Publicação aprovada pelo Conselho Editorial da UNICENTRO
Editora UNICENTRO Rua Salvatore Renna, 875, Santa Cruz, CEP 85015-430 - Guarapuava - PR. Fone: (42) 3621-1019 editora@unicentro.br www.unicentro.br/editora
Rosemeri Moreira AndrĂŠa Mazurok Schactae
Universidade Estadual do Centro-Oeste Reitor: Aldo Nelson Bona Vice-Reitor: Osmar Ambrosio de Souza Editora UNICENTRO Direção: Denise Gabriel Witzel Assessoria Técnica: Beatriz Anselmo Olinto, Gilvana F. F. Gomes, Ruth Rieth Leonhardt, Suelem Lopes, Victor Mateus Gubert Teo, Waldemar Feller Divisão de Editoração: Renata Daletese Correção: Níncia C. R. B. Teixeira Diagramadores: Thomas Volski, Victor Mateus Gubert Teo Diagramação: Victor Mateus Gubert Teo Capa: Victor Mateus Gubert Teo Imagem da capa: Luiz Ricardo Rech Gráfica UNICENTRO Lourival Gonschorowski, Marlene S. Gonschorowski, Agnaldo Dzioch Catalogação na Publicação Biblioteca Central da Unicentro, Campus Cedeteg Moreira, Rosemeri M838g Gênero e instituições armadas / Rosemeri Moreira, Andréa Mazurok Schactae. – – Guarapuava, 2016 248 p. : il. ISBN 978-85-7891-178-2 Bibliografia 1. Gênero. 2. Polícia Militar do Paraná - Mulher. 3. Policiamento feminino. 4. Polícias. 5. Mulheres. 6. Feminino. I. Título. CDD 305.42 Copyright © 2016 Editora UNICENTRO
Nota: O conteúdo desta obra é de exclusiva responsabilidade de seus autores.
Mulheres armadas: uma operação de esquecimento
Há tempos li uma notícia que reforçou, para mim, a sensação de que a história das mulheres como guerreiras e portadoras de armas tem sido sistematicamente ocultada e “esquecida”. Trata-se da pesquisa, realizada pelo pesquisador inglês Shane Mcleod que “descobriu”, graças a uma investigação nos ossos de enterros Vikings na Europa, que boa parte dos chamados “invasores Vikings”, que acederam a Europa em torno de 900 d.C., eram mulheres1. Até então, esses enterros eram vistos como predominantemente masculinos, pois boa parte dos corpos eram enterrados com escudos, espadas e lanças, portando armas. Logo, inferia-se que se tratava de homens. Ou seja, a História vê, nas “evidências”, aquilo que quer ver... mas, mais do que isso, aquilo que espera ver. E as mulheres com armas, guerreiras, são algo que, desde o mito das amazonas, são uma espécie de aberração. Este livro trata de mulheres armadas: policiais, soldadas, guerrilheiras. Ao longo da história, muitas mulheres pegaram em armas, em muitos momentos. Até o século XIX, por exemplo, os exércitos regulares tinham um componente feminino “informal”, que, no Brasil, eram chamadas de “vivandeiras”. Eram esposas e companheiras de soldados, algumas, prostitutas, lavadeiras, cozinheiras, que se ocupavam de muitas das tarefas que hoje consideramos “domésticas” (embora não houvesse casas), de curar feridos, recolher mortos no campo de batalha, e, muitas vezes, lutaram de armas nas mãos, já que o estupro das mulheres do exército inimigo era prática muito comum e esperada nos confrontos armados.2 Pouco se sabe dessas mulheres, e elas nunca foram consideradas como integrantes dos exércitos, apesar de 1. Li a notícia no Facebook, que remetia ao site <http://www.proibidoler.com/interessante/viking-guerreiras/> . Mas encontrei a publicação original: MCLEOD, S. (2011), Warriors and women: the sex ratio of Norse migrants to eastern England up to 900 ad. Early Medieval Europe, 19: 332–353. doi: 10.1111/j.1468-0254.2011.00323.x 2. Sobre isso ver WOLFF, Cristina Scheibe. Em armas: Amazonas, soldadas, sertanejas, guerrilheiras. In: PINSKY, Carla Bassanesi; e PEDRO, Joana Maria. Nova História das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2012. Pp.423-446.
que, conforme mostram todas as “evidências”, o próprio comando contava com elas, para essas tarefas, que, do contrário, teriam que ser realizadas por outras pessoas e, possivelmente, remuneradas. Também, muito pouco se fala sobre a participação das mulheres na Primeira e na Segunda Guerra Mundial, por exemplo, apesar da existência de pelotões femininos na força aérea Russa, e de diversos grupos e formas de participação das mulheres nesses conflitos, muitas vezes sim, portando armas3. Aqui, neste livro, trata-se de mulheres que, a partir de meados do século XX, começaram a integrar as polícias militares, no Paraná, em São Paulo e na Paraíba. Primeiro com muitas restrições à sua atuação, ao uso da arma, aos tipos de trabalhos que poderiam fazer. Depois tendo sua atuação ampliada. Também, aparece com destaque a discussão da participação das mulheres no exército, a discussão jurídica sobre as mulheres nas forças armadas, a construção de uma heroína guerrilheira em Cuba e a questão da internacionalização das polícias com relação à incorporação de mulheres a seus quadros. A discussão proposta vai mais além do que simplesmente narrar a incorporação das mulheres nesses espaços, tidos como construtores da masculinidade, nos quais sua presença foi sistematicamente negada e/ou ocultada. De forma interdisciplinar, os capítulos nos trazem a discussão desses espaços militares: sobre a legislação que envolve direitos e possibilidades para as mulheres; discussões sobre o corpo feminino e como ele foi estigmatizado e responsabilizado por interdições e negações; a importância do feminismo e das oportunidades de educação e inserção das mulheres no mercado de trabalho para que pudessem, também, ser pensadas dentro das instituições militares; e, ainda, sobre a institucionalização de uma heroína guerrilheira. 3 Um livro que discute isso é CAPDEVILA, Luc et. al. Hommes et femmes dans la France em guerre. (1914-1945). Paris: Payot, 2003.
8
Trata-se de uma questão que envolve o gênero, pois como se estabeleceu a guerra, as armas, a violência de uma maneira geral, associadas ao masculino, e portanto, negadas ao feminino? As armas, muitas vezes, fazem o papel de “falos”, não no sentido do órgão masculino em si, mas na sua dimensão simbólica que denota poder e possibilidade de ação em nossa sociedade ocidental e patriarcal. De certa forma, mostrar que as mulheres, muitas vezes, se apropriaram desses “falos”, desses instrumentos de poder, demonstra como o gênero é um elemento das relações sociais construído performativamente, simbolicamente e, portanto, felizmente, passível de mudança, de transformação. Chamo atenção, portanto, para o caráter feminista e militante deste livro, pois ele contribui para romper o esquecimento imposto às mulheres que participaram e participam dos espaços e eventos militares, guerreiros, guerrilheiros, e, ao mesmo tempo, para desconstruir estereótipos de gênero, tanto do masculino como do feminino e, assim, possibilita pensar a transformação. Escritos por pesquisadoras de diferentes formações (História, Pedagogia, Direito e Sociologia), os capítulos estão enlaçados a partir da discussão de como as delimitações do binarismo do gênero, foram negociadas, transgredidas e/ou ressignificadas a partir da presença de mulheres na esfera considerada da ação militar: seja na polícia, no exército ou na guerrilha. Utilizando de metodologias próprias da pesquisa histórica, nos capítulos I e II, de autoria, respectivamente, das historiadoras Andrea Mazuroch Schactae e Rosemeri Moreira, o olhar incide ora na construção discursiva da masculinidade, ora em uma feminilidade possível de ser inserida na Polícia Militar do Estado do Paraná. Se por um lado, Schactae nos mostra como, durante todo o século XX, a identidade institucional foi construída por meio dos pilares de uma masculinidade gloriosa (analisados através da
9
legislação oficial e dos Boletins Gerais) e aponta que um “feminino” veio a causar desconforto ao ocupar um não-lugar na instituição, por outro lado, Moreira nos mostra qual feminino foi possível figurar entre esses homens valorosos, a partir da década de 1970. Moreira vai além da construção discursiva institucional, uma vez que mescla suas análises com fontes orais, as quais nos trazem as percepções de homens e mulheres que vivenciaram esse processo de construção paulatina do corpo da mulher soldado. No capítulo III, de autoria de Laís Godoi Lopes e Carolina Nasser Cury, a discussão se volta para a área do Direito. As autoras apresentam como o binarismo do gênero foi naturalizado no discurso jurídico. Problematizando o gênero como construção/ conformação, o capítulo discute as possibilidades das biotecnologias frente às concepções do determinismo biológico, além de lançar o olhar sobre a lógica jurisprudencial nas instituições armadas, frente à diversidade sexual e à construção do corpo. Os capítulos IV e V têm, em comum, a discussão sobre as relações de gênero no interior das instituições militares. Íris Oliveira do Nascimento e Maria Eulina Pessoa de Carvalho, com olhar sobre a Polícia Militar da Paraíba, em primeiro lugar, discutem o currículo pedagógico dos cursos de formação dos/as policiais militares. Em segundo, além das representações de gênero presentes na documentação curricular, referente às chamadas competências profissionais, as autoras apresentam, ainda, um mapeamento das percepções dos homens e das mulheres policiais militares. Elaborado a partir de entrevistas, esse mapeamento deixa claro como a demarcação do gênero se encontra presente na crença e/ou descrença das competências técnico-profissionais. No capítulo V, de autoria da pesquisadora Carla Christina Passos, as práticas cotidianas das relações de gênero na caserna também são evidenciadas. Passos enfatiza a dinamicidade entre os preceitos
10
da chamada “doutrina militar” e as implicações decorrentes dessa formação nas relações entre homens e mulheres na caserna, tendo como locus a Escola de Saúde do Exército (EsSEx) e a Escola de Formação Complementar do Exército (EsFCEx). Fazendo uso de entrevistas, a pesquisadora nos oferece ainda uma discussão sobre a trajetória da vida militar e civil de mulheres militares, onde transparece o cotidiano da caserna e a percepção dos sujeitos frente a si mesmos e a profissão militar. No capítulo VI, a historiadora Andréa Mazuroch Schactae ultrapassa a esfera das forças militares do Estado, para abordar a atuação das mulheres no exército revolucionário cubano. Seguindo com o olhar atento à categoria gênero, a pesquisadora nos apresenta um debate sobre a construção das heroínas e os novos símbolos nacionais a partir das biografias históricas e logotipos utilizados pós-revolução. Schactae se dirige à análise da construção da heroína Célia Sanches como modelo de cidadã cubana e ícone do espaço reservado às mulheres no estado revolucionário. Ao todo, esse capítulo aborda um assunto pouco discutido na historiografia sobre a revolução cubana, a qual ainda permanece cheia de tabus e olhares ainda bastante receosos dos “inimigos da revolução”. O capítulo VII encerra a coletânea com um debate que extrapola as fronteiras do nacional para pensar as polícias e as mulheres. A historiadora Rosemeri Moreira parte do movimento de internacionalização das polícias, reavivado a partir da década de 1950, para pensar o lugar do policiamento feminino que se firmou no ocidente no mesmo período. A partir de relatórios oficiais, a pesquisadora apresenta a viagem aos EUA, realizada pela primeira comandante do chamado policiamento paulista, Hilda Macedo, a qual se tornou modelo e fomentadora das demais polícias femininas brasileiras. Moreira nos mostra, a partir dessa viagem, a pretensão de um projeto estadunidense de gestão de pobreza urbana, focado
11
na atuação das mulheres, a ser exportado para a América Latina. O capítulo apresenta tanto a organização das ditas polícias femininas nos EUA, quando a consideração da importância das mulheres no estabelecimento de laços político-ideológicos e diplomáticos com os países latino-americanos, pelo Departamento de Estado estadunidense. Vale a pena ler cada capítulo, e refletir, sobre o ocultamento dessas guerreiras, e consequentemente, sobre a centralidade da guerra e da violência na nossa sociedade, que queremos da paz. Dra. Cristina Scheibe Wolff IEG – LEG - UFSC
12
Sumรกrio
17
“A gloriosa Polícia Militar do Paraná”: masculinidade e identidade institucional (século XX) Andréa Mazurok Schactae
49 95
A invenção da mulher policial militar no Paraná Rosemeri Moreira
A naturalização do gênero através do direito: notas para uma análise das instituições armadas Laís Godoi Lopes Carolina Nasser Cury
121
Competências de soldado: representações e percepções de alunas e alunos do curso de formação de soldados da Polícia Militar da Paraíba Iris Oliveira do Nascimento Maria Eulina Pessoa de Carvalho
151
Dos discursos às práticas das relações de gênero na caserna Carla Christina Passos
189 217
“Mulheres guerreiras”: mulheres na guerrilha cubana e a construção da heroína Célia Sanchez Andréa Mazurok Schactae
Internacionalização das polícias e o policiamento feminino paulista: a viagem da Comandante Hilda Macedo aos EUA Rosemeri Moreira