tradução também contou com a consulta prévia à professora de cultura judaica, Dra. Marta F. Topel, do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (dlo-usp), na transliteração das palavras e expressões escritas nos idiomas iídiche e hebraico que aparecem no texto da coletânea. O capítulo “O Estado judeu” manteve este título em função da obra clássica de autoria de Theodor Herzl, Der Judenstaat (O Estado judeu), ao qual o texto faz referência, muito embora a designação corrente nesta edição seja Estado judaico, tendo em vista que a palavra “judaico” desempenharia o papel de um qualificativo do Estado de Israel, desde a sua fundação em 1948, enquanto um Estado-nação destinado ao povo judeu, mas que não é inerentemente judeu em sua acepção religiosa, não se constituindo como uma teocracia. Ainda com relação à escolha de expressões e palavras que julgamos adequadas na tradução desta obra, optamos em utilizar a palavra “América” no lugar de “Estados Unidos” e “americanos”, ao invés de “norte-americanos”, uma vez que nos Estados Unidos é bastante comum referir-se à “América” ao tratar-se desse país, muito embora o mesmo não aconteça no Brasil, em língua portuguesa. Ainda, “América” traz a ideia de “Novo Mundo”, um lugar de oportunidades, pluralidade e hospitalidade muito caros à Hannah Arendt, diante do regime totalitário na Europa. Além disso, vale destacar que a própria autora eventualmente utiliza ambos os termos, deixando clara sua intenção de distingui-los, como no texto “A crise do sionismo”. Um dos conceitos arendtianos cuja tradução se apresentou como um desafio foi worldlessness, que aparece na Introdução de Ron H. Feldman à edição americana. Na edição francesa, essa palavra foi traduzida como acomisme o que não nos pareceu uma tradução satisfatória por evocar o acomismo de Spinoza, que possui um sentido muito distante do proposto por Arendt, que tem um caráter ao mesmo tempo filosófico e político, relacionado intimamente a sua ideia
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de política enquanto “amor ao mundo”. Era importante, para uma tradução satisfatória, conservar a palavra mundo1 enquanto núcleo da expressão, qualificando essa forma de estar no mundo como um alheamento político e existencial em relação a este, mas que, enquanto característico do povo judeu na era moderna, tenha sido uma condição imposta, em certa medida, por sua dispersão e exclusão das sociedades das quais participavam, o que a palavra carência expressa ao acolher em si o sentido de privação. Optamos, ainda, por verter Enlightenment por iluminismo e não por esclarecimento. A decisão afeta principalmente “O iluminismo e a questão judaica”, texto escrito originalmente em alemão e publicado sob o título “Aufklärung und Judenfrage”. Há já algum tempo, tradutores do alemão têm optado por verter Aufklärung por “esclarecimento” e não “iluminismo”. As razões são várias, mas a principal talvez seja o uso mais comum do termo alemão, que indica algo mais amplo e natural que o movimento intelectual do século xviii. Em sentido corrente, o termo designa o processo que retira as pessoas das trevas da ignorância conferindo-lhe uma visão esclarecida, ou seja, informada, liberada de certos preconceitos, capaz de lidar com opiniões. No texto em questão, Arendt se serve do termo para indicar, ao contrário, o movimento espiritual que fortificou na Europa ao longo do século xviii. Mais especificamente, a versão alemã
1
Para Hannah Arendt, o mundo seria o interespaço onde ocorrem as relações
humanas ao mesmo tempo em que o resultado de seu agir e fazer, inclusive nos âmbitos intelectual ou espiritual, desde que objetivados enquanto mundo real.
As demais notas de rodapé ao longo deste livro são da própria autora, exceto
esta, as do prefácio, as da introdução, e quando indicadas por N.E. (nota dos editores) ou N.T. (nota dos tradutores). Quando disponíveis em português, as referências bibliográficas foram adaptadas.
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deste movimento. Assim, é precisamente por concordar que “esclarecimento” é um termo mais amplo, que optamos por “iluminismo”, mais restrito e, portanto, mais adequado ao texto de Arendt. Como toda tradução, esta colocou algumas questões que tiveram de ser resolvidas a partir de escolhas, que sempre carregam algum grau de discricionariedade. Estamos cientes dos limites do próprio ato de escolher um termo em detrimento de outro. Portanto, não pretendemos assegurar que estas escolhas constituam a última palavra. O que podemos assegurar, no entanto, é que nosso trabalho foi realizado com o mesmo amor que Hannah Arendt dedicava ao mundo e com a esperança de oferecer acesso mais amplo do público de língua portuguesa ao seu pensamento. Os tradutores Laura D. M. Mascaro Luciana Garcia de Oliveira Thiago Dias da Silva
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o iluminismo e a questão judaica
a questão judaica moderna data do iluminismo; foi o iluminismo – isto é, o mundo não judaico – que a colocou. Suas formulações e suas respostas definiram o comportamento e a assimilação dos judeus. Desde a genuína assimilação de Moses Mendelssohn e o ensaio de Christian Wilhelm Dohm, “Sobre o melhoramento cívico dos judeus” [Über die bürgerliche Verbesserung der Juden – 1781], os mesmos argumentos que encontraram seu principal representante em Lessing aparecem repetidamente em toda a discussão sobre a emancipação judaica. Deve-se a Lessing a propagação de tais discussões sobre tolerância e humanidade, assim como a distinção entre as verdades da razão e as da história. Essa distinção é muito importante porque é capaz de legitimar cada ocorrência de assimilação acidental, interna à história; a assimilação precisa então aparecer meramente como um avanço na compreensão da verdade e não como a adaptação e recepção de uma cultura particular, em um estágio particular – portanto acidental – de sua história.
111
Para Lessing, a razão, que é comum a todos os seres humanos, é o fundamento da humanidade. Ela é a conexão mais humana que liga Saladin, Nathan e o Templário.1 Só ela é a conexão genuína ligando uma pessoa a outra. Esta ênfase da humanidade centrada naquilo que é razoável dá origem ao ideal de tolerância e a sua promulgação. Sua noção de que no fundo cada ser humano é o mesmo ser humano – apesar das diferenças de convicções dogmáticas, morais e de conduta – e sua reverência por tudo que tem um semblante humano não podem ser derivadas unicamente da validade geral da razão como uma característica meramente formal; antes, a ideia de tolerância está conectada intimamente com o conceito de verdade de Lessing, que, por seu turno, só pode ser compreendido dentro do contexto de seu pensamento teológico e de sua filosofia da história. A verdade se perde no Iluminismo – mais que isto, ninguém mais a quer. Mais importante do que a verdade é o homem em sua busca por ela. “O que define o valor humano não é a verdade que alguém tem em sua posse, mas o esforço honesto para ir atrás da verdade.”2 O homem torna-se mais importante que a verdade, que é relativizada em benefício do “valor humano”. Este valor humano é descoberto na tolerância. O domínio completo da razão é o domínio completo da humanidade, da humanitas. É porque essa humanidade é mais importante do que qualquer “posse da verdade” que, na fábula presente na peça de Lessing, o pai dá a cada um de seus três filhos um anel, mas não lhes diz qual é o anel genuíno, do que resulta que o genuíno está de fato perdido. O Iluminismo alemão representado por Lessing não apenas perdeu a verdade como revelação religiosa, mas,
1
Na peça de Lessing Nathan, o Sábio (N.E).
2
G. E. Lessing, Theologische Streitschriften [Disputas teológicas], “Eine Du-
plik” [“Uma réplica”].
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antes, esta perda é vista como algo positivo: a descoberta do puramente humano. Na procura pelo que é genuíno, o homem e sua história – que é uma história de busca – ganham um sentido próprio. O homem não é mais simplesmente o administrador de um bem, e seu próprio significado não depende mais desta posse; em vez disso, ele pode confirmar essa posse, que não é nem objetiva nem salvadora, pela própria busca. Se a busca da verdade, a “expansão das próprias forças”, é vista como a única questão substancial, então, para o homem tolerante – ou seja, para o homem verdadeiramente humano – todas as confissões religiosas são no fim meramente designações diferentes do mesmo homem. A história não tem o poder de provar nada à razão. As verdades da história são acidentais, as verdades da razão são necessárias, e o acaso é separado da necessidade por uma “ampla e sórdida vala”, que, para ser saltada, requereria uma “μεταβασις εἰς ἀλλο γενος”, um salto de uma ordem a outra. As verdades da história simplesmente não são verdadeiras, qualquer que seja a qualidade da evidência, pois tanto sua facticidade quanto sua certificação são sempre acidentais – esta última sendo também histórica. As verdades da história são “verdadeiras” – isto é, universalmente persuasivas e vinculantes – somente à medida que confirmam as verdades da razão. Então é a razão que deve decidir a necessidade da revelação – e portanto da história.3 O acaso da história pode posteriormente ser enobrecido pela razão, que decide subsequentemente que a história revelada é idêntica a si. A história revelada funciona como educadora da humanidade. No fim
3
Cf. Lessing, Zur Geschichte und Literatur [Sobre a história e a literatura], do
quarto artigo, “Ein Mehreres aus dem Papieren des Ungenannten, die Offenbarung betreffend” [Itens diversos dos papéis do um homem desconhecido a respeito da revelação].
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de tal educação, que experimentamos como história, virá o tempo de um “novo evangelho eterno”, que tornará supérfluas outras lições. O fim da história é sua dissolução, quando o que é relativamente acidental é transformado no que é absolutamente necessário. “Tal educação não dá ao homem nada do que ele não poderia ter por si próprio”; ela meramente o conduz a uma perfeição que na realidade já está nele. A história desenvolve a razão até sua autonomia, porque a revelação já guarda em si a razão. A maturidade do homem é a finalidade tanto da revelação divina quanto da história humana. Como educadora, a história tem um sentido ao qual a razão não tem acesso pleno. A razão só pode confirmar o “que” da história, mas deve renunciar a seu “como” enquanto algo externo a suas competências. “Mas se uma revelação pode e deve ser uma revelação [...], então, caso a razão encontre na revelação coisas que a ultrapassem, esta deve servir como mais uma prova à razão de sua própria verdade em vez de ser considerada uma infração a ela.” Essa afirmação não implica um novo reconhecimento da autoridade divina. Deve ser vista em articulação com a tese teológica basilar de Lessing: de que a religião é anterior e independente da Escritura. Verdade como tese, dogma, ou como um objetivo e posse salvadora não é o essencial; a religiosidade é. À primeira vista, isso parece nada mais do que uma aceitação iluminista do pietismo. Fragmentos de um desconhecido (Fragmente eines Ungenannten) de Lessing só pode ser confuso para um teólogo, mas não para um cristão, em meio de cuja fé Cristo é inatingível porque esta fé se apoia na pura interioridade. “As explicações, hipóteses e provas deste homem importam ao cristão? Para ele, sua fé cristã, que ele sente como tão verdadeira, na qual ele se sente abençoado, simplesmente está ali.” Mas na ênfase sobre a intocável interioridade está a desconfiança da Bíblia por parte do Iluminismo; a pura interioridade é destacada porque a objetividade da revelação pela
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Escritura não é mais segura. A separação entre a religião e a Bíblia é a inútil tentativa final para salvar a religião – inútil porque essa separação destrói a autoridade da Bíblia e, com ela, a autoridade visível e cognoscível de Deus na Terra. “A religião não é verdadeira porque os evangelistas e apóstolos a ensinaram; ao contrário, eles a ensinaram porque ela é verdadeira.” Se a verdade da religião precede o texto bíblico, ela não é mais objetivamente segura e deve ser procurada. Essa aceitação iluminista da religiosidade pietista simultaneamente destrói o pietismo. O que é novo não é a ênfase na interioridade, mas o fato de ela ser usada contra a objetividade. A história, assim, aparece no trabalho de Lessing em dois contextos heterogêneos. Primeiramente, a história é a eterna busca pela verdade; ela começa com o amadurecimento do homem, mas seu horizonte é ilimitado para além disso. Em segundo lugar, a história é a educadora da raça humana e chega a seu fim com o amadurecimento humano, que a torna supérflua. A primeira compreensão da história permite ao homem, tendo este se tornado ciente de sua razão, recomeçar e fundar uma história. Essa compreensão é a única que permanece determinante na recepção do pensamento de Lessing por Mendelssohn. Mas para Lessing essa história que deve ser refundada é definitivamente ancorada no passado. O passado governado pela autoridade é, afinal, um educador. O amadurecimento do homem se perfez por meio de uma educação conferida a ele por Deus. Uma vez que a maturidade é alcançada, inicia-se uma segunda história, que difere da primeira porque, embora não renuncie a toda finalidade, desloca-a ao tempo ilimitado em geral – a verdade é um objetivo alcançado apenas por aproximação e em estágios de crescente perfeição. Essa teoria da história tem uma estrutura fundamentalmente diferente da apresentada por Lessing em A educação do gênero humano (Erziehung des Menschengeschlechts). Ela não é de forma alguma uma secularização do cristianismo – e não pode ser, uma vez que nele
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a verdade é reservada exclusivamente a Deus4 – mas desde o princípio é direcionada unicamente ao homem; ela desloca a verdade para tão futuramente quanto possível, visto que a verdade realmente não diz respeito ao homem terreno. A posse da verdade de fato impede o desenvolvimento de todas as possibilidades do homem, inibe a paciência necessária a este desdobramento e direciona seu olhar para longe do que é humano. A verdade concerne somente a Deus e não tem qualquer importância para o homem. Essa exclusiva e irrestrita afirmação da natureza eternamente aberta e fragmentária de todas as coisas unicamente humanas para o bem da humanidade é posta de lado em A educação do gênero humano. Na recepção do Iluminismo por Mendelssohn, sua “formação” (Bildung) ainda se dá no contexto de uma absoluta fidelidade à religião judaica. A defesa dessa fidelidade – contra os ataques de J. K. Lavater, por exemplo – era de grande importância para ele. Os meios para sua defesa foram-lhe fornecidos pela separação estabelecida por Lessing entre as verdades da razão e as verdades da história. Mas juntamente com essa apologia do judaísmo ele tinha de preservar as possibilidades de sua “formação” – e a absoluta autonomia da razão afirmada pelo Iluminismo serviu a seu propósito. “Espíritos que pensam por si mesmos”, Lessing diz, “têm a capacidade de abarcar com a vista toda a extensão da erudição e de perceber que devem encontrar seu próprio caminho através dessa extensão a partir do momento em que vale a pena penetrá-la.”5 Essa ideia de ser capaz de pensar por si mesmo é a fundação do ideal de formação de Mendelssohn; a verdadeira formação não é nutrida pela história e seus fatos, mas, em vez disso, torna-os supérfluos. A autoridade da razão prevalece
4
Cf. Lessing, Theologische Streitschriften, “Eine Duplik,” p. i.
5 Lessing, Theologische Streitschriften, “Anti-Goeze” [“Resposta a Goeze”], p. ix.
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e todos podem chegar a ela sozinhos e por conta própria. O homem pensante vive em absoluto isolamento; independente de todos os outros ele encontra a verdade, que realmente deveria ser comum a todos. “Todo homem segue seu próprio caminho na vida [...] Mas não me parece que era a intenção da Providência que toda a humanidade aqui embaixo constantemente seguisse em frente e se aperfeiçoasse com o tempo.” Para Mendelssohn a razão é ainda mais independente da história, não tem ancoragem nela. Ele argumenta expressamente contra a filosofia da história de Lessing, contra “A educação do gênero humano, que meu finado amigo Lessing concebeu encorajado por um ou outro investigador da história”.6 O conhecimento de história não é necessário para a formação segundo Mendelssohn, que é simplesmente liberação para pensar. Ele não está inerentemente submetido a nenhum objeto pertencente ao alheio mundo da cultura, e ele não precisa descobrir sua “posição no nada” dentro da atmosfera intelectual dominante. Ao adotar a ideia de razão autônoma, Mendelssohn assinalou a noção de pensar por si próprio e permanecer independente de todos os fatos (enquanto que para Lessing a razão era um caminho para descobrir o que é humano); então, igualmente, a teoria da distinção entre as verdades da razão e da história deu uma nova guinada: Mendelssohn a usa e dogmatiza em sua apologia ao judaísmo. Para Mendelssohn, a religião judaica, e somente ela, é idêntica ao que é racional por causa de suas “verdades eternas”, as únicas que só acarretam obrigações religiosas. As verdades da história judaica, Mendelssohn prossegue, eram válidas somente enquanto a religião de Moisés era a religião de uma nação, o que não era mais o caso após a destruição do Templo. Somente “verdades eternas” são independentes de toda
6
Moses Mendelssohn, Jerusalem [Jerusalém].
117
Escritura e apreensíveis em todas as épocas; são a base da religião judaica e é por conta delas que os judeus estão vinculados à religião de seus pais ainda hoje. Se elas não fossem encontradas no Velho Testamento, nem a Lei nem a tradição histórica teriam qualquer validade. Porque não há nada no Velho Testamento que “se oponha à razão”,7 nada em conflito com a razão, o judeu é também vinculado àquelas obrigações que estão fora da razão, mas às quais nenhum não judeu deva ser explicitamente submetido, pois elas são a separação entre os homens. As verdades eternas constituem o fundamento da tolerância. “Quão feliz seria o mundo em que vivemos, se todos os homens aceitassem e praticassem a verdade que os melhores cristãos e os melhores judeus têm em comum.”8 Para Mendelssohn as verdades da razão e da história são diferentes apenas em espécie e não são atribuídas a diferentes estágios do desenvolvimento da humanidade. A razão partilhada por todos os homens é igualmente acessível para todas as pessoas em todas as épocas. Os caminhos para ela, entretanto, variam, e o dos judeus inclui não apenas a aceitação da religião judaica, mas também aderência estrita à sua Lei. A distinção proposta por Lessing entre a razão e a história pretende colocar um fim na religião como dogma. Mendelssohn tenta usá-la especificamente para salvar a religião judaica com base em um “conteúdo eterno” independente de sua comprovação histórica. Mas o mesmo interesse teológico que remove a razão da história também remove o homem que busca a verdade da história. Toda a realidade
7 Mendelssohn, Correspondenz mit dem Erbprinzen von Braunschweig-Wolfenbüttel [Correspondência com o príncipe-herdeiro de Braunschweig-Wolfenbüttel], 1776. 8
Mendelssohn em uma carta a Bonnet, 1770; cf. Moses Mendelssohn, Gesam-
melte Schriften [Escritos reunidos], vol. 7, p. lxxxii et seq.
118
– o mundo a nossa volta, nossos semelhantes, a história – carece da legitimação da razão. Essa eliminação da realidade é intimamente ligada à posição factual do judeu no mundo. O mundo dizia-lhe tão pouco respeito que tornou-se simplesmente inalterável. Essa nova liberdade da razão, da formação, de pensar por si próprio não muda em absolutamente nada o mundo. O judeu “educado” (gebildet) continua a olhar para o mundo histórico com a mesma indiferença do judeu oprimido no gueto. Esta incompreensão dos judeus com relação à história – incompreensão fundada em seu destino de povo sem uma história e nutrida por um Iluminismo apenas parcialmente compreendido e assimilado – é atravessada em um ponto pela teoria da emancipação de Dohm, um argumento que foi crucial pelas décadas seguintes. Para Dohm – o primeiro escritor na Alemanha a assumir sistematicamente sua causa – os judeus nunca são o “povo de Deus” ou mesmo o povo do Velho Testamento. Eles são seres humanos como todos os outros, exceto pelo fato de a história ter arruinado esses seres humanos.9 Mas os judeus agora adotam apenas esse conceito de história. Ele é para eles uma explicação para sua inferioridade cultural, sua falta de formação e produtividade, seu efeito deletério na sociedade. Para eles a história torna-se por princípio a história do que é estranho a eles; é a história dos preconceitos que dominavam as pessoas antes
9
Christian Wilhelm Dohm, Über die Bürgerliche Verbesserung der Juden [So-
bre o melhoramento cívico dos judeus] (1781), vol. 1, p. 45; vol.2, p. 8. Que os judeus são seres humanos como todos os outros; que portanto eles deveriam ser tratados como todos os outros homens; que é somente o barbarismo e o preconceito religioso que os rebaixou e arruinou; que apenas o tratamento oposto, compatível com o bom senso e com a humanidade, pode convertê-los em homens e cidadãos melhores… estas são verdades tão naturais e simples que compreendê-las e concordar com elas é quase a mesma coisa.
119
do Iluminismo. A história é a história de um passado ruim ou de um presente que continua preso ao preconceito. Liberar o presente do fardo e das consequências da história torna-se a tarefa de liberar e integrar os judeus. Tal era a situação simples e relativamente não problemática da primeira geração de judeus assimilacionistas. Mendelssohn não estava apenas parcialmente de acordo em questões teoréticas com defensores da integração como Dohm e Mirabeau; a seus olhos e aos olhos de outros judeus, Mendelssohn era e permaneceu também uma garantia de que os judeus eram capazes e merecedores de melhoria, de que a criação de uma situação social diferente seria suficiente para convertê-los em membros social e culturalmente produtivos da sociedade burguesa. A segunda geração de assimilacionistas – representada por David Friedländer, aluno de Mendelssohn – ainda se apegava à teoria iluminista de uma história arruinada.10 Não mais vinculados à religião como Mendelssohn fora, eles tentaram fazer uso desse solo tão favorável para os seus esforços empregando todos os meios possíveis para entrarem na sociedade. A cegueira do Iluminismo, que considerava os judeus apenas como um povo oprimido, era por eles já tão assimilada que eles negavam sua própria história e consideravam todas as suas particularidades como um impedimento à sua integração, à sua conversão em seres humanos plenos.11 Eles
10
Cf. David Friedländer, “Sendschreiben einiger jüdischer Hausväter” [Carta
aberta a diversos chefes de famílias judias], p. 30 et seq. 11
Ibid., p. 39.
O maior avanço dos judeus é certamente também que seu anseio pelo Messias e por Jerusalém se torna cada vez mais remoto à medida que a razão torna-se progressivamente mais capaz de pôr de lado essa expectativa como uma quimera. É sempre possível que poucos, vivendo como eremitas ou distanciando-se de outra forma dos assuntos do mundo, ainda mantenham tais desejos em seus corações; mas para a
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adotam a distinção de Mendelssohn e Lessing entre a razão e a história e se colocam em favor da razão; de fato foram longe a ponto de lapidar a ideia até a blasfêmia, o que nunca teria acontecido com Mendelssohn: “E se alguém quiser encurralar um investigador reflexivo e honesto com a objeção de que a razão humana não é páreo para a razão divina...? Essa objeção não pode desconfortá-lo por um momento, visto que a própria tomada de consciência da divindade de tal crença e tal obediência atenciosa pertence ao tribunal da razão humana”. Para Friedländer a distinção entre razão e história não mais servia para resgatar a religião judaica, mas era meramente o meio para se livrar dela tão rapidamente quanto possível. Para Mendelssohn, a liberdade ainda significava a liberdade da formação e da possibilidade “de refletir sobre si mesmo e sobre a sua religião”. Mas agora essa reflexão sobre a religião judaica era somente um meio para mudar a “condição política” dos judeus. O pupilo de Mendelssohn contradisse abertamente seu professor, que avisara: “Conformem-se à moral e às condições da terra na qual foram colocados, mas segurem-se firmemente à religião de seus pais. Carreguem ambos os fardos da melhor maneira que puderem”. Friedländer contradisse abertamente essa afirmação quando, apelando ao Iluminismo, à razão e a um sentimento moral que todos os homens compartilham igualmente, ele recomendou o batismo como um meio de “integração pública à sociedade”. Mas em 1799 tal proposta veio demasiadamente tarde. A resposta do prior Teller, a quem era endereçada, foi fria. E Schleiermacher resistia energicamente a tais visitantes indesejáveis. De modo característico, ele atribuiu a “epístola” à “mais velha escola de nossa
maioria dos judeus, pelo menos na Alemanha, Holanda e França, tais ideias não mais encontram qualquer alimento e finalmente seus últimos rastros serão erradicados.
121
literatura”,12 e, ao opor um apelo à razão e ao sentimento moral, enfatizou o que é particular à cristandade e que só pode ser diluído por tais prosélitos. A razão não tem qualquer relação com o cristianismo. Schleiermacher queria proteger o que é peculiar à sua própria religião daquilo que é necessariamente diferente na religião dos estrangeiros. A razão fornecia a possibilidade de um acordo apenas parcial – aplicava-se à cidadania, não à religião. Schleiermacher favoreceu a integração assim que possível. Mas a integração não seria mais o início de uma assimilação completa, embora isso fosse precisamente o que os judeus estavam propondo. “A maneira do Iluminismo”, que presumia que todos os homens fossem originalmente iguais e que queria restaurar essa igualdade, tornara-se “abjeta”. Schleiermacher exige que a lei cerimonial judaica seja subordinada à lei civil e que a esperança de um Messias seja abandonada. Propostas que também são de Friedländer. Ele sequer está ciente de que isso pode significar que ele está desistindo de algo, pois ele quer se livrar de tudo aquilo que contradiz a razão, o que é idêntico para cristãos e judeus – e ele demanda expressamente o mesmo dos cristãos. Vinte a trinta anos antes, quando Lavater pedira a Mendelssohn que examinasse todas as evidências pró e contra o cristianismo e então tomasse sua decisão “como Sócrates o teria feito”, as propostas de Friedländer não teriam parecido tão absurdas como pareciam agora a Schleiermacher e ao resto da Alemanha instruída. Uma mudança ocorreu na consciência da Alemanha em relação à história, uma mudança que encontra sua expressão mais característica em Johann Gottfried von Herder, que iniciara a crítica de seu
12
Friedrich Schleiermacher, “Briefe bei Gelegenheit... des Sendeschreibens”
[Cartas por ocasião... da Carta Aberta] (1799), Werke [Obras], Parte 1, vol. 5, p. 6 et seq.
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próprio período, o período do Iluminismo. Seu ensaio “Auch eine Philosophie zur Geschichte der Bildung der Menschheit” [Uma outra filosofia para a história da formação da humanidade] foi publicado em 1774, isto é, em meio ao Iluminismo, e não teve qualquer efeito na geração anterior. Mas sua influência no que viria a ser o Romantismo foi mais forte e crucial. Ele se opõe ao governo exclusivo da razão e suas rasas doutrinas utilitárias. Também se opõe ao governo exclusivo do homem, que “odeia, mais do que qualquer outra coisa, aquilo que é maravilhoso e oculto”. E se opõe, finalmente, a uma historiografia que, seguindo Voltaire e Hume, esquece a realidade em favor das capacidades e possibilidades humanas que permanecem sempre as mesmas. Vimos como Mendelssohn, ao adotar as ideias de Lessing, enfatizou acima de tudo o isolamento de cada indivíduo, ser capaz de pensar por si próprio. Herder e os românticos posteriores a ele (o que quer dizer, a tradição alemã de maior importância para a questão judaica) eliminaram essa noção e retomaram a descoberta da história que Lessing iniciara. Herder se opõe à afirmação de Lessing segundo a qual o homem não recebe nada em sua educação que já não esteja nele: “Se o homem tivesse recebido tudo a partir de si mesmo e se desenvolvido isolado de todos os objetos externos, talvez fosse possível escrever a história de um homem, mas não dos homens, não de toda a raça”. Antes, o homem vive em uma “cadeia de indivíduos”, “a tradição o aborda e molda sua mente, forma seus membros”.13 A razão pura, o bem puro está “disperso” por toda a Terra. Nenhum indivíduo mais é capaz de apanhá-lo. Nunca existe em si próprio – assim como não há nenhum
13
Johann Gottfried von Herder, Ideen zur Geschichte der Menschheit [Ideias
sobre a história do homem], Parte 1, vol. 9, caps. 1 e 2.
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anel genuíno para Lessing. Ele se altera, muda, é “distribuído em mil formas [...] – um eterno Proteu”. Essa mudança constante depende de realidades que estão fora dos poderes humanos, de “tempo, clima, necessidade, mundo, destino”. O que é crucial não é mais – como era para o Iluminismo – a pura possibilidade, mas a realidade de cada existência humana. A verdadeira diferenciação entre os homens é mais importante do que sua uniformidade “de fundo”. “Sem dúvida o mais covarde dos ignóbeis tem ainda alguma remota habilidade e a possibilidade de tornar-se o herói mais magnânimo; mas entre este último e o sentido do ser, da existência, de tal personagem repousa – um abismo!”14 Por consequência, a razão não é o juiz da realidade histórica no homem, mas o “resultado de toda a experiência da raça humana”.15 Por sua própria natureza, este resultado nunca está em um fim.16 Herder aceita a noção lessingiana da verdade como “eterna busca,” mas em uma versão modificada, pois, ainda que Lessing empurre a verdade para um futuro incomensuravelmente distante, a razão, como uma capacidade inata, permanece para ele intocada por tal dinâmica. Entretanto, se a razão, como “resultado da experiência”, é em si historicizada, o lugar do homem no desenvolvimento do gênero humano não está mais claramente definido: “Nenhuma história no mundo se funda sobre abstrações a priori”. Assim como Lessing rejeita a verdade como uma posse que provê tranquilidade para todo o sempre porque tal posse seria inapropriada para o homem, Herder
14 Herder, Auch eine Philosophie der Geschichte (1774). 15 Herder, Erläuterungen zum Neuen Testament [Explicações sobre o Novo Testamento], I, Livro 3. 16 Herder, Briefe das Studium der Theologie betreffend [Cartas a respeito do estudo da teologia], Parte 2, carta 26.
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se recusa a reconhecer a razão pura como a possibilidade de uma verdade. Em oposição tanto a uma única razão como a uma única verdade está a infinitude da história, e “por que eu deveria tornar-me um espírito de pura razão, se eu desejo apenas ser um homem e, assim como ocorre com minha existência e consequentemente com meu conhecimento e com minha fé, me mover como uma onda sobre o mar da história?”. Como resultado, a relação entre razão e história é para Herder exatamente oposta: a razão é sujeita à história, “uma vez que a abstração não tem realmente qualquer lei que governe a história”. O governo da razão, da maturidade e da autonomia do homem está prestes a acabar. A história, o que acontece ao homem, tornou-se opaca. “Nenhum filósofo pode explicar por que eles [povos] existem, ou por que existiram.” Em sua opacidade, a história torna-se algo impessoal e externo ao homem, mas não se torna Deus. A transcendência do divino foi perdida para todo o sempre; “a religião não tem mais fins além daqueles que procura por homens e para homens”. Paralela a essa ideia relativa ao poder da história sobre a razão está uma polêmica contra a igualdade de todos os homens. Quanto mais profundamente a história se apodera da vida, mais diferenciada esta última se torna. Essa diferenciação se desenvolveu a partir de uma igualdade original. Quanto mais antigo um povo, mais ele se diferencia de todos os outros povos.17 As consequências dos eventos históricos primeiro dão origem às diferenças entre homens e povos. A diferença não repousa na habilidade, no talento ou no caráter, mas antes na irrevocabilidade dos eventos humanos, sendo que há um passado que não pode ser desfeito.
17 Herder, Ideen zur Geschichte, Parte 1, vol. 7, cap. 5, “Zusätze zu der ältesten Urkunde des Menschengeschlechts” [Adendos ao mais antigo documento sobre o gênero humano].
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Com essa descoberta da irrevocabilidade de tudo que aconteceu, Herder tornou-se um dos primeiros grandes intérpretes da história. Foi por meio dele que na Alemanha a história dos judeus se tornou visível pela primeira vez como uma história definida essencialmente por sua posse do Velho Testamento. Isso resultou em uma mudança na resposta à questão judaica tanto pelos próprios judeus quanto pelo mundo em geral. Essa mudança foi também influenciada por novas definições que Herder forneceu para dois conceitos cruciais nesse contexto: formação e tolerância. Herder compreende a história dos judeus da mesma maneira que eles a interpretaram, como a história do povo escolhido por Deus.18 Sua dispersão é para ele o começo e a pré-condição de seu efeito sobre o gênero humano.19 Ele pesquisa sua história até o presente e sua atenção é capturada pelo singular sentido da vida para os judeus, que se prende ao passado e tenta preservar o que é passado no presente. Em sua opinião, tanto seu luto por uma Jerusalém destruída há séculos quanto sua esperança na vinda de um messias são sinais do fato de que “as ruínas de Jerusalém [...] estão arraigadas, por assim dizer, no coração do tempo”.20 Sua religião não é a fonte de preconceito e tampouco a religião da razão de Mendelssohn, mas é a “herança inalienável de sua espécie”. Ao mesmo tempo, Herder compreende que a história deste povo emerge da Lei de Moisés e não pode ser
18
Ibid., Parte 3, vol. 7, cap. 3, “Ebräer” [Hebreus]. “Eu não estou portanto en-
vergonhado de tomar como minha base a história dos hebreus assim como eles a contam.” 19
Ibid. “E então eles estavam dispersos por todas as terras do mundo romano e
desde os tempos dessa dispersão os judeus começaram a ter, a partir de sua estreita terra, um efeito sobre o gênero humano que é difícil de imaginar possível…” 20
Herder, “Die Denkmale der Vorwelt” [Os monumentos do pré-mundo], Parte 1.
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dela separada,21 de maneira que a perenidade ou ruina desta história depende da obediência à Lei. Sua religião é ademais uma religião da Palestina, de forma que apegar-se a ela significa permanecer um povo da Palestina e, assim, “um povo asiático estrangeiro a nosso continente”. Ele não concede aos judeus a semelhança com outros povos – para o Iluminismo, o único meio de torná-los humanos – mas, ao contrário, enfatiza seu aspecto estrangeiro. Mas isto não significa de modo algum o abandono da assimilação; na verdade ele é ainda mais radical em suas demandas, mas em outra base. Enquanto para Dohm e Lessing a discussão da questão judaica permanecia junto à da religião e de sua tolerância, para Herder a assimilação é uma questão de emancipação e, portanto, política. Precisamente porque Herder leva a sério a fidelidade à “religião dos pais”, ele vê nisso um símbolo de coesão nacional; uma religião estrangeira torna-se a religião de uma outra nação. A tarefa agora não é tolerar outra religião – da mesma maneira que se é forçado a tolerar muitos preconceitos – ou mudar uma situação socialmente vergonhosa, mas é antes incorporar à Alemanha uma outra nação.22 Herder vê o atual estado das coisas à luz do passado. Ele entende a partir da história do povo até mesmo o fato de os judeus não terem sucumbido, apesar de toda a opressão sofrida em um mundo estrangeiro, mas terem procurado ambientar-se, mesmo que de maneira parasítica.23 O que importa agora é tornar
21 Herder, Brief das Studium der Theologie betreffend, carta 4. 22 Herder, Adrastea. “Em que medida essa lei e os modos de pensamento e de vida que dela derivam podem pertencer a nossas nações não é mais uma disputa religiosa, mas uma simples questão de Estado.” 23
Cf. Herder, Ideen zur Geschichte, Parte 3, vol. 12, cap. 6, “Weitere Ideen zur
Philosophie der Menschengeschichte” [Mais ideias sobre a filosofia da história humana.]
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produtivo o parasitismo na nação judaica. Em que medida essa assimilação é possível mesmo com a Lei sendo observada é uma questão de política; em que medida isso é sequer possível é uma questão de educação e formação, o que para Herder significa humanização. Dois conceitos caracterizam a humanidade: formação e tolerância. Herder reserva seu ataque mais afiado para o conceito iluminista de formação – qual seja, pensar por si próprio – que ele condena acima de tudo por carecer de qualquer senso de realidade. Tal formação não surge de experiência nenhuma e nem conduz à “ação”, à “aplicação da vida em uma determinada esfera”. Não pode formar o homem, visto que esquece a realidade da qual ele vem e na qual ele permanece. O “passo atrás” da formação – da verdadeira formação que “forma, reforma, e continua a formar” – é governado pelo passado, “a eterna e silenciosa força do precedente, de uma série de precedentes”. O Iluminismo não pode preservar esse passado. A educação pela formação como Herder a define não pode se contentar com a simples imitação destes “precedentes”; afinal, Herder acaba de demonstrar a singularidade da história, mesmo da mais grandiosa e genial história. A formação tenta descobrir o que pode ser formativo a partir da compreensão dos precedentes. Tal compreensão (que é em si uma abordagem verdadeiramente nova da realidade e é tão alheia a todas as polêmicas ou a qualquer alegorização e interpretação das Escrituras como é da simples aceitação devota) contém em si, primeiramente, uma convocação à realidade – à sua aceitação como realmente era, sem propósitos ou pensamentos dissimulados – e, em segundo lugar, um distanciamento do passado – nunca confundir o passado com si próprio, levar a sério e incluir em sua compreensão o tempo que repousa entre o passado e sua tentativa de compreender. Em termos de seu conteúdo, então, a história não se impõe com obrigatoriedade para alguém que a compreende porque ele a compreende como singular e transitória. A função formativa
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da história jaz na compreensão per se. Mas o que é passado provê as bases para uma nova ideia de tolerância. Assim como ocorre com todos os seres humanos, toda época histórica tem seu destino, cuja singularidade não pode ser julgada por ninguém; é a história em si que, na impiedade de seu prosseguimento, assumiu o papel de juiz. A tolerância, uma “virtude de almas raras privilegiadas pelos céus”, não mais descobre o que é humano per se, mas o compreende – o compreende em todas as suas formas e transformações, compreende sua singularidade e transitoriedade. A tolerância corresponde à distância compreensiva tomada pela pessoa instruída. Dessa forma, de maneira estranhamente indireta Herder devolveu aos judeus sua história – uma história que se tornou história compreendida. A história é levada totalmente a sério como aquilo que aconteceu, embora sem qualquer crença direta em um diretor original do ocorrido. A secularização não pode mais ser desfeita. Essa restituição indireta do conteúdo real do passado destrói completamente o passado como os judeus o veem. Se para Herder esse passado, como todos os passados, foi ligado a um único tempo que nunca pode retornar, para os judeus era exatamente aquilo que devia ser resgatado continuamente de sua própria transitoriedade. Herder realmente devolve ao judeu assimilado tudo aquilo que aconteceu segundo sua interpretação, mas o que aconteceu, aconteceu sem Deus. Portanto, Herder suprime do judeu assimilado a liberdade que ele conquistara ao aceitar o Iluminismo – liberdade que se erguia vis-à-vis de rien – e o coloca sob o poder do destino, não mais sob o poder de Deus. O Iluminismo ainda tinha ao menos alguma ligação direta com o conteúdo da história na medida em que tinha tratado com ele – quer rejeitando, defendendo ou intencionalmente distorcendo-o. A compreensão de Herder da história, ao dar prioridade aos eventos, é uma negação final das obrigações vinculantes a qualquer conteúdo histórico que seja. Para os judeus a destruição do conteúdo da história significa a per-
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da de todos os laços históricos, pois o que é singular em sua história é que, com a destruição do Templo, a história em si havia, em certo sentido, destruído o “continuum das coisas” que Herder resgata do “abismo”. Esse é o motivo pelo qual a defesa de Mendelssohn da religião judaica e sua tentativa de preservar o “conteúdo eterno” – tão ingênua quanto possa nos parecer hoje – não era totalmente descabida. Ainda era possível com base no Iluminismo; os judeus ficaram com um último resquício de conexão histórica que estava agora sendo completamente apagado. O próprio Herder vê esta falta de conexão positivamente quando diz: “Em seu Nathan, o sábio, Lessing retratou o julgamento sem preconceitos dos judeus instruídos, sua maneira mais direta de olhar as coisas; e quem o iria contradizer, visto que o judeu como tal é aliviado de muitas convicções políticas das quais podemos nos livrar somente com grande esforço, quando podemos?”. Herder destaca a falta de preconceito por parte dos judeus instruídos, isto é, daqueles que não são vinculados a qualquer tipo de conteúdo, ao qual – apesar da “formação” e como resultado do continuum do tempo – o mundo não judeu que os circunda permanece sujeito. Ao mesmo tempo, Herder quer colocar de forma positiva aquelas características que as necessidades de um presente desagradável – quer de natureza social ou vinculados à Diáspora como um todo – os levaram a mostrar, forçando-os a ser duplamente sagazes nos negócios e na interpretação da bíblia.24 Uma vez os judeus estando “formados” no sentido de Herder, eles são devolvidos à humanidade, o que agora
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“Considerando tribulações como as infligidas sobre esse povo durante sécu-
los, qual outra nação teria preservado o nível cultural no qual seu momentoso Livro dos Livros, a coleção de suas Sagradas Escrituras, manteve vivas entre eles as artes da escrita e da contabilidade? A necessidade e seu comércio trouxeram a eles uma acuidade visual que somente um olhar embaçado deixa passar.”
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significa, porém, segundo sua própria interpretação, que deixaram de ser o povo escolhido. Tendo descartado o preconceito oriundo do orgulho nacional, tendo abandonado os costumes que não pertencem à nossa era, nossa constituição ou mesmo ao nosso clima, eles trabalham não como escravos [...] mas certamente como coabitantes de povos educados, auxiliando a construção das ciências e de toda a cultura da humanidade [...].Não devem ser levados à honra e à moralidade pela cessão de privilégios mercantis, eles ascendem a essas metas por méritos puramente humanos, científicos e civis. Por conseguinte sua Palestina é qualquer lugar onde eles habitem e trabalhem para objetivos nobres.
E com isso os judeus são mais uma vez postos em uma posição de excepcionalidade que ainda poderia permanecer oculta durante o Iluminismo, o qual não tinha um entendimento da história completamente desenvolvido. A total igualdade de Lessing demandava meramente dos judeus que fossem seres humanos, algo que, em última análise, pelo menos segundo a interpretação de Mendelssohn, eles poderiam prontamente atingir. Aqui, entretanto, exige-se deles uma posição especial – a eles deve ser concedido um lugar especial dentro de “toda a cultura da humanidade” uma vez que a “formação” e o efeito de distanciamento exigido pela compreensão destruíram todos os conteúdos da história que previamente os sustentavam. Schleiermacher rejeita as propostas de Friedländer porque ele quer ver preservados tanto o caráter especial do cristianismo quanto do judaísmo. Assim, espera-se que os judeus tenham uma compreensão de sua própria situação histórica, uma expectativa que eles dificilmente podem cumprir, enquanto sua própria existência no mundo não judeu se sustenta ou é derrubada com a argumentação essencialmente a-histórica do Iluminismo. Em sua luta pela emancipação, eles são continuamente forçados a dar salti mortali, a reivindicar a in-
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tegração em um só pulo. Eles não podem depositar sua confiança no “deixar a natureza seguir seu curso”, em um desenvolvimento “passo a passo”,25 visto que, em um mundo estranho, não têm um ponto definido de onde tal desenvolvimento pode começar. Dessa forma, os judeus tornaram-se um povo sem uma história dentro da história. A compreensão de Herder da história os priva de seu passado. Mais uma vez eles estão vis-à-vis de rien. Dentro de uma realidade histórica, dentro de um mundo europeu secularizado, eles são forçados de alguma maneira a se adaptarem a esse mundo, a formarem-se. Mas para eles a formação é necessariamente tudo aquilo que é o mundo não judeu. Uma vez privados de seu passado, a realidade presente começa a revelar seu poder. A formação é o único meio que possuem para sobreviver a esse presente. Se a formação significa mais do que tudo compreender o passado, então o judeu “formado” é dependente de um passado estranho. Ele o atinge por meio de um presente que ele deve compreender pelo fato de dele participar. Se o presente deve ser compreendido de algum modo, então o passado deve ser explicitamente apreendido novamente. Afirmar explicitamente o passado é a expressão positiva do efeito de distanciamento que Herder reivindica para o homem formado – um distanciamento que os judeus trazem consigo desde o princípio. Então, da estranheza da história, a história emerge como uma preocupação legítima dos judeus.26
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Wilhelm e Karoline von Humboldt, Briefwechsel [Correspondência], vol. 4,
no. 236, p. 462. 26
Isso foi pela primeira vez compreendido pela Verein für Kultur und Wissens-
chaft der Juden [Associação para a cultura e a ciência dos judeus] sob a égide de Leopold Zunz.
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