0609L21611 - Mary Prince

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A HISTÓRIA DE MARY PRINCE Uma Escrava das Índias Ocidentais MARY PRINCE Tradução Alexandre Camaru Ilustrações Wesley Botto
A HISTÓRIA DE MARY PRINCE Uma Escrava das Índias Ocidentais MARY PRINCE Tradução Alexandre Camaru Ilustrações Wesley Botto

CNPJ 19.893.722/0001 40

Copyright © 2021 Editora BMH Eireli

Copyright da tradução © 2021 Alexandre Camaru

DECLARAÇÃO

Texto extraído da 3a - edição da obra em domínio público em língua inglesa, originalmente publicada por F. Westley e A. H. Davis, London, and Waugh & Innes, Edimburgo, em 1831, com o título The History of Mary Prince: a West Indian Slave. Related by Herself with a Supplement by the Editor. To which is added, the Narrative of Asa-Asa, a Captured African. Uma cópia digitalizada dessa obra encontra-se disponível na íntegra no website da British Library Online.

Direção editorial: Lauriane de Lourenzi

Tradução: Alexandre Camaru

A eDOC BRASIL declara para os devidos fins que a ficha catalográfica constante nesse documento foi elaborada por profissional bibliotecário, devidamente registrado no Conselho Regional de Biblioteconomia Certifica que a ficha está de acordo com as normas do Código de Catalogação Anglo Americano (AACR2), as recomendações da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e com a Lei Federal n. 10.753/03.

Ilustrações: Wesley Botto

Revisão: Miriam de Carvalho Abões e Estúdio Caraminhoca

Mapas: Sônia Vaz

Diagramação: Nany Produções Gráficas

Material digital do professor e Paratexto: Alexandre Camaru

Produção gráfica: Demetrios Cardozo

Videos tutoriais

Organização: Lauriane de Lourenzi

É permitida a alteração da tipografia, tamanho e cor da fonte da ficha catalográfica de modo a corresponder com a obra em que ela será utilizada. Outras alterações relacionadas com a formatação da ficha catalográfica também são permitidas, desde que os parágrafos e pontuações sejam mantidos. O cabeçalho e o rodapé deverão ser mantidos inalterados. Alterações de cunho técnico documental não estão autorizadas. Para isto, entre em contato conosco.

Produção: Equipe M10

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Prince, Mary, 1788 1833

P956h A história de Mary Prince: uma escrava das Índias Ocidentais / Mary Prince; traduzido por Alexandre Camaru; ilustrações Wesley Botto São Paulo, SP: Editora BMH, 2021 80 p. : il. ; 13,5 x 20,5 cm

Título original: The History of Mary Prince: a West Indian Slave ISBN 978 65 993950 0 0 (Aluno) ISBN 978 65 993950 1 7 (Professor)

1. Escravidão. 2. Literatura infantojuvenil. I. Camuru, Alexandre II. Botto, Wesley. III. Título.

CDD 028.5

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

1a edição 2021

Editora BMH Eireli

CNPJ n.º 14.651.422/0001-31

Rua Maria Amélia Monteiro, n° 42 Vila Amélia, São Paulo/SP CEP 02630-060

Impressão e acabamento Oceano Indústria Gráfica e Editora Ltda. Rua Osasco, 644, Rodovia Anhanguera KM 33 – CEP 07750-000 – Cajamar/SP CNPJ 67.795.906/0001-10 Tel.: (011) 4446-7000

“Em respeito ao meio ambiente, as folhas deste livro foram produzidas com fibras obtidas de árvores de florestas plantadas, com origem certificada.”

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A HISTÓRIA DE MARY PRINCE

Uma Escrava das Índias Ocidentais (relatada por ela mesma)

Tradução e posfácio: Alexandre Camaru

Ilustrações: Wesley Botto

editora

Nasci em Brackish-Pond, nas Bermudas, numa fazenda de propriedade do sr. Charles Myners. Minha mãe era uma mucama e meu pai, Prince, era um carpinteiro pertencente1 ao sr. Trimmingham, um construtor de navios em Crow-Lane. Quando eu era criança, o velho sr. Myners morreu, e teve uma divisão dos escravos e outros bens entre a família. Fui comprada juntamente com minha mãe pelo velho capitão Darrel e dada à neta dele, a sinhazinha Betsey Williams. O capitão Williams, genro do sr. Darrel, era o mestre de uma embarcação que comercializava mercadorias e escravos por diversas localidades na América e nas Índias Ocidentais. Ele raramente ficava em casa por muito tempo seguido.

A sinhá Williams era uma mulher de bom coração e tratava bem todos os seus escravos. Ela teve apenas uma filha, a sinhazinha Betsey, pra quem eu tinha sido comprada e que tinha a mesma idade que eu. Eu era como se fosse um bicho de estimação da sinhazinha Betsey e eu amava ela muito, muito mesmo.2 Ela costumava me conduzir pela mão e me chamava de sua negrinha.

1 Expressões como essa e todas as demais presentes no texto, incluindo o termo “escravo” em vez de “escravizado”, que, na atualidade, possam ter uma conotação pejorativa em relação aos negros devem ser contextualizadas no momento histórico em que o relato foi escrito. (N. T.)

2 O prefácio da primeira edição, em inglês, especifica que a transcrição do relato procurou reproduzir ao máximo as repetições e a prolixidade, bem como as expressões e a fraseologia próprias do discurso oral da narradora. Nesse sentido, repetições, contrações, inadequações em relação à norma gramatical culta, expressões de cunho coloquial, variantes populares, entre outros recursos linguísticos e gramaticais presentes nesta tradução visam preservar essa característica de oralidade e informalidade do texto original, em inglês. (N. T.)

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Essa foi a época mais feliz da minha vida, pois eu era muito jovem pra entender direito minha condição de cativa e desatenta e espevitada por demais pra enxergar os dias de labuta e tristeza que estavam por vir. Minha mãe era mucama da mesma família. Eu ficava sob seus cuidados, e meus irmãos e minhas irmãs menores eram minhas companhias e meus parceiros de brincadeiras, três meninas e dois meninos, que minha mãe teve depois que mudamos para a casa da sinhá Williams. As tarefas dadas pras crianças eram leves, e a gente costumava brincar junto com a sinhazinha Betsey, com tanta liberdade que era quase como se ela fosse mesmo nossa irmã.

Já meu sinhô era um homem muito cruel e egoísta, e a gente sempre temia seu regresso do mar. Sua própria esposa tinha pavor dele e, durante o tempo em que

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o marido ficava em casa, ela raramente se atrevia a demonstrar sua habitual bondade pros escravos. Muitas vezes ele deixava a esposa nas circunstâncias mais difíceis pra ficar em companhia de outras mulheres, num lugar nas Índias Ocidentais (não me alembro direito do nome desse lugar agora). Minha pobre sinhá aguentava os maus-tratos do marido com muita paciência, e todos os escravos adoravam a sinhá e tinham muita pena dela. Eu era bastante apegada a ela e, depois de minha mãe, amava minha sinhá mais do que qualquer criatura no mundo. Minha obediência às suas ordens era prestada com alegria. Vinha unicamente do afeto que sentia por ela e não do medo causado pelo poder que a lei dos brancos tinha dado a ela sobre mim.

Eu mal tinha completado doze anos quando minha sinhá ficou sem condições financeiras de manter tantos de nós em casa e ela me alugou pra sra. Pruden, uma sinhá que morava a mais ou menos oito quilômetros da nossa casa, na freguesia vizinha, numa grande propriedade perto do mar. Chorei amargamente ao me separar de minha querida sinhá e da sinhazinha Betsey e, quando dei um beijo de despedida em minha mãe, meus irmãos e minhas irmãs, achei que meu coração ia parar. Doeu demais. Mas não tinha como escapar. Fui obrigada a ir. A generosa sinhá Williams me consolou dizendo que eu ainda ficaria perto de casa e poderia vir e ver ela e minha família sempre que eu conseguisse uma licença da sra. Pruden.

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Algumas horas depois, eu era levada pra uma casa estranha e me vi entre pessoas igualmente estranhas. Essa separação pareceu um martírio pra mim naquele momento, mas, nossa, foi leve, bem leve em comparação com as provações que passei até aqui! Foi um nadica de nada! Mas eu era uma criança e foi de acordo com as minhas forças.

Sabia que a sinhá Williams já não tinha condições de me manter por muito tempo e que era de bom grado que ela me cedia em troca de minha própria comida e roupa, então tentei me acostumar à mudança. A nova sinhá era uma mulher que se irritava facilmente mas, mesmo assim, ela não me tratava de todo mal. Realmente me alembro de ela ter me batido só uma vez e foi por eu ter ido visitar a sinhá Williams ao saber que ela estava doente e ter ficado mais tempo do que a sra. Pruden tinha me permitido. Toda a minha obri gação naquela época era ser babá de um docinho de bebê, o sinhozinho Daniel, e eu me apeguei tanto ao meu sinhozinho que meu maior prazer era passear com ele

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pela praia, acompanhada de seu irmão e sua irmã, o sinhozinho James e a sinhazinha Fanny. Ah, querida sinhazinha Fanny! Ela era uma jovem amável e gentil e gostava tanto de mim que queria que eu aprendesse tudo que ela própria sabia. Seu método de me ensinar era o seguinte: assim que a sinhazinha tinha suas li ções com a avó, ela vinha correndo e me fazia repetir igualzinho, palavra por palavra. Em poucos meses, eu já era capaz não só de dizer o alfabeto como também de soletrar muitas palavrinhas. Mas toda essa felicidade não duraria pra sempre. Aqueles dias eram agradáveis demais pra não ter um fim. Meu coração sempre amo lece quando penso neles.

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Nessa época, a sinhá Williams morreu. O pessoal da casa me deu a notícia da morte dela de repente, e a minha dor foi tão grande que, esquecendo que eu estava com o bebê no colo, corri imediatamente pra casa da minha querida sinhá. Mas cheguei a tempo apenas de ver o corpo sendo carregado. Puxa, foi um dia de muita tristeza, um dia pesado! Todos os escravos choraram. Minha mãe chorou e lamentou, e eu (tola criatura!) supliquei em vão que trouxessem minha querida sinhá de volta à vida. Eu não sabia nada direito sobre morte naquela época e me pareceu uma coisa difícil de suportar. Quando matutava na morte de minha sinhá, sentia como se o mundo estivesse todo errado e, por muitos dias e semanas, não conseguia atinar pra mais nada. Voltei pra casa da sra. Pruden, mas minha dor era grande demais pra ser consolada, e minha querida sinhá estava sempre em minha cabeça. Fosse dentro ou fora de casa, meus pensamentos estavam sempre me falando dela.

Fiquei na casa da sra. Pruden por cerca de três meses depois disso. Então, fui devolvida pro sinhô Williams pra ser vendida. Ah, esse foi um momento triste, triste mesmo! Eu me alembro bem desse dia. A sra. Pruden veio até mim e disse:

— Mary, você tem de ir pra sua casa agora mesmo. Seu dono vai se casar, e ele quer vender você e duas de suas irmãs pra levantar dinheiro pro casamento.

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Ao ouvir isso, desatei a chorar, embora, naquele momento, eu não tivesse a mínima noção do tamanho do meu infortúnio, ou do sofrimento que esperava por mim. Além disso, não estava gostando nada de deixar a sra. Pruden e o bebezinho, que crescia bastante apegado a mim. Por um tempo, não acreditei que a sra. Pruden estivesse falando sério, até que recebi ordens pro meu retorno imediato. Ah, a querida sinhazinha Fanny! Como ela chorou com nossa separação, enquanto eu beijava e abraçava o bebê, pensando que nunca mais ia ver aquele pedacinho de gente de novo. Deixei a casa da sra. Pruden e fui andando até a minha antiga casa com o coração cheio de tristeza. A ideia de ser vendida e ficar longe de minha mãe e da sinhazinha Betsey era tão apavorante que eu nem me atrevia a pensar nisso. Eu e minha mãe tínhamos sido compradas do sr. Myners, como já disse, pelo avô da sinhazinha Betsey, e dadas a ela. Sendo assim, a gente era, por direito, propriedade dela. Nunca tinha passado pela minha cabeça que a gente seria vendida ou apartada da minha sinhazinha. Quando cheguei à casa, fui ter imediatamente com a sinhazinha Betsey. Encontrei ela bastante aflita. Assim que me viu, ela gritou: — Ai, Mary! Meu pai vai vender tudo pra levantar dinheiro pra casar com aquela mulher perversa. Vocês são meus escravos, e ele não tem direito de vender vocês. É tudo pra agradar aquela bruxa.

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Então, a sinhazinha me disse que minha mãe estava morando com a irmã do pai dela, numa casa das redondezas, e eu fui até lá pra ver minha mãe. Foi um encontro muito triste. Lamentamos com um choro longo e pesaroso nossa desgraça.

— Aí vem uma das minhas negrinhas! — disse minha mãe no momento em que entrei. — Uma das pobres crias cativas que serão vendidas amanhã. Nossa, me dá calafrios só de pensar naquele dia! É demais pra mim e me faz recordar o grande sofrimento que tomou conta do meu coração e os pensamentos lamentáveis que passaram pela minha cabeça, enquanto ouvi as palavras lastimáveis de minha mãezinha, em prantos pela perda das filhas. Gostaria de conseguir encontrar palavras pra dizer tudo que sofri naquele instante. Só o grandioso Deus lá em cima conhece os pensamentos do coração apertado de um escravo e as dores amargas que acompanham separações como essas. Tudo o que amamos é tomado de nós. É triste, muito triste e difícil de suportar! Não dormi nada naquela noite matutando no que estava por vir. E a querida sinhazinha Betsey não parecia menos angustiada. Ela não aguentaria ser separada de seus antigos companheiros de brincadeiras e chorava sem parar, inconsolável. A manhã cinzenta finalmente chegou. Chegou cedo demais pra minha mãe e pra nós, as filhas dela. Enquanto

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ela nos vestia com os sacos novos com que a gente seria vendida, ela disse com uma voz pesarosa (que jamais esquecerei!):

— Veja, estou envolvendo minhas pobres filhas numa mortalha. Que tarefa dura pra uma mãe. — Aí ela chamou a sinhazinha Betsey pra se despedir da gente. — Vou levar minhas galinhas ao mercado — foram as suas próprias palavras. — Dê a última olhada nelas. Talvez a sinhazinha nunca mais veja elas de novo.

— Ai, coitadinhas de minhas cativas! Minhas escravas! — disse a querida sinhazinha Betsey. — Vocês pertencem a mim. Parte meu coração ter de me separar de vocês.

A sinhazinha Betsey deu um beijo de adeus em cada uma de nós e, quando ela foi embora, minha mãe chamou o restante dos escravos pra se despedir da gente também. Um deles, uma mulher chamada Moll, se achegou com um bebê nos braços.

— Ei! — minha mãe disse, vendo a escrava virar o rosto e olhar com os olhos marejados pro filho. — Sua vez vai chegar em breve.

Mas os escravos não podiam dizer nada pra confortar a gente. A eles só restava chorar e lamentar junto com a gente. Quando deixei meus queridos irmãos e a casa em que tinha sido criada, achei que meu coração ia explodir.

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Nossa mãe, chorando enquanto partia, chamou eu e minhas irmãs Hannah e Dinah. Aí, pegamos a estrada que levava a Hamble Town, onde chegamos por volta das 4 da tarde. Seguimos nossa mãe até o mercado. Lá ela colocou a gente em fila contra a parte externa de uma casa bem grande, de costas pra parede e com os braços cruzados na altura do peito. Sendo a mais velha, fiquei em primeiro lugar; Hannah, ao meu lado; em seguida, Dinah; e nossa mãe por perto, chorando por todas nós. Meu coração palpitava de pavor de um modo tão violento que apertei bem forte as mãos contra o peito. Mas nada acalmava meu coração, que estava quase saindo pela boca. Mas quem ligava pra isso? Será que alguma das pessoas presentes ali, que olhavam a gente com tanto desprezo, chegou a pensar na dor que tinha retorcido o coração daquela negra e de suas meninas? Não! Claro que não!

Nem todos ali eram maus, arrisco dizer, mas a escravidão endurece o coração dos brancos em relação aos pretos, e muitos deles não tinham o menor pudor ao fazer observações sobre nós em voz alta, sem levar em conta nossa dor, embora suas palavras frias caíssem como uma pimenta ardida sobre as feridas abertas em nosso coração. Penso que os brancos têm um coração pequeno que só pode sentir por eles próprios.

Por fim, o leiloeiro, que nos colocaria à venda como ovelhas ou gado, chegou e perguntou à minha mãe quem era a mais velha. Ela não disse nada, só apontou pra mim. Então o leiloeiro me pegou pela mão, me levou até o meio da rua e, me virando lentamente, me expôs pros presentes ao leilão. Fui logo rodeada por homens esquisitos, que me examinaram e me agarraram da mesma forma que um açougueiro faz com um bezerro ou um cordeiro que ele esteja querendo comprar. Falaram sobre minhas formas e meu tamanho com palavras conhecidas, como se eu não pudesse entender os significados delas mais do que um animal de carga entenderia. Fui, então, colocada à venda. Os lances começaram em algumas libras e, aos poucos, subiram pra 573, quando fui arrematada por esse lance, que foi o mais alto. Os presentes comentavam que eu tinha atingido uma quantia grande pra uma escrava tão jovem.

3 À época, esse valor, na moeda das Bermudas, equivalia a 38 libras esterlinas. (Nota da 1ª ed.)

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Foi então que vi minhas irmãs serem apresentadas e vendidas a donos diferentes. Assim, não tivemos a triste satisfação de sermos parceiras na escravidão. Quando o leilão acabou, minha mãe abraçou e beijou a gente, lamentando pelas filhas e implorando pra que a gente continuasse a ter um bom coração e cumprisse nosso dever para com nossos novos sinhôs. Foi uma despedida terrível. Uma foi pra um lado; outra, pra outro; e nossa mainha voltou pra casa arrasada, sozinha e sem nada que fosse seu. Meu novo sinhô era o Capitão I 4, que morava em Spanish Point. Depois da separação de minha mãe e minhas irmãs, eu acompanhei meu novo sinhô até a loja dele, e ele me deixou a cargo de seu filho, um rapazote de mais ou menos a minha idade, o sinhô Benjy. Foi ele quem me levou pra casa nova. Eu não sabia aonde estava indo ou o que meu novo sinhô faria comigo. Meu coração estava partido, e meus pensamentos se voltavam sem parar para aqueles de quem eu tinha sido tão repentinamente separada.

4 O prefácio da primeira edição detalha que os nomes de todas as pessoas mencionadas na narrativa de Mary foram reproduzidos conforme relatados por ela, com exceção dos nomes do Capitão I , de sua esposa e do sinhô D . À época da publicação da primeira edição, essas três pessoas já haviam morrido e a omissão de seus nomes visava preservar seus descendentes da execração pública por causa das atrocidades cometidas por elas. Essas omissões foram conservadas na presente tradução a fim de manter o cunho de documento histórico do relato. (N. T.)

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— Ai, mainha! Minha mainha! — ficava repetindo pra mim mesma. — Ai, minha mainha, minhas maninhas e meus maninhos. Será que algum dia vou ver vocês de novo?

Nossa! Quantas provações! Quantas provações! A água salgada me brota nos olhos sempre que penso em todos aqueles dias de aflição. Os tempos que se foram, quando eu, com um coração tão jovem, enlutei e sofri por aqueles que eu amava.

Já era noite quando cheguei à minha nova casa. Era uma casa bem grande, construída no sopé de uma colina um pouco alta, mas eu não pude ver muito do lugar naquela noite. Vi o bastante depois. As pedras e a madeira eram as melhores coisas que se encontravam por aquelas bandas. Não eram tão duras como o coração dos donos daquela propriedade.

Antes de eu entrar na casa, duas escravas, alugadas de outro dono, que estavam trabalhando no terreiro, falaram comigo e me perguntaram de quem eu era.

— Vim morar aqui. — foi só o que eu consegui responder.

— Pobre negrinha! Coitadinha! — as duas cochicharam. — Você deve se esforçar pra continuar tendo um bom coração, se for morar aqui.

Ao entrar, eu fiquei chorando num canto. A sinhá I chegou e retirou meu chapéu, um chapeuzinho

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preto de seda que a sra. Pruden tinha feito pra mim, e disse com uma voz meio grossa:

— Vou logo avisando, sua preta insolente: você não veio pra cá pra ficar chorando pelos cantos. Veio pra pegar no batente. — Com isso, ela colocou uma criança em meus braços, e, cansada como eu estava, fui imediatamente forçada a assumir minha antiga ocupação de babá.

Eu não suportava olhar pra minha sinhá. Sua fisionomia era severa demais. Ela era uma mulher amorenada, alta e corpulenta. As sobrancelhas dela estavam sempre cerradas. Alembrei as palavras das duas cativas quando vi a sinhá I e ouvi o som áspero da voz dela.

A pessoa em quem eu mais botei reparo naquela noite foi uma negra francesa chamada Hetty, que meu sinhô tinha tomado como cativa em pilhagens de navios. Era a mulher mais ligeira que já tinha visto. Não parava nem um segundo sequer. Alguns minutos depois da minha chegada, ela veio da ordenha das vacas e colocou as batatas-doces no fogo pra janta. Depois, ela ajuntou as ovelhas e trancou todas no curral, arrebanhou o gado perto da laguna, alimentou e escovou o cavalo do sinhô, deu de comer aos porcos e ao gado de corte, preparou as camas e despiu as crianças e colocou elas pra dormir. Era engraçado ficar olhando pra ela ocupada com seus

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afazeres. Era a única cara boa que eu tinha visto naquele lugar até ali e me sentia feliz por ela estar por perto. Ela me deu a janta de batatas e leite e também uma coberta pra eu me deitar, que ela estendeu pra mim no corredor, ao lado da porta dos aposentos da sinhá I . Fiquei muito aperreada e assustada naquela noite. Estava indo dormir quando ouvi um barulho no quarto da minha sinhá. Ela queria saber se Hetty tinha acabado um trabalho que ela tinha ordenado à preta. — Não, sinhá, ainda não — foi a resposta de Hetty, vinda do andar de baixo. Ao ouvir isso, o sinhô pulou da cama e, do jeito que estava, só de camiseta, desceu correndo pela escada com uma longa chibata na mão. Logo depois, ouvi o estalar do açoite, e a casa se encheu com os gritos intermináveis da pobre Hetty:

— Ai, ai, sinhô! Vou morrer, sinhô! Sinhô, tenha misericórdia de mim! Não me mate!

Foi um triste começo pra mim. Fiquei sentada no chão sobre a fina coberta, tremendo de pavor, como um cão assustado, e pensando que minha vez estaria próxima. Por fim, a casa ficou silenciosa, e esqueci por um instante todas as minhas amarguras ao cair no sono.

Na manhã seguinte, a sinhá se ocupou em me passar meus afazeres. Ela me ensinou a fazer todos os tipos de trabalhos domésticos: lavar e ferver a roupa, catar algodão e lã, esfregar o assoalho, cozinhar... E ela me ensinou (como posso esquecer?!) muito mais coisas do que essas. Ela me fez conhecer a diferença exata entre a dor do cipó, do chicote e da chibata, quando aplicados no meu corpo nu por sua própria mão impiedosa. E posso dizer que não havia punição mais terrível do que os safanões que recebia na cara e na cabeça de seu punho firme e pesado. Era uma mulher de meter medo e uma sinhá desumana com seus cativos. Havia dois moleques escravos na casa, em quem ela descarregava seu temperamento ruim de maneira especial. Um desses meninos era um crioulinho chamado Ciro, que tinha sido comprado ainda bebê nos braços da mãe. O outro, Jack, era um africano da costa da Guiné, que um marinheiro tinha dado ou vendido pro sinhô. Raramente se passava um dia sem que esses meninos não recebessem o pior tratamento e muitas vezes por não terem feito nada de errado. O sinhô e a sinhá pareciam achar que tinham o direito de maltratar os meninos por puro prazer e, quase sempre, suas ordens eram acompanhadas de safanões, tanto fazia se os moleques se comportassem bem ou mal. Via o corpo deles em carne viva com as surras. Sova em cima de sova. Eles nunca escapavam de um safanão, nem por um

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momento, e a vida dos coitados se passava num estado de medo constante. A sinhá não se contentava em usar só o chicote e beliscava também as bochechas e os braços dos pretinhos da maneira mais cruel.

A pena que tinha desses meninos logo foi transferida pra mim mesma. Era surrada, açoitada e beliscada por seus dedos impiedosos, no pescoço e nos braços, do mesmo jeito que eles eram. Arrancar toda a minha roupa, me pendurar nua pelos pulsos e me deixar em carne viva com a chibata eram castigos comuns por um deslize qualquer. Além disso, não era raro a sinhá me roubar as horas de sono. Ela costumava ficar acordada até tarde da noite, às vezes até de manhã, e eu tinha de ficar sentada num banco duro, madrugada afora, lavando roupa ou catando lã e algodão. Muitas vezes, eu caía vencida pelo sono, até ser despertada de um estado de torpor pelo chicote e forçada a retomar meus afazeres.

A coitada da Hetty, minha companheira de cativeiro, foi muito gentil comigo. Eu costumava chamar ela de tia. Mas Hetty levou uma vida pra lá de miserável, e sua morte foi acelerada (pelo menos os escravos todos achavam isso) pelo terrível castigo que ela recebeu do sinhô durante a gravidez. Aconteceu o seguinte: Hetty tinha amarrado uma vaca no pau, mas a vaca acabou puxando demais a corda e se soltou. O sinhô ficou roxo de raiva e ordenou que a pobre negra fosse deixada quase nua e, sem ligar pra gravidez dela, mandou amarrar a

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infeliz criatura numa árvore no terreiro. Aí, ele mesmo açoitou a preta o máximo que pode, com o chicote e com a chibata, até ela ficar toda ensanguentada. O sinhô descansou e, depois, bateu nela de novo... e de novo. Os gritos dela eram terríveis. O resultado foi que a miserável entrou em trabalho de parto antes do tempo e, após um parto muito difícil, deu à luz uma criança morta. Um pouco recuperada logo depois do resguardo, ela continuou sendo açoitada pelo sinhô e pela sinhá, e sua antiga vitalidade nunca mais voltou. Em pouco tempo, seu corpo, principalmente os braços e as pernas, ficou muito inchado. Ela se deitou sobre um tapete na cozinha até expulsar toda a água do corpo e morrer. Todos os escravos disseram que a morte foi uma coisa boa pra coitada da Hetty, mas eu chorei muito a perda dela. A forma como tudo aconteceu me deixou horrorizada. Eu não aguentava nem sequer pensar na morte de Hetty, mas, mesmo sem querer, fiquei matutando sobre o ocorrido por vários dias. Depois que a Hetty morreu, todos os afazeres dela ficaram em minhas costas, além dos que eu já tinha. Agora, eu tinha de ordenhar onze vacas todos os dias antes do sol nascer, agachada no meio do mato, cuidar do gado e das crianças, além de fazer o trabalho da casa. Não havia fim para a minha labuta... nem fim pros safanões que eu levava. Deitava à noite e levantava pela

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manhã aperreada e ressabiada e, muitas vezes, desejei que, como a coitada da Hetty, eu pudesse escapar daquela escravidão desumana5 e descansar em paz na sepultura. Felizmente a mão do Senhor, que naquela época eu desconhecia, estava estendida sobre mim e Sua misericórdia tinha reservado coisas melhores pra mim. Só que, por enquanto, meu fardo era chorar, chorar e chorar, por longos anos, e passar de uma provação pra outra, de um sinhô cruel pra outro pior ainda. Mas não posso perder o fio da meada e devo continuar com a minha história.

Um dia, um forte pé de vento e chuva veio de repente, e a sinhá me mandou esvaziar uma caçamba no terreiro. A caçamba já tinha uma rachadura antiga e profunda, atravessando bem no meio, e, ao emborcar a caçamba pra jogar a água fora, ela se partiu em duas bandas. Não tive como evitar o acidente, mas fiquei apavorada, já esperando um castigo severo. Corri chorando até a sinhá.

— Ô sinhá, a caçamba se partiu.

— Você quebrou a caçamba, não foi? — ela esbravejou. — Venha já aqui, sua preta estabanada!

Eu me acheguei tremendo toda. Ela arrancou minha roupa e me açoitou com muito ódio, até não ter mais forças pra usar a chibata, e não parou até

5 Em vários momentos da narrativa como aqui, fica evidente que a condição de escravizado era tão enraizada nos negros que Mary fala em uma “escravidão desumana”, como se fosse possível existir uma forma não desumana, mais adequada, de escravidão. (N. T.)

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que estivesse acabada de cansaço. Quando o sinhô chegou em casa à noite, ela contou pra ele o que eu tinha feito e, arre, que lástima, como ele me xingou. Depois de me ofender com todo palavrão que ele conseguiu alembrar (feios demais pra repetir agora) e me dar vários safanões bem doídos, ele esbravejou: — Amanhã eu vou voltar pra casa ao meio-dia, de pirraça, só pra aplicar um cento redondo no seu couro. Ele manteve a palavra. Pior pra mim! Não tenho como esquecer. Ele me pendurou numa escada e me deu ele mesmo cem chicotadas, e o sinhô Benjy ficou parado ao lado só pra contar. Quando já tinha me açoitado por um tempo, ele se sentava pra tomar fôlego. Depois de descansar, ele me batia de novo e de novo, até ficar bem cansado e tão encharcado de suor (pois o tempo estava muito abafado) que ele se afundou na cadeira, perto de desmaiar. Quando a sinhá veio trazer algo pra ele beber, aconteceu um terremoto terrível. Parte do telhado desmoronou e todas as coisas em casa começaram a balançar fazendo barulho. Nossa, imaginei que o final de tudo estava se aproximando e eu estava tão machucada com o açoitamento que nem me importava se ia sobreviver ou morrer. A terra estava roncando e tremendo. As coisas caíam por todos os lados, e a sinhá e os escravos choravam e gritavam sem parar: — Terremoto! Terremoto! Foi um dia terrível pra todos nós.

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Durante a confusão, me afastei de gatinhas e me escondi debaixo das escadas da varanda, na frente da casa. Meu estado era lamentável, o corpo coberto de sangue e hematomas. Eu não conseguia parar de gemer, desolada. Quando me viram, os outros escravos balançaram a cabeça e disseram: —Tadinha desta negrinha! Que sina! Fiquei deitada ali até de manhã, sem atinar muito pro que tinha acontecido, pois mal restava um fio de vida em mim e eu queria mais do que nunca morrer. Quando somos muito jovens, a morte sempre parece uma ótima maneira de escapar dos problemas, só que ela não veio pra mim naquela noite. Na manhã seguinte, fui obrigada pelo sinhô a me levantar e ir pros meus afazeres habituais, embora meu corpo, meus braços e minhas pernas estivessem tão machucados e doloridos que eu mal conseguia me mexer sem me acabar de dor. Mas, mesmo depois de todo o castigo severo, não foi a última vez que ouvi da caçamba. A sinhá ficava sempre jogando o acontecido na minha cara.

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Um tempo depois, uma das vacas se soltou do pau e comeu algumas batatas-doces. Eu estava na ordenha quando o sinhô descobriu o que tinha acontecido. Ele veio até mim e, sem mais delongas, se curvou, tirou uma das botas pesadas que usava e deu uma botinada tão violenta nas minhas cadeiras que eu urrei de dor. Achei que tivesse morrido e, desse dia em diante, passei a ter uma moleza nos quartos. Até a vaca se espantou com aquela violência e chutou o balde, derramando todo o leite. O sinhô sabia que o acidente tinha sido culpa dele, mas ele estava tão irritado que pareceu ficar contente por ter mais uma desculpa pra continuar com os maus-tratos. Não me alembro de quantas chibatadas ele me deu. Só sei que ele me bateu até eu não conseguir mais ficar de pé e até ele próprio ficar exausto. Depois disso, fugi pra casa de minha mãe, que estava morando com o sr. Richard Darrel. Minha mainha ficou ao mesmo tempo triste e feliz por me ver. Triste porque eu tinha sido maltratada e feliz porque ela não me via já fazia um bom tempo. Ela não se atreveu a me acolher na casa, mas me escondeu num buraco nas rochas nas proximidades e me trouxe comida à noite, depois que todos estavam dormindo. Meu pai, que vivia em CrowLane, perto do canal de água salgada, acabou sabendo que eu estava escondida na gruta. Então, ele foi atrás de mim e me levou de volta pro meu sinhô. Arre, pelejei muito pra não voltar, mas não teve jeito, fui obrigada a me apresentar.

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Quando chegamos em casa, o coitado do meu pai disse pro Capitão I :

— Sinhô, sinto muito que minha filha tenha sido forçada a fugir de seu dono, mas o tratamento que ela tem recebido é suficiente pra partir o coração dela. A visão das feridas no corpo dela quase partiu o meu próprio coração. Eu rogo ao sinhô, pelo amor de Deus, que perdoe minha filha por fugir e que o sinhô seja um bom dono pra ela no futuro.

O Capitão I disse que eu era tratada do jeito que merecia e que eu deveria ser castigada por ter fugido. Então, tomei coragem e disse que não aguentava mais os açoitamentos, que já não tinha mais forças e que, por isso, tinha fugido pra casa de minha mãe. Mas as mães só podiam chorar e lamentar pelos filhos. Elas não podiam salvar a cria da desumanidade dos sinhôs... do chicote, do cipó e da chibata. Ele me mandou segurar a língua e ir pro trabalho, ou ele encontraria um jeito de me corrigir. Por sorte, ele não me açoitou naquele dia.

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Por cinco anos depois disso, fiquei naquela casa e, quase diariamente, recebia o mesmo tratamento duro. Por fim, o sinhô me colocou a bordo de um saveiro cheio de outros negros e, pra minha grande felicidade, me despachou pra Ilha Turcos. Não permitiram que eu fosse ter com minha mãe ou meu pai, nem com meus pobres irmãos e irmãs, pra me despedir, ainda que, indo pra uma terra estranha, eu corresse o risco de nunca mais ver minha gente de novo. Arre, os galegos donos de escravos pensam que os negros são como bicho, sem afeição natural. Meu coração me diz que é exatamente o contrário.

Passamos quase quatro semanas em alto mar na viagem, o que era um tempo fora do normal pra mim. Às vezes havia uma brisa leve, outras, uma grande cal maria e o saveiro mal se movia. Assim, as provisões logo minguaram e passaram a dar pra gente bem pouca co mida e água. Eu teria morrido de fome se não fosse pela caridade de um negro chamado Anthony e de sua esposa, que tinham trazido seus próprios víveres e comparti lharam um pouco comigo.

Quando chegamos à praia, em Grand Quay, o capitão do saveiro me mandou pra casa do meu novo dono, o sinhô D , pra quem o Capitão I tinha me vendido. Grand Quay é uma cidadezinha num banco de areia, de casinhas baixas de madeira. A primeira pessoa

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que vi quando cheguei na nova casa foi o sinhô D , um homem atarracado de cara emburrada, que me conduziu pela sala da frente até sua esposa e filhos. No dia seguinte, fui mostrada ao leiloeiro pra saber quanto eu valia, e botaram o meu preço em 100 libras.

Meu novo sinhô era um dos proprietários ou concessionários das salinas e recebia uma determinada quantia por cada escravo que trabalhava em seus lotes, fossem eles jovens ou velhos. Essa soma vinha dos lucros com os trabalhos nas salinas. Assim que cheguei, fui levada pra trabalhar na salina com o resto dos escravos. Esse trabalho era completamente novo pra mim. Entregavam pros negros um meio barril e uma pá, e a gente tinha de ficar de pé com água pelos joelhos, das 4 da madrugada até as 9 da manhã, quando distribuíam milho cozido em água do mar, que a gente era obrigado a engolir às pressas, por medo que a chuva chegasse e derretesse o sal. Depois, a gente voltava pra água e trabalhava durante todo o calor do dia, com o sol escaldante no coco, ardendo como fogo e levantando bolhas de sal nas partes do corpo que não estivessem completamente cobertas.

Por ficar de pé na água salgada por tantas horas, os pés e as pernas da gente logo ficavam cheios de bolhas horríveis, que, às vezes, carcomiam até os ossos. Era uma tortura!

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A gente voltava pra casa ao meio-dia, engolia correndo um pirão de milho e retornava pra trabalhar na salina, até escurecer. Depois disso, a gente ainda tinha de fazer grandes montes de sal com as pás, descer dos montes até o mar, e lá tirar a salmoura do corpo e lavar todo o sal dos barris e das pás. Quando a gente voltava pra casa, o sinhô dava nossa ração de milho cru, que a gente amassava num pilão e cozinhava em água. Era a janta de todos os cativos ali.

Todos os negros dormiam juntos num galpão comprido, dividido em compartimentos estreitos, como as baias onde se guarda o gado. Tábuas colocadas sobre estacas enterradas no chão, sem esteira ou coberta, faziam as vezes de camas.

Aos domingos, depois que a gente tivesse lavado as sacas de sal e feito qualquer outro trabalho exigido dos cativos, a gente ía pro mato e cortava a grama comprida e macia pra fazer fardos pra descansar as pernas e os pés, já que eles ficavam com tantas bolhas de sal que era insuportável encostar nas tábuas sem qualquer proteção. Embora a gente trabalhasse de manhã até a noite, nunca era o suficiente pro sinhô D . Quando deixei o Capitão I , esperava que eu teria um tratamento melhor, mas descobri que estava indo de um açougueiro pra outro. Tinha uma diferença entre os dois: meu antigo sinhô costumava me bater quando ficava espumando de raiva, já o sinhô D geralmente era bastante calmo.

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Ele ficava por perto enquanto dava ordens pra que um escravo fosse cruelmente açoitado e assistia ao castigo, sem mover um único músculo da cara, arrodeando e cheirando rapé, todo empertigado. Nada podia tocar o coração de pedra dele, nem um suspiro, nem lágrimas, nem súplicas, nem o sangue jorrando. Ele era mouco pra nossos gritos e indiferente ao nosso sofrimento. Várias vezes, o sinhô D me deixou nua em pelo, me pendurou pelos punhos e me bateu, ele mesmo, com a chibata, até que eu ficasse com o corpo em carne viva. E não tinha nada de tão especial nisso, pois era só uma amostra do tratamento corriqueiro dado aos escravos naquela ilha medonha.

Por causa das bolhas nos pés, eu não conseguia rolar o barril muito rápido pela areia, que entrava nas feridas e me fazia tropeçar a cada passo. Sem demonstrar qualquer piedade por meu sofrimento, o sinhô tornava minha dor ainda mais insuportável, me castigando por eu não conseguir me mover tão ligeiro quanto ele queria. Outra tarefa minha era remar um barco até um pouco distante da praia e mergulhar no mar pra catar pedras grandes pra construir um muro ao redor da casa do sinhô. Era um trabalho bem pesado e as ondas gigantescas, quebrando sem parar, deixavam a gente tão tontos que muitas vezes um escravo perdia o equilíbrio e chegava a correr o risco de se afogar.

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Ai, coitada de mim! Meus afazeres não tinham fim. Bem ou mal de saúde, não importava, era labutar, labutar, labutar! Ao final da temporada de mergulho, todos os negros foram despachados pra South Creek, munidos de longas foices pra cortar mangas, que eram aproveitadas pra queimar a cal. Mais tarde, enquanto uma parte dos escravos continuou nessa lida, outra foi mandada pro lado oposto da ilha pra retirar coral do mar.

Quando um cativo ficava doente, não importava qual fosse a queixa, o único remédio que davam pro infeliz era uma bacia de água do mar esquentada no fogo, misturada com mais sal, e que só servia pra piorar o estado do enfermo. Se um escravo não conseguisse acompanhar o passo do resto do bando, ele era colocado no tronco e severamente açoitado na manhã seguinte. E, mesmo depois de deixar o moribundo sem descanso, com os braços e as pernas machucados e doloridos com os maustratos, o sinhô exigia que ele continuasse com a lida do dia a dia do mesmo jeito.

Às vezes, a gente tinha de trabalhar a noite toda também, fazendo a medição do sal pra carregar a embarcação ou girando uma máquina pra bombear a água do mar e produzir o sal. Assim, sem uma noite de sono, sem descanso, os negros eram forçados a trabalhar o mais ligeiro que conseguissem... e tudo de novo no dia seguinte, como de costume. Labutar, labutar, labutar.

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Cruzes, aquela Ilha Turcos era um lugar medonho! As pessoas na Inglaterra, tenho certeza, não têm ideia do que se passa lá. Lugar desgraçado e infernal!

O sinhô D tinha um cativo chamado Daniel, que ele costumava tratar da maneira mais desumana possível. O coitado do Daniel era coxo e não conseguia manter o passo com o resto dos escravos. Por causa disso, muitas vezes, o sinhô mandava o Daniel tirar a roupa e se deitar de bruços pelado no chão. Depois, batia nele com uma vara de marmelo até o corpo do crioulo ficar em carne viva. Pra completar, o sinhô mandava buscar um balde de sal e despejava tudo em cima do preto, que ficava se contorcendo no chão como uma lesma, gritando de agonia. Os cortes no lombo do coxo nunca cicatrizavam, e, muitas vezes, eu via os ferimentos cheios de larvas de mosca, o que só aumentava o tormento do desinfeliz a um ponto insuportável. O homem era de dar pena e causar horror em todos os escravos e, no seu estado miserável, cada um de nós via sua própria sina: viver até ficar tão velho e doente como ele. Céus, os horrores da escravidão! Como essa lembrança me aperta o peito! Mas a verdade deve ser dita e acho que é meu dever contar o que meus olhos viram, pra que algumas pessoas na Inglaterra saibam o que é a escravidão. Fui uma escrava, senti o que os escravos sentem e

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conheço o que um escravo conhece... e quero que todas as pessoas de bem na Inglaterra tomem conhecimento disso também, pra que possam quebrar nossos grilhões e libertar nossa gente.

O sinhô D tinha um escravo chamado Ben. Uma noite, depois de voltar do trabalho faminto, Ben roubou um punhado de arroz e o preparou pra janta. Mas o sinhô logo descobriu o roubo, manteve Ben preso a noite toda e deixou ele sem comida até a uma hora do dia seguinte. Depois, ele pendurou Ben pelas mãos e bateu nele várias vezes até os escravos chegarem à noite. Quando chegamos em casa, encontramos o pobre coitado pendurado, com uma poça de sangue debaixo dele, ainda sendo açoitado pelo sinhô. Mas isso não foi o pior. O filho do sinhô andava roubando arroz e rum. Ben tinha visto ele fazer isso e achou que poderia fazer o mesmo. Quando o sinhô descobriu que Ben tinha roubado o arroz e ameaçou castigar ele, Ben tentou se desculpar dizendo que o sinhô Dickey vinha fazendo a mesma coisa todas as noites. O rapaz negou a acusação a seu pai e ficou com tanta raiva por Ben ter dedurado ele que, por vingança, o jovem correu pra casa, apanhou uma baioneta e, enquanto o negro ainda estava pendurado pelas mãos, se contorcendo de dor pelos ferimentos, passou a lâmina da baioneta no pé do crioulo. Eu não estava em casa quando isso aconteceu,

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mas vi o ferimento quando cheguei e ouvi Ben contar tudo tim-tim por tim-tim.

E tem outra coisa que tenho de contar sobre esse filho cruel de um pai igualmente cruel: ele não tinha coração nem era temente a Deus. O sinhô Dickey tinha sido levado por um mau caminho por um pai ruim e tinha prazer de seguir os mesmos passos desse pai.

Tinha uma velhinha entre os cativos chamada Sarah, que quase não rendia mais trabalho, e o sinhô Dickey era o feitor dos escravos na época. Pois bem, um dia, essa pobre velha, que sofria de várias enfermidades e já não era muito boa da cachola, não rolou o barril rápido o suficiente pra agradar o feitor. Então, ele jogou a negra no chão e, depois de espancar bastante ela, pegou a mulher no colo e atirou ela entre os arbustos de peraespinhosa, que é uma fruta cheia de espinhos pontudos e venenosos. Com isso a carne nua da escrava ficou tão gravemente ferida que o corpo dela inchou e ficou todo infeccionado. A preta morreu alguns dias depois. Ao contar minhas tristezas, eu não posso deixar passar batidas as de meus companheiros de cativeiro pois, quando penso em minhas próprias amarguras, eu me alembro das deles também.

Acho que fazia uns dez anos que eu tinha trabalhado nas salinas na Ilha Turcos quando meu sinhô se aposentou e foi morar numa casa que ele tinha nas

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Bermudas, deixando seu filho pra cuidar dos negócios na ilha. O sinhô me levou com ele pra servir às filhas, e eu fiquei radiante, pois já estava com muita gastura da Ilha Turcos. Além disso, meu coração estava apertado pra rever o lugar onde eu tinha nascido, minha mãe e minha gente.

Eu tinha visto uma vez minha mainha durante o tempo que estive na Ilha Turcos. Foi numa manhã de domingo e eu estava na praia com alguns negros. De repente, a gente viu um saveiro se aproximar carregando escravos pra trabalhar na salina. Aí a gente pegou um barco e foi até o saveiro. Assim que pisei no convés do saveiro perguntei aos negros que estavam a bordo:

— Tem alguém pra mim aqui?

— Sim — responderam. — Sua mãe!

Era bom demais pra ser verdade e até achei que estavam caçoando de mim. Mas, quando vi minha doce mainha, minha alegria se transformou em tristeza, pois ela parecia ter perdido o juízo.

— Mainha! É você? — gritei mas ela não me reconheceu e eu insisti: — Mainha! O que você tem?

Ela começou a falar coisas sem sentido, afirmando que tinha viajado no fundo da embarcação. O saveiro tinha sido apanhado por uma forte tempestade em alto-mar. A coitada da minha mãe nunca tinha estado no mar antes e estava tão enjoada que tinha perdido os sentidos. Demorou um tempo até que ela voltasse a si. Ela vinha

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acompanhada de uma criança. Era uma irmã que eu nunca tinha visto, com uns 4 anos de idade, chamada Rebecca. Levei minha irmãzinha até a praia comigo, pois senti um grande amor por aquela doce criatura no momento que botei os olhos nela. Fiquei junto dela durante uma semana inteira. Pobrezinha! Era uma vida triste a dela e, ouvi dizer, continua sendo até hoje. Minha mãe trabalhou por alguns anos na ilha, mas foi levada de volta pras Bermudas algum tempo antes do meu sinhô me levar pra lá de novo.

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Depois que parti da Ilha Turcos, soube por uns negros que chegaram de lá que os escravos tinham construído um lugar com galhos e folhas onde podiam se reunir pra rezar, mas os brancos foram e destruíram esse lugar. Eles não permitiam aos negros nem mesmo um refúgio pras orações. Depois de os brancos destruírem o lugar pela segunda vez, aconteceu uma enxurrada que varreu várias casas da ilha, encheu o lugar de areia e fez as salinas transbordarem. Acredito mesmo que foi um castigo pela perversidade dos galegos. Não há limites pras maldades dos brancos naquele lugar. Vi e ouvi muita coisa realmente ruim ali.

Continuei sendo cativa do sinhô D por vários anos depois que voltei pro lugar onde nasci. Lá, trabalhei na terra. Minha lida era plantar e capinar campos de batata-doce, milho, banana, couve, abóbora, cebola, e outras coisas. Fazia todo o serviço de casa e ainda cuidava de um cavalo e uma vaca, sem contar a tarefa de levar recados. Tinha de escovar, limpar, alimentar e, às vezes, montar o cavalo. Eu tinha muito o que fazer mas, mesmo assim, não era tão ruim como na Ilha Turcos. Meu antigo sinhô muitas vezes ficava bêbado e, quando isso acontecia, ele se irritava com a filha e batia tanto nela que ela tinha de ficar longe da vista de todos por uns dias. Eu me alembro de uma vez em que eu tinha ido buscar água e, quando eu estava subindo o

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morro, ouvi uma enorme gritaria. Corri o mais rápido que pude pra casa, coloquei o balde de água no chão e entrei nos aposentos da sinhazinha, onde encontrei o sinhô batendo nela feito louco. Pelejei com todas as minhas forças pra afastar do sinhô a sinhazinha, que já estava toda roxa de pancadas. Ele tinha esmurrado tanto ela que quase matou a própria filha. Com raiva por eu ter livrado a filha da surra, ele se voltou contra mim e começou a me açoitar. Então eu disse: — Sinhô, aqui não é a Ilha Turcos, não! Desculpe, mas não consigo repetir o que ele me respondeu. Os palavrões foram muito, muito feios mesmo. Ele queria me tratar nas Bermudas do mesmo modo como fazia na Ilha Turcos.

O sinhô também tinha o péssimo hábito de tirar a roupa e ficar quase pelado, e me obrigar a dar banho nele numa tina. Pra mim, isso era pior até mesmo do que todos os açoitamentos. Às vezes, quando ele me chamava pra dar banho nele, eu não ia, querendo morrer de vergonha. Aí, ele me batia. Uma vez, estava carregando a louça e, sem querer, derrubei tudo no chão, quebrando alguns pratos. O sinhô me surrou tanto por causa disso que eu acabei me defendendo, pois achei que já tinha passado da hora de fazer isso. Aí, disse a ele que não moraria mais naquela casa, que ele era um homem indecente

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e desavergonhado, que não tinha pejo da criadagem, nem pejo de suas próprias carnes. Então, eu fui embora pra uma casa vizinha, me agachei no chão do terreiro e chorei até a manhã seguinte, quando voltei pra casa, sem saber mais que rumo tomar na vida. Depois disso, fui alugada pra trabalhar em Cedar Hills e, todo sábado à noite, eu tinha de dar o dinheiro que recebia pro sinhô. Eu tinha muito trabalho pra fazer lá, principalmente lavar um monte de roupa. Mas não era de todo ruim. Recebia 2 dólares e 20 centavos por semana pelo serviço.

Durante o tempo em que trabalhei lá, ouvi dizer que o sinhô John Wood estava indo pra Antígua. Senti muita vontade de ir pra lá e fui até o sinhô D e pedi a ele que me deixasse partir com a criadagem do sinhô Wood. Não foi o sinhô Wood que quis me comprar; foi eu que fui até ele. Estava muito aperreada pra ir embora dali. Acredito que tenha sido um chamado. Deus me guiou até lá. A verdade é que eu não queria mais ser cativa de um sinhô tão indecente.

O sinhô Wood me levou com ele pra Antígua, pra cidade de St. John, onde ele morava. Isso já faz uns quinze anos. O sinhô Wood não sabia se eu seria vendida, mas a sinhá Wood achou que eu poderia ser de alguma serventia e queria me comprar. Então, o marido dela escreveu pro meu sinhô perguntando se eu estava à

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venda. O sinhô D escreveu em resposta “que eu não seria vendida a qualquer um que viesse a me maltratar”. Era estranho ele dizer isso, quando ele próprio me tratava tão mal. Assim, fui comprada pelo sinhô Wood por 300 dólares (mais ou menos umas 100 libras). Meu serviço lá era arrumar os quartos e cuidar de uma criança, além de ir até o lago e lavar roupas. Mas eu logo adoeci de reumatismo e fiquei tão manca que fui obrigada a andar de bengala. Fui acometida do fogo de Santo Antonio e, além disso, minha perna esquerda ficou aleijada. Ninguém ligou muito pra saber o que eu tinha e fiquei doente por bastante tempo. Passei meses sem conseguir nem sequer levantar a perna. Fiquei recolhida num casebre abandonado, cheio de percevejos e vermes, que me azucrinavam por demais. Mas não tinha outro lugar pra eu repousar. Apanhei o reumatismo tomando friagem na beira do lago, lavando roupa na água doce (na água salgada eu nunca peguei friagem). A pessoa que vivia no terreiro vizinho, a sra. Greene, não suportava ouvir meu choro e meus gemidos. Era uma mulher gentil e costumava mandar uma preta velha me ajudar e me levar um pouco de sopa. Quando um doutor viu que eu estava tão doente, ele disse que eu deveria tomar um banho de imersão numa tina com água quente. A preta velha retirou a casca de um arbusto que diziam ser bom pra dores, fez uma infusão e toda noite vinha e me

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colocava na tina. Ela fez o que pôde por mim. Não sei o que eu teria feito ou o que teria sido de mim se não fosse por ela. Minha sinhá, é bem verdade, me mandava um pouco de comida, mas ninguém de minha casa vinha até mim, com exceção da cozinheira, que praticamente jogava o prato de comida pela soleira da porta e dizia:

— Molly, Molly! Sua janta.

A sinhá não dava a mínima pra mim e, se Nosso Senhor não tivesse colocado um pouco de compaixão no coração dos vizinhos, eu, com certeza, teria ficado deitada ali até morrer.

Demorou um pouco até eu ficar boa o suficiente pra voltar à lida da casa. Nesse meio tempo, a sinhá Wood tinha alugado uma mulata pra cuidar do filho pequeno, mas ela era metida a fina e queria dar uma de sinhá pra cima de mim. Não achei muito certo que uma mulher de cor quisesse mandar em mim porque eu era escrava e ela era liberta. O nome dela era Martha Wilcox. Era uma mulher petulante e desavergonhada e gostava de reclamar de mim sem motivo pra sinhá, jogando a sinhá contra mim. A sinhá Wood me dizia que, se eu não obedecesse às ordens da mulata, faria com que o sinhô me deixasse nua em pelo e me desse cinquenta chibatadas.

— Você está acostumada ao chicote — ela dizia. — E vai ter o que quer.

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Era a primeira vez que a sinhá ameaçava me açoitar, e a ameaça foi tão dura que eu quase me atirei aos pés dela. Fiquei muito vexada e magoada com as palavras dela. A mulata pareceu sentir prazer em ter poder sobre mim. E ela continuava sempre aprontando das suas. Não teve mais sossego pra os escravos depois que ela chegou na casa. Uma vez, a sinhá Wood me mandou pra cadeia por uma noite inteira e na manhã seguinte fui açoitada, por ordem do juiz, a pedido dela. Tudo isso por eu ter me envolvido numa contenda com outra escrava por conta de um porco. Dessa feita, fui açoitada no lombo nu embora a culpa não fosse minha, pois, quando fui levada perante o juiz Dyett, ele disse que eu tinha razão e ordenou que o porco fosse devolvido a mim. Isso foi uns dois ou três anos depois de eu ter chegado em Antígua.

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Quando a gente se mudou do centro da cidade pra uma localidade chamada Point, eu fiquei na casa e passei a fazer todo o serviço doméstico, além de cuidar das crianças, embora ainda estivesse muito doente do reumatismo. Toda semana eu tinha de lavar duas trouxas enormes de roupa, o tanto que um rapazote conseguia me ajudar a carregar até o rio, mas, mesmo assim, meus donos nunca ficavam satisfeitos. A sinhá estava sempre me maltratando e me espezinhando. É impossível repetir todos os palavrões que ela me dirigia. Um dia, ela ficou me seguindo como uma sombra, me repreendendo e me xingando sem parar. Aguentei calada um monte de palavrões, até que meu coração ficou apertado demais e disse que ela não deveria me tratar daquele jeito, que, se fosse por ela, eu teria morrido à míngua quando fiquei doente e que ninguém veio cuidar de mim porque todos se pelavam de medo da sinhá. Foi uma grande afronta. Ela chamou o marido e contou o que eu tinha dito. Ele ficou uma fera, mas não me bateu, só xingou e praguejou. Depois, me deu um bilhete e disse que eu poderia ir e procurar outro dono. Não que ele pretendesse me vender, mas ele fez isso pra agradar a esposa e me botar medo. Foi quando fui procurar o tanoeiro Adam White, um negro livre e que tinha um pouco de dinheiro, e pedi a ele que me comprasse. Ele foi diretamente ao sinhô Wood,

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mas foi informado que eu não estava à venda. No dia seguinte, o sinhô me bateu com o chicote.

Em outra feita (há uns cinco anos), a sinhá ficou muito vexada comigo porque eu fiquei doente e não conseguia cumprir com meus deveres. Ela se queixou ao marido, e ele me mandou de novo procurar outro dono. Fui até o sr. Burchell, mostrei o bilhete a ele e pedi que ele me comprasse pro meu próprio bem. Contei que eu tinha guardado 100 dólares e, com uma pequena ajuda, esperava comprar minha própria alforria. Diante disso, ele foi ter com o sinhô:

— Sr. Wood, Molly me trouxe um bilhete dizendo que ela procura um dono. Se o senhor pretende mesmo vender a negra, eu gostaria de comprar ela.

O sinhô botou o sr. Burchell pra correr, dizendo que não tinha a mínima intenção de me vender. Fiquei arrasada com isso, pois não me sentia bem com o sinhô Wood e queria muito a minha alforria.

A maneira como consegui esse dinheiro foi a seguinte: quando o sinhô e a sinhá passavam uns dias fora, como faziam vez ou outra, e me deixavam encarregada de cuidar da casa, eu ficava com tempo de sobra pra mim e tirava o máximo de proveito disso. Eu me oferecia pra lavar roupa e vendia café e inhame, entre outras provisões, pros capitães dos navios. Nunca ficava sem fazer nada durante a ausência dos meus donos, pois eu

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queria, por qualquer meio que fosse honesto, ganhar dinheiro pra comprar a minha alforria. Às vezes, eu comprava um leitão a bordo de um navio e vendia o bicho pelo dobro do preço na praia. Também conseguia um bom dinheiro vendendo café. Desse jeito, aos poucos, fui ajuntando uns trocados. Um distinto senhor também me emprestou um pouco de dinheiro pra me ajudar a comprar minha alforria mas, como não consegui a carta do sinhô, ele me pediu a soma de volta. Ele se chamava Capitão Abbot. Uma vez, o sinhô e a sinhá foram pra Date Hill, no interior da ilha, pra uma mudança de ares, e me levaram junto com eles pra tomar conta das crianças e fazer o serviço doméstico. No tempo que fiquei lá, vi como os pretos do campo são tratados em Antígua. Trabalham arduamente e são parcamente alimentados. Antes do amanhecer já estão na lida e voltam pra casa já escuro. Ainda de noite, cada um tem de carregar um fardo de capim pra dar ao gado no curral. Além disso, nas manhãs de domingo, cada escravo tem de sair e ajuntar um grande fardo de capim e, quando trazem o fardo pra casa, todos têm de se sentar ao pé da porta do capataz e esperar até ele sair. Muitas vezes, eles têm de esperar lá até depois das 11, sem o desjejum. Depois disso, aqueles que têm inhame, batata ou lenha pra vender correm pro mercado pra comprar um punhado de carne de porco ou peixe

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salgado, o que é um luxo pra os negros. Alguns compram um tipo de peixe conservado em barril, que é usado pra fazer molho e misturar com inhame ou milho. É muito errado, eu sei, trabalhar ou fazer comércio no domingo, mas será que Deus não chamará os galegos e não os negros pra responder por isso no dia do juízo final, já que os brancos não dão outro dia pra gente fazer isso? Enquanto a gente estava em Date Hill, chegou o Natal e a mucama que cuidava do lugar (que na época pertencia ao sr. Roberts, o Marechal) me chamou pra ir com ela à casa do seu marido, pra participar de uma corrente de oração metodista, numa fazenda chamada Winthorps. Eu fui. Foram as primeiras preces que eu compreendi na vida. Uma mulher orava e todos cantavam um hino. Em seguida, tinha outra oração e outro hino e, por fim, cada um falava um pouco de suas próprias aflições como pecadores. O marido da mulher com quem eu fui pro encontro era um motorista negro, de nome Henry. Ele confessou que já tinha tratado os escravos com muita crueldade, mas disse que era obrigado a obedecer às ordens de seu sinhô. Ele orou pra que todos perdoassem seus próprios atos e rogou ao Senhor que perdoasse os pecados do seu sinhô também. Ele disse que era uma coisa horrível pra um capitão do mato às vezes ter de bater na própria esposa ou irmã, mas ele tinha de fazer isso caso o seu sinhô lhe botasse ordem.

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Lamentei por meus pecados também. Chorei a noite toda, mas eu tinha muita vergonha de falar. Orei a Deus pra me perdoar. Esse encontro me marcou demais e encaminhou o meu espírito pra Igreja Moraviana6. Assim, quando voltei pra cidade, fui pra igreja e pedi que meu nome fosse registrado no livro dos missionários. Daí em diante passei a frequentar a igreja na verdadeira fé do Senhor sempre que tinha uma oportunidade. Não contei nada à minha sinhá, pois sabia que ela não me deixaria ir. Mas sentia que eu tinha de ir. Sempre que eu levava o almoço das crianças na escola da igreja, ficava por lá um pouquinho, ouvindo as professoras darem as aulas.

As missionárias moravianas (a sra. Richter, a sra. Olufsen e a sra. Sauter) me ensinaram a ler e eu aprendi bem ligeiro. Na sala, tinha todo tipo de gente: jovens, velhos, pessoas de cabeça branca... mas a maioria era de libertos. Depois de praticar um pouco de ortografia, a gente tentava ler trechos da Bíblia. Quando a leitura acabava, as missionárias passavam um hino pra gente cantar. Eu adorava ir à igreja. Era tão solene. Até começar a frequentar a igreja, eu não fazia ideia do tanto de pecado que eu cometia. Quando descobri que eu era uma grande pecadora, senti uma gastura danada e fiquei apavorada. Rogava a Deus que redimisse meus pecados e me

6 Uma das mais antigas denominações protestantes, anterior à Igreja Luterana, criada por John Huss na região da Morávia (atual República Checa), no século XV. Os missionários moravianos tiveram uma forte atuação nas Índias Ocidentais a partir do século XVIII. (N. T.)

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perdoasse por todo o mal que por ventura eu tivesse feito a um ser vivente. Quando voltava do trabalho pra casa, sempre pensava no que eu tinha ouvido das missionárias e no quanto seria bom se eu pudesse ir pro paraíso. Depois de um tempo, fui aceita pra fazer a primeira comunhão. Eu já tinha sido batizada há muito tempo, em agosto de 1817, pelo Reverendo Curtin, da Igreja Anglicana, depois de ter aprendido a rezar o Credo e o Pai-Nosso. Na época, quis muito frequentar a escola dominical, ministrada pelo Reverendo Curtin, mas ele disse que não me receberia sem uma autorização por escrito do meu sinhô. Não pedi permissão ao sinhô, certa de que ele se recusaria a me dar. Por isso, na ocasião, não pude seguir adiante com os meus estudos na Igreja Anglicana. Algum tempo depois, comecei a frequentar a Igreja Moraviana, e conheci Daniel James, que veio a ser meu esposo. Daniel era carpinteiro e tanoeiro de profissão. Um negro decente, honesto e muito trabalhador, além de viúvo. Ele tinha comprado a alforria das mãos da sinhá dele, a sra. Baker, com o dinheiro que ele tinha ajuntado ainda cativo. Quando ele me pediu em casamento, eu pedi um tempo pra pensar e não disse sim até conseguir fazer com que ele fosse à igreja comigo e se ajuntasse à congregação moraviana. Depois que comprou sua alforria, Daniel passou a se esforçar ainda mais. Alugou uma casa confortável e procurou adquirir certas

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história de Mary Prince comodidades. Fomos unidos em casamento perto do Natal de 1826, na Capela Moraviana de Spring Gardens, pelo Reverendo Olufsen. A gente não podia se casar na Igreja Anglicana. A união anglicana não é permitida aos escravos e um homem livre não pode se casar com uma cativa.

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O sinhô Wood ficou furioso quando ouviu falar do meu casamento e foi ter-se com o Daniel, que estava ajudando a construir uma casa pra sua antiga sinhá. O sinhô Wood perguntou ao Daniel quem tinha dado a ele o direito de se casar com uma escrava de sua propriedade. Meu marido respondeu:

— Senhor, eu sou um negro forro e achei que eu tivesse o direito de escolher com quem quero me casar, mas, se soubesse que Molly não tinha permissão pra ter um esposo, eu não teria pedido ela em casamento.

A sinhá Wood ficou ainda mais vexada com meu casamento do que o marido dela. Ela disse que não me perdoaria por ter me casado e atiçou o sinhô Wood a me açoitar brutalmente com o chicote de montaria. Achei muito duro ser chicoteada naquele momento da minha vida por ter um esposo e reclamei disso com ela. Ela falou que não teria crioulos rondando pelo terreiro e pelas dependências da casa, muito menos permitiria que as roupas de um preto fossem lavadas na mesma tina em que as dela eram lavadas. Acho que ela receava que eu gastasse meu tempo lavando roupas ou fazendo coisas pro meu marido em vez de fazer o meu serviço. Mas eu mal tinha tempo pra lavar minha própria roupa. Mes mo estando quase o tempo todo na tina, eu era obrigada a separar minhas roupas pra lavar num ou noutro mo mento de folga.

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Não conseguia ser muito feliz em meu casamento, já que era uma cativa. Meu marido ficava muito triste ao ver o quanto eu era maltrada. A sinhá Wood estava sempre me importunando por causa do meu esposo. Ela própria não chegava a me açoitar mas dava um jeito pra que o sinhô fizesse isso por ela, enquanto ela ficava vendo a carne se desprender dos meus ossos com o chicote. Mas, ainda assim, ela não abria mão de mim por nada. Durante o tempo que vivi com ela, ela se desfez de cinco de seus escravos mas, embora ela ficasse sempre botando defeito em mim, ela não me vendia de jeito nenhum. Mas, depois de um tempo, o sinhô Wood permitiu que Daniel tivesse um lugar pra morar no nosso terreiro, pelo que eu e meu esposo ficamos muito gratos. Depois disso, fiquei mal do reumatismo de novo, por um longo tempo, mas, boa ou doente, tinha meu serviço pra fazer. Foi nessa época que pedi ao sinhô e à sinhá que me deixassem comprar minha alforria. Com a ajuda do sr. Burchell, eu teria conseguido recursos pra pagar o sinhô Wood, pois ficou acertado que, mais tarde, eu serviria ao sr. Burchell por um período, por conta do dinheiro que ele me adiantaria. Fui sincera com meus donos no pedido, mas o coração deles era duro, duro demais pra consentir nisso. A sinhá Wood ficou uma fera comigo. Ela me xingou de preta dos diabos e perguntou quem tinha colocado aquela sandice de liberdade na minha cabeça.

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— Ser livre deve ser doce como um torrão de açúcar — eu disse, mas ela cuidou bem pra que eu jamais provasse disso. Vi a sinhá corar de ódio e saí correndo da sala.

Mais ou menos nessa época, o sinhô e a sinhá decidiram ir pra Inglaterra pra colocar o filho na escola e trazer as filhas de volta pro convívio familiar. Iam me levar junto com eles pra cuidar do menino. Eu realmente fiquei empolgada em partir. Pensei que, indo pra Inglaterra, eu provavelmente ficaria curada do reumatismo e poderia retornar sarada, com o sinhô e a sinhá, pro meu esposo. Até Daniel se empolgou com minha partida, pois ele tinha ouvido dizer que o sinhô me libertaria. Eu esperava mesmo que isso fosse verdade, mas tudo não passava de um grande embuste.

O comissário do navio foi bastante gentil comigo. Ele e meu marido estavam na mesma classe na Igreja Moraviana. Fiquei grata por ele ser tão cordial, já que minha sinhá não foi nada boa comigo durante a viagem. Ainda por cima ela falou que eu não esperasse que ela fosse me tratar melhor na Inglaterra do que me tratava nas Índias Ocidentais. E ela realmente cumpriu com a palavra.

Quando a gente estava se aproximando da Inglaterra, o reumatismo tomou conta dos meus braços e das minhas pernas e meu corpo ficou todo inchado. Assim que colocamos os pés na Tower Bridge, mostrei as carnes

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pra sinhá, mas ela não deu a mínima atenção. Fomos obrigados a ficar numa taverna até o sinhô conseguir uma casa. Um ou dois dias depois, a sinhá me mandou pro local onde lavavam roupa pra eu aprender a lavar à maneira inglesa. Nas Índias Ocidentais, a gente lava com água fria, na Inglaterra, com quente. Eu disse à sinhá que colocar as mãos primeiro na água quente e em seguida na fria poderia aumentar a dor nos meus braços. Muito antes de chegar das Índias Ocidentais, um doutor já tinha dito à sinhá que eu tinha o corpo doente e que ela deveria evitar me pôr pra lavar roupa. Mas a sinhá Wood não pretendia me liberar da tina e fui obrigada a continuar do jeito que pude. Fui ficando cada vez pior e não aguentava mais lavar roupa. Era forçada a me agachar diante da tina e, com muita dor e bastante fraca, tinha de me ajoelhar ou sentar no chão pra terminar o serviço. Quando reclamei disso com a sinhá, ela só ficou furiosa como de costume e disse que lavar na água quente não poderia fazer mal a ninguém, que eu era preguiçosa e insolente e que queria ficar livre do trabalho, mas que ela me obrigaria a fazer de qualquer jeito. Achei essa atitude muito dura e meu coração se revoltou. Mesmo assim, procurei manter a calma e desci pra lavar as roupas da criança sem reclamar. Felizmente, uma mulher inglesa que também estava na lida lá, quando me viu tão mal, teve pena de mim e lavou tudo pra mim.

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Depois disso, quando a gente veio morar na rua Leigh, a sinhá Wood separou cinco trouxas de roupas usadas no navio junto com outras que tinham sido usadas desde que a gente tinha chegado em Londres e deu pra mim e pra cozinheira lavar. Elizabeth, a cozinheira, disse à sinhá que ela não acreditava que eu conseguisse ficar muito tempo na tina e que seria melhor ela contratar outra mulher. Eu mesma também disse que tinha vindo pra Inglaterra pra cuidar da criança e que não estava contente por ter saído de Antígua e a sinhá estar me sobrecarregando, sem levar em conta o meu reumatismo. Ao ouvirem isso, o sinhô e a sinhá Wood se levantaram e me encararam com muito ódio. Então, abriram a porta e fizeram um gesto pra eu sair. Mas eu era uma estranha naquele lugar e não sabia distinguir uma porta da outra naquela vizinhança. Eu não estava disposta a ir embora. Eles fizeram um alvoroço terrível e, a partir daquele dia, ficaram o tempo todo me xingando e me maltratando. Fui obrigada a lavar, mesmo estando muito doente. A sinhá Wood, é bem verdade, contratou uma lavadeira uma vez, mas ela não foi bem tratada e logo deixou de ir pro serviço.

O sinhô brigou comigo mais uma vez por causa de outra grande lavação de roupa. Claro que a sinhá ficava atiçando ele a ralhar comigo. Ele disse que ia me obrigar a lavar toda a roupa suja de uma só vez e, se eu

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me recusasse de novo, ia dar um basta naquilo tudo. Ameaçou me mandar pra brigue atracada no rio e me despachar de volta pra Antígua, ou, então, me botar pra fora de casa e me deixar ao deus-dará. Eu disse que eu voltaria de bom grado se ele me deixasse comprar minha alforria. Mas isso enfureceu o sinhô mais do que tudo. Ele me xingou e me esconjurou e disse que jamais venderia minha alforria e que, se eu quisesse ser livre, eu já era aqui, na Inglaterra, e poderia experimentar o que a liberdade reservava pra mim... que eu me danasse! Esse tratamento foi uma punhalada no meu coração, mas eu tinha de seguir adiante. Continuei com meu serviço e fiz tudo que podia pra que ficassem satisfeitos, mas era tudo em vão. Logo depois disso, a cozinheira deixou a casa, e meus problemas se multiplicaram por dez. Eu sempre lavava as roupas da criança sem que me botassem ordem e dava conta de tudo o mais que fosse preciso na família, embora eu estivesse muito doente, muito mesmo. Quando o dia da grande lavação chegou de novo, o que se dava a cada dois meses, minha sinhá ajuntou um monte de coisas grandes e pesadas, como lençóis e colchas, e me deu pra lavar. Eu falei que estava doente demais pra lavar coisas pesadas naquele dia. Ela disse que talvez eu pensasse que era uma negra forra, mas eu não era e que, se eu não fizesse prontamente o

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que ela me mandava, eu seria colocada pra fora de casa naquele exato momento. Fiquei parada por um longo tempo antes que conseguisse responder, pois não sabia ao certo o que fazer. Eu sabia que era livre na Inglaterra, mas não tinha aonde ir, nem como me virar sozinha, resumindo, eu não queria deixar a casa. Mas o sinhô Wood ameaçou chamar um policial pra me colocar na rua. Foi quando, finalmente, tomei coragem e decidi que não seria mais tratada daquele jeito. Resolvi partir e confiar na Providência divina. Era a quarta vez que eles ameaçavam me colocar na rua e, aonde quer que eu fosse, estava determinada a não aceitar mais aquilo. Mesmo assim, achava muito injusto que, depois de viver com eles por trinta anos e trabalhar como uma mula, eu fosse jogada na rua daquele jeito, como uma indigente. Minha única culpa era ter ficado doente e, por isso, não conseguir agradar minha sinhá, que achava que não tinha trabalho suficiente pra arrancar de seus cativos. Eu disse tudo isso pra eles, mas eles só me xingaram e me chutaram pra fora de casa. Acho que isso aconteceu uns dois ou três meses depois que a gente chegou na Inglaterra. Quando parti, fui procurar um homem (um tal de Mash) que engraxava os sapatos da família e pedi à mulher dele que me arrumasse alguém pra ir comigo até os Missionários Moravianos, em Hatton Garden. O casal

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eram as únicas pessoas que eu conhecia na Inglaterra. A mulher mandou uma jovem pra me acompanhar até a casa da missão. Lá, encontrei um senhor chamado Moore. Contei a ele toda minha história e como meus donos tinham me tratado. Pedi a ele se eu poderia trazer um baú com algumas roupas e pertences meus. Os missionários foram muito gentis comigo. Lamentaram profundamente minha situação de penúria e me deram permissão pra trazer minhas coisas e deixar o baú sob os cuidados deles. Eram pessoas de bom coração e me convidaram pra ir à igreja.

Quando voltei à casa do sinhô Wood pra pegar meu baú, vi uma mulher, a sra. Pell, que fazia uma visita à sinhá. Ao me ouvirem entrar, o sinhô e a sinhá Wood pediram à visita que tentasse fazer eu desistir da ideia de partir, percebendo que tinham ido longe demais comigo. A sra. Pell me chamou de canto e disse: — Você vai mesmo embora, Molly? Não vá de vez, não agora. Antes, venha comigo para o campo. Acho que ela disse isso porque sabia que a sinhá Wood facilmente me traria de volta mais tarde. Eu respondi: — Minha cara senhora, esta é a quarta vez que o sinhô e a sinhá me expulsam ou me ameaçam jogar na rua. Eu não vou mais dar a eles outra oportunidade pra fazerem isso. Não era minha intenção sair de casa, já

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que sou uma estranha neste país, mas agora eu tenho de ir. Não posso continuar sendo humilhada. Com isso, a sra. Pell subiu as escadas até o quarto da sinhá e contou que ela não tinha conseguido me convencer a ficar. Quando viu que eu estava mesmo determinada a ir, a sinhá Wood ficou apavorada e, se fazendo de magoada e preocupada, comentou: — Se ela for, o povo vai roubar tudo dela e ela vai cair na mendicância. — Ela não disse isso diretamente pra mim, mas falou alto o suficiente pra eu ouvir. Acho que foi pra me meter medo e me fazer desistir de ir embora. O sinhô Wood também quis saber pra onde eu iria. Eu contei onde tinha estado e que eu jamais teria decidido partir se não tivesse sido expulsa por meus donos. Uns dias antes, ele tinha me dado um papel em que estava escrito que eu tinha vindo com eles pra Inglaterra pelo meu próprio querer, o que era verdade. Dizia também que eu estava saindo de casa de vontade própria, pois eu era uma mulher livre na Inglaterra, e que eu era preguiçosa e não cumpria com meu serviço direito, o que não era verdade. Mais tarde, entreguei esse papel a um senhor que me inquiriu sobre meu caso. Depois de falar com o sinhô, entrei na cozinha e catei minhas coisas. A babá e a criada estavam lá, e eu disse ao homem que ia levar meu baú:

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— Antes de pegar este baú, ouça o que eu tenho a dizer diante destas pessoas. Vou sair desta casa, como me mandaram. Mas eu não fiz nada de errado a meus donos, nem aqui nem nas Índias Ocidentais. Sempre labutei sem descanso pra agradar eles, dia e noite, mas eles nunca se deram por satisfeitos. A sinhá nunca se contentava com meu serviço. Avisei à sinhá que estava doente e, mesmo assim, ela me colocou da porta pra fora. Esta é a quarta vez que ela faz isso e agora eu estou indo embora de vez. Depois disso, eu saí levando meu baú para os missionários moravianos. De lá, voltei pra casa do engraxate Mash e só faltei implorar a sua esposa que

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me deixasse ficar. Eu tinha um pouco de dinheiro das Índias Ocidentais guardado no meu baú, que eles conseguiram trocar por dinheiro da Inglaterra pra mim. Isso ajudou a me manter por um tempo. A esposa do engraxate foi muito gentil comigo. Eu estava muito doente e ela fazia uns caldos pra me dar sustância. Ela também chamou um doutor pra me ver, e ele me deu uns remédios que me deixaram um pouco melhor, mas ainda continuei sofrendo com dores reumáticas por muito tempo.

Vivi uns bons meses com aquelas almas caridosas. Eles cuidaram bem de mim e fizeram tudo que estava ao alcance deles pra me servir. O sr. Mash estava familiarizado com a minha situação, já que ele costumava ir à casa do sinhô Wood pra limpar os sapatos e amolar as facas da casa e via como me tratavam lá. Ele e sua esposa tinham muita pena de mim. Mais ou menos nessa época, uma mulher chamada Hill me falou da Sociedade Antiescravidão7 e se ofereceu pra me levar até lá pra ver se eles poderiam fazer alguma coisa pra conseguir minha alforria e me mandar de volta pras Índias Ocidentais.

7 Sociedade abolicionista fundada em 1823, cujo nome oficial era Society for the Mitigation and Gradual Abolition of Slavery Throughout the British Dominions (Sociedade pela Abolição Gradual e Mitigação da Escravidão em todas as Possessões Britânicas), que patrocinou a publicação do relato de Mary Prince. (N. T.)

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O pessoal da Sociedade me levou até um advogado, que examinou meu caso a fundo. Mas o advogado me disse que as leis da Inglaterra não podiam fazer nada pra me tornar forra em Antígua. Mesmo assim, eles fizeram de um tudo por mim. De vez em quando, eles me davam um pouco de dinheiro pra eu não passar necessidade. Um tanto de dinheiro também ia pro sinhô Wood pra tentar convencer ele a me deixar voltar como uma negra liberta pro meu marido, mas, mesmo eles tendo oferecido ao sinhô uma boa quantia (foi o que ouvi dizer) pela minha liberdade, ele era rabugento e obstinado e não consentia em me alforriar.

Aquele foi o primeiro inverno que passei na Inglaterra, e sofri muito com o frio severo e as dores reumáticas, que continuam me atormentando. Mas a Providência divina foi muito boa pra mim e me deu amigos fiéis, especialmente umas senhoras Quaker8 que, quando ouviram sobre meu caso, vieram à minha procura e me deram roupas bem quentinhas e uns trocados. Eu realmente tinha motivos de sobra pra louvar a Deus em minha agonia.

Quando melhorei, fiquei ansiosa pra voltar à lida, pois não estava disposta a comer o pão do ócio. A sra. Mash, que era lavadeira, me recomendou como faxineira a uma

8 Nome dado a vários grupos religiosos, com origem comum em um movimento protestante britânico do século XVII. (N. T.)

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senhora conhecida dela, que me pagou muito bem pelo serviço. Dividi o dinheiro com a sra. Mash, pois sabia que ela e o marido precisavam e, ademais, eles tinham me dado comida quando meu dinheiro acabou e nunca me deixaram passar necessidade.

Na primavera, fiz uns serviços pra outra senhora, que me viu na casa onde eu, às vezes, trabalhava de faxineira. O nome dela era sra. Forsyth. Ela tinha estado nas Índias Ocidentais e já estava acostumada com os negros. Dizia que gostava dos pretos. Fiquei com ela uns seis meses e fui com ela pra Margate. Ela me tratou bem e me deu uma carta de referências antes de partir de Londres.

Depois que a sra. Forsyth foi embora, fiquei novamente sem lugar pra morar e procurei um abrigo. Pagava dois xelins por semana pelo alojamento e conseguia um pouco de carvão e velas. Depois de onze semanas, todos os trocados que eu tinha ajuntado com meu trabalho acabaram, e fui obrigada a voltar pra Sociedade Antiescravidão pra pedir ajuda, até eu conseguir outro serviço. Eu não gostava de pedir. Não queria me sentir inútil. Preferia labutar pelo meu sustento a ganhar as coisas sem fazer nada. O pessoal da sociedade foi muito bom pra mim e me deu uns mantimentos, mas me senti muito vexada por ser obrigada a pedir auxílio enquanto ainda tinha forças pra pegar no batente.

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Finalmente, arrumei um serviço na casa do sr. e da sra. Pringle, onde tenho morado desde então. Estou muito bem aqui. A única queixa que tenho é de estar longe de meu querido marido, da minha terra e de todos os velhos amigos e conhecidos. Minha adorada senhora todos os dias me ensina a ler a palavra de Deus e se empenha bastante em me fazer entender tudinho. Tenho o enorme privilégio de poder assistir a três missas no domingo e já fiz vários amigos leais desde que cheguei aqui, clérigos e fiéis. O Reverendo Young, que mora perto da nossa casa, tem demonstrado muita bondade e se esforçado muito pra me instruir, principalmente quando o sr. e a sra. Pringle passaram um tempo longe, na Escócia. Não tenho como esquecer também, entre meus amigos, o Reverendo Mortimer, o clérigo da paróquia que tem me acolhido em seu ministério há mais de um ano. Confio em Deus e tenho me beneficiado demais do que ouço do reverendo. O reverendo jamais guarda a verdade pra si e acredito que ele tem servido de instrumento pra abrir meus olhos e ouvidos e eu poder compreender melhor a palavra de Deus. O Reverendo Mortimer diz que ele não pode abrir as janelas do meu coração, mas que devo orar pra que o Nosso Senhor transforme meu coração e me faça conhecer a verdade. Só a verdade me libertará. Ainda vivo na esperança de que o Senhor Deus encontrará um jeito de conceder minha alforria e devolver

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meu marido a mim. Pelejo pra acalmar minha angústia e largo tudo nas mãos de Deus, pois o Senhor sabe mais do que eu o que é bom pra mim. Mesmo assim, devo confessar, acho que será um caminho longo e árduo. Muitas vezes, fico muito vexada e aperreada quando ouço algumas pessoas neste país dizerem que os negros não precisam de um tratamento melhor e que os próprios escravos não querem ser livres. Essas pessoas são enganadas por aqueles que vêm de fora e dizem que os cativos são felizes. Eu digo que não. Nunca! Como podem os escravos ser felizes quando eles têm o grilhão ao redor do pescoço e a chibata no lombo? Quando são desonrados e tratados como animais? Separados de suas mães, cônjuges, filhos, irmãos? Comprados e vendidos como gado? É felicidade pra um capitão do mato ter de capturar a esposa, irmã ou filha, arrancar suas roupas e açoitar um dos seus de maneira tão humilhante? E o que dizer das mulheres que têm suas filhas expostas à vergonha no meio do terreiro! Os donos de escravos não demonstram qualquer compaixão ou decência a seus cativos. Homens, mulheres e crianças estão sujeitos aos caprichos deles do mesmo jeito. Desde que cheguei aqui, fico imaginando como os ingleses podem ir pras Índias Ocidentais e agir de forma tão bestial. Penso que, quando chegam às Índias Ocidentais, os ingleses se esquecem da palavra de Deus e perdem toda a vergonha que

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possam sentir. Só assim conseguem ver e fazer coisas tão horríveis. Amarram os cativos como porcos, prendem os negros no cabresto como gado, e açoitam eles de um jeito que não se faz nem com um porco, um boi ou um cavalo. Mesmo assim, eles voltam pra cá e fazem algumas boas almas acreditarem que os negros é que não querem deixar a escravidão. Eles colocam um manto sobre a verdade. Mas não é assim! Todos os escravos querem ser livres. Ser livre é doce como um torrão de açúcar. Eu vou dizer a verdade ao povo inglês, que talvez leia esta história que minha querida amiga está escrevendo pra mim. Eu própria fui uma escrava. Sei muito bem o que os escravos sentem. Posso dizer por mim mesma e pelo que ouvi de outros escravos. O homem que diz que um cativo pode ser feliz na escravidão... que um cativo não deseja ser livre... esse homem ou é um ignorante ou é um mentiroso. Nunca ouvi um escravo dizer isso. Nunca tinha ouvido um galego dizer isso até chegar aqui na Inglaterra. Essas pessoas deviam se envergonhar de si mesmas. Dizem que não podem ficar sem os escravos. Mas por qual razão eles não conseguem ficar sem os escravos se conseguem se virar sozinhos aqui na Inglaterra? Aqui não tem escravos, não tem chicote, nem pelourinho, nem castigo, exceto pra gente perversa. Aqui na Inglaterra, as pessoas contratam empregados e, se não gostam deles, elas dispensam os empregados. Não

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se pode açoitar os empregados. Mesmo trabalhando duro na Inglaterra, os empregados aqui estarão numa condição muito melhor que a dos escravos. Se têm um senhor ruim, os empregados dão um aviso prévio ao senhor e vão procurar outra casa pra trabalhar. Eles têm sua liberdade. É só isso que queremos. A gente não reclama de trabalho duro, desde que a gente tenha um tratamento adequado e pagamento condizente com o dos empregados ingleses. Além de uma jornada de trabalho limitada à semana, que permita que a gente observe o descanso sagrado no sábado. Mas os ingleses não darão isso pra gente. Pra sempre, os negros vão ter de labutar, labutar, labutar, dia e noite, sadios ou doentes, até não aguentarem mais. E, por mais que a gente seja maltratado, a gente não pode nem sequer reclamar ou olhar torto para isso. E, na velhice, quando a gente estiver esgotado, quem vai ligar pra gente mais do que se liga pra um cavalo manco? Isso é a escravidão. Conto isso para que todo o povo inglês saiba da verdade. Espero que os ingleses nunca deixem de rogar a Deus e suplicar em bom som ao rei da Inglaterra, até que a liberdade seja concedida a todos os negros, e a escravidão chegue ao fim para todo o sempre.

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Posfácio

Sobre a obra

A História de Mary Prince: uma Escrava das Índias Ocidentais é uma tradução para o português da narrati va de escravo relatada pela própria Mary Prince e trans crita por Susanna Strickland, no ano de 1830. Publicado pela primeira vez em janeiro de 1831 (com o título The History of Mary Prince) por sugestão da própria Mary Prince e edição de Thomas Pringle, membro funda dor da Sociedade Antiescravidão, o texto foi o primeiro relato pessoal de uma mulher escravizada impresso no Reino Unido. A obra também é uma das precursoras de várias outras narrativas de escravos que proliferaram na época e que ampararam fortemente os movimentos abolicionistas do século XIX.

O relato teve um apelo contundente junto ao público, que se comoveu com os horrores da escravidão descritos em detalhes. O impacto foi tão grande que, logo no pri meiro ano de publicação, foram impressas três edições. Contudo, a história de Mary Prince também enfrentou forte rejeição por parte de outro segmento da sociedade, os escravagistas, que argumentavam que o relato de Mary Prince estava repleto de inverdades e difamava a moral dos donos de escravos e de suas famílias. Ao menos duas ações judiciais foram movidas envolvendo a publicação do livro. Mary Prince e seu editor venceram ambas.

De fato, estudos atuais indicam que Mary Prince não era a figura passiva que, em muitos momentos, aparece retratada na narrativa. No próprio texto, podemos encontrar indícios de que a transcrição do relato possa ter

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sido adaptada para ir ao encontro da causa abolicionis ta e da moral cristã, adotando um tom de proselitismo religioso. Por exemplo, no texto publicado, o Capitão Abbot é citado rapidamente apenas uma vez, como um senhor que emprestou dinheiro a Mary Prince para que ela pudesse comprar sua alforria. No entanto, durante o julgamento do caso de injúria e difamação movido por John Wood, em março de 1833, contra os editores da obra, a própria Mary Prince, ouvida como testemunha, fala em detalhes sobre a relação sexual que manteve por sete anos com o Capitão Abbot. Provavelmente, era importante para a Sociedade Antiescravidão, formada por membros de igrejas protestantes, passar a imagem de Mary como uma mulher submissa e casta, que demons trasse agir de acordo com a moral cristã da época. Isso certamente ajudaria a ganhar o apoio da opinião públi ca na causa abolicionista. Por outro lado, no curso das referidas ações judiciais, bem como durante as diversas tentativas de obter a alforria de seu último dono, Mary Prince conseguiu provar, por meio das profundas cica trizes que trazia por todo o corpo, os maus-tratos que alegava ter recebido durante a vida em cativeiro. Independentemente de qualquer controvérsia a res peito da história originalmente publicada, o fato é que o relato autobiográfico de Mary Prince foi e continua sen do uma relevante obra literária que até hoje desperta um engajamento na luta pela emancipação e pelo empode ramento dos negros, problematizando diversas formas de exercício da cidadania, em um diálogo direto com a sociologia e a antropologia.

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Sobre as narrativas de escravos

Essa presente tradução busca resgatar um dos gêneros literários mais produzidos durante grande parte do século XIX. Trata-se das narrativas de escravos.

As narrativas de escravos foram uma importante ferramenta de propaganda dos movimentos abolicionistas, dando voz aos negros para contarem suas histórias de escravização. Os grupos que patrocinaram suas publica ções buscavam, com esses relatos autobiográficos, alertar e sensibilizar a sociedade para os horrores da escravidão. Grande parte da pressão da sociedade pelo fim do tráfi co negreiro e pela abolição da escravatura no continente americano deu-se por influência dessas narrativas, publicadas nos séculos XVIII e XIX.

As primeiras narrativas de escravo de que se têm re gistros datam do final do século XVIII e foram impulsio nadas pelo ideal de “Liberdade, igualdade e fraternidade”, que guiou a Revolução Francesa (1789-1799).

O relato de Ukawsaw Gronniosaw (1705-1775), publi cado em 1772, é considerado a primeira narrativa de es cravo em língua inglesa. Neto de um rei na atual Nigéria, Gronniosaw foi escravizado em sua terra natal e trazido para Barbados, de onde seguiu para Nova York. Posterior mente atuou na Marinha Britânica. Publicou seu relato autobiográfico como um homem livre, sendo considerado o primeiro africano a publicar na Inglaterra.

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Em 1789, o nigeriano marinheiro, escritor, abolicionis ta e ex-escravizado Olaudah Equiano (1745-1797) publi cou a primeira narrativa de escravo de maior repercussão. Sequestrado por caçadores de escravos de uma tribo rival, Equiano foi enviado para Barbados, onde foi adquirido por um oficial britânico, que o levou à Virgínia, nos Esta dos Unidos, e depois à Inglaterra, onde foi ridicularizado e renomeado com o nome do rei sueco, Gustavus Vassa. Seu relato teve um papel importante no movimento aboli cionista inglês, contribuindo para a criação do Ato contra o Comércio de Escravos de 1807.

Nos Estados Unidos, Frederick Douglas (1818-1895), nascido na condição de escravizado em Maryland, publi cou, em 1845, sete anos depois de fugir para os estados abolicionistas do Norte, a primeira de suas três autobiografias. Até hoje seus relatos servem de fonte histórica para muitos dos filmes que são produzidos sobre o perío do da escravidão nas Américas. Posteriormente, em 1861, Harriet Jacobs (1813-1897), também nascida escravizada na Carolina do Norte, escreve a primeira autobiografia de uma escravizada mulher nos Estados Unidos, também depois de fugir para o Norte, em 1842. Sua obra mais famosa – Incidentes da vida de uma escrava – projetou Jacobs como abolicionista, palestrante e reformista social. Não há registros de narrativas de escravos publicadas originalmente no Brasil em língua portuguesa, em parte porque não havia por aqui grupos religiosos de corrente protestante devidamente estruturados e organizados em prol da abolição e que patrocinassem publicações do

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gênero. Além disso, a Igreja católica, predominante no país, fazia vistas grossas ao regime escravocrata. No en tanto, a história do africano Mahommah Baquaqua (após 1800-após 1857), nativo de Zooggoo (no atual Benin), talvez seja um dos únicos relatos publicados de um escra vizado que viveu no Brasil. Sequestrado por traficantes, Baquaqua foi embarcado em um navio negreiro em 1845 e trazido para o Brasil, onde viveu como escravizado por 2 anos, em Pernambuco. Sua biografia engloba o período em que viveu no Brasil sendo brutalmente castigado por seu dono. Em 1847, incorporado à tripulação de um navio mercante que faria uma remessa de café para os Estados Unidos, Baquaqua teve o seu passaporte para a liberdade. Ao aportar em Nova York, o navio em que trabalhava foi abordado por abolicionistas, que incentivaram Baquaqua a fugir. Sua biografia foi escrita e publicada em inglês, em 1854, por Samuel Moore, trazendo longos trechos auto biográficos, ou seja, escritos em primeira pessoa.

Como gênero literário, as narrativas de escravo apresentavam especificidades que as diferenciavam de uma autobiografia, justificando sua classificação como um gênero distinto. Uma dessas características diz respeito à sua estrutura. As narrativas de escravo costumavam ter a seguinte estrutura fixa:

• Nascimento e descrição da ancestralidade. A primeira sentença da narrativa começava quase sempre com os dizeres “Nasci em (data e local)”. Na sequência. o autobiografado falava de suas re

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lações de ancestralidade e de sua infância. Nessa primeira parte também, o autobiografado contava o momento de sua captura, da travessia do Atlântico em um navio negreiro, da chegada ao continen te americano, ou, se já tivesse nascido na condição de escravizado, quais eram as circunstâncias.

• Descrição do seu sinhô/sinhá – O autobiografa do fazia uma descrição do seu senhor ou senhores. Não raro, alguns autobiografados demonstravam um sentimento de empatia por alguns de seus se nhores, revelando a total condição de subserviência e resignação a que eram submetidos.

• Descrição dos maus-tratos – Um dos pontos principais da narrativa eram os relatos dos maus -tratos sofridos pelo autobiografado e de seus mo mentos de revolta, que muitas vezes culminavam em fuga. Quanto mais detalhada fosse a descrição dos maus-tratos, mais a narrativa conseguiria cumprir o seu papel de denúncia e de sensibiliza ção do público leitor.

• Proselitismo religioso: a salvação está na evangelização – Como grande parte dessas narrativas foram financiadas por grupos religiosos, geralmente de corrente protestante, era importante o autobio grafado demonstrar que a sua salvação só se daria a partir de seu encontro com a igreja e da evangelização. Assim, a igreja conseguia cumprir os seus objetivos de expansão da fé e da ideologia cristãs

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por meio da catequização e da doutrinação religio sa, com o consequente apagamento da cultura afri cana e condenação das práticas de religiões pagãs. Aqui é importante uma análise crítica de que esses grupos religiosos não eram a favor da abolição da escravatura apenas por motivos humanitários, mas também porque havia um grande interesse econômico por parte dos ex-colonizadores em ampliar os mercados consumidores de seus produtos nas ex -colônias, ou seja, mais homens livres sendo pagos por seu trabalho representavam mais consumidores dos produtos industrializados dessas nações. Sendo assim, fica evidente o tom de proselitismo religioso nessa parte da narrativa, embora, muitas vezes, o autobiografado questionasse, mesmo que de forma sutil, o choque dos preceitos religiosos e da moral cristã com as situações que sua própria condição de escravizado lhe impunha.

• Reflexões sobre a escravidão e a liberdade – Os relatos terminavam com questionamentos sobre os efeitos nefastos da escravidão para a humani dade e com uma apologia à liberdade.

Outras características recorrentes das narrativas de escravos eram:

• Retrato ou gravura do autobiografado na capa.

• Frontispício com expressões como: “Escrito por ele mesmo”, “Relatado por ele mesmo”, “Escrito por um amigo, conforme relato de…”, etc.

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• Prefácio com o testemunho de algum homem branco abolicionista, conhecido do narrador, ou de algum editor responsável pela publicação, declarando que “nenhuma passagem na narrativa foi exagerada ou foi fruto da imaginação” e con firmando a veracidade dos horrores da escravidão descritos na narrativa. Era uma parte fundamental da obra para que o relato tivesse credibilidade junto ao público leitor, constituído, em sua maio ria, de uma elite branca que não acreditaria na palavra de um negro ex-escravizado sem que ela fosse atestada por um branco.

• Apêndices com documentos de compra e venda, carta de alforria ou de recomendação, sermões, discursos, processos judiciais etc. que comprovassem a existência do autobiografado.

• Linguagem coloquial. Embora muitos desses rela tos tivessem sido ditados e transcritos, pois muitos dos autobiografados não eram alfabetizados, havia um certo cuidado em manter o registro informal e o linguajar do autobiografado, a fim de dar maior veracidade ao texto em primeira pessoa, indican do que o texto não tinha sido alterado por quem o transcrevera ou pelo editor.

Por fim, vale destacar que a principal característica das narrativas de escravo está em seu propósito junto ao seu leitor, ou seja, sensibilizar o público para as atrocida des da escravidão, visando o seu fim.

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Sobre a autora

Mary Prince (c. 1788–após 1833), nasceu na paróquia de Devonshire, nas Bermudas. Filha de escravizados afrodescendentes, nasceu já na condição de escravizada.

Vendida e alugada por vários donos de escravos, Mary passou por um dos piores momentos da vida quando trabalhou nas salinas da Ilha Turcos, debaixo de um sol escaldante e com o corpo ferido mergulhado na água salgada.

Após sua chegada a Londres, aos 40 anos, Mary teve contato com membros da Sociedade Antiescravidão, que tomaram conhecimento de sua pungente história e patrocinaram a publicação de seu relato.

Em 24 de junho de 1829, tornou-se a primeira mulher a apresentar uma petição ao Parlamento Britânico soli citando sua manumissão para que pudesse voltar como liberta à Antígua, onde tinha deixado seu marido. A petição, infelizmente, foi infrutífera, pois o Parlamento Britânico entendeu que na Inglaterra não havia escra vidão, sendo assim, ela era uma mulher livre enquanto estivesse em solo inglês. O que não impedia que ela voltasse a ser escravizada caso retornasse à América.

A data de morte de Mary Prince é desconhecida e não se sabe ao certo por quanto tempo ela permaneceu na Inglaterra após 1833, nem mesmo se ela algum dia conseguiu retornar para as Índias Ocidentais como uma mulher livre.

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Sobre o tradutor

Alexandre Camaru (1969-) é tradutor, autor e editor, especialmente na área de didáticos e paradidáticos. Graduado em Letras com habilitação em Tradução e Inter pretação e especialista em Estudos Avançados de Língua Inglesa. Tomou conhecimento das narrativas de escravos dos séculos XVIII e XIX ao escrever um material didático e foi logo cativado por esse gênero literário. Ao perceber que muitas dessas obras não tinham sido publicadas em português, decidiu engajar-se no projeto de tradução des sas narrativas para que o público brasileiro tivesse acesso a esse material literário e histórico tão valioso.

Sobre o ilustrador

Wesley Botto (1991-) é artista visual, oficineiro e professor de Arte em escolas dos ensinos Funda mental e Médio da rede pública. Graduado em Artes Visuais. Apaixonado pela cultura e pelas religiões de matrizes africanas, empolgou-se ao ser convidado para ilustrar uma narrativa de escravo. O tema por si só era inspirador para criar ilustrações carregadas de força e expressividade.

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“A liberdade é doce como um torrão de açúcar.”

A escravidão corta como a salmoura na carne viva.

Vendida como uma mercadoria de um sinhô cruel para outro pior ainda, Mary Prince sofreu todo tipo de maus-tratos, privações e humilhações.

Em 1831, sua história tornou-se o primeiro relato pessoal de uma mulher escravizada a ser publicado na Inglaterra. Uma narrativa contundente que abriu os olhos da sociedade para os horrores da escravidão e, junto com outras narrativas de escravos do século XIX, amparou os abolicionistas e enfureceu os escravagistas.

Uma história real, contada em uma linguagem simples e tocante, em versão inédita em língua portuguesa, ricamente ilustrada.

editora ISBN 978-65-993950-0-0

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