0605L21613 - A Revolução Dos Bichos

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GEORGE ORWELL

A REVOLUÇAO DOS BICHOS

tradução Otavio Albano ilustrações Germana Viana

GEORGE ORWELL

A REVOLUÇAO DOS BICHOS

Tradução Otavio Albano

Ilustrações Germana Viana

CNPJ

DECLARAÇÃO

Título original: Animal Farm: a Fairy Story copyright da tradução © Oceano Edições e impressão gráfica Ltda, 2021

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Sandro Aloisio Equipe M10

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Orwell, George, 1903 1950

O79r A revolução dos bichos / George Orwell; tradução Otavio Albano; ilustrações Germana Viana São Paulo, SP: Oceano Edições, 2021 152 p. : il. ; 13,5 x 20,5 cm

Título original: Animal Farm ISBN 978 65 994041 0 8 (Aluno) ISBN 978 65 994041 1 5 (Professor)

1. Ficção inglesa. 2. Literatura inglesa. I. Albano, Otavio. II.Viana, Germana. III. Título.

CDD 823

Elaborado por Maurício Amormino Júnior CRB6/2422

1a edição 2021

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19.893.722/0001 40

A REVOLUÇAO DOS BICHOS

Tradução Otavio Albano

Ilustrações Germana Viana

São Paulo, 2021

GEORGE
ORWELL
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CA P ÍTULOS

capÍtulo 1

OSr. Jones, dono da Fazenda do Solar, trancou o ga linheiro para a noite, mas estava bêbado demais para lembrar-se de fechar também as vigias. Com o facho de luz da lanterna balançando para todo lado, ele cambaleou pelo pátio, chutou as botas pela porta dos fundos, serviu-se de um último copo de cerveja no barril da área de serviço e foi para a cama, onde a Sra. Jones já roncava.

Assim que a luz do quarto se apagou, houve uma inquietação por toda a propriedade. Durante o dia, espalhara-se um boato de que o velho Major, o grande porco premiado, tivera um estranho sonho na noite anterior e gostaria de contá-lo para os outros animais. Ficou combinado que todos se encontrariam no estábulo principal logo que o Sr. Jones estivesse fora do caminho. O velho Major (sempre o chamavam assim, apesar de ele ter usado o nome “A Beldade de Willingdon” na sua exibição pre miada) era tão bem-conceituado na fazenda que todos estavam dispostos a perder uma hora de sono para ouvir o que ele tinha a dizer.

No fundo do grande estábulo, sobre uma espécie de estrado, o Major estava estirado em sua cama de palha, sob um lampião pendurado em uma viga. Ele já contava doze anos de idade e havia se tornado um tanto corpulento,

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mas ainda era um porco majestoso, com uma aparência benevolente e sábia, mesmo que suas presas nunca tivessem sido cortadas. Logo os outros animais começaram a chegar e se acomodar, cada qual à sua maneira. Primeiro vieram os três cachorros – Branca, Lulu e Cata-Vento – e os porcos, que se sentaram sobre a palha, bem em frente ao estrado. As galinhas empoleiraram-se nos peitoris das janelas, as pombas voaram para as vigas do telhado, as ovelhas e as vacas deitaram-se atrás dos porcos e começaram a rumi nar. Os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria, vieram juntos, andando muito devagar e pousando os enormes e peludos cascos no chão com muito cuidado, para o caso de haver algum animalzinho oculto na palha. Quitéria era uma égua robusta, do tipo matrona, que se aproximava da meia-idade e nunca tinha recuperado a forma depois de seu quarto potrinho. Sansão era um animal enorme, com quase dezoito palmos de altura, tão forte quanto dois cavalos juntos. Uma faixa branca no seu nariz conferia-lhe uma aparência um tanto quanto estúpida e, de fato, ele não era de uma inteligência ímpar, mas era respeitado por todos pela firmeza de caráter e por sua enorme capacidade de trabalho. Depois dos cavalos, chegaram Maricota, a cabra branca, e Benjamim, o burro. Benjamim era o animal mais velho da fazenda, e o mais mal-humorado. Ele quase nunca abria a boca, mas, quando o fazia, era geralmente para fazer algum comentário sarcástico – para dizer, por exemplo, que Deus tinha lhe dado uma cauda para manter as moscas afastadas, mas que ele preferiria que não houvesse nem cauda, nem moscas. Era o único dos animais da fazenda

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que nunca ria. Quando lhe perguntavam o porquê, ele dizia não ter motivos para rir. Mesmo assim, sem admitir para ninguém, tinha enorme afeição por Sansão; geralmente os dois passavam os domingos juntos no pequeno pasto atrás do pomar, lado a lado, em silêncio.

Os dois cavalos tinham acabado de se deitar quando entrou no celeiro uma ninhada de patinhos enfileirados, órfãos de mãe, piando baixinho e procurando um lugar onde não fossem pisoteados. Quitéria recolheu-os com sua grande pata dianteira, e os patinhos se aninharam ali, logo caindo no sono. No último instante, Mimosa a égua branca, linda e fútil, que puxava a carroça do Sr. Jo nes – entrou, rebolando graciosamente e mastigando um torrão de açúcar. Sentou-se em um lugar bem à frente e começou a mexer na sua crina branca, tentando chamar atenção para as tranças cheias de laços vermelhos. Por último chegou a gata, procurando, como sempre, o lugar mais quente e se espremendo entre Sansão e Quitéria; ali ronronou satisfeita durante todo o discurso do Major, sem ouvir uma palavra sequer do que era dito.

Agora, todos os animais estavam presentes, à ex ceção de Moisés, o corvo domesticado, que dormia em um poleiro atrás da porta dos fundos. Quando Major viu que todos estavam acomodados e esperando atentamente, limpou a garganta e começou:

— Camaradas, vocês já ouviram falar do estranho sonho que tive ontem à noite? Mas vou falar nisso mais tarde. Antes, tenho outras coisas para dizer. Não acredito, camaradas, que ainda fique com vocês por muitos meses

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mais e, antes de morrer, sinto que é minha obrigação trans mitir-lhes toda a sabedoria que adquiri. Tive uma longa vida e muito tempo para refletir na solidão da minha baia. Penso que posso afirmar que compreendi a essência da vida nesta terra tanto quanto qualquer outro animal vivente. É sobre isso que quero lhes falar.

— Então, camaradas, qual é a essência desta nossa vida? Sejamos sinceros: levamos uma vida miserável, árdua e curta. Nascemos, recebemos comida suficiente para nos manter vivos, e os que podem trabalhar são forçados a fazê-lo até o último resquício de suas forças; e, no instante em que perdemos nossa utilidade, somos abatidos com requintes de crueldade. Nenhum animal na Inglaterra sabe o que é felicidade ou lazer depois de completar um ano de idade. Nenhum animal na Inglaterra é livre. A vida de um animal é marcada por miséria e escravidão: essa é a pura verdade. — Será essa a ordem natural das coisas? Será nossa terra tão pobre que não pode oferecer uma vida decente àqueles que nela habitam? Não, camaradas, mil vezes não! O solo da Inglaterra é fértil, seu clima é bom, ele é capaz de oferecer alimento em abundância para um número muito maior de animais do que os que aqui estão. Apenas a nossa fazenda seria capaz de sustentar uma dúzia de cavalos, vinte vacas, centenas de ovelhas – e todos vivendo com um conforto e uma dignidade muito além de nossa imaginação. Por que então continuamos a viver nestas condições miseráveis? Porque quase toda a nossa produção nos é roubada pelos seres humanos. Aí está, camaradas, a

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solução de todos os nossos problemas. Resume-se a uma só palavra – Homem. O Homem é o único inimigo verda deiro que temos. Se tirarmos o Homem de cena, a principal causa da fome e do trabalho em excesso estará extinta de uma vez por todas.

— O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Ele não dá leite, não bota ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre rápido o bastante para caçar coelhos. E, ainda assim, é o senhor de todos os animais. Ele coloca-nos para trabalhar, retribui-nos o mínimo para não morrermos de fome e, o resto, guarda para si. Nosso trabalho cultiva o solo, nosso estrume o fertiliza e, no entanto, nenhum de nós possui mais que a própria pele. Quantos litros de leite as vacas que tenho aqui à minha frente teriam produzido no último ano? E o que aconteceu com todo esse leite, que deveria estar alimentando bezerros robustos? Cada gota foi goela abaixo de nossos inimigos. E vocês, galinhas, quantos ovos vocês botaram neste ano, e quantos viraram pintinhos? O restante foi para a feira, virou dinheiro para Jones e seus homens. E você, Quitéria, onde estão os quatro potrinhos que você pariu, que deveriam ampará-la e alegrá-la na sua velhice? Foram vendidos com um ano de idade – você nunca mais os verá novamente. Em retribuição pelos quatro partos e por todo o seu trabalho no campo, o que você recebeu além de uma ração escassa e uma baia?

— E mesmo as vidas miseráveis que levamos não podem chegar ao fim naturalmente. Eu não posso me quei xar, já que tive sorte. Tenho doze anos de idade e tive mais

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de quatrocentos filhos. Essa é a vida natural de um porco. Mas, no fim, nenhum animal escapa ao impiedoso cutelo. Vocês, jovens leitões sentados à minha frente, cada um de vocês vai morrer guinchando no cepo dentro de um ano. Todos passaremos pela mesma atrocidade – vacas, porcos, galinhas, ovelhas, todos. Nem mesmo os cavalos e os cães terão destino melhor. Sansão, no mesmo dia em que seus grandes músculos perderem a força, Jones o mandará para o matadouro e você será degolado e cozido para alimentar os cães de caça. E os cães, quando envelhecerem e perderem os dentes, Jones amarrará um tijolo em volta de seus pescoços e os afogará no lago mais próximo. — Não está claro como água, camaradas, que todos os males desta nossa vida têm sua origem na tirania dos seres humanos? Basta nos livrarmos do Homem e o fruto de nosso trabalho será só nosso. Do dia para a noite, poderemos nos tornar ricos e livres. O que devemos fazer então? Ora, trabalhar noite e dia, com todas as nossas forças, para destituir a raça humana! Essa é a mensagem que lhes trago, camaradas: Rebelião! Não sei quando essa Rebelião virá, pode ser em uma semana ou em uma centena de anos, mas sei, tão certo quanto vejo esta palha sob meus pés, que, mais cedo ou mais tarde, justiça será feita. Concentrem seus esforços nisso, camaradas, por todo o restante de suas vidas! E, acima de tudo, espalhem esta mensagem para aqueles que vierem depois de vocês, para que as gerações futuras continuem a luta até a vitória.

— Lembrem-se, camaradas, sua decisão nunca pode fraquejar. Nenhum argumento deve desviá-los. Não

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deem ouvidos àqueles que lhes disserem que o Homem e os animais têm um único objetivo, que a prosperidade de um é a prosperidade de todos. Nada além de mentiras. O Homem serve somente aos seus próprios interesses. Que haja entre nós, animais, uma perfeita unidade, uma cama radagem perfeita na luta. Todos os homens são inimigos. Todos os animais são camaradas.

Nesse momento, houve um tremendo alvoroço. Enquanto o Major falava, quatro ratazanas rastejaram para fora de seus buracos e ouviam-no, sentadas sobre as patas traseiras. Os cães subitamente as avistaram, e foi unicamente graças à sua rapidez que escaparam com vida. O Major levantou a pata, pedindo silêncio.

— Camaradas, disse ele, há um ponto a ser acertado. As criaturas selvagens, como os ratos e os coelhos – são eles nossos amigos ou nossos inimigos? Vamos colocar em votação. Proponho à assembleia a seguinte questão: os ratos são camaradas?

Votou-se imediatamente, e ficou acertado por uma arrasadora maioria que os ratos eram camaradas. Houve apenas quatro votos contrários, os três cães e a gata, que, depois descobriu-se, havia votado para os dois lados. O Major continuou:

— Não tenho muito mais a dizer. Apenas repito: lembrem-se sempre de sua obrigação de hostilidade para com o Homem e todos os seus desígnios. O que quer que ande sobre duas pernas é um inimigo. O que quer que ande sobre quatro pernas, ou que tenha asas, é um amigo.

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Lembrem-se também que, na luta contra o Homem, não devemos nos parecer com eles. Mesmo depois de tê-los derrotado, não adotem seus vícios. Nenhum animal deve viver em uma casa, ou dormir em uma cama, vestir roupas, beber álcool, fumar tabaco, tocar em dinheiro ou lidar com o comércio. Todos os hábitos do Homem são ruins. Acima de tudo, nenhum animal deve nunca oprimir sua própria espécie. Fracos ou fortes, espertos ou ingênuos, somos todos irmãos. Nenhum animal deve nunca matar outro animal. Todos os animais são iguais.

— E agora, camaradas, vou contar-lhes o meu sonho da noite passada. Não sei o que significa. Foi um sonho de como será a Terra quando o Homem desaparecer. Aca bei lembrando-me de algo que havia esquecido há muito tempo. Há muitos anos, quando ainda era um leitãozinho, minha mãe e as outras leitoas costumavam entoar uma velha canção, da qual só se lembravam a melodia e as três primeiras palavras. Conheço essa melodia desde a minha infância, mas há muito tempo ela se apagara da minha mente. Ontem à noite, no entanto, ela apareceu no meu sonho. E não é só isso, também me lembrei dos versos – versos que, tenho certeza, eram cantados pelos animais do passado e acabaram perdidos por gerações. É essa canção que cantarei para vocês agora, camaradas. Já sou velho e minha voz está rouca, mas quando a tiverem aprendido, poderão cantá-la melhor que eu. Ela se chama “Bichos da Inglaterra”.

O velho Major limpou a garganta e começou a cantar. Como afirmara, sua voz estava rouca, mas ele

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cantava razoavelmente bem, e a melodia era bastante agitada, algo entre “Ó querida Clementina” e “La cucaracha”. A letra dizia:

Bichos da Inglaterra e da Irlanda Bichos de todo lugar Atenção às boas-novas Do futuro que há de chegar.

A derrota do Homem tirano, Cedo ou tarde todos verão, E nos férteis campos ingleses S ó bichos pisarão.

Argolas no nariz, não mais, Muito menos arreios nas costas, Freio e espora, pra sempre esquecidos, E as cruéis chibatas, depostas.

Trigo, cevada e aveia, Pastagem, feno e muito grão, Riquezas a perder de vista, Desse dia em diante nossas serão.

Os campos da Inglaterra brilharão, Suas águas ainda mais puras, E mais suaves suas brisas, Com o fim de nossas torturas.

Por esse dia vamos todos lutar, Até a morte, se preciso for; Gansos, perus, vacas e cavalos, Todos unidos com muito ardor.

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Bichos da Inglaterra e da Irlanda Bichos de todo lugar Atenção às boas-novas

Do futuro que há de chegar.

A cantoria levou os animais a uma excitação extrema. Antes mesmo do Major chegar ao fim da canção, começaram a cantar com ele. Até mesmo o mais estúpido dos animais conseguira acompanhar a melodia e entoar alguns dos versos, e os mais espertos, como os porcos e os cães, já haviam decorado a letra em poucos minutos. Depois de alguns ensaios, toda a fazenda eclodiu a cantar “Bichos da Inglaterra” a uma só voz. As vacas cantavam aos mugidos, os cães ganindo, as ovelhas balindo, os ca valos relinchando, os patos grasnando. Estavam todos tão encantados com a canção, que a entoaram cinco vezes seguidas e poderiam continuar noite adentro se não ti vessem sido interrompidos.

Infelizmente, a confusão acordou o Sr. Jones, que pulou da cama, certo de que havia uma raposa no pátio. Agarrou a arma, sempre pronta em um canto do quarto, e disparou um tiro de espingarda escuridão afora. A bala foi alojar-se na parede do celeiro, e a assembleia dispersou -se em um instante. Cada um correu para a própria alco va. As aves pularam em seus poleiros, o gado aninhou-se na palha, e toda a fazenda adormeceu em um instante.

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capÍtulo 2

Três noites depois, o velho Major morreu, calma mente, durante o sono. Seu corpo foi enterrado no fundo do pomar.

Tudo isso ocorreu no início de março. Durante os três meses seguintes, muita coisa aconteceu em segredo. O discurso do Major ofereceu uma perspectiva de vida completamente diferente aos animais mais inteligentes da fazenda. Eles não sabiam quando a Rebelião prevista pelo Major iria acontecer nem tinham razão para pensar que seria durante a própria existência, mas viam claramente que era obrigação prepararem-se para ela. A tarefa de en sinar e organizar os outros recaiu naturalmente sobre os porcos, pois eles eram, geralmente, reconhecidos como os mais inteligentes dos animais. Destacavam-se entre eles dois jovens suínos chamados Bola-de-Neve e Napoleão, que o Sr. Jones estava criando para vender. Napoleão era um grande e feroz espécime da raça Berkshire, o único da fazenda, não muito falante, mas com reputação de ter bastante força de vontade. Bola-de-Neve era mais extro vertido que Napoleão, mais rápido no falar e mais criati vo, mas não gozava do mesmo reconhecimento quanto à solidez do seu caráter. Todos os outros suínos da fazenda eram castrados. O mais conhecido deles era um porqui

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nho rechonchudo chamado Garganta, com bochechas perfeitamente redondas, olhos vívidos, movimentos ágeis e uma voz esganiçada. Era um orador brilhante e, quando discutia algum assunto complicado, costumava saltitar para todo lado e agitar a cauda de uma forma que era surpreendentemente persuasiva. Dizia-se que o Garganta conseguia transformar preto em branco.

Os três porcos haviam estruturado os ensinamentos do velho Major em um completo sistema filosófico, que denominaram Animalismo. Várias noites por semana, depois que o Sr. Jones adormecia, eles organizavam reu niões secretas no estábulo e apresentavam os princípios do Animalismo para os outros. No início, enfrentaram muito desânimo e ignorância. Alguns animais citavam um dever de lealdade para com o Sr. Jones, a quem chamavam “Dono”, ou faziam comentários ingênuos como “o Sr. Jones nos alimenta. Se ele desaparecesse, morreríamos de fome”. Outros faziam perguntas do tipo: “Por que deveríamos nos importar com o que acontecerá depois de morrermos?”; ou “Se essa Rebelião vai acontecer inevitavelmente, que diferença faz se lutarmos por ela ou não?”. E os porcos tinham enorme dificuldade em fazê-los compreender que tal atitude era contrária à essência do Animalismo. Mimosa, a égua branca, tinha os questionamentos mais estúpidos. Sua primeira pergunta para Bola-de-Neve foi:

— Depois da Rebelião, ainda teremos açúcar?

— Não – disse Bola-de-Neve com firmeza. – Não temos como fabricar açúcar nessa fazenda. Além disso,

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você não precisará de açúcar. Você terá toda a aveia e o feno que quiser.

— Ainda vou poder usar laços na minha crina? –perguntou Mimosa.

— Camarada – disse Bola-de-Neve –, esses laços que você tanto aprecia são o símbolo da escravidão. Você não entende que a liberdade vale muito mais que laços?

Mimosa concordou, mas não soou muito convencida.

Os porcos tiveram que se esforçar ainda mais para contradizer as mentiras proferidas por Moisés, o corvo domesticado. Ele não só era o bicho de estimação preferido do Sr. Jones mas também um espião, alcoviteiro e, além de tudo, hábil orador. Ele alegava saber da existência de um misterioso local chamado Montanha do Doce Cristal, destino de todos os animais depois da morte. Ela ficava em algum lugar bem alto no céu, pouco acima das nuvens, dizia Moisés. Na Montanha do Doce Cristal, todo dia da semana era domingo, os trevos continuavam verdinhos durante todo o ano e torrões de açúcar e bolinhos de linha ça cresciam nos arbustos. Os animais detestavam Moisés porque ele vivia tagarelando e nunca trabalhava, mas alguns deles acreditavam na Montanha do Doce Cristal e os porcos tiveram trabalho dobrado para convencê-los de que tal lugar não existia.

Seus discípulos mais fiéis eram os dois cavalos de tração, Sansão e Quitéria. Ambos tinham muita dificulda de para pensar por si próprios, mas, depois que tomaram os porcos como professores, assimilavam tudo o que eles

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lhes diziam e repassavam aos outros animais de um jeito muito simples. Nunca faltavam às reuniões secretas no estábulo e lideravam a cantoria de “Bichos da Inglaterra”, que sempre marcava o fim das assembleias.

E, afinal, a Rebelião acabou acontecendo muito mais cedo e mais fácil do que se esperava. No passado, o Sr. Jones sempre fora um patrão rígido e competente, mas, ultimamente, estava em franca decadência. Desmotivado depois de perder dinheiro em um processo judicial, co meçou a beber mais do que era recomendável. Às vezes passava dias inteiros sentado em sua cadeira de madeira na cozinha, lendo os jornais, bebendo e, ocasionalmente, oferecendo migalhas de pão embebidas em cerveja para Moisés. Os empregados haviam se tornado preguiçosos e desonestos, as plantações estavam repletas de ervas daninhas, os galpões precisavam de telhados novos, as cercas estavam quebradas e os animais eram mal alimentados. Chegou o mês de junho e o feno estava pronto para o corte. Na véspera do solstício de verão, um sábado, o Sr. Jones foi até Willingdon e bebeu tanto no Leão Vermelho, o hotel da cidade, que não conseguiu retornar até o meio -dia de domingo. Os empregados haviam ordenhado as vacas ao amanhecer e saíram para caçar coelhos, sem se importar em alimentar os animais. Quando o Sr. Jones voltou da cidade, deitou-se no sofá da sala de estar e dormiu no mesmo instante, com o Notícias do Mundo sobre o rosto, e, quando a noite chegou, os animais ainda não tinham comido. Finalmente, não aguentaram mais. Uma das vacas arrebentou a porta do celeiro a chifradas e todos

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começaram a saquear o paiol. Foi só então que o Sr. Jones acordou. Em um instante, ele e quatro dos seus homens chegaram ao celeiro com chicotes nas mãos, atacando para todos os lados. Era mais do que os animais famintos poderiam suportar. De uma só vez, apesar de nada ter sido planejado de antemão, lançaram-se sobre seus algozes. De repente, Jones e seus empregados se viram em meio a uma infinidade de pontapés e empurrões. A situação fugiu ao controle. Nunca haviam visto animais comportando-se dessa forma, e essa súbita insurreição de criaturas, a quem eles se acostumaram a surrar e maltratar à vontade, aterrorizou-os como nunca. Depois de poucos instantes, desistiram de tentar se defender e deram no pé. No minuto seguinte, os cinco disparavam pela trilha que levava à estrada, com os animais no seu encalço, triunfantes.

A Sra. Jones espiou pela janela do quarto, viu o que acontecia, recolheu rapidamente alguns bens em uma bolsa de pano e escapuliu por outro caminho. Moisés saltou de seu poleiro e voou atrás dela, grasnando alto. Enquanto isso, os animais haviam enxotado Jones e seus homens até a estrada, trancando a porteira da fazenda logo atrás deles. E foi assim, antes de se darem conta, que levaram a cabo a Rebelião: Jones foi expulso, e a Fazenda do Solar era deles.

Nos primeiros minutos, mal conseguiam acreditar em sua sorte. Seu primeiro ato foi percorrer, todos juntos, os limites da fazenda, como se quisessem ter certeza que nenhum ser humano estivesse escondido na propriedade; depois correram de volta para os galpões para eliminar os últimos traços do reinado odioso de Jones. O depósito

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de ferramentas no fundo dos estábulos foi arrombado; os freios, as argolas de nariz, as coleiras dos cães, os impiedo sos cutelos que o Sr. Jones usava para castrar os porcos e os cordeiros, tudo foi atirado no poço. As rédeas, os cabrestos, os antolhos e as degradantes focinheiras foram lançados ao fogo, que ardia no pátio. Assim como os chicotes. Todos pulavam de alegria ao ver os chicotes sendo consumidos pelas chamas. Bola-de-Neve também jogou no fogo os laços que enfeitavam as crinas e caudas dos cavalos nos dias de feira.

— Laços – disse ele – devem ser considerados rou pas, que são a marca dos seres humanos. Todos os animais devem andar nus.

Ao ouvir isso, Sansão foi buscar o chapeuzi nho de palha que usava no verão para manter as mos cas longe de suas orelhas e lançou-o ao fogo com o resto das coisas.

Em pouco tempo os animais tinham destruído tudo o que lhes evocava o Sr. Jones. Então, Napoleão conduziu -os de volta ao celeiro e serviu uma ração dupla de milho a cada um, além de dois biscoitos para os cães. Cantaram “Bichos da Inglaterra” do começo ao fim sete vezes segui das, acomodaram-se para a noite e dormiram como nunca. Acordaram ao amanhecer como sempre e, de repente, lembrando-se dos gloriosos acontecimentos da véspera, todos correram para o pasto. Ao fundo, havia uma colina de onde se via quase toda a fazenda. Os animais subiram até seu topo e contemplaram toda a paisagem sob a luz

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da manhã. Sim, era deles – tudo que podiam ver era deles! Eufóricos com a ideia, começaram a dar cambalhotas e saltar para todo lado. Rolaram no orvalho, mordiscaram a grama fresca, revolveram a terra preta para inalar seu suntuoso odor. Depois inspecionaram toda a fazenda e examinaram com uma admiração silenciosa a lavoura, os campos de feno, o pomar, o reservatório, o bosque. Era como se nunca os tivessem visto antes e, ainda assim, mal podiam acreditar que tudo lhes pertencia.

Voltaram então aos galpões e pararam em frente à porta da sede da fazenda, atônitos. Ela também era deles, mas tinham medo de entrar. No entanto, depois de uns instantes, Bola-de-Neve e Napoleão empurraram a porta com o corpo e todos entraram em fila única, caminhan do muito cuidadosamente, com receio de tocar em algo. Andavam na ponta dos pés, de um cômodo para o outro, sem ousar falar alto, observando tudo com uma espécie de fascínio diante de inimaginável luxo, as camas com colchões de penas, os espelhos, o sofá de crina de cavalo, o tapete belga, a litografia da rainha Vitória sobre a lareira da sala de estar. Quando desciam as escadas, deram pela falta da égua Mimosa. Ao voltar, encontraram-na no quarto principal. Ela pegara um pedaço de fita azul da penteadeira da Sra. Jones e, segurando-o sobre a espádua, admirava-se no espelho, como uma tola. Foi duramente repreendida e então todos saíram da casa. As peças de presunto pendu radas na cozinha foram separadas para ser enterradas e o barril de cerveja na área de serviço foi despedaçado com um coice de Sansão – fora isso, não mexeram em mais

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nada. De forma unânime, decidiram ali mesmo que a sede seria preservada como um museu e que nenhum animal deveria habitar seu interior.

Os animais tomaram seu desjejum e então Bola -de-Neve e Napoleão convocaram a todos mais uma vez.

— Camaradas – disse Bola-de-Neve –, já são seis e meia e temos um longo dia pela frente. Hoje começaremos a colheita do feno. Mas há outra questão que devemos tratar antes.

Os porcos revelaram que nos últimos três meses haviam aprendido a ler e escrever por meio de uma velha cartilha dos filhos do Sr. Jones que tinha sido jogada no lixo. Napoleão pediu para buscarem latas de tinta bran ca e preta e conduziu-os novamente até a porteira que levava à estrada. Então Bola-de-Neve (já que era aquele que tinha a letra mais bonita) colocou um pincel entre os dedos das patas, cobriu de tinta FAZENDA DO SOLAR da trave de cima da porteira e escreveu em seu lugar FA ZENDA DOS BICHOS. A partir de agora, esse seria o nome da propriedade. Depois disso, voltaram para os galpões, onde Bola-de-Neve e Napoleão pediram uma escada, co locando-a contra a parede do fundo do estábulo principal. Explicaram-lhes que, durante seus três meses de estudos, eles conseguiram resumir os princípios do Animalismo a Sete Mandamentos. Esses Sete Mandamentos seriam agora escritos na parede; eles formariam a lei imutável que regeria a vida de todos os habitantes da Fazenda dos Bichos dali para a frente. Com alguma dificuldade (já que não é fácil para um porco equilibrar-se em uma escada),

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Bola-de-Neve subiu e começou a trabalhar, com Garganta segurando a lata de tinta alguns degraus abaixo. Os Man damentos foram escritos na parede coberta de piche em enormes letras brancas, que podiam ser lidas a muitos metros de distância. Assim ficou:

OS SETE MANDAMENTOS

1. Aqueles que andam sobre duas pernas são inimigos.

2. Aqueles que andam sobre quatro pernas, ou que têm asas, são amigos.

3. Nenhum animal usará roupas.

4. Nenhum animal dormirá em uma cama.

5. Nenhum animal beberá álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.

Tudo foi escrito com muita ordem e, com exceção de “álcool” estar escrito “álcol” e uma das letras “s” estar ao contrário, a ortografia estava correta. Bola-de-Neve leu os mandamentos em voz alta para que todos compreen dessem. Os animais concordaram balançando com a cabeça, e os mais inteligentes começaram a decorar a lista no mesmo instante.

— Agora, camaradas – gritou Bola-de-Neve –, jogan do o pincel no chão, para os campos de feno! É questão de

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honra fazer a colheita em menos tempo do que os homens de Jones teriam feito!

Nesse momento, três vacas, que estavam inquietas há algum tempo, começaram a mugir alto. Não haviam sido ordenhadas há vinte e quatro horas e seus úberes estavam a ponto de explodir. Depois de refletir por um instante, os porcos mandaram vir baldes e conseguiram ordenhar as vacas com sucesso, já que seus dedos eram próprios à tarefa. Em pouco tempo, o leite cremoso e cheio de espuma encheu cinco baldes, que atraíram a atenção dos animais.

— O que vai acontecer com todo esse leite? – al guém disse.

— Jones, às vezes, usava um pouco para misturar na nossa ração – disse uma das galinhas.

— Deixem o leite para lá, camaradas! – gritou Na poleão, colocando-se na frente dos baldes. – Cuidaremos disso depois. A colheita é mais importante. O camarada Bola-de-Neve mostrará o caminho. Devo segui-los em alguns minutos. Avante, camaradas! O feno os espera.

Então os animais marcharam até os campos de feno para começar a colheita e, quando voltaram, à noite, notaram que o leite havia desaparecido.

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capÍtulo 3

Como trabalharam e suaram para colher o feno! Mas seus esforços foram recompensados, pois a colheita foi um sucesso ainda maior do que esperavam. Por vezes, o trabalho era árduo; os equipamentos tinham sido projetados para seres humanos – não para animais, e era um enorme inconveniente não poder usar as ferramentas que demandavam ficar em pé sobre as pernas traseiras. Mas os porcos eram tão espertos que conseguiram achar uma solução para toda dificuldade. Quanto aos ca valos, eles conheciam cada centímetro do campo e sabiam muito melhor que Jones e seus homens como preparar e aplainar o solo. Na verdade, os porcos não faziam nenhum trabalho, mas dirigiam e supervisionavam os outros. Com seu conhecimento superior, era natural que assumissem a liderança. Sansão e Quitéria arreavam a ceifadora ou o ancinho ao corpo (freios e arreios não eram mais neces sários, claro) e caminhavam a passos firmes e pesados por toda a plantação com um porco ao lado bradando “Vamos lá, camarada!” ou “Mais devagar, camarada!”, conforme o caso. E cada animal ajudava a revolver o feno e recolhê-lo, mesmo o mais humilde. Até os patos e as galinhas andavam para lá e para cá sob o sol durante todo o dia, carregando minúsculos fardos de feno no bico. Por fim, terminaram a

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colheita em dois dias a menos do que Jones e seus homens costumavam fazer. Além disso, foi a maior colheita que a fazenda já vira. Também não houve nenhum desperdício; as galinhas e os patos, com seu olhar aguçado, recolheram até o último talo. E nenhum animal da fazenda roubara nem um punhado sequer.

Durante todo o verão, o trabalho na fazenda andou como um relógio. Os animais estavam felizes como nunca imaginaram ser possível. Cada bocado de comida era um prazer absoluto, agora que era realmente a comida deles, produzida por eles e para eles e não algo oferecido de má vontade por um patrão. Sem os inúteis e parasitas seres humanos, sobrava muito mais para todos comerem. Havia mais diversão também, apesar da inexperiência dos animais no assunto. Também passaram por muitas dificuldades, como no fim do ano, por exemplo, quando colheram o milho e tiveram que pisoteá-lo e soprar a palha à moda antiga, já que a fazenda não tinha uma debulha dora – mas os porcos, com sua esperteza, e Sansão, com seus enormes músculos, sempre prevaleciam. Sansão era admirado por todos. Já era um trabalhador incansável na época de Jones, mas agora equivalia a três cavalos; havia dias em que todo o trabalho da fazenda parecia recair sobre seus ombros poderosos. Da manhã à noite, lá esta va ele empurrando e puxando, sempre onde a carga era mais pesada. Ele havia combinado com um dos galos para acordá-lo meia hora antes que os outros, para poder fazer algum trabalho voluntário no que fosse mais necessário, antes das tarefas regulares do dia começarem. Sua respos

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ta para cada problema, cada obstáculo, era “Trabalharei ainda mais!” – frase que adotara como seu lema pessoal. Cada um trabalhava de acordo com sua capacidade. As galinhas e os patos, por exemplo, acumularam cinco alqueires de milho na colheita ao recolher os grãos perdidos. Ninguém roubava nada, ninguém reclamava de suas rações, toda a confusão, as mordidas, os ciúmes, que eram corriqueiros no passado, tinham praticamente desaparecido. Ninguém fugia do trabalho – ou quase nin guém. É bem verdade que Mimosa não era muito afeita a acordar cedo pela manhã e sempre largava antes a labuta sob o propósito de ter uma pedra no casco. Também o comportamento da gata era, digamos assim, peculiar. Logo perceberam que, sempre que havia algo a fazer, nunca a encontravam. Sumia por horas a fio e reaparecia à hora das refeições ou à noite, depois que o trabalho terminara, como se nada acontecera. Mas ela inventava desculpas tão extraordinárias e ronronava tão carinhosamente que era impossível não acreditar em suas boas intenções. O velho Benjamim, o burro, não parecia ter mudado nada desde a Rebelião. Continuava seu trabalho da mesma forma, lenta e obstinada, da época de Jones, sem fugir de suas tarefas nem tampouco candidatar-se para trabalho extra. Não expressara nenhuma opinião quanto à Rebelião ou seus resultados. Quando lhe perguntavam se estava mais feliz agora que Jones tinha partido, dizia apenas “Burros vivem por muito tempo. Nenhum de vocês jamais viu um burro morrer”, e os outros tinham de se contentar com essa resposta enigmática.

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Não se trabalhava aos domingos. O desjejum era uma hora mais tarde que o normal e, logo depois, havia uma cerimônia, realizada todas as semanas, impreterivelmente. Para começar, o hasteamento da bandeira. Bola-de-Neve achara uma velha toalha de mesa verde no depósito das ferramentas e pintou-lhe, com tinta branca, um casco e um chifre. Era essa a bandeira hasteada no mastro da sede todos os domingos, às oito da manhã. O verde, Bola-de-Neve explicou, representava os campos verdes da Inglaterra, e o casco e o chifre retratavam a futura República dos Bi chos, que surgiria quando a raça humana fosse finalmente derrotada. Depois do hasteamento da bandeira, todos os animais marchavam rumo ao grande estábulo para uma assembleia geral, conhecida como a Reunião. Nela, o tra balho da semana era planejado e as resoluções, apresen tadas e debatidas. Quem as apresentava eram sempre os porcos. Os outros animais aprenderam a votar, mas nunca conseguiram elaborar resoluções próprias. Bola-de-Neve e Napoleão eram, de longe, os mais ativos nos debates. Porém, como todos perceberam, nunca estavam de acordo: qual quer sugestão que um deles fizesse, podia-se contar com a oposição do outro. Mesmo quando decidiram reservar um pequeno pasto nos fundos do pomar para os animais que não pudessem mais trabalhar – algo que, por si só, não poderia sofrer nenhuma objeção – houve uma discussão acerca da idade de aposentadoria ideal para cada classe de animais. A reunião sempre terminava com o hino “Bichos da Inglaterra” e a tarde era destinada à recreação.

Os porcos haviam reservado o depósito das fer

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ramentas como seu centro de comando. Ali, à noite, eles estudavam a forjaria, a carpintaria e outras artes neces sárias, através de livros que haviam encontrado na sede. Bola-de-Neve também ocupava-se organizando os outros animais no que ele chamou de Comitês de Bichos. Dedi cava-se incansavelmente a essa tarefa. Formou o Comitê de Produção de Ovos para as galinhas, a Liga das Caudas Imaculadas para as vacas, o Comitê de Reeducação dos Camaradas Selvagens (que servia à domesticação de ratos e coelhos), o Movimento Lã Mais Alva para as ovelhas, e vários outros, além de instituir cursos de alfabetização. No geral, esses projetos se mostraram um fracasso. A tentativa de domar os animais selvagens, por exemplo, falhou logo no começo. Eles continuaram a comportar-se como antes e, quando eram tratados com generosidade, tiravam pro veito da situação. A gata aderiu ao Comitê de Reeducação e mostrou-se bastante ativa durante alguns dias. Foi vista um dia sentada no topo de um telhado conversando com alguns pardais pouco além do seu alcance. Dizia-lhes que todos os animais eram agora camaradas e que qualquer um deles poderia pousar na sua pata, caso quisesse; mas os pardais preferiram manter a distância.

As aulas de alfabetização, no entanto, fizeram gran de sucesso. Até o início do outono, quase todos os animais da fazenda sabiam ler, de certa forma.

Os porcos sabiam ler e escrever perfeitamente. Os cães aprenderam a ler relativamente bem, mas não se interessavam por ler nada além dos Sete Mandamentos. Maricota, a cabra, podia ler melhor que os cães e, às ve

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zes durante a noite, costumava ler pedaços de jornal que encontrava no lixo para os outros. Benjamim sabia ler tão bem quanto os porcos, mas nunca exercia sua capacidade. Até onde sabia, dizia ele, não havia nada que valesse a leitura. Quitéria aprendeu todo o alfabeto, mas não con seguia formar palavras. Sansão não conseguia ir além da letra D. Ele traçava A, B, C, D na terra com a pata e, então, ficava olhando para as letras com as orelhas retraídas, balançando a crina de vez em quando, tentando sem sucesso lembrar-se do que vinha depois. Às vezes, conse guia aprender E, F, G, H, mas, assim que as memorizava, descobria-se que ele havia esquecido do A, B, C e D. Por fim, decidiu contentar-se com as quatro primeiras letras e as escrevia uma ou duas vezes por dia para refrescar a memória. Mimosa recusava-se a aprender outras letras além das que formavam seu próprio nome. Desenhava-as muito bem arrumadas com ramos de árvore e depois as enfeitava com uma flor ou duas, andando em volta delas para admirá-las.

Nenhum dos outros animais conseguia ir além da letra A. Descobriu-se também que os mais estúpidos, como as ovelhas, as galinhas e os patos, eram incapazes de decorar os Sete Mandamentos. Depois de muito refletir, Bola-de-Neve declarou que os Sete Mandamentos pode riam, na verdade, ser reduzidos a uma simples máxima, que era “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim”. Aí, disse ele, estava contido o princípio essencial do Animalismo. Quem o adotasse sem reservas, estaria livre da influên cia humana. Os pássaros discordaram no começo, pois

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parecia-lhes que eles também tinham duas pernas, mas Bola-de-Neve provou que não era verdade.

— A asa de um pássaro, camaradas, disse ele, é um órgão de propulsão e não de manipulação. Portanto, deve ser considerada uma perna. A marca de distinção do homem é a mão, o instrumento que ele usa para toda a sua maldade.

Os pássaros não entenderam as palavras difíceis de Bola-de-Neve, mas aceitaram sua explicação, e todos os animais mais modestos puseram-se a decorar a nova máxima. QUATRO PERNAS, BOM, DUAS PERNAS, RUIM foi escrito na parede dos fundos do celeiro, acima dos Sete Mandamentos, em letras ainda maiores. Assim que as ovelhas conseguiram decorá-la, tomaram gosto pela máxima, sendo frequente vê-las deitadas nos campos, balindo “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim! Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim!” por horas a fio, sem nunca se cansar.

Napoleão não se interessou pelos comitês de Bo la-de-Neve. Afirmou que a educação dos jovens era mais importante que qualquer outra coisa em prol dos mais velhos. Acontece que Lulu e Branca tinham dado cria logo após a colheita do feno, parindo nove saudáveis filhotinhos. Assim que desmamaram, Napoleão tirou-os das mães, di zendo que se responsabilizaria por sua educação. Levou-os para um sótão que só podia ser acessado por uma escada no depósito das ferramentas, isolando-os de tal forma que logo o resto da fazenda esqueceu-se da sua existência.

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O mistério do desaparecimento do leite foi logo esclarecido. Ele era misturado diariamente à ração dos porcos. As maçãs começavam a amadurecer e a grama do pomar encheu-se de frutas. Os animais concluíram que, naturalmente, elas seriam distribuídas entre todos igualmente; um dia, no entanto, chegou a ordem de que todas as frutas caídas deveriam ser recolhidas e levadas ao depósito para usufruto dos porcos. Ao saber disso, alguns animais começaram a sussurrar, mas inutilmente. Todos os porcos concordavam plenamente nesse ponto, até mesmo Bola-de-Neve e Napoleão. Garganta foi enviado para dar as devidas explicações aos outros.

— Camaradas! – gritou ele. Não imaginem vocês, espero eu, que os porcos tenham tomado essa decisão em um ato de egoísmo e privilégio! Na verdade, muitos de nós sequer gostamos de leite e maçãs. Eu mesmo, não suporto. Nosso único objetivo ao tomá-los é preservar nossa saúde. Leite e maçãs (e isso é provado pela Ciência, camaradas) contêm substâncias absolutamente necessárias para o bem-estar dos porcos. Nós, porcos, somos trabalhadores intelectuais. Toda a administração e organização desta fazenda depende de nós. Dia e noite, velamos pela felici dade de vocês. É pelo bem de vocês que bebemos esse leite e comemos essas maçãs. Vocês sabem o que aconteceria se nós, porcos, faltássemos com nossa obrigação? Jones voltaria! Sim, Jones voltaria! Com toda a certeza, camara das – gritou Garganta quase implorando, pulando de um lado para o outro e chacoalhando a cauda – com certeza não há ninguém entre vocês que queira ver Jones de volta!

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Se havia algo de que todos tinham certeza era que não queriam Jones de volta. Quando o assunto lhes fora explicado assim, não havia mais nada a dizer. A im portância de manter os porcos saudáveis ficou extrema mente óbvia. Ficou então acertado sem mais nenhuma objeção que o leite e as maçãs caídas (além das maçãs co lhidas depois que amadurecessem) deveriam ser reser vados para os porcos.

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capÍtulo 4

Até o fim do verão a notícia do que havia acontecido na Fazenda dos Bichos espalhara-se por metade do condado. Bola-de-Neve e Napoleão enviavam revoadas de pombos diariamente com instruções para misturar-se aos animais das fazendas vizinhas, contar-lhes a história da Rebelião e ensinar-lhes a melodia de “Bichos da Inglaterra”.

Enquanto isso, o Sr. Jones passava a maior parte do tempo em Willingdon, sentado no bar do Leão Verme lho reclamando, a quem quisesse ouvir, da descomunal injustiça que sofrera ao ser expulso de sua propriedade por uma corja de animais inúteis. Os outros fazendeiros compadeceram-se dele, em tese, mas não lhe ofereceram muita ajuda. Secretamente, cada um deles imaginava se não poderia tirar alguma vantagem do infortúnio de Jones. Por sorte, os donos das duas fazendas vizinhas à Fazenda dos Bichos viviam em permanente rivalidade. Uma das fazendas, de nome Foxwood, era uma propriedade grande, antiquada, desleixada, praticamente tomada pelo mato, com as pastagens esgotadas e as cercas vivas em condi ções vergonhosas. O proprietário, Sr. Pilkington, era um cavalheiro simpático que gastava a maior parte do tempo pescando ou caçando, dependendo da temporada vigente.

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A outra fazenda, Pinchfield, era menor e mais bem cuidada. Pertencia ao Sr. Frederick, um homem rude e astuto, sempre envolvido em litígios e conhecido por sua teimosia. Os dois detestavam-se tanto que era difícil entrarem em qualquer tipo de acordo, mesmo em defesa dos próprios interesses.

Mesmo assim, ambos ficaram extremamente ame drontados pela rebelião da Fazenda dos Bichos e queriam evitar que seus animais soubessem de muitos detalhes. A princípio, fingiram menosprezar a ideia de animais administrando uma fazenda sozinhos. “A coisa toda vai acabar em no máximo quinze dias”, disseram. Inventaram que os animais da Fazenda do Solar (insistiam em chamá -la assim; não tolerariam o nome “Fazenda dos Bichos”) viviam brigando entre si e que, em breve, morreriam de fome. Quando o tempo passou e os animais claramente não tinham morrido de fome, Frederick e Pilkington viraram o disco e começaram a falar das terríveis perversidades que aconteciam na Fazenda dos Bichos. Dizia-se que os animais praticavam canibalismo, torturavam uns aos ou tros com ferraduras em brasa e compartilhavam as fêmeas entre si. Era o que acontecia quando se ia contra as leis da Natureza, Frederick e Pilkington diziam.

No entanto, ninguém acreditava totalmente nessas histórias. Boatos de uma fazenda maravilhosa, onde os seres humanos haviam sido expulsos e os animais administravam os próprios negócios, continuavam a circular, de formas obscuras e distorcidas, e por todo o ano uma onda de rebeldia percorreu toda a área. Touros que sempre foram mansos subitamente se enfureceram, ovelhas atravessa

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vam as sebes e comiam os trevos, vacas davam coices nos baldes de ordenha, cavalos de caça recusavam-se a saltar as cercas, arremessando seus cavaleiros por cima delas. Sobretudo, a melodia e até mesmo os versos de “Bichos da Inglaterra” tornaram-se conhecidos por toda parte. Espa lharam-se com uma velocidade surpreendente. Os seres humanos não podiam conter sua raiva ao ouvir a canção, apesar de fingir que a achavam simplesmente ridícula. Não podiam entender, diziam, como até mesmo animais admitiam entoar tamanha porcaria. Qualquer animal flagrado na cantoria era açoitado no mesmo instante. Ainda assim, não podiam controlá-la. Os melros assobiavam-na nos arbustos, as pombas arrulhavam-na nos olmeiros, ela misturava-se às marteladas dos ferreiros e aos sinos das igrejas. E, quando os humanos a ouviam, estremeciam secretamente, pressentindo sua ruína vindoura.

No começo de outubro, quando o milho já estava colhido, armazenado e, em parte, debulhado, uma revoada de pombos chegou rodopiando pelo ar e pousou no pátio da Fazenda dos Bichos em uma agitação descontrolada. Jones e seus homens, com meia dúzia de empregados de Foxwood e Pinchfield, atravessaram a porteira e desciam a trilha que levava à fazenda. Todos carregavam porre tes, à exceção de Jones, que liderava o bando com uma espingarda nas mãos. Obviamente, estavam ali para tentar recuperar a propriedade.

Há muito tempo isso era esperado e todos os prepa rativos já tinham sido feitos. Bola-de-Neve, que estudara as campanhas de Júlio César em um velho livro que ele

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encontrara na sede, estava a cargo das operações de defesa. Deu suas ordens rapidamente e, em alguns minutos, cada animal estava em seu posto.

Assim que os seres humanos se aproximaram dos galpões, Bola-de-Neve lançou a primeira ofensiva. Todos os pombos, trinta e cinco no total, sobrevoaram os homens e defecaram em suas cabeças; enquanto ainda tentavam lidar com essa investida, os gansos, escondidos atrás da sebe, correram e bicaram violentamente suas panturrilhas. No entanto, essa era apenas uma manobra estratégica, com o objetivo de criar um pouco de desordem, e os homens facilmente afugentaram os gansos com seus porretes. Agora, Bola-de-Neve lançou a segunda ofensiva. Maricota, Benjamim e todas as ovelhas, com Bola-de-Neve à frente, dispararam rapidamente, espetando e empurrando os homens por todos os lados, enquanto Benjamim, dando meias-voltas, acertava-os com seus pequenos cascos. Mas os homens, com seus porretes e botas com travas, mostraram-se mais fortes novamente; de repente, a um guincho de Bola-de-Neve – o sinal de retirada – todos os animais viraram e fugiram para o pátio.

Os homens gritaram triunfantes. Viram, como haviam imaginado, seus inimigos em fuga e correram atrás deles desordenadamente. Era justamente o que Bola-de-Neve queria. Assim que entraram no pátio, os três cavalos, as três vacas e o resto dos porcos, emboscados atrás do estábulo, subitamente surgiram atrás deles, impedindo -lhes a retirada. Bola-de-Neve, então, deu o sinal para a ofensiva final. Ele próprio avançou sobre Jones. Jones o viu

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chegar, levantou sua arma e atirou. A bala deixou traços de sangue por todo o dorso de Bola-de-Neve, e uma ovelha caiu morta. Sem hesitar nem um instante, Bola-de-Neve jogou seus quase cem quilos contra as pernas de Jones. Ele foi arremessado sobre um monte de estrume, e a arma voou de suas mãos. Mas o espetáculo mais aterrorizante era quando Sansão, como bom garanhão, erguia-se nas patas traseiras e golpeava com as ferraduras dos imensos cascos. Seu primeiro golpe acertou o crânio de um cavalariço de Foxwood, que ficou estirado, sem vida, na lama. Diante disso, vários homens largaram seus porre tes e tentaram correr. Deixaram-se tomar pelo pânico e, em um instante, estavam cercados por todos os animais, que corriam atrás deles, dando voltas pelo pátio. Foram chifrados, chutados, mordidos, pisoteados. Não houve um animal na fazenda que não tenha se vingado à sua própria maneira. Até mesmo a gata, inesperadamente, pulou do telhado no ombro de um vaqueiro, cravando-lhe as unhas no pescoço, fazendo-o berrar horrivelmente. Assim que encontraram uma brecha, os homens ficaram aliviados de escapulir do pátio e sair em disparada até a estrada principal. E assim, menos de cinco minutos após sua inva são, batiam em retirada vergonhosamente pelo mesmo lu gar por onde entraram, com um bando de gansos grasnando atrás deles, bicando-os nas pernas por todo o caminho.

Todos os homens se foram, exceto um. De volta ao pátio, Sansão empurrava com a pata o cavalariço deitado na lama, tentando virá-lo. O sujeito não se mexia.

— Está morto – disse Sansão com tristeza. Não ti

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nha a intenção de matá-lo. Esqueci que estava com as ferraduras. Quem vai acreditar que não fiz de propósito?

— Sem sentimentalismos, camarada! – gritou Bo la-de-Neve, com os ferimentos ainda pingando sangue. Guerra é guerra. O único ser humano bom é aquele que está morto.

— Não quero tirar a vida de ninguém, nem mes mo vidas humanas, repetiu Sansão, com os olhos cheios de lágrimas.

— Onde está Mimosa? – perguntou alguém.

Ela, de fato, tinha sumido. Por um momento, fica ram todos alarmados; temiam que os homens a tivessem machucado de alguma forma ou até mesmo levado consi go. Por fim, no entanto, ela foi encontrada escondida em sua baia, com a cabeça enterrada no feno da manjedoura. Ela escapuliu assim que ouvira o disparo da espingarda. E, quando voltaram, depois de encontrá-la, descobriram que o cavalariço, que havia simplesmente desmaiado, já se recompora e fugira.

Os animais reuniram-se, então, extremamente agitados, e cada um contava sua própria versão da ba talha a plenos pulmões. Imediatamente, improvisaram uma comemoração da vitória. A bandeira foi hasteada e cantaram “Bichos da Inglaterra” inúmeras vezes, depois organizaram um funeral solene para a ovelha morta, plan tando uma muda de espinheiro branco sobre seu túmulo. Bola-de-Neve falou algumas palavras ao lado do túmulo,

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enfatizando a necessidade de todos os animais estarem prontos a morrer pela Fazenda dos Bichos, se necessário.

Os animais decidiram unanimemente criar uma condecoração militar, “Herói Animal, Primeira Classe”, que foi conferida imediatamente a Bola-de-Neve e Sansão. Era uma medalha de latão (na verdade, antigos adornos dos arreios dos cavalos, encontrados no depósito) que deveria ser usada nos domingos e feriados. Criou-se tam bém a “Herói Animal, Segunda Classe”, que foi conferida postumamente à ovelha morta.

Discutiu-se ostensivamente qual nome deveria ser dado à batalha. No fim, foi nomeada “Batalha do Es tábulo”, já que foi ali que a emboscada surgiu. Acharam a espingarda do Sr. Jones no meio da lama e era de conhe cimento de todos que havia um suprimento de munição na sede. Ficou decidido, então, que a arma seria colocada ao pé do mastro da bandeira, como uma peça de artilha ria, e que seria disparada duas vezes por ano – a primeira no dia 12 de outubro, no aniversário da Batalha do Es tábulo, e a outra no dia do solstício de verão, aniversário da Rebelião.

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capÍtulo 5

Com a chegada do inverno, Mimosa tornava-se mais e mais inconveniente. Atrasava-se para o trabalho todas as manhãs, com a desculpa de que tinha perdido a hora, e reclamava de dores misteriosas, apesar de seu apetite continuar excelente. Tudo era pretexto para que ela fugisse do trabalho e fosse até a lagoa, onde ficava pateticamente olhando para o próprio reflexo na água. Porém, havia também boatos de algo muito mais grave. Um dia, enquanto Mimosa entrava despreocupada no pátio, olhando para sua longa cauda e mascando um talo de feno, Quitéria puxou-a para um canto.

— Mimosa, disse ela, tenho algo muito sério para lhe falar. Hoje de manhã, vi você olhando através da cerca viva que separa a Fazenda dos Bichos de Foxwood. Um dos homens do Sr. Pilkington estava do outro lado da cerca. E – eu estava bem longe, mas tenho quase certeza do que vi – ele conversava com você e você deixava-lhe acariciar seu nariz. O que significa isso, Mimosa?

— Ele não fez! Não estava! Não é verdade! – gritou Mimosa, empinando o corpo e escavando a terra.

— Mimosa! Olhe para mim. Você me dá sua palavra de honra que aquele homem não acariciava seu nariz?

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— Não é verdade! – repetiu Mimosa, sem olhar Qui téria nos olhos e, no instante seguinte, virou-se e cavalgou para o campo.

Quitéria teve uma ideia. Sem dizer nada para os outros, ela foi até a baia de Mimosa e revirou a palha com a pata. Escondido sob a palha havia um punhado de torrões de açúcar e vários laços de diferentes cores.

Três dias depois, Mimosa desapareceu. Por sema nas, ninguém sabia de seu paradeiro, até que os pombos noticiaram que a tinham visto do outro lado de Willingdon. Estava atrelada a uma bonita charrete pintada de preto e vermelho, em frente a um bar. Um homem de rosto redon do e vermelho com calça xadrez e polainas, que parecia o dono do estabelecimento, acariciava seu nariz e dava-lhe açúcar. Seu pelo havia sido tosado recentemente e ela usava um laço vermelho na crina. Parecia estar muito contente, disseram os pombos. Nenhum dos animais falou novamente de Mimosa.

Em janeiro, o clima piorou terrivelmente. A terra parecia dura como ferro e nada podia ser feito nos cam pos. Muitas reuniões ocorreram no celeiro principal e os porcos puseram-se a planejar o trabalho da próxima esta ção. Ficou acertado que os porcos, definitivamente mais inteligentes que os outros animais, decidiriam todas as questões relativas à direção da fazenda, mesmo que suas decisões tivessem que ser ratificadas por maioria de votos. Esse acordo teria funcionado muito bem, não fossem as disputas entre Bola-de-Neve e Napoleão. Eles discorda vam em todos os pontos em que era possível discordar.

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Se um deles sugeria plantar cevada em uma área maior, o outro certamente pediria uma área maior para aveia, e se um afirmava que esse ou aquele terreno era apropriado para o plantio de repolho, o outro declararia que o local não servia para nada além de criar raízes. Cada um deles tinha seus seguidores e havia alguns debates violentos. Nas Reuniões, geralmente Bola-de-Neve conquistava a maioria com seus discursos brilhantes, mas Napoleão era melhor em reunir votos durante os intervalos. Ele fazia muito sucesso com as ovelhas. Ultimamente, elas adquiriram o hábito de balir “Quatro pernas, ruim, duas pernas, bom” a qualquer momento, interrompendo a Reunião nas horas mais impróprias. Começaram a perceber especial tendência a irromper seu “Quatro pernas, ruim, duas pernas, bom” em momentos cruciais dos discursos de Bola-de-Neve. Ele havia estudado profundamente alguns números an tigos da revista O Agropecuário que encontrara na sede e tinha vários planos de inovações e melhorias. Falava com propriedade sobre drenagem, silagem e fertilizantes, e elaborara um complicado esquema por meio do qual os animais depositariam o esterco diretamente nos campos, em um ponto diferente a cada dia, para evitar ter trabalho com o transporte. Napoleão não tinha planos próprios, mas afirmava calmamente que os esquemas de Bola-de-Neve não dariam em nada, parecendo ganhar tempo. De todas as divergências entre os dois, nenhuma foi tão séria quanto a do moinho de vento.

Não muito longe dos galpões, no grande pasto, havia uma pequena colina que era o ponto mais alto da fazenda.

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Depois de inspecionar o terreno, Bola-de-Neve declarou que era o lugar perfeito para um moinho de vento, que poderia movimentar um dínamo e fornecer energia elé trica para a fazenda. Assim, as baias teriam iluminação e aquecimento no inverno e haveria força suficiente para uma serra circular, uma debulhadora, uma cortadora de beterraba para forragem e uma ordenhadeira elétrica. Os animais nunca tinham ouvido falar de nada do tipo antes (já que a fazenda era antiquada e seu maquinário era bastante rudimentar) e ouviam espantados enquanto Bola-de-Neve evocava imagens de máquinas fantásti cas que fariam todo o trabalho enquanto eles pastavam calmamente nos campos ou aprimoravam a mente com leituras e discussões.

Em poucas semanas, os planos de Bola-de-Neve para o moinho de vento estavam finalizados. Os detalhes mecânicos foram retirados, em sua maioria, de três livros que pertenceram ao Sr. Jones – Mil Coisas Úteis para Sua Casa , Seja Seu Próprio Pedreiro e Eletricidade para Prin cipiantes . Bola-de-Neve usou como ateliê um galpão que já tinha sido usado como incubadora, com um piso de madeira lisinho, perfeito para se desenhar. Ficava tran cado ali por horas a fio. Com os livros mantidos abertos sob o peso de uma pedra e com um pedaço de giz entre os dedos, ele movia-se rapidamente para cima e para baixo, desenhando linhas sem parar e soltando guinchos entu siasmados. Pouco a pouco os desenhos transformaram-se em um complexo emaranhado de manivelas e engrena gens, cobrindo mais da metade do piso, e que os animais

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achavam completamente indecifrável, mas definitivamente impressionante. Todos vinham dar uma olhada nos de senhos de Bola-de-Neve pelo menos uma vez por dia. Até mesmo as galinhas e os patos, que penavam para não pisar nas marcas de giz. Apenas Napoleão não demonstrava interesse. Anunciara ser contra o moinho de vento desde o início. Um dia, no entanto, apareceu inesperadamente para examinar os desenhos. Andou a passos fortes por todo o galpão, examinou de perto cada detalhe, fungou uma ou duas vezes e ficou contemplando-os de soslaio por um mo mento; então, subitamente, levantou uma perna e urinou em todo o projeto, saindo sem pronunciar uma só palavra.

Toda a fazenda estava profundamente dividida em relação ao moinho. Bola-de-Neve não negava que construí -lo seria difícil. Pedras deveriam ser carregadas e empilha das para formar as paredes, então precisariam construir as pás e, depois, necessitariam de cabos e dínamos (como obteriam essas coisas, Bola-de-Neve não dizia). Mas ele insistia que poderia ser finalizado em um ano. E, depois disso, declarava ele, poupariam tanto trabalho que os animais não precisariam trabalhar mais que três dias por semana. Napoleão, por outro lado, argumentava que o que mais precisavam no momento era aumentar a produção de comida e que, se perdessem tempo com o moinho de vento, iriam todos morrer de fome. Os animais dividiram-se em dois grupos sob os slogans “Vote em Bola-de-Neve pela semana de três dias” e “Vote em Napoleão pela manjedoura cheia”. Benjamim era o único animal que não se juntou a nenhum grupo. Recusava-se a acreditar que teriam mais

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comida ou que o moinho de vento pouparia trabalho. Com o moinho de vento ou sem, dizia ele, a vida ia continuar como sempre, ruim.

Além das disputas sobre o moinho, havia ainda a questão da defesa da fazenda. Todos sabiam que, apesar dos seres humanos terem sido derrotados na Batalha do Estábulo, eles poderiam tentar reaver a fazenda e resta belecer o Sr. Jones outra vez, de forma mais organizada. Tinham mais razões ainda para fazê-lo, pois a notícia de sua derrota espalhou-se pela região e tornou os animais das fazendas vizinhas mais difíceis de controlar do que nunca. Como sempre, Bola-de-Neve e Napoleão discor davam. Para Napoleão, os animais deveriam obter armas de fogo e aprender a usá-las. Para Bola-de-Neve, deveriam enviar cada vez mais pombos para incitar a rebelião entre os animais das outras fazendas. Enquanto um dizia que, se eles não conseguissem se defender sozinhos, acabariam sendo derrotados, o outro argumentava que, se houvesse rebeliões por todo lado, eles não precisariam se defender. Os animais ouviam Napoleão primeiro, depois Bola-de -Neve, e não conseguiam decidir quem estava com a razão; na verdade, eles sempre concordavam com quem estava falando no momento.

Finalmente chegou o dia em que o plano de Bola-de-Neve ficou pronto. Na Reunião do domingo seguinte a questão de começar ou não a construção do moinho de vento seria colocada em votação. Quando os animais se reuniram no estábulo grande, Bola-de-Neve levantou-se e, apesar de interrompido ocasionalmente pelos balidos

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das ovelhas, apresentou suas razões para defender a cons trução do moinho. Napoleão levantou-se para a réplica. Disse muito calmamente que o moinho de vento não fa zia sentido, recomendava que ninguém votasse por sua construção e sentou-se rapidamente; falara por meros 30 segundos e parecia indiferente ao efeito de suas palavras. Bola-de-Neve, então, levantou-se, ordenou que as ove lhas – que começavam a balir novamente – se calassem e iniciou um apelo emocionado em favor do moinho de vento. Até o momento as opiniões dos animais estavam divididas igualmente, mas, em um instante, a eloquência de Bola-de-Neve convencera a todos. Com frases radiantes, ele pintou um retrato do que seria a Fazenda dos Bichos quando o trabalho sórdido fosse aliviado das costas dos animais. Sua imaginação agora ia muito além das serras e cortadores. A eletricidade, dizia ele, poderia operar de bulhadoras, arados, rastelos, rolos compressores, ceifeiras e atadeiras, além de fornecer luz, água quente ou fria e aquecedores para cada baia. Quando terminou de falar, não havia dúvidas sobre quem ganharia a votação. Mas, nesse exato instante, Napoleão levantou-se e, olhando enviesado para Bola-de-Neve de uma forma muito estranha, emitiu um guincho estridente que ninguém nunca ouvira antes. Nesse instante, um som de latidos terrível soou do lado de fora e nove cães enormes com coleiras de la tão cravejadas surgiram no celeiro aos pulos. Jogaram-se imediatamente sobre Bola-de-Neve, que saltou de onde estava, escapando por pouco de suas mandíbulas. Em um segundo, saiu pela porta, com os cães em seu encalço.

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Surpresos e apavorados demais para falar, todos os animais amontoaram-se na porta para observar a perseguição. Bola-de-Neve corria pelos campos que levavam à estrada. Corria como só um porco consegue correr, mas os cães aproximavam-se rapidamente. De repente escorregou, e parecia certo que iriam alcançá-lo. Então, levantou-se novamente, correndo mais do que nunca, mas os cães estavam cada vez mais perto. Um deles quase chegou a abocanhar a cauda de Bola-de-Neve, mas ele conseguiu encolhê-la a tempo. Então, deu uma última disparada e, com alguns centímetros de vantagem, escorregou em um buraco na cerca viva e nunca mais foi visto.

Calados e aterrorizados, os animais rastejaram de volta ao celeiro. Em um instante, os cães voltaram pulando. No início, ninguém conseguia imaginar de onde aquelas criaturas tinham surgido, mas o problema foi logo resolvido: tratava-se dos filhotes que Napoleão tirara de suas mães e criado sozinho. Ainda não totalmente crescidos, já eram enormes e pareciam tão ferozes quanto lobos. Ficaram perto de Napoleão. Todos notaram que eles balançavam as caudas para ele da mesma forma como outros cães costumavam fazer para o Sr. Jones.

Napoleão, seguido pelos cães, subiu no estrado onde o velho Major havia pronunciado seu discurso. Anunciou que, a partir de então, as Reuniões aos domingos de manhã deixariam de existir. Eram desnecessárias, disse ele, e um desperdício de tempo. No futuro, todas as questões relativas ao trabalho na fazenda seriam resolvidas por um comitê especial de porcos, presididos por ele. Esse

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comitê se reuniria em particular e depois comunicaria as decisões aos outros. Os animais ainda se agrupariam aos domingos de manhã para hastear a bandeira, cantar Bichos da Inglaterra e receber as ordens da semana; mas não haveria mais debates.

Apesar do choque da expulsão de Bola-de-Neve, os animais ficaram transtornados com esse anúncio. Muitos deles teriam protestado se pudessem encontrar os argu mentos adequados. Até mesmo Sansão ficou um pouco apreensivo. Ele retraiu as orelhas, balançou a crina várias vezes e tentou organizar seus pensamentos; mas, por fim, não conseguiu pensar em nada para dizer. Alguns dos porcos, no entanto, eram mais articulados. Quatro jovens leitões na fileira da frente pronunciaram guinchos esga niçados de protesto, levantaram-se e começaram a falar de uma só vez. Subitamente os cães sentados em volta de Napoleão, rosnaram profunda e ameaçadoramente, e os porcos calaram-se e sentaram novamente. Então, as ove lhas irromperam em um balido enorme “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim!”, que continuou por quase quinze minutos, pondo fim a qualquer possibilidade de discussão.

Mais tarde, Garganta foi enviado por toda a fazenda para explicar a nova situação aos demais.

— Camaradas, disse ele, acredito que todos aqui valorizem o sacrifício que o Camarada Napoleão tem feito acumulando em suas costas mais esse trabalho. Não pensem vocês, camaradas, que a liderança é um prazer! Pelo contrá rio, é uma responsabilidade profunda e pesada. Ninguém acredita com mais convicção que o Camarada Napoleão

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que todos os animais são iguais. Ele ficaria felicíssimo em deixá-los tomar suas decisões sozinhos. Mas, às vezes, vocês poderiam adotar decisões erradas, e onde iríamos parar? Imaginem se vocês decidissem seguir Bola-de-Neve, com suas alucinações de moinhos de ventos – Bola-de-Neve, que, como agora sabemos, não passava de um criminoso?

— Ele lutou bravamente na Batalha do Estábulo, alguém disse.

— Bravura não é suficiente, disse Garganta. Leal dade e obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito que chegará um momento em que perceberemos que o papel de Bola-de-Neve foi muito exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina rígida! Esse é o lema para nossos dias. Um passo em falso e nossos inimigos cairão sobre nós. Certamente, camaradas, vocês não querem Jones de volta?

Mais uma vez esse argumento era incontestável. Claro que os animais não queriam Jones de volta; se manter os debates aos domingos de manhã poderia trazê-lo de volta, então os debates deveriam parar. Sansão, que agora tivera tempo de refletir, deu voz ao sentimento geral: — Se assim diz o Camarada Napoleão, deve ter razão. E a partir daquele instante, adotou a máxima, “Napoleão sempre tem razão” a seu lema pessoal “Trabalharei ainda mais”.

A essa altura, o clima já melhorara e o cultivo da primavera começou. O galpão onde Bola-de-Neve dese nhara seus planos para o moinho de vento foi lacrado, e todos concluíram que os desenhos haviam sido apagados.

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Todos os domingos, às 10 horas da manhã, os animais reuniam-se no celeiro grande para receber as ordens da semana. O crânio do velho Major, completamente limpo, foi desenterrado do pomar e colocado sobre um cepo aos pés do mastro da bandeira, ao lado da espingarda. Depois do hasteamento da bandeira, os animais eram obrigados a desfilar em frente ao crânio em reverência antes de entrar no celeiro. Agora não se sentavam todos juntos como antes. Napoleão, com Garganta e outro porco chamado Mínimo, que tinha um dom extraordinário para compor canções e poemas, sentavam-se à frente, sobre o estrado, com os nove cães formando um semicírculo ao seu redor, e os outros porcos sentados logo atrás. O resto dos animais ficava em frente, no chão do celeiro. Napoleão lia as ordens da semana com um brusco estilo militar e, depois de cantar Bichos da Inglaterra uma única vez, todos estavam dispensados. No terceiro domingo depois da expulsão de Bola-de-Neve, os animais foram pegos de surpresa ao ouvir Napoleão anunciar que, afinal de contas, o moinho de vento seria construído. Não deu nenhuma explicação por ter mudado de ideia, apenas avisou os animais que essa tarefa suplementar resultaria em trabalho árduo, e que poderia até mesmo ser necessário reduzir suas rações. O projeto, no entanto, estava pronto, até o último detalhe. Um comitê especial de porcos tinha trabalhado neles já havia três semanas. A construção do moinho, com várias outras melhorias, deveria levar dois anos.

Naquela noite, Garganta explicou aos outros ani mais, em particular, que Napoleão nunca se opusera real

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mente ao moinho de vento. Pelo contrário, era ele quem o defendera no início, e o projeto que Bola-de-Neve desenhara no galpão da incubadora tinha sido roubado dos papéis de Napoleão. O moinho era, na verdade, criação de Napoleão. Por que, então – alguém perguntou –, ele o tinha contestado tanto? Nesse momento, Garganta pareceu bastante dissi mulado. Isso, disse ele, era parte da astúcia do Camarada Napoleão. Ele pareceu opor-se ao moinho simplesmente como uma manobra para livrar-se de Bola-de-Neve, que era um indivíduo perigoso e uma má influência. Agora que Bola-de-Neve estava fora do caminho, o projeto poderia continuar sem a sua interferência. Isso, afirmou Garganta, era algo chamado tática. Ele repetiu algumas vezes, “Tá tica, camaradas, tática!”, saltitando, sacudindo a cauda e rindo animadamente. Os animais não tinham certeza do que aquilo significava, mas Garganta falava de forma tão persuasiva – e os três cães que, por acaso estavam ao seu lado, rosnaram de forma tão ameaçadora – que aceitaram sua explicação sem mais questionamentos.

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capÍtulo 6

Durante todo o ano os animais trabalharam como escravos. Mas estavam felizes com seu trabalho; não ressentiam nenhum esforço ou sacrifício, cientes de que trabalhavam em benefício da própria espécie, deles e dos que os sucederiam, e não para um punhado de seres humanos preguiçosos e aproveitadores.

Trabalharam sessenta horas semanais por toda a primavera e o verão e, em agosto, Napoleão anunciou que o trabalho se estenderia aos domingos à tarde. Essa jornada seria estritamente voluntária, mas os animais que decidissem por não acatá-la teriam sua ração cortada pela metade. Mesmo assim, era preciso deixar certas tarefas por fazer. A colheita foi menos produtiva que no ano anterior e dois canteiros não puderam ser semeados no início do verão porque não foram arados a tempo. Era muito fácil prever que o inverno seguinte seria difícil.

O moinho de vento apresentava dificuldades ines peradas. Havia uma pedreira de calcário muito boa na fazenda, e encontraram areia e cimento em um dos ane xos à sede, então todos os materiais para a construção estavam à mão. Mas um dos problemas que os animais não conseguiam resolver era como quebrar as pedras em pedaços do tamanho ideal. Não parecia haver uma maneira

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de fazê-lo sem o auxílio de picaretas e pés de cabra, que nenhum animal era capaz de usar, já que nenhum deles conseguia equilibrar-se nas patas traseiras. Foi só depois de semanas de esforços inúteis que a solução ideal ocorreu a alguém – usar a força da gravidade. Rochas imensas, grandes demais para serem usadas, jaziam por todo o leito da pedreira. Os animais amarraram cordas ao redor delas e, todos juntos, vacas, cavalos, ovelhas, qualquer um que pudesse segurar um pedaço da corda – até mesmo os porcos juntavam-se a eles nos momentos críticos – arrastavam-nas com uma lentidão desesperadora até o cimo da pedreira, de cuja borda derrubavam-nas para despedaçarem-se lá embaixo. Transportar as rochas depois de fragmentadas era comparativamente simples. Os cavalos carregavam-nas em carroças, as ovelhas arrastavam blocos um a um, até mesmo Maricota e Benjamim atrelaram-se a uma charrete antiga e fizeram sua parte. Até o fim do verão, já tinham um estoque suficiente de pedras e a construção começou, sob a supervisão dos porcos.

No entanto, o processo era demorado e trabalho so. Geralmente, era preciso um dia inteiro de esforços exaustivos para arrastar uma única rocha até o cimo da pedreira e, depois de ser atirada pela borda, não chegava a quebrar. Nada poderia ser feito sem Sansão, cuja força parecia igual à de todos os outros animais juntos. Quando a rocha começava a escorregar e os animais gritavam de desespero quando se viam arrastados colina abaixo, era sempre Sansão quem se agarrava à corda e parava a pe dra. Vê-lo escalar a ladeira com dificuldade, centímetro

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a centímetro, a respiração ofegante, as pontas dos cascos agarrando-se ao chão e as espáduas molhadas de suor, enchia a todos de admiração. Às vezes, Quitéria adver tia-lhe a não se esforçar demais, mas Sansão nunca lhe dava ouvidos. Seus dois lemas, “Trabalharei ainda mais” e “Napoleão sempre tem razão”, pareciam a resposta para todos os problemas. Agora, ele combinara com o galo de acordá-lo quarenta e cinco minutos mais cedo de manhã, em vez de meia hora. E nos momentos de folga, que eram raros ultimamente, ele ia sozinho para a pedreira, recolhia uma carga de pedras quebradas e arrastava-a até o local do moinho sem ajuda.

Os animais não passaram tantas dificuldades du rante aquele verão, apesar dos rigores do trabalho. Se não havia mais comida disponível do que à época de Jones, tampouco havia menos. A vantagem de alimentar apenas a si próprios, sem ter de sustentar mais cinco seres huma nos esbanjadores, era tão grande que precisariam passar por muitos infortúnios para compensá-la. E, de muitas maneiras, seus métodos de trabalho eram muito mais eficientes e econômicos. Algumas tarefas como a retirada das ervas daninhas, por exemplo, eram feitas com um rigor impossível para os seres humanos. E, mais uma vez, como nenhum animal era dado a furtos, era desnecessário sepa rar a lavoura do pasto, o que poupava muito trabalho na manutenção das cercas e portões. Mesmo assim, quando o verão chegava ao fim, começaram a sentir certa escassez de produtos. Precisavam de querosene, pregos, cordas, biscoitos para cachorro e ferro para as ferraduras, e nada

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disso poderia ser produzido na fazenda. Logo, também deram pela falta de sementes e fertilizante, além de várias ferramentas e, por fim, do maquinário para o moinho. Como conseguiriam essas coisas, ninguém podia imaginar.

Um domingo de manhã, quando os animais se reuniram para receber suas ordens, Napoleão anunciou que decidira adotar uma nova política. A partir daquele momento, a Fazenda dos Bichos passaria a fazer negócios com as fazendas vizinhas: não, obviamente, com objetivos comerciais, mas simplesmente para obter certos produ tos de que precisavam com urgência. As necessidades do moinho eram mais importantes que todo o resto, disse ele. Estava, portanto, tratando da venda de uma pilha de feno e de parte da colheita de trigo deste ano e, mais tarde, se precisassem de mais dinheiro, deveriam vender alguns ovos, para os quais sempre havia procura em Willingdon. As galinhas, disse Napoleão, deveriam aceitar esse sacrifício como sua contribuição especial para a construção do moinho de vento.

Mais uma vez os animais sentiram uma certa in quietação. Nunca lidar com seres humanos, nunca lidar com comércio, nunca usar dinheiro – essas não eram algumas das antigas resoluções que haviam aprovado naquela primeira Reunião histórica depois que Jones fora expulso? Todos os animais lembravam-se de ter votado tais resoluções: ou, pelo menos, achavam que se lembravam. Os quatro leitões jovens que tinham protestado quando Napoleão abolira as Reuniões levantaram suas vozes timidamente, mas foram prontamente silenciados pelo horrível rosnado

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dos cães. Então, como sempre, as ovelhas irromperam em “Quatro pernas, bom, duas pernas, ruim!” e o constran gimento momentâneo foi acalmado. Por fim, Napoleão levantou a pata pedindo silêncio e anunciou que já havia tomado as devidas providências. Não haveria necessidade que os outros animais entrassem em contato com seres humanos, o que claramente seria bastante indesejável. Ele pretendia tomar para si mais esse fardo. Um certo Sr. Whymper, um advogado que vivia em Willingdon, concordara em atuar como intermediário entre a Fazenda dos Bichos e o mundo exterior e visitaria a fazenda todas as segundas de manhã para receber suas instruções. Napoleão terminou seu discurso com o costumeiro grito de “Vida longa à Fazenda dos Bichos!” e, depois de cantarem Bichos da Inglaterra, os animais foram dispensados.

Logo depois, Garganta percorreu a fazenda para tranquilizar os animais. Assegurou-lhes que as resoluções contra o comércio e o uso do dinheiro nunca foram votadas, nem sequer foram apresentadas. Tratava-se de pura imaginação, provavelmente fruto das mentiras inventadas por Bola-de-Neve. Alguns animais ainda continuavam em dúvida, ao que Garganta, muito esperto, perguntou-lhes: “Vocês têm certeza de que não é algo que sonharam, ca maradas? Vocês têm algum registro dessas resoluções? Estão escritas em algum lugar?”. E, como era verdade que nada do tipo estava escrito em lugar nenhum, os animais acabaram por se convencer de que tinham se enganado.

Como combinado, o Sr. Whymper visitava a fazenda toda segunda-feira. Era um homenzinho dissimulado com

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suíças no rosto, um advogado com poucos clientes, mas esperto o bastante para notar antes de qualquer um que a Fazenda dos Bichos precisaria de um representante e que as comissões valeriam a pena. Os animais observavam suas idas e vindas com uma certa apreensão e evitavam-no tanto quanto possível. Ainda assim, ver Napoleão, sobre as qua tro patas, dando ordens para Whymper, que se mantinha em pé sobre duas pernas, dava-lhes orgulho e fazia com que aceitassem, em parte, a nova situação. Suas relações com os humanos agora eram bem diferentes de antes. Os seres humanos não odiavam menos a Fazenda dos Bichos agora que prosperavam; odiavam-na ainda mais. Cada ser humano acreditava piamente que a fazenda iria à falência mais cedo ou mais tarde e, acima de tudo, que o moinho de vento seria um fracasso. Eles reuniam-se nos bares para provar uns aos outros, por meio de diagramas, que o moinho de vento estava destinado a cair ou, caso ficasse em pé, jamais funcionaria. Mesmo assim, contra a vontade, haviam desenvolvido um certo respeito pela eficiência com que os animais administravam os próprios negócios. Um sintoma disso era que começaram a chamar a Fazenda dos Bichos pelo nome apropriado e pararam de fingir que ainda era chamada Fazenda do Solar. Também pararam de defender Jones, que desistira da ideia de reaver sua fazenda e fora viver em outra parte do condado. A não ser através de Whymper, não havia ainda contato entre a Fazenda dos Bichos e o mundo externo, mas já circulavam boatos de que Napoleão entraria em um acordo de negócios, ora com o Sr. Pilkington, da fazenda Foxwood, ora com o Sr.

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Frederick, da Pinchfield – mas nunca, note-se bem, com ambos simultaneamente.

Foi mais ou menos nessa época que os porcos su bitamente se mudaram para a sede da fazenda e lá se ins talaram. Uma vez mais os animais pareciam lembrar-se de uma resolução contra morar na sede que havia sido decidida nos primórdios da revolução e, uma vez mais, Garganta conseguiu convencê-los de que não era esse o caso. Era absolutamente necessário, disse ele, que os porcos – os intelectuais da fazenda – tivessem um lugar tranquilo para trabalhar. Também era mais apropriado à dignidade do Líder (já que ultimamente ele acostumara-se a falar de Napoleão usando o título de “Líder”) morar em uma casa, em vez de um simples chiqueiro. De qualquer forma, alguns dos animais ficaram perturbados ao ouvir que os porcos não apenas comiam suas refeições na cozinha e usavam a sala de estar como área de recreação, mas também dormiam nas camas. Sansão não deu muita importância, enunciando “Napoleão sempre tem razão!”, mas Quitéria, que acreditava lembrar-se de uma regra clara contra camas, foi até o fundo do celeiro e tentou decifrar os Sete Mandamentos escritos ali. Não conseguindo ler mais que as letras separadas, foi buscar Maricota.

— Maricota, disse ela, leia para mim o Quarto Mandamento. Ele não fala algo sobre nunca dormir em uma cama?

Com alguma dificuldade, Maricota recitou.

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— Está dizendo, “Nenhum animal dormirá em uma cama com lençóis” – anunciou finalmente.

Curiosamente, Quitéria não se lembrava que o Quarto Mandamento mencionasse lençóis; mas, como estava ali na parede, deveria ter sido assim. E Garganta, que passava por ali naquele instante, acompanhado por dois ou três cães, pôde dar as devidas explicações à questão.

— Então chegou aos seus ouvidos, camaradas – disse ele – que, agora, nós porcos estamos dormindo nas camas da sede? E por que não? Certamente vocês não imagina vam que houvesse uma regra contra camas! Uma cama é simplesmente um lugar para dormir. Um palheiro em uma baia é uma cama, se olharmos bem. A regra é contra lençóis, que é uma invenção humana. Nós removemos os lençóis das camas da sede e dormimos entre os cobertores. E são camas muito confortáveis! Mas não mais confortáveis do que nos é necessário, posso afirmar-lhes, camaradas, com todo o trabalho intelectual que temos tido ultima mente. Vocês não nos privariam de nosso descanso, não é, camaradas? Vocês não querem que fiquemos cansados demais para realizar nossas obrigações, não é? Certamente nenhum de vocês quer Jones de volta!

Os animais asseguraram-lhe imediatamente que não, e não se falou mais nada a respeito dos porcos dor mindo nas camas da sede da fazenda. E quando, alguns dias depois, foi anunciado que a partir de então os porcos acordariam uma hora mais tarde que os outros animais, mais uma vez, ninguém reclamou.

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Quando o outono chegou, os animais estavam can sados, mas felizes. Tiveram um ano difícil e, com a venda de parte do feno e do milho, o estoque de comida para o inverno não era tão abundante, mas o moinho compensava tudo. Já haviam terminado metade da construção. Depois da colheita o clima ficaria claro e seco por um período e os animais aproveitaram para trabalhar com mais afinco do que nunca, acreditando que valeria a pena arrastarem-se para cima e para baixo com blocos de rocha durante o dia todo se conseguissem subir as paredes mais meio metro. Sansão chegava até a sair à noite e trabalhar por uma hora ou duas sozinho, à luz da lua cheia. Nos seus momen tos livres, os animais caminhavam ao redor do moinho parcialmente construído, admirando a força e a vertica lidade das paredes, maravilhados por terem conseguido construir algo tão imponente. Apenas o velho Benjamim recusava-se a demonstrar entusiasmo com o moinho, emitindo, como sempre, seu misterioso comentário sobre a longevidade dos burros.

Chegou o mês de novembro, com furiosos ventos sudoeste. A construção teve que ser interrompida, pois estava úmido demais para misturar o cimento. Por fim, houve uma noite em que o vendaval foi tão forte que a fundação das construções da fazenda chegou a balançar e inúmeras telhas foram arrancadas do telhado do celeiro. As galinhas acordaram cacarejando de terror porque todas tinham sonhado ao mesmo tempo com um tiro de espin garda sendo disparado ao longe. De manhã, os animais, ao sair de suas baias, descobriram que o mastro da bandeira

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havia sido derrubado e que um olmeiro no fundo do pomar havia sido removido como um rabanete. Mal acabaram de notar os estragos quando um grito de desespero saiu da garganta de cada um deles. Uma visão terrível chegava-lhes aos olhos. O moinho de vento estava em ruínas.

De uma só vez, correram até o local. Napoleão, que raramente fazia algo além de caminhar, disparou na frente de todos. Sim, ali jazia o fruto de seus esforços, reduzido às fundações, as pedras que haviam quebrado e carregado tão dificilmente espalhadas para todo lado. A princípio impossibilitados de falar, encaravam com tristeza os escombros. Napoleão andava para cima e para baixo em silêncio, ocasionalmente fungando o chão. Seu rabo tinha ficado tenso e contraía de um lado para o outro, um sinal de intensa atividade mental. De repente parou, como se tivesse tomado uma decisão.

— Camaradas – disse calmamente – vocês sabem quem é responsável por isto? Vocês sabem qual é o nosso inimigo que se esgueirou à noite e destruiu o moinho de vento? BOLA-DE-NEVE! – Sua voz subitamente rugiu como um trovão. — Foi Bola-de-Neve quem fez isto! Por pura perversidade, com o intento de atrasar nossos planos e vingar-se de sua vergonhosa expulsão, esse traidor arrastou-se até aqui sob o manto da noite e destruiu nosso trabalho de quase um ano. Camaradas, aqui e agora, eu proclamo a sentença de morte para Bola-de-Neve. A condecoração “Herói Animal, Segunda Classe” e meio alqueire de maçãs para o animal que entregá-lo à justiça. Um alqueire inteiro para quem capturá-lo com vida!

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Os animais ficaram extremamente chocados ao saber que Bola-de-Neve poderia ser o culpado de tal ato. Houve um clamor de indignação e todos começaram a pensar em formas de capturar Bola-de-Neve se ele retornasse algum dia. Quase imediatamente, descobriram as pegadas de um porco na grama, próximo à colina. Só era possível notá-las por alguns metros, mas pareciam levar a um buraco na sebe. Napoleão fungou profundamente naquela direção e proclamou que eram as pegadas de Bola-de-Neve. Afirmou acreditar que, provavelmente, ele tinha vindo pelos lados da fazenda Foxwood. — Sem mais demora, camaradas! – gritou Napoleão quando as pegadas tinham sido examinadas. — Há trabalho a fazer. Hoje mesmo começamos a reconstruir o moinho e trabalharemos nele durante todo o inverno, chova ou faça sol. Vamos ensinar a esse traidor miserável que ele não pode desfazer nosso trabalho tão facilmente. Lembrem-se, camaradas, não pode haver nenhuma mu dança nos nossos planos: eles devem ser levados a cabo pontualmente. Avante, camaradas! Vida longa ao moinho de vento! Vida longa à Fazenda dos Bichos!

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capÍtulo 7

Foi um inverno implacável. À tempestade, seguiu-se granizo e neve e, depois, gelo, que só foi derreter no meio do mês de fevereiro. Os animais continuaram a reconstrução do moinho da melhor maneira possível, conscientes de que o mundo exterior estava à espreita e de que os invejosos seres humanos se alegrariam e triunfariam caso não terminassem sua construção a tempo.

Por pura maldade, os seres humanos fingiam não acreditar que fora Bola-de-Neve o responsável pela destrui ção do moinho: diziam que ele caíra porque suas paredes eram finas demais. Os animais sabiam que não era esse o caso. Mesmo assim, decidiram construir as paredes com o dobro da espessura anterior, o que significava reunir quantidades muito maiores de pedras. Por muito tempo, a pedreira ficou repleta de neve e nada podia ser feito. Com o tempo gélido e seco que se seguiu, foi possível voltar a trabalhar, mas era um trabalho cruel e os animais não con seguiam sentir-se tão esperançosos quanto antes. Estavam sempre com frio e, geralmente, também com fome. Apenas Sansão e Quitéria não desanimavam nunca. Garganta pro feria excelentes discursos a respeito da alegria de servir e da dignidade do trabalho, mas os outros sentiam-se mais

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inspirados pela força de Sansão e por seu infalível lema “Trabalharei ainda mais!”.

No mês de janeiro, faltou comida. A ração de mi lho foi drasticamente reduzida e foi anunciado que uma batata extra seria oferecida como compensação. Então descobriram que a maior parte da colheita das batatas havia congelado quando empilhadas, pois não haviam sido cobertas a tempo. Tornaram-se moles e desbotadas e só era possível comer algumas delas. Por dias e dias, os animais não tinham nada para comer além de joio e beterrabas forrageiras. A fome parecia rondar-lhes.

Era absolutamente necessário esconder esse fato do mundo exterior. Animados pelo colapso do moinho, os seres humanos inventavam novas mentiras sobre a Fazenda dos Bichos. Mais uma vez, comentava-se que todos os animais estavam morrendo de fome e doenças, que frequentemente brigavam entre si e que começavam a recorrer ao canibalismo e ao infanticídio. Napoleão sabia muito bem dos resultados negativos que sobreviriam se a verdade sobre a situação alimentar fosse conhecida, e deci diu fazer uso do Sr. Whymper para divulgar uma impressão contrária. Até então, os animais tinham pouco ou nenhum contato com Whymper em suas visitas semanais: agora, no entanto, alguns animais escolhidos – em sua maioria, ovelhas – seriam instruídos a comentar casualmente, ao alcance de seus ouvidos, que as rações haviam aumentado. Além disso, Napoleão ordenou que os cestos quase vazios do depósito fossem enchidos até perto da borda com areia, cobertos então com o que restava de grãos e farelo. Com

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uma desculpa qualquer, Whymper seria conduzido pelo depósito para dar uma olhadela nos cestos. Seria ludibriado e continuaria a relatar para o mundo exterior que não havia falta de comida na Fazenda dos Bichos.

No entanto, perto do fim de janeiro, ficou óbvia a necessidade de conseguir mais grãos em algum lugar. Ultimamente Napoleão quase nunca aparecia em públi co, passando todo o seu tempo dentro da sede, guardada por cães ferozes em cada porta. Quando ressurgia, era de maneira cerimoniosa, escoltado por seis cães que o acom panhavam de perto e rosnavam para qualquer um que se aproximasse demais. Não participava mais dos domingos de manhã, emitindo suas ordens por meio de um dos outros porcos, geralmente Garganta.

Certa manhã de domingo, Garganta anunciou que as galinhas deveriam entregar os ovos que tinham acabado de botar. Napoleão havia assinado, através de Whymper, um contrato de fornecimento de quatrocentos ovos se manais. O valor pago daria para grãos e farelo suficientes para manter a fazenda até a chegada do verão, quando as condições melhorassem.

Quando as galinhas ouviram isso, protestaram com grande espalhafato. Haviam sido avisadas antes que tal sacrifício poderia ser necessário, mas não acreditaram que aconteceria realmente. Estavam preparando a ninhada para a chocagem da primavera e argumentaram que tirar seus ovos agora seria um assassinato. Pela primeira vez desde a expulsão de Jones, acontecia algo parecido com uma rebelião. Lideradas por três jovens frangas da raça Minorca, as galinhas

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agiram com firmeza para contrariar a vontade de Napoleão. Voaram para as traves do telhado e botaram ali seus ovos, que se despedaçaram no chão. Napoleão agiu rápida e cruel mente. Ordenou o corte das rações das galinhas e decretou que qualquer animal que lhes oferecesse um grão de milho sequer seria punido com a morte. Os cães certificaram-se de que as ordens fossem cumpridas. Por cinco dias as galinhas resistiram, então renderam-se e voltaram para seus ninhos. Nove galinhas morreram nesse meio-tempo. Seus corpos foram enterrados no pomar e foi divulgado que haviam morrido de coccidiose. Whymper não soube nada a respeito desse episódio, os ovos foram entregues como combinado e um furgão aparecia toda semana para vir buscá-los.

Enquanto isso, não se sabia mais nada de Bola-de -Neve. Houve boatos de que ele se escondera em uma das fazendas vizinhas, Foxwood ou Pinchfield. Recentemente, as relações de Napoleão com os outros fazendeiros estavam um pouco melhores. Acontece que, no pátio, havia uma pilha de troncos fruto da derrubada de um bosque de faias há dez anos. Como estava seca, Whymper aconselhou Napoleão a vendê-la; tanto o Sr. Pilkington quanto o Sr. Frederick ansiavam por comprá-la. Napoleão hesitava entre os dois, sem se decidir. Percebeu-se que, sempre que estava a ponto de entrar em acordo com Frederick, surgia o boato de que Bola-de-Neve estava escondido em Foxwood, e quando tendia a fechar negócio com Pilkington, diziam que Bola-de-Neve estava em Pinchfield.

Subitamente, no início da primavera, descobriram algo alarmante: Bola-de-Neve estava frequentando a fazen

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da à noite, em segredo! Os animais ficaram tão perturba dos que mal conseguiam dormir em suas baias. Ouviu-se dizer que toda noite ele rastejava escondido na escuridão e cometia todo tipo de delito. Roubava o milho, derrubava os baldes de leite, quebrava os ovos, esmagava os canteiros de sementes, roía a casca das árvores frutíferas. Tornou-se um hábito atribuir tudo que acontecia de errado a Bola-de -Neve. Se uma janela quebrasse ou um ralo entupisse, com certeza alguém diria que Bola-de-Neve aparecera à noite e fizera o serviço; quando perderam a chave do depósito, toda a fazenda se convencera de que Bola-de-Neve a jogara no fundo do poço. Curiosamente, continuaram a acreditar nessa versão mesmo depois que a chave foi encontrada sob um saco de farelo. As vacas afirmaram unanimemente que Bola-de-Neve se arrastara até suas baias e as ordenhara enquanto dormiam. Os ratos, que tinham sido a causa de vários problemas durante o inverno, foram acusados de estarem em conluio com Bola-de-Neve.

Napoleão decretou que haveria uma investigação minuciosa a respeito das atividades de Bola-de-Neve. Com seus cães a tiracolo, ele iniciou uma cuidadosa inspeção dos galpões da fazenda, seguidos a uma distância respeitável pelos outros animais. A pequenos intervalos, Napoleão parava e fungava o chão em busca de sinais das pegadas de Bola-de-Neve, que ele afirmava detectar pelo cheiro. Fungou cada canto, no celeiro, no depósito, nos galinheiros, na horta, e achou rastros de Bola-de-Neve em quase todo lugar. Encostava o focinho no chão, cheirava profundamente várias vezes e exclamava, com uma voz

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terrível, — Bola-de-Neve! Ele esteve aqui! Posso cheirá-lo claramente! E, ao ouvir o nome “Bola-de-Neve”, todos os cães soltavam rosnados horripilantes e punham os caninos à mostra.

Os animais estavam completamente transtorna dos. Parecia-lhes que Bola-de-Neve era uma espécie de influência invisível, impregnando o ar ao redor deles e ameaçando-lhes com todo tipo de perigo. À noite, Garganta reuniu-os a todos e, com uma expressão alarmada no rosto, disse-lhes que tinha sérias notícias a relatar:

— Camaradas! – gritou Garganta, saltitando ner voso – Descobrimos algo horrível. Bola-de-Neve aliou-se a Frederick, da Fazenda Pinchfield, e está nesse momento conspirando para nos atacar e tomar nossa fazenda! Bola-de-Neve agirá como seu guia quando o ataque começar. Mas isso não é o pior. Pensávamos que a rebelião de Bola -de-Neve fora causada apenas por sua vaidade e ambição. Mas estávamos errados, camaradas. Vocês sabem qual foi a razão de verdade? Bola-de-Neve era um aliado de Jones desde o início! Foi seu agente secreto durante todo o tempo. Tudo está comprovado por documentos que ele deixou para trás e que só agora conseguimos descobrir. Para mim, isso explica muita coisa, camaradas. Não vimos com nossos próprios olhos como ele tentou – felizmente sem sucesso – nos derrotar e destruir na Batalha do Estábulo?

Os animais estavam abismados. Isso era uma mal dade muito maior do que a destruição do moinho. Mas foi preciso passar alguns minutos até que pudessem assimi lar o que tudo isso significava. Todos lembravam-se, ou

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julgavam lembrar-se, de como Bola-de-Neve avançara à frente deles na Batalha do Estábulo, de como ele os reu nira e encorajara a todo momento, sem parar nem por um instante mesmo quando as balas da espingarda de Jones laceraram seu dorso. A princípio, foi difícil entender como isso se encaixava com o fato de ele estar do lado de Jones. Até mesmo Sansão, que raramente fazia perguntas, estava confuso. Ele deitou-se, colocou as patas dianteiras sob o corpo, fechou os olhos e, com muito esforço, tentou ordenar seus pensamentos.

— Não acredito nisso – disse ele, Bola-de-Neve lutou bravamente na Batalha do Celeiro. Eu vi com meus próprios olhos. Não chegamos a condecorá-lo com o “Herói Animal, Primeira Classe” imediatamente depois?

— Esse foi nosso erro, camarada. Porque agora sabemos – está tudo escrito nos documentos secretos que encontramos – que, na verdade, ele estava tentando nos levar à derrota.

— Mas ele foi ferido, disse Sansão. — Nós o vimos todo ensanguentado.

— Isso era parte do acordo! – gritou Garganta. — O tiro de Jones apenas arranhou-o. Eu poderia mostrar-lhes tudo isso com sua própria letra, se vocês pudessem ler. O plano era Bola-de-Neve, no momento crucial, dar um sinal de retirada e deixar o terreno aberto para o inimigo. E ele quase conseguiu – posso dizer-lhes até, camaradas, que ele teria conseguido se não fosse pelo nosso heroico líder, Camarada Napoleão. Vocês não se recordam que, no exato

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instante em que Jones e seus homens tinham entrado no pátio, Bola-de-Neve subitamente virou-se e fugiu, seguido de vários animais? Tampouco não se recordam que foi nesse momento, quando o pânico se espalhava e tudo parecia perdido, que o Camarada Napoleão avançou à frente com um grito de “Morte à Humanidade!” e afundou os dentes na perna de Jones? Com certeza vocês se lembram disso, não é, camaradas? – exclamou Garganta, pulando de um lado para o outro.

Agora que Garganta tinha descrito a cena com tan tos detalhes, parecia aos animais que conseguiam recordar. De qualquer forma, lembraram-se que no momento crítico da batalha Bola-de-Neve virara-se para fugir. Mas Sansão continuava um pouco inquieto.

— Não acredito que Bola-de-Neve fosse um traidor desde o início, disse finalmente. — O que ele fez depois disso é diferente. Mas acredito que na Batalha do Estábulo ele era um bom camarada.

— Nosso Líder, Camarada Napoleão – anunciou Garganta, falando com lentidão e firmeza – afirmou cate goricamente – categoricamente, camarada – que Bola-de -Neve era um agente de Jones desde o início, muito antes de alguém nem sequer imaginar a Rebelião.

— Ah, assim é diferente! – disse Sansão. — Se o Camarada Napoleão afirma, deve estar certo.

— Esse é o espírito, camarada! – gritou Garganta, mas notou-se que ele olhou de modo enviesado para San são com seus olhinhos vívidos. Virou-se para ir embora,

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depois parou e acrescentou, com um tom assombroso: — Recomendo que cada animal nesta fazenda fique de olhos bem abertos. Pois temos razões para pensar que alguns dos agentes secretos de Bola-de-Neve estão escon didos entre nós neste exato momento!

Quatro dias depois, no fim da tarde, Napoleão orde nou que os animais se reunissem no pátio. Quando estavam todos juntos, Napoleão saiu da sede com duas condecora ções no peito (já que, recentemente, ele se homenageara com “Herói Animal, Primeira Classe” e “Herói Animal, Segunda Classe”) e cercado pelos seus nove enormes cães, que pulavam e soltavam rosnados, provocando calafrios nos animais. Todos encolheram-se silenciosamente em seus lugares, parecendo saber de antemão que algo terrível estava para acontecer.

Napoleão examinou a todos com um ar austero; então, soltou um guincho agudo. Imediatamente os cães saltaram à frente, agarraram quatro porcos pelas orelhas e arrastaram-nos, grunhindo de medo e dor, até os pés de Napoleão. Os cães, ao sentir o gosto do sangue que saía das orelhas dos porcos, pareceram enlouquecer. Para a sur presa de todos, três cães avançaram sobre Sansão. Sansão estava prevenido e levantou sua imensa pata, agarrando um deles em pleno ar e apertando-o contra o chão. O cão ganiu, pedindo misericórdia, e os outros dois fugiram com o rabo entre as pernas. Sansão olhou para Napoleão como se indagasse se matava o cão esmagado ou deixava-o ir. O rosto de Napoleão transformou-se e, rispidamente, ele

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ordenou que Sansão levantasse a pata, ao que o cão, ferido e uivando, escapuliu.

O tumulto, agora, havia diminuído. Os quatro porcos esperavam, tremendo, com o semblante cheio de culpa. Napoleão pediu-lhes então que confessassem seus crimes. Eram os mesmos porcos que haviam protestado quando Napoleão abolira as Reuniões Dominicais. Sem mais demora, confessaram que entraram secretamente em contato com Bola-de-Neve desde sua expulsão, que haviam colaborado com ele na destruição do moinho de vento e que fizeram um acordo com ele para entregar a Fazenda dos Bichos para o Sr. Frederick. Acrescentaram que Bola-de-Neve admitira, confidencialmente, que fora agente de Jones por vários anos. Quando acabaram sua confissão, os cães estraçalharam suas gargantas, e Napoleão, com uma voz horrível, perguntou se algum outro animal tinha algo mais a confessar.

Nesse momento, as três galinhas que tinham lide rado a tentativa de rebelião na questão dos ovos apresen taram-se e declararam que Bola-de-Neve tinha aparecido para elas em sonho, instigando-as a desobedecer às ordens de Napoleão. Elas também foram exterminadas. Então, um ganso confessou ter escondido seis espigas de milho durante a colheita do ano passado, comendo-as à noite. Depois uma ovelha confessou ter urinado no reservatório – encorajada, disse ela, por Bola-de-Neve – e duas outras ovelhas confessaram ter assassinado um carneiro velho, um seguidor especialmente devoto de Napoleão, perseguindo-o sem parar ao redor da fogueira no meio de uma crise de

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tosse. Foram todos mortos imediatamente. E a sessão de confissões e execuções continuou, até haver uma pilha de corpos aos pés de Napoleão e o ar ficar carregado com o cheiro de sangue, algo que nunca mais acontecera desde a expulsão de Jones.

Quando tudo acabou, os animais restantes – à ex ceção dos porcos e cães – saíram furtivamente, de uma só vez. Estavam abalados e consternados. Não sabiam o que era mais chocante – a traição dos animais que haviam se aliado a Bola-de-Neve, ou a punição cruel que acabaram de testemunhar. Nos velhos tempos, havia cenas frequentes de matanças igualmente horríveis, mas parecia-lhes muito pior agora que acontecia entre os de sua própria espécie. Desde que Jones saíra da fazenda até hoje, nenhum ani mal matara outro animal. Nem mesmo um rato havia sido morto. Arrastaram-se até a colina onde ficava o moinho inacabado e deitaram-se ao mesmo tempo, como se bus cassem aquecer-se uns nos outros – Quitéria, Maricota, Benjamim, as vacas, as ovelhas e todo o bando de galinhas e gansos – todos na verdade, exceto a gata, que desapare cera subitamente um pouco antes de Napoleão ordenar que se reunissem. Por algum tempo, ninguém disse nada. Apenas Sansão permanecia em pé. Mexia-se impaciente de um lado para o outro, batendo sua longa cauda no próprio lombo e, ocasionalmente, soltando pequenos relinchos de espanto. Finalmente, disse:

— Eu não entendo. Não acredito que coisas assim poderiam acontecer em nossa fazenda. Devemos ter alguma

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culpa nisso. A solução, a meu ver, é trabalhar ainda mais. A partir de agora, vou acordar uma hora mais cedo de manhã.

E, trotando desajeitado como sempre, dirigiu-se à pedreira. Ao chegar lá, recolheu duas cargas de pedras e arrastou-as até o moinho antes de retirar-se para dormir.

Os animais aninharam-se em silêncio ao redor de Quitéria. A colina onde estavam tinha uma ampla vista para a região. Podiam ver a maior parte da Fazenda dos Bichos – as enormes pastagens que se estendiam até a estrada principal, os campos de feno, o bosque, o reservatório, as plantações onde o trigo novo ainda estava cheio e verde, e os telhados vermelhos da fazenda com a fumaça saindo das chaminés. Era uma clara tarde de primavera. A grama e os arbustos florescendo eram banhados pelos últimos raios do sol. Nunca a fazenda – e surpreenderam-se ao recordar que era sua própria fazenda, cada centímetro daquela paisagem era propriedade deles – parecera um lugar tão encantador. Quando Quitéria olhou pela encosta da colina, seus olhos encheram-se de lágrimas. Se ela conseguisse dar voz a seus pensamentos, teria dito que isso não era o que esperavam quando começaram a lutar para destituir a raça humana. Aquelas cenas de terror e extermínio não eram o que eles desejaram naquela fatídica noite quando o velho Major os incitou à rebelião. Se ela própria pudesse imaginar o futuro, teria visto uma sociedade de animais livres da fome e do chicote, todos iguais, cada um trabalhando segundo sua capacidade, os fortes protegendo os fracos, como ela protegera a ninhada de patinhos órfãos com sua pata na noite do discurso do velho Major. Em vez

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disso – ela não sabia o porquê – haviam chegado a uma época em que ninguém ousava falar o que pensava, onde cães ferozes perambulavam, rosnando por toda parte, em que se tinha de presenciar seus camaradas destroçados depois de confessar crimes chocantes. Não havia nenhum pensamento de rebelião ou desobediência em sua mente. Ela sabia que, por pior que estivessem, a situação ainda era bem melhor que na época de Jones e que, antes de tudo, era necessário impedir o retorno dos seres humanos. Não importa o que aconteça, ela permanecerá fiel, trabalhará duro, cumprirá as ordens dadas e aceitará a liderança de Napoleão. Mesmo assim, não foi para isso que ela e todos os outros animais ansiaram e lutaram. Não foi para isso que construíram o moinho de vento e enfrentaram as balas da espingarda de Jones. Esses eram seus pensamentos, mas ela não encontrava as palavras para expressá-los.

Finalmente, sentindo que poderia assim substituir as palavras que não conseguia encontrar, ela começou a cantarolar Bichos da Inglaterra. Os animais ao seu redor juntaram-se a ela e acabaram entoando a canção três vezes seguidas – muito afinados, mas lentamente, com um ar taciturno, como nunca haviam cantado antes.

Tinham acabado de cantar pela terceira vez quando Garganta, acompanhado por dois cães, aproximou-se deles, parecendo ter algo muito importante a dizer. Anunciou que, por um decreto especial do Camarada Napoleão, a canção Bichos da Inglaterra tinha sido abolida. A partir daquele momento, era proibido cantá-la.

Os animais ficaram abismados.

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— Por quê? – gritou Maricota.

— Não é mais necessário, camarada – disse Gar ganta rispidamente. — Bichos da Inglaterra foi a canção da Rebelião. Mas a Rebelião estava completa. A execução dos traidores esta tarde foi seu ato final. Os inimigos, tanto externos quanto internos, foram derrotados. Em Bichos da Inglaterra, manifestávamos nossos anseios por uma sociedade melhor no futuro. Mas essa sociedade já foi es tabelecida. Fica claro que essa canção não tem mais valor. Mesmo com muito medo, alguns animais poderiam ter pensado em protestar, mas, nesse instante, as ovelhas principiaram seu habitual balido de “Quatro per nas, bom, duas pernas, ruim” por vários minutos, pondo fim à discussão.

Assim, não se ouviu mais Bichos da Inglaterra. No seu lugar, Mínimo, o poeta, compusera outra canção, que começava assim: Fazenda dos Bichos, dos Bichos e ninguém mais, Aqui nenhum de nós será prejudicado jamais!

Que começou a ser cantada todos os domingos de manhã, depois do hasteamento da bandeira. Mas, de alguma forma, nem as palavras nem a melodia pareciam equiparar-se a Bichos da Inglaterra.

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capÍtulo 8

Alguns dias depois, quando o terror causado pelas execuções enfraquecera, alguns dos animais lem braram-se – ou acreditavam lembrar-se – que o Sexto Mandamento dizia “Nenhum animal matará outro animal”. E, apesar de ninguém ousar falar a esse respeito perto dos porcos ou dos cães, todos acreditavam que a matança que acontecera não era compatível com o que fora estabelecido. Quitéria pediu a Benjamim para recitar-lhe o Sexto Mandamento e, quando Benjamim, como sempre, disse que não queria se meter nessas questões, ela buscou Maricota. Maricota leu o Mandamento para ela. Ele dizia: “Nenhum animal matará outro animal sem motivo”. De alguma maneira, as duas últimas palavras pareciam ter desaparecido da memória dos animais. Mas, agora, puderam ver que o Mandamento não tinha sido violado já que, claramente, havia um bom motivo para matar os traidores que tinham se aliado a Bola-de-Neve.

Durante todo o ano, os animais trabalharam com ainda mais empenho do que no ano anterior. Reconstruir o moinho com paredes com o dobro de espessura e terminar na data acordada, juntamente com o trabalho regular da fazenda, era um tremendo esforço. Havia momentos em

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que pareciam trabalhar muito mais do que na época de Jones, sem se alimentar melhor. Nos domingos de manhã, Garganta, segurando um longo pedaço de papel com a pata, enunciava-lhes vários números comprovando que a produção de todos os produtos alimentícios da fazenda tinha aumentado, conforme o caso, duzentos por cento, trezentos por cento ou até mesmo quinhentos por cento. Os animais não viam razão para não acreditar nele, especialmente porque não conseguiam mais se lembrar das condições de antes da Rebelião. Mesmo assim, havia dias em que prefeririam ter menos números e mais comida. Agora, todas as ordens eram dadas por Garganta ou um dos outros porcos. Napoleão só era visto em público no máximo a cada duas semanas. Quando aparecia, era acompanhado não apenas pelo seu séquito de cães, mas também por um galo preto que marchava à sua frente e atuava como um trompetista, emitindo um sonoro cocoricó antes de Napoleão começar a falar. Havia boatos de que, mesmo na sede da fazenda, Napoleão tinha aposentos separados dos demais. Fazia suas refeições sozinho, era servido por dois cães e sempre comia no luxuoso conjunto de porcelana encontrado na cristaleira da sala de estar. Foi também anunciado que outro tiro seria disparado todos os anos no dia do aniversário de Napoleão, além dos dois outros aniversários combinados anteriormente.

Agora já não se mencionava seu nome simplesmente como “Napoleão”. Sempre se referiam a ele como “nosso líder, Camarada Napoleão”, e os porcos gostavam de inventar-lhe títulos como “Pai de Todos os Animais”,

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“Terror da Humanidade”, “Protetor das Ovelhas”, “Amigo dos Patos”, e assim por diante. Em seus discursos, Gar ganta falava com lágrimas nos olhos da sabedoria de Na poleão, da bondade de seu coração e do amor profundo que tinha por todos os animais em todo lugar, ainda mais dos animais infelizes das outras fazendas, que viviam na ignorância e na escravidão. Tornou-se um hábito atribuir cada conquista ou acontecimento fortuito a Napoleão. Era comum ouvir uma galinha comentar com outra: “sob a orientação do nosso líder, Camarada Napoleão, consegui botar cinco ovos em seis dias”; ou duas vacas, refrescan do-se no reservatório, exclamariam, “Graças à liderança do Camarada Napoleão, que sabor maravilhoso tem essa água!”. O sentimento geral da fazenda era perfeitamente traduzido em um poema intitulado Camarada Napoleão, composto por Mínimo, que dizia assim: Amigo da orfandade! Fonte de felicidade! Senhor dos alimentos! Ó, meu guardião!

Minh’alma arde a contemplar Seu calmo olhar a tudo comandar, Como o sol no céu a brilhar, Camarada Napoleão!

Só você nos oferece Tudo que cada criatura merece, Barriga cheia todo dia, muita palha no chão;

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Grande ou pequeno, todo animal Dorme em paz em seu curral, Pois sente-se protegido, afinal, Camarada Napoleão!

Tivesse eu um leitãozinho, Antes mesmo de ficar maiorzinho Tanto quanto um barril ou garrafão, Desde cedo aprenderia Que um fiel seguidor se tornaria Sim, seu primeiro guincho seria “Camarada Napoleão!”

Napoleão aprovara esse poema e fizera com que fosse escrito na parede do grande celeiro, do lado oposto aos Sete Mandamentos. Sobre ele foi pendurado um retrato de perfil de Napoleão, pintado com tinta branca por Garganta. Enquanto isso, por intermédio de Whymper, Napo leão metera-se em complicadas negociações com Frederick e Pilkington. A pilha de troncos continuava à venda. Dos dois, Frederick era o mais ansioso por arrebatá-la, mas não chegava a oferecer uma boa quantia por ela. Ao mesmo tempo, continuavam os boatos de que Frederick e seus homens planejavam atacar a Fazenda dos Bichos e destruir o moinho de vento, cuja construção teria lhe causado uma inveja desmedida. E todos sabiam que Bola-de-Neve estava escondido na fazenda Pinchfield. Em meados do verão, os animais ficaram horrorizados ao saber que três galinhas se apresentaram para confessar que, inspiradas por Bola

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-de-Neve, tinham conspirado para assassinar Napoleão. Foram executadas prontamente e novas precauções em prol da segurança de Napoleão foram tomadas. Quatro cães guardavam sua cama à noite, um em cada canto, e um jovem leitão chamado Rosito foi incumbido da tarefa de provar sua comida, para evitar que ele fosse envenenado. Mais ou menos na mesma época, foi anunciado que Napoleão tinha acertado a venda da pilha de troncos para o Sr. Pilkington; também entrara em acordo para a troca constante de certos produtos entre a Fazenda dos Bichos e Foxwood. As relações entre Napoleão e Pilkington, apesar de conduzidas por Whymper, eram relativamente amistosas agora. Os animais não confiavam em Pilkington, já que era um ser humano, mas preferiam-no a Frederick, que não só temiam, mas também odiavam. Com o decorrer do verão e a proximidade do fim da construção do moinho, os boatos de um iminente e traiçoeiro ataque começaram a ficar cada vez mais fortes. Dizia-se que Frederick pretendia atacá-los acompanhado de vinte homens armados e que já havia subornado os magistrados e a polícia, para não ter problemas caso conseguisse apoderar-se da escritura da Fazenda dos Bichos. Além disso, circulavam histórias terríveis a respeito das crueldades que Frederick cometia com seus animais em Pinchfield. Ele havia açoitado um velho cavalo até a morte, deixava as vacas morrer de fome, assassinara um cachorro atirando-o na fornalha e diver tia-se com brigas de galo à noite, amarrando pedaços de lâminas de barbear em suas esporas. O sangue dos animais fervia de ódio quando ouviam os relatos do que era feito

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contra seus camaradas e, às vezes, chegavam a implorar a permissão para atacar a fazenda Pinchfield, expulsar os humanos e libertar os animais. Mas Garganta recomen dava-lhes evitar ações drásticas e confiar na estratégia do Camarada Napoleão.

Mesmo assim, o ódio a Frederick continuava crescendo. Certa manhã de domingo, Napoleão apareceu no ce leiro e explicou que em momento algum havia considerado vender a pilha de troncos para Frederick; considerava abai xo de sua dignidade, disse ele, ter negócios com canalhas dessa espécie. Os pombos, que ainda eram enviados para espalhar notícias a respeito da Rebelião foram proibidos de pôr os pés em qualquer parte de Foxwood e também foram obrigados a abandonar seu antigo lema de “Morte à Humanidade” e substituí-lo por “Morte a Frederick”. No fim do verão, um outro complô de Bola-de-Neve foi revela do. A colheita do trigo estava repleta de ervas daninhas e descobriu-se que, em uma de suas visitas noturnas, Bola -de-Neve misturara sementes de joio com as sementes do milho. Um ganso que sabia do plano confessara sua culpa para Garganta e suicidara-se em seguida, comendo frutos de beladona. Os animais também ficaram sabendo que Bola-de-Neve nunca recebera – como muitos acreditavam até então – a condecoração “Herói Animal, Primeira Classe”. Tratava-se de uma lenda espalhada logo após a Batalha do Estábulo pelo próprio Bola-de-Neve. Ao invés de ser condecorado, ele tinha sido censurado por demonstrar covardia durante a batalha. Mais uma vez, alguns bichos

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ouviram isso com certo espanto, mas Garganta conseguiu convencê-los de que suas memórias estavam falhando. No outono, graças a um tremendo e exaustivo esfor ço – já que tiveram de fazer a colheita ao mesmo tempo – o moinho foi finalizado. Ainda faltava instalar o maquinário, e Whymper estava negociando sua compra, mas a estrutu ra estava completa. Apesar das imensas dificuldades, da inexperiência e dos equipamentos primitivos, a despeito da má sorte e das trapaças de Bola-de-Neve, o trabalho foi terminado pontualmente, exatamente no dia combinado! Cansados, mas orgulhosos, os animais caminhavam em volta de sua obra-prima, que, a seus olhos, parecia ainda mais bonita do que quando fora construída pela primeira vez. Além disso, as paredes tinham o dobro de espessura. Somente explosivos poderiam derrubá-la desta vez! E, quando pensavam no quanto tinham trabalhado, no desânimo que tiveram de superar e na enorme diferença que faria em suas vidas quando as pás começassem a girar e os dínamos funcionassem – quando pensavam em tudo isso, seu cansaço desaparecia e davam cambalhotas ao redor do moinho, dando gritos de triunfo. Napoleão em pessoa, acompanhado de seus cães e o galo, veio inspecionar o trabalho acabado; ele parabenizou os animais pessoal mente por sua conquista e anunciou que o moinho seria nomeado Moinho Napoleão.

Dois dias depois, os animais foram chamados para uma reunião extraordinária no celeiro. Ficaram atônitos quando Napoleão anunciou que vendera a pilha de troncos para Frederick. No dia seguinte, as carroças de Frederick

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chegariam para vir buscá-la. Durante todo esse tempo de aparente amizade com Pilkington, Napoleão estivera, na verdade, negociando um acordo secreto com Frederick.

Todas as relações com Foxwood foram cortadas; mensagens ofensivas foram enviadas para Pilkington. Os pombos foram advertidos a evitar a Fazenda Pinchfield e alterar seu lema de “Morte a Frederick” para “Morte a Pilkington”. Ao mesmo tempo, Napoleão assegurou a todos que as histórias de um ataque iminente à Fazenda dos Bichos eram completamente irreais e que os relatos a respeito da crueldade de Frederick contra seus animais foram demasiadamente exagerados. Todos esses boatos provavelmente foram espalhados por Bola-de-Neve e seus agentes. E agora, por fim, parecia que Bola-de-Neve não estava escondido na Fazenda Pinchfield e, na verdade, nunca lá esteve em toda a sua vida: ele vivia em Foxwood, em condições luxuosas – era o que se dizia – e era sustentado por Pilkington há alguns anos.

Os porcos ficaram em êxtase com a astúcia de Napo leão. Ao parecer amigo de Pilkington, ele forçara Frederick a aumentar sua oferta em doze libras. Mas a superioridade do intelecto de Napoleão, disse Garganta, ficara evidente no fato dele não confiar em ninguém, nem mesmo em Frederick. Ele queria pagar pelos troncos com algo chamado cheque, que, parecia-lhe, era um pedaço de papel com uma promessa de pagamento escrita. Mas Napoleão era esperto demais para ele. Exigiu o pagamento em notas verdadeiras de cinco libras, que deveriam ser entregues antes da retirada dos troncos. Frederick já havia efetuado

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o pagamento; e a soma era suficiente para comprar o ma quinário do moinho de vento.

Enquanto isso, os troncos eram retirados com rapidez. Quando toda a madeira se foi, outra reunião ex traordinária foi convocada no celeiro para que os animais pudessem inspecionar as notas de dinheiro de Frederick. Com um sorriso contemplativo nos lábios e ostentando ambas as condecorações, Napoleão repousava em uma cama de palha sobre o estrado, com o dinheiro ao seu lado, cuidadosamente empilhado sobre uma travessa de cerâmica da cozinha da sede. Os animais passavam len tamente em frente à pilha, e cada um a admirava tanto quanto quisesse. Sansão espichou o nariz para cheirar as notas e as frágeis coisinhas brancas agitaram-se e farfa lharam com sua respiração.

Três dias depois, houve uma terrível confusão. Whymper, extremamente pálido, subiu apressado o ca minho da estrada em sua bicicleta, jogou-a no pátio e cor reu para dentro da sede. No momento seguinte, um urro ensurdecedor de raiva veio dos aposentos de Napoleão. A notícia do ocorrido alastrou-se pela fazenda como fogo. As notas eram falsificadas! Frederick levara a madeira de graça!

Napoleão convocou os animais imediatamente e, com uma voz horrível, proclamou a sentença de morte para Frederick. Quando capturado, disse ele, Frederick deveria ser fervido vivo. Ao mesmo tempo, avisou-lhes que, depois desse ato traiçoeiro, deveriam esperar pelo pior. Frederick e seus homens deveriam desferir seu tão aguardado ataque a qualquer momento. Vigias seriam co

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locados em todos os limites da fazenda. Além disso, quatro pombos foram enviados a Foxwood com uma mensagem de reconciliação, na esperança de restabelecer as boas relações com Pilkington.

Na manhã seguinte, sobreveio o ataque. Os ani mais tomavam seu desjejum quando os vigias chegaram correndo com a notícia de que Frederick e seus seguidores já haviam atravessado a porteira da fazenda. Cheios de coragem, os animais dispararam ao seu encontro, mas, desta vez, não teriam uma vitória fácil como a da Batalha do Estábulo. Havia quinze homens com meia dúzia de espingardas, e abriram fogo antes mesmo de chegar a 50 metros de distância. Os animais não conseguiam combater as terríveis explosões e as balas mortais e, apesar de todos os esforços de Napoleão e Sansão para incentivá-los, acabaram retrocedendo. Refugiaram-se nos galpões da fazenda, vigiando os homens cuidadosamente através das fissuras e buracos das paredes. Toda a área de pastagem, incluindo o moinho de vento, estava nas mãos dos inimigos. Naque le momento, Napoleão parecia completamente perdido. Andava para cima e para baixo sem pronunciar uma só palavra, com o rabo tenso e contraído. Olhares pensativos eram direcionados para Foxwood. Se Pilkington e seus homens os ajudassem, o dia ainda poderia ser vitorioso. Mas, nesse instante, os quatro pombos que tinham sido enviados no dia anterior retornaram, e um deles carregava um pedaço de papel da parte de Pilkington. Nele estava escrito, a lápis: “Bem feito!”.

Enquanto isso, Frederick e seus homens haviam

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parado perto do moinho. Os animais os vigiavam e um murmúrio de desânimo se alastrava. Dois dos homens apareceram com um pé-de-cabra e uma marreta. Eles iam destruir o moinho.

— Impossível! – gritou Napoleão. — Construímos paredes grossas demais para virem abaixo. Levariam uma semana para destruí-lo. Coragem, camaradas!

Benjamim observava seus movimentos com aten ção. Os dois homens com a marreta e o pé-de-cabra faziam um buraco perto da base do moinho. Lentamente, apa rentando quase estar se divertindo, Benjamim balançou o longo focinho.

— É o que eu imaginava – disse ele. — Vocês não percebem o que eles estão fazendo? A qualquer momento, vão colocar pólvora nesse buraco.

Aterrorizados, os animais esperaram. Agora, era impossível arriscar-se fora da proteção dos galpões. Depois de alguns minutos, viram os homens correndo para todas as direções. Então, ouviram um estrondo ensurdecedor. Os pombos partiram em revoada e todos os animais, à exceção de Napoleão, jogaram-se no chão e esconderam os rostos. Quando se levantaram novamente, uma imensa nuvem de fumaça preta pairava onde o moinho se encon trava. Lentamente a brisa soprou-a para longe. O moinho de vento desaparecera!

Diante dessa visão, a coragem dos animais retornou. O medo e o desespero que sentiam há um instante fora afogado no ódio gerado por aquele ato vil e desprezível.

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Um poderoso grito por vingança irrompeu e, sem esperar por nenhuma ordem, avançaram rumo ao inimigo, como um só corpo. Desta vez não se importaram com as balas cruéis que os atingiam como granizo. Foi uma batalha selvagem e implacável. Os homens disparavam sem parar e, quando os animais chegaram perto o bastante, golpea ram-nos com seus porretes e botas pesadas. Uma vaca, três ovelhas e dois gansos foram mortos, e quase todos ficaram feridos. Até mesmo Napoleão, que comandava os ataques na retaguarda, teve a ponta de seu rabo arranhada por uma bala. Mas os homens tampouco saíram ilesos. Três deles tiveram suas cabeças quebradas por coices dos cascos de Sansão; outro foi chifrado na barriga por uma vaca; e um outro teve as calças rasgadas por Lulu e Branca. E, quando os nove cães da guarda pessoal de Napoleão – a quem ele instruíra fazer um desvio por detrás da cerca viva – subita mente apareceram na sua retaguarda, latindo ferozmente, eles foram tomados pelo pânico. Perceberam que corriam o perigo de ficar cercados. Frederick gritou para seus ho mens que se retirassem enquanto ainda era possível e, no instante seguinte, o inimigo acovardado corria pela sua vida. Os animais perseguiram-nos até o fundo da pastagem e ainda lhe deram alguns chutes enquanto atravessavam a cerca de espinhos.

Haviam vencido, mas estavam exaustos e sangran do. Aos poucos, começaram a mancar de volta à fazenda. Ver seus camaradas mortos estendidos sobre os campos levou alguns deles às lágrimas. E, por um tempo, fica ram imóveis em um silêncio consternado no lugar onde

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erguera-se o moinho. Sim, ele desaparecera; o fruto de seu trabalho sumira quase por completo! Até mesmo a fundação foi parcialmente destruída. E, desta vez, como antes, não poderiam usar as pedras dos destroços. Des ta vez, as pedras também desapareceram. A força da explosão arremessou-as a centenas de metros de distância. Era como se o moinho nunca tivesse existido.

Ao aproximarem-se da fazenda, Garganta, que es tivera inexplicavelmente ausente durante a batalha, veio saltitando ao seu encontro, balançando o rabo e sorrindo de satisfação. E os animais ouviram, vindo dos galpões da fazenda, o solene estrondo da espingarda.

— Por que esse tiro? – perguntou Sansão.

— Para celebrar nossa vitória! – gritou Garganta.

— Que vitória? – disse Sansão. Seus joelhos san gravam, ele perdera uma ferradura, rompera um casco e tinha uma dúzia de balas alojadas na sua pata traseira.

— Que vitória, camarada? Não expulsamos o inimigo de nosso solo – o solo sagrado da Fazenda dos Bichos?

— Mas eles destruíram o moinho. No qual traba lhamos durante dois anos!

— E o que isso importa? Construiremos outro. Construiremos seis moinhos se quisermos. Vocês não estão dando valor, camarada, ao feito extraordinário que alcançamos. O inimigo havia ocupado esse exato local onde estamos pisando. E agora – graças à liderança do

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Camarada Napoleão – nós reconquistamos cada centí metro novamente!

— Então apenas conquistamos o que já tínhamos antes, disse Sansão.

— Eis aí nossa vitória – disse Garganta. Foram mancando até o pátio. As balas alojadas na perna de Sansão ardiam, causando dor. Ele vislumbrava todo o trabalho pesado de reconstruir o moinho desde as fundações, e já se preparava para a tarefa em sua imagina ção. Pela primeira vez, no entanto, ocorreu-lhe que tinha 11 anos de idade e que, talvez, seus grandes músculos não fossem mais tão fortes quanto antes.

Mas quando os animais viram a bandeira verde hasteada, e ouviram os tiros de espingarda mais uma vez – sete tiros no total – e ouviram o discurso que Napoleão fizera, parabenizando-os por sua conduta, pareceu-lhes afinal que obtiveram uma grande vitória. Aos animais mortos em combate, foi realizado um funeral solene. San são e Quitéria puxaram a carroça que serviu como carro funerário, e Napoleão em pessoa liderou o cortejo. Dois dias inteiros foram reservados para as celebrações. Houve canções, discursos e mais disparos de espingarda, além de um prêmio especial de uma maçã para cada animal, cinquenta gramas de milho para cada ave e três biscoitos para os cães. Foi anunciado que a batalha seria nomeada Batalha do Moinho e que Napoleão criara uma nova con decoração, a Ordem da Bandeira Verde, que ele conferira

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a si mesmo. Em meio ao clima de comemoração, o infeliz episódio das notas de dinheiro foi esquecido.

Foi só alguns dias depois que os porcos encontraram uma caixa de uísque no porão da sede. Não haviam se dado conta de sua existência quando a casa fora ocupada. Nessa noite, foi ouvido um barulho estrondoso de cantoria em que, para a surpresa de todos, percebia-se trechos de Bichos da Inglaterra. Por volta das nove e meia, viram Na poleão, usando um velho chapéu-coco do Sr. Jones, surgir na porta dos fundos, trotar rapidamente em volta do pátio e desaparecer para dentro da sede novamente. Na manhã seguinte, no entanto, um silêncio sepulcral tomava conta da casa. Nenhum porco parecia ter acordado. Era quase nove da manhã quando Garganta surgiu, andando lentamente, abatido, com os olhos opacos e o rabo caído, parecendo seriamente enfermo. Reuniu os animais, dizendo que tinha terríveis notícias para comunicar-lhes. Camarada Napoleão estava à beira da morte!

Um grito de lamento emergiu. Espalhou-se palha do lado de fora das portas da sede e os animais começaram a andar na ponta dos pés. Com lágrimas nos olhos, todos se perguntavam o que fariam se o Líder lhes faltasse. O boato de que Bola-de-Neve conseguira afinal envenenar a comida de Napoleão começou a circular. Às onze horas, Garganta apareceu para um novo anúncio. Como seu último ato sobre a terra, Camarada Napoleão promulgara um decreto solene: a ingestão de álcool seria punida com a morte.

À noite, no entanto, Napoleão parecia estar um pouco melhor e, na manhã seguinte, Garganta pôde

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anunciar que ele já se recuperava plenamente. Na noite do mesmo dia Napoleão já voltou a trabalhar e, um dia depois, ficaram sabendo que ele tinha dado instruções a Whymper para comprar alguns folhetos sobre fermenta ção e destilação. Na semana seguinte, Napoleão ordenou que fosse arado o pasto atrás do pomar, que havia sido previamente reservado para o repouso dos animais aposentados. Explicou-se que o solo estava exaurido e precisava de uma nova semeadura; mas logo descobriram que Napoleão pretendia semeá-lo com cevada.

Mais ou menos na mesma época, aconteceu um estranho incidente, que quase ninguém conseguiu com preender. Uma noite, por volta da meia-noite, ouviu-se um estrondo no pátio e os animais correram para fora de suas baias. Era uma noite clara de luar. Ao pé da parede do fundo do celeiro, onde estavam escritos os Sete Mandamentos, encontraram uma escada quebrada em dois pedaços. Ao lado da escada, estatelado no chão, jazia Garganta, temporariamente atordoado, e com uma lanterna, um pincel e uma lata de tinta branca de ponta-cabeça ao seu redor. Imediatamente, os cães cercaram Garganta e, assim que ele conseguiu se levantar, conduziram-no de volta à sede. Nenhum dos animais pôde imaginar o sig nificado de tudo aquilo, a não ser o velho Benjamim, que balançou o focinho com uma expressão de lucidez, pa recendo ter entendido o que se passara, mas nada disse. No entanto, alguns dias depois, Maricota, relen do os Sete Mandamentos para si mesma, notou que não se lembravam com exatidão de mais um deles. Eles pen

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savam que o Quinto Mandamento era “Nenhum animal beberá álcool”, mas havia duas palavras que tinham caí do no esquecimento. Na verdade, o Mandamento dizia: “Nenhum animal beberá álcool em excesso”.

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capÍtulo 9

Ocasco rompido de Sansão demorou muito para cicatrizar. A reconstrução do moinho começou no dia seguinte às comemorações da vitória, mas Sansão recusou-se a tirar um dia sequer de folga e fazia questão de não mostrar a ninguém que sofria de dor. À noite, admitia somente para Quitéria que o casco lhe incomodava bastante. Quitéria tratou dele mastigando algumas ervas e fazendo-lhe compressas com elas, e tanto ela quanto Benjamim imploravam a Sansão que não trabalhasse tanto. “Os pulmões de um cavalo não duram para sempre”, ela lhe disse. Mas Sansão não lhes dava ouvidos. Ele respondia dizendo que só tinha uma ambição na vida: ver o moinho em pleno funcionamento antes de se aposentar.

No início, quando as leis da Fazenda dos Bichos foram formuladas, a idade para se aposentar tinha sido estabelecida em 12 anos para cavalos e porcos, 14 para vacas, 9 para cães, 7 para ovelhas e, para galinhas e gansos, 5 anos. Foram estipuladas pensões generosas para os idosos. Até então, nenhum animal havia se aposentado, mas, ultimamente, o assunto era discutido cada vez mais. Agora que o pequeno pasto atrás do pomar tinha sido reservado para a cevada, havia boatos de que um canto da pastagem grande seria cercado e transformado em um

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lugar de descanso para os anciãos. Diziam que, para um cavalo, a pensão seria de dois quilos de milho por dia e, no inverno, sete quilos de feno, além de uma cenoura ou talvez uma maçã nos feriados. O décimo segundo aniversário de Sansão seria no fim do verão do ano seguinte.

Enquanto isso, a vida continuava dura. O inverno estava tão frio quanto o do ano anterior e havia ainda menos comida. Mais uma vez as rações foram reduzidas, a não ser para os porcos e os cães. Uma igualdade rígida demais nas rações, explicou Garganta, seria contrária aos princípios do Animalismo. De qualquer forma, ele conseguia provar facilmente aos outros animais que, na verdade, eles não tinham menos comida, por mais que parecesse o contrário. Certamente, naquele momento, fora preciso fazer um ajuste nas rações (Garganta sempre falava em “ajuste”, nunca em “redução”) mas, em comparação com o tempo de Jones, o aumento era enorme. Lendo os números em voz alta com uma voz rápida e esganiçada, ele provou com detalhes que todos tinham mais aveia, mais feno e mais nabos que na época de Jones, que trabalhavam menos, que a água era de melhor qualidade, que viviam mais e havia menos mortalidade infantil, tinham mais palha em suas baias e sofriam menos ataques de pulgas. Os animais acreditavam em cada palavra. Para dizer a verdade, Jones e tudo que ele representava tinha praticamente se apagado de suas memórias. Eles sabiam que sua vida atual era árdua e cheia de privações, que passavam fome e frio todo o tempo e que só paravam de trabalhar para dormir. Mas, sem dúvida, tudo era muito pior no passado. Contentavam-se em acre

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ditar nisso. Além do mais, naquela época eram escravos e agora estavam livres, o que fazia toda a diferença, Garganta nunca deixava de salientar.

Havia muito mais bocas para alimentar agora. No outono, as quatro porcas haviam dado cria quase ao mesmo tempo, parindo trinta e um leitõezinhos no total. Os porquinhos eram malhados e, como Napoleão era o único macho não castrado da fazenda, era fácil desco brir sua paternidade. Foi anunciado mais tarde, quando compraram tijolos e madeira, que uma sala de aula seria construída no jardim da sede. Por enquanto, os porquinhos seriam educados pelo próprio Napoleão na cozinha. Eles exercitavam-se no jardim e eram orientados a não brincar com os filhotes dos outros animais. Mais ou menos na mesma época, ficou estabelecido que quando um porco e outro animal cruzassem o mesmo caminho, o outro animal deveria ceder-lhe a passagem; além disso, os porcos – de qualquer nível hierárquico – teriam o privilégio de, aos domingos, usar fitas verdes no rabicó.

A fazenda teve um ano bem-sucedido, mas ainda havia falta de dinheiro. Era preciso comprar tijolos, areia e cal para a sala de aula, e começar a economizar para o maquinário do moinho. Precisavam ainda de óleo para as lamparinas e velas para a sede, açúcar para as refeições de Napoleão (já que ele o proibira aos outros porcos, dizendo que os fazia engordar), e todo o suprimento habitual de ferramentas, pregos, corda, carvão, arame, ferro e biscoitos para cachorro. Um fardo de feno e parte da colheita de ba tatas foram vendidos e o contrato dos ovos foi aumentado

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para seiscentas unidades por semana, fazendo com que as galinhas quase não chocassem pintinhos suficientes para manter sua população no mesmo nível. As rações, reduzidas em dezembro, foram diminuídas novamente em fevereiro e foi proibido lampiões nas baias, para economizar óleo. Os porcos, no entanto, pareciam viver confortavelmente e, na verdade, estavam engordando. Em uma tarde no fim de fevereiro, um odor suave, suculento e apetitoso – que os animais nunca sentiram antes – atravessou o pátio vindo do pequeno alambique atrás da cozinha, que não era mais usado desde a época de Jones. Alguém disse que era cheiro de cevada cozida. Os animais, famintos, fare javam o ar e começavam a se perguntar se alguma ração quentinha estava sendo preparada para a sua ceia. Mas nenhum preparado apareceu e, no domingo seguinte, foi anunciado que a partir daquele momento toda a cevada ficaria reservada para os porcos. O campo nos fundos do pomar já havia sido semeado com cevada. E logo vazou a notícia de que cada porco recebia meio litro de cerveja diariamente, sendo que Napoleão tinha direito a dois litros, servidos na sopeira de porcelana da sede. Mas se havia dificuldades a enfrentar, tudo era compensado pelo fato de a vida ter mais dignidade que no passado. Havia mais canções, mais discursos, mais desfiles. Napoleão ordenou que, uma vez por semana, deveriam ser realizados os chamados Manifestos Espontâneos, a fim de celebrar as lutas e triunfos da Fazenda dos Bichos. Na hora combinada, os animais deixariam o trabalho e marchariam ao redor da fazenda, em formação militar, com os porcos

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liderando, seguidos pelos cavalos, as vacas, as ovelhas e as aves. Os cães marchariam nas laterais do desfile e, à frente de todos, o galo preto de Napoleão. Sansão e Quitéria sempre carregavam uma bandeira verde marcada com o casco, o chifre e a divisa “Vida longa ao Camarada Napo leão!”. Logo depois, eram recitados poemas compostos em homenagem a Napoleão, Garganta discursava dando detalhes das últimas melhorias na produção de insumos e, de tempos em tempos, um tiro de espingarda era disparado. As ovelhas eram as maiores participantes dos Manifestos Espontâneos e, caso alguém reclamasse (já que alguns ousavam fazê-lo, quando não havia porcos ou cães por perto) que eram uma perda de tempo e que tinham de ficar em pé no frio, logo se via calado pelas ovelhas com seu balido estrondoso de “Quatro pernas, bom, duas per nas, ruim!”. De modo geral, a maioria dos animais gostava dessas celebrações. Achavam reconfortante lembrar-se de que, apesar de tudo, eram donos de si e que o trabalho que faziam era para seu próprio benefício. Além disso, com as canções, os desfiles, as estatísticas de Garganta, o disparo da espingarda, o cacarejar do galo e o farfalhar da bandeira, eles conseguiam esquecer que seus estômagos estavam vazios, pelo menos por uma parte do tempo.

Em abril, a Fazenda dos Bichos foi proclamada uma República e foi necessário eleger um Presidente. Havia apenas um candidato, Napoleão, que foi eleito por unani midade. No mesmo dia, souberam que foram descobertos novos documentos que revelavam mais detalhes a res peito da cumplicidade de Bola-de-Neve com Jones. Agora

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parecia que Bola-de-Neve tinha não só tentado elaborar um estratagema para perder a Batalha do Celeiro, como os animais imaginavam antes, mas também havia lutado abertamente ao lado de Jones. Na verdade, ele tinha sido o verdadeiro líder das forças humanas e havia iniciado a batalha com as palavras “Vida longa à Humanidade!” em seus lábios. As feridas no dorso de Bola-de-Neve, que poucos animais ainda se lembravam de ter visto, tinham sido causadas pelos dentes de Napoleão. No meio do verão, Moisés, o corvo, reapareceu su bitamente na fazenda, depois de uma ausência de vários anos. Não havia mudado quase nada, continuava a não trabalhar e falava sobre a Montanha do Doce Cristal com o mesmo entusiasmo de antes. Empoleirava-se em um cepo de árvore, batia suas asas pretas e falava sem parar para quem quisesse ouvir. “Lá em cima, camaradas” – dizia ele solenemente, apontando para o céu com seu largo bico. – “Lá em cima, logo depois daquela nuvem escura que vocês estão vendo –, é lá que ela fica, a Montanha do Doce Cristal, aquele campo feliz onde nós, pobres animais, vamos descansar para sempre de nossas obrigações!”. Chegava até mesmo a alegar que já havia estado lá em um de seus voos mais altos e que tinha visto os campos de trevos sempre verdinhos, os bolinhos de linhaça e os torrões de açúcar crescendo nos arbustos. Muitos dos animais acreditavam nele. Suas vidas atuais, convenciam-se eles, eram repletas de fome e trabalho; não era justo e correto que um mundo melhor existisse em algum outro lugar? Algo difícil de compreender era a atitude dos porcos em relação a Moisés.

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Eles declaravam com desdém que suas histórias sobre a Montanha do Doce Cristal eram mentirosas e, mesmo assim, permitiam que ele continuasse na fazenda, sem trabalhar, com direito a um copo de cerveja por dia.

Depois que seu casco melhorou, Sansão começou a trabalhar mais do que nunca. Na verdade, todos os ani mais trabalharam como escravos naquele ano. Além do trabalho regular da fazenda e da reconstrução do moinho, ainda havia a sala de aula dos leitõezinhos, que começara em março. Por vezes, as longas horas de trabalho sem comida suficiente eram difíceis de suportar, mas Sansão nunca fraquejava. Em nada do que ele dizia ou fazia, havia qualquer sinal de que sua força não fosse mais como antes. Apenas sua aparência parecia um pouco alterada; seu couro tinha menos brilho do que antes e seu grande lombo parecia ter encolhido. Os outros diziam: “Sansão vai se recuperar quando a relva da primavera crescer”, mas a primavera chegou e Sansão não tomou corpo. Às vezes, na rampa que levava ao cume da pedreira, quando ele enrijecia seus músculos para suportar o peso de alguma enorme rocha, tinha-se a impressão de que nada além da vontade de continuar o mantinha firme. Nessas horas, seus lábios pareciam formar as palavras “Trabalharei ainda mais”; ele nem sequer conseguia pronunciá-las. Uma vez mais, Quitéria e Benjamim advertiam-no a cuidar de sua saúde, mas ele não lhes dava atenção. Seu 12 º aniversário estava chegando. Ele não se importava com o que aconte cesse, desde que conseguisse juntar um bom suprimento de pedras antes de se aposentar.

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Certa noite, ainda no verão, subitamente o boa to de que algo havia acontecido com Sansão começou a rondar a fazenda. Ele tinha saído sozinho para arrastar um carregamento de pedras até o moinho. E o boato era verdadeiro. Alguns minutos mais tarde, dois pombos chegaram afobados com a notícia:

— Sansão está no chão! Caiu e não consegue se levantar!

Praticamente metade dos animais da fazenda saiu em disparada rumo à colina onde ficava o moinho. Encon traram Sansão entre as guias da carroça, com o pescoço esticado, sem conseguir sequer levantar a cabeça. Seus olhos estavam opacos e suas espáduas, molhadas de suor. Um filete de sangue escoava de sua boca. Quitéria ajoe lhou-se ao seu lado.

— Sansão! – gritou ela — Como você está?

— É o meu pulmão – disse Sansão com uma voz fraca. — Não tem importância. Acho que vocês vão conseguir terminar o moinho sem mim. Consegui acumular um belo suprimento de pedras. Só tinha mais um mês de trabalho mesmo. Para falar a verdade, estava ansioso pela minha aposentadoria. E talvez, já que Benjamim também está ficando velho, vão deixá-lo se aposentar junto comigo para me fazer companhia.

— Precisamos pedir ajuda imediatamente – disse Quitéria. — Alguém vá correndo contar a Garganta o que está acontecendo.

Todos os outros animais voltaram para a sede em

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disparada para dar a notícia a Garganta. Permaneceram apenas Quitéria e Benjamim, que se deitou ao lado de Sansão e, sem dizer nada, mantinha as moscas afastadas dele com sua longa cauda. Cerca de quinze minutos depois surgiu Garganta, cheio de preocupação e empatia. Disse que o Camarada Napoleão soubera – ficando extremamente aflito – do mal que sucedera a um dos trabalhadores mais leais da fazenda e já tomara providências para enviar San são para tratar-se no hospital de Willingdon. Os animais não ficaram à vontade ao ouvir isso. À exceção de Mimosa e Bola-de-Neve, nenhum outro animal jamais saíra da fa zenda, e eles não gostavam nem de imaginar seu camarada doente nas mãos de seres humanos. Entretanto, Garganta convenceu-os facilmente de que o cirurgião veterinário em Willingdon poderia tratar melhor do que eles do caso de Sansão. E, por volta de meia hora mais tarde, quando Sansão estava um pouco melhor, ajudaram-no a se levan tar e ele conseguiu mancar até sua baia, onde Quitéria e Benjamim lhe prepararam uma boa cama de palha.

Nos dois dias seguintes Sansão permaneceu em sua baia. Os porcos enviaram-lhe um frasco grande de um remédio cor-de-rosa que encontraram no armário de remédios do banheiro da sede, que Quitéria ministra va-lhe duas vezes por dia, depois das refeições. À noite, ela ficava em sua baia e conversava com ele, enquanto Benjamim mantinha as moscas longe dele. Sansão dizia não se arrepender do que acontecera. Caso se recuperasse bem, contava viver por mais três anos e esperava ansioso pelos dias tranquilos que passaria nos fundos do grande

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pasto. Seria a primeira vez que teria tempo de folga para estudar e melhorar seus conhecimentos. Pretendia, disse ele, dedicar o resto de sua vida ao aprendizado das vinte e três letras restantes do alfabeto.

No entanto, Benjamim e Quitéria só conseguiam ficar com Sansão depois do trabalho e uma carroça fe chada veio buscá-lo no meio do dia. Os animais estavam semeando nabos sob a supervisão de um porco quando foram surpreendidos por Benjamim, galopando na direção dos galpões da fazenda, zurrando o mais alto que pôde. Era a primeira vez que viam Benjamim agitado – na verdade, era a primeira vez que qualquer um o via galopar.

— Rápido, depressa! – gritou ele. — Venham todos! Estão levando Sansão embora.

Sem esperar pela permissão do porco, os animais abandonaram o trabalho e correram até os galpões. Real mente, lá estava a carroça no pátio, puxada por dois ca valos, com um letreiro na lateral e um homem com um ar perverso e um chapéu-coco sentado na boleia. E a baia do Sansão estava vazia.

Os animais amontoaram-se em volta da carroça.

— Até breve, Sansão! – falaram em coro. — Até mais!

— Seus tolos! Tolos! gritou Benjamim, empinando ao redor deles e golpeando a terra com seus pequenos cascos. — Tolos! Não conseguem ver o que está escrito na lateral da carroça?

Ao ouvir isso, os animais pararam e ouviu-se um xiu .

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Maricota começou a soletrar as palavras. Mas Benjamim puxou-a para o lado e, no meio de um silêncio mortal, leu:

— “Alfred Simmonds, Matadouro de Cavalos e Fabri cante de Cola, Willingdon. Comerciante de Peles e Farinha de Ossos. Fornecimento para Canis .” Vocês não entendem o que isso quer dizer? Estão levando-o para o abatedouro!

Um grito de horror irrompeu de todos os animais. Nesse momento, o homem na boleia açoitou os cavalos e a carroça saiu do pátio em disparada. Todos os animais foram atrás, gritando o mais alto que podiam. Quitéria tomou a dianteira. A carroça começou a ganhar velocidade. Quitéria tentou mexer seus membros gorduchos com mais velocidade e conseguiu trotar levemente.

— Sansão! – gritou ela. — Sansão! Sansão! Sansão! Nesse exato momento, como se tivesse ouvido a confusão do lado de fora, o focinho de Sansão, com a faixa branca no nariz, apareceu na janelinha de trás da carroça.

— Sansão! – gritou Quitéria com uma voz deses perada. — Sansão! Saia daí! Saia rápido! Estão levando-o para a morte!

Todos os animais fizeram coro, repetindo “Saia daí, Sansão! Saia rápido!”. Mas a carroça já tomara veloci dade e afastava-se deles. Não se sabia ao certo se Sansão compreendera o que Quitéria disse. Mas logo depois seu focinho sumiu da janela e ouviu-se um tremendo bater de cascos dentro da carroça. Ele estava tentando sair. Há algum tempo, apenas alguns coices dos cascos de San são teriam transformado a carroça em pedaços. Mas, que

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pena!, sua força o abandonara e, em poucos instantes, o som dos cascos batendo diminuiu e sumiu completamente. Desesperados, os animais suplicavam aos dois cavalos que puxavam a carroça que parassem.

— Camaradas! Camaradas! – gritavam. — Não levem seu irmão para a morte!

Mas os grosseirões estúpidos, ignorantes demais para perceber o que acontecia, simplesmente retraíram as orelhas e apertaram o passo. O focinho de Sansão não voltou a aparecer na janela. Alguém pensou em correr até a frente da carroça e fechar a porteira, mas era tarde demais; a carroça já atravessara a porteira e desaparecia rapidamente pela estrada. Sansão nunca mais foi visto.

Três dias depois, foi anunciado que ele morrera no hospital de Willingdon, apesar de ter recebido todos os cuidados que um cavalo merece. Garganta veio dar-lhes a notícia. Disse ainda que estivera presente nas últimas horas de sua vida.

— Foi a cena mais emocionante que já presenciei! – disse Garganta, levantando a pata para enxugar uma lá grima. — Estive ao lado da sua cama até o último momento. No final, fraco demais para falar, ele sussurrou em meu ouvido que seu único arrependimento era morrer antes de conseguir terminar o moinho. “Avante, camaradas!”, ele murmurou. “Avante em nome da Rebelião. Vida longa à Fazenda dos Bichos! Vida longa ao Camarada Napoleão! Napoleão sempre tem razão!” Essas foram suas últimas palavras, camaradas.

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Nesse momento, o semblante de Garganta mudou subitamente. Ficou em silêncio por um instante e lançou olhares suspeitos para todos os lados antes de continuar. Tinha chegado aos seus ouvidos, disse, que um tolo e perverso rumor circulara quando da remoção de Sansão. Alguns dos animais notaram que a carroça que buscara Sansão tinha um letreiro escrito “Matadouro de Cavalos” e chegaram à conclusão de que Sansão estava sendo levado para o abatedouro. Era quase inacreditável, disse Garganta, que qualquer animal pudesse ser tão estúpido. Imaginava, gritou indignado, agitando o rabo e saltitando de um lado para o outro, imaginava que conhecessem a fundo seu amado líder, Camarada Napoleão. Pois a explicação era muito, muito simples. A carroça pertencera previamente ao matadouro e foi comprada pelo cirurgião veterinário, que ainda não tivera tempo de retirar o velho nome. Foi por isso que todos se confundiram.

Os animais ficaram extremamente aliviados ao ouvir isso. E, enquanto Garganta continuou descrevendo com mais detalhes o leito de morte de Sansão, o cuidado admirável que tinha recebido e os medicamentos caríssi mos que Napoleão pagara sem nem pensar nos custos, suas últimas dúvidas desapareceram e a tristeza que sentiam pela morte de seu camarada misturou-se à certeza de que, pelo menos, ele tinha morrido feliz.

Napoleão em pessoa apareceu na reunião da ma nhã de domingo seguinte e fez um curto pronunciamento em homenagem a Sansão. Não fora possível, disse ele, tra zer os restos mortais do saudoso camarada para ser en

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terrado na fazenda, mas ele ordenara a confecção de uma grande coroa com os louros do jardim da sede e enviou-a para ser colocada sobre o túmulo de Sansão. Em alguns dias, os porcos pretendiam fazer um banquete em memó ria de Sansão. Napoleão terminou o discurso lembran do-lhes das duas máximas favoritas do camarada, “Tra balharei ainda mais” e “Camarada Napoleão tem sempre razão” – máximas essas, disse, que todo animal faria bem em adotar para si.

No dia marcado para o banquete, a carroça de uma mercearia chegou de Willingdon e entregou um enorme engradado de madeira. Naquela noite, ouviu-se uma can toria ensurdecedora, seguida por algo parecido com uma violenta discussão e acabou terminando com um estrondo de vidros quebrando. No dia seguinte, não houve o míni mo movimento na sede até o meio-dia e correram boatos de que os porcos tinham conseguido, não se sabe como, dinheiro para comprar outra caixa de uísque.

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capÍtulo 10

Os anos se passaram. As estações se alternaram, a curta vida dos animais se esvaía. Chegou uma época em que ninguém se lembrava mais dos dias anteriores à Rebelião, exceto Quitéria, Benjamim, o corvo Moisés, e alguns porcos. Maricota morrera; assim como Branca, Lulu e Cata-Vento. Jones também estava morto – ele falecera em uma casa para alcoólatras, em outra parte do país. Bola-de-Neve fora esquecido. Sansão fora esquecido, a não ser por aqueles que o conheceram. Quitéria era uma égua velha e cor pulenta, com as juntas endurecidas e os olhos sempre lacrimejando. Já passara dois anos da sua idade de se apo sentar, mas, na verdade, nenhum animal jamais parara de trabalhar. A ideia de reservar uma parte do pasto para os animais idosos já tinha sido abandonada havia tempos. Napoleão era agora um leitão envelhecido de 150 quilos. Garganta estava tão gordo que mal conseguia abrir os olhos. Apenas o velho Benjamim continuava como sempre, a não ser por alguns pelos brancos no focinho, e, desde a morte de Sansão, ficara mais calado e taciturno do que nunca. Havia muitas outras criaturas na fazenda agora, apesar do crescimento não ser tão grande quanto se es perava nos primeiros anos. Muitos animais nasceram e,

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para eles, a Rebelião era apenas uma história obscura, transmitida boca a boca; havia ainda outros que, compra dos de outras fazendas, nunca ouviram falar de tal coisa antes de sua chegada. A fazenda agora possuía três cavalos além de Quitéria. Eram animais elegantes, trabalhadores dedicados e bons camaradas, mas muito estúpidos. Ne nhum deles conseguira aprender o alfabeto além da letra B. Aceitavam tudo que lhes era dito sobre a Rebelião e os princípios do Animalismo, especialmente por Quitéria, a quem tinham um respeito filial, mas suspeitava-se que não compreendiam muita coisa.

A fazenda tornara-se mais próspera e organizada: fora ampliada com a compra de dois pedaços de terra do Sr. Pilkington. O moinho fora, finalmente, concluído com sucesso e a fazenda tinha uma debulhadora e um elevador de feno próprios, além de vários outros novos galpões. Whymper comprara uma carruagem para si. O moinho, no entanto, não foi usado para gerar eletricidade. Servia para moer milho, o que gerava um belo lucro. Os animais lutavam agora para construir um novo moinho de vento; quando ficasse pronto, dizia-se, os dínamos seriam ins talados. Mas não se falava mais das comodidades com as quais Bola-de-Neve fizera os animais sonhar, como as baias com luz elétrica e água quente e fria, e a semana de três dias. Napoleão denunciara tais ideias como contrárias ao espírito do Animalismo. A verdadeira felicidade, dizia ele, estava em trabalhar bastante e viver com simplicidade.

De certa forma, parecia que a fazenda tinha enri quecido sem tornar os animais mais ricos – exceto, é claro,

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os porcos e os cães. Talvez isso ocorrera, em parte, porque havia tantos porcos e tantos cães. Não que essas criaturas não trabalhassem, à sua maneira. Havia, como Garganta não se cansava de explicar, trabalho até não acabar mais na supervisão e na organização da fazenda. A maior parte desse trabalho era de natureza tal que os outros animais eram ignorantes demais para entender. Por exemplo, Gar ganta dissera-lhes que os porcos trabalhavam exaustiva mente todos os dias debruçados sobre coisas misteriosas com nomes como “arquivos”, “relatórios”, “minutas” e “memorandos”. Tratava-se de longas folhas de papel que precisavam ser totalmente cobertas com coisas escritas e, assim que eram preenchidas, tinham de ser queimadas na fornalha. Tudo isso era da maior importância para o bem-estar da fazenda, Garganta afirmava. Mesmo assim, nem os porcos nem os cães produziam nenhum alimento com seu trabalho; e eles eram numerosos, e tinham um apetite voraz.

Quanto aos outros, sua vida – até onde sabiam –continuava como sempre fora. Estavam quase sempre com fome, dormiam sobre palha, bebiam água do reservatório e trabalhavam na lavoura; no inverno sofriam com o frio e, no verão, com as moscas. Às vezes, os mais velhos puxavam de suas memórias debilitadas, tentando determinar se a situação nos primórdios da Rebelião, quando a expulsão de Jones ainda era recente, era melhor ou pior do que hoje em dia. Não conseguiam se lembrar. Não tinham nada com que comparar sua vida atual: nada além das listas de números de Garganta que, invariavelmente, mostravam que tudo

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ficava cada vez melhor. Os animais consideravam esse problema insolúvel; de qualquer maneira, tinham pouco tempo para pensar nesse tipo de coisa agora. Apenas o velho Benjamim dizia lembrar-se de cada detalhe de sua longa vida e sabia que as coisas nunca foram, e não poderiam ser nem muito melhores nem muito piores – fome, dificuldades e decepção eram, assim dizia ele, a lei inalterável da vida. Mesmo assim, os animais nunca perdiam a es perança. Além disso, nunca haviam perdido, nem por um instante, o sentimento de orgulho pelo privilégio de serem membros da Fazenda dos Bichos. Ainda era a única fazenda em todo o condado – em toda a Inglaterra! – cujos animais eram os únicos proprietários e administradores. Nenhum deles nunca deixava de maravilhar-se com isso, nem mesmo os mais jovens, muito menos os recém-chega dos que foram comprados de outras fazendas a vinte, trinta quilômetros de distância. E quando ouviam o disparo de espingarda e viam a bandeira verde tremulando no mastro, seus corações inflamavam-se com um orgulho infinito, e as conversas giravam em torno dos dias heroicos do passado, da expulsão de Jones, da redação dos Sete Mandamentos, das grandes batalhas onde os invasores humanos foram derrotados. Nenhum dos velhos sonhos fora abandonado. Ainda acreditavam na República dos Bichos que o velho Major previra, quando os campos verdes da Inglaterra não seriam mais pisados por pés humanos. Algum dia isso aconteceria: talvez não tão já, talvez nem mesmo durante a existência dos animais de hoje, mas esse dia haveria de chegar. Ainda podia-se ouvir a melodia de Bichos da

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Inglaterra sendo murmurada em segredo aqui ou ali: de qualquer forma, a verdade é que todos os animais da fa zenda a conheciam, apesar de ninguém ter a coragem de cantá-la em voz alta. Suas vidas podiam ser difíceis e nem todos os seus sonhos foram concretizados; mas tinham consciência de que não eram iguais aos outros animais. Se tinham fome, não era por terem de alimentar tirânicos seres humanos; se trabalhavam duro, pelo menos traba lhavam em proveito próprio. Nenhuma criatura entre eles andava sobre dois pés. Nenhuma criatura era chamada de “Dono”. Todos os animais eram iguais.

Um dia, no início do verão, Garganta ordenou que as ovelhas o seguissem, e levou-as até um canteiro aban donado no outro lado da fazenda, que estava tomado por brotos de bétulas. As ovelhas passaram o dia inteiro por lá, mastigando as folhas sob a supervisão de Garganta. À noite, ele voltou para a sede sozinho pois, como fazia calor, orde nara que as ovelhas dormissem por lá. Acabaram ficando a semana toda no canteiro e, nesse meio-tempo, nada se sabia a seu respeito. Garganta ficava com elas durante a maior parte dos dias. Explicou que estava ensinando-lhes uma nova canção e, por isso, precisava de privacidade.

Foi logo depois do retorno das ovelhas, em uma tarde agradável depois que os animais tinham termina do o trabalho e voltavam para os galpões da fazenda que ouviram o relinchar aterrorizado de um cavalo, vindo do pátio. Assustados, os animais ficaram paralisados. Era a voz de Quitéria. Ela relinchou novamente e todos os animais

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começaram a galopar apressados em direção ao pátio. Então, puderam ver o que espantara Quitéria.

Um porco caminhava sobre as patas traseiras. Sim, era Garganta. Um pouco desajeitado, como se não estivesse acostumado a suportar todo o seu peso naquela posição, mas sem se desequilibrar, lá estava ele passeando pelo pátio. E, logo depois, saiu pela porta da sede uma longa fila de porcos, todos andando sobre duas patas. Alguns andavam melhor que os outros, um ou dois se desequilibravam um pouco – e pareciam até mesmo querer a ajuda de uma bengala – mas todos conseguiram dar uma volta completa no pátio com sucesso. Por fim, ouviu-se um tremendo uivar de cães e o cacarejar estridente do galo preto, cujo som anunciou Napoleão em pessoa, majestosamente ereto, lançando olhares arrogantes para todos os lados e acompanhado dos cães, pulando à sua volta.

Ele carregava um chicote em sua pata.

Houve um silêncio mortal. Estupefatos, aterrori zados, encolhidos uns junto aos outros, os animais ob servavam a longa fila de porcos marchando lentamente ao redor do pátio. Era como se o mundo tivesse virado de pernas para o ar. Então, passado o choque inicial e a despeito de tudo – do pavor dos cães e do hábito desenvolvido ao longo de anos de nunca reclamar e nunca criticar, não importando o que acontecesse – veio o momento em que poderiam ter protestado de alguma forma. Mas, nesse exato instante, como se obedecessem a um sinal, todas as ovelhas irromperam em um balido estrondoso...

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— Quatro pernas, bom, duas pernas, melhor! Qua tro pernas bom, duas pernas, melhor! Quatro pernas bom, duas pernas, melhor!

Continuaram por cinco minutos sem parar. E, quando finalmente ficaram em silêncio, a oportunidade de lançar algum protesto tinha passado, pois os porcos já estavam de volta dentro da sede.

Benjamim sentiu um nariz roçando o seu ombro. Olhou em volta. Era Quitéria. Seus velhos olhos pareciam mais embaçados do que nunca. Sem dizer nada, ela puxou levemente sua crina, conduzindo-o até o fundo do grande celeiro, onde os Sete Mandamentos estavam escritos. Por um minuto ou dois, ficaram parados olhando para a parede coberta de piche com letras brancas.

— Minha visão está falhando, disse ela por fim. — Mesmo quando era mais nova, não conseguia ler o que es tava escrito aí. Mas parece-me que a parede está diferente. Os Sete Mandamentos continuam como antes, Benjamim? Dessa vez, Benjamim aceitou quebrar sua própria regra e leu em voz alta o que estava escrito na parede. Não havia nada além de um único Mandamento. Dizia assim:

TODOS OS ANIMAIS SÃO IGUAIS MAS ALGUNS ANIMAIS SÃO MAIS IGUAIS QUE OS OUTROS

Depois disso, não pareceu estranho quando, no dia seguinte, os porcos supervisionaram o trabalho da fazenda com chicotes em suas patas. Não pareceu estranho

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saber que os porcos haviam comprado um aparelho de radiocomunicação, estavam em negociações para instalar um telefone e começaram a assinar revistas e jornais. Não pareceu estranho quando Napoleão foi visto passeando pelo jardim da sede com um cachimbo na boca – não, nem mesmo quando os porcos pegaram as roupas do armário de Jones e vestiram-nas, quando Napoleão surgiu usando um casaco preto, calças de montaria e polainas de couro e sua leitoa favorita apareceu com o vestido de seda reves tida de lã que a Sra. Jones costumava usar aos domingos.

Uma semana depois, à tarde, algumas charretes foram vistas subindo a trilha que leva à fazenda. Uma delegação de fazendeiros da vizinhança fora convidada a fazer uma visita de inspeção. Mostraram-lhes toda a fazenda e eles ficaram admirados com tudo que viram, especialmente com o moinho de vento. Os animais estavam limpando a plantação de nabos. Trabalhavam com afinco e não ousavam levantar o olhar, sem saber de quem ter mais medo – dos porcos ou dos humanos.

Naquela noite, ouviu-se gargalhadas espalhafatosas e rompantes de cantorias vindo da sede. E, subitamente, ao ouvir a confusão de vozes, os animais ficaram mortos de curiosidade. O que poderia estar acontecendo lá dentro, agora que – pela primeira vez – animais e seres humanos encontravam-se em pé de igualdade? De comum acordo, começaram a mover-se furtivamente em direção ao jardim da sede.

Ao chegar ao portão hesitaram, temendo continuar, mas Quitéria tomou a dianteira. Foram na ponta dos pés

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até a sede e aqueles que eram mais altos espiaram pela janela da sala de jantar. Dentro, ao redor de uma grande mesa, sentavam-se meia dúzia de fazendeiros e meia dúzia dos porcos mais importantes, com Napoleão no lugar de honra, à cabeceira. Os porcos pareciam estar completa mente à vontade em suas cadeiras. Jogavam cartas, mas, por um momento, interromperam o jogo para brindar. Um grande jarro circulava, enchendo as canecas com cerveja. Ninguém percebeu os rostos admirados dos animais que espiavam pela janela.

O Sr. Pilkington, de Foxwood, levantou-se com a caneca em punho. Em um instante, disse, iria propor a todos os presentes um brinde. Mas, antes de fazê-lo, achava ser sua obrigação dizer-lhes algumas palavras.

Para ele, era motivo de grande satisfação, disse – e ti nha certeza de que para todos os presentes também – sentir que o longo período de desconfiança e desentendimentos havia chegado ao fim. Houve uma época em que – não que ele ou qualquer um dos presentes compartilhassem desses sentimentos – os respeitáveis proprietários da Fazenda dos Bichos eram vistos, não diria com hostilidade, mas talvez com certo receio por seus vizinhos humanos. Incidentes desafortunados ocorreram, ideias equivocadas propagaram-se. Muitos sentiam que a existência de uma fazenda pertencente a animais e por eles administrada era, de certa maneira, anormal e propensa a causar inquietações na vizinhança. Muitos fazendeiros presumiram, sem as devidas investigações, que ali imperavam libertinagem e indisciplina. Preocupavam-se com os efeitos sobre os

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próprios animais, até mesmo sobre seus empregados hu manos. Mas todas essas dúvidas estavam agora dissipadas. Hoje, ele e seus amigos visitaram a Fazenda dos Bichos e inspecionaram cada centímetro com os próprios olhos. E o que encontraram? Não apenas os métodos mais modernos, mas, sobretudo, uma disciplina e uma ordem que deve riam ser exemplo para todos os fazendeiros, em qualquer lugar. Ele acreditava que seria correto afirmar que os animais inferiores da Fazenda dos Bichos trabalhavam mais e comiam menos que quaisquer outros no condado. Na verdade, ele e seus companheiros tinham observado hoje muitos métodos que gostariam de introduzir nas próprias fazendas imediatamente.

Ele terminaria seu discurso, disse, enfatizando uma vez mais os sentimentos de amizade que persistiam, e que deveriam persistir, entre a Fazenda dos Bichos e seus vizinhos. Entre os porcos e os seres humanos não havia, e não deveria haver, nenhum conflito de interesses de nenhuma forma. Suas lutas e dificuldades eram uma só. O problema do trabalho não era o mesmo em todo lugar? Nesse instante, ficou claro que o Sr. Pilkington pretendia fazer algum tipo de gracejo, mas, por um momento, pareceu dominado pela própria piada para conseguir proferi-la. Depois de muito engasgar, ficando com seus vários queixos arroxeados, conseguiu falar: “Se os senhores têm de lidar com animais inferiores”, disse, “nós temos que lidar com as classes inferiores!”.

Ao ouvir a anedota, toda a mesa começou a garga lhar, e o Sr. Pilkington mais uma vez parabenizou os porcos

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pelas rações minguadas, as longas horas de trabalho e a falta geral de luxos que ele observara na Fazenda dos Bichos.

E agora, ele, finalmente, pedia a todos que se levan tassem, certos de que seus copos estavam cheios. “Cavalheiros”, concluiu o Sr. Pilkington, “cavalheiros, proponho um brinde: ‘À prosperidade da Fazenda dos Bichos!’”

Houve uma animada ovação e bater de pés. Napoleão ficou tão agradecido que deixou seu lugar para dar a volta na mesa e tocar com sua caneca a do Sr. Pilkington, antes de esvaziá-la. Quando as felicitações acabaram, Napoleão, que continuara em pé, deu a entender que também tinha algo a dizer.

Como todos os discursos de Napoleão, esse também foi curto e objetivo. Estava, disse ele, igualmente feliz que o período de desavenças tinha acabado. Por muito tem po, ouviu-se boatos – espalhados, ele tinha razões para acreditar, por algum inimigo perverso – de que havia algo subversivo, até mesmo revolucionário, nas atitudes suas e de seus colegas. Acreditou-se que eles estavam tentando incitar à rebelião os animais das fazendas vizinhas. Nada poderia estar mais longe da verdade! Seu único desejo, tanto agora quanto no passado, era viver em paz e ter relações comerciais corriqueiras com seus vizinhos. Esta fazenda, que ele tinha a honra de controlar – adicionou ele – era um empreendimento cooperativo. Sua escritura, que ele tinha sob sua posse, conferia a propriedade a todos os porcos em conjunto.

Ele não acreditava, disse, que nenhuma das antigas

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suspeitas ainda permanecia, mas algumas modificações foram feitas na rotina da fazenda a fim de suscitar mais confiança. Até aquele momento, os animais da fazenda tinham o tolo hábito de chamarem uns aos outros de “Ca marada”. Isso seria eliminado. Havia ainda um estranho costume, cuja origem era desconhecida, de marchar todos os domingos pela manhã diante de uma caveira de porco pregada a um poste do jardim. Isso também seria elimina do, e a caveira já fora enterrada. Seus visitantes devem ter observado, seguramente, a bandeira verde que tremulava no poste. Se o fizeram, podem ter notado que o casco e o chifre brancos que existiam antes foram removidos. A partir de agora, seria uma simples bandeira verde.

Ele tinha apenas uma crítica a fazer ao discurso excelente e gentil do Sr. Pilkington. Ele referira-se o tempo todo à “Fazenda dos Bichos”. O Sr. Pilkington não poderia, evidentemente, saber – já que ele, Napoleão, iria anunciar pela primeira vez que o nome “Fazenda dos Bichos” fora abolido. A partir daquele momento, a fazenda deveria ser chamada de “Fazenda do Solar” – que, acreditava ele, era seu nome original e correto.

— Cavalheiros – concluiu Napoleão –, vou propor o mesmo brinde de antes, mas de uma forma diferente. En cham seus copos até a boca. Cavalheiros, eis meu brinde: “À prosperidade da Fazenda do Solar!”.

Houve as mesmas calorosas felicitações de antes, e as canecas foram completamente esvaziadas. Mas, para os animais que espiavam a cena do lado de fora, algo es tranho parecia estar acontecendo. O que havia alterado a

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cara dos porcos? Os olhos embaçados de Quitéria iam de uma cara a outra. Algumas delas tinham cinco queixos, outras tinham quatro, outras três. Mas o que era aquilo que parecia misturá-las e transformá-las? Então, os aplausos acabaram, o grupo voltou ao jogo de cartas, e os animais afastaram-se em silêncio.

Mas mal tinham andado vinte metros e pararam novamente. Um vozerio ensurdecedor vinha da sede. Vol taram correndo e espiaram pela janela mais uma vez. Sim, uma discussão violenta acontecia. Havia gritos, socos na mesa, olhares desconfiados, negativas furiosas. Parecia que a origem da briga fora o fato de Napoleão e o Sr. Pilkington terem descartado um ás de espadas ao mesmo tempo.

Doze vozes gritavam raivosas, e todas se pareciam. Não havia dúvidas, agora, quanto ao que acontecera com a cara dos porcos. As criaturas do lado de fora olhavam dos porcos para os homens, dos homens para os porcos e dos porcos para os homens uma vez mais; mas já era impossível dizer quem era porco, quem era homem.

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Caro leitor!

Seria possível uma rebelião liderada por porcos? Uma fazenda governada por animais? Na fábula escrita em 1945 pelo jornalista/escritor indo-britânico Eric Arthur Blair, popularmente conhecido pelo pseudônimo de George Orwell (1903-1950), tudo é possível, até mesmo porcos beberem uísque.

A revolução dos bichos é uma obra-prima da literatura mundial e faz uma paródia da Revolução Russa (1917-1923) e os desdobramentos da criação da URSS – União das Re públicas Socialistas Soviéticas (1923-1991).

O livro foi escrito no contexto do fim da II Guerra Mun dial, no qual afloraram disputas ideológicas entre dois sistemas político-econômicos imperialistas, que duelaram em boa parte do século XX pela hegemonia no mundo, sendo eles o sistema de produção capitalista e o socialismo/ comunismo soviético.

Mas por que Orwell escreveu uma fábula sobre ani mais revolucionários?

A história de vida do escritor nos leva a algumas pistas. Ainda jovem, George Orwell se alistou voluntariamente como soldado nas fileiras da Frente Popular Espanhola, apoiada pelos comunistas, que lutavam contra o Movimen to Nacionalista Conservador, de matiz ideológica fascista,

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liderada pelo então futuro ditador espanhol Francisco Franco (1892-1975). Socialis ta convicto, Orwell percebeu que os rumos políticos da in fluência soviética, liderada por Josef Stálin (1878-1953) sobre o Partido Comunista Espanhol, e da Frente Po pular estavam indo contra o ideário revolucionário, descambando para ações totalitaristas, inclusive com perseguições contra aqueles que não seguissem as orientações vindas de Moscou. Para retratar de maneira lúdica os embates ideológicos e não correr o risco de ser preso e torturado, Orwell satirizou os fatos, criando uma fábula em que os animais de uma fazenda em decadência são os personagens centrais do livro, onde os bichos promovem a revolução e tomam o poder dos humanos.

Estrutura da narrativa O enredo do livro é escrito no gênero literário fábula: textos que carregam uma moral humana que permite ao leitor uma reflexão sobre o tema abordado pelo escritor; os representantes dessa moral são invariavelmente formados por personagens animais.

Os gêneros textuais utilizados pelo autor são a sátira e a paródia, que apresentam críticas e representações artísticas/literárias exageradas de um determinado acontecimento histórico.

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• Apresentação: Introdução dos personagens e do lugar em que a história se passa.

• Desenvolvimento: Problemática da história, elementos são introduzidos para que o leitor possa contextualizar o que está por vir.

• Clímax: É o momento em que se dão os principais acontecimentos da história, ponto-chave.

• Desfecho: Resolução do ponto-chave e conclusão da trama.

Elementos da narrativa

• Narrador: A história é narrada em 3 ° pessoa, ou seja, por um narrador onisciente que em determinados mo mentos se utiliza do discurso direto, para representar os diálogos entre personagens, e do discurso indireto, narrando diálogos entre os personagens.

• Personagens: Divididos em protagonistas (porcos) e se cundários: animais (cavalos, galinhas, burros, vacas, corvo, gata) e humanos (proprietário da fazenda e vizinhos)

• Tempo: Atemporal, apesar de uma sequência dos fatos, os anos vão se passando sem percebermos datação tem poral. Exemplos, anos, meses, períodos... característico das fábulas.

• Espaço: Fazenda do Solar, é dentro da propriedade que a história acontece. O estábulo e a sede da fazenda são lugares importantes no desenrolar da trama.

Mas o que levaria os animais a se rebelarem? O sonho de um velho porco seria suficiente para insuflar os bichos contra o domínio do Sr. Jones, proprietário da fazenda? Como con-

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vencer todos os animais a participarem da revolta? A fome, os maus-tratos e a submissão seriam o estopim para a rebelião? São questionamentos respondidos ao longo da leitura.

De maneira metafórica, o autor nos remete ao processo de tomada de poder contra o regime czarista na Rússia pe los revolucionários socialistas. Baseado no sonho de uma sociedade mais justa, com os trabalhadores no comando, o principal líder da Revolução Russa foi Vladímir Ilitch Uliánov, ou simplesmente Lênin (1870-1924).

Lênin é comparado ao personagem do porco Major, um animal sábio e respei tado, sendo a grande inspiração para a maior parte dos animais.

“Nenhum animal sabe o que é felicidade, lazer. Nenhum animal é livre, a vida é marcada por miséria e escra vidão.” (Porco Major)

“Os capitalistas cha mam 'liberdade' a dos ricos de enriquecer e a dos operários para morrer de fome.” (Lênin)

Em uma clara crítica ao capitalismo, os animais trabalham, recebem o mínimo para sua subsistência e o exce dente se transforma em acumulação de riqueza para os homens. Dessa maneira, os bichos da fazenda elegem o Homem como principal inimigo.

O idealismo do velho porco serviu de base para estimular nos outros animais o sonho de uma sociedade mais justa e

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igualitária, um mundo sem exploração, com alimentação farta, onde todos teriam os mesmos direitos, contra uma vida miserável, árdua e curta.

“...nenhum animal deve nunca oprimir sua própria es pécie. Fracos ou fortes, espertos ou ingênuos, somos todos irmãos. Nenhum animal deve nunca matar outro animal. Todos os animais são iguais.” (Porco Major)

Mas será que somos todos iguais? Ao longo da história os animais seriam tratados nas mesmas condições, com igualdade, como se pregava na rebelião?

Para que as ideias de uma rebelião se concretizem, é preciso identificação, sentimento de pertencimento; para isso, faz-se necessário embasar as ideias com teorias e símbolos, tais como manifestos, bandeiras, hinos, con decorações, datas comemorativas, entre outros elementos que fixem os ideais da revolução.

Os sete mandamentos que fundamentam a teoria do ani malismo representam uma alusão ao Manifesto Comunista, escrito em 1848, pelo principal teórico do comunismo, o filósofo alemão Karl Marx (1818-1883), em parceria com outro ideólogo comunista, o industrial e teórico alemão Friedrich Engels (1820-1895).

A música “Bichos da Inglaterra”, entoada pelos animais ao longo do livro, pode ser considerada uma clara represen tação do hino da Internacional Comunista, escrito em 1871 pelo poeta e operário Eugène Pottier (1816-1887), durante a Comuna de Paris, que foi um movimento de insurreição popular liderado por operários contra a invasão da Prússia na França. Posteriormente, o hino A Internacional se espalhou pelo mundo e foi adotado como hino da URSS.

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Trecho da música “Bichos da Inglaterra” –George Orwell Bichos da Inglaterra e da Irlanda Bichos de todo lugar Atenção às boas-novas Do futuro que há de chegar. A derrota do Homem tirano, Cedo ou tarde todos verão, E nos férteis campos ingleses Só bichos pisarão. Argolas no nariz, não mais, Muito menos arreios nas costas, Freio e espora, pra sempre esquecidos, E as cruéis chibatas, depostas...

Trecho de A Internacional –Eugène Pottier

De pé, ó vítimas da fome... De pé, de pé, não mais senhores Se nada somos em tal mundo Sejamos tudo, ó produtores

Bem unidos façamos Nesta luta final Uma terra sem amos A Internacional Senhores, patrões, chefes supremos Nada esperamos de nenhum Sejamos nós que conquistemos A terra mãe livre e comum...

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Mas nessa distopia escrita pelo autor nem tudo são flo res. As disputas de poder, a manipulação e alienação são elementos que passam a fazer parte dessa pequena socie dade animal.

Cada bicho tem uma personalidade e uma capacidade de inteligência, que representam as particularidades in dividuais e sociais, além de representarem uma divisão por classes sociais.

Os porcos possuem o domínio intelectual, representam a classe política. Por saberem ler e escrever, lideram e manipulam os outros animais. Napoleão, Bola-de-Neve e Garganta são os porcos protagonistas, e cada qual com suas características vai representar e ditar as ordens na fazenda.

Após a morte de Lenin, em 1923, a Revolução Russa passa a ter uma lacuna de um líder para representar o poder da classe trabalhadora e a da manu tenção dos ideais revolucionários, o que gerou uma disputa de poder pelo comando do Partido Comu nista entre dois líderes soviéticos, Josef Stálin, que tinha a ideia de promover a revolução de dentro para fora, ou seja, primeiro estruturar o processo de formação da URSS, para depois expandir os ideais socialistas, e Leon Trotsky (1879-1940), chefe do Exército Vermelho, com ideais universalistas e expansionistas da revolução.

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Stálin vence o duelo e se transforma no principal líder soviético. Hábil politicamente, concentra poder e começa a adotar práticas totalitárias, como repressão política e tortura. Obrigado a fugir da URSS, Trotsky é assassinado em 1940, quando estava refugiado no México.

Durante a leitura, fica clara a analogia dos personagens e situações com os rumos que a URSS tomava, com Napoleão representando Stálin; Bola-de-Neve, Trotsky; e Garganta, a imprensa oficial do governo.

Outra passagem que chama a atenção é a das relações comerciais e políticas estabelecidas por Napoleão com dois fazendeiros vizinhos, Frederick representando a figura do líder nazista Adolf Hitler (1889-1945) e Pilkington na figura do primeiro-ministro britânico Winston Churchill (1874-1965), em uma alusão às tratativas de Stálin durante a II Guerra Mundial, com habilidade política para negociar com os dois lados antagônicos ideologicamente.

Ao longo da obra, a Revolução dos Bichos ganha outros rumos com os porcos no poder. Um regime de liberdade para os animais poderia se transformar em um regime totalitário? De maneira magistral, George Orwell descreve como os porcos vão alterando os setes mandamentos da filosofia do animalismo para se beneficiar, convencendo os outros animais de que, apesar das dificuldades, a “liberdade” comparada à da época do Sr. Jones é muito maior com os porcos no poder.

Mesmo com as mudanças de rumo, os animais acredi tavam nos ideais da revolução. Sansão, o cavalo de tração, representa a figura do trabalhador proativo, pouco ques tiona as ordens e trabalha pesado com seu vigor físico para

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que a produção e construção do moinho acontecesse, e leva consigo o lema “trabalharei ainda mais”; e quando pensava em questionar era convencido do contrário e repetia que “Napoleão sempre tem razão”. A gata e a égua Mimosa representam o individualismo e a futilidade; a égua Quitéria tentava questionar, mas esbarrava nas suas limitações intelectuais; o burro Benjamim, velho e sábio, sabia ler, mas sempre ficava em silêncio, cético em relação aos rumos da revolução, só se indignou quando alertou os outros animais para o destino final que o cavalo Sansão estava tendo, quando já não podia mais trabalhar. Os ca chorros representam as forças de segurança, os militares, servindo de guardas para os porcos. O corvo Moisés, com papel enigmático, representa a Igreja. As ovelhas formam a massa de manobra e repetem tudo que lhes é ordenado. “Quatro pernas, ruins, duas pernas bom.”

A revolução dos bichos é uma obra que foi ganhando relevância política e cultural ao longo do tempo. Nove anos após o seu lançamento, foi lançado um filme em formato de desenho animado retratando a história dos bichos tomando o poder na Fazenda do Solar. Essa adaptação foi feita em uma coprodução britânico-americana, pelos diretores John Halas e Joy Batchelor. Após a morte de George Orwell, em 1950, a CIA (Central Intelligence Agency – Agência Central de Inteligência dos EUA), comprou os direitos do filme e difundiu o desenho animado como propaganda anticomunista. Por ser uma adaptação, o filme tem um final diferente do livro, e claro, com uma contrarrevolução beneficiando os EUA durante a Guerra Fria.

Em 1999, um novo filme sobre a obra A revolução dos

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bichos foi lançado: Animal Farm (em uma tradução li vre, Fazenda dos animais), uma pro dução britânica di rigida por John Ste phenson. Da mesma forma que o primei ro filme, lançado em 1954, o filme de 1999 promove uma adaptação da obra de Orwell, e dessa vez o enredo é nar rado pela cachor rinha Jessie, que conta toda a saga da revolução e seus problemas, mas, como todo bom filme para crianças, encerra com um “final feliz”. É possível assistir gratuitamente os dois filmes pela plataforma do YouTube.

A obra de George Orwell transcendeu as telonas e foi tema de inspiração de um álbum de música inteiro baseado no livro A revolução dos bichos. A banda de rock britânica Pink Floyd lançou, em 1977, o álbum Animals. As canções contêm severas críticas sociais, tal como a emblemática “Pigs”, que tem início com a sonoridade de um grunhido (ronco) de um porco; a letra segue questionando o poder da classe alta, em alusão aos poderosos do sistema capitalista, comparando-os aos porcos do livro de Orwell.

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Trecho da música “Pigs” – Pink Floyd

Big man, pig man...

You well heeled big wheel…

And when your hand is on your heart… You're nearly a good laugh…

With your head down in the pig bin Saying “Keep on digging” What do you hope to find Down in the pig mine?

Trecho com tradução livre da música “Pigs” –Pink Floyd

Homem grande, homem porco...

Você, da roda dos figurões...

E quando sua mão está em seu coração...

Você é quase uma boa piada...

Com a cabeça abaixada na lixeira Dizendo “Continue cavando”

O que você espera encontrar Na mina de porcos?

Outra canção emblemática do álbum Animals é “Dogs”, com uma crítica aos trabalhadores sem consciência de classes, competitivos e individualistas. A música “Sheeps” representa uma crítica à passividade e alienação das ove lhas, comparando-as com a população que serve de massa de manobra e é facilmente enganada pelos governantes.

No Brasil, a banda de rock Engenheiros do Hawaii lançou, em 1992, a música “Ninguém = Ninguém”, proble matizando a ideia de todos serem iguais sem considerar

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as diferenças. A letra da música traz de forma adaptada o único mandamento da República dos bichos liderada por Napoleão. “Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que os outros”.

Trecho da música “Ninguém = Ninguém” –Engenheiros do Hawaii, 1992

Há tanta gente pelas ruas Há tantas ruas e nenhuma é igual a outra Ninguém é igual a ninguém Me espanta que tanta gente sinta (Se é que sente) A mesma indiferença... Todos iguais, todos iguais Mas uns mais iguais que os outros...

O álbum Animals, da banda inglesa Pink Floyd, e a músi ca “Ninguém = Ninguém” podem ser acessados na íntegra e gratuitamente pela plataforma do YouTube. Orwell, de maneira simples e direta, escreve uma sátira sobre as relações de poder e o totalitarismo baseada no exemplo soviético, liderado por Stálin do período da Revo lução Russa até sua morte, em 1953. Independentemente do viés ideológico, a obra se encaixa em vários exemplos de governos autoritários ao longo dos séculos XX e XXI, seja de esquerda ou direita.

No ano de 2021 completa-se o septuagésimo sexto aniversário da publicação da A revolução dos bichos. Desde o seu lançamento, a obra já foi censurada nos EUA, URSS e Alemanha. Atualmente o livro é proibido na China, justa mente por ser material que aponta semelhanças a determi-

A REVOLUÇÃO DOS BICHOS 149

nadas ações totalitaristas do país asiático. A obra também é censurada nos Emirados Árabes Unidos, de acordo com o governo local por ser contra alguns valores islâmicos. Setenta e seis anos depois, A revolução dos bichos é mais atual do que nunca, consegue sintetizar de maneira me tafórica um importante período do século XX e nos alerta sobre a tirania e as atrocidades de regimes totalitaristas. A obra de Orwell pode se encaixar em qualquer governo populista, seja de um extremista de direita, de um ditador de esquerda ou de um líder teocrata fundamentalista.

O livro serve de luz para clarear as ideias contra o obs curantismo imposto por muitos governantes, que independentemente do viés ideológico se utilizam de diversos artifícios para se impor no poder, seja utilizando a propa ganda para disseminação da mentira, atualmente popula rizada pelas fakes news; ou então pelos discursos populistas vazios, que levam a população a acreditar que propostas

GEORGE ORWELL 150

absurdas sejam colocadas em prática; pela violência através da perseguição, repressão, prisão e tortura; pela censura à imprensa e ao direito de as pessoas expressarem suas opiniões; do impedimento à liberdade de ir e vir.

As formas de opressão impostas pelo totalitarismo são inúmeras, porém existem soluções e proteção ao vírus da violência, e a leitura é um excelente antídoto para erradicar a ignorância. Para não sermos sempre ovelhas, precisamos nos vacinar, e A revolução dos bichos é a primeira dose da vacina contra a ignorância. E você, está esperando o que para iniciar a leitura do livro para não ser mais uma ovelha do rebanho?

Referências:

- Democracy and Revolution - Página 139, Vladimir Ilich Lenin - Resistance Books, 2000, ISBN 1876646004, 9781876646004 - 222 páginas.

https://neofeed.com.br/blog/home/autor-de-1984-e-a-revolucao-dos-bichos george-orwell-e-redescoberto-por-brasileiros/ (Imagem de George Orwell).

https://filmow.com/a-revolucao-dos-bichos-t7873/ (Imagem do filme A revolução dos bichos, 1999).

https://www.dw.com/pt-br/a-revolu%C3%A7%C3%A3o-dos-bichos-de-orwell quem-s%C3%A3o-os-porcos/a-54597635 (Imagem do filme A revolução dos bichos, 1954).

A
DOS BICHOS 151
REVOLUÇÃO

Impressão e acabamento Oceano Indústria Gráfica e Editora Ltda

Com esse lema, George Orwell lança seu olhar crítico e preciso sobre o regime proposto pela União Soviética no período stalinista em A Revolução dos Bichos. O livro é uma sátira ao totalitarismo, contada por meio de uma deliciosa fábula em que os animais expulsam os donos de uma fazenda e instalam um sistema igualitário, mas acabam corrompidos pelas mesmas fraquezas humanas. É um livro repleto de lições sobre os mecanismos do poder na história contemporânea.

“Todos os animais são iguais, mas alguns animais são mais iguais que outros.”

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