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lume Mato Grosso

Cidadão do Xingu

Revista nº. 17 • Ano 3 • Setembro/2017

O Lado “B” do Ministério Público de Mato Grosso Pag. 24

PERSONALIDADE: FRANCISCO DELMONDES BENTINHO NÃO MATE A VELHICE O CENTENÁRIO DA REVOLUÇÃO RUSSA A HISTÓRIA NÃO CONTADA DE HISPANIOLA PABLO NERUDA, UM HOMEM DE MUITAS PAIXÕES A EDUCAÇÃO NO OLHO DO FURACÃO

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CUIABÁ 300 ANOS

"INAUGURAÇÃO DO BUSTO EM BRONZE, DE DOM AQUINO, NA PRAÇA ALENCASTRO, EM CUIABÁ, EM 1952"



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C A RTA D O E D I TO R

JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral

B

ons resultados, em projetos voltados à cidadania é fruto de muito esforço e de muito trabalho. A cidadania, que só existe quando é praticada, passa a ser exercida em toda a sua plenitude a partir do conhecimento dos direitos do cidadão dentro das linhas da Constituição. Com a Constituição numa mão e na outra a caneta, com a qual costuma distribuir Autos, respaldados pelo Ministério Público de Mato Grosso, a Promotora de Justiça, Dra. Solange Linhares, da Comarca de Paranatinga, distante 368 km de Cuiabá, faz um digno trabalho de respeito à cidadania com os povos indígenas do Alto Xingu. Atuando numa área geográfica bastante extensa, a Promotora enxergou aquilo que poucos conseguiram ao longo de muito tempo; que os povos indígenas não tinham o devido conhecimento de que exercer a cidadania não é tão somente reivindicar que os

seus próprios direitos sejam garantidos, mas, acima de tudo, que sejam devidamente aplicados. Dentre os vários projetos que a Dra. Solange Linhares está à frente, ou porque o criou, ou mesmo porque existia mas não havia se efetivado, ou, ainda, estava adormecido, se destaca o “Cidadão do Xingu”, tema da reportagem especial da edição de setembro deste ano. Nesta matéria, através do trabalho da Dra. Solange, vê-se, que a cultura da cidadania vai muito além, pois ninguém discorda, em sã consciência, de que conhecer os direitos que a Constituição nos garante é importante para viver melhor. Quando ignoramos a existência de instrumentos que nos permitem garantir nossos direitos ficamos numa situação ao mesmo tempo desconfortável e perigosa. Enriquecendo esta edição que vem com a Primavera quente e tempestuosa, oferecemos ao nos-

so leitor, em texto da antropóloga Anna Maria Ribeiro, interessante artigo sobre a Revolução Russa no ano de seu centenário. Também temos mais sobre a Dona Francisca, aquela simpática mulher, que completou 104 anos e mora em Chapada dos Guimarães. Essa matéria tem as imagens e uma entrevista feita pelo fotógrafo Henrique Santian, com a Dona Francisca, que nos relata os primeiros movimentos para se efetivar como curandeira famosa em toda aquela região. Nossos poetas se superam e escrevem textos que nos levam às reflexões e indagações, a exemplo de Luciene Carvalho, falando sobre o bom ladrão e, Eduardo Mahon, nos desnudando o termo puta. Prá encerrar o assunto lembramo-nos de Neruda, um homem que amou mulheres e escreveu poemas maravilhosos. Tenham todos uma ótima leitura


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EXPEDIENTE

lume Mato Grosso

ELEONOR CRISTINA FERREIRA Diretora Comercial JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA Editor Geral MARIA RITA UEMURA Jornalista Responsável JOÃO GUILHERME O. V. FERREIRA Revisão AFRÂNIO CORRÊA, ANDRÉIA KRUGER, ANNA MARIA RIBEIRO, CARLOS FERREIRA, CARLOS GOMES DE CARVALHO, CASSYRA VUOLO, DIEGO DA SILVA BARROS, EDNA LARA, EDUARDO MAHON, ENIEL GOCHETTE, EVELYN RIBEIRO, FELIPE DE ALBUQUERQUE, JOYCE THAYS PEREIRA DOS SANTOS, JULIANA RODRIGUES, JÚNIOR CÉSAR GOMES GUIMÃES, KALLITA DOS ANJOS MORAES, LUCIENE CARVALHO, MILTON PEREIRA DE PINHO - GUAPO, RAFAEL LIRA, ROSARIO CASALENUOVO, ROSE DOMINGUES, THAYS OLIVEIRA SILVA, VALÉRIA CARVALHO, YAN CARLOS NOGUEIRA Colaboradores ANDREY ROMEU, ANTÔNIO CARLOS FERREIRA (BANAVITA), CECÍLIA KAWALL, CHICO VALDINEI, EDUARDO ANDRADE, HEITOR MAGNO, HENRIQUE SANTIAN, JANA PESSOA, JOSÉ MEDEIROS, JOYCE CORRÊA, JP-FOTOS, JÚLIO ROCHA, LAÉRCIO MIRANDA, LUIS

ALVES, RAI REIS, MAIKE BUENO, MARCOS BERGAMASCO, MARCOS LOPES, MÁRIO FRIEDLANDER, MOISÉS INÁCIO DE SOUZA Fotos OS ARTIGOS ASSINADOS NÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DE LUME MATO GROSSO, E SIM DE SEUS AUTORES. LUME - MATO GROSSO é uma publicação mensal da EDITORA MEMÓRIA BRASILEIRA Distribuição Exclusiva no Brasil RUA PROFESSORA AMÉLIA MUNIZ, 107, CIDADE ALTA, CUIABÁ, MT, 78.030-445 (65) 3054-1847 | 36371774 99284-0228 | 9925-8248 Contato WWW.FACEBOOK.COM/REVISTALUMEMT Lume-line REVISTALUMEMT@GMAIL.COM Cartas, matérias e sugestões de pauta MEMORIABRASILEIRA13@GMAIL.COM Para anunciar ROSELI MENDES CARNAÍBA Projeto Gráfico/Diagramação FOTO JP-VIDEOS Capa


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SUMÁRIO

14. NOTAS

18.

PARA QUANDO VOCÊ FOR

46. 20. CIDADANIA

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SETEMBROS DE NOSSA HISTÓRIA


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54.

FOTOGRAFIA

62. 66. LITERATURA

AMERICANIDADEE

64.

LITERATURA

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PERSONALIDADE

FRANCISCO DELMONDES BENTINHO

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FELIPE DE ALBUQUERQUE Felipe de Albuquerque Augusto, 25 anos, é jornalista em Cuiabá formado pela Universidade Federal de Mato Grosso e trabalha na Secom do TCE-MT

A vida começa aos setenta e cinco anos A saga de um estagiário

A

POR FELIPE DE ALBUQUERQUE

terra agreste do sertão castiga os ânimos e o corpo de sua gente. No tempo da seca, o sol chega a estremecer a vista ao reluzir sobre o chão pedregoso. Este cenário, por vezes tão hostil, inspirou as epopeias de grandes personagens da literatura como Dom Pedro Dinis Quaderna e Chicó, os quais, através de suas narrativas, percorrem os enredos da existência nos romances do escritor Ariano Suassuna. Mas este mesmo chão selvagem, cuja adversidade se doma

ou se permite devorar, também foi o cenário por onde o jovem Francisco deixou suas primeiras pegadas no mundo rumo aos seus páreos da vida – a esquina entre as ruas 15 de novembro e 7 setembro. Nesse encontro de veios urbanos, num campinho improvisado à sombra da igreja de Nossa Senhora da Conceição, os meninos de ambos os endereços em Araripina, Pernambuco, rivalizavam, com a bola nos pés, uma disputa digna dos maiores episódios republicanos do Brasil.

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PERSONALIDADE

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Francisco Delmondes Bentinho, filho da enfermeira Antônia Consuelo Delmondes Bentinho e do finado barbeiro, José Bentinho Sobrinho, aprendeu nas arestas de Araripina, entre ruas tortuosas de paralelepípedo e dentro da casa estreita e estalando de gente, a se posicionar diante do mundo. Além dos pais, dividia a casa módica com seus numerosos irmãos – ao todo 17. Outros 10 estão país afora escrevendo seus atinos. A mãe, aos 96 anos, ainda reside na casa, agora mais cheia de lembranças que de gente. Nesse contexto, e por conta da literatura e dos romances clássicos russos, franceses e brasileiros, com os quais teve contato desde jovem, Francisco foi percebendo a complexidade de sua existência. Tomou consciência sobre a necessidade de cumprir seus caminhos e atravessar fronteiras. Viajou nas narrativas mágicas de realidades inimagináveis e acreditou nos sonhos que pululavam em sua mente. Segundo ele, quando deixou o sertão, cumpriu a sina que acompanha todo nordestino, carregando consigo um espírito de busca e de procura; um espírito aventureiro. Aos 22 anos embarcou num ônibus e se mudou para o Rio de Janeiro. Foi morar com a irmã mais velha. Após o primeiro ano, mudou-se novamente, mas,

desta vez, para São Paulo. Trabalhou como servente de pedreiro, por cinco anos, na construção da Estação de Abastecimento Ceasa. Desse período, ainda carrega consigo, no bolso, a carteira profissional da qual se orgulha por demais. Foi um momento difícil ter que voltar para a casa depois de mais de cinco anos, quando as coisas começaram a desandar na metrópole. De certa forma, significava também voltar aos trabalhos esporádicos, escassos que surgiam aqui e ali. Mas foi assim, por outros longos oito anos, oscilando pelas arestas da Araripina que, hoje, se expandiu e constitui um dos principais polos de produção de gesso no país. Nesse período começou a namorar Francisca. Pouco tempo depois, ela se mudou para Goiânia e ele não pensou duas vezes quando teve a oportunidade de seguir os passos de sua namorada. Lá, Francisco principiou os estudos em Letras Vernáculas pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, conciliou o aprendizado com o ensino de Língua Portuguesa no Colégio Estadual Presidente Castello Branco, em Hidrolândia, e ainda estudante mas já lecionando, atuou no Centro de Professores de Goiás, onde também foi diretor do Departamento Cultural. Defensor ferrenho do mundo das leituras e testemunha viva de

como os estudos podem subverter realidades, Bentinho, como hoje é mais conhecido, foi um dos idealizadores do Programa de Valorização do Magistério de Goiás (Promag), difundido em todo Estado. Aos finais de semana, junto aos professores das Universidades de Goiás, visitou as cidades do interior do Estado, trocou conhecimento com os demais profissionais e palestrou sobre assuntos como didática geral, didática especial e dinâmica de grupo. As atividades de integração com os demais professores, realizadas no início da década de 70, chamaram a atenção dos militares que identificaram como subversiva a lucidez nos olhos daquele homem franzino que provocava uma revolução na Educação de Goiás. Foi preso em 1972, no 10º Batalhão de Caçadores de Goiás, onde permaneceu por dois dias. Nesse aparente curto período, observou a movimentação de muitos outros presos que entravam e saíam. “Eles falavam: “diga tudo, conte tudo, não negue nada. Seu colega já contou o que você está fazendo”. Era uma pressão violenta”. Suas explicações convenceram porque seu trabalho não tinha aquele tipo de revolução que deveria ser coibida. Percebeu o poder das ideias e dos conhecimentos que poderiam causar ranhuras na face do horror.


lumeMatoGrosso REUNIÃO EM RIO VERDE - GO DO CPG COM OS PROFESSORES DA REDE ESTADUAL - PROGRAMA DE VALORIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO DE GOIÁS - PROMAG

Nos anos seguintes, o apaixonado pelas letras enveredou-se em um outro desafiante caminho – o Jornalismo. Trabalhou no Diário da Manhã, em Goiânia, e escreveu ao lado de grandes personalidades como Batista Custódio e Consuelo Nasser. Em 1983, foi escalado para substituir o representante do jornal na sucursal de Cuiabá, o hoje conselheiro do Tribunal de Contas de Mato Grosso Antonio Joaquim, que à época já vinha se dedicando à política. Na capital mato-grossense, o jornal possuía 452 assinaturas fixas. Os exemplares chegavam de avião, às 10h

da manhã, e depois distribuídos. A proposta era a de que Bentinho ficasse por alguns meses. Mas suas escolhas trataram de fincá-lo por estas terras como raiz de macaxeira. Em seis meses, a sucursal do jornal Diário da Manhã entrou em falência, mas a equipe constituída por oito jornalistas continuou a edição do jornal “Edição Extra”, que obedecia os mesmos moldes do Diário da Manhã. O novo periódico prosseguiu por dois anos. Após encerrar estas atividades, Bentinho vislumbrou uma oportunidade de desbravar o interior do Estado, carente por veícu-

los de informação. Assim, teve início o “Folha de Paranatinga”, que seguiu até 1986. Nesse mesmo ano, o já então militante jornalista liderou uma reunião em Barra do Garças, onde foi fundada a Associação dos Jornais do Interior de Mato Grosso (Adjori). Ao todo, 28 jornais participaram da Associação, reunindo municípios como Peixoto de Azevedo, Guiratinga, Rondonópolis e Cáceres. Bentinho foi seu primeiro presidente. No dia 11 de setembro de 1986, a Associação regional se filiou à Associação nacional dos jornais do interior, Abrajori, que contava à época com a con-

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PERSONALIDADE

gregação de 2.200 jornais. As reuniões anuais serviam para a profissionalização, uma vez que muitos não possuíam sequer registro ou jornalista responsável, sendo a maioria constituída por núcleos e interesses familiares. Nessas reuniões, havia também muita reflexão sobre a profissão e o compartilhamento de experiências entre os profissionais. Bentinho ouviu muitos relatos praticados pelo poder dos coronéis de Mato Grosso contra a imprensa. Também foi ele mesmo vítima desta intimidação, ao ser chamado no gabinete do prefeito em Peixoto de Azevedo e ser convidado a se retirar do município.

“Olha Bentinho, esta cidade é pequena demais para nós dois. E eu sou o prefeito”. No mesmo dia foi embora para Cuiabá, o preço pago por ter feito oposição durante o período eleitoral. Em 1989, a Abrajori deixou de existir e passou a ser a Adjori do Brasil, com congressos bianuais que ocorrem, ainda hoje, no país a fora. Bentinho foi vice-presidente e representou Mato Grosso na Associação por alguns anos. No biênio 2016-2017 participou do grupo de ética. Hoje, aos 75 anos, Bentinho está concluindo sua primeira graduação, em Direito, pela Universidade de Cuiabá (UNIC). Lembra que, quando jovem, aban-

donou o curso de Letras pouco antes de obter o diploma. No bolso, guarda junto à carteira profissional de pedreiro e seu registro como jornalista profissional, a carteira de estágio da Ordem dos Advogados do Brasil. O interesse pela área surgiu ao passar pela vida de homens e mulheres e observar as dificuldades que eles enfrentam cotidianamente. Em suas andanças pelo Estado, notou que a pessoa idosa, com seus direitos resguardados constitucionalmente, não os têm na prática. Por isso, mobilizou-se junto à OAB de Mato Grosso para a criação do sindicato Estadual dos Aposentados, Pensio-

CURSO PARA PROFESSORES NA CIDADE DE QUIRINÓPOLIS - DEPARTAMENTO CULTURAL DO CENTRO DOS PROFESSORES DE GOIÁS

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de ementas. Bentinho novamente se reinventa. Fica todo orgulhoso ao comentar sobre a atividade, que é de grande responsabilidade, a qual foi confiada pelos seus jovens colegas e líderes competentes. “Pra mim é uma escola. Tenho professores como Edicarlos, Natel, Guilherme, que são auditores mas, acima disso, verdadeiros professores. É muito boa essa relação de idade (ele com

75 e os colegas com menos de 40 anos). Existe a teoria, que vamos adquirir através dos ensinamentos. E tem o outro lado, que é experiência de vida. Vou fazendo um trabalho entre a técnica e a prática e vamos acompanhando”. Além do seu profundo crescimento pessoal, através das diversas experiências vividas ao longo de seus 75 anos, Francisco Bentinho também tem mui-

to que se orgulhar de sua família. É pai de cinco meninas, avô de sete netos e está em seu segundo casamento. Interrompe o dedo de prosa, toma seu celular nas mãos e encontra uma foto de suas meninas, no grupo de WhatsApp que o mantêm conectado às filhas que moram com a mãe em Goiânia. Conservando o espírito aventureiro e a mente lúcida aos novos conhecimentos e tecnologias, não há substantivo possível que aprisione Bentinho numa caixinha de classificações. P r o f e s s o r, jornalista, advogado, contador de histórias e o que mais o tempo permitir que este homem possa ser. Os mesmos olhos que encararam a repressão militar, agora olham para dentro, destemidos, buscando as lembranças daquele jovem sertanejo que atravessou suas fronteiras para construir uma nova narrativa sobre si. Mas, na verdade, eles sempre estiveram mirando o futuro, vasculhando as possibilidades que a vida possui, todos os dias: a de começar. E de recomeçar

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nistas e Idosos. Novamente militante de outra causa. Sua preocupação foi instigada quando os números comprovaram o que sua sensibilidade já havia evidenciado: dos 500 mil idosos de Mato Grosso, apenas 320 mil estão amparados pelo Instituto Nacional de Seguro Social (INSS). Para fundamentar sua busca por respostas, encontrou referências na literatura de outros países que já passaram por este processo de envelhecimento que vive o Brasil, hoje, como Japão e França. E então, calcula que, com a legitimação que trará o diploma, poderá atuar de forma mais direta nessas questões que permanecem abertas em nossa sociedade. No período final da sua graduação, e por uma exigência para a conclusão do curso, procurou um estágio na Fundação Uniselva, da Universidade Federal de Mato Grosso. Assim, há um ano e quatro meses, foi encaminhado ao Tribunal de Contas de Mato Grosso e atua na Consultoria Técnica, como revisor

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N OTA S

ALERTA GERAL »»Febre Chikungunya, transmitida pelo Aedes aegypti, cresce 116% em MT, em relação a 2016.

FAKE NEWS »»A democracia e a autodeterminação são essenciais para a prevenção de conflitos nacionais, regionais e internacionais, mas estão sob ataque das notícias falsas – em inglês “fake news” –, notícias incompletas e politicamente direcionadas. O entendimento é do professor de direito internacional e especialista independente das Nações Unidas, Alfred de Zayas, em uma declaração no Dia Internacional da Democracia (15/09).

FOME »»O número de pessoas que sofrem com a fome na América Latina e no Caribe aumentou em 2,4 milhões de 2015 a 2016, alcançando um total de 42,5 milhões de pessoas, segundo relatório das Nações Unidas, que alertou para uma deterioração da situação, especialmente na América do Sul. Segundo o representante regional da FAO, a desaceleração econômica da região, resultado da queda dos preços das commodities e do encolhimento econômico global, tem afetado a segurança alimentar na América Latina e no Caribe. MISSA DOS 300

»»O padre Felizberto Samoel da Cruz lidera constantes reuniões, a partir da Cúria Metropolitana, o projeto para a missa solene relativa aos 300 anos da capital, Cuiabá, que ocorrerá em 08/04/2017.

NOVO IMORTAL »»Com mais de 30 anos de produção artística e literária, o professor e poeta Aclyse de Mattos tomou posse, no dia 12/09, na Cadeira nº 3, da Academia Mato-Grossense de Letras.

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FOTOS DIVULGAÇÃO

POLITEC-MT »»A Perícia Oficial e Identificação Técnica de MT - POLITEC, órgão da Segurança Pública, oferece à sociedade um serviço digno de elogios, pela qualidade, presteza e eficiência.


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FRASES FOTOS: DIVULGAÇÃO

AML - NOVA DIRETORIA »»A Academia Mato-Grossense de Letras elegeu nova diretoria para o biênio 2017/2019. Para substituir a presidente Marília Beatriz de Figueiredo Leite foi eleito o advogado, poeta e escritor Sebastião Carlos Gomes de Carvalho. FORTALEZA »»A historiadora Elizabeth Madureira Siqueira, presidente do Instituto Histórico de Mato Grosso, não pára de produzir e trabalhar. Apesar de adversidades e peças que a vida nos prega, ela continua firme e forte à frente da instituição que administra, além de coordenar e participar de vários projetos culturais e acadêmicos.

SE PEDISSEM, EU NÃO DARIA Afirmação do governador PEDRO TAQUES, sobre o fato dos deputados estaduais pedirem o famigerado Mensalinho. Mesmo assim o governo aprovou 96% de seus projetos.

TEM MUITO INOCENTE AÍ Disse o presidente da Assembleia Legislativa, EDUARDO BOTELHO, sobre a Operação Malebolge, da PF, que fez uma devassa em gabinetes da AL no dia 14/09. Botelho disse que não se deve condenar todos os deputados e que se deve separar o joio do trigo, defendendo investigação. ESSÊNCIA “O difícil não é subir, mas ao subir, continuarmos a ser quem somos.” Por JULES MICHELET CONSELHO “Não interrompa uma pessoa que lhe conta algo que você já sabe. Uma história nunca é contada duas vezes da mesma maneira e é sempre bom ter mais uma versão.” Por GOLBERY DO COUTO E SILVA

IMPERADOR DO DIVINO

»»O empresário Dalmi Jr. é o Imperador

dos festejos do Senhor Divino Espírito Santo, tradicional evento religioso com quase três séculos de existência.

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SAÚDE

Não Mate A Velhice

A

POR ANDREIA KRUGER

vida segue um fluxo contínuo e o tempo é quem marca esse caminho. Nascemos e, ao longo dos primeiros 30 anos, temos a pretensão de achar-nos imortais, ou que seremos jovens eternamente. Não nos damos conta de que, desde o primeiro dia das nossas vidas, já estamos envelhecendo e caminhando para o ápice da maturidade.

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O fato de não termos a dimensão do envelhecimento nos faz maltratar nossos corpos e mentes com exageros que serão cobrados após os nossos 50, 60 anos. As noites em claro, o exagero nas bebi-das, drogas, sedentarismo e péssimos hábitos alimentares acabam traçando uma velhice marcada pe-las doenças. Não bastasse isso, ainda temos outros fatores que interferem na saúde psíquica de quem envelhece, as doenças da alma; a principal delas: a depressão. Uma praga do século XXI que habita a mente e corpo de parte significativa da população idosa. Além de toda essa gama de fatores intrínsecos, temos outros externos que pioram ainda mais a vida de quem já é idoso, dentre eles o preconceito e o abandono. A cultura ocidental teima em tratar a essa população como descartável. Hoje, principalmente no Brasil, temos uma legião de idosos deixados ao abandono. Mesmo existindo estatuto do idoso e leis que tem como objetivo proteger os idosos, vemos diariamente o quanto são desrespeitados, seja dentro de um ônibus ou na fila do supermercado. Porém, de todos os massacres sofridos, o familiar é o pior. E neste ambiente, os abusos são recorrentes. É comum ver abandono e maus tratos, quer não acompanhando ou auxiliando os idosos da família com problemas graves de saúde, quer deixando-os em cárcere privado. Até há situações de familiares tomarem

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ANDREIA KRUGER É graduada em Direito, Especialista em Direito agroambiental, Engenheira de Alimentos, estudante de Nutrição e Articulista

para si a aposentadoria do idoso e, pior, às vezes fazem dívidas enormes em nome do idoso, comprometendo o seu único meio de subsistência. Para muitas pessoas, o envelhecimento parece ser sinônimo de perda da inteligência. Isso acaba por tornar descartável toda a experiência e dedicação de uma vida toda, o que intensifica ainda mais a sensação de abandono e desprezo. Logo, envelhecer bem exige um esforço muito grande que não se limita apenas ao indivíduo, mas se estende para toda a sociedade. Alimentar bem, fazer atividades físicas, viajar e aprender coisas novas são ações que melhoram a vida do idoso. Porém, da parte governamental, quase não se veem políticas públicas efetivas para essa parcela da população, uma vez que, dentro de 20 anos, teremos mais idosos que jovens no Brasil. Literalmente, o Estado está de olhos fechados para a velhice. Já passou da hora de pensarmos em como preparar a sociedade para esse momento e executar, desde já, ações que facilitarão a vida dos idosos de hoje e das próximas gerações. Assim, o desafio de um envelhecimento saudável começa com o próprio indivíduo, passa pela família e também depende de ações do próprio Estado através de políticas públicas. Construir uma sociedade melhor exige esforço de todos e também um entendimento consciente do ciclo da vida. Envelhecer é algo natural e faz parte desse ciclo. Ignorar ou fugir dessa realidade não nos tornarão eternamente jovens; ao contrário, poderemos comprometer a qualidade das nossas vidas matando nossa velhice

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PA R A Q UA N D O VOCE FOR

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CECÍLIA KAWALL Mora em Chapada dos Guimarães, é guia de ecoturismo e de aventura, empresária, fotógrafa e escreve para Lume MT.

Mais um Pouco de

Japão...

U

TEXTO E FOTOS CECÍLIA KAWALL

m dos lugares onde fiquei hospedada foi o Templo TAKAO SAN que foi construído há uns oitocentos anos e ainda mantém suas atividades de meditações e cura. Por causa da graduação do meu professor Tatsumura tive acesso ao ritual diário da récita de um sutra milenar, Sutra do Coração, quando os monges acendem uma fogueira, tocam tambor e cantam, tudo dentro de uma ala restrita do local. Uma cena das mais inesquecíveis de toda a jornada (só não pude fotografar, claro... mas tá bem guardada na lembrança!). Os exercícios de yoga eram feitos ao ar livre aproveitando a primavera e o cenário. Do mirante, em dias claros de inverno, era possível avistar o Monte Fuji. Tudo era de encher os olhos, dos de-

talhes das construções, aos verdejantes perfis das montanhas, o tatame no salão, as refeições, e os dormitórios, tudo com perfeição e maestria. Até hoje as pessoas fazem a peregrinação de horas de caminhada montanha acima (ou tomam um bondinho...) para fazer seus pedidos ou agradecimentos às entidades, então para facilitar, hoje em dia já tem lugares próprios onde colocar uma moedinha, acender o incenso, pegar um papelzinho com a oração pronta, a cordinha onde amarrar... tudo nos altares específicos, em cada setor de um templo. Muito prático, bem ao estilo! Então ‘prá quando você for’ ao Japão, aprecie sem moderação, faça uma oração ou meditação, uma respiração e boa viagem!

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M ECI O I DA M D ABN I EI N ATE

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CASSYRA L. VUOLO Servidora do TCE-MT. Há 10 anos ocupa função de Secretária de Articulação Institucional e Desenvolvimento da Cidadania. Palestrante em controle social, cidadania e participação do cidadão nos processos decisórios da gestão pública.

Educar Para Cidadania, Uma Missão

A

o escrever sobre este tema, Educação para a Cidadania, devo, de início, deixar claro que não tenho formação em pedagogia. Não sou uma educadora. Nos bancos da Universidade Federal de Mato Grosso, estive com o saudoso Silva Freire, “Carlão”, Hélio de Magalhães Navarro, José Vidal e outros grandes mestres a desbravar os mares das ciências jurídicas. Logo, conto aqui sobre experiência vivenciada em ações de estímulo ao exercício da cidadania e do controle social desenvolvidas nos últimos 16 anos no Tribunal de Contas de Mato Grosso. Falo como participante direta de uma rica atividade. E posso não ter chegado ainda às veredas longínquas da pretensão da proposta, mas acho que fui bem até onde os meus pés caminharam. É uma história que envolveu mais de 25 mil jovens e cerca de 80 escolas. Voltemos a 2001. As ações de educação de

POR CASSYRA VUOLO

crianças para cidadania nasceram com o Projeto TCEstudantil, como uma forma de estimular jovens a terem consciência da importância de exercerem a sua cidadania, conhecerem seus direitos e deveres, participarem ativamente da gestão de sua escola e de conhecer, avaliar e propor melhorias nos serviços públicos prestados no seu bairro e na sua cidade. Era, ao mesmo tempo, uma ação desafiadora, levando-se em conta ser o próprio TCE-MT um desconhecido da população e, à época, estar focado em apresentar a sua importância republicana e democrática para a sociedade, além de envidar todos os seus esforços técnicos na operacionalização da recém aprovada Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Naquela altura, articular com os estudantes, trazê-los em visitas programadas para conhecer o Tribunal de Contas era como fazer valer a proposta de Manoel de Barros: “dar ao pente funções de não pentear.

Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha.” E entre begônias e gravanhas, o projeto foi sendo executado e marcou o início da aproximação do TCE com a juventude mato-grossense. Aceitando este desafio, o TCE-MT trouxe os primeiros estudantes para visitarem suas instalações em 20 de novembro de 2001. De 2002 a 2005, deu-se continuidade a essas visitas e foram identificadas as oportunidades de melhoria e os pontos fortes da ação. Em 2006, o projeto se institucionalizou sendo inserido no planejamento estratégico de longo prazo do Tribunal, o seu público passou a ser também estudantes de ensino médio da rede pública e privada e foi firmada a parceria entre o TCE-MT e a Secretaria Estadual de Educação, Esporte e Lazer (Seduc). No colegiado do Tribunal, o grande entusiasta do projeto sempre foi o conselheiro Antonio Joaquim. Um reforço para o projeto foi o lançamento do GIBI

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CIDADANIA

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em quadrinhos do TCE-MT, em 2003. Ele passou a dar suporte aos conteúdos abordados durante as visitas e foi transformado em desenho animado, com legendas em português, inglês, espanhol e LIBRAS e versão em braile. Do lançamento até este ano, foram impressos e distribuídos mais de 100 mil exemplares, com o GIBI sempre utlizado em outros atividades de estímulo ao controle social realizadas pelo TCE-MT. Neste ponto, as atividades também passaram a ter acompanhamento pedagógico e técnico e os materiais elaborados especificamente para o projeto tinham seu conteúdo discutido em conjunto a Seduc. Todas as visitas passaram a ser avaliadas com questionários que permitem a análise do perfil dos participantes, do potencial participativo, da percepção da qualidade dos serviços públicos prestados no seu bairro, a percep-

ção da qualidade da educação na sua escola, nível de conhecimento do Tribunal e seus canais de comunicação com a sociedade. Ao captarmos as vozes, as críticas, as sugestões e elogios das crianças, deparamos com meninos e meninas que diziam, com sinceridade juvenil, dispostos a vender seu voto se pagassem o preço que eles fixassem, que mostraram abertamente não conhecer seus direitos e deveres, ou que sequer respondiam todas as questões formuladas e se mostravam pouco participativos. Ao longo destes 16 anos, uma revolução: os visitantes atuais rejeitam a ideia de vender o seu voto, um número cada vez maior diz conhecer seus direitos e deveres, muitos fazem questionamentos durante as palestras e respondem todas as perguntas do questionário de avaliação, apontando pon-

tos de melhoria para a educação, elaboram críticas, sugestões e denúncias, requerendo melhorias para sua escola e cobrando serviços para o seu bairro. Dentre elas, destaca-se o questionamento feito por um aluno da Escola Estadual Presidente Médici, de Cuiabá, que queria saber o destino do dinheiro arrecadado pela diretora da escola com o aluguel de espaço daquele patrimônio público. Após o TCE encaminhar a denúncia para a Seduc, esta realizou uma visita técnica ao local, determinou a realização de licitação para exploração do uso do espaço físico e, ainda, que fosse feita mensalmente uma prestação de contas. Resultado da ação de educação para a cidadania. À propósito, todas as demandas dos alunos recebidas durante as visitas do TCEstudantil são encaminhadas para a Seduc, para a direção da escola, ao prefei-


mente, é feita com a manifestação de um conselheiro ou procurador de contas. Os frutos dessa articulação também estão sendo colhidos em ações concretas de cidadania realizadas pelos jovens na sua comunidade. Exemplo disso: os alunos da Escola Estadual Terezinha de Jesus que, após elencar os principais problemas enfrentados no bairro, protocolaram requerimento na Prefeitura de Várzea Grande relatando a situação e solicitando providências do setor público. Consequência direta do Projeto TCEstudantil, onde aprenderam a importância de fiscalizar e acompanhar os resultados da gestão pública. As pesquisas também contam sobre essa experiência. Apesar de mais de 98% dos participantes responderem estar satisfeitos com as visitas ao TCE e as consideram importante para a ampliação dos seus conheci-

mentos em relação a gestão pública, 72% disseram que não existe na escola projeto de cidadania e apenas 16% conhecem a nota do IDEB da sua escola. Percentual este preocupante, ainda mais quando a maioria dos alunos informam desconhecer o que a sigla significa. Apesar de todo esforço despendido até aqui ainda temos muito que avançar, aprender a trabalhar em rede utilizando as novas ferramentas de interação e comunicação para conseguirmos dialogar com esta “criança” que está “conectada” a maior parte do tempo. Em certa altura podemos pensar que estamos repetindo as atividades. Mas este trabalho deve ser permanente e contínuo. E, embora tenhamos que fazê-lo, miremos o futuro com olhar do poeta pantaneiro e vamos: “Repetir, repetir — até ficar diferente. Afinal, repetir é um dom do estilo.

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to, controlador interno e ouvidor do município e, ainda, a ouvidoria do TCE-MT. Anualmente, com o TCEstudantil, o TCE-MT recebe a visita de cerca de 3 mil alunos do ensino médio e superior, totalizando, em uma década e meia, mais de 25 mil participantes. Boa parte deste público é formado por estudantes do 2º Grau, cerca de 10 mil, sendo que, destes, 8 mil são da rede pública. Outra preocupação é diversificar o público. O TCEstudantil sempre buscou atender o maior número possível de instituições de Cuiabá e Várzea Grande, sendo que das 76 escolas estaduais, 60 já estiveram no TCE, e dos 24 colégios particulares, 18 visitaram a instituição. Normalmente as visitas ocorrem às terças-feiras, oportunizando, entre tantas atividades, acompanhar uma parte da sessão de julgamento do Tribunal Pleno. E a recepção, obrigatoria-

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

Cidadão do Xingu O lado “B” do Ministério Público de Mato Grosso

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POR JOÃO CARLOS VICENTE FERREIRA FOTOS JP VIDEOS E MOISÉS FOTOS


lumeMatoGrosso FESTA DA TAQUARA, NA ALDEIA AIHA, NO ALTO XINGU

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R E P O RTAG E M ESPECIAL

A PROMOTORA PÚBLICA DRA SOLANGE LINHARES CUMPRIMENTA GRANDES LIDERANÇAS INDÍGENAS DO ALTO XINGU, O PRIMEIRO, DA DIREITA PARA A ESQUERDA É TAFUKUMAN KALAPALO, CACIQUE DA ALDEIA AIHA, SEGUIDO DO CACIQUE KOTOKI KAMAYURA, DA ALDEIA IPAVU

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ivemos numa era em que o termo cidadania deveria ser disciplina escolar, num mundo onde não existe sucesso verdadeiro, ou felicidade, sem o exercício pleno da cidadania e da ética global. Na reportagem especial de setembro deste periódico, apresentamos a Dra. Solange Linhares, Promotora de Justiça Titular de Paranatinga, um dos maiores municípios do Estado em extensão territorial, cuja comarca abrange o município de Gaúcha do Norte, onde se encontra a parte sul da Terra Indígena do Xingu, conhecida como Alto Xingu. Promotora de Justiça atuante e mulher de personalidade forte, Solange Linhares, frequentemente, deixa o conforto de seu gabinete para ir aos lugares mais distantes dentro de sua comarca, “conhecer a realidade dos meus clientes, dizer quem sou e o que posso fazer por eles enquanto Ministério Público Estadual”, diz. E é no exercício desta atividade, que somente é possível fora do ambiente confortável da Promotoria de Justiça, que a jurista mato-grossense vem se destacando na luta

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pelas causas sociais, levando a bandeira da cidadania como objetivo de vida. Radicada em Paranatinga há mais de quatro anos, é Promotora de Justiça há oito. É casada com Anderson Antunes - o Alemão, há 17 anos, com quem tem os filhos Beatriz (Bia), Madalena (Mada) e Joaquim (Joca), com 15, 7 e 6 anos respectivamente. Nascida em Vilhena-RO, mora em Mato Grosso desde o início da adolescência. Sobre seus primeiros tempos de Mato Grosso, lembra o seguinte: “Eu cheguei aqui em 1990, na caçamba de um caminhão, com mudança e familiares. Vim com meus pais e irmãos - somos em 5 irmãos - diretamente para Várzea Grande, onde vivi intensamente minha adolescência e parte da vida adulta, estudei, trabalhei, enfim, me tornei mulher e profissional naquela cidade. Cursei a faculdade de direito na Universidade Federal de Mato Grosso, na capital”. Desde cedo enfrentou as dificuldades da vida e fala do seu passado de pobreza com distinção e orgulho: “Quando crianças, eu e meus irmãos comíamos goiabinhas verdes antes de irmos para a escola,


car no mundo dos fatos o sonho de mudar a realidade das pessoas para melhor.” Esse sentimento levou a então jovem sonhadora a intensificar os estudos em direito para passar no tão almejado concurso para o Ministério Público, o que se concretizou em abril de 2009, quando assumiu o cargo de Promotora de Justiça. Desde então, atuou em vários municípios de Mato Grosso, passando por Cuiabá, Várzea Grande, Alta Floresta, Barra do Garças, Nova Xavantina, Itiquira e Pedra Preta, onde foi titularizada. Em seguida, já na entrância intermediária da carreira, assumiu a comarca de Paranatinga, que abrange o município de Gaúcha do Norte, e por consequência, como mencionado, o Alto Xingu, onde está até os dias de hoje. Sobre sua atual comarca, a Promotora pontua: “A região do estado em que atuo guarda peculiaridades que a tornam um profícuo campo de estudos e de trabalho para uma agente ministerial. Ao mesmo tempo em que o agronegócio está ali colocado como principal atividade produtiva e grande fonte de arrecadação estatal, seus efeitos negativos sobre o meio ambiente e a qualidade de vida de populações são indiscutíveis e exigem postura sempre ativa e atuação proativa da membro do Ministério Público.” Afora isso, “a comarca reúne ao todo onze etnias indígenas, distribuídas nas TI’s Marechal Rondon (etnia Xavante), Bakairi (etnia Bakairi), Batovi (etnia Waurá) e Alto Xingu (etnias Yawalapiti, Waurá, Kamayurá, Kalapalo, Mehinaco, Matipu, Nafukuá, Aweti e Kuikuro), espalhadas em cerca de sessenta aldeias pela região. São terras indígenas limítrofes de grandes plantações, sobretudo de soja e algodão, o que torna a tensão entre o agronegócio e as políticas indigenistas e ambientais pulsante”. Na sequência, temos uma entrevista realizada com a Promotora de Justiça, Solange Linhares, sobre o projeto Cidadão do Xingu, um conjunto de ações do Ministério Público Estadual que busca melhorar o exercício da cidadania por parte dos povos indígenas do Alto Xingu, em Gaúcha do Norte.

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porque não havia pão, nem tempo para que as goiabas amadurecessem”. Começou a trabalhar já aos 15 anos de idade, numa lanchonete, fazendo sucos e lanches. Certo tempo depois prestou concurso público para o cargo de técnico-administrativo da SEDUC, passando a atuar como secretária de uma pequena escola do Bairro Cristo Rei, em Várzea Grande. Sempre dedicada aos estudos e com os olhos voltados para o futuro, prestou novo concurso público e, aprovada, passou a trabalhar no Poder Judiciário de Mato Grosso, como oficial escrevente, em diversas varas do Fórum da capital. Quanto a esta fase de sua vida, afirma que “foi ali, observando o trabalho de juízes, promotores e advogados no ambiente forense, que tive o insight de me tornar, um dia, uma promotora de justiça. Sempre fui uma mulher muito idealista, sempre sonhei muito, e sonho até hoje, com um mundo melhor para todos nós, e minhas ações são, na maioria das vezes, tentativas de concretizar esse sonho”. E foi assim, nos conta, “de sonho em sonho”, que Solange Linhares encontrou respaldo e motivação para seus anseios, exatamente quando entrou para o Ministério Público de Mato Grosso. Sobre os primeiros anos de MPMT ela lembra o seguinte: “Eu ainda não conhecia verdadeiramente o Ministério Público, mesmo assim fiz o concurso para ser analista jurídico, uma atividade de assessoria do Promotor de Justiça. Nesta função permaneci por cerca de quatro anos, período em que me apaixonei completamente pelo MP, sobretudo, pelo trabalho de tutela coletiva desenvolvido pelos excelentes Promotores de Justiça que conheci, que consiste, em última instância, na defesa da cidadania no seu sentido mais amplo - saúde, educação, moradia, probidade administrativa, patrimônio público etc. Inclusive, foi trabalhando numa Promotoria de Tutela Coletiva, como assessora, que tive certeza de que seria ali, naquele espaço, que eu poderia atender àquele anseio que sempre esteve em mim, de ser útil à coletividade, de prati-

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R E P O RTAG E M ESPECIAL DE QUE FORMA VOCÊ, ENQUANTO MEMBRO DO MPMT, VÊ O INDÍGENA? »»Vejo o indígena como um cidadão, com especificidades culturais que devem ser respeitadas, com características diferentes das minhas, mas acima de tudo, um cidadão brasileiro. Nós aqui, do MPMT, caminhamos no sentido de melhorar, de aprimorar a defesa dos povos indígenas de Mato Grosso, para que tenham pleno acesso e gozo dos direitos individuais, coletivos e sociais previstos nos artigos 5º, 6º e 7º da Constituição Federal. O meu trabalho nesta seara, com o projeto Cidadão do Xingu, caminha justamente no sentido de melhorar as condições do exercício da cidadania, em sentido amplo, por parte dos povos indígenas alto-xinguanos. E A SOCIEDADE? COMO VÊ A QUESTÃO INDÍGENA NO SEU PONTO DE VISTA? »»Há muito preconceito ainda. Mato Grosso, genericamente falando, se orgulha de ser o celeiro do Brasil. O agronegócio é tido pela maioria da população como a grande e, por que não dizer, a melhor fonte de geração de emprego e renda, arrecadação de impostos, enfim. Não vou me posicionar aqui sobre o quão imediatista, simplista e equivocado pode ser este pensamento, até mesmo porque não é o foco da entrevista. Devo dizer, contudo, que, neste cenário, de “orgulhoso celeiro nacional”, o indígena se apresenta como o outro, o diferente, o opositor, aquele que ocupa grandes áreas de terras que “poderiam ser produtivas, mas não são”, segundo os preceitos vigentes. A tensão entre o agronegócio e as políticas indigenistas é constante. E, deve ser constante, sob pena de vermos serem suprimidos destas populações tradicionais o direito de viver ao seu modo, de acordo com as suas especificidades culturais, garantia esta que é constitucional e que compunha o rol dos direitos humanos. E COMO ESSA TENSÃO SE MOSTRA NA COMARCA DE PARANATINGA? »»Vou exemplificar com algumas impressões colhidas por mim no município de

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Gaúcha do Norte, formado quase que 50% pela parte sul da Terra Indígena do Xingu, conhecida como Alto Xingu. A área indígena em questão tornou-se uma “ilha no meio da soja”. Os efeitos da expansão desenfreada do agronegócio podem ser notados a olhos nus, como a baixa no volume das águas de vários rios que alimentam comunidades inteiras, com a consequente diminuição do número de peixes, devido à construção de barragens em cursos d’água para geração de energia elétrica em grandes fazendas, para desvios estratégicos, e pasme, até mesmo para o lazer de proprietários de terras. Sendo pragmática, um dos inquéritos civis instaurado por mim sobre esse ponto em específico aponta preliminarmente a existência de 16 barragens sobre um único rio, o Tuatuari, que banha e é fonte de vida para os Yawalapiti, Mehinaco e Aweti. A baixa no volume de água causou a proliferação de algas em parte de sua extensão, deixando a água com coloração avermelhada durante este ano, gerando pânico em muitas pessoas que vivem naquele e daquele rio. Há notícias de que alguns indígenas se recusam a beber e a banhar-se naquelas águas devido a este fato, tampouco se alimentar do peixe de lá. Os efeitos do uso abusivo de agrotóxicos nas lavouras para a saúde das pessoas em geral, e do mesmo modo para a saúde do indígena alto-xinguano, é um outro ponto crítico, objeto de intensos debates, e que somente a história poderá desvendar. A modificação climática decorrente da abertura das florestas que antes faziam limites com o parque também é um bom exemplo. Os pajés reclamam que já não conseguem “controlar o vento”, devido à abertura da mata pelo “homem branco”, o que dá causa a incêndios quando da preparação do solo para a plantação das roças de mandioca. De outro lado, é frequente a reclamação por parte de muitos produtores rurais, que acusam os indígenas alto-xinguanos pelo elevado índice de fogo no município durante o período das secas.


O PROJETO CIDADÃO DO XINGU LIDA COM A QUESTÕES AMBIENTAIS? »»Sim. Uma derivação Cidadão do Xingu consiste no projeto Águas do Xingu, ainda em fase de finalização de subprojetos ambientais e arrecadação de recursos para sua execução. Nele pretendem-se a recuperação de nascentes dos rios afluentes do Rio Xingu, principal curso d’água da TI do Xingu, que se encontram todas fora do parque, bem como a criação de um corredor ecológico-cultural ligando as TI’s de Marechal Rondon e Batovi através do Rio Tamitatoala (ou Batovi). Os aproximadamente 150 Km do Rio Tamitatoala que estão fora das terras indígenas estão praticamente sem matas ciliares, com as áreas de preservação permanente devastadas. Este rio é de importância ímpar para os povos xinguanos, bakairi e xavante, pois é considerado um portal xamânico, reflexo do rio que há no céu. Nas suas margens, no distrito de Salto da Alegria, em Paranatinga, temos a Gruta Kamukuaká, um dos primeiros sítios arqueológicos indígenas tombados pela União. Por conta do crescente processo de erosão do Rio Tamita-

toala, os indígenas que vão ao local para a realização de rituais de passagem (furação de orelha, por exemplo) precisam dançar agachados. Parte das pinturas rupestres estão submersas na areia. Além da mencionada gruta há outros tantos pontos de valor antropológico-cultural às margens e sobre este rio. É triste ver isso se perder. E NO CAMPO DA CULTURA, HÁ ESSA MENCIONADA TENSÃO? »»Não tenho dúvidas. Como dito, o indígena se apresenta aos nossos olhos como o outro, o diferente, aquele que vive e se comporta de modo diverso ao meu, e isso pode despertar os mais negativos sentimentos e comportamentos, como a negação da existência dessas pessoas - e, acredite, isso acontece -, passando pela rejeição deles nas cidades, pelo preconceito e até mesmo violência. COMO ASSIM NEGAÇÃO DA EXISTÊNCIA? »»Sim. Vou exemplificar com algo muito simples, mais uma vez valendo-me de impressões colhidas em campo, nos municípios que formam minha Comarca. Con-

O CACIQUE KOTOKI KAMAYURA E SUAS DUAS ESPOSAS. AO FUNDO O RIO TAMITATOLA OU BATOVI, NO CENTRO DA IMAGEM A DRA. SOLANGE LINHARES

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R E P O RTAG E M ESPECIAL quanto haja em Paranatinga e em Gaúcha do Norte, um número elevado de indígenas e muitos deles estudem na zona urbana destes municípios, os aspectos da cultura indígena são praticamente desconsiderados nos projetos político-pedagógicos, planos didático-pedagógicos e respectivos planos de aula das escolas, sejam municipais ou estaduais. Veja bem, pelo menos metade dos alunos do ensino fundamental em Gaúcha do Norte é indígena! Como desconsiderar este fato nos documentos e, por consequência, nas ações que fundamentam as diretrizes do ensino nessas escolas? Percebe o quão violadora de direitos essa omissão é? A REJEIÇÃO E O PRECONCEITO NAS CIDADES? COMO OCORREM? »»Dos mais variados modos. Vou citar um caso prático, para não tornar esta leitura penosa. Recentemente, em Gaúcha do Norte, mulheres de uma associação indígena me procuraram para reclamar que uma agência bancária local se recusara a abrir uma conta corrente para a entidade, porque não havia entre os membros da diretoria um bran-

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co, “responsável”. Ou seja, mesmo sendo cidadãs, eleitoras, inclusive, com documentos de identificação (RG, CPF, título de eleitor, etc.), essas mulheres, na visão da pessoa que as atendeu, não podiam ser titulares de uma conta bancária, por serem indígenas. E posso culpá-la por isso? Tenho cá minhas dúvidas, muito embora tenha agido no sentido de que a conta fosse aberta, como de fato foi. Digo isso porque os cidadãos comuns desconhecem, em grande medida, até mesmo os direitos que têm as pessoas da cidade. O que se dizer das pessoas que vivem apartadas da cidade? Ademais, é comum que os próprios juristas, que são os “conhecedores da lei por excelência”, se contradigam em seus entendimentos sobre os direitos indígenas. E VIOLÊNCIA? HÁ CASOS REGISTRADOS DE VIOLÊNCIA CONTRA INDÍGENAS NESTA REGIÃO? »»Sim. No passado, sobretudo a violência física contra o indígena era a regra, hoje a exceção, mas não deixa de ocorrer. É um tipo de violência de gênero, penso, muito embora esteja muito ligada à questão

NO CENTRO, A DRA. SOLANGE LINHARES CONVERSA COM INDÍGENAS, NO ACAMPAMENTO KAMAYURA, NO ALTO XINGU


lumeMatoGrosso A DRA. SOLANGE LINHARES, PARTICIPANDO DE RITUALÍSTICA XINGUANA

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R E P O RTAG E M ESPECIAL da disputa sobre a propriedade de terras. Mas há outros tipos de violência, concorda? A violência cultural, e uso este termo à falta de outro mais específico, é brutal e ocorre desde sempre. MAS A REGRA É A ADMIRAÇÃO E O RESPEITO? »»Sim. Penso que sim. É comum que jurisdicionados da cidade me questionem sobre as práticas e vivências que experimento nas aldeias indígenas por mim visitadas. É comum que se impressionem com os fatos que relato, com as imagens que publico em meu facebook pessoal, enfim. Talvez devido a características da minha personalidade, tenho aqui comigo a convicção de que o amor ao próximo, e isso implica aceitação e respeito, é a regra. E num país tradicionalmente cristão, como o Brasil, não poderia ser diferente. O próximo, indígena ou não, merece ser amado, aceito e respeitado tal qual qualquer outro ser humano. E saiba que nem sou cristã (risos)… ESSA PRÁTICA DE IR ATÉ AS ALDEIAS, ELA OCORRE COM FREQUÊNCIA? POR QUE? »»Sim, ocorre. Tento dividir meu tempo entre os povos da cidade e os povos da floresta, termo genérico que uso mesmo sabendo que os Xavante e os Bakairi estão em meio ao cerrado matogrossense. Veja bem, o projeto Cidadão do Xingu busca o melhoramento das condições do exercício da cidadania pelos povos indígenas alto-xinguanos. Decorrência lógica, isso só pode ser alcançado se as pessoas atingidas souberem quais são os seus direitos. E não se iluda, a absoluta maioria das pessoas, brancas ou não, não sabem exatamente quais direitos possuem e a quem recorrer para concretizá-los. Com relação aos xinguanos, há uma peculiaridade que dificulta e muito este processo de conhecer direitos e concretizá-los, consistente no fato de que estão divididos em 9 etnias, com características algumas vezes muito diversas umas das outras, espalhados em várias aldeias, muito embora haja no Alto Xingu certa homogeneização cultural, decorrente da pro-

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ximidade das comunidades, o que possibilita trocas frequentes, seja de bens materiais (ramas de mandioca, cerâmicas, apetrechos tradicionais etc.), seja de conhecimentos, mitos e ritos (o casamento intertribal contribui muito para isso). Mas não se podem negar as diferenças decorrentes da origem linguística das etnias. São comunidades diferentes, cujos dialetos derivam de 4 troncos linguísticos: Arawak, Karib, Tupi e Trumai. NO QUE A DIVERSIDADE LINGUISTICA DIFICULTA O TRABALHO? »»Ora, palavras consagradas nos idiomas ocidentais durante o processo de reconhecimento dos direitos humanos sequer existem nesses dialetos indígenas. Jorge Orwel, em seu livro 1984, nos apresenta um Estado opressor do seres humanos. Sempre que o tirano idealizado pelo autor desejava suprimir um direito, ele suprimia uma palavra do idioma. Isso, numa síntese vulgar, posto que não sou do ramo da linguística, e sim uma jurista curiosa da realidade, nos ensina que, sem a palavra, não existe a realidade. Percebe a complicação? Sem a palavra não existe a realidade. Esse insight é incrível! Apenas para acrescentar, li recentemente que, numa comunidade distante, linguistas se confrontaram com o seguinte fato: as pessoas não enxergavam a cor azul. E por não enxergarem cor azul, não percebiam a diferença entre a cor do mar e a cor do céu. Como assim não enxergavam a cor azul? Não havia a palavra azul no dialeto. A realidade não é então uma obviedade, pois depende até mesmo das palavras que conhecemos. Coisa maravilhosa isso! Mas voltemos à pergunta, porque divaguei (risos). Como dito, o projeto Cidadão do Xingu consiste num conjunto de ações voltadas ao melhoramento das condições do exercício da cidadania das comunidades alto-xinguanas. Então, desenvolvo ações lá, não ministro aulas de cidadania. E desenvolvendo ações, “vou me dizendo Ministério Público Estadual, Promotora de Justiça”, enfim, com ações que modificam


lumeMatoGrosso A DRA. SOLANGE LINHARES EM TRABALHO DOMÉSTICO COM MULHERES INDÍGENAS DO ALTO XINGU, COM AS QUAIS SE SOLIDARIZA

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a realidade, espero que para melhor. Esse processo de “se dizer Ministério Público” é doloroso lá em cima (referência ao Alto Xingu), posto que mesmo aqui, na cidade, as pessoas ainda não conhecem com precisão do que o termo trata. Já fui confundida com uma oficial de justiça aqui na cidade (risos), aquela pessoa que leva aos jurisdicionados mandados de juízes (mais risos). Acrescente a esta dificuldade o fato de eu ser mulher e estar lidando com comunidade essencialmente patriarcais. Concluindo, para “se dizer Promotora de Justiça” preciso estar lá, atuar no mundo lá, agir lá, fazer coisas e modificar a realidade, daí o contato pessoal e frequente com as comunidades tradicionais dos meus municípios, aqui incluindo assentamentos e distritos. Ando muito pela comarca. Isso é um fato. E NESSE PROCESSO DE SE DIZER MINISTÉRIO PÚBLICO, QUAIS AÇÕES O PROJETO CIDADÃO DO XINGU JÁ DESENVOLVEU? »»Muitas! Vou elencar, aleatoriamente, a realização recente de mutirão da cidadania no CTL Leonardo VillasBoas - inscrição em programas governamentais, como o bolsa família, inscrição no RG e no CPF, inscrição eleitoral, atualização de títulos eleitorais, registro de certidões de nascimento, retificação de nomes etc. Implantação de tanques-rede de peixes - piloto na aldeia Ipavu, local em que ficou diagnosticada situação de fome durante o ano passado. Implementação do projeto A Escola Sonhada - piloto na aldeia Piyulaga de escola com forma arquitetônica de cocar indígena, a ser construída sob os critérios da bioconstrução. Apoio cultural a festas e rituais, como Kuarups (este ano nas aldeias Ipavu e Aweti) e outras, como a recente Festa do Papagaio, na aldeia Aiha. Apoio a pequenos projetos locais, como a reforma das estruturas de alojamento da aldeia Ipavu, aquisição de veículos para a comunidade Yawalapiti, destinação de alimentos e combustível a diversas aldeias etc.

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A DRA. SOLANGE LINHARES EM UMA DE SUAS CONSTANTES VIAGENS FLUVIAIS PELOS RIOS DO ALTO XINGU

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R E P O RTAG E M ESPECIAL E COMO ESSAS AÇÕES SÃO FINANCIADAS? »»Até o momento, somente mediante recursos oriundos de Termos de Ajustamento de Conduta firmados na Promotoria de Justiça em que atuo. Contudo, há a necessidade de buscar parcerias financeiras para a execução de ações mais dispendiosas, o que está sendo feito. O QUE A VOCÊ PODE DIZER SOBRE A QUESTÃO DAS ATRIBUIÇÕES DOS MPS ESTADUAIS SOBRE DIREITOS DOS INDÍGENAS? »»Os Ministérios Públicos Estaduais, durante muito tempo, sobretudo no período anterior à Constituição de 1988, seguiam de um modo geral a linha antropológica integracionista. Ou seja, o indígena ou deve ser integrado à “comunidade branca”, para gozar direitos, ou viver isolado, sob a tutela da União. Vigeu durante muito tempo a ideia de que “o índio e suas terras são coisas da União”, e por isso atribuição do MPF. Esse entendimento é antiquado e está sendo superado, até mesmo porque a concepção integracionista cedeu espaço à tese interacio-

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nista, que aceita as diferenças das minorias, o que ganhou status constitucional. Como jurista, sigo o seguinte entendimento das leis que versam sobre os direitos indígenas: há direitos que são estritamente indígenas, os do artigo 231 da Constituição Federal (organização social, costumes, línguas, crenças e tradições), e estes devem ser tutelados pelo MPF, bem como a defesa das terras indígenas e sempre que houver interesse da União, de seus órgãos e autarquias. E há direitos a que o indígena faz jus simplesmente por ser pessoa humana, como os elencados nos artigos 5, 6 e 7 da Carta Magna, cuja concretização ficam ao encargo dos MP’s Estaduais. Inclusive, a Lei Orgânica do MPMT tem previsão expressa acerca da tutela dos direitos da minorias étnicas por parte dos Promotores de Justiça. FALE SOBRE ISSO EM TERMOS NÃO JURÍDICOS »»Certo, vou me valer de exemplos, então. Como dito, a população indígena nos municípios de Paranatinga e Gaúcha do Norte é expressiva. Como que eu posso ser Pro-

EM MOMENTO CULTURAL, A DRA. SOLANGE LINHARES CONVERSA COM GUERREIROS NO ALTO XINGU


VOCÊ ACHA QUE EXISTE POUCO INTERESSE NESSE ASSUNTO? »»Tenho convicção que o MPMT caminha no sentido de garantir os direitos dos povos indígenas, respeitando sempre as atribuições conferidas unicamente ao MPF pela Constituição Federal. ESSE ENVOLVIMENTO INTENSO É DA PROMOTORA OU DA CIDADÃ? »»O meu envolvimento se dá, é óbvio, através do MPMT, o qual represento e me respalda. Contudo, a cidadã Solange está lá, presente em cada ação desencadeada. Inclusive, foi antes a cidadã que a Promotora, ouso dizer, que diagnosticou que a cidadania no Alto Xingu é exercida de modo piorado à que se exerce na cidade, que já é bem precária. CIDADANIA PIORADA? »»Sim, não tenho dúvidas disso. A distância das cidades, a precariedade ou a falta de acesso aos serviços públicos ofertados nas cidades, a ausência de políticas públicas essenciais e sobre temas viscerais a esses povos, tudo isso, aliado a uma série de outros fatores, tornam a cidadania lá (referência ao Alto Xingu) quase que um ideal. Sobre isso, Antônio Alves, cronista, poeta e pensador acreano, nos disse há muito que os povos da floresta não precisam de cidadania, e sim de “florestania”. Muito embora esse termo

tenha ganhado colorações diversas e usos variados, a depender da intenção de quem o usou, gosto de pensar em florestania como sendo o exercício pleno da cidadania, respeitando as peculiaridades culturais dos cidadãos da floresta, entre eles os indígenas, pois são comunidades diferentes, que têm o seu próprio jeito de viver e de lidar com a realidade. Para mim florestania está para além do conceito de cidadania. GOSTARIA DE COMPARTILHAR CONOSCO ALGUMA EXPERIÊNCIA QUE CONSIDERE MARCANTE DURANTE SUA ATUAÇÃO NESTE PROJETO? »»Claro! Na verdade, poderia discorrer por horas sobre tudo que tenho aprendido com essa gente. Contudo, o que mais me impressiona é o jeito mágico e simbiótico com que criam, interpretam e lidam com a realidade e com seus deuses. Epistemologia, metafísica e lógica em síntese. Certa feita, ao se iniciar uma tempestade, uma chuva intensa pra nós, “brancos”, um garotinho pega minha mão e me acalenta: “Não se preocupa, pomotola (sic), os pajés já estão lá fora, rezando”. Olho “lá fora” e observo, encantada, um dos pajés movimentando os braços no sentido de afastar a chuva da aldeia, enquanto emitia um som indistinguível, mas lindo. Em outra ocasião, pude ouvir atentamente de uma respeitada pajé como ela recebeu de sua avó arraia (sim, arraia) o dom da pajelança, uma narrativa aparentemente confusa para uma mulher ocidental branca do século XXI, como eu, mas que lida com a necessária perspicácia me ensinou que, para aquela mulher, as coisas são e não são ao mesmo tempo, visto que ficou claro pra mim que sua avó, arraia, era tanto bicho quanto ser humano, ou seja, não se aplica a ela a tábua de lógica aristotélica, base do nosso conhecimento, e que tem como uma de suas regras que X é igual a X, ou seja, essa mesa aqui à nossa frente é uma mesa e não um pássaro. Sim, para os indígenas alto-xinguanos as coisas podem ser e não ser ao mesmo tempo, e isso é incrível, e ultra moderno em termos de lógica, mas infelizmente está se per-

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motora de Justiça de somente parte da população? Posso ser Promotora de Justiça dos “brancos”, mas não dos indígenas da minha comarca? Se um indígena me procura e reclama: “Doutora, eu preciso de atendimento médico, de cirurgia e remédios, de vagas nas escolas e creches, de transporte, de moradia, de políticas públicas”, o que eu vou responder? Que procure o MPF? Seria uma resposta absurda, não acha? Como me negar a “pleitear direitos humanos de seres humanos somente porque são indígenas?” Por incrível que pareça, há ainda, entre os juristas, essa discussão de atribuições. Uma infelicidade.

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ASSISTINDO O HUKA HUKA, NA ALDEIA AIHA, DA ETNIA KALAPALO

dendo com a chegada da tecnologia nas aldeias. Em outra ocasião mantive um diálogo completamente improvável para uma mulher ocidental branca, quando um jovem indígena, descontente com os dois nomes que recebeu (eles podem ter vários nomes e apelidos), reclamava de seu irmão mais velho: “Ele tem cinco nomes doutora! Já pedi que me dê um deles, mas ele não dá; ele quer todos os nomes só pra ele”. Cito, ainda, as muitas curas que presenciei com o uso da pajelança, ao ponto de me fazer questionar a fé cega que temos na medicina moderna, na ciência. Como disse, posso falar por horas sobre o que venho aprendendo com esses povos, mas a prudência pede que eu pare por aqui, para não cansar quem se der ao trabalho de ler esta entrevista. VOCÊ FALOU EM TECNOLOGIA NAS ALDEIAS. COMO ISSO VEM AFETANDO A VIDA DOS XINGUANOS? »»Talvez eu não tenha legitimidade para falar sobre o assunto, visto não ser antropóloga, e sim jurista. Então vou apenas emitir impressões. Há os dois lados da moeda. A tecnologia tornou possível, por exemplo, o

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tratamento dentário nas aldeias. O dentista liga o gerador e restaura o dente, e isso é bom. Contudo, a energia elétrica, mesmo que através da placas solares, trouxe para o mundo indígena coisas que, nós da cidade, questionamos serem boas ou más. Como, por exemplo, o desejo de consumo. Eles assistem novelas, jogos de futebol, e surge o desejo de se parecerem com aquele herói ou heroína representados na televisão. Querem possuir os bens que esses heróis e heroínas possuem. As chuteiras usadas pelo Neymar ou pelo Messi e as camisetas dos seus times são um desejo quase que unânime entre os homens jovens. A mulheres, pouco a pouco, estão cobrindo os seus corpos, não mais com pintura e apetrechos, e sim com vestidos, porque, em algum momento, perceberam que o nu feminino pode ganhar interpretações que não conheciam até então, negativas. O mesmo se aplica aos homens. Alimentos da cidade entram nas aldeias do Alto Xingu quase que diariamente, interferindo na dieta e consequentemente na saúde daqueles povos, para pior. O acesso à internet também tem lado bom e lado ruim. Ao mesmo


É UM CAMINHO SEM VOLTA? »»As autoridades mais antigas das aldeias tentam fazer com que se mantenham os costumes. Existem também ONGs trabalhando nesse sentido. Porém, há dificuldades por parte dos jovens em não desejar os produtos que o mundo do “branco” pode ofertar, como mencionado antes. Possivelmente a existência de campos de futebol no centro das aldeias seja o símbolo mais marcante desta intervenção cultural no Alto Xingu. Perceba, os alto-xinguanos enterram seus mortos no centro das aldeias. É um local sagrado. É no centro que são realizadas as festas e rituais. Hoje, a par de continua-

rem a fazer isso, eles jogam futebol sobre os restos mortais de seus antepassados. Não estou a dizer que as coisas devem se manter sempre como são. As coisas mudam e a única constante que há, de fato, é a mudança. Os costumes e tradições indígenas mudaram ao longo do tempo e continuarão a mudar, nesse movimento constante de construir a realidade desconstruindo a realidade. O que me preocupa é a velocidade com que as mudanças vêm ocorrendo. Isso sim é um problema.

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tempo em que tornou possível a comunicação em nível global, inseriu no universo indígena a pornografia, por exemplo. O que sinto, a bem da verdade, é que estes indígenas estão num processo drástico de “salto do mito e da poesia para a ciência”, e isso reflete no “eu indígena” das mais variadas formas, muitas delas bastante impactantes. Esse processo pode ser muito dolorido. Talvez venha daí o crescimento do índice de alcoolismo e suicídios entre eles.

COMO É QUE A PROMOTORA CONSEGUE FAZER TUDO ISSO E AINDA ATENDER ÀS DEMANDAS DE ROTINA DE UM GABINETE DE PROMOTORIA DE DOIS MUNICÍPIOS? »»Em primeiro lugar: “Eu sou mulher, né”. Nós, mulheres, somos famosas por fazermos muitas coisas ao mesmo tempo. As xinguanas, por exemplo, dançam o Yamuricumã (mito celebrado pelas mulheres) segurando um filho pela mão, com o outro mamando em seu seio, e podem fazer isso durante horas seguidas, cuidando dos demais filhos e do marido. Quisera eu ser tão forte e tão capaz.

A DRA. SOLANGE LINHARES EM COMPANHIA DE WALAKO YAWALAPITI, NO RIO CULUENE, EM VIAGEM À ALDEIA TUATUARI, DA ETNIA KAMAYURA

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MEMÓRIA HISTÓRICA

Revolução Russa:

100 Anos! A revolução foi pro brejo?

“P

POR ANNA MARIA RIBEIRO F. M. COSTA FOTOS DIVULGAÇÃO

az, pão e terra!” Estas foram as palavras de ordem que conduziram um movimento de massas, composto por milhares de camponeses, trabalhadores industriais, mulheres, movimentos étnicos que derrubaram o czar Nicolau II, obrigado a renunciar. Grande parte da oposição era composta por socialistas, baseados no ideário de Karl Marx. Isso significou que a classe trabalhadora teve uma centralidade no processo revolucionário. Acreditavam que os problemas do país só chegariam ao fim com a aboli-

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ção do capitalismo e, consequentemente, com a implantação do comunismo. Divididos em dois grupos – bolcheviques (palavra russa que significa maioritário) e mencheviques (palavra de origem russa que quer dizer minorias), os primeiros, liderados por Lenin, queriam a derrubada do czarismo pela força e a implantação imediata de um governo socialista, representante dos operários e camponeses; os segundos, liderados por Yuly Martov e Georgy Plekanov, propunham a implantação do socialismo através de reformas de caráter moderado.


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ANNA MARIA RIBEIRO F. M. DA COSTA é doutora em História, pesquisadora da Funai, professora do Univag - Centro Universitário de Várzea Grande, membro do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso e do Clube Filatélico, Numismático e afins de Cuiabá.

Assim, em Fevereiro de 1917 (Revolução de Fevereiro), ocorreu a queda do czarismo com a abdicação do Czar Nicolau II. Com o apoio da burguesia, os Mencheviques assumiram o poder e implantaram um governo de caráter liberal, a Duma Estatal. Mas, as adversidades enfrentadas pela Rússia durante a Primeira Guerra Mundial levaram a substituição do governo pelo político Alexander Kerensky, também do Partido Menchevique. A Revolução Russa de CZAR NICOLAU II

1917 consistiu em uma série de eventos políticos que, após a eliminação da autocracia russa e depois do governo provisório da Duma, resultou na instituição do poder soviético, nas mãos do Partido Bolchevique. O resultado desse processo foi a criação da União Soviética que perdurou até 1991. Com a queda do Império Russo (1547-1917), o governo provisório assumiu o poder, ainda que os interesses de seus membros se identificassem com os da burguesia russa. Esse gover-

no adotou algumas medidas, tais como: anistia para os presos políticos, liberdade de imprensa e redução da jornada de trabalho para 8 horas. Se as medidas do novo governo satisfaziam a burguesia, não se pode dizer o mesmo para os camponeses e operários que reivindicavam terras e melhores salários, respectivamente. Paulatinamente, o Partido Bolchevique se tornou o porta-voz das reivindicações da classe trabalhadora. Em outubro de 1917, Vladimir Ilyitch Ulianov, conhecido por Lenin, do Partido Bolchevique, apoiado pelos sovietes e por uma milícia popular, conquistou a capital e obrigou o governo provisório a renunciar. Os Bolcheviques acreditavam que só o Comunismo poderia trazer felicidade para os russos e, assim, tentaram criar uma sociedade onde todas as pessoas fossem iguais e livres. Nas palavras de Marijane Vieira Lisboa, professora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-SP, em rede da TV-PUC, disponibilizada na plataforma de distribuição digital de vídeos YouTube, a Revolução Russa “marcou radicalmente porque introduziu uma sociedade que estava prometi-

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MEMÓRIA HISTÓRICA da como teoria e como movimento social, movimento socialista e como teoria marxista e depois ela se mostrou possível”. E mais: “ao ser inaugurada com a Revolução Russa, ela foi sucedida por várias outras tentativas de revolução, muitas delas fracassaram. Mas, algumas foram vitoriosas como mais tarde vai ser a Revolução Chinesa e, ao fim da Segunda Guerra Mundial com o avanço do Exército Soviético, boa parte dos países que foram libertados dos nazistas pelos Exércitos Soviéticos acabaram tendo regimes Socialistas. Então, durante pouco tempo, meio século, tinha, como diz Robsbawm, um terço do mundo vivendo sob regimes socialistas”. Na Rússia pós-Imperial, a fim de que o sonho por uma sociedade igualitária fosse implantada, foram adoVLADIMIR ULIANOV - LÊNIN

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tadas várias medidas: desapropriação das terras da igreja, da nobreza e da burguesia para distribuição aos camponeses; fábricas, lojas, bancos, dentre outras instituições passaram a ser propriedades do Estado. Essas medidas almejavam a igualdade entre os homens, pois, segundo o marxismo, sem propriedade não haveria exploradores e explorados. Ainda com o pensamento da professora Lisboa, a “promessa de que era possível construir um país onde não houvesse exploração de pessoa por pessoa, aonde fosse possível rapidamente se industrializar esse país, enriquecer esse país, melhorar a condição de vida de grande parte da população e criar, o que se falava muito, um “homem novo”, quer dizer, um ser humano, muito mais solidário, humano, responsável pelos demais, etc.

realmente foi um grande sonho que explica todo o século XX e boa parte do XXI”. Não resta dúvida de que a Revolução Russa foi um evento determinante para definição da história do século XX. Na TV-PUC, nas palavras do historiador Giampaolo Dorigo, ocasionou uma mudança de proporções gigantesca, pois deu-se o surgimento de um “regime socialista na Rússia que se transformou em União Soviética que não apenas vai servir de inspiração para outros movimentos semelhantes, movimentos revolucionários no mundo inteiro e ao longo do século XX, como também o surgimento dessa Rússia agora União Soviética potência, vai ter um impacto gigantesco no geopolítica mundial, por exemplo, o impacto da Guerra Fria, cenário político compreendido entre o perío-


preço por isso. Você olha para o mundo hoje, tem 1 bilhão de famintos, 1 bilhão de pessoas passando fome. A miséria que existe no mundo hoje; a degradação ambiental; a destruição do ser humano; 60 milhões de refugiados. Isso daí mostra o que? O capitalismo não deu certo. O capitalismo está destruindo a humanidade.” Na análise do professor de história Gianpaolo Dorigo, os movimentos sociais dos dias de hoje nos levam à reflexão de que, “talvez seja até interessante a gente fazer uma transposição imediata. Vamos pensar no aqui e agora do Brasil. Estamos num momento muito delicado de redefinição e de rela-

ções de trabalhistas no Brasil, de mudança de legislação trabalhista e o governo Temer se coloca na vanguarda do atraso, nesse sentido. Ele faz com que aquela mobilização pela justiça social que estava na base da Revolução Russa de 1917 ela seja evidente e atualizada na situação política em que a gente vive aqui e agora.” No Brasil, as comemorações do centenário da Revolução Russa estão presentes em inúmeros campus universitários. Ciclos de debates, palestras, seminários, conferências nacionais e estrangeiras, lançamentos de livros, mostras de cinema compõem uma diversificada agenda deste

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do de 1945 a 1989, quando os EUA e a URSS polarizaram relações internacionais. Depois da Revolução Russa, após a III Internacional, explica Dorigo, quando Lenin afirma “o triunfo do marxismo, marxismo-leninismo como uma teoria revolucionária, seria a referência dos movimentos revolucionários do mundo inteiro, essa afirmação do Lenin vai ajudar a fazer desabrochar partidos comunistas no mundo inteiro como, por exemplo, o Partido Comunista no Brasil que se filia à III Internacional e que durante muito tempo na história do Brasil seguiu essa orientação que vinha de Moscou”. Seu propósito consistiu em promover uma revolução do proletariado que conduzisse à substituição da sociedade capitalista pela sociedade socialista. Em 2017, no ano de aniversário da Revolução Russa, é preciso repensar nossos dias. Qual a relevância dessa efeméride para o Brasil? Como diz a música “Tempo rei”, do álbum “Raça Humana”, de Gilberto Gil, precisamos transformar “as velhas formas do viver” para buscar dias melhores e mais justos para todos, onde todos tenham disposição de reconhecer igualmente o direito de cada um. E aí? “A Revolução Russa foi pro brejo!”, afirmou José Arbex Júnior na programação da TV-PUC. Para o jornalista e professor da PUC-SP, “nós estamos pagando um

JOSEPH STÁLIN

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lumeMatoGrosso ano. Mas, o que comemorar? O centenário da Revolução Russa deve levar à reflexões que propiciem discussões de temas como a necessidade de projetos coletivos de transformação social. Ainda que na Rússia de Lenin e Stalin, de acordo com dados oficiais do Partido Comunista Russo, 13 milhões de pessoas foram mortas entre 1917 e 1939, sem dúvida, o ideário revolucionário de 1917, “ano que abalou o mundo”, deve nos instigar a abrir novos caminhos para a contemporaneidade. Capitalismo? Socialismo? Comunismo? Ou os “ismos” das Ciências Sociais precisam ser revistos, reinventados? O que se pode afirmar é que em muitos países, a experiência soviética influenciou fortemente a formação dos Partidos Comunistas, as lutas reivindicatórias e revolucionárias, a formação da noção da cidadania veiculada aos direitos como educação, saúde, moradia, trabalho como responsabilidade do Estado. No Brasil, não de forma diferente, a

formação do Partido Comunista, as greves, a luta por direitos foram influenciadas pelas conquistas alcançadas na URSS. Em suma, o movimento comunista, referenciado na experiência soviética, teve papel central na luta contra as três grandes discriminações do século XX: a racial, a de gênero e a de classe, bem como na construção dos Estados de bem-estar social.” Um bom início de conversa para responder a questão que se mostra no título deste texto pode estar na afirmativa de Esteban Volkov Bronstein, neto de Leon Troksky, revolucionário que exerceu papel primordial na implantação do socialismo e regime Bolchevique na Revolução Russa de 1917, atualmente com 91 anos: “Para o autêntico socialismo, a democracia é como oxigênio”. Por outro lado, não estará a resposta à pergunta na forma e na razão da troca nas sociedades ditas arcaicas? O antropólogo francês Marcel Mauss (1872-1950), em seu livro “Ensaio sobre a dádiva”, lançado em 1925, dis-

corre sobre os métodos de troca existentes nas sociedades arcaicas, onde são identificados a reciprocidade, o intercâmbio e a origem antropológica do contrato entre as pessoas. Ou seja, nas palavras de Marcos Lanna, professor de Antropologia da Universidade do Paraná, “a dádiva é alicerce de toda sociabilidade e comunicação humanas, assim como sua presença e sua diferente institucionalização em várias sociedades analisadas por Mauss, capitalistas e nãocapitalistas”. Nos dias de hoje, “Paz, pão e terra!” – paz, saída da Rússia da Guerra; terra, reforma agrária; pão, comida para todos, lema da revolução Bolchevique de autoria atribuída a Lenin, cai como uma luva diante aos acontecimentos nacionais e internacionais. A fome ainda é uma triste realidade em muitos países. De acordo com o relatório “Estado da Insegurança Alimentar no Mundo” (2015), é assustador o número de pessoas que passam fome no mundo.

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SETEMBROS DE NOSSA HISTÓRIA DIA 01 »»1945. O Japão rende-se aos aliados, após o lançamento de duas bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki.

DIA 03 »»590. Gregório I é consagrado Papa. Reformador da Igreja e da moral eclesiástica, é um dos dois únicos Papas a ter o título de Grande.

DIA 07 »»1822. O infante D. Pedro, filho do rei D. João VI, proclama a independência do Brasil, dando o “Grito do Ipiranga”, junto ao rio do mesmo nome, nos arredores de São Paulo.

DIA 14 »»1321. No exílio em Ravena, morre Dante Aligheri, fundador da literatura italiana. DIA 15

»»1765. Nascimento do poe-

ta Manuel Maria B. du Bocage (1765-1805), em Setúbal.

DIA 16 »»1908. A General Motors é fundada por William Durant, em Flint, Michigan, nos US.

»»1921. É criado o Centro Mato-Grossense de Letras, em Cuiabá, embrião da Academia de Letras. DIA 08

DIA 17 »»1480. Estabelecimento do Tribunal da Inquisição em Espanha, a pedido dos Reis Católicos.

»»1944. A primeira bomba fo-

guete alemã - uma V-2 - cai em Londres.

DIA 04 »»1781. Fundação da cidade americana de Los Angeles, pelo governador espanhol da California, Felipe de Neve. O nome completo da povoação era El Pueblo de la Reina de Los Angeles. DIA 05 »»1972. Onze membros da delegação israelita aos Jogos Olímpicos de Munique são mortos, durante um ataque à aldeia olímpica, por membros do grupo terrorista palestino Setembro Negro. DIA 06 »»1991. A cidade de Leningrado, na Rússia, voltou à sua antiga designação de São Petersburgo.

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DIA 09 »»1976. Mao Tsé-Tung (18931976), presidente do partido Comunista da China, morre em Pequim, com 81 anos.

DIA 10 »»1943. As tropas aliadas libertam Roma da ocupação alemã, no decurso da campanha de Itália, durante a Segunda Guerra Mundial. DIA 12

»»1974. Hailé Selassie, Impe-

rador da Etiópia, foi deposto por um golpe militar.

DIA 18 »»1851. Primeiro número do New York Times. DIA 20 »»1973. Realiza-se em Houston, no Texas (US), o jogo de tênis entre Billie Jean King e Bobby Riggs, que ficará conhecido como a “Batalha dos Sexos”. A tenista, defensora dos direitos das mulheres, derrota facilmente o auto-proclamado chauvinista em três jogos. DIA 22

»»1862.

Otto von Bismarck é nomeado 1º ministro da Prússia. Será o principal responsável pela criação do Império Alemão, proclamado em Versalhes, em 1871


DIA 24

»»1896.

Nascimento do escritor americano F. Scott Fitzgerald, em Saint Paul, Minnesota. DIA 26 »»1984. O governo britânico aceitou o regresso de Hong-Kong à soberania Chinesa em 1997. DIA 27 »»1825. Apresentação da primeira locomotiva para um comboio de passageiros, por George Stephenson. DIA 28 »»1978. O papa João Paulo I morre em Roma. Foi papa por 33 dias. Sucedeu-lhe João Paulo II. DIA 29

»»1941. 33.771 Judeus são

mortos durante o massacre de Babi Yar, perto de Kiev, na Ucrânia, no começo da invasão alemã da União Soviética. DIA 30

»»1955. O ator norte-ame-

ricano James Dean, morre num acidente de automóvel, na Califórnia.

O PERSONAGEM QUARENTA E QUATRO ANOS DO ASSASSINATO DE SALVADOR GUILERMO ALLENDE GOSSENS »»11-09-1973. Médico e político chileno nascido em Valparaíso, em 1908, no Chile. De família abastada e com ideias progressistas, foi eleito presidente da nação chilena. Empreendeu experiência socialista, o que provocou uma reação violenta das forças conservadores do país, apoiadas pelo USA. Essas medidas, aliadas à deterioração da economia, contribuíram para fomentar o descontentamento entre as classes média e alta e a desconfiança dos países vizinhos, que viviam uma época de ditaduras militares de direita. Liderado pelo general Augusto Pinochet, um movimento golpista desfechou um ataque ao palácio presidencial de la Moneda durante o qual o presidente morreu, aparentemente por suicídio.

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DIA 23 »»1991. A Armênia declara a independência da União Soviética.

O ACONTECIMENTO DEZESSEIS ANOS DO ATENTADO DE 11 DE SETEMBRO NOS EUA ÀS TORRES GÊMEAS »»11-09-2001. O mundo relembrou o 16º aniversário dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, que mataram quase três mil pessoas e foram cometidos pela rede Al-Qaeda, de Osama bin Laden. Naquele dia, dois aviões foram jogados contra cada uma das torres do World Trade Center, em Nova York, fazendo os prédios desabarem. O episódio é um dos mais sangrentos da história dos Estados Unidos e o maior atentado terrorista já registrado em solo americano. Esse atentado fez os EUA invadirem o Afeganistão, lançando uma guerra contra os grupos terroristas que até hoje perdura no Ocidente e na Europa.

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MEMÓRIA HISTÓRICA

PRAIA DE CABADEE

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RAFAEL LIRA É professor, tradutor de crioulo, ex-missionário religioso e viveu, por quase um ano, no Haiti

A História Não Contada De Hispaniola

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POR RAFAEL ALEXANDRE LIRA FOTOS DIVULGAÇÃO

om a vinda de europeus para as Américas, a partir do século XV, a Ilha de Hispaniola banhada pelo mar azul vivo do Caribe não passou despercebida aos olhos daqueles ambiciosos desbravadores. Franceses e espanhóis foram se infiltrando naquelas terras virgens,

porém não inóspitas como alguns livros ainda insistem em dizer. Ao contrário, essas terras eram habitadas por seus nativos julgados, pelos invasores, como “não civilizados” ou “selvagens”. A parte oeste da ilha ficou sob domínio e exploração da coroa espanhola, a leste sob posse da francesa.

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MEMÓRIA HISTÓRICA

REVOLUÇÃO HAITINA

Os taínos, indígenas habitantes da ilha, tiveram um contato traumático com os invasores, que chegaram ali não com o intuito de estabelecer relações amigáveis e troca solidária, mas com uma intenção real de exploração das riquezas da terra para enriquecimento do império europeu. As atrocidades cometidas naquela época e a mortandade que exterminou praticamente toda a população indígena da ilha assombra qualquer historiador que ouse estudar a verdadeira história dessa cruel colonização. O fato é que devido ao excesso de trabalho a que os taínos eram submetidos e, também, o contato com o branco que trouxe suas doenças, ocasionou a morte de milhares deles. Com isso, a mão de obra escas-

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seou e os franceses entenderam que o caminho mais fácil e lucrativo seria a importação da mão de obra africana. Essa história se parece bastante com a história da colonização do Brasil, porém o desfecho dela é bem diferente. Negros trazidos pelos colonizadores para serem escravizados na ilha de Hispaniola, juntamente com os poucos taínos sobreviventes, conseguiram se unir e se organizaram estrategicamente para expulsarem os colonizadores e, assumiram, assim, o domínio da ilha. O movimento de tomada do poder das mãos dos europeus e de extermínio dos brancos invasores foi banhado de sangue e de muita resistência. As mulheres tiveram participação ativa nesse processo. Ilustro

com uma narrativa singular: mulheres submetidas à escravização sexual pelos homens brancos, quando eles caíam no sono, elas se apossavam de suas armas e as levavam para que fossem utilizadas nos confrontos, fortalecendo, dessa maneira, o combate entre os escravizados e os homens brancos. A libertação do povo haitiano veio pelas mãos negras, pela força do próprio povo escravizado! Aqueles que até então eram usados como servos, expulsariam da sua terra o que se portavam como seus senhores. Foi uma revolução que influenciou outras colônias em toda América. Os rumores de que havia escravos se rebelando e tomando a terra dos brancos se espalhou por todo o terri-


América. Porém, essa pobreza econômica não condiz com a riqueza cultural e natural que se vê na ilha. Banhada por um mar azul celestial, habitada por um povo hospitaleiro e amável, a antiga Hispaniola está recheada de belezas humanas e ambientais. Com pontos turísticos que raramente são noticiados nas mídias globais, o Haiti possui um patrimônio mundial declarado pela Unesco em 1982, a Citadelle Laferrière, um gigantesco forte, construído no norte do Haiti entre 1805 e 1820 por cerca de 20 000 homens, à ordem de Henri Cristophe. O objetivo da construção da cidadela era a proteção do recém-independente Haiti das invasões francesas. As praias haitianas são as das mais belas do Caribe. Labadee, porto localizado na costa norte do Haiti, é um resort privado administrado por uma empresa internacional que realiza inúmeros cruzeiros para a região, turistas do mundo todo atracam nos

SÍTIO ARQUEOLÓGICO DO POVO TAÍNO

navios enormes que chegam frequentemente na ilha. Cabo Haitiano e Jacmel também são cidades abençoadas com lindas praias. Não tão distante da capital Porto Príncipe, vê-se algumas praias privadas que também atraem haitianos e estrangeiros que por ali passam. O Royal Decameron Indigo Resort, juntamente com o Moulin Sur Mer Beach Resort, estão entre os mais belos e bem estruturados resorts do país. Os noticiários e a comunidade internacional precisam começar a apresentar o lado oculto da história do povo haitiano. A resistência, a união que fez a força (frase destacada na bandeira nacional do Haiti), a fé e a resiliência dessa brava gente os torna um povo símbolo da libertação das garras da escravização. Estes homens e mulheres levam o legado de terem nascido na Primeira e única República Negra do mundo. Essa história é orgulhosamente narrada por todos os haitianos e em todos os lugares por onde passam. São eles os responsáveis por contar a história que os livros oficiais escondem. Relembra, com orgulho, a história de seus antepassados que pagaram com o sangue pela liberdade e igualdade que tanto almejavam, apesar de não as terem de fato alcançado, porque continuam espoliados pelos Estados Unidos e pela Europa Ocidental.

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tório americano e europeu, para espanto dos colonizadores e dos reinos da época. Houve alguns pequenos movimentos de africanos escravizados que, infelizmente, não ganharam força em outras colônias, inclusive no Brasil. O HAITIANISMO, como ficou conhecido esse fenômeno narrado acima, resultou na demonização da Revolução Haitiana, “O Haiti foi estigmatizado como inimigo de todos os regimes coloniais e escravistas das Américas”, diz o historiador John Lynch, da Universidade de Londres (SOUZA, 2017, p.3) . A comunidade internacional vira as costas para Hispaniola, que permanece isolada por inúmeros anos, até a ocupação americana dos Estados Unidos, em 1915. O Haiti carrega ainda hoje as marcas profundas desse sanguinário processo histórico que tornou aquela que fora a colônia francesa mais rica das Antilhas o país mais pobre da

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R E T R ATO E M PRETO E BRANCO

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Pablo Neruda

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Um homem de grandes paixões

eftali Reyes Basualto nasceu em 12 de julho de 1904, na cidade de Parral, no sul do Chile, mas aos 17 anos adotou o nome de Pablo Neruda em uma tentativa de esconder de seu pai o ofício que o apaixonava, sem que até hoje exista certeza sobre o que inspirou o pseudônimo. Desde jovem seu grande talento ganhou reconhecimento internacional e, em outubro de 1971, recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Poeta apaixonado, Pablo Neruda provou os prazeres da vida, amou as mulheres e se comprometeu com o socialismo no Chile. O escritor morreu 12 dias após o golpe militar de Augusto Pinochet, há mais de 40 anos, e até hoje a justiça investiga se ele teria sido assassinado por conta de sua amizade com Salvador Allende. A obra de Neruda se caracteriza por sua universalidade, incorporada em obras como “Residência na terra”, “Canto Geral”, “Odes Elementares” e “Confesso que vivi” , ou ainda nos versos dedicados à dança, alegria, ao livro, ao mar, ao tempo, à tristeza ou ao vinho, ou com poemas como “As alturas de Machu Picchu”, com o qual introduziu a história sul-americana. A literatura de Neruda transcendeu as fronteiras graças a suas obras mais românticas: “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” e “Versos do Capitão”. Apesar de ter sido considerado um homem fisicamente pouco atraente, tímido e inseguro, Neruda se casou três vezes e teve pelo menos seis amantes furtivas, que o inspiraram a criar os famosos poemas de amor. “Um poeta deve estar sempre apaixonado, até o último minuto de sua vida”, confessou à jornalista Maria Esther Gillio, em uma entrevista em 1970. Em 1930, ele se casou em Batavia (atual Jacarta) com a holandesa Maria Antonieta

Hagenaar, sua primeira esposa, com quem teve uma filha, Malva Marina, que morreu aos oito anos de idade vítima da hidrocefalia. Mesmo casado, apaixonou-se pela artista plástica argentina Delia del Carril, 20 anos mais velha, que teve forte influência sobre o poeta, tornando-se uma espécie de “mãe intelectual” durante os 20 anos de convivência. Casado com Delia, viveu no México, onde começou um caso secreto com a soprano chilena Matilde Urrutia, que veio a ser sua terceira esposa, com quem passou seus últimos dias na casa de Isla Negra, onde estão os túmulos de ambos. No final, sua vida foi atormentada por um relacionamento que manteve com a sobrinha de Matilde, Alicia Urrutia. Pablo Neruda teve uma participação ativa no Partido Comunista e em 1945 tornou-se senador pelas províncias do norte de Tarapacá e Antofagasta, quando conheceu o socialista Salvador Allende. Em 1948, Neruda foi exilado pelo presidente Gabriel González Videla, que o acusou de injúria e também tornou ilegal o Partido Comunista. O poeta teve que fugir secretamente para a Argentina em um cavalo, e depois para a Europa. Em 1970, de volta ao Chile, Neruda foi apresentado como pré-candidato à presidência pelos comunistas, mas decidiu recusar a indicação para apoiar Allende, que se tornou presidente em 1971 e o nomeou embaixador na França. Neruda, que retornou ao Chile em 1972, foi um firme defensor do governo socialista e um forte opositor do golpe de Estado de Augusto Pinochet. O poeta também teve uma extensa carreira diplomática e foi cônsul em Yangum (Birmânia, atual Mianmar), Cingapura, México e Espanha.

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FOTOGRAFIA

A Fé de Francisca

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fotógrafo chapadense Henrique Santian expõe rico material cultural sob o título de A FÉ DE FRANCISCA, em homenagem à parteira e benzedeira, Francisca Corrêa da Costa, que completa 104 anos de idade, no dia 8 de outubro de 2017. Carinhosamente chamada de Vó Francisca, essa mulher negra, que descende de escravos, dedica a sua vida à pluralidade da religião, promovendo a cura pela fé e pelas raízes do Cerrado. A exposição A FÉ DE FRANCISCA revela a origem de vida altruísta advinda

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FOTOS HENRIQUE SANTIAN

dessa respeitada benzedeira nascida na Mata Grande, comunidade Quilombola, na Lagoinha de Baixo, no município mato-grossense de Chapada dos Guimarães. Dona Francisca conta que, desde criança trabalhou na roça, nos canaviais, fazendo comida para os peões, estacando cerca, viveu a vida no campo e a sua relação com a terra e, com as plantas, lhe confirmaram seus dons místicos com a natureza. Em depoimento espontâneo ao fotógrafo Henrique Santian, sobre breve trajetória de sua vida, vejam só as pérolas que Dona Francisca deixou registrado:

“Eu era menina de família religiosa, eu já percebia a minha mediunidade. Quando aos 10 anos eu já escutava muita coisa, eu não sentia medo disso e pensava será o que é isso. Sempre na casa de mãe “Constantina”, iam gente levar criança doente. Eu olhava, e já sabia que precisavam de se benzer, mas eu não pedia, eu dava um jeito... ia lá, pegava a criança e levava pro quarto de mamãe. Sentava e benzia. Eu espiava que mamãe passava xarope, banho de remédio e capim gordura Negra Mina. Eu sabia, escutava e benzia as crianças e, outro dia, voltava lá a criança


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HENRIQUE SANTIAN O fotógrafo documentarista traz em suas obras um pouco daquilo por onde passa, histórias contadas em imagens, e sentimentos que nos fazem enxergar o mundo a nossa volta e ver que nosso espaço se resume na amplidão

pra mamãe ver, se já estava melhor, o que ela fez o banho e eu pensava eu já sabia e acreditava e tudo que eu escutava ficava escrito na minha cabeça, mas eu não falava que fazia isso. Tinha um Centro Espírita. Todo mundo ia lá. Mas eu pensava assim, eu não vou lá não. Chegar lá eles vão me pegar. Quando foi um belo dia, uma comadre de mamãe foi e disse: “Hoje é dia de ir lá no Centro, e eu não tenho com quem ir até meu marido chegar, ai já vai ser muito tarde, a Senhora dá a Francisca pra eu levar comigo”? E mamãe deixou. Assim que a comadre foi embora, eu pedi pra mamãe, por que a Senhora deu eu pra ir com a mulher a mãe? Ela disse: “Não é nada minha filha, lá não tem nada, porque você não quer ir lá”? Eu disse não é que eu quero, é que não gosto de ir onde tem muito gente assim. Quando foi à tarde, ela chegou e, eu, já estava pronta. Era meia légua de lá de casa. Chegando lá, só vi chegando gente e mais gente, e eu estava ali, só assuntando. Aí começou o trabalho. Compadre arrumou as pessoas. E eu pensando, pensando. Comadre de mamãe me levou pra uma sala de espera e, na metade do

trabalho, baixou um caboclo no Centro Espírita e tava procurando uma bacura, e eu disse: será que sou eu? Não, eu não, tanta gente que esta lá. Daí ela saiu, e depois ela voltou me avisando, passou um pouco, voltou de novo, e ela disse: “É a senhora mesmo que ele quer”. Eu fui simples, tranquila, cheguei lá e falei: “Bença Pai”; ele disse; “Deus abençoe minha filha”. Ele me espiava, mas ria tão gostoso. Eu não tive cisma nada, nada. Aí ele passou a contar quantos que eu já tinha feito lá em casa: “Apanhava no colo São Cosme e Damião, né bacura? aham, aham”. E, eu disse sim. “Vó Luzia né?” Sim, ele perguntava e eu ia contando. Aí, a turma de conhecidos que morava lá na mamãe falou: “Vamos por ela na gira”. Aí ele falou pro pessoal: “Essa aí não precisa de gira, nasceu com ela, veio do berço da mãe. A mãe não enten-

de nada, o pai não entende nada, do povo dela ninguém. Só essa aí que merece, mas eu vou deixar ela dar uma volta na gira, só pra ela ver o que ela tem de bom”. Eu entrei na roda, na primeira rodada que eu dei, já enxerguei o altar, mas como estava bonito, bem iluminado, bastante flor ali. Aí ele perguntou: “O que você viu bacura?”. E eu disse eu vi um altar muito bem iluminado. bem preparado, bastante imagens. “Ele disse é o seu esse aí, é o seu, você nasceu com ele”. Eu disse eu não sei, nasceu? “Você nasceu com ele e vai ser seu até o fim que você aguentar, vai trabalhar”. Aí eu fiquei pensativa daquilo, porque lá onde eu morava, pessoal é meio ignorante e, eu mesma falo a verdade, eu não sou de confusão, não sou de mentira, não sou de conversa fiada, tá? Ficou vai lá vem cá. Aí, sempre no dia de sexta feira,

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eu tinha que ir. Aí, quando foi um dia faltou o Cambolho de Risca Ponto, não foi. Aí, caça um, caça outro. Aí, o Caboclo Arco de Flecha falou assim: “Coloca essa bacura aí pra riscar ponto”. E eu disse: Meu Deus, eu não sei ler, não sei nada, não tenho estudo, como eu vou riscar esse ponto? Daí ele disse: “Tá na hora de trabalho”. Daí eu sai de onde estava, olhei na mesa e olhei lá onde era o lugar de riscar ponto, enxerguei direitinho. Ai, que benção, Meu Pai. Aí, eu peguei o giz, me acroquei, risquei o ponto; daí falei: Pai, o Senhor vem ver, vem ver se esta certo. Aí ele chegou ver, mas ria, ria, e sapatiava. Aí disse: “Agora o lá da porta”. Aí eu fui, e risquei. Aí, logo eu era a Firmadeira de Ponto, Riscadeira de Ponto. Aí, um dia eu falei lá pro caboclo; Pai, eu não vou trabalhar

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assim, não, porque lá onde minha mãe mora pessoal é ignorante, e bem que papai já percebeu quem que eu sou. Eu não sou de conversa fiada, eu não sou de tolerar as coisas assim não. Daí ele falou: “Não, pode deixar, você vai trabalhar desse tipo a hora que você precisar de fazer a suas oração, eu to junto, eu estou aí”. Hoje, eu tenho meus protetores de luz desde criança: Vó Luzia, Arco de Flechas. Preto Velho são vários. Sou devota de muitos santos: Nossa Senhora Aparecida, Santana, Santa Luzia, Domingos Sávio, São Miguel Arcanjo, Santo Antônio, São Benedito, São Francisco, São Miguel, São Sebastião, Anjo da Guarda. E, eu digo sempre, a todo esse povo, que agradeça a Deus, porque cada um faz por si, aqui nessa terra. A fé remove montanhas.

O que Francisca busca é muito maior do que imaginou, é seu destino. SERVIÇO: abertura da exposição A FÉ DE FRANCISCA, ocorre em 12 de outubro e vai até 20 de novembro deste ano, no Museu Casa de Guimarães, Sala de Memória, em Chapada dos Guimarães. A Instalação do projeto A FÉ DE FRANCISCA, ainda ocorre de 25/09/2017 a 07/10/2017, no Shopping Goiabeiras, em Cuiabá. Posteriormente, a partir de 08/10/2017, a Instalação acontece no evento VEM PRÁ ORLA, em Cuiabá. No dia 14/10/2017, a Instalação ocorre em Chapada dos Guimarães.

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MILTON PEREIRA DE PINHO - O GUAPO Músico e escritor

A Educação no Olho do Furacão Pós-Moderno

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POR GUAPO FOTOS DIVULGAÇÃO

esde quando as “latas de Sopa Campbell” do americano Andy Warhol no início dos anos 60 do século passado fez um sucesso imponderável, praticamente deu início da chamada Arte Pop e, de lá pra cá os referenciais simplório viraram palavras de ordem e hoje os “memes” estão aí proliferando (digo “viralizando”) e diluindo ainda mais os sagrados referenciais tradicionais tanto da cultura quanto da educação. Houve nos anos 60 grandes momentos revolucionários da poesia, das artes plástica, da música, da literatura etc. e, vimos ainda outros acontecimentos políticos/sociais/ culturais durante toda essa década, porem no começo dos anos 70 do século passado, quando o rock tornou-se mais apreciativo que dançante (rock progressivo), o tempo de fi-

car perplexo por alguma coisa qualquer deixou de ser obrigatório para se tornar optativo, a marca dessa curvatura é a ascensão do funk que deu origem na nova onda dançante batizada de Discotech quando a figura do DJ substitui uma banda toda e o “beat-tec” virou a nova novidade

e, que mais tarde num novo arranjo revolucionário/artístico/social/do funk, aparece o Hip Hop que começa com o poder célere da síntese num tempo que a informação das velhas rádiofotos jornalística era o máximo que a comunicação de longa distancia podia fazer, por que qualquer co-

municação ao vivo custava muito caro e tinha muita falha no momento da transmição. Esse querer mostrar algo transcendente e e onipresente era o sonho da comunicação a distancia e, então o movimento Hip Hop condensou a dança, a arte plástica, a poesia e a música acontecendo num só momento ao mesmo tempo começando a fazer a diferença nos espetáculos daqueles idos anos. A educação tradicional linear que já havia sofrido os primeiros “arranhões” com o movimento Hippie da década passada começa a sangrar muito mais nas próximas décadas o aumento da evasão escolar tornou-se praticamente uma espécie de “oneway” no meio estudantil, bem como o desinteresse pelo diploma em detrimento ao rendimento salarial do profissional prático que com o passar do tempo criou-se

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L I T E R AT U R A uma bolha decisiva de custo-benefício entre o tempo gasto pelo empreendimento da educação formal e a necessidade de uma fonte de renda prioritária cada dia mais precoce no meio familiar como está nos dias de hoje, sem contar a amplidão da demanda que se multiplicou-se na opção pela difícil vida fácil do aliciamento do narcotráfico e da prostituição. Desenvolveu-se também nesses últimos tempo no meio empresarial a chamada pirataria profissional no qual os donos de empresa coloca um profissional formado e conceituado para trabalhar ao lado de um prático no assunto e este por sua vez absorve os conhecimentos do profis-

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sional formado e logo está ocupando o lugar do mesmo (ganhando um pouco menos que o âncora) e que é visto pelo dono da empresa como “um meio econômico” para conter gastos em detrimento a esse profissional que investiu e levou anos num banco de escola e universidade. A Finlândia no ano passado foi considerada o primeiro país do planeta a acabar com as matérias escolar revolucionando e se adequando a nova realidade presente sem contar a odisseia notável da saga do empreendedor e badalado Steve Job, gênio consagrado da comunicação, o qual o mundo da informática o elegeu. Ele morreu a pouco tempo, mas foi o maior

exemplo de como um autodidata sem diploma universitário chegou no extremo do sucesso dando exemplo de abandono da escola tradicional e se tornado o que foi fazendo o que ele fez. Por outro lado o acesso a Internet possibilitou muito mais o conhecimento precoce dos adolescentes os quais não veem mais as coisas acontecerem no modo linear baseado no “conta-gotas” das diretrizes escolares. Então eles ignoram “as vias tradicionais”, fazendo o mesmo que os DJs, quando usaram pela primeira vez o SAMPLE para assentar seus propósitos de metalinguagem. É como se eles estivessem desviados de tudo que é oficial e ouvindo so-


sacrossanta educação formal é o mesmo problema que está acontecendo com tradição da escola literária. Em outras palavras tanto os provedores da história quanto da cultura bem como os outros setores do conhecimento estão fugindo ou tentando acabar com o exército dos “walking dead” que se formou ao longo do milênio devido a ideia errônea de querer que o ser humano viva sobre uma “régua civilizatória social” construída com bases falsas recheado de políticas e religiões mentirosas, ciências comprometidas com o poder capitalista para manter a exclusão discriminatória social/ racial, projetando acima de tudo um jeito de viver de

desperdício e proliferando resíduos letais ignorando o principal: O meio ambiente. Como poderemos coibir um jovem a não buscar o meio Deep Web da internet? E como fazer convence-lo para acreditar que o caminho certo não é por ali? Não temos mais 24 horas (como diz o efeito Schumann) para pensar e fazer acontecer às coisas como queríamos na educação. Portanto temos somente a “lâmina de gelo sobre nossos pés como terreno seguro e, que se pararmos de correr afundaremos no lago gelado” conforme observou o grande filósofo morto recentemente, Zigmout Boaman para resolver tal situação que se agrava dia a dia.

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mente as recomendações do grande filósofo Tony Judt que afirmava que o historiador de hoje não vê nem árvores nem bosques na floresta do conhecimento, só se interessa pelas trilhas das epígrafes acadêmicas e, então, parte para desvendar trilhas previsíveis quando nada sabe do bosque que o ladeiam, adentrando num bosque plenamente invisível, mas bem conhecido para ele que ajudou a construir e, que somente está em busca de trilhas que outros construíram tal como ele mesmo, os advento paralelos (os bosques) que ficaram de lado e, que hoje é o lado “dark” e, que ameaça a tradição educacional/cultural pondo em risco toda

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Puta (E.M)

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POR EDUARDO MAHON FOTOS DIVULGAÇÃO

ão sou de reclamar, mas tem dias que fico de saco cheio, sabe? Uma noite dessas, eu estava na Farme de Amoedo, tentando um programa e passou um cara numa Mercedes novinha, abaixou o vidro com insulfilme e gritou – puta! Chato isso. Deve ser veado. Só pode! O que fiz pra provocar o sujeito? Nem me ofendeu, claro. Eu já estou acostumada: puta velha, putaça, putérrima, tanto faz. O que me incomodou foi o tom. O tom é que faz toda a diferença. Dizer “puta” assim, de qualquer jeito, é o que a gente mais diz, né? Puta merda, puta que pariu, puta crise, puta calor, puta jogo, enfim, no geral “puta” é positivo hoje em dia. Puta ressalta, sublinha, engrandece. Puta dramatiza, em resumo. Daí que tenho orgulho de fazer a vida há cinquen-

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ta anos. É isso mesmo, cinquenta anos de putaria. Qual o problema? Puta até recolhe imposto, se aposenta, tudo o que uma dona de casa, por exemplo, não faz. Tem sindicato, tem associação, tem até grife exclusiva. A profissão evoluiu muito. Aqui na bolsa, eu carrego um spray de pimenta, um consolo, documentos pessoais e uma máquina de cartão de crédito. Quando comecei, nunca imaginava que chegaria nesse ponto. Agora tudo é no cartão. Mais fácil, muito mais. Boquete? 50,00 no cartão. Passo tão rápido que o cliente nem vê. Papai e mamãe? 150,00. Com beijo, são 200,00. Digita a senha, autoriza e pronto: pimba! Antes que você me pergunte, não faço anal. Não faço, nem com black, nem com ouro, nem mesmo com cartão platinum! Fico puta quando insis-


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EDUARDO MAHON é titular da Cadeira 11 da AML

tem. Mas homem sempre quer, né? Quase nada mudou. Antigamente, no entanto, o pessoal era mais elegante. Aqueles homens de terno branco de linho-120, sapato de cromo alemão, chapéu panamá na cabeça, me xingavam com classe: rameira!, meretriz!, rapariga!, era quase um elogio. A primeira vez que escutei “concubina” fui até procurar no dicionário. Na década de 80, o nível começou a cair. Os caras passaram a me chamar de piranha. Piranha, vejam só! Eu que nunca mordi ninguém. Tomo o maior cuidado. Até hoje não vejo razão pra me comparar com uma espécie de peixe lá da puta que pariu. Bem, deve ser isso. Em todo o caso, o que dizem agora é puta mesmo. Como se puta fosse menos importante. Não é! Temos a profissão mais antiga de todas. Mais antiga que muito advogado filho da puta por aí. Pudera. Desde que o mundo é mundo, o homem vive sozinho, né? Puta não serve só pra trepar, pode tirar o cavalo da chuva. Quem pensa assim, está redondamente enganado. A profissional, a verdadeira profissional, é um bote salva-vidas, uma válvula de escape, uma rota de fuga. Se eu tô falando sério? No duro! Sem querer me gabar, acho mesmo que a puta é a única poesia que ainda sobrevive nessa cidade vazia em que a gente vive. Puta é coisa que não sai de moda, somos extremamente modernas. Amor de consumo, amor instantâneo, amor como moeda, né não? Eu comecei a pensar nisso depois que fiz o curso de sociologia. Não acredita? Mas fiz. Na Uerj, por que o espan-

to? Fico emputecida com preconceito! Até passei num concurso para perita forense. Mas não deu pra assumir. Faça as contas: 2.800,00 para trabalhar de sol a sol, oito horas por dia, aguentando mau-humor e cantada de juiz babão. Eu aqui, na Farme de Amoedo, tiro uns 250,00 por noite, em média. Isso porque tô velha, meu bem. Se eu fosse novinha, ia pra 600,00 a 1.000,00. Numa noite, tá bem?! O meu lance agora é aposentadoria. Dou entrada no INSS e vou pro sindicato. Quero representar a classe. Cinquenta anos de praia não é mole. Quem sabe, depois, eu entre pra política?! Por que não? Eu daria uma puta vereadora. Quem sabe, até deputada. Deputadíssima! Tá olhando o que? Conheço o meio, já atendi muito! Lá, pelo menos, vão me pedir desculpas se me chamarem do que eu sempre fui: puta. Deve ser por causa do tal decoro que nunca soube direito o que é.

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Pela Periferia O Bom Ladrão

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POR LUCIENE CARVALHO FOTOS DIVULGAÇÃO

etembro esturricava no “ 7 de Setembro”, dia em que , vestidos de patriotismo, deveríamos comemorar a independência do Brasil. Cuiabá, como se numa síntese do inconsciente coletivo, colocou as manifestações cívicas em uma arena: pão e circo. Mas alegria se devia ao fato da data ter caído em uma quinta- feira, promessa de feriadão! Quem tinha dinheiro encontrou motivo e endereço para uma viagem em busca do mar, quem tinha “um qualquer” foi pras chácaras, Sítios, casas de parentes nas Águas varias que circundam a capital: os demais mortais se escondiam em ar-condicionado, chuveiros ou mesmo em banho de mangueira, tentando não ser dissolvidas pelo calor, pela sequidão desértica. Fomos acordados por um casal de amigos, que nos convidava para tomar um banho de rio, fazer um

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piquenique a beira de alguma água de Chapada. Aquilo me soou como um convite dos céus. Maiôs, toalhas, qualquer short, um hidratante e quase esqueço o creme pro black power. Estava tomada por alegria infantil. Que deu uma esmaecida na primeira parada no mercado: nenhum frango assado, nenhum refrigerante gelado, nenhum pão bonito... então, vamos de pão, presunto, queijo e umas coisinhas pra forrar o estômago. A gasolina nos permitia ir até o Rio Claro, o tempo consumindo na busca por comida nos aconselhava a ficar pelo Coxipó do ouro mesmo. Na chegada, a escassez de espaço para estacionar já chamou meu olhar e atenção, mas o calor era tanto, vamos à água. Quando nos aproximamos da beira d’água, um cidadão cordial nos disse: “desce ali, dá uma viradinha à esquerda, embaixo da árvore tem lugar”, Deus!

todos “periferias cuiabanas” tinham enviado representante, era uma cena Hindu! Mas o calor... fomos ao banho coletivo, fomos em busca do frescor, fomos ao lúdico infantil que só um banho de rio devolve. A fome veio,comemos nossos sanduíches com refrigerante quente, o chocolate meio derretido, quando estávamos na tangerina, um homem que estava sentado no barranquinho próximo,dessa proximidade de ônibus lotados, começou a nos contar um ocorrido: “o cara ali na saída tava desesperado porque tinha trancado o carro com a chave dentro. Eu fiquei com dó do cara e ‘falei vamos lá, eu vou te ajudar” e nós dois fomos até o carro do cara e eu falei põem a mão no vidro, você de um lado, e eu do outro; ai a gente pula empurrando o vidro para baixo, hora que vidro descer um pouco, agente põem uma cha-


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LUCIENE JOSEFA DE CARVALHO Escritora, poetisa e membro da Academia Mato-Grossense de Letras

ve no meio do vidro e empurra mais um pouco e pronto! Agora pega a chave. Ai o cara pegou a chave; falou que ia pegar uma caixa de cerveja pra mim, eu falei que não queria que ele me pagasse nada, que eu só queria ajudar. O cara perguntou pra mim como que eu tinha certeza que aquela manobra ia dar

certo? Onde que eu tinha apreendido aquilo? Eu respondi que ‘eu tinha achado a certeza nos 10 carros que eu já roubei este ano”. Não consegui entender direito, nem queria ouvir, fui pra água em despedida do frescor. O sol havia baixado, recolhemos as coisas, o lixo. Cuiabá, janta no quin-

tal, não assisti nenhuma série na, as séries mais surreais, tenho visto nos telejornais dos canais abertos: tem terror, policial, conspiração, sequestro de bens e sonhos. Dia 7 de setembro, lembro do ladrão da beira do rio, penso no meu País... talvez, quando morrer, aquele ladrão gentil vá sentar à direita do pai.

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Americanidade

A Busca Pelo Intercâmbio Cultural Entre Os Povos Da América Do Sul:

Meira Delmar Voz feminina na poesia da América do Sul FOTO DIVULGAÇÃO

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entre os valores mais substanciosos da lírica feminina da América do Sul, encontramos os versos de Meira Delmar, poeta do

amor e da morte, sempre orientada por um ponto de vista feminino sobre estes temas, imprimindo em seus versos certo aspecto nostálgico, algo que não pode ser. Colombiana, grande amiga de Garcia Marquez, confessa que desde muito jovem foi leitora de outras autoras Sulamericanas como Mistral, Storni e Augustini, e que, de alguma forma elas podem ter lhe influenciado. Entretanto, sua lírica possui um acento reconhecidamente próprio, alcançado no próprio fazer poético, que tonifica e modula a sua voz, sem que esta seja devedora a nenhuma outra. No Brasil, ao que nos parece, apenas o livro “Mundo Mágico: Colômbia” Edições Bagaço, Pernambuco, 2007, uma antologia da lírica daquele país, organizado e prefaciado por Lucila Nogueira e Floriano Martins, possui poemas de Meira Delmar, o que é extremamente lamentável e prova a quase completa ignorância brasileira sobre a obra de poetas não apenas da Colômbia, mas de toda América do Sul.


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