A depressĂŁo de
Lars
Eduardo Yuji Yamamoto Cintia Moleta
A depressão de Publicação aprovada pelo Conselho Editorial da UNICENTRO
Editora UNICENTRO Rua Salvatore Renna, 875, Santa Cruz, CEP 85015-430 - Guarapuava - PR. Fone: (42) 3621-1019 editora@unicentro.br www.unicentro.br/editora
lars
Sobre o problema moral nos filmes Anticristo, Melancolia e Ninfomaníaca
Universidade Estadual do Centro-Oeste Reitor: Aldo Nelson Bona Vice-Reitor: Osmar Ambrosio de Souza Editora UNICENTRO Direção: Denise Gabriel Witzel Assessoria Técnica: Beatriz Anselmo Olinto, Gilvana F. F. Gomes, Ruth Rieth Leonhardt, Suelem Lopes, Victor Mateus Gubert Teo Divisão de Editoração: Renata Daletese Correção: Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira Diagramadores: Renata Daletese, Thomas Volski, Victor Mateus Gubert Teo Diagramação: Renata Daletese Capa: Victor Mateus Gubert Teo Gráfica UNICENTRO Lourival Gonschorowski, Marlene dos Santos Gonschorowski, Agnaldo Dzioch
“Não fruí até a última gota o benefício desta época de
Ficha Catalográfica Catalogação na Publicação Fabiano de Queiroz Jucá – CRB 9/1249
profundo mal-estar e é fácil compreender por isso porque não quero despedir-me dela com um gesto ingrato: demasiada é a minha consciência das
Yamamoto, Eduardo Yuji A depressão de Lars: sobre o problema moral nos filmes Anticristo, Y19d Melancolia e Ninfomaníaca / Eduardo Yuji Yamamoto, Cintia Moleta – – Guarapuava, 2016 98 p. ; 19 cm
vantagens sobre os hércules do espírito que minhas vicissitudes orgânicas concedem. Filósofo que passou e passa constantemente por numerosos estados de
ISBN 978-85-7891-182-9
saúde, passa por outras
Bibliografia
tantas filosofias: apenas pode
1. Cinema - crítica. 2. von Traier, Lars - cineasta. I. Título. CDD 791.43
espiritualizar o seu estado, procurando um recuo mais próprio as coisas da inteligência”.
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Friedrich Nietzsche
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PRÓLOGO Transvalorização dos valores 20 Da tradição, a moral 26 Má consciência 29 A exceção 31 Obediência 33 Nada querer diferente
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TRILOGIA DA DEPRESSÃO 38 Anticristo 40 Melancolia
61 Melancolia 61 Fim ou começo?
42 Ninfomaníaca
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A DEPRESSÃO DE LARS
63 A boa irmã 68 Enfim, livre
73 Ninfomaníaca 74 O labirinto do desejo 79 O cativeiro da liberdade
48 Anticristo 48 A cidade, o hospital, a casa e o homem 52 A mulher, o limite 57 Os três mendigos
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81 O pescador
EPÍLOGO REFERÊNCIAS
PRÓLOGO A inquietação provocada no público pela Trilogia da Depressão, obra do diretor dinamarquês Lars von Trier, através de questionamentos sobre o seu sentido e propósito, tem gerado muita polêmica e discussão. A mídia jornalística, costumeiramente guardiã da moral e bons costumes, é quem mais tem feito alarde sobre os filmes desse diretor, muitas vezes se apegando às cenas de sexo, sofrimento e
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tortura. Esse tratamento dado por von Trier a assuntos tão delicados para a sociedade, tais como o infanticídio, o adultério no casamento, a dissolução da família e o fim do mundo, utilizando-se de metáforas e figuras simbólicas, é o que intriga os telespectadores estimulando-os à busca por interpretações. Desvendar o que von Trier quis dizer é algo impraticável. O que nos cabe aqui é a apresentação de um modo de leitura da Trilogia que nos permita ver para além do senso comum, evidenciando um novo modo de fruir a sua obra, nela buscando elementos que a estruturem como um todo de sentido e, principalmente, atravessada por uma crítica cultural. Essa crítica, vinculada ao problema da moral sobre a sociedade, organiza os enunciados dos filmes reconstruindo internamente o sentido da Trilogia. O objetivo desta publicação é apresentar o modo como esse sentido se estrutura para dar unidade aos filmes. Para atingir esse objetivo, fez-se necessário um percurso que incluiu: a) a apresentação do problema da moral a partir de Nietzsche (conflito entre o espírito livre e o espírito cativo, a lógica da culpa e do ressentimento, além do amor fati); b) a descrição dos filmes; e c) a apresentação de uma narrativa a partir deste eixo analítico do conflito moral. Para nossa leitura da Trilogia será empregada a Análise do Discurso, técnica investigativa que reconstrói o sentido dos filmes a partir da articulação de seus enunciados com os conceitos
nietzschianos sobre a moral. Neste trabalho, considera-se discurso a relação interdiscursiva (ou interenunciativa) cuja dinâmica interna no objeto analisado constitui um todo de sentido, articulação de fragmentos discursivos (enunciados) que compõe os três filmes numa direção interpretativa. Conforme Eduardo Manhães, A noção de discurso é uma consequência da premissa hermenêutica de que a interpretação do sentido deve levar em conta que a significação é construída no interior da fala de um determinado sujeito; quando um emissor tenta mostrar o mundo para um interlocutor, numa determinada situação, a partir de seu ponto de vista, movido por uma intenção (MANHÃES, 2010, p. 305).
Utilizando esse procedimento, busca-se uma interpretação através da definição do sentido na mensagem. Esse sentido é alcançado aplicando-se uma sistematização analítica e definindo uma chave de leitura interpretativa que permita dar coerência e unicidade aos fragmentos discursivos e diversos outros elementos que constituem a linguagem audiovisual. Manhães (2010), aponta que discurso é uma apropriação da linguagem que confere ao emissor o papel enunciativo, permitindo que este se torne o sujeito da mensagem. “Discurso, enfim, é a apropriação da linguagem [...] por um emissor, que confere a este um papel ativo, que o constitui em sujeito da ação social” (MANHÃES, 2010, p.
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305). É preciso, entretanto, esclarecer que emissor e sujeito são conceitos distintos na Análise do Discurso, pois o primeiro designa o papel empírico daquele que enuncia (no caso, o diretor Lars von Trier) e o segundo refere-se a uma posição discursiva, fruto de um interdiscurso que resulta no sentido (aqui o sujeito é reconstruído, teoricamente, como consciência, unidade discursiva, na medida em que inferimos um sentido interpretativo). Assim, no contexto da Análise do Discurso da Trilogia, o emissor apropria-se de um conjunto de enunciados e, na medida em que esses ganham uma organização interna e um sentido subjacente, ele é reconstruído, no processo analítico, como sujeito da enunciação. Originária da Linguística, que trabalha basicamente com o signo verbal, a Análise do Discurso, adaptada aos signos do código audiovisual, implica na observação dos enunciados do filme (diálogos, cenas, símbolos e signos visuais), no modo como se estruturam textualmente. Esses enunciados serão interpretados e analisados conforme sua inserção em uma formação discursiva, através da qual é possível delinear sua significação. A estratégia metodológica aqui é organizar os enunciados dos filmes segundo as formações discursivas correspondentes, ou seja, os conceitos nietzschianos. Assim, o critério de seleção das cenas a serem analisadas seguiria a sua correspondência com tais conceitos. Aqui, o conceito de formação discursiva é imprescindível, pois atribui um significado parti-
cular aos enunciados dos filmes, indicando um sentido específico e, possivelmente, uma chave de leitura à obra. Segundo Eni Orlandi (2002, p. 43), a formação discursiva constitui uma região do interdiscurso; trata-se de uma estrutura temporária de significação, produzida pela relação diferencial entre estruturas discursivas, mas que confere, nesta provisoriedade, um significado aos textos sob sua formação. Um texto, como observa Orlandi, não possui sentido ou significado nele mesmo, mas deve obtê-los através de textos que lhes são externos e anteriores (memória). É a partir de uma determinada formação discursiva que um enunciado (uma palavra, por exemplo, mas também um símbolo, uma cena, um gesto) assume uma significação e não outra. Uma palavra como “espírito livre” possui significação diferente segundo a formação discursiva onde se apresenta, isto é, conforme a relação intertextual que ela estabelece historicamente: no contexto social de hegemonia da Igreja (formação discursiva cristã), essa palavra significa, predominantemente, algo como a proximidade a Deus (graça, clemência, remissão dos pecados etc.). Já no contexto do século XXI, quando essa hegemonia se vê abalada (niilismo, morte de Deus), sobretudo pelo pensamento nietzschiano 1, essa mesma palavra assume o 1 “O maior acontecimento recente”, diz Nietzsche (2001, p. 233), “o fato de que ‘Deus está morto’, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito”, abre uma “seqüência de ruptura, declínio, destruição, cataclismo” do mundo ocidental justamente porque, com esse “acontecimento”, vão-se os valores absolutos do ocidente (verdade, valor,
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significado inverso (sair de um ordenamento, de uma fundamentação absoluta). É pela referência à formação discursiva que podemos compreender, no funcionamento discursivo, os diferentes sentidos. Palavras iguais podem significar diferentemente porque se inscrevem em formações discursivas diferentes. Por exemplo a palavra ‘terra’ não significa o mesmo para um índio, para um agricultor sem terra e para um grande proprietário rural. Todos esses usos se dão em condições de produção diferentes e podem ser referidos a diferentes formações discursivas. E isso define em grande parte o trabalho do analista: observando as condições de produção e verificando o funcionamento da memória, ele deve remeter o dizer a uma formação discursiva (e não outra) para compreender o sentido do que ali está dito (ORLANDI, 2002, p. 44 - 45).
base para a seleção dos enunciados da Trilogia pertinentes nesta análise. É essa matriz discursiva que sobrevém, nos filmes, a situação de conflito, conflito esse não apenas moral (eixo estruturador da narrativa), mas também interpretativo ocasionado pela possibilidade de uma dupla leitura da Trilogia, dada as duas formações discursivas (nietzschiana e cristã) a que se pode submeter a obra – a primeira crítica e a segunda moralista, responsável pela polêmica que envolve o diretor.
A construção do sentido, desta análise, situada no século XXI, está pautada nessa formação discursiva onde os preceitos cristãos não incidem tão decisivamente, quer dizer, onde o moralismo ocidental não imputa uma interpretação homogênea, mas abre a possibilidade de inscrição da filosofia nietzschiana como matriz discursiva,
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referência etc.) nele fundamentado – tal como a “moral europeia”: “[...] pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande [...] e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral européia, por exemplo”.
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