O melhor das horas e da vida - Cartas e poemas do escritor Marcos Rey

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Linda Palma

O melhor das horas e da vida

Cartas e poemas do escritor Marcos Rey



Marcos Rey

São Paulo, véspera do Dia dos Namorados, de 1965 A última carta que escrevi para v. foi em 1959 em tão diferentes circunstâncias! De madrugada, no quarto de solteiro, como quem joga mensagens no mar, dentro de garrafas, quase com a certeza de que não chegam ao destino. Essas mensagens, em invólucro tão de meu agrado, somente nos livros e filmes alcançam o endereço. O curioso é que no meu caso, para surpresa do próprio destino, elas não se perderam no oceano. Você leu uma a uma e acreditou na solidão do náufrago. Veio ao meu encontro, seguindo os traços que a minha máquina de escrever deixava. Esta mesma velha máquina, que volta hoje do conserto, maquiada e com roupa nova. O resto você sabe. Está registrado no livro maçudo de um Juiz de Paz, que por acaso foi meu companheiro de infância. Ainda me lembro da assinatura das testemunhas. Você, é claro, recorda. Ninguém acreditava que eu fizesse a experiência burguesa de casamento. Eu já me solidificava como o protótipo do solteirão, e confesso que me orgulhava disso. Era uma forma literária de ser alguma coisa. Eu era um Robinson Crusoé, isolado na ilha, que fotografava a mim mesmo diante de um espelho. 3


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Por isso e por tantas outras razões que ninguém acreditou quando vesti a roupa preta da solenidade. Era como se o Miguel, do meu “Um gato no triângulo”, se casasse, numa segunda edição do livro para atender a fins comerciais do autor. Eu era mais personagem do que gente, mais capítulo do que vida. Parecia estar no mundo numa atitude de estátua, já definida pelo escultor, sempre o mesmo e repetido, fixado numa posição física e mental. Até que lancei as mensagens dentro de garrafas. Veja você a utilidade desses vasilhames... Hoje o cenário é bem outro. Você está no living vendo TV, em nossa casa, integrada nas mobílias que vimos na vitrina, e eu aqui, na máquina, escrevendo para você, mas já não o náufrago aflito. Até que às vezes você me culpa de frieza. De não lhe escrever cartas como aquelas. O cenário realmente é outro, e esta carta é escrita em horário sadio da faixa nobre da TV. Por outro lado, estou gordo demais para um náufrago. Nada tenho do Robinson antigo. Hoje, porém, recordei como nunca aquelas noites no mar. A culpa foi da data promocional. Amanhã é Dia dos Namorados, e hoje como um burguês realizado e regenerado, passei na banca de flores e comprei, a preço de ocasião, um úmido ramo de palmas, como quem compra e traz nos braços um pedaço do passado. Veja como é efetiva a atuação desses publicitários que inventam dias para vender mais. O principal é que você foi contagiada do mesmo lirismo pequeno-burguês. Quase que a chamei de “minha patroa”, mas resisti em tempo para não legalizar demais o caso estritamente 4


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particular do nosso amor. Prefiro assinar livros do que documentos. E por falar nisso, você não tem obturado demais a minha inspiração. Afinal, depois do nosso casamento, escrevi dois livros que publiquei, um ensaio, dois livros para a juventude, e outro que está a caminho. Mas tudo isso é material demais, e eu e você só podemos acontecer no mundo das imaterialidades. Notou? Ah.... Só não estou contente comigo mesmo com o que eu quero e não posso lhe dar em espaço, ar puro, suavidade, lareiras, roda-livre, perfumes franceses, manchetes, tombadilhos, torres inclinadas, haute-couture, Portinaris, Burle-Marx, solitários (brilhantes), mink-coat, lontras, duplex, triplex, piscinas de água quente e nobres de Czar na criadagem. Enquanto tudo isso for palavras e não fatos velhos, eu, marxista com pretensões aristocráticas, serei o mais infeliz dos maridos plebeus. É esta mania que me mata e que nos mata. Plebeus palacianos, comunistas burocratas, com carro oficial, chapa branca e ministros da Agricultura guiando nossos carros. Por favor, guarde essa carta-confissão para que, daqui a mil anos, os homens de quatro dedos saibam como amavam e sofriam os intelectuais do despertar da era atômica. Aceite a apocalíptica mensagem de minhas flores. É capaz que, ainda este ano, nossos corpos sejam cinzas. Nossos aliados estão se armando para nos destruírem. Across the sea. E, (pela primeira vez em minha vida: oxalá) seja esta carta e as outras, o que possa restar deste mundo pútrido. Já começo a entender a diferença que existe entre esta carta 5


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e aquelas. Elas eram apenas as cartas de um apaixonado cheio de imaginação. Eram garrafas verdes no mar azul, romance tecnicolor de quem queria e arriscava. Esta, meu deus ou meu diabo, é coisa tão séria enquanto você vê a televisão. É a carta de quem está diante do very end, particular ou geral; alguém que conquistou o amor, mas que pode, com suas flores úmidas, ser a qualquer momento transformado em número para o conhecimento dos homens de quatro dedos. Chega aqui, chega. Puxa, como me complico. Antes eu era mais claro e objetivo. Agora, você deixou de ser a mulher para ser tudo, eu mesmo, permanentemente interrogando e caminhando, entre as palmas que comprei e o futuro decepado. Quero dizer nesta carta que eu amo você, só isso..

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Quando de meu doutorado em Letras na USP, por força da pesquisa sobre escritores particularmente prolíficos, fui parar nos arquivos do IEB (Instituto de Estudos Brasileiros) em busca das cartas de Mário de Andrade, que me levaram às de Manuel Bandeira e Drummond entre outros. Delas, fui parar na correspondência entre escritores portugueses, particularmente da geração realista portuguesa de 1870, em particular nas cartas de Eça de Queiroz. Não se tratava de curiosidade por assuntos privados, nem de amor por segredos guardados a dois. Ocorre que os autores, até bem recentemente, empregavam e muito a correspondência por carta para tratar de assuntos que se ajustavam melhor no gênero epistolar do que em outros – particularmente aqueles escritores que não chegaram ou chegaram tardiamente ao teclado do computador. Este O melhor das horas e da vida – cartas e poemas de Marcos Rey oferece a leitores e pesquisadores uma nova frente de prospecção do universo do escritor paulistano que, tendo iniciado sua carreira no teclado de uma maquina de escrever mecânica, produziu roteiros para televisão e cinema já de frente para um monitor de computador – essa máquina que apaga os vestígios, as dúvidas e o caminho percorrido do rascunho ao original preparado para a edição. Neste volume, Linda Palma oferece ao leitor o homem sensível que foi seu parceiro de todas as horas e da vida, mas também um veio riquíssimo – composto de cartas e insuspeitáveis poemas – que, somado ao dos roteiros para televisão e cinema, acrescenta ainda maior complexidade a um autor reconhecidamente polígrafo, ao qual o título “multimidiático”, no melhor sentido, se ajusta à perfeição. Jeosafá F. Gonçalves Doutor em Letras pela USP Autor do ciclo de romances sobre a cidade São Paulo Era uma vez no meu bairro

ISBN 978-85-7492-397-0


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